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four hands by André Breton and the russian plano pela crítica, a qual nem sempre se in-
revolutionary in Mexico. teressa por questões que lhe pareçam idea-
Keywords: Surrealism; French Commu- listas demais ou que venham a extrapolar a
nist Party, Art of Propaganda, André Breton, sua área de atuação. Entre elas, noções de
Leon Trotsky. cunho primordial para o movimento como o
amor, a poesia e a liberdade. Noções tais
que traziam em seu interior uma motivação
Introdução
política, o que foi rapidamente percebido
quase noventa anos de sua pelo surrealismo, exigindo de seus membros
P ASSADOS
criação, o surrealismo mantém-se vivo
aos olhos do público e da crítica quase que
uma ativa participação nesse campo. A mili-
tância política, partidária ou não dos surrea-
unicamente através de suas obras, situando- listas, (con)funde-se com a própria história
se assim, ironicamente, em um lugar onde do movimento, que em decorrência disso
os seus criadores jamais quiseram que ele impetrou um franco e nada harmonioso de-
ocupasse: o de mais um movimento artís- bate com a esquerda da primeira metade do
tico, ainda que dos mais bem sucedidos na século XX. Debate que se por um lado rele-
história da arte. gou os seus membros e o movimento a certo
O valor artístico do surrealismo e a sua isolamento nos campos político, intelectual
contribuição para a arte moderna é ine- e mesmo artístico, por outro se revela, com a
gável, contudo, compreendê-lo apenas en- distância dos anos, bastante lúcido.
quanto estética é também descaracterizá-
lo, negando-lhe a sua própria essência,
1 Surrealismo e PCF: liberdade
banalizando-o. O surrealismo sempre foi en-
tendido e apresentado pelos seus membros total x liberdade vigiada?
como um projeto de revolta absoluta, o qual A aproximação do surrealismo com o mar-
possuía a ambição de permitir ao homem xismo compreende um período de dez anos
uma libertação total em relação a toda e qual- que vai de 1925 a 1935 e que deixou profun-
quer forma de opressão perpetrada pela so- das marcas no movimento. Tal aproximação
ciedade burguesa, sendo a arte, nesse caso, levou a momentos de dramática tensão no in-
apenas um dentre tantos meios para se atingir terior do surrealismo, em especial no Grupo
tal objetivo. Assim, ao considerar o surrea- de Paris, tendo como consequência o afas-
lismo apenas como um projeto estético fica- tamento voluntário e a expulsão de alguns
se à margem de sua principal meta, que era a dos seus principais membros, além do suicí-
de proporcionar um estado de libertação que dio de René Crevel em 1935 durante o Con-
extrapolava os limites da arte. gresso dos Escritores para Defesa da Cul-
Em função do entendimento do surrea- tura, o qual marcará o rompimento defini-
lismo como uma das vanguardas históri- tivo, não exatamente com o marxismo, mas,
cas somente, questões de valor fundamental sobretudo com o stalinismo, então predomi-
para o movimento e para a sua compreen- nante na maioria dos partidos comunistas da
são tornaram-se com o passar dos anos prati- época. Por outro lado, se esse convívio co-
camente opacas e relegadas a um segundo
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O Surrealismo e o seu Projeto Libertário à Esquerda do Partido Comunista Francês 3
brou um pesado ônus a André Breton e àque- sentido marxista do termo, é primordial que
les que o rodeavam, por outro deu ao sur- ele tenha se libertado das convenções insti-
realismo uma sólida consciência política que tuídas pela sociedade burguesa. Entre elas
anteriormente não existia. estão as de pátria, família, religião, amor
Foi no número cinco da revista La Révo- e arte, as quais se faz necessário destruir
lution Surréaliste, veículo oficial do movi- e superar. Para Breton e seus colegas é
mento, lançado em outubro de 1925, que An- impossível, incompatível mesmo, lutar por
dré Breton escreve um artigo intitulado Leon ideias sociais avançadas mantendo uma com-
Trotsky: Lênin, acerca das impressões que preensão tão retrógrada acerca desses pon-
lhe causaram a leitura do livro que o coman- tos, o que no modo de entender dos surre-
dante do Exército Vermelho escrevera so- alistas acontecia com os militantes do par-
bre o líder da Revolução Russa. Nesse ar- tido. Sobre isso, Breton escreve no Segundo
tigo, Breton rechaça a propaganda negativa Manifesto do Surrealismo em 1929 que não
de Lênin feita no ocidente; nega a ideia de via, a despeito de alguns revolucionários de
que a Revolução Russa teria chegado ao fim espírito tacanho, razão para os surrealistas
ao afirmar que uma revolução de tal ampli- deixarem de considerar no mesmo campo
tude não poderia estar tão depressa acabada; que o da revolução social os problemas do
confirma o caráter revolucionário do sur- amor, do sonho, da loucura, da arte e da re-
realismo, findando o artigo com um “Viva ligião (Breton, 1985, p. 114,115).
Lênin!” e um “Saúdo humildemente Leon Entretanto, e devido a essa fundamental
Trotsky”. É após esse episódio que se inicia divergência, os surrealistas aceitam longas
a aproximação dos surrealistas com os co- discussões com o partido como condição
munistas, em especial com a revista Clarté para o seu ingresso no PCF. Em tais debates
dirigida por Henri Barbusse, com a qual eles os surrealistas tentavam fazer ver aos comu-
passam a colaborar e da qual rapidamente se nistas que Lautréamont e Sade tinham tam-
afastarão. O entusiasmo revelado por Breton bém procedido, da mesma maneira que Marx
nesse artigo inicia um longo e desgastante e Engels, em direção a uma libertação ver-
debate no interior do Grupo de Paris e outro dadeira do homem. Porém, era justamente
de igual proporção com os comunistas, em esse “espírito tacanho” segundo Breton, que
especial com o Partido Comunista Francês impedia os comunistas de compreender cer-
(PCF), onde os surrealistas postulavam a sua tos pontos de vista do surrealismo. Sobre es-
entrada. sas discussões com o PC, Breton escreve em
O cerne da querela entre o surrealismo 1929:
e o comunismo nesses dez anos de con-
tato mais estreito encontra-se na irredutível No curso de três interrogatórios
postura de autonomia, defendida ardorosa- de muitas horas, precisei defender
mente por Breton e seus companheiros, e o surrealismo da acusação pueril
das próprias convicções revolucionárias que de ser em sua essência um movi-
tinha o surrealismo. Essas convicções pas- mento político de orientação niti-
savam para os surrealistas pela ideia de que damente anticomunista e contrar-
para o surgimento de um “novo homem”, no revolucionária. Discussão pro-
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4 Anderson da Costa
funda de minhas ideias, inútil dizer idealistas” em prol de uma causa verdadeira-
que, da parte dos que me julgavam, mente revolucionária.
eu não podia esperar. “ Se o Todavia, em detrimento de toda a
senhor é marxista” berrava nessa polêmica que duraria dois anos, os surrea-
época Michel Marty para um de listas são aceitos pelo partido em 1927,
nós, “o senhor não precisa ser sur- ainda que a questão não tenha sido resolvida
realista.” [...] Como não ficar ter- e se perpetuasse durante e após o convívio
rivelmente inquieto com um tal en- com os comunistas. Nesse mesmo ano, em
fraquecimento de nível ideológico decorrência da adesão de Breton ao partido
de um partido que pouco antes es- e de outros membros importantes do grupo
tava brilhantemente armado com como Louis Aragon, Paul Éluard e Benjamin
duas das mais fortes cabeças do Péret, o movimento perde Philippe Soupault
século XIX!. (Breton, 1985, p. e Roger Vitrac que não querem nenhuma
117, 118) espécie de relação com militantes, sendo
acompanhados por vários outros membros.
Se o debate com os comunistas é áspero, Dois anos mais tarde, é a vez de Antonin
ele não é menos ríspido no interior do Artaud que escreve o panfleto O blefe
próprio surrealismo, vindo a ocasionar várias surrealista, no qual afirmava que a adesão
exclusões de membros do movimento. A de Breton e seus amigos ao comunismo
primeira ruptura com um membro do grupo acabara com o movimento.
se dá em 1926 com Pierre Naville, um dos O Segundo Manifesto do Surrealismo é
fundadores do surrealismo e então diretor da publicado em 1929 no último número de
revista La Révolution Surréaliste, que tenta La Révolution Surréaliste, que doravante
colocar seus colegas diante de um dilema. irá se chamar, por imposição de Aragon
Naville questiona se seria legítimo crer numa que dirigirá a revista, Le Surréalisme Au
libertação do espírito antes da derrocada Service De La Révolution, abreviadamente
das condições burguesas da vida material (S.A.S.D.L.R). Nesse manifesto, além de se-
ou se, contrariamente, não seria necessário veras críticas a ex-companheiros, há três
primeiramente abolir essas condições para pontos discutidos por Breton que se desta-
que só então fosse possível a libertação cam. Primeiramente a ideia, buscada em
do espírito, tal qual o surrealismo dese- Hegel, de um ponto supremo que ultrapas-
java. Breton responde com o texto Légitime saria uma série de pares opostos:
défense (1926), demonstrando que dialeti-
camente a questão de Naville não tem sen- Tudo indica a existência de um
tido e que as atividades interiores do grupo certo ponto do espírito, onde vida
não devem ser controladas de fora, nem pelo e morte, real e imaginário, pas-
marxismo1 . Naville fica com o partido, em- sado e futuro, o comunicável e o
bora tenha tentado convencer os seus com- incomunicável, o alto e o baixo,
panheiros a abandonarem “as brincadeiras cessam de ser percebidos como
1
Ver La Révolution Surréaliste n.8, dezembro de contraditórios. Ora, em vão se
1926, p. 30-36. procuraria na atividade surrealista
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O Surrealismo e o seu Projeto Libertário à Esquerda do Partido Comunista Francês 5
outro móvel que não a esperança a tomar parte em uma revolução sem ques-
de determinar esse ponto. (Breton, tionar a legitimidade moral dos métodos di-
1985, p. 98) tos revolucionários. Esse é um dos pon-
tos nevrálgicos da divergência com os comu-
Socialmente, os surrealistas entendem que nistas e que remonta ao período da revista
esse ponto supremo está na Revolução, pois Clarté, mesma época em que se recusam a
com ela as contradições da sociedade bur- colaborar com o jornal L’ Humanité.
guesa deixariam de existir. No entanto, não Henri Barbusse, considerado pelos surrea-
se cansarão de afirmar que as outras anti- listas um escritor medíocre, também escrevia
nomias, fruto dessa mesma sociedade e que para o jornal oficial do PCF e lhes tinha su-
aos comunistas pareciam irrelevantes, mere- gerido a participação através de uma nove-
cem igual atenção e incessante luta a fim de la literária por dia. A recusa de Breton e
superá-las, sob pena de fracasso dessa revo- de seus amigos a tomarem parte em tal em-
lução. Outro ponto de destaque no Segundo preitada, revela de que forma o surrealismo
Manifesto é a adesão do surrealismo ao ma- pensava acerca da literatura. A proposta de
terialismo dialético. Barbusse é para os surrealistas uma prática
Aprofunda-se aqui a divergência com o literária reacionária e contra a qual se faz
PC, o qual não entendia ser possível que necessário romper. Para eles é impossível
questões de caráter “metafísico” pudessem sacrificar a obra de arte, que deve em sua
ser relevantes para alguém que se consi- gênese surgir livre de quaisquer compromis-
dera materialista. A noção de que no sos, àquela dita “de propaganda” (Breton,
sonho, no acaso e mesmo na escrita au- Légitime défense). O engajamento político,
tomática pudesse haver algo de premonitório portanto, não deve se dar no âmbito da obra
como criam os surrealistas, além da ideia de em si, mas sim através da prática revolu-
realidade enquanto “convenção burguesa”, cionária de seus artistas no dia a dia, e tam-
não podia ser compreendida pela prática bém na postura crítica de um membro no in-
funcional do partido. Diante disso, os terior do movimento revolucionário ao qual
surrealistas argumentam fundamentando-se pertence. Para os surrealistas, portanto, a
nas descobertas de Freud sobre o incons- “arte de propaganda” era um escândalo e a
ciente para as “coincidências atordoantes” sua recusa estava fundamentada em orien-
na vida diária propiciadas pelo acaso e nas tações freudianas e trotskistas, as quais em
noções de Hegel sobre o mesmo. Defendem contrapartida figuravam para o partido como
ainda a existência de certos estados psíquicos ideologias idealistas e socialdemocratas.
ainda não totalmente conhecidos e que deve-
riam ser explorados, não implicando isso de
maneira alguma uma contradição com o ma-
2 Rupturas: O Congresso dos
terialismo filosófico. Escritores para Defesa da
Por fim, o Segundo Manifesto discute o Cultura e o “Caso Aragon”
caráter controlador do Partido e da Interna-
cional, o qual os surrealistas jamais abriram Durante a primeira metade dos anos trinta
mão de criticar, recusando-se dessa forma a contenda entre surrealistas e comunistas
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6 Anderson da Costa
acirra-se. Breton questiona o partido em a França, assinam uma carta para a União In-
face aos “Processos de Moscou”, que já ternacional dos Escritores. Nela, o Segundo
vinham acontecendo desde 1929, e denun- Manifesto do Surrealismo, a psicanálise e
cia a degradação ideológica do comunismo o trotskismo são considerados antirrevolu-
oficial, que em nome do “Estado” traiu os cionários e idealistas.
princípios revolucionários e em consequên- A assinatura de tal documento causa
cia Marx e Engels. Breton percebe que a enorme barulho no interior do grupo. Vários
ideia de liberdade que promoveu o encon- membros pedem a exclusão de Aragon e
tro do surrealismo com o comunismo está Sadoul que com tal atitude abriam mão do
seriamente ameaçada devido ao que estava surrealismo. Contudo, Aragon publica Le
acontecendo na União Soviética e também surréalisme et le devenir révolutionnaire no
pelo crescente patriotismo do PCF. As críti- número três de S.A.S.D.L.R. Nesse texto ele
cas cada vez mais ácidas ao partido, a des- demonstra haver convergências entre surrea-
confiança crescente ao culto a Stalin e a de- lismo e comunismo filosoficamente através
fesa de Trotsky, além da recusa de Breton do materialismo dialético, enquanto obje-
em renegar um texto de Ferdinand Alquié tivos práticos na ação revolucionária, e tam-
que censurava as concepções cívico-morais bém no que consiste à situação social, já
que presidiram o filme russo O caminho da que os surrealistas sofriam, como os inte-
vida acarretam, em 1933, na sua exclusão lectuais de esquerda, repressão para publi-
do diretório da Associação dos Escritores e carem seus textos e obras. Esse texto em
Artistas Revolucionários. A reação dos sur- verdade nada apresenta de novo, apenas ra-
realistas é imediata e segundo eles a “neces- tifica as posições que o grupo vinha tomando
sidade frenética de ortodoxia do partido” é desde 1926 e funciona na prática como
contraditória a Engels que dizia que “um par- uma mea culpa de Aragon, que somada as
tido reconhece-se como um partido vitorioso suas ameaças de suicídio acabam contempo-
dividindo-se e podendo suportar a divisão” rizando a situação.
(Durozoi & Lecherbonnier, 1976, p. 282). É No entanto, o mal-estar é contínuo e
em meio a esse contexto que se dá uma das Aragon só faz aumentar a tensão em vários
mais marcantes rupturas no interior do grupo episódios, os quais revelam o seu distancia-
surrealista de Paris. mento cada vez maior do surrealismo. Num
O “Caso Aragon”, como ficou conhecido, deles, durante uma reunião do grupo, Sal-
inicia-se ainda em 1930 quando em compa- vador Dali esboçava um objeto-surrealista
nhia de Georges Sadoul, Louis Aragon re- que se tornaria célebre, um smoking coberto
presenta o surrealismo na Segunda Confe- de cálices repletos de leite. Irritado, Aragon
rência Internacional dos Escritores Revolu- irrompe aos berros dizendo que “o leite
cionários em Kharkov, na então União So- poderia ser dado às criancinhas”.
viética. Como havia sido combinado com A situação chega ao seu limite em fins de
Breton em Paris, os dois fazem acusações 1931 quando Aragon publica o poema Front
contra a revista Monde de Barbusse, o que Rouge, na revista da União Internacional
não impede a eleição deste para a presidência dos Escritores. Escrito sob encomenda do
do congresso. Todavia, antes do retorno para partido, o poema causa, por esse motivo,
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8 Anderson da Costa
contrariasse. Entretanto, uma análise mais escritor russo (Breton, 1969, p. 177). Em
cuidadosa revela que embora fundador e um represália, a delegação soviética exige a ex-
dos principais teóricos surrealistas, não é ex- clusão de Breton do congresso. Percebendo
clusivamente André Breton quem determi- ser impossível a conciliação e sentindo-se
nava quem era excluído ou não. Tais ati- desgastado com a situação entre surrealis-
tudes surgiam espontaneamente no interior tas e comunistas que se arrastava por anos,
do movimento, como é possível perceber no Crevel, também membro do PCF e sempre
“Caso Aragon.”. fiel a Breton, comete suicídio. Por fim, É-
Mas a ruptura definitiva com os comu- luard consegue ler o discurso de Breton, já
nistas ocorreria somente em 1935 e o fator com a sala praticamente vazia e com a ener-
decisivo é, sem dúvida, a repressão stalinista gia elétrica para ser cortada a qualquer mo-
na Rússia. Em junho daquele ano em Paris, mento, pois o espaço havia sido alugado até
os comunistas organizam o Congresso dos meia-noite e meia.
Escritores para Defesa da Cultura. Os sur- Nesse discurso, Breton coloca o sur-
realistas queriam participar e René Crevel realismo numa posição contrária ao pacto
empreendeu todos os esforços para que Bre- franco-soviético e chama a atenção para o
ton pudesse ler um discurso. Porém, um in- estreitamento não com uma França cultural,
cidente ocorrido uma semana antes do con- mas sim com uma França ultra-imperialista
gresso deu motivo para que fosse negada a estupidificada por ter incubado o monstro
palavra a Breton. hitleriano. É devido a essa França impe-
Ilya Ehrenbourg, escritor russo que fazia rialista que posa de “irmã mais velha da
parte da delegação soviética concedeu uma República soviética, ostentando ares prote-
entrevista na qual relembrara o que já dis- tores” (Breton, 1969, p. 175), que os sur-
sera certa vez sobre o surrealismo e seus in- realistas questionam o papel crítico do inte-
tegrantes. Ehrenbourg reafirmou que os sur- lectual revolucionário. Breton coloca-se a
realistas aceitavam muito bem Hegel, Marx e favor sim de um intercâmbio cultural e cien-
a revolução, mas o que não queriam era tra- tífico, mas vê com pessimismo a troca tal ela
balhar, pois alguns estavam muito preocupa- se configura:
dos em devorar uma herança, enquanto ou-
tros o dote de alguma mulher. Além disso, No plano intelectual, se se pode
estavam também bastante ocupados com o dizer, aguardemos que os serviços
sonho, a pederastia, o fetichismo, o exibi- de propaganda do Quai d’ Orsay
cionismo e a sodomia. E como Freud vinha dele se aproveitem para despejar
em socorro, as perversões comuns eram ve- sobre a URSS a onda de insô-
ladas com o incompreensível. Enfim, quanto nias e de canalhices que a França
mais idiota melhor. (Ehrenbourg, apud. Bre- mantém a disposição dos outros
ton, 1985, p. 188,189) povos, sob a forma de jornais,
Encontrando por acaso Ehrenbourg na livros, filmes e turnês da Comédie-
rua, Breton decide dar-lhe uma severa repri- Française. Não é de boa von-
menda e depois de apresentar-se o esbofeteia tade que veremos tudo isso se jun-
várias vezes, sem reação alguma por parte do tar às Obras Completas de Mau-
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10 Anderson da Costa
de propaganda de Stalin, arte que vem dis- contra questões pertinentes àquele momento
farçada de revolucionária através do Realis- histórico, quando a “arte de propaganda” e
mo Socialista. É essa preocupação aliada à o Realismo Socialista figuravam como arte
admiração de Breton por Trotsky que pro- revolucionária oficial. Dessa forma, num
piciará o encontro de ambos no México em sentido mais amplo, o manifesto posiciona-
1938. se radicalmente contra o stalinismo. Sobre
essa “arte revolucionária” escreve Trotsky
em A burocracia totalitária e a arte:
3 Breton e Trotsky: Por uma
arte revolucionária Não é possível contemplar sem
independente repulsa física mesclada com hor-
ror, a reprodução de quadros e es-
A aproximação com o revolucionário russo culturas soviéticas nos quais fun-
começa efetivamente em 1934, quando Bre- cionários armados de pincel, sob a
ton escreve o panfleto Planeta sem pass- vigilância de funcionários armados
aporte, no qual se posiciona contrariamente de máusers, glorificam os chefes
à expulsão de Trotsky do território francês. ‘grandes’ e ‘geniais’, privados na
No campo intelectual, a admiração pelo “sig- realidade da menor centelha de
natário da paz de Brest-Litovsk” vem de gênio e grandeza. [...] a arte da
anos antes, desde o livro que este escrevera época stalinista entrará na história
sobre Lênin e que causara profundo impacto como a expressão mais espetacular
sobre o jovem Breton. Mas é sem dúvida a do profundo declínio da revolução
concepção que Trotsky tinha sobre a inde- proletária. (Breton-Trotsky, 1985,
pendência da arte, expressas primeiramente p. 18).
em 1923 com Literatura e revolução, que
fazem o surrealismo dele se aproximar, ainda e Breton sobre Stalin em A verdade sobre
que o próprio Trotsky reconheça ser esse o processo de Moscou, declaração lida em
texto “pré-histórico”, o que o fará rever e 1936:
modificar algumas posições sobre a inde-
pendência da arte em A arte e a revolução, [...] a partir do momento em que
já em 1938. nos esclarece definitivamente so-
Em julho de 1938, portanto, Breton e Trot- bre a personalidade de Stalin: o in-
sky encontram-se no México e lá redigem divíduo que chegou até esse ponto
o manifesto Por uma arte revolucionária é o grande traidor e principal ini-
independente. Todavia, por questões es- migo da revolução proletária. De-
tratégicas o nome de Trotsky não aparece vemos combatê-lo com todas as
no texto original, mas sim o do pintor me- nossas forças, devemos ver nele o
xicano Diego Rivera. A independência da principal falsário de hoje — em-
arte nesse manifesto não se configura ape- preende não somente falsear a sig-
nas como liberdade artística contra qual- nificação dos homens, mas tam-
quer forma de opressão, ela se direciona bém falsear a história — e o mais
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14 Anderson da Costa
line Chénieux-Gendron que afirma que as Boaventura. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz
análises e denúncias sobre os Processos e Terra, 1985.
de Moscou por parte de Breton foram “as
primeiras e uma das poucas análises lúcidas” C ARROUGES, Michel. André Breton et les
que se fez dos mesmos na época (Chénieux- données fondamentales du Surréalisme.
Gendron, 1992, p. 95). 1. ed. Paris: Gallimard, 1971.
Por fim, ao final de dez anos de altercação C HÉNIEUX -G ENDRON, Jacqueline. Le sur-
com os comunistas e em face do que veio a réalisme. Paris: Presses Universitaires
público alguns anos mais tarde no XXI Con- de France, 1984.
gresso do Partido Comunista da União So-
viética, parece, ao que tudo indica, que eram D UROZOI, Gérard & L ECHERBONNIER,
aqueles “tempos em que os surrealistas ti- Bernard. O Surrealismo. Trad. Eugê-
nham razão”. nia Aguiar e Silva. 1. ed. Coimbra:
Almedina, 1976.
Bibliografia P ÉRET, Benjamin & G OMBROWICZ,
A RAGON, Louis. Le surréalisme et le de- Witold. Contra os poetas. Trad. Júlio
venir revolutionnaire. Le Surréalisme Henriques. Lisboa: Antígna, 1989.
au Service de la Révolution, n. 3, p. 02-
09. Paris : 1931.
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