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DESAPRENDER

PRECONCEITOS “

´
DA TRABALHO
“Eu não debato mais com
gente branca sobre raça. Não todas as
pessoas brancas, só a vasta maioria
que se recusa a aceitar a legitimida-
de do racismo estrutural e seus sinto-
mas. Eu não posso mais ser lançada
ao abismo de desconexão emocional
que as pessoas brancas exibem quan-
do uma pessoa de cor articula sua ex-
periência.” Foi assim que a jornalis-
E ele é todo seu! Conseguir a desconstrução não é fácil, ta inglesa Reni Eddo-Lodge iniciou a
publicação em seu blog pessoal que,
e estudos científicos mostram que a imposição desse
após viralizar na internet, tornou-se o
processo ao outro pode ter sérias consequências livro best-seller Por que Eu Não Falo
Mais com Gente Branca Sobre Raça,
ainda sem tradução no Brasil e que,
ironicamente, levou-a a falar sobre
raça para milhares no Reino Unido.
O sucesso de seu desabafo mos-
tra a força desse sentimento compar-
tilhado. “Muita gente acha que por-
que eu falo sobre racismo nas redes
sociais, desabafando sobre minhas
experiências, estou dando abertura
para ser consultora pessoal sobre ra-
cismo”, conta Karoline Gomes, jorna-
lista — negra — de São Paulo. “É um
REPORTAGEM comportamento que manifesta uma
Luíse Bello posição privilegiada, de achar que as
pessoas negras estão sempre dispo-
ILUSTRAÇÃO níveis para ajudar as brancas, e ele
Leandro Lassmar vem acompanhado de um sentimen-
to de que essa atitude jamais poderia
EDIÇÃO ser negativa — afinal, estão apenas
Isabela Moreira tentando aprender.”
A questão é que, muitas vezes, esse
DESIGN aprendizado se dá às custas do tempo
May Tanferri e da disponibilidade emocional de

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indivíduos que pertencem a grupos métodos de autocuidado e debates
minorizados. “A jornada para com- sobre saúde mental. No epílogo de
preensão do racismo estrutural ain- seu livro A Burst of Light, sem tra-
da requer que os negros priorizem os dução no Brasil, a escritora e ativista
sentimentos dos brancos”, escreve por direitos civis Audre Lorde resu-
Eddo-Lodge. “Seus olhos ficam en- me: “Cuidar de mim não é indulgên-
tediados ou indignados. Suas bocas cia, é autopreservação, e é um ato
começam a tremer conforme ficam político de combate”.
BEM INFORMADO
na defensiva e se abrem quando ten- No caso de Reni Eddo-Lodge, não
Antes de chamar o ami-
tam me interromper em vez de me falar sobre raça com pessoas brancas
go negro no WhatsApp
ouvir de verdade, porque precisam é uma forma de se proteger. “Não fa-
para perguntar se foi
que eu saiba que estou errada. Sua larei com pessoas brancas sobre raça
racista ou não, busque
intenção não é ouvir e aprender, mas a não ser que absolutamente tenha
as próprias fontes de
exercer seu poder, provar que estou que fazê-lo”, afirma. “Se houver algo
informação para sanar
errada, me sugar emocionalmente e como uma conferência ou entrevista
suas dúvidas.
rebalancear o status quo.” em um ambiente no qual eu sinta que
O estresse e o cansaço causados as pessoas estão me ouvindo e tam-
por essas experiências não são ape- bém me sinta menos sozinha, então
nas “mimimi”. Um estudo realizado participarei. Mas não vou mais lidar
pela socióloga Kathryn Freeman An- nal negativa. “Quando tomei consciên- no, preciso sempre decidir se vou ou com pessoas que não querem e, fran-
derson, da Universidade de Houston, cia de como o racismo vinha me afe- não ‘sair do armário’ toda vez que me camente, não merecem me ouvir.”
nos Estados Unidos, mostra que epi-
Como age tando havia anos, passei a ver que ele apresento e, depois, ter que respon-
sódios como os descritos acima têm o bom se manifesta de diferentes formas na der a milhões de perguntas”, explica O dever do aliado
efeitos reais na saúde física e mental aliado minha vida”, explica Gomes. “Sempre Leigh Ain Newton, estudante de cine- Nesse cenário, o exercício da pessoa
de quem passa por eles. Ao analisar Torne-se uma pessoa descons- reflito sobre a presença dele nas mi- ma da cidade de Leeds, na Inglaterra. privilegiada (seja ela branca peran-
os dados de 30 mil norte-americanos, truída sem ferir o próximo nhas relações e nas oportunidades que Esperar que os indivíduos dessas te um negro, homem perante mulher,
ela descobriu que, “por conta da pre- tive ou perdi, bem como nos compor- comunidades sejam responsáveis cis perante trans, entre outras dinâ-
valência da discriminação racial, ser tamentos que as pessoas esperam de pela educação de outras pessoas a micas) começa na compreensão de
uma minoria racial leva a um estres- mim por eu ser negra, por exemplo.” respeito das opressões que sofrem que a sua educação sobre a experiên-
se maior”. Isso quer dizer que 18,2% PÉ NO CHÃO por ser quem são não é apoiá-los, cia do outro é um trabalho seu.
dos participantes negros demons- Entenda seu lugar como A forma do preconceito mas oprimi-los ainda mais. Larissa Magrisso, vice-presiden-
traram estresse emocional e 9,8%, ouvinte e aceite que, Segundo Anderson, “a discrimina- As pessoas que sofrem discrimina- te de criação e conteúdo da agência
estresse físico. Em comparação, os mais do que se declarar ção é um tipo de estresse que afeta ção já são submetidas a um desgaste W3haus, vive os dois lados da ques-
mesmos índices foram de 3,5% e aliado, precisa agir e as minorias de maneira despropor- psicológico tão intenso que a espe- tão: enquanto mulher feminista, é
1,6% para os participantes brancos. mudar comportamentos cional”. Isso fica evidente na comuni- cialista Monnica Williams, diretora procurada por amigos homens que
Em outras palavras, ser negro em para colaborar de verda- dade LGBTI: dados da ONG Mental do Laboratório de Disparidades de desejam aprender mais sobre o mo-
uma sociedade racista significa lidar de com a causa. Health America mostram que indiví- Cultura e Saúde Mental da Univer- vimento. Ela, no entanto, lida com
diariamente com uma carga emocio- duos que se identificam como gays, sidade de Connecticut, nos Estados isso de forma positiva. “É bom,
lésbicas, bissexuais, transgêneros etc. Unidos, propõe que essas experiên-
têm três vezes mais chances de desen- cias sejam classificadas como doen-
volver problemas de saúde mental em ças. “O estresse e o trauma são pro-
comparação aos heterossexuais. Além dutos desses tipos de experiências
disso, jovens da comunidade LGBTI que os grupos minorizados precisam
têm quatro vezes mais chances de se encarar com frequência. Eu argu-
EMPÁTICO
autoflagelar, ter ideação suicida e efe- mentaria que isso é patológico, o que
Ao conversar sobre
tivamente tentar cometer suicídio. significa que é um transtorno que po-
temas sensíveis com ví-
Uma pesquisa publicada em 2016 demos identificar e tratar. Para mim,
timas de discriminação,
na revista The Lancet revela ainda que tais sintomas são de um transtorno
busque consentimento
muitos dos males relativos à saúde diagnosticável que requer interven-
para puxar o assunto
mental sofridos por indivíduos trans ção médica. Ele é amplamente desco-
e não questione as
são consequências de discriminação nhecido pela maioria das pessoas, de
experiências do outro.
e abuso que sofrem constantemente. acordo com minha experiência clíni-
“Conversando com pessoas cis ca”, explica a psicóloga em entrevista
[que não são trans] sinto muita an- à New York Times Magazine.
siedade, pois, como pessoa trans não Junto com o avanço de pautas so-
binária, que não se limita ao que é co- ciais, tem crescido cada vez mais o
nhecido como masculino ou femini- interesse de grupos minorizados por

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APENAS
pois muitos vêm interessados e
com humildade, com a intenção de
mudar comportamentos. Mas sei que
esse hábito não pode se tornar uma

BUSQUE
muleta, como uma terceirização da
Sites e redes sociais responsabilidade”, conta ela.
Há diversas possibilidades: siga Enquanto mulher branca engaja-
pessoas de comunidades minorizadas, da na luta antirracista, Magrisso vai

CONHECIMENTO
SENTINELA
participe de grupos que debatam atrás de informações sobre raça por
Alerte amigos privilegia-
causas sociais, busque blogs, seus próprios meios: “O primeiro
dos sobre atitudes dis-
newsletters e fontes de notícias com passo é me ver como aprendiz e ou-
criminatórias (piadas,
foco nos grupos que deseja apoiar. vinte. Leio sobre o assunto e ouço
expressões etc.), mesmo
com muito respeito os pontos de vis-
quando não estiver na
ta de quem sofre com discriminação,
Recomendação presença de uma vítima
procurando entender e nunca mini-
Antes de sair esclarecendo dúvidas Conheça o trabalho de coletivos de preconceito.
mizar as experiências dos outros. Es-
com vítimas de discriminação, como comum.vc e geledes.org.br
ses temas realmente são prioridade
procure informações sobre o assunto
para mim, tanto para contribuir no
e eduque-se. Veja como começar:
dia a dia quanto para entender as mu-
danças sociais pelas quais o mundo Isso não significa que pessoas em
está passando”. Para se informar, ela diferentes espectros da hierarquia so-
acompanha discussões em redes so- cial estabelecida estejam impedidas
ciais, segue youtubers que debatem de conversar sobre as discriminações
racismo, feminismo, LGBTIfobia e sofridas por um dos lados. Esse diá-
gordofobia, bem como plataformas logo apenas precisa ser fundamenta-
Livros Youtubers Cursos de conteúdo, revistas e livros que do em respeito pela experiência do
A produção literária de grupos O YouTube se tornou uma ótima Procure cursos presenciais ou online abordam esses assuntos. indivíduo que sofre discriminação.
minorizados é uma fonte excelente de fonte de conhecimento. Atualmente, que colaborem com seu aprendizado, Karoline Gomes vê esse passo Leigh Ain Newton recomenda que,
informação para quem deseja aprender a plataforma é um dos meios mais principalmente quando ministrados como essencial e complementa: “An- nesses momentos, as pessoas tenham
sobre processos discriminatórios tanto rápidos e acessíveis para ouvir por pessoas que façam parte de grupos tes de perguntar, é importante tentar humildade e evitem tornar suas pró-
vigentes na sociedade atual quanto experiências diretamente de quem minorizados. Vale o investimento, mas descobrir sozinho. Temos a internet, prias jornadas de aprendizado o cen-
ocorridos no passado. as vive no dia a dia. existem ainda opções gratuitas. livros, documentários. Há várias for- tro das atenções. “O mais importante
mas gratuitas de se informar — nem é estar aberto e pronto para aceitar,
precisam ser fonte acadêmica. Tem sem fazer um bilhão de perguntas e
Recomendação Recomendação Recomendação
bastante gente produzindo conteúdo transformar tudo em algo maior do
O Que É Lugar de Fala?, Canal do youtuber e publicitário Procure por cursos em sites de
bom, importante e acessível. Basta que realmente é”, aponta.
Djamila Ribeiro Spartakus Santiago universidades e ONGs
procurar”. (Veja outras dicas de como Por último, Gomes ressalta a ne-
se informar no box à esquerda.) cessidade de haver consentimento
para a própria conversa. “É preciso
ter sensibilidade e empatia na abor-
dagem, pois são temas delicados e,
por vezes, dolorosos. Tente saber an-
tes se a pessoa está disponível para a
conversa em si.” A dica dela é pergun-
ESFORÇADO tar “Tudo bem se eu te perguntar so-
Mantenha a cabeça aber- bre isso?” antes do início da conver-
Documentários
ta para mudanças e, com sa e prosseguir a partir da resposta.
Por meio de contextualização,
o aprendizado, busque Magrisso faz coro: “Temos que su-
entrevistas e imagens históricas,
detectar seus próprios perar o choque de se ver como privi-
documentários aproximam
comportamentos e atitu- legiado e preconceituoso e entender
espectadores do tema abordado e
des preconceituosas e se que isso não é nossa ‘culpa’ indivi-
apresentam realidades com potencial
comprometa a alterá-los. dualmente, mas que é estrutural da
de gerar empatia.
sociedade, e possível de mudarmos.
Para isso, é necessário o comprome-
Recomendação timento em ser um aprendiz de des-
A Morte e a Vida de Marsha P. construção, que é um trabalho que
Johnson (Netflix) pode durar a vida inteira”.

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