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René Guénon OS SIMBOLOS | DOIN Clay VND) A importancia dos simbolos na transmissao dos ensinamentos doutrinais de ordem tradicional. — | RENE GUENON OS SIMBOLOS DA CIENCIA SAGRADA Tradugdo de J. CONSTANTINO KAIRALLA RIEMMA fee jle— re o EDITORA PENSAMENTO SAO PAULO Titulo do original: SYMBOLES FONDAMENTAUX DE LA SCIENCE SACREE Copyright © Editions Gallimard — 1962 Edigio Apo eres (B4-85-B6-87-88-89-90-91-4, Direitos de tradugo reservados para o Brasil pela EDITORA PENSAMENTO Rua Dr. Mério Vicente, 374 — 04270 Sao Paulo, SP — fone 63-3141 Impresso em nossas oficinas graficas. SUMARIO Apresentagdo 0.2.5 e ete eee een este eee rete rece eee VIEL OQ SIMBOLISMO TRADICIONAL E ALGUMAS DE SUAS APLICACOES GERAIS #1, A Reforma da Mentalidade Modema 3 & 2, O Verbo como Simbolo....+...-+.055 8 3. O Sagrado Coragioe a Tatida do Santo Graal . 13 4, OSantoGraal ......-+ : 22 © §. Tradi¢So e “Inconsciente” 35 6. ACiéncia das Letras . 7 39 7. A Linguagem dos Passaros ... 45 SIMBOLOS DO CENTRO E DO MUNDO 8. A Iddia de Centro nas ee ie $1 9. As Flores Simbélicas ..... : 61 10, A Triplice Muralha Drufdica .. . 66 11. Os Guardides da Terra Santa... 7 12. ATerrado Sol... ....005 eave 80 13. O Zodfaco e os Pontos Cardeais . . . 86 14. A Tétraktys ¢ o Quadrado de Quatro ETT 15. Um Hierdglifodo Pélo.,..... 96 16, Os “Cabegas Negras” 99 17, ALetra Gea Suistica . .. 102 18, 19. 20. Zi. 22. 3. 2A. SIMBOLOS DA MANIFESTAGAQ CICLICA Alguns Aspectos do Simbolismo de Jano O Hieréglifo de Cancer . : Sobre a Significago ‘das Festas Alguns Aspectos do Simbolismo do Peixe . . . Os Mistérios da letra Nain . . O Javali¢ a Ursa... oe 25. 27. 29, 31. 32. 33. 335. 36. 38, 39. 40. 41, 42, 43. 45. . “Reunir o Disperso™ 47, 48. 49. 50, 31. 32. ALGUMAS ARMAS SIMBOLICAS As Pedras-de-raio ... .. 4 a 181 . As Armas Simbdlicas . . 156 Sayfyllam ....... 161 . OSimbolismo dos Cornos ... 166 SIMBOLISMO DA FORMA COSMICA ACavemae o Labirinto.... 0.0.00. Rema onary Oa Mang aa ee 173 . O Coragho e a Caverna 181 A Montanha ¢ a Caverna) . . + 185 ‘0 Coragdo ¢ 0 Ovo do Mundo . . » 189 A Cavernae 0 Ovo do Mundo . . TS: - A Saida da Caverna . 197 As Portas Solsticiais : - 201 0 Simbolismo do Zodiaco entre os 1s Pitagéricos . . + 206 . O Simbolismo Solsticial de Jano . . : 2 A Propésito dos dois Sio Jodes . . . 215 SIMBOLISMO CONSTRUTIVO 0 Simbolismo do Domo. . ‘0 Domoea Roda... A Porta Estreita O Octégono. . . A “Pedra Angular’ “Lapsit Exillis™ EL-Arkin ..... OBrancoe oPreto . . wae Pedra Negra-e Pedra Cibica_ eter Pedra Bruta ¢ Pedra Talhada SIMBOLISMO AXIAL E SIMBOLISMO DA PASSAGEM Os Simbolos da Analogia A Arvore do Mundo .. A Arvoreeo Vajra .. Freee ay 277 . + 281 terees 286 —# 53. A Arvore da Vida e a Bebida da Imortalidade » 54, O Simbolismo da Escada ee 55. O “Buraco da Agulha” . — 9 56. A Passagem das Aguas . * 57. Os Sete Raios eo Arco-iris . . 58. Janta Coeli 59. Kdla-mukha ... 60. A Luzea Chuva 61, A Corrente dos Mundos . 62. As “Raizes das Plantas” . » 63, O Simbolismo da Ponte . 64. APontee o Arco-iris. . 65. A Corrente de Unigo . . 66, Enquadramentos ¢ Labirintos 67, O “Quatro de Cifra” ® 68. Lagose Nés........ SIMBOLISMO DO CORAGAO 69. O Coracdo Irradiante eo Eas Ardente . . 70. Coragfioe Cérebro...... 71. O Emblema do Sepado- Congo numa na Sociedade Secreta Americana. ...... T2_O Otho que Tudo vé >. . 73. O Grifo de Mostarda . 74, O Eterno Coraggo . . 75. A Cidade Divina >: .... 289 293 297 -. 300 303 308 313 318 322 331 336 340 345 348 353 337 «+ 363 - 368 . 378 384 388 396 . 403 mos também, a esse respeito, estabelecer as respectivas correspondéncigg entre os signos zodiacais do Cameiro ¢ do Touro. Isso, porém, devido a aplicago que se poderia fazer da predomindncia de uma ou de outra formg nas diferentes tradigOes, daria margem a consideragdes “ciclicas” que, no entanto, nfo podemos pensar em examinar agora, Para terminar esta exposi¢ao sumdria, apenas assinalaremos ainda um paralelo que pode ser feito, sob certos aspectos, entre as armas animais que sfo 03 comos ¢ © que se poderia denominar armas vegetais, isto ¢, og espinhos. F notavel que, a esse respeito, muitas das plantas que desempe- nham um papel simbdlico importante sfo plantas espinhosas.!7 Os espinhos, do mesmo modo que outras pontas, evocam a idéia de um pice ou de uma elevagdo, e podem ainda, em certos casos ao menos, ser tomados para figurar os ralos luminosos.18 Vemos assim que o simbolismo tem sempre perfeita eoeréncia, como alids nfo poderia deixar de ser, pela simples razdo de que nfo € 0 resultado de alguma convengdo mais ou menos artificial, ¢ sim, ao contririo, fundamentado essencialmente sobre a propria natureza das coisas, 17, Temos como exemplo a rosa, cardo, a acacia, o acanto, etc. 18. © simbolismo cristiio da coroa de espinhos (que se diz ser de espinhos de acicia) aproxima-se, assim, de uma forma que alguns achario inesperada, mas niio por isso me- ‘os real ou exata, da coroa de raios de que falamos mais atrds, E notdvel ainda que, em diversas regides, os menires so. designados pelo nome de “cspinhos™ (dai, na Brotanha em outras partes, nomes de lugares como Belle-Epine, Notre-Dame-de4'F pine, etc.). E 9 simbolismo do menir, tal como do obelisco ¢ da coluna, refere-se ao “ralo solar" €, 49 mesmo tempo, ao “Eixo do Mundo”, 170 SIMBOLISMO DA FORMA COSMICA 29 A CAVERNA E 0 LABIRINTO* Em um livro recente,! Jackson Knight exp6e interessantes pesqui- “$85 que tiveram como ponto de partida a passagem do sexto Livro da Eneida, ~€m que sfo descritas as portas do antro da Sibila de Cumas, Por que o labi- nto de Creta e sua histOria esto figurados nessas portas? Ele se recusa, tom muita razfo, a ver nisso, como fazem todos aqueles que no vio além “das concepgSes “literdrias” modernas, uma simples digressfo mais ou menos itil. Ao contrério, acredita que essa passagem deve ter um real valor sim- ico, que se fundamenta sobre a estreita relaclo entre o labirinto é a caver- i ligades ambos a idéia de uma viagem subterrinea, Essa idéia, segundo a mpretapdo que pode ser feita a partir de dados concordantes pertencentes a épocas € regiGes muito diferentes, teria estado Originariamente ligada aos tos funerais ¢ teria sido, a seguir, em virtude de uma certa analogia, trans- Portada aos ritos inicidticos. Voltaremos a trata em particular desse ponto Seguir, mas por ora devemos levantar algumas objegdes sobre a forma pela ‘Qual o autor concebe a iniciagao, Ele parece de fato considerdla unicamente tomo um produto do “pensamento humano”, dotado além disso de uma vi- alidade que Ihe assegura uma espécie de permanéncia através das idades, ‘Mesmo que, ds vezes, apenas subsista, por assim dizer, em estado latente. ‘temos a menor necessidade, depois de tudo o que jd expusemos sobre o assunto, de tornar a demonstrar o que existe de insuficiente em tal concep- }, pelo simples fato de nfo levar em conta os elementos “supra-humanos” na realidade, constituem o que hd de mais essencial. Insistiremos apenas. bre um ponto: a idéia de uma subsisténcia em estado latente nos lova & | ® Publicado na revista Etudes Traditonneltes, out nov. 1937. 1. Jackson Knight, W. F,, Qumaean Gates, a reference of the Sixth “Aeneid” te Initia. i tion Pattern, Basil Blacwell, Oxford, | 173 hipétese de conservagZo em um “subconsciente coletivo” tomado de em- préstimo a certas teorias psicoldgicas recentes, Que se pense o que se quiser a respeito delas, porém sua aplicag¥o a esse caso revela um completo des- conhecimento da necessidade da “corrente” inicidtica, ou seja, de uma trans- missao efetiva ¢ ininterrupta. Existe, é verdade, uma outra questo que pre- cisamos evitar confundi-la com a que estamos examinando: pode acontecer, as vezes, que coisas de ordem propriamente inicidtica venham a exprimir-se através de individualidades que nfo estavam de modo algum conscientes de gua verdadeira significagao, mas jd oferecemos anteriormente explicagdes sobre isso a propésito da lenda do Graal. Tal fato nfo afeta em nada o que diz respeito 4 iniciag#o em sua realidade efetiva, e nem seria também o caso de Virgilio, para o qual, do mesmo modo que para Dante, existem muitas indicagdes bastante precisas ¢ claramente conscientes para que se possa ad- mitir que ele nfo tinha vinculagOes inicidticas de fato. Isso nada tem a ver com a “inspiragto poética”, tal como € entendida na atualidade. O sr. Knight parece disposto a partilhar desse modo de ver “literério”, embora isso se oponha @ sua tese. No entanto, nfo podemos deixar de reconhecer todo o mérito que representa, para um escritor universitdrio, a coragem de abordar tal assunto e, até mesmo, falar de iniciagao. Dito isso, voltemos 4 questo das relagOes entre a caverna funerdria @ a caverna inicidtica, Embora essas relacGes sejam seguramente muito reais, a identificacdo de uma a outra, no que diz respeito ao seu simbolismo, repre- Senta apenas a metade da verdade. Podemos notar que, mesmo do ponto de vista exclusivamente funerdrio, a idéia de derivar o simbolismo do ritual, ao inyés de ver no proprio ritual a agfo do simbolismo, como ¢ o caso, coloca o autor num grande embaraco, ao constatar que a viagem subterra- fea é quase sempre seguida de uma viagem ao ar livre, ¢ que muitas tradigdes fepresentam como uma navega¢#o. De fato, isso seria inconcebivel se se tratasse apenas da descricdo figurada de um ritual de enterro, mas que pode ser muito bem explicado quando sabemos que se trata, na realidade, das di- versas fases atravessadas pelo ser no curso de uma migracZo que se processa verdadeiramente “além-timulo”, ¢ que de modo algum diz respeito ao cor- Po que foi abandonado quando este ser deixou a vida terrestre. Por outro Jado, em razfo da analogia existente entre a morte, entendida no sentido comum dessa palavra,’¢ a morte inicidtica, da qual jd falamos em outra oca- ‘SiO, a mesma desericto simbélica pode ser aplicada ao que acontece como ‘Ser em ambos os casos. Af esta, quanto & cayerna ¢ a viagem subterranea, o motivo da assimilagdo considerada, até o ponto em que ¢ legitimamente jus- _ Ticdvel, ow seja, até as preliminares da iniciag#o, ¢ de modo algum até a De fato, 6 podemos ver af, a rigor, uma preparagdo a iniciagao, ¢ mada mais. A morte para o mundo profano, seguida da “‘descida aos Infer- nos”, ¢, bem entendido, a mesma coisa que a viagem ao mundo subterrdineo ao qual a caverna dé acesso. Mas, no que se refere & propria iniciagfo, longe de ser considerada como morte, ¢, ao contrario, um “segundo nascimento” ¢ uma passagem das trevas para a luz. O lugar desse nascimento € ainda a ca- vera, pelo menos nos casos em que nela s¢ realiza a iniciagdo, de fato ou simbolicamente, pois ¢ evidente que nfo se pode generalizar demais ¢ que, do mesmo modo que para o labirinto que examinaremos a seguir, nfo se trata de algo necessariamente comum a todas as formas inicidticas sem exce- gio. A mesma coisa aparece alids, mesmo exotericamente, no simbolismo eristfo da Natividade, de forma ainda mais clara que em outra tradigies, o que tora evidente que a caverna, como local de nascimento, nfo pode tera mesma significagao precisa que a caverna como local de morte ¢ sepul- tura. Poderfamos observar, no entanto, para reunir pelo menos entre si esses dois aspectos diferentes, ¢ aparentemente opostos, que a morte e nascimen- to sfo como que duas faces de uma mesma mudanga de estado, e que sem- pre se considera que a passagem de um estado a outro deve efetuar-se na ‘Obscuridade.2 Nesse sentido, a caverna seria entio, de modo mais exato, 0 préprio lugar dessa passagem; mas isso, mesmo sendo estritamente verdadei- ro, 86 se refere a um dos lados de seu complexo simbolismo, Se © autor ndo conseguiu ver o outro lado desse simbolismo, tal -fato se deve, com muita probabilidade, 4 influéncia exercida sobre ele pelas féorias de certos “historiadores das religides”; acompanhando-os, admite com efeito que a caverna deve sempre ser referida aos cultos “ctonianos”*, sem divida pela razfo um tanto “simplista” de se situar no interior da terra. Porém, isso esté muito longe da verdade.3 No entanto, o autor nfo pode deixar de admitir que a caverna inicidtica ¢ apresentada antes de tudo como “uma imagem do mundo.4 Mas sua hipdtese o impede de exteair a conclusio que se impSe, ou seja, que, sendo assim, a caverna deve formar um todo 2. Poderiamos também lembrar, a esse respeito, o simbolismo do grfo de trigo nos ‘Mistérios de Fléusis. * "Chthoniens" no original; do grego khothonios, subterrineo. Na mitologia grega, ‘€piteto aplicado ix divindades infernais de origem subterrinea. Fonte: Lerousse-Lexis, 3, Essa interpretago unilateral o conduz a um singular equivoco, Ele cita, entre ou- tis exemplos, 6 mito xintoista da danga executada diante da entrada de uma cavern ‘Para fazer sair a “deusa ancestral” que nela estarin oculta; infelizmente para a sua tese, ‘ndo se trata de modo algum da “terra-mie”, como chega 2 expressar, mas sim da deusa “solar, o que é completamente diferente, 4. Na magonaria ocorme o mesmo com a loja, cuja designagfo fol assimilada a palavra 175 completo ¢ conter em sia representagfo do Céu e da Terra. Porém, mesmo quando acontece que o Céu seja mencionado de forma expressa em algum texto ou figurado em algum monumento como correspondente & abébada da caverna, a3 explicag6es propostas a esse respeito tornam-se de tal modo confusas ¢ pouco satisfatérias, que nfo. ¢ possivel segui-las. A verdade € que, Jonge de ser um lugar tenebroso, a caverna inicidtica é iluminada interior- ‘mente, enquanto que fora dela, ao contrério, reina a obscuridade. Assim, o mundo profano é naturalmente assimilado as “trevas exteriores”, ¢ 0 “‘se- gundo nascimento” é, ao mesmo tempo, uma “jluminagdo”,5 Agora, se nos perguntarem por que a caverna ¢ encarada desse modo do ponto de vis- ta inicidtico, responderemos que a solugfo dessa questo encontra-se, de um lado, no fato de que o sfmbolo da caverna ¢ complementar ao da mon- tanha, e que, de outro, o simbolismo da caverna tem estreita ligagdo com 0 do coragdo, Pretendemos tratar separadamente esses dois pontos essenciais, mas no é dificil compreender, apés tudo 0 que jd tivemos ocasido de expor em outras oportunidades, que isso tem relago direta com @ propria repre- sentagfio dos centros espirituais. ri Deixaremos de lado outras questOes que, por mais importantes que sejam em si, referem-se apenas de forma acess6ria a0 nosso tema, coma éo caso, por exemplo, da significagdo do “ramo de ouro”; é muito contestavel que ele possa ser identificado, a ndo ser num aspecto muito secundario, ao bastfio ou A vara que, sob diferentes formas, encontram-se com grande fre- qiéncia no simbolismo tradicional. Sem insistir mais sobre isso, examinare- mos agora © labirinto, cujo sentido pode parecer ainda mais enigmdtico, ou ae mais dissimulado que o da caverna, ¢ as relages existentes entre ambos, © labirinto, tal como foi visto muito bem pelo sr. Knigh' 5 : t, tem uma dupla razo de ser, no sentido de que permite ou impede, segundo 0 caso, 0 Sinserita loka [tmundo"], 0 que de fato ¢ verdadeiro, se nfo etimologicamente, pelo ee en Porém, € preciso acrescentar que a loja nfo se assimila @ caver- 5 ae erat cn apenas, nese caso, no inicio das provas inicidticas, de copigaey Hs ee eae a sentido de lugar subterriineo em relagdo direta ds idéias de ees o magonica também, e pelas mesma razdes, as “luzes” encontram-s¢ ente no interior da loja; ¢ a palawa foka, que citamos ha pouce, derivase diretamente de uma raiz cujo sentido principal designa a luz. 6, Seria. i Por certo muito mais justo comparar o “ramo de ouro” a0 visco drufdicoe magénica, sem falar dos “ramos” da festa cris mn exal sta cristf que tém exatamente esse enquanto simbolo ¢ penhos da ressurrcigio c da imortalidade, Secaks , Aiba a i ‘ “acesso a um certo lugar a0 qual nem todos devem penetrar indistintamente. ‘Apenas os que esto “qualificados” poderda percorré-lo até o fim, enquanto que os demals serio impedidos de penetré-lo ou se extraviarfo no caminho. We-se de imediato que ‘existe ai a iddia de uma “selegdo” que se refere de modo evidente 4 admissfo na iniciagdo, O percurso do labirinto ¢ exatamen- "je, sob esse Angulo, uma representa¢ao das provas inicidticas. E ¢ facil con- ceber que, quando servia de fato como meio de acesso a certos santudrios, podia estar disposto de tal forma que os ritos correspondentes fossem cum pridos durante 0 proprio percurso. Além disso, encontra-se nele ainda a id¢ia de “viagem”, na medida em que esid associada as proprias provas, tal como pode ser constatado ainda hoje em certas formas iniciéticas, por exemplo na magonaria, onde cada prova simb6lica ¢ designada como sendo uma “via- gem”, Outro simbolismo equivalente é o da “peregrinago". Podemos lem- brar a propésito os labirintos tragados antigamente sobre o pavimento de certas igrejas, € cujo percurso cra considerado como um “substituto” da peregrinagdo & Terra Santa. Afinal, s¢ o ponte em que termina esse percurso representa um lugar reservado 403 “eleitos”, ele ¢ na verdade uma “Terra Santa” no sentido inicidtico da expressfo, ou seja, esse ponte nada mais ¢ que a imagem de um centro espiritual, da mesma forma que todo local de iniciagio.7 F evidente, por outra lado, que o emprego do labirinto como meio de defesa ou de protegdo ¢ passivel de diferentes aplicagdes fora do dominio inicidtico, E assim que o autor assinala, em especial, seu uso “tética”, na en- trada de certas cidades antigas e em outros locais fortificados. O tinico erro seria acreditar que se trata de um uso, puramente profano ¢ que teria sido mesmo o primeira a ocorrer, tendo depois sugesido a idéia de sua utilizagdo ritual, Isso seria na verdade uma inversdo das relagBes normais, que esta alids de acordo com as concepgOes modems, mas apenas com estas, sendo total- mente ilegitimo atribui-la as civilizagbes antigas. De fato, em qualquer civi- lizacfo que tenha o estrito cardter ‘tradicional, todas as coisas comegam né- cessariamente pelo prine{pio, ou do que dele estiver mais proximo, dirigin- do-se de cima para baixo em aplicagSes cada vez mais contingentes. Em outras palavras, mesmo estas diltimas jamais sfo consideradas do panto de vista profano, que é, como j4 explicamos muitas vezes, o resultado de uma 7. 0 Sr, Knight menciona tais labirintos, mas lhes atribul a Se religiosa, parece ignorar que o seu tragado ndo revelava de rm ‘algum a doutrina térea, mas que pertencia de forma exclusiva ao simbolismo das onganizagbes iniciftiess dos construtores. 177 degenerago que fez com que se tenha perdido a consciénci i com 9 principio, No caso em questo, palin com cided pee existe algo além do que conseguiriam ver as “tdticos” modernos pela fee oe » que a defesa “labirintfca” nao era apenas i tiananc sate e a Pai mas também contra as influéncias Psiquicas ; ae modo claro que devia ter em si mesmo um valor wal 56: a fundapfo das cidades, a escolha do local € © plano on © qual eram construfdas, estavam submetidos a regras que depen- iam essencialmente da “ciéncia sagrada" ¢ que, por conseqiiéncia, esta muito longe de sé responderem a fins “utilitdrios”, ao menos ia ie material que se dd hoje em dia a essa Palavra. Por mais estranhas cra ann coisas a mentalidade de nossos contemporaneos, & ean Oo, té-Las €m conta, sem o que aqueles que estudam os vestigios das cotidiana™, mas tinha i Eee Hie entdo, na realidade, um cardter essencialmente Quanto a origem do nome Jabirinto, t , Cla € muito obscura ¢ deu | oe Ms ope 40 contririo do que muitos aaa: a Ou duplo machado cretense, - derivam de uma mesma Palavra muito antiga que designa a jotealaae mente, © labirinto seria apenas uma Construgfo de 4, jens? Pedra, do gene A ‘trugoes ae cielopicas ; Contudo, essa é a significado feat iecets Oe ee mn sentido mais profundo, liga-se a0 conjunta do simbolis: pees mice, qual falamos em diversas oportunidades, ao tratar dos “bd. 3 na. as-de-raio’ (identificadas 20 machado de pedra ou labrys), cata in muitos Outros aspectos. O sr. Knight ao menos entre. es. Erna faz referencia aos homens “nascidos da pedra” (0 que debe ait palavra erega laos [povo, gente]), dos quais a lenda teas : ‘9 exemplo mais conhecido, Isso se tefere a um certo que, se fosse possivel um estudo mais Preciso, permitiria com segu- 8. Nao insistirem, ia " 05, pate Nos afastar do tema, sobre a marcha “labirintica” de cer- Biola dangas eel el la eallae antes de tudo o candter de rites de beso, Me See © autor, s¢ ligam, portanto, dire! - 6 au a ma Bi Seeman de deter c afastar as mire ‘ee — men ‘© conheckmento de certas leis segundo as n dar 4 chamada “‘idade da pedra” um sentido completamente diferente que the € atribufdo pelos historiadores. Daf podermos admitir que | caverna, enquanto cavada na rocha, de modo natural ou artificial, tem um simbolismo muito proximo.9 Mas devemos acrescentar que isso nfo ¢ moti- ‘yo para admitirmos que o labirinto tenha sido necessariamente cavado na ‘yocha. Embora possa ter ocorrido assim em alguns casos, trata-se apenas de um elemento acidental, poderfamos dizer, e que nfo deve ser considerado ‘em sua definigao, pois sejam quais forem as relagGes da caverna com o labi- “finto, ¢ importante nJo confundi-los, sobretudo quando se trata da caverna “inicidtica, que estamos examinando aqui de forma mais particular. f De fato, é evidente que, se a caverna ¢ 0 lugar em que se realiza a “iniciagao, o labirinto, local das provas preliminares, s6 pode ser o caminho gue conduz 4 cavera e, ao mesmo tempo, o obstdculo que impede a aproxi- ‘macio dos profanos “nfo qualificados”, F Lembrariamos ainda que o labirinto esta representado nas portas de Cumas, como se, de uma certa forma, essa figuracdo fizesse as vezes do pré- prio labirinto.10 Poderfamos dizer que Endias, enquanto se detém a entrada para examind-la, percorre de fato o labirinto, se no corporalmente, pelo "menos de forma mental. Por outro lado, nfo parece que esse modo de acesso ftenha sido sempre reservado aos santudrios construidos em cavernas ov a ‘eles assimilados simbolicamente, visto que, como jd explicamos, nJo se trata de um trago comum a todas as formas tradicionais. A razio de ser do labirin- to, tal como foi definida mais acima, pode convir de igual modo ao acesso a todo local de inicia¢fo, a todo santudrio destinado “aos mistérios” ¢ nfo aos titos publicos. Feita essa ressalva, existe, contudo, uma raz4o para se pensar que, a6 menos na origem, o uso do labirinto esteve ligado em particular & cavema inicidtica, pois ambos parecem ter pertencido, de inicio, as mesmas formas tradicionais da época dos “homens de pedra” a que nos referimos hd pouco. Devem ter comecado estreitamente unidos, embora ndo tenham { permanecido assim de modo invaridvel em todas as formas posteriores. | Consideremos 0 caso em que o labirinto estd em conexfio com a cayerna, rodeando-a com suas sinuosidades e nela desembocando por fim. 9. As cavernas pré-histéricas nfo foram provavelmente habitapGes, como se acredita com freqiléncia, mas santudrios dos “homens de pedra”, entendidos no sentido que acabamos de indicar; seria, portanto, nas formas tradicionais do periodo em questo que a caverna teria recebido, em fungdo de uma certa “ocultago™ do conhecimento, 6 carter de simbolo dos centros espirituais ¢, por consequéncla, de local de iniciagsa. 10. Um caso similar, a esse respeito, é o das figuras “labirinticas" tragadas sobre os muros das casas, na Grécia antiga, para impedir o acesso a influéncias maléGicas. 1g No conjunto assim constituido, a caverna ocupa 0 ponto mais interior e cen. tral, o que corresponde exatamente A iddia de centro espiritual e concorda, também, com o simbolismo equivalente do coragdo, a respeito do qual nos propomos a yoltar. E preciso notar ainda que quando a caverna é a0 mesmo. tempo local da morte inicidtica e do “segundo nascimento", deve erie ee considerada como dando acesso, nJo s6 aos dominios subterrdneos ou “in- fernais”, mas também aos dominios Supraterrestres, Isso corresponde tam- bém 4 nogio de ponto central, que se constitui, tanto na ordem macrocés- mica quanto na ordem microcésmica, em realizador da comunicacso com todos os estados superiores ¢ inferiores, E s6 assim que a cavema pode ser, como dissemos, a imagem completa do mundo, na medida em todos esses estados devem refletir-se nela de igual modo, Se fosse de rate Sat i a assimilagaio de sua abébada ao céu seria absolutamente froompceenats pee et outro lado, sed he propria cavema que, entre a morte inicig- © “segundo nascimento”, se realiza a “descida dos Infernos”, torna- se evidente ngo ser possivel considerar que essa descida seja roprescniade Bees perpaco do labirinto. Cabe, ent&o, perguntar ao que 0 labirinto corres. ponde. Na realidade, refere-se 4s “trevas exteriores", As quais jd nos referi- mos ¢ que podem Ser perfeitamente aplicados aos estados “errantes" % nos for permitido empregar essa palavra, que expressa de modo exato Percurso do labirinto. A questo das “trevas exteriores” poderia ‘odie dar lugar a outros esclarecimentos, mas isso nos levaria fora dos limites do eee. Pensamos, no entanto, ter dito o bastante para mostrar, um lado, o interesse que apresentam pesquisas como as que foram x: A ém, por outro lado, a i Bee eess resultados precisos © penetrar seu verdadeiro ie ae oe “vécnica” do assunto, sem o qual apenas se chegar, oe ae tuigdes, hipotéticas € incompletas que, mesmo que nfo ies 5 adas por idéias preconcebidas, permanecerfo t£o “mortas” 98 proprios yestigios que the serviram de Ponto de partida, 30 O CORAGAO E ACAVERNA* Ja fizemos referéncia anteriormente 4 estreita relagfo que existe entre o simbolismo da cavema e do coragdo, o que explica o papel desem- penhado pela caverna, do ponto de vista inicidtico, enquanto representagso de um centro espiritual. De fato, 0 corago ¢ em esstncia um simbolo do centro, quer se trate do centro de um ser ou, analogicamente, do centro do mundo, ou, em outros termos, quer nos coloquemos do ponto de vista microcésmico ou macrocésmico. E, pois, natural, em virtude dessa relagdo, que @ mesma significago possa ser atribuida 4 caverna, E ¢ dessa conexdo simb6lica que pretendemos tratar agora de forma mais completa, A “caverna do coragdo” é uma conhecida expressdo tradicional, A palavra guid, mo sinserito, designa em geral uma caverna, mas € também aplicada 4 cavidade interna do coragdo e, por conseqiiéncia, ao proprio co- racio. A “caverna do coragdo” é o centro vital em que reside, nfo s6 jfvdt- md, mas também o Afmd incondicionado, que na realidade ¢ idéntico ao proprio Brahma, tal como ji expusemos em outra parte.) A palavra guid deriva-se da raiz guk, que tem o sentido de “cobrir” ou “ocultar”, do mes- mo modo que a raiz similar gup, de onde vem gupra, que se aplica a tudo © que tem cardter secreto e ndo se manifesta no exterior ¢ o equivalente do grego Kryptos, de onde vem a palavra “cripta”, sin6nimo de caverna Essas idéias referem-se ao centro, na medida em que é considerado como o ponto mais interior, e, portanto, o mais oculto. Ao mesmo tempo, referem-se ainda ao segredo inicidtico, seja em si mesmo, seja enquanto simbolizado pela dispasicfo do lugar em que realiza a iniciagao, local oculto ou “coberto”’,? * Publicado na revista Srudes Traditionnelles, dez. 1937. 1. E'Homme et son devenir seion fe Védénta, cap, IMI (ver Chhdndogya Upanishad, 39 Prapathaka, 149 Khanda, shruti 3, ¢ 89 Prapithaka, 19 Khanda, shruti 1). 2, Ci.a expressio magénica “estar a coberto”. 181 isto €, inacessivel aos profanos, defendido por uma estrutura “labirintica” ‘ou por outra forma qualquer (como por exemplo os “templos sem portas™ da inicia¢do extremo-oriental), mas sempre considerado como imagem do centro, Por outro lado, ¢ importante observar que o cardter oculto ou se- creto, no que diz respeito aos centros espirituais ou a sua figuragdo, impli- ca que a verdade tradicional, em sua integralidade, ngo é mais acest a todos os homens sem distineio, 0 que indica que se trata de uma época de “obscurecimento”, ao menos relativo. Isso permite “‘situar” o simbolis- mo no decurso do processo cfclico, Mas trata-se de um Ponto sobre o qual teremos que voltar de forma mais completa ao estudarmos as relagBes entre a montanha ¢ a caverna, na medida em que ambas sfio tomadas como sim- boles do centro, No momento, nos contentaremos em indicar, a esse respei- to, que o esquema do coracdo ¢ o tridngulo com a ponta para baixo (0 “triingulo do coraggo” ¢, também, uma outra expresszo tradicional), O mesmo esquema aplica-se ainda 4 caverna, enquanto que o da montanha ou da piramide que the equivale, ¢ ao contrdrio um triangulo com a ponta para © alto. Isso mostra que s¢ trata de uma relagfo inversa ¢ também, em certo sentido, complementar. Podemos acrescentar, a propésito da representagso do coragtio e da caverna pelo triangulo invertido, que se trata de um caso m que Ado entra evidentemente qualquer idéia de “magia negra”, ao con- trério do que pretendem com fieqiéncia aqueles que tém do simbolismo apenas um conhecimento insuficiente, , Dito isso, voltemos ao que, segundo a tradi¢fo hindu, est4 oculto na “cavern do coragfo", ou seja, a proprio principio do ser que, nesse pa de “enyoltura”, e em relagto 4 manifestagdo, € comparado ao que ae menor (a palavra dahara, que designa a cavidade em que ele reside, eas mesma idéia de pequenez), ainda que seja na realidade o que ipo hee do mesmo modo que o ponto, espacialmente infimo ¢ Rene 0, € o principio pelo qual se produz todo o espaco, ou do mes- ia pias s @ unidade, que aparece ‘come © menor dos niimeros, embora Ge ea todos os demais ¢ produza, por si mesma, toda sua Af também encontramos a expresso de uma rel i - f ‘ : ago inversa, con- das eee, pe te segunda Pontos de vista diferentes. Des- Acitoe ae Geeta es B ae pequenez diz respeito ao seu estado dem nase fate ds casi aie ee é para o ser apenas uma “virtualida- contrae af cxtterene Sfetu o seu desenvolvimento espiritual. En- @ “comego" (initivm) desse desenvolvimento, o 182 que estd em relagao direta com a iniciagfo, entendida de acordo com o sen- tido ctimoldgico do termo. E precisamente desse ponto de vista qué a caver- na pode ser considerada como o local do “segundo nascimento”, A esse res- peito, encontramos textos tais como: “Saiba que Agni, que é o fundamento do mundo eterno (“principial”), ¢ pelo qual este pode ser alcangado, est ‘oculto na caverna (do corapaio)”,3 o que se refere, na ordem microcésmica, ao “segundo nascimento”, e também, mediante sua transposigdo para a ordem macrocésmica, ao nascimento andlogo do Avgtira, J4 dissemos que residem no coragdo, ao mesmo tempo, jfrdimd, do ponto de vista da manifestagdo individual, ¢ Armd incondicionado ou Para- métmd, do ponto de vista do princfpio. Os dois, apenas ilusoriamente so distintos, isto é, em relagfo a propria _manifestago, mas na realidade abso- Juta sfo apenas um. Sdo “os dois que entraram na caverna”, e dos quais “se diz ao mesmo tempo, “que moram no mais alto pico”, de modo que ‘os simbolismos da montanha e da caverna encontram-se af reunidos.4 O texto acrescenta que “aqueles que conhectm Brahma chamam-no sombra luz”, Isso se refere de modo mais especffico ao simbolismo de Nara ndrdyana, do qual j4 falamos a propésito do Afmd-Gitd, citando esse mesmo texto. Nara, o humano ou o mortal, que ¢ jfvdimd, identifica-ce a Arjuna, Néréyana, o divino ou o imortal, que é Paramdtmd, identifica-se a Krishna, E segundo o sentido de seus préprios nomes, Arishna designa a cor escura ¢ Arfina a cor clara, isto ¢, respectivamente a noite € 0 dia, na medida em que sfo considerados como representando o ndo-manifestada ¢ o manifes- tado.§ Um simbolismo exatamente similar encontra-se nos Dioscuros, também relacionados aos dois hemisférios, um obscuro e 0 outro iluminado, tal como indicamos ao estudar a significagfio da “dupla espiral”. Por outro lado, esses “dois”, isto é, jfrdtmd ¢ Paramdnnd, so ainda os “dois pdssaros”, dos quais se diz em outros textos que “residem numa mesma drvore" (do mesmo modo que Arjuna e Krishna estdo montados num mesmo carro) & que esto “inseparavelmente unidos”, visto que, como dizfamos mais acima, sfo na realidade apenas um ¢ s6 de forma ilusdria podem ser distinguidos,® E importante observar que o simbolismo da drvore é em esséncia “axial”, 3. Katha Upenishod, 19 Valli, shruti 14, 4, Katha Upanishod, 39 Vallf, shruti 1 (ef. Brahma-Siitres, 19 Adhyaya, 29 Pida, siitras 11-12), 5, Cf. Ananda Coomaraswamy, The Darker Side of the Dawn ¢ Angel and Titan, an esiay in Vedic Ontology. 6. Mundeka Upanihad, 39 Mundaka, 19 Khanda, shruti 1; Shwérdshawatere Upant- shad, 49 Adhyiiya, shruti 6. 183, da mesma forma que o da montanha. E a caverna, enquanto a considerarmos situada sob a montanha ou no seu interior, encontra-se também no cixo, pois em todos os casos, ¢ de qualquer forma que as coisas sejam considera- das, ¢ sempre ai que se localiza necessariamente o centro, o local da unifo do individual com o Universal. Antes de deixar este assunto, apontaremos um registro lingtiistico, ao qual ngo s¢ deva talvez atribuir uma importAncia muito grande, mas que a0 menos curioso: a palavra egipcia hor, que é o proprio nome de Horus, parece significar exatamente “coragao”, Horus seria portanto © “Coracio do Mundo”, de acordo com uma designagdo que se encontra na maior parte das tradi¢Ges, e que convém alids de modo perfeito a0 conjunto de seu sim- bolismo, na medida em que & possivel percebé-lo, Poderiamos ser tentados, 4 primeira vista, a aproximar a palavra hor do latim cor, que tem 0 mesmo sentido, ainda mais porque, nas diferentes linguas, as rafzes similares que de- signam © corago t8m como inicial uma letra aspirada ou uma letra gutural, como € 0 caso, por um lado, de Arid ou hridaya no sinscrito, heart no inglés ¢ herz no alemfo, ¢, por outro lado, kér ou kardion no grcgo, e o proprio cor (cordis no genetiva) no latim. Mas a raiz comum de todas essas palavras, inclusive a dltima, ¢ na realidade HRD ou KRD, o que nfo parece ser 0 caso da palavra For. Assim sendo, nfo s¢ trata nesse caso de uma real identidade de raiz, mas apenas de uma espécie de convergéncia fonética, que nem por isso deixa de ser muito singular. Mas o que talvez seja mais notdvel, ¢ que se liga diretamente ao nosso assunto, é que no hebreu a palavra hor ou fiir, escrita com a letra heth, significa “caverma", Nao queremos dizer com isso que exista uma ligagao etimolégica entre a palavra egipcia ¢ a hebraica, embora ‘possam a figor ter uma origem comum mais ou menos afastada, Mas isso pouco im- Porta no fundo, pois quando se sabe que no pode existir em parte alguma nada que seja puramente fortuito, o paralelo nfo deixa s6 Por isso de ser digno de interesse. E nio é tudo. No hebreu, também, hor ou har, escrito agora com a letra /é, significa “montanha”, Se notarmos que Aerh é, na or- dem das letras aspiradas, um reforgo ou um endurecimento de Aé, marcan- do uma espécie de “compressio", ¢ que essa letra exprime em si, ideogra- ficamente, uma idéia de limite ou de Clausura, vé-se que, pela propria rela- oe duas palavras, a caverna & indicada como o lugar encerrado no an sae < que ¢ exato tanto literal quanto simbolicamente, See luzides, uma vez mais, as Telactes entre a montanha ¢ que, a seguir, iremos examinar em particular, 31 A MONTANHA E A CAVERNA* Hé, portanto, uma estreita relagdo entre a montanha e a cayerna, fa medida em que ambas sfo tomadas como simbolos dos centros espiri- " tuais, tal como ocorre alids, por raz6es evidentes, com todos os simbolos ““sxiais” ou “polares”, dentre os quais a montanha ¢, na verdade, um dos principais. Lembraremos que, sob esse aspecto, a caverna deve ser vista co- mo situada sob a montanha ou no seu interior, de modo a encontrar-se tam- bém no eixo, o que reforca ainda mais o laco existente entre esses dois sim- bolas, que sao, de algum modo, complementares entre si, F. preciso, no en- fanto, observar também, para situd-los exatamente em sua relagdo, que a montanha tem um cardter mais “primordial” que a caverna. Isso resulta do fato de a montanha ser visivel do exterior, sendo ela propria, poderfamos dizer, 0 que hd de mais visivel de todas as partes, enquanto que a caverna, 40 contrério, constitui-se, como dissemos, num lugar essencialmente oculto e fechado. Pode-se com facilidade deduzir que a representagdo do centro es- Piritual pela montanha corresponde em esséncia ao perfodo original da humanidade terrestre, durante o qual a verdade encontrava-se integralmen- te acessivel a todos; daf o nome Sefya-Yuga [“perfodo da verdade”’) ¢ o fato de o topo da montanha ser entdo o Sarya-Loka ou o “lugar da verdade”. ‘Mas, quando, em conseqiiéncia da progressfo descendente do ciclo, essa mesma verdade passou a estar ao alcance apenas de uma “elite” mais ou menos restrita (0 que coincide com o comeco da iniciacdo, entendida no seu mais estrito sentido) e tornou-se oculta para a maioria dos homens, a ecavema ficou sendo o simbolo mais apropriado para o centro espiritual ¢, por conseguinte, para os santudrios inicidticos que sfo sua imagem. Para uma tal mudanga, poderiamos dizer, o centro nfo abandona a montanha, mas apenas s¢ retira do topo para o interior. Por outro lado, essa mudanga ede * Publicado na revista Lrudes Tradirionnelies, jan. 1938. 185 algum modo uma “inversio”, pela qual, como explicamos em outra oportu- nidade, o “mundo celeste” (ao qual se refere a elevagdo da montanha acima da superficie terrestre) torna-se em certo sentido o “mundo subterraneo”, (embora, na realidade, nfo seja ele que tenha mudado, mas, sim, as condi- goes do mundo exterior, ¢ consequentemente sua relagio com este). Tal “inversio” encontra-se figurada por esquemas especfficos da montanha e da cayerna, que exprimem, 20 mesmo tempo, sua complementaridade, ‘Como dissemos anteriormente, o esquema da montanha, bem como da pirdmide e do monticulo, que lhe so equivalentes, é um triingulo com a ponta voltada para o alto. A representagao da caverna, a0 contririo, € um triingulo com 4 ponta voltada para baixo, sendo, portanto, o inverso do primeiro. O triingulo invertido ¢ também o esquema do coragdol ¢ do cali- ce, sendo-the este geralmente assimilado no simbolismo, tal como mostra- mos em particular no que se refere ao Santo Graal.? Podemos acrescentar que esses Ultimos simbolos e seus similares, de um ponto de vista genérico, feferem-se a0 principio passivo ou feminino da manifestag@o universal ou a alguns de seus aspectos,3 enquanto que os esquematizados com o trifin- gulo direito, com a ponta para cima, referem-se a0 principio ativo ou mas- culino. Trata-e, portanto, de uma verdadeira complementaridade, Por outro lado, se dispusermos os dois tridngulos um sob ‘outro, emi comespondéncia com a situagdo da cayerna sob a montanha, veremos que 0 segundo pode ser considerado como 0 reflexo do primeiro (fig. 12). E a idéia de reflexo se coaduna perfeitamente a relagao de um simbolo deriva: V Fig. 12 1. Pode-te acrescentar a essa figuragzo 0 fato de que o nome drabe do coracHo taalb) significa exatamente © que esti em posi¢do “invertida” (magidb), Cf. T. Burckhardt, Pu Barsakh, na revista tudes Traditionnelles, dez, 1937. 2. No Egito antigo, 0 vaso era 0 hie corresp 9 i néglifo do cora¢fo. A “copa” do Tard onde também a0 “corpo” das cartas comuns. 3, 0 tridngulo invertido, na fndia, ¢ — também as A a J tis, ia, € um dos principais simbolos da Shakei; representa com o simbolo primordial, de acordo com o que dissemos h4 pouco da jo da montanha com a caverna, enquanto Tepresentagdes sucessivas do itro espiritual nas diferentes fases do desenvolvimento eielico, Talvez provoque surpresa o fato de representarmos aqui o trangulo ertido menor que o tridngulo direito, pois, come ¢ 0 reflexo, poderia pa- que deve ser igual. Mas uma tal diferenga nas proporcOes nfo é coisa ional no simbolismo. Assim, na Cabala hebraica, o “Macroprosopo” “Grande Face” tem por reflexo o “Microprosopo” ou “Pequena Face”. do mais, hd para isso, mo presente caso, uma razdo mais particular; ibramos, a propésito da relagdo entre a caverna e 0 coragdo, o texto dos wads em que se diz que o Principio, que reside no “centro do ser”, € enor que um gro de arroz, menor que um gro de cevada, menor que um o de mostarda, menor que um grao de milhete, menor que o germe que no grao do milhete”, mas que também, ao mesmo tempo, é “maior que terra, maior que a atmosfera (ou o mundo intermedidrio), maior que 0 maior que todos esses mundos juntos”.4 Ora, na relagdo inversa dos s simbolos que estamos considerando, ¢ a montanha que corresponde a de “grandeza”, ¢ a caverna (ou cavidade do coragdo) a. de “pequenez”. wenez” as aparéncias relativas 4 manifestagdo. Conseqiientemente & per- itamente normal que o primeiro seja aqui representado pelo simbolo cor- spondente a uma condicdo “primordial”,5 e o segundo Aquele correspon- inte a uma condigfo posterior de “obscurecimento” ¢ de “encobrimento” f ihual.. Se quisermos representar a caverna situada no interior (ou no cora- “gio, poderjamos dizer) da montanha, basta transportar o tridngulo invertido | Fig. 13 4, Chhdndogya Upanishad, 3% Prapithaka, 149 Khanda, shruti 3, 5. Sabese que Dante situa o Paraiso Terrestre no topo de uma montanha; é essa exa- tamente a situagfo do centro espiritual no “estado primordial” da humanidade. } 187 para o interior do tridngulo direito, de tal modo que os seus centros coinci- dam (fig. 13). Ele deve entdo, necessariamente, ser menor para poder caber inteiro no outro. Mas fora essa diferenca, o conjunto da figura assim obtido € claramente idéntico ao simbolo do “Selo de Salomao”, em que 03 dois tridngulos opostos representam de igual modo dois principios complementa- res, nas diversas aplicagdes possiveis, Por outro lado, se os ladas do tridngulo invertido forem iguais 4 metade dos lados do tridngulo direito (na ilustracto foram desenhados menores, para que os dois tridngulos aparecessem inteira- mente destacados entre si, mas, de fato, ¢ evidente que a entrada da caverna deve encontrar-se 4 superficie da montanha e, Portanto, © triingulo que a representa deveria, na verdade, tocar o contorno do outro), o tridngulo pequeno dividiré a superficie do grande em quatro partes iguais, das quais uma serd o prdéprio tridngulo invertido, enquanto que as trés outras serio tridngulos direitos. Esta altima considera¢do assim como outras referentes a certas relagdes numéricas que se ligam a esse esquema nfo tém, a bem da verdade, ligapfo direta com o presente tema, mas teremos sem diivida oca- sido de retomd-las mais adiante no desenvolvimento de outros estudos. 6. Pode-se notar ema, $© 2 montanha ¢ substituida pela a ue, segundo o mesmo esq iti Pirimide, a cdmare inter di é ae opto a ‘or desta ultima ¢ o equivalents exato da caverna, ‘188 ee 32 O CORAGAO E 0 OVO DO MUNDO* Apés todas as consideragdes expostas anteriormente sobre os diver- _ $08 aspectos do simbolismo da caverna, resta-nos ainda tratar de um outro ponto importante, ou seja, das relagGes desse simbolo com a do “Ovo do Mundo”, Mas para que isso possa ser bem compreendido e ligado de forma mais direta ao que dissemos até aqui, devemos falar, em primeiro lugar, das telagdes simbdlicas do corag%o com © “Ovo do Mundo”. Isso poderia sur- “preender a primeira vista, e parecer que s6 hd uma certa similaridade de forma entre o corago ¢ o ovo. Tal similaridade, no entanto, s6 pode ter uma verdadeira significag%o se houver outras relages mais profundas. Mas, © fato de o dnfalo [“umbigo"] e o bétilo, simbolos incontestdveis do centro, possuirem com freqiiéncia a forma ovdide, como era em particular o caso de Omphalos de Delfos,1 mostra de modo claro que assim deve ser. E 6 0 que devemos explicar agora. A esse respeito, 0 que importa observar, antes de mais nada, ¢ que © “Ovo do Mundo” ndo representa o “cosmo” em seu estado de plena mani- festagdo, mas sim aquila a partir do qual efetuard seu desenvolvimento. E se esse desenvolvimento € representado como uma expansfo que se realiza em todas as dire¢Oes, a comegar de seu ponto de partida, ¢ evidente que esse Ponto coincidir4, necessariamente, com o proprio centro, Desse modo, 0 “Ovo do Mundo” é realmente “central” em relapgo ao “cosmo”.2 A repre- sentagdo biblica do Paraiso Terrestre, que ¢ também o “Centro do Mundo”, * Publicado na revista Erudes Traditionnelter, fev. 1938, 1, Examinamos em particular esses simbolos em O Rei do Mundo, onde assinalamos ainda que, em outros casos, revestem-se de forma cénica, que estd em relagéo direta com o simbolo da montanha;desse modo, encontramos af, de novo, as duas figuragdos complementares a que nos referimos antes. 2. © simbolo do fruto, sob esse ponte de vista, tem a mesma significagiio que o do 189 tem a forma circular, que pode ser vista como sendo o corte horizontal de uma figura ovdide ou esftrica. Podemos acrescentar que, de fato, a diferen- ga entre essas duas formas consiste essencialmente em que a esfera, esten- dendo-se de igual modo em todos os sentidos a partir do centro, é, na verda- de, a forma primordial, enquanto que a do ovo corresponde a um estado jd diferenciado, que deriva do precedente por uma espécie de “polarizagfo" ou de desdobramento do centro.3 Pode-se considerar que tal “polarizacZo” ocorre desde o momento em que a esfera realiza um movimento de rotagao em tomo de um determinado eixo, visto que, a partir de entio, nem todas as direeSes do espago desempenham mais de modo uniforme o mesmo pa- pel. E isso que marca a passagem de uma a outra dessas duas fases sucessivas do pees cosmogonico, simbolizadas respectivamente pela esfera e pelo ovo, Dito isso, resta-nos, em suma, mostrar que aquilo que estd contido no “Ovo do Mundo” 6, na verdade idéntico ao que, como dissemos antes, estd também contido simbolicamente no coragio e na caverna, na medida em que esta lhe ¢ equivalente. Trata-se aqui daquele “germe™ espiritual que, na ordem macrocdésmica, ¢ designado pela tradic¢go hindu como Hiranya- garbha, ou seja, literalmente, o “embrifo de ouro”.5 Esse “germe™ ¢ na ver- dade 0 Avatdra primordial, ¢ vimos que o local do nascimento do Avatdra, bem como do que lhe corresponde do ponto de vista microcésmico, é re- Presentado de forma precisa pelo corago ou pela caverna, Seria talvez posst- vel objetar-se que, no texto que citamos entio,7 bem como em muitos ou- Ovo; voltaremos a isso, sem duvida, na seqilincia desses estudos, Mas podemos observar, desde ji, que esse simbolo tem uma out conexSo evidente com o do “jardim™, por- tanto com o do Paraiso Terrestre, 3. E assim que, na geometria plana, o desdobramenta do centro Gnico do

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