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Capitulo 6 Assimilagao e continuidade do movimento moderno 1. Presenga na América do racionalismo europeu Segundo o historiador argentino José Luis Romero, em seu livro Latinoamérica: las ciudades y las ideas, a partir da década de 20 abre-se a etapa da sociedade ‘‘de massas’’, que corresponde consolidacao das classes médias urbanas, 4 incipiente aparicao do proletariado e ao abalo da autonomia politico-econémica mantida até entdo pelas oligarquias agricola-criadoras. A Revolucdo Mexicana, o triunfo na Argentina do candidato do Partido Radical, Hipdlito Irigoyen (1914), ao serem rea- lizadas as primeiras eleicdes por sufragio universal, a tomada do poder por Getulio Vargas no Brasil (1930) e a derrota da ditadura de Gerardo Machado em Cuba (1933) constituem alguns dos fatos que caracteri- zam esse processo historico. No entanto, o panorama da regido nao ¢ homogéneo nem unitario do ponto de vista politico e econdmico. Se, de um lado, a Revolucao Mexicana constitui, até o governo de Lazaro Cardenas, no fim da dé- cada de 30, um baluarte da defesa dos interesses nacionais e populares, no resto dos paises da América Latina predominam ditaduras ou regi- mes de direita, que, sob a pressio dos Estados Unidos, na area do Caribe, ou a progressiva penetracdo do nazi-fascismo no Cone Sul, a partir do golpe militar de Uriburu na Argentina (1930) e da virada de Vargas no Brasil, com a criacdo do Estado Novo (1937), nao facilitam a assimilacdo das colocacées da vanguarda arquiteténica européia, em que viam forcas reaciondrias e a expressao ambiental de uma confabu- lacdo ‘‘judaico-marxista’’. Essas contradicdes politicas, econdmicas e sociais emolduram a presenca dos codigos racionalistas na América Latina, cujos principais fatores determinantes sdo os seguintes: 155 a) A influéncia da vanguarda artistica As conexées dos artistas plasticos latino-americanos com seus homologos europeus foi um fator essencial na assimilacao da lingua- gem racionalista, tanto pelas viagens dos intelectuais locais ao Velho Mundo como pela visita de alguns artistas prestigiosos ao Continente: Saint-Exupéry viaja até a Argentina, Blaise Cendrars e Marinetti visi tam o Brasil, Le Corbusier percorre o Cone Sul. b) A emigracao, devido ao nazi-fascismo, de profissionais da vanguarda européia Seria longa a lista de arquitetos que se estabelecem nos diversos paises da América Latina em razdo das perseguic6es raciais e politicas que se desencadeiam na Alemanha, Italia e Espanha. Max Cetto e Mathias Goeritz, no México, Manuel Dominguez, em Cuba, Antonio Bonet e Wladimiro Acosta, na Argentina. E uma exce¢do 0 caso de Gregori Warchavchik, que se radica no Brasil: sua familia fugira da Russia com o advento da Revolucao de Outubro e, apos formar-se em Roma, ele se vinculou ao arquiteto de Mussolini, Marcello Piacentini. Todos eles se integram rapidamente ao ambiente local e exercem grande influéncia na materializacdo de obras que se convertem em mo- delos alternativos ao ecletismo dominante. c) A assimilagao do ‘‘estilo’' pelas burguesias locais Nessa etapa de renovacio social e econémica associada ao cresci- mento das cidades e ao incipiente processo de industrializacdo, alguns membros ‘‘iluminados’’ da classe dominante aceitam a definitiva su- peracao do historicismo académico para construir mansées, escritérios ou fabricas a partir dos cédigos formais ‘‘modernos’’, provenientes nao sé da Europa, mas também dos simbolos do avanco tecnoldgico dos Estados Unidos — por exemplo, 0 modelo do arranha-céu nova- iorquino, agora carente de ornamento historicista. d) O apoio da iniciativa estatal Os fundamentos populares do Movimento Moderno, orientados para a busca de solucdes ambientais destinadas a melhorar o nivel de 156 rigs i raietatiad, condicionam a interven¢ao do Estado para finan- EES Onstrucdes de obras sociais. Por outro lado, a base cientifica da nova arquitetura, surgida da busca de solugdes funcionais e econ6micas otimas, torna imprescindivel a aplicagao desse repertorio ao projeto de habitacdes, escolas, hospitais, escritorios bibliotecas. Em diversos paises da regido, os governos nos de construcao para dotar as cidades de infra-estruturas técnicas e de servicos: a Revolugao Mexicana toma a dianteir: seguida pela mul- tiplicidade de novas edificacdes no Brasil, Uruguai e Argentina. Nelas esta implicito o intento de uma mudanga de imagem simbolica do Es- tado: de sua presenca opressiva, vinculada as expresses do ‘‘monu- mental moderno’’, passa-se a uma presenca ‘‘funcional’’ e ‘‘mo- derna’’ associada aos cédigos formais do racionalismo. , industrias ou promovem pla- e) Mao-de-obra e recursos materiais A rapida assimilacdo dos novos cédigos formais e espaciais tem sua base primaria na difusdo do concreto armado como técnica cons- trutiva predominante, que é introduzida por engenheiros europeus. No Brasil, 0 calculo avancado desde cedo se generaliza, por intermédio de Emilio Baungart. Também tem peso significativo a importacado de componentes especializados — esquadrias metalicas, equipamentos de banheiros e cozinhas, pecas de aco cromado, vidros—, que, por exem- plo, na Argentina, eram trazidos da Alemanha. A presenca de uma forte imigracao italiana e alema incide sobre a difusao desses codigos, dominantes nos anos 30 em ambos os paises e que se expandem em escala popular por meio das empresas construtoras. No relatério apre- sentado ao II] Congresso Pan-americano de Arquitetos realizado em 1927, em Buenos Aires, dizia 0 arquiteto mexicano Alfonso Pallares: “‘Fundar associacdes que promovam a poupanga do consumidor das diversas classes sociais./Fundar empresas construtoras’’. f) Comercializacdo do repertorio Assim como os componentes classicos se difundiram amplamente desde o fim do século passado, o reducionismo estético do racionalismo constituiu a base essencial para a obtencao de mais-valia no sistema da especulacao capitalista com a terra e por meio dos mecanismos finan- ceiros da construcao. O entorno urbano de pobres e ricos, a partir dos anos 40, configura-se a partir de uma reiterac¢ao de elementos ‘‘funcio- 157 nalistas’’ anénimos, que caracteriza a paisagem das cidades da Amé- rica Latina. g) Os duplos cédigos simbolicos Em termos dos significados simbolicos, é possivel falar de posicdes antitéticas: uma orientacao ‘‘formalista’’ ou ‘‘estilistica’’, essencial- mente impulsionada pelas elites burguesas, e outra ‘‘conteudistica’’, associada as reivindicacées das classes populares, levada a pratica pelas escassas iniciativas progressistas, materializadas a partir dos anos 30. Podemos identificar esse dualismo com a significagao contraposta de duas personalidades européias: Le Corbusier e Hannes Meyer, ambos fugazmente presentes na regiao. Le Corbusier visita o Cone Sul em 1929 para pronunciar conferén- cias em Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro. E convidado pela fazendeira argentina Victoria Ocampo, chamada pelo historiador ar- gentino Arturo Jauretche ‘‘ Madame de Rambouillet da pampa’’, me- cenas das artes e das letras, fundadora da revista Sur, amiga intima de Jorge Luis Borges, incentivadora do grupo Florida, que reunia a inte- lectualidade portenha, ansiosa por conhecer e assimilar os modelos da vanguarda francesa. Esse movimento cultural se contrapunha ao de Boedo, que aglutinava as forcas populares em busca de uma expressio propria da sociedade argentina. Para tanto, dirigia seu olhar para cami- nhos internos, rastreando suas raizes nas tradicdes rurais, forjadoras da identidade nacional. Se levarmos em conta que, no ano seguinte 4 visita de Le Corbu- sier, produz-se em Buenos Aires o golpe militar de direita de José F. Uriburu, que inicia a chamada década infame, periodo em que a Ar- gentina mantera otimas relacdes com a Itdlia fascista e a Alemanha nazista, fica evidente que nao seria o Estado quem fomentaria planos de construgdes populares, em que se poderiam aplicar as técnicas e estruturas funcionais provenientes das experiéncias da habitacao mi- nima européia. Por isso, a influéncia de Le Corbusier, como afirmam Horacio Baliero e Ernesto Katzenstein, foi minima e limitada 4 ges- tacdo de uma base tedrica, concretamente, ao surgimento de algumas casas luxuosas da burguesia, que se apropriam da estética das ‘‘cai- xas brancas’’. Ja Hannes Meyer viaja para o México em 1938, no periodo presi- dencial de Lazaro Cardenas, a fim de assistir ao Congresso Internacio- nal de Planejamento Urbano, e é convidado por José Luis Cuevas e 158 Vistas do Rio de Janeiro. Desenhos de Le Corbusier, 1929. 159 Acima ¢ abaixo, Escola ‘Técnica Profissional em Tresguerras, Cidade do México, 1932 Arq. Juan O'Gorman, 160 Enrique Yafiez a permanecer no pais e dirigir 0 seminario de Urba- nismo e Planejamento, na recém-fundada Escola Superior de Engenha- ria e Arquitetura, pertencente ao Instituto Politécnico Nacional. Mui- to embora seu trabalho docente mal tenha durado um par de anos, sua presenca no México, que se prolonga até 1949, fortalecera a corrente gerada pelos arquitetos jovens, cujas obras sociais nas Secretarias de Estado haviam aplicado os ideais do Movimento Moderno em termos conceituais. Por sua vez, Meyer transmite aos mexicanos suas expe- riéncias na URSS e as dificuldades e contradicées inerentes 4 arquite- tura na etapa de construcao do socialismo. Isso significa que a assimi- lagao do Movimento Moderno na América Latina nao pode ser anali- sada como um fenémeno global, de simples traslado ou renovacgao de formas, mas sim condicionado em cada caso pelas circunstancias histo- ricas especificas de cada pais. 2. Sociedade e cultura na arquitetura mexicana No fim dos anos 20, os arquitetos mexicanos superam os vinculos que os prendem aos ‘‘estilos’’ tradicionais — fundamentalmente neo- colonial e art déco — e assimilam as influéncias da vanguarda euro- péia: em 1927, Juan O’Gorman (1906-82), inspirado nas primeiras realizacdes de Le Corbusier, projeta o estudio e a casa do pintor Diego Rivera. Embora a principio se tratasse de uma transcric¢do estilistica, a designacio de jovens progressistas para cargos de direcdo das Secre- tarias de Estado difunde em grande escala, nas obras sociais, os princi- pios do Movimento Moderno. Juan O’Gorman foi nomeado chefe do Departamento de Edificagdes da Secretaria de Educacao Publica (1932-35); no Departamento de Satide Publica trabalhou José Villagran Garcia, até 1935; Juan Legarreta foi o encarregado da secao de projetos do Departamento de Edificagdes da Secretaria de Comunicacdes e Obras Publicas. As numerosas edificagdes executadas demonstram a forca alcancada pelos objetivos sociais contidos nos temas que a inicia- tiva estatal abarcava: habitagdes, escolas, hospitais e edificios publicos. A identificagdo com os cédigos puristas nao partia essencialmente de premissas estéticas, mas das condigdes econdmicas e da busca de uma resposta cientifica ao problema colocado. Juan O’Gorman defen- deu em seus escritos e conferéncias essa posicdo, que coincidia com uma visio social da arquitetura. Em 1933, num controvertido ciclo de 161 conferéncias realizado na Sociedade de Arquitetos Mexicanos, afirma: O tamanho da porta da casa do operario sera igual ao da porta da casa do filosofo. A necessidade essencial se resolve em cada caso com exa- tidao. A janela por onde entra a luz eo sol para um e para outro devera ser de uma forma unica, precisa, que resolva da melhor maneira possi- vel o problema da entrada de luz e de sol na vida de um e de outro, assim como todos os problemas técnicos que se apresentarem’’. E con- tinua: ‘‘A arquitetura que resolve as necessidades materiais, palpa- veis, que ndo se confundem, que existem, podendo-se comprovar sua existéncia e que, ao mesmo tempo, sao necessidades fundamentais dos homens, é a unica e verdadeira arquitetura de nosso tempo (...) Nada tem a ver com a moda ou o modernismo; esta tdo distante desses con- ceitos equivocos como podem estar 0 avido ou a locomotiva’’. Outro profissional, Alvaro Aburto, afirma naquele mesmo ciclo: ‘‘Sempre acreditei que nossa arquitetura deve ser como a dos cristaos primitivos: pobre € nua como nds mesmos, como o povo mexicano (...) Sao ab- surdas nossas duas ou trés cidades com suas avenidas, seus palacios, seus monumentos, num pais com palhocas, com tetos de palha e pare- des de bambu’’. O vinculo da nova arquitetura com a resposta cientifica a fungao, com as exigéncias impostas por uma economia precaria e voltada paraa solucdo das necessidades sociais da populacdo se materializa numa obra que considero simbdlica desse periodo da Revolugdo Mexicana: a Es- cola Técnica de Tresguerras, Cidade do México, projetada por Juan O’Gorman em 1932. Trata-se do traslado dos postulados globais do Movimento Moderno para a realidade latino-americana. Poder-se-ia estabelecer uma comparacao entre a Bauhaus e essa escola e verificar as semelhancas quanto as motivacées estéticas, porém, ao mesmo tempo, as divergéncias existentes nos acabamentos, nas esquadrias, nos detalhes de construcao. E uma escola dura, aspera, rustica, que se concretiza nas condi¢Ses técnico-materiais adversas inerentes ao sub- desenvolvimento. O uso de sheds na cobertura retoma 0 tema da fa- brica — associado a sua funcao de centro docente para operarios quali- ficados — e permite a iluminacao zenital das oficinas. A estrutura de concreto armado atua como elemento visual de modulacdo do espaco, cuja unidade é estabelecida por galerias e caixas de escadas. O fato estético fundamental centra-se no cilindro, forma pura que contém a caixa-d’4gua, que preside as visuais a partir do patio interno. A légica racional da composi¢4o nao impede a busca de uma tensdo plastica conseguida pela organizacao ritmica de cheios e vazios. Essa experién- 162 cia nao teve um carter solitério: O'Gorman, com um orcamento de um milhao de pesos mexicanos, construiu, entre 1932 e 1933, 250 salas de aula com capacidade para 12.000 alunos. Paralelamente, realizaram-se diversas obras por iniciativa estatal, que exprimiam os contetidos progressistas do governo mexicano e a atitude de vanguarda dos arquitetos, identificados com as necessidades das camadas populares. Quando Carlos Obregon Santacilia elabora, em 1932, como empresario, 0 ‘‘Mostruario da Construcdo Moderna’’, nao sd se sente identificado com os valores estéticos do novo repertorio formal como aspira a encontrar 0 vinculo entre a base construtiva e os tipos mais adequados de habitacdes econémicas. Em 1930, Juan Legar- reta constréi por iniciativa propria um protétipo recuperavel de casa operaria. Depois, quando da realizagdo do concurso de uma casa ope- raria minima, Legarreta e Justino Fernandez obtém o primeiro prémio, enquanto Enrique Yafiez conquista o segundo. Finalmente, sera cons- truido um protétipo na colénia Moctezuma, que se multiplicaré em 108 casas no Parque de Balbuena e 205 em San Jacinto. Essas solugdes nao repetirao mecanicamente os prototipos europeus, mas se adequa- rao as formas de vida e aos costumes dos trabalhadores mexicanos. Esses principios também esto presentes no Centro Escolas Revolu- cion, de Antonio Mufioz (1933), no Instituto de Higiene (1925) e no Sanatério de Tuberculosos de Huipulco (1929), de José Villagran Garcia. 3. A apropriagao estética do racionalismo no Cone Sul Ao regressar de sua visita 4 América Latina, no navio Leticia, Le Corbusier escreve as conferéncias pronunciadas, que s4o publicadas com o titulo Précisions sur un état présent de I'architecture et de l'urbanisme (PrecisGes sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo). Nelas explica suas concepc6es da arquitetura aplicadas as obras projetadas nos anos anteriores, sua visao do urbanismo moderno, da tecnologia e do problema da habitacao. Apesar do entusiasmo de Victoria Ocampo, que lhe pede alguns projetos, nao se materializa a idéia de construir algumas casas em Buenos Aires. Durante sua es- tada, é visitado pelo aristocrata chileno Errazuriz, para quem projeta uma casa cuja concepcio é totalmente oposta ds ‘‘caixas brancas’’ que eram copiadas, naqueles anos, na América Latina. Le Corbusier ja ha- 163 via superado seus esquemas puristas e assimilado as contribuicées cul- turais dos paises do chamado Terceiro Mundo e comeca a transfor- macao que tera sua culminancia madura em Ronchamp. Dessa etapa so ficara um exemplo concreto no Continente: a casa do doutor Curut- chet, construida em La Plata depois do fim da Segunda Guerra Mun- dial. Embora seus vinculos com a Argentina nao tivessem a mesma intensidade dos que estabeleceu com o Brasil mais tarde, em 1938, os arquitetos Kurchan e Ferrari Hardoy trabalharao com ele em seu estudio de Paris para elaborar o Plano Diretor de Buenos Aires. Nao existindo planos estatais de habitacdes nem de temas de ca- rater social, suas idéias nao tiveram aplicacdo pratica direta na Argen- tina. Recebido como representante da vanguarda cultural francesa, a alta burguesia argentina assumiu o novo repertorio formal como ex- pressao da ‘‘ultima moda’’ européia, ou inclusive também norte-ame- ricana (no ponto de contato estabelecido pelo arranha-céu). A ‘‘fun- cionalidade’’ podia ser lida diretamente nos escritorios, postos de gaso- lina (a série do Automével Clube Argentino, projetada pelo enge- nheiro A.U. Vilar), escolas ou hospitais. Recordemos a contraditoria miss4o que Victoria Ocampo propde a Alejandro Bustillo — paladino do classicismo ortodoxo argentino — ao solicitar-lhe a construcdo, no bairro de Palermo, de uma casa no ‘‘estilo’’ de Le Corbusier, que o mestre elogiou durante sua visita. O edificio de apartamentos Kavanagh (1936), dos arquitetos San- chez, Lagos e de la Torre, ¢ 0 simbolo da apropriacao dos cédigos do Movimento Moderno pela oligarquia argentina. Ele 6 uma simbiose entre a influéncia européia e o escalonamento volumétrico do Rocke- feller Center, naquela época o simbolo mais avancado da ‘‘moderni- dade’’ técnica e arquitet6nica. Se a imagem de vanguarda definia a configuracado externa, no interior estava presente o uso do duplo cé- digo: a distribuicdo dos apartamentos era ‘‘classica’’, para facilitar aos moradores pertencentes a alta sociedade portenha a decoracao de ‘‘es- tilo’’. E interessante verificar as motivacdes comerciais dos autores do projetoao declararem: ‘‘O problema que se nos colocava era o seguinte: dispondo-se de um terreno magnificamente situado, projetar um edifi- cio de renda segura, sem riscos. O primeiro passo era, logicamente, determinar a soma a investir no edificio, proporcionando-a ao valor do terreno, a fim de obter um investimento maximamente vantajoso. Dai resultou o volume a edificar...’’ (Nuestra Arquitectura, abril de 1936). Todavia, nem todos os que projetavam edificios para renda naqueles anos tinham uma concep¢do tdo pragmatica, como é o caso de Vilar, 164 Residéncia de Victoria Ocampo, Buenos Ai- Residéncia em Paris. R. Maillet Stevens. res. Arq. Alejandro Bustillo. Colegio del Verbo Divino, Santiago do Chi- rbusier. le. Arq. Sergio Larrain. i —— Residéncia em Garches, Paris. Le Cor 165 Edificio de apartamentos, Utilzagdo dos cdi 0s formais do racionalismo europeu, Buenos Aires, 1935. Arq. Jorge Kalnay Edificio de apartamentos, Buenos Aires, 1935 Detalhe da fachada. Arq. Jorge Kalnay 166 Kalnay, Dourge ou Prebich. O ponto culminante da parabola esteti- cista realiza-se com a obra de Amancio Williams, falecido recente- mente (1913-89), membro, por sua vez, dessa classe so e que sempre assumiu a atividade de projetar como um passatempo refinado, em busca de um perfeccionismo técnico e estético: a Casa da Ponte, em Mar del Plata (1945), resume uma sintese entre os principios arqui- tet6nicos de Le Corbusier e de Mies van der Rohe. 4. Realidade e idealismo nos postulados da vanguarda Dois arquitetos de origem européia, radicados respectivamente na Argentina e no Brasil — Wladimiro Acosta (1900-67) e Gregori War- chavchik (1896-1972) —, séo representativos das identidades e di- vergéncias existentes entre os contetidos estéticos e sociais. Ambos percebiam a identificacdo das novas idéias com a solucao para as neces- sidades sociais existentes nesses paises jovens, cujo desenvolvimento capitalista exacerbava o contraste entre pobres e ricos, entre explora- dores e explorados. Diz Warchavchik: ‘‘A arquitetura negaria a si mesma se Os que a praticam, que sdo os engenheiros e os arquitetos, agissem com absoluto desconhecimento das inquietudes atuais, a sa- ber: carestia, falta de trabalho, aumento da popula¢ao, criacdo de novas industrias...’’ E, referindo-se ao problema da habitacdo: ‘‘Construir uma casa, 0 mais cémoda e barata possivel, é o que deve preocupar 0 arquiteto construtor de nossa época de capitalismo incipiente, onde os aspectos econdémicos sao prioritarios. A beleza da fachada tem de re- sultar do plano interno, tal como a forma da maquina é determinada pelo mecanismo que a anima’’. Entretanto, suas afirmagdes nado se materializaram numa acdo concreta, em que predominasse o contetido social. Com excecao da construc¢ao especulativa de habitacdes operdrias realizada no bairro da Mooca, em Sao Paulo (1929), e das casas para operarios na Gamboa, Rio de Janeiro (1933), projetadas em colabora¢4o com Lucio Costa, sua obra transcende mais pela formulacdo de um novo vocabulario formal do que pela presenga de conceitos alternativos sobre o tema da habita- ¢4o. Sua casa na rua Santa Cruz (1927-28) foi o primeiro enunciado no Brasil — antes da chegada de Le Corbusier — do repertério raciona- lista, que culmina em 1930 com a Casa Modernista de Sao Paulo, sin- tese da integracao da arquitetura com o desenho industrial e as van- 167 Interior da residéncia do arquiteto. Arq. Gregori Warchavehik. a 168 guardas artisticas. Nesse sentido, seria mais justo hoje revalorizar a desconhecida figura de Luis Nunes, que realizou um sem-numero de obras sociais no Estado de Pernambuco e cuja presenca em Recife evi- denciou as buscas de coeréncia ambiental urbana, obtida através da “‘diversidade dentro da unidade’’ aplicada a diversas fungdes comu- nitdrias. Wladimiro Acosta (como Warchavchik, nascido em Odessa ¢ for- mado em Roma) dedicou sua vida ao estudo da habitagdo em relacado com 0 contexto ecoldgico. Suas pesquisas sobre o clima e a insolacao resumem-se no tipo variavel de casa unifamiliar, com elementos pro- tetores do sol que se adaptavam as diferentes latitudes e a seqiiéncia de estacGes anuais. A casa Helios vincula-se as pesquisas dos arquitetos europeus dos organismos municipais sobre o condicionamento cientifico do habitat social, sintetizadas nas teses apresentadas nos congressos do CIAM na década de 30. Acosta afirmava: ‘‘A nova habitacao vem a ser nao sé uma maquina de morar, mas também um aparelho bioldgico que serve as necessidades do corpo e do espirito... Construir é a organizacado consciente dos processos da vida... Para tanto, é preciso considerar com aten¢ao as tensées dos individuos, os sexos, a vizinhan¢a, a comu- nidade, assim como as relacées geofisicas’’. Essas afirmacées obriga- vam-no a assumir uma atitude politica dentro da sociedade e a identi- ficar-se com as necessidades da classe trabalhadora. Como escreve A. Gerchunoff, ‘‘(Acosta), que se propés ser um construtor de orga- nismos habitaveis para a pluralidade humana com o duplo fim de defesa da sua satide e da sua dignificacao social, esta disposto a ser um arqui- teto proletario. A arquitetura tornou-se, para Wladimiro Acosta, uma arte de manifestacdo gregaria’. Um aspecto importante que caracteriza a evolucao do Movimento Moderno no Brasil e na Argentina é a rapida transformacao do reper- trio purista e a assimilagdo das tradicdes construtivas e formais locais. O uso do tijolo aparente e da pedra rustica na casa Helios e a adocao do Patio interno e das janelas caracteristicas da casa rural brasileira na casa Crespi, no Guaruja, de Warchavchik, demonstram que ambos os Profissionais ndo estavam atados a esquemas formais preestabelecidos, dai por que nao Ihes foi dificil adaptarem-se aos fatores condicionantes locais. Apesar da situacao econémica e politica adversa na Argentina, no fim dos anos 30 a posi¢’o de Acosta é compartilhada por outros arquitetos progressistas, como Fermin Beretervide, Antonio Bonet, Jorge Vivanco e outros, que fundardo 0 Grupo Austral (1939), cujos interesses arquitetdnicos nao se limitarao a habitacao urbana, mas en- 169 Estudo realizado por Wladimiro Acosta para a anilise da insolacio, postetiormente aplicado na casa Helios, Buenos Aires, 1930-50. Casa Helios, La Falda, Cérdoba, Argentina, 1937. Arq. Wladimiro Acosta. 170 frentardo as necessidades do pais em sua totalidade, com as diferencas de clima, de recursos naturais e a especificidade da vida social, reali- zando propostas de habitaces rurais para as diferentes latitudes. Esta vinculacao estreita com a realidade nacional invalida a critica severa de Alberto Petrina e Maria Isabel de Larraiiaga, que poem superficial- mente num mesmo saco o Grupo Austral e Amancio Williams. O pri- meiro define uma linha progressista, que abrird a perspectiva posterior da modernidade arquitet6nica latino-americana, levada adiante no Cone Sul por Eduardo Sacriste, Julio Vilamajé, Juan Kurchan e Jorge Ferrari Hardoy. 5. Os paradigmas da identidade ambiental latino-americana Entre meados dos anos 30 e 50, produz-se o momento de maior amadurecimento da arquitetura moderna latino-americana. Considero trés obras como marcos de um processo de readequacao dos postulados do racionalismo e representativas de um caminho no sentido da defi- nicao da identidade cultural ambiental: 0 Ministério da Educacao e Satide, no Rio de Janeiro (1936), 0 conjunto da Universidade Central da Venezuela, em Caracas, e a Cidade Universitaria da UNAM, na Cidade do México. Nas trés obras nao ha uma remincia a continuidade do Movimento Moderno nem se cai num folclorismo provinciano; pelo contrario, cada uma com sua propria especificidade, elas demons- tram a dindmica evolutiva implicita na inter-relagdo necessaria das experiéncias internacionais e sua posterior decantac4o dentro de um contexto cultural concreto. O Ministério da Educacao devia ser construido dentro. dos tradi- cionais esquemas ecléticos aplicados nos edificios publicos na presidén- cia de Getuilio Vargas. A presenca do ministro Capanema e sua posicao Progressista, de apoio aos jovens da vanguarda arquiteténica, conse- guiram mudar o projeto académico para uma proposta moderna, cuja Projeto estava a cargo de Lucio Costa. Ao surgir a idéia de convidar Le Corbusier em 1936, comecou-se novamente 0 projeto e o Mestre ela- borou uma alternativa num terreno de frente para o mar, a qual, com- parada com a solucdo definitiva, era bastante convencional. Depois de sua volta 4 Franga, a equipe brasileira — Lucio Costa, A. Reidy, J. Moreira, C. Ledo, E. Vasconcelos e O. Niemeyer — levou a cabo a 171 proposta da obra, cuja construcao foi concluida em 1943. O ministério é, sem dtivida, uma das obras mais maduras da arquitetura da regiao. Transcorreram cingitenta anos ¢ 0 edificio nao envelheceu nem seus enunciados caducaram. A integracdo dos espacos verdes elaborados por Roberto Burle Marx, a presenca dos murais de Portinari, a escada do vestibulo aberto, com suas colunas de dez metros de altura — que prenuncia os mails dos anos 80 —, 0 uso de materiais diversificados, a resposta dos quebra-sdis as condicionantes climaticas, o tratamento plastico da cobertura, a clareza funcional e compositiva constituem valores que sao indeclinaveis em qualquer obra presente. Ha um rigor na resposta técnica e funcional, mas, ao mesmo tempo, 0 edificio se flexibilizou, se personalizou, se adequou a particularidade das imagens expressivas da cultura brasileira. Nessa mesma t6nica situam-se as duas cidades universitarias, da Cidade do México e de‘Caracas. Nos anos 50, Mario Pani, Enrique del Moral, Salvador Ortega, Carlos Lazo, Luis Sordo Madaleno e outros realizam o conjunto docente da UNAM , concebido para 40.000 alunos, dentro da ortodoxia racional ista, a partir de um esquema compositivo que tenta recuperar a espacialidade aberta dos centros cerimoniais aste- cas. A identificacao com os valores culturais locais nao conseguiu uma sintese, mas um somatério de elementos isolados, de pinturas, murais e televos agregados as formas dos edificios. O volume puro da Biblio- teca, recoberta pela cosmogonia asteca, desenhado por Juan O’Gor- man, e o Estadio Olimpico, escavado dentro do aspero terreno de lava, quase como se fosse uma cratera vulcdnica, constituem os tnicos exemplos de expressdo unitdria entre a construcao e os atributos plas- ticos. Todavia, constituiram o ponto ‘de partida de uma sintese das artes em escala urbanistica, que abriu um caminho na busca pratica e tedrica dos fundamentos de uma identidade cultural ambiental (cabe assinalar as investigacdes de José Villagran Garcia e Enrique Yafiez na definicdo de uma filosofia da arquitetura mexicana). Revelou-se mais coerente 0 conjunto de Caracas, projetado por Carlos Ratil Villanueva, em que sao levados adiante, em escala urba- nistica, alguns dos preceitos que foram originalmente propostos no ministério do Rio de Janeiro. Villanueva assume a racionalidade estru- tural, funcional e compositiva com uma concepcao aberta, que Ihe permite proporcionar, dentro da unidade do conjunto, uma personali- dade propria a cada faculdade. As relagées espaciais entre os edificios sao alheias a qualquer monumentalidade, a referéncias axiais ou de geometria elementar. As circulacées de pedestres servem de fio condu- tor homogeneizador dos edificios, estabelecendo-se uma constante di- 173 Plano geral da Cidade Universitaria da Cidade do México, 1952. Arqs. Mario Pani, Enrique del Moral ¢ outros. 174 Biblioteca da Cidade Universitaria (UNAM), da Cidade do México, 1952 Arq, Juan O'Gorman. Edificio da Reitoria da Cidade Universitaria (UNAM), Cidade do México, 1952 Arqs. Mario Pani ¢ Enrique del Moral 175 Plano geral da Cidade Universitaria de Caracas, 1952. Arq. Carlos Ratil Villanueva, 176 ‘A integracao das artes na Cidade Universitaria da Universidade Central da Venezuela, Caracas, 1952 ‘Arq, Carlos Radi Villanueva. Acima, o interior da Aula Magna com os ‘‘discos”’ de Alexander Cal- der, abaixo, vista externa 177 Detalhe da fachada. versifica¢do dos ambientes por meio de murais, esculturas, tratamento cromatico dos edificios e composicao das areas verdes. O climax do conjunto é obtido na articulagéo da Praga Coberta e da Aula Magna (1952). A musculosa estrutura do teatro é ‘‘desmonumentalizada’’ pelo espaco pluridirecional que define 0 acesso, sumido na penumbra prenunciadora do espetaculo aéreo multicor criado pelas ‘‘placas voa- doras’’ de Alexander Calder. 6. Transcrigao regionalista do Movimento Moderno Nao vamos precisar os atributos conceituais do Movimento Mo- derno nem estabelecer suas transformacdes ou estancamentos ao longo das trés décadas do segundo pés-guerra. Tampouco é licito respal- dar uma orientacao expressiva em detrimento de outra, porque, em ultima analise, cada obra ou cada autor esta condicionado por fatores concretos e especificos que originam a validez da resposta. Entretanto, nao sAo equivocados a persisténcia de uma ordem estrutural, a clareza de uma resposta funcional, o condicionamento a recursos ou tecnologias conformes ao desenvolvimento de um pais. Se, ademais, define-se como valida uma arquitetura de contetido social, também devem ser apoiadas as solucGes generalizaveis, sem renunciar a criatividade, a espontaneidade, a imaginacdo, a inventiva persistente. Por isso, a refe- réncia a uma continuidade dos postulados estéticos que amadureceram por ocasiao da Segunda Guerra Mundial leva a figura de Oscar Nie- meyer (1907). O conjunto de sua obra estabelece uma linha de pensa- mento e de soluc6es concretas inconfundivel como representacado da arquitetura latino-americana. Apesar da hegemonia que a figura do Mestre possui dentro do panorama brasileiro, é interessante constatar © carater coletivo que a vanguarda desse pais possui e a coincidéncia que existe entre seus diferentes protagonistas, pertencam eles as cha- madas escolas ‘‘carioca’’ ou ‘‘paulista’’: referimo-nos aos irmaos Ro- berto e Affonso Reidy, de um lado, e Vilanova Artigas e Paulo Men- des da Rocha, de outro. Niemeyer e os representantes de ambas as escolas coincidem no uso persistente do concreto armado, eludindo ao maximo o elemen- tarismo da estrutura dolménica de colunas e viga. Descoberta e apro- veitada a sua plasticidade, o concreto armado pode ser tornado mais leve, até chegar a casca curva e flexivel. Outra premissa consiste em reduzir ao minimo os limites do espaco e obter sua maxima continui- 179 dade, valorizada em seu interior a partir das exigéncias funcionais por meio dos componentes circulatorios. Estes, por sua presenca parti- cular, as vezes isolada, agem como dinamizadores plasticos por meio de escadas helicoidais ou rampas. Também adquire uma significagao acentuada a continuidade espaco interno-espaco externo. O edificio é um fragmento da realidade urbana, um episddio dentro da paisagem; nao é um marco definitivo, um signo introvertido, um monumento iniludivel, compacto e maci¢o diante da natureza, da praca ou da rua Sao fatores que constituem atributos conformadores de uma mo- dernidade particular que define a arquitetura latino-americana, cuja transparéncia permite o fluxo de pessoas, idéias, sensacGes, ares e lu- zes. Especificidade implicita também no uso dos materiais que corres- pondem 4 escassez das condigdes do nosso Terceiro Mundo e, ao mesmo tempo, a uma disponibilidade sempre variavel, tanto de produ- tos industrializados como de elementos de feitura artesanal. Do soma- torio desses principios ndo surge automaticamente o produto final; deve existir a sensibilidade e 0 talento, que permitem obter a densidade do espaco, a perfeicdo das proporcées, os efeitos perceptivos da luz, asombra, a cor, a textura. E nisso que se manifesta a mestria de Niemeyer. Metoddlogos e cientistas da arquitetura, em particular pertencentes ao Primeiro Mundo (leia-se Bruno Zevi ou Leonardo Benévolo), criticaram sua superficialidade, sua capacidade improvisadora, seus desenhos lineares que nunca atingem a consisténcia da matéria. Eles nao percebem a capacidade sintética de seu traco, a perfeicao das proporcées, sua aspi- racdo a desmaterializar a arquitetura, sua busca do insdlito, do novo, da experiéncia visual e plastica constantemente renovada. Alguém sentiu cansaco ou esgotamento dentro de um espaco de Niemeyer? Alguém sentiu a sensacdo de ter dominado a totalidade das variaveis existentes num espaco projetado por ele? Acaso nao é um exemplo significativo o filme Eu sei que vou te amar, que transcorre inteira- mente num apartamento de Niemeyer, cujos angulos e perspectivas nunca se repetem ao longo de duas horas de durac4o? Onde estao entdo © esquematismo e o simplismo das formas? Ao longo de suas obras, grandes e pequenas, verificamos 0 que é expresso e encontramos certas constantes que se desenvolvem, se arti- culam, desaparecem e tornam a aparecer. Uma delas é 0 tema da super- ficie curva, horizontal, vertical ou inclinada, como forma diretriz na definico do espaco. Ela aparece na casca da pequena escola secundaria de Campo Grande, que contém o espaco de atividades coletivas e re- creativas; e, quarenta anos depois, o mesmo tema, com uma densidade 180 Associacdo Brasileira de Imprensa, Rio de Ja- neito, 1938. Args. M. M. Roberto. Foto Hugo Segawa Museu de Arte Moderna do Rio de Jat Igreja de S. Francisco de Assis, Pampulha, Belo Horizonte, 1943 Atq. Oscar Niemeyer. Foto Hugo Segawa Catedral de Brasflia, 1958-59. Arq. Oscar Niemeyer, Foto Hugo Segawa 182 Panteao da Liberdade. Memorial Tancredo Neves, Brasilia, 1985-86. Arq. Oscar Niemeyer. Foto Hugo Segawa 183 material diferente, torna a aparecer no centro de formacao de musicos de Brasilia. E 0 tema essencial da igreja de Pampulha, do edificio Co- pan, em Sao Paulo, da Catedral de Brasilia, da sede do Partido Comu- nista Francés, da redacdo do jornal L'Humanité em Paris e do Centro Cultural de Le Havre. E a liberdade criadora do traco convertido em volume que resume a ultima contribui 4 Praca dos Trés Poderes, o simbolo da pomba branca — da paz — no Pantedo da Liberdade e da Democracia (monumento a Tancredo Neves), terminado recente- mente. Plasticidade que alcanca uma dimensao urbanistica no Memo- rial da América Latina (1989), realizado na metropole paulistana. Outro componente é a caixa vazada, na independéncia entre sus- tentacdo-cobertura-elementos interiores. Essa solucéo comegou nos palacios de Brasilia, cuja expressdo mais elaborada se obtém no Itama- raty, reaparece na Mondadori de Mildo e termina nas escolas pré-fabri- cadas do Rio de Janeiro (1985), projetadas para um plano popular ma- cico do governador Brizola. Esquema que tem proje¢ao nacional ao rei- terar-se nas obras de outros arquitetos: por exemplo, é a mesma solucao alcancada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Sao Paulo (1961-69) e nos vestiarios do Sao Paulo Futebol Clube (1961-63), de Vilanova Artigas, ou na casa particular (1964) e na Esta- ¢40 Rodoviaria de Goiania (1986), de Paulo Mendes da Rocha. Em todas elas, 0 sistema de projeto responde a um principio similar: definem-se os limites externos, depois estes sao tornados mais leves até serem conver- tidos numa mera superficie vertical, continua ou perfurada e acima do solo, a fim de permitir a continuidade do plano basico de apoio. Poste- riormente, organizam-se as funces internas a partir de elementos pla- nos ou volumétricos que nao impedem a livre comunica¢ao dos espacos. Por fim, gradua-se a luz filtrada através dos vaos ou cai zenitalmente das aberturas nos tetos. Resultado: um persistente ‘‘passeio arquitet6- nico’’ ao longo de ambientes, reais ou virtuais, caracterizados pelas infinitas variacdes de luminosidade. 7. As realizagies no mundo antilhano Nas ilhas do Caribe, a presenca dos postulados do Movimento Moderno tem forca menor do que no Continente. De um lado, isso se deve ao fato de que os vinculos com a Europa so menores do que os existentes com os Estados Unidos, pais a que a incidéncia do racio- 184 See 2 Rs See Faculdade de Arquitetura da Universidade de Sao Paulo, Brasil, 1962 Arq. Joao Batista Vilanova Artigas. Foto Hug Segawa Detalhe do interior da Faculdade de Arquitetura. Foto Hugo 185 Jockey Club de Goiania, Brasil, 1963. Arq. Paulo Mendes da Kocha. Foto Hugo Casa Fernando Millan, Sao Paulo, 1970. Arq. Paul a Mendes da Rocha. Foto Hugo Segawa. 186 nalismo chega tardiamente e se faz sentir com alguma projecdo inter- nacional, quando se concretizam as obras dos Mestres emigrados de- vido ao advento do nazismo. Referimo-nos a Walter Gropius, Moholy Nagy, Marcel Breuer, Richard Neutra, Mies van der Rohe etc. Tam- pouco existem condi¢ées politicas ou econdmicas que facilitem a exe- cucdo de planos estatais de escolas, casas, hospitais ou outros servicos sociais, 0 que teria fundamentado a adocao das solucdes macicas pro- postas na Europa. Contudo, apesar de os cédigos do racionalismo ortodoxo serem assimilados em termos de ‘‘moda’’, em casas de luxo ou em alguns edi- ficios puiblicos, ha algumas exce¢ées significativas. E pouco conhecida a realizacdo do concurso para o Farol de Colombo, em Sao Domingos, no ano de 1930, do qual participaram mais de uma dezena de arquitetos soviéticos do movimento construtivista, entre os quais figurava Kons- tantin Melnikov. Richard Neutra viaja para Porto Rico a fim de parti- cipar dos planos do governo norte-americano tendentes a melhorar as condig6es sociais da ilha. Posteriormente, visita Cuba, para construir a residéncia Schultess, em Havana (1957). Alguns jovens arquitetos sentem-se atraidos pelos movimentos de vanguarda e tém a possibili- dade de experimentar, dentro dos cddigos do racionalismo. Na Rept- blica Dominicana, encontra-se Guillermo Gonzalez, um dos pioneiros do racionalismo caribenho; em Porto Rico, Henry Klumb, discipulo de F.L. Wright, orienta-se para uma sintese das formulacées de ambos os mestres, que se materializam nas novas construcdes da Universi- dade de Porto Rico, em Rio Piedras; em Cuba, nos anos 50, um grupo de arquitetos propée vincular as correntes da ‘‘modernidade’’ interna- cional com a recupera¢do das tradicdes locais (cabe citar Max Borges, Mario Romafiach — que constrdi sua bem-sucedida casa Noval, em Havana — e Frank Martinez, autor da casa Farfante). Uma generalizacao dos cédigos formais e espaciais baseados nos esquemas volumétricos simples, no uso de tecnologias pré-fabricadas, na racionalidade das estruturas funcionais é alcangada em Cuba a par- tir do triunfo da Revolucdo, em particular na década de 70, quando se desenvolve um ambicioso plano de construces escolares, dentro de uma concepcdo sistematica que engloba todos os niveis educacionais, desde o jardim-de-infancia até a escala das cidades universitarias. Para isso, deve-se enfocar o problema com base numa organizacdo modular dos componentes funcionais que se reiteram tanto no edificio como em sua repeticdo em escala no pais. A equipe de projetistas enfrenta as solucdes num processo dialético de inter-relagao entre os componentes 187 A tropicalizacio dos componentes lecorbu- sieranos, Casa Noval, Havana, Cuba, 1952 Arqs. Mario Romafiach ¢ Silverio Bosch: Casa Noval, Havana, Cuba, 1952. 188 em série, a liberdade distributiva e a articulacdo espacial dos mesmos. oO uso da topografia do terreno, o tratamento da cor e de esquemas graficos e plasticos permitem que seja estabelecida uma identificacao de cada escola, apesar dos elementos constantes da composicao. No cabo de uma década, foram construidas mais de setecentas escolas, utilizando o sistema estrutural pré-fabricado ‘‘Giron’’. Entre as obras mais signi- ficativas, sobressaem a Escola Vocacional V.1. Lenin (1972), de Andrés Garrudo, e a Escola Vocacional Maximo Gomez (1976), de Reynaldo Togores. A transcricao simbélica em termos estéticos dos elementos pré- fabricados para recuperar os atributos identificadores da espacialidade latino-americana (a desintegragao da caixa limite, a livre articulacado interior dos componentes funcionais e a inter-relacdo do edificio com a natureza) esta presente em trés obras que caracterizam as pesquisas formais e espaciais da década de 70, em Cuba: no restaurante Las Rui- nas do Parque Lenin (1972), nos arredores de Havana, realizado por Joaquin Galvan; no Palacio de Convencées (1979), de Antonio Quin- tana; e na Embaixada de Cuba na Cidade do México (1977), de Fer- nando Salinas. Nelas esta presente a légica construtiva que emana da pré-fabricacdo, produzindo-se um processo de estetizacdo dos compo- nentes técnicos e funcionais, até transforma-los em portadores de uma mensagem simbélica dos valores culturais préprios criados pela ‘‘mo- dernidade’’ implicita no processo revolucionario. 8. Realismo tecnolégico e expressdo pottica Se o Movimento Moderno colocou num mesmo nivel a solugéo dos problemas ‘‘ambientais’’ da sociedade e sua qualificacdo estética, é possivel afirmar que, na América Latina, situam-se no eixo da conti- nuidade dos valores iniciados pelo racionalismo algumas propostas que privilegiam as alternativas baseadas na tecnologia avancada. Trata-se da obra de arquitetos e engenheiros, sensibilizados pelos valores estru- turais, que concentraram sua criatividade em solucées formais e espa- ciais que surgem da légica inerente 4 produ¢do em série, aos materiais disponiveis, aos recursos econémicos, 4 m&o-de-obra artesanal e as exi- géncias funcionais e tematicas. O arquiteto espanhol radicado no Mé- xico Félix Candela é o iniciador do uso das estruturas leves de con- creto — os paraboldides hiperbélicos — como elementos definidores 189 Embaixada de Cuba na Cidade do México, 1977. Arq. Fernando Salinas. 190 dos espacos das fun¢des sociais. Dentro,dessa alternativa situamos o professor uruguaio Eladio Dieste e os brasileiros Joan Villa e Joao Fil- gueiras Lima (Lelé). Especializados no tema da habitacdo, que anali- saremos em capitulos posteriores, citemos o colombiano Alvaro Or- tega, o argentino Fermin Estrella Gutierrez, 0 venezuelano Fruto Vi- vas e o cubano Fernando Salinas. Eladio Dieste levou até suas ultimas conseqiiéncias 0 uso do tijolo para construir leves cascas estruturais. Estudioso das técnicas avan- cadas aplicadas no mundo desenvolvido, propés-se trasladar a base conceitual, os principios tedricos das estruturas leves e aplica-los com Os recursos materiais existentes no mundo subdesenvolvido. O resul- tado foi a desmaterializa¢ao de espacos, delimitados por laminas de tijolo que levitam milagrosamente, alheias aos rigorosos e iniludiveis princi- pios da estatica. Sua paixdo obsessiva pela reducdo dos custos, 0 em- prego minimo dos materiais e 0 vinculo estrutura-forma resultante le- varam-no a solucionar a maioria dos projetos com o tijolo aparente: encara da mesma maneira as coberturas de um armazém, uma torre para caixa-d’dgua ou o projeto total de uma igreja, como ocorreu em Atlantida, Uruguai (1958). Joao Filgueiras Lima (Lelé) tem uma paixdo similar pelo concreto armado. Também decidiu reduzir os custos, realizar elementos tipi! cados e em série, converter em laminas, de formas e espessuras varia- veis, o pesado e amorfo material pétreo. A partir dos antecedentes formulados por Pier Luigi Nervi, que amadureceu as técnicas produ- tivas e de desenho do ‘‘ferrocimento’’, estudou os componentes meta- licos para reduzi-los a uma malha leve e com eles definiu um material flexivel, econ6mico e adaptado a multiplas exigéncias tematicas e for- mais denominado ‘‘argamassa armada’’. Sua participacdo nas obras de Brasilia e suas experiéncias em edificios de grande porte — o projeto de varios hospitais pré-fabricados e o centro administrativo de Salvador, Bahia — levaram-no a busca de solucdes generalizaveis para o tema do mobilidrio urbano e da arquitetura escolar. Um tema importante em suas pesquisas foi a solugdo dos problemas infra-estruturais das favelas nos morros de Salvador, para os quais criou sistemas de canalizacdes de Aguas servidas combinadas com as escadas de acesso as casas. Seus tetos para os pontos de énibus, disseminados pelas ruas do Rio de Janeiro e de Salvador, convertem um componente quase sem importancia da paisagem urbana numa forma escultérica aerodinamica. Por outro lado, suas leves estruturas para edificios escolares — circulos infantis e esco- las primarias — permitiram situar essa funcao nos bairros humildes 191 192 Mobilidrio urbano de argamassa armada, Rio de Janeito ¢ Brasilia. Arq. Joao Filgueiras Lima Edificio de escritérios no Centro Administrativo de Salvador, Bahia. Arq. Jodo Filgueiras Lima 193 mais diversos de Salvador e do Rio de Janeiro, sem renunciar a uma cuidadosa elaboracao dos componentes formais: constituem um exem- plo representativo as unidades de Abadiania, em Goids, e de Pituacu, Nova Brasilia e Baixo da Egua, em Salvador, Bahia, obras realizadas na década de 80. Em resumo, a parabola iniciada pela presenca dos codigos racio- nais na América Latina, originalmente orientados para pesquisas for- mais, tem continuidade nos anos recentes na busca de solucées cienti- ficas para os graves problemas que afligem os habitantes da regiao, sem renunciar 4 expressio dos valores culturais que constituem a identi- dade latino-americana. 194

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