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CONTRIBUIÇÕES DA ERGOLOGIA PARA A COMPREENSÃO DA FORMAÇÃO

NA ESCOLA E NO TRABALHO DO GESTOR EMPRESARIAL


Luiz Guilherme de Lima e Souza

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é o resultado da articulação entre a disciplina “O trabalho


docente na realidade do ensino remoto emergencial - Contribuições da Ergologia”,
ministrada pela Prof. Dra. Mariana Verissimo no 1º semestre de 2021 no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, com o projeto de pesquisa “A formação e qualificação do ergogestor na
situação de trabalho: uma relação trabalho e educação”, escrito pelo mestrando Luiz
Guilherme de Lima e Souza, oriundo do mesmo programa e em fase de pesquisa de
campo.

A articulação entre a disciplina e o projeto de pesquisa se faz de maneira muito


fluida uma vez que ambos têm como referencial teórico central a abordagem
ergológica. A Ergologia é um campo de estudo que está sendo continuamente
construído e, cada vez mais, se faz relevante diante das problematizações
vivenciadas em relação ao trabalho na sociedade atual. Descrito como um método
de investigação pluridisciplinar, a Ergologia convoca saberes da Educação, Filosofia,
Antropologia, Psicologia, Economia e Sociologia, entre muitas outras, afirmando que
todas as disciplinas são necessárias e, ao mesmo tempo, nenhuma é suficiente
(TRINQUET, 2010). A Ergologia nasce da riqueza e diversidade epistemológica
construída pela humanidade e se sustenta nas vicissitudes das articulações de
todas e quaisquer disciplinas que contribuam para compreender a relação entre o
ser humano e seu trabalho.

Na disciplina foram discutidos os conceitos básicos da abordagem ergológica em


interface com a temática do trabalho docente durante o ensino remoto emergencial.
No projeto de pesquisa, objetiva-se compreender como se dá a formação na escola
e no trabalho do gestor empresarial, na perspectiva da ergogestão. Nos próximos
tópicos, serão evocados os conceitos abordados no projeto de pesquisa em
consonância com o que foi discutido na disciplina.

DESCONFORTO INTELECTUAL

Para Trinquet (2010), é necessário aceitar um certo desconforto intelectual para


atuar com a Ergologia. Esse desconforto implica em assumir que não se sabe tudo
quando se lida com seres humanos, uma vez que não existe uma verdade imutável
ou definitiva. Dessa forma, jamais se está completamente seguro ao estudar,
analisar e, principalmente, prescrever os fazeres humanos. Cultiva-se uma postura
de investigação e flexibilidade, no sentido de legitimar o imprevisto e o oculto. O
autor ressalta que a aceitação do desconforto intelectual não implica em ser passivo
ou inativo:

Ao contrário, devemos agir em função de nossa “verdade” do momento,


mas aceitando que esta “verdade” pode evoluir e nos obrigar a evoluir junto
com ela. Razão a mais, quando se objetiva ser eficaz, para unir nossos
saberes e abordagens diferentes e complementares (TRINQUET, 2010, p.
100).

CORPO-SI

De acordo com Schwartz (2014), para abarcar a multiplicidade de aspectos


inerentes à atividade de trabalho, foi necessário elaborar uma definição que
permitisse transitar por esse novo ângulo de visão. O corpo-si transgride as
fronteiras entre o biológico e o histórico ao associar o corpo e o organismo humano,
que operam as situações de trabalho, com a história pessoal, social e cultural que o
sujeito detentor deste corpo vivenciou/vivencia e produziu/produz. Ao contrapor
essas duas âncoras, cria-se uma terceira: a do singular, que é a característica
dessas articulações biológicas e históricas que são construídas na experiência de
vida de cada um (SCHWARTZ, 2014).

Apesar do organismo humano representar uma espécie inteira, ele se diferencia de


indivíduo para indivíduo tanto a nível biológico como subjetivo e é justamente nessa
diferenciação que reside a definição do corpo-si. Esse é um conceito denso pois
abrange instâncias abstratas e profundas e perpassa outras categorias complexas.

DEBATE DE NORMAS

Ao interagir com a sua realidade, o corpo-si passa por debates pois precisa lidar
com suas normas pessoais diante das normas externas, sejam elas explícitas ou
implícitas. “Temos de agir num mundo que não criamos, saturado portanto por
inúmeras normas antecedentes de diversos níveis e graus de proximidade com as
exigências do presente” (SCHWARTZ, 2014, p. 264). Por conta disso, é necessário
estar o tempo inteiro renormatizando e ressingularizando o momento atual, para
poder lidar com ele, respeitando ou se rebelando contra as normas pessoais, assim
como as normas externas.

ATIVIDADE HUMANA

A Ergologia compreende a atividade humana como: “trabalho de ressingularizações


permanentes, encontradas no coração dessas situações laboriosas, no coração das
sociedades modernas, entre as normas antecedentes e as renormalizações
possíveis” (CUNHA, 2013, p. 30). Assim, a definição de “atividade” na Ergologia
atinge uma condição quase que etérea pois perpassa e permeia o trabalho stricto
sensu: “E, por seus contornos indistintos, por ela ser transgressora e mediadora
entre as dimensões macro/micro, corpo/espírito, público/privado –, ela não poderia
ser objeto de nenhuma disciplina isoladamente” (CUNHA, 2013, p. 31).

Mesmo com toda essa abrangência e profundidade, a mesma autora demonstra que
o conceito de atividade não substitui o conceito de trabalho, na realidade ele enfatiza
a complexidade da atividade humana requerida pela experiência de trabalho. No
entanto, evidencia a impossibilidade de definir claramente o significado de trabalho
na Ergologia, colocando-o inclusive como uma unidade enigmática, geradora de
desconforto intelectual e produtora de saberes (CUNHA, 2013).

Essas transformações e suas consequências deixam claro que, ao se


pensar o trabalho humano, é todo um conjunto de valores que está num
jogo (que não é estanque) produtor de e produzido por normas, normas que
não são leis naturais, mas passíveis de retrabalho, de renormalizações.
Jogo esse que é um vaivém entre o micro do trabalho e o macro da vida
social, um fluxo de valores religiosos, políticos e sociais que afetam o
estatuto social do trabalho (HOLZ; BIANCO, 2014, p. 161).

Esse movimento de teorizar sem delimitar ou restringir é bastante presente na


Ergologia e respeita a essência da abordagem que é a liberdade e autonomia do ser
humano visto como detentor de infinitas possibilidades: um universo dentro de outro
universo. Ao expor essas indelimitações, a margem de atuação do indivíduo
aumenta, pois ele se torna mais “senhor de si” sem se reduzir.

ERGOFORMAÇÃO

Yves Schwartz (2013) sugere um recuo estratégico para se discutir a formação


profissional. Em primeiro lugar, ele propõe refletir sobre as compreensões históricas
de trabalho existentes:
Em seu seio, o trabalho é ele também uma mercadoria, neste sentido que
ele é o lugar de uma troca de tempo de trabalho contra remuneração
monetária (isso que chamamos o trabalho stricto sensu). Remuneração sob
a forma salário, pagamento, honorários... Esse uso do trabalho sob a forma
stricto sensu não existiu sempre, e nada diz que ele deva existir para
sempre. (...) No entanto, é uma forma social entre outras. Essa forma de
uso industrioso foi criada na história, não tem nada de natural, ela pode
então ser sempre interrogada, inclusive contestada, ao menos posta em
debate sob uma ou outra de suas formas. (SCHWARTZ, 2013, p. 26)

Se valendo do seu mestre George Canguilhem, Schwartz (2013) afirma que uma
adequada formação profissional deve incidir sobre duas instâncias, a primeira e a
segunda antecipação. Uma se refere a transmissão de protocolos, prescrições,
técnicas e gestos na tentativa de controlar todas ocorrências prováveis de uma
determinada função profissional. Contudo, há de se considerar que “a formação
profissional não pode ser um império de neutralidade em um mundo social que não
o é. O trabalho é uma experiência ‘viva’, isso significa que ele se inscreve numa
história” (SCHWARTZ, 2013, p. 28). Assim, a segunda antecipação, contrastando
com a primeira, irá legitimar os dilemas, debates e complexidades inerentes às
imprevisibilidades constantes em qualquer meio de trabalho, uma vez que a
realidade transcende a prescrição (SCHWARTZ, 2013).
É então pelo viés dessa segunda antecipação que a dimensão política e
mais profundamente axiológica penetra do interior o mundo das atividades
de trabalho. O que quer dizer que penetram por ela os debates, ditos ou
não, sob ou em penumbra, sobre as formas de uso industrioso dos homens
e das mulheres em nossas sociedades mercantis e de direito (SCHWARTZ,
2013, p. 28).

Schwartz (2013) denuncia a criação de um “nó” entre as duas antecipações que une
de forma dialética e dinâmica aspectos objetivos e subjetivos do trabalho e costura o
macro (história, política, economia e profissão) com o micro (trajetória individual,
escolhas e saberes investidos). Nesse processo, constata uma complicada
contradição:
(...) entre o dinheiro que remunera e julga os investimentos em emprego, os
recursos alocados em “fator trabalho” e as atividades humanas que, em
razão da infiltração de um mundo de valores nelas, valores sem nenhuma
métrica disponível, não podem nem se determinar nem se avaliar
unicamente pelos valores mercantis (SCHWARTZ, 2013, p. 30).

Apesar da sociedade contemporânea privilegiar quase que exclusivamente a


primeira antecipação em detrimento da segunda, o autor defende que é necessário
fazer avançar essa dialética das duas antecipações a fim de se discutir uma
formação profissional coerente com a realidade da atividade humana de trabalho
(SCHWARTZ, 2013).

ERGOGESTÃO

A ergogestão promove uma reflexão sobre as diversas formas de governo do


trabalho e o que geralmente denomina-se como gestão, gerência, administração e
política. Contudo, traz uma novidade ao evidenciar o que existe de oculto e
enigmático no trabalho: a gestão que cada um de nós desenvolve para dar conta do
seu cotidiano laboral, para preencher a lacuna entre o trabalho previamente definido
e o trabalho que realmente acontece no “aqui e agora” (SOUZA; VERISSIMO, 2009).
A ergogestão acontece quando se imbui o propósito de buscar compreender o
trabalho e transformá-lo, o que só é possível quando o gestor vai até onde ele
acontece, onde a atividade se desenvolve, atentando-se aos debates de valores e
às dramáticas de usos de si que estão ali presentes (SOUZA; VERISSIMO, 2009).

Não podemos ter uma visão mutilante do trabalho e julgar de nossa posição
o que é melhor para o outro. Como nos alerta Jacques Duraffourg, devemos
fugir da tentação de simplificar o trabalho, de pensar que as coisas são
simples e que há uma solução para cada problema, bastando para
resolvê-los que conheçamos a filosofia de sua aplicação. Enquanto gestor
eu não posso dizer “eu não quero saber”, “quem manda aqui sou eu”, ou “eu
tenho a solução”. Eu tenho que querer saber, eu tenho que promover,
estimular e participar de encontros que versem sobre o trabalho. Eu tenho
que decidir, mas, tenho que discutir antes e sempre baseado no
conhecimento do que se passa no cerne do trabalho. Essa é uma atividade
fatigante, mas também extremamente apaixonante e gratificante (SOUZA;
VERISSIMO, 2009, p. 83).

Trinquet (2010) atribui à ergogestão a característica de ser mais artística do técnica,


mais generalista do que específica e defende a necessidade de assumir que não
existe uma única melhor forma de gerir, existem sempre reservas alternativas:
(...) há sempre a possibilidade de fazer de outro modo. Não pode haver
uma única maneira melhor de fazer as coisas, de responder às obrigações,
de governar os seres humanos. No entanto, isso também quer dizer que
essas alternativas não são precisas, que elas não são, necessariamente,
formuladas e que não sabemos onde elas nos podem levar, pois, a cada vez
que há escolhas há também responsabilidades e riscos. (TRINQUET, 2010,
p. 109)

É nessa compreensão da existência de reservas alternativas no trabalho de


gerenciamento que se criam as possibilidades de reposicionamentos, reflexões e
integrações de novos saberes do trabalho, caso contrário, apenas são geridas crises
e conflitos (TRINQUET, 2010). O ergogestor compreende que cada indivíduo possui
formas distintas de avaliar uma situação, seja quem está hierarquicamente acima
dele, ao seu lado e isso não seria diferente com os seus subordinados, uma vez que
está sempre inserido em uma equipe, um coletivo de trabalho (TRINQUET, 2010). O
autor chama atenção para o fato de que o gestor tem sua avaliação influenciada
pela personalidade, posição hierárquica, valores, cultura, ideologia e, por isso, a
imparcialidade e a neutralidade se tornam impossíveis.

Dito isso, Trinquet (2010) esclarece que a ergogestão se faz, acima de tudo, de uma
gestão de contradições, uma vez que a Ergologia mostra que não é possível impor
externamente normas rígidas aos seres humanos. O autor lembra que sempre há de
se adaptar às articulações entre conhecimentos específicos inerente ao trabalho;
singularidade de cada encontro e momento no tempo e espaço; e imprevisibilidade
do ambiente que compreende o trabalho.

A superação dessa contradição se faz numa tentativa que precisa ser


permanentemente renovada:
(...) a ergogestão começa com a idéia de se levar a normatização das
atividades coletivas dos outros apenas até certo grau, pois ela conduz a
limites, sendo a sua rigidez impossível e mesmo patogênica, no próprio
sentido do termo, por se tratar de algo desumano e contra a natureza.
Afinal, não se pode manipular, por muito tempo, a realidade das coisas e
dos seres. (TRINQUET, 2010, p. 110)

A ergogestão, com seus desafios e complexidades, é a pedra fundamental do


projeto de pesquisa “A formação e qualificação do ergogestor na situação de
trabalho: uma relação trabalho e educação”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão da Ergologia enriquece a compreensão das mais variadas formas de


trabalho humano. Seja na docência ou na gestão empresarial, a abordagem permite
evidenciar possibilidades, contradições e limites que precisam ser debatidos. Em
ambos os contextos o desconforto intelectual precisa ser valorizado, o corpo-si pode
ser compreendido e o debate de normas necessita ser reconhecido. A ergoformação
traz profundas reflexões sobre a realidade que esses cargos precisam enfrentar, que
vai muito além de protocolos, prescrições e técnicas. O conceito de ergogestão e de
atividade, por sua vez, permitem ancorar toda a complexidade das dimensões
discutidas à realidade de trabalho, que sempre demanda uma gestão das situações
vivenciadas.
REFERÊNCIAS

CUNHA, Daisy Moreira. Trabalho, humana atividade. Cadernos de Psicologia


Social do Trabalho, Belo Horizonte, v. 16, n. especial 1, p. 25-35, 2013.

HOLZ, Edvalter Becker; BIANCO, Mônica de Fátima. O Conceito de Trabalho na


Ergologia: da representação à atividade. Revista Trabalho & Educação, Belo
Horizonte, v.23, n.2, p.157-173, mai-ago. 2014.

SCHWARTZ, Yves. Concepções da formação profissional e dupla antecipação.


Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v.22, n.3, p.17-33, set./dez. 2013.

SCHWARTZ, Yves. Motivações do conceito de corpo-si: corpo-si, atividade,


experiência. Revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul.-set.
2014.

SOUZA, Wladimir; VERISSIMO, Mariana. A ergogestão: por um outro modo de gerir


o trabalho e as reservas de alternativas. Ergologia, Aix en Provence, n° 1, p. 75-90,
jan. 2009

TRINQUET, Pierre. Trabalho e educação: o método ergológico. Revista HISTEDBR


On-line, Campinas, número especial, p. 93-113, ago. 2010.

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