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Sumário

Algures, em fevereiro de 2040 5

Granja Viana, no primeiro dia de março de 2040 9

Osasco, 5 de março de 2040 13

Bom Jesus dos Perdões, 8 de março de 2040 17

Caetité, 12 de março de 2040 21

Ibiúna, 15 de março de 2040 25

Sepetiba, 19 de março de 2040 29

Itapoá, 22 de março de 2040 33

Valinhos, 24 de março de 2040 37

Carapicuiba, 26 de março de 2040 41

Magé, 29 de março de 2040 45

Valparaíso de Goiás, 31 de março de 2040 49

Agreste, 02 de abril de 2040 53

Gama, 04 de abril de 2040 57

Arraial d’Ajuda, 05 de abril de 2040 61

Mafra, 06 de abril de 2040 65

Jardim Botânico, 07 de abril de 2040 69

Piracanga, 08 de abril de 2040 73

Recanto das Emas, 09 de abril de 2040 77

Pau dos Ferros, 10 de abril de 2040 81



“Escolas são pessoas,
não são edifícios.”
José Pacheco
Volu
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e

“Eu estou sempre a renascer. Cada


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nova manhã é o momento de
recomeçar a viver.”

Pablo Casals
Algures, em Fevereiro de 2040

Queridos netos,

Esta deveria ser a derradeira carta de um já extenso rol. Mas será


a primeira de um novo ciclo e espero que tenhais paciência para
partilhar memórias deste idoso e resiliente educador.

Pela sua leitura, concluireis que, como escrevi no livrinho para o


Marcos1, os projetos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam
resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos paralelos.
Súbitos reencontros nos mostram que esses projetos também se
alimentam de ocultas solidariedades. Será verdade que andam
anjos pela Terra?

Também confirmareis que, como no livrinho para a Alice2, eu


deixo as histórias por completar, porque tudo o que é predito é
da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não
1   Para Alice, com amor. São Paulo, Cortez Editora.
2   Para os filhos dos filhos dos nossos filhos. São Paulo, Papirus.

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cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o
gesto. Porque tudo o que é previsível estiola. A vida é um constante
recomeço, sem princípio nem fim.

Nas próximas cartas, contar-vos-ei o que aconteceu após o dia 7


de abril de 2020. Por agora, apenas vos direi o que senti, quando,
há cerca de trinta anos, visitei um hospital de crianças3, onde
a humanização da saúde e da educação acontecia. Numa das
enfermarias, uma professora estava sentada ao lado de uma cama
e lia um livro para uma criança recentemente operada. Enquanto
os enfermeiros mudavam o penso, a professora afagava os cabelos
da chorosa criança. Respirava-se carinho. Todos se conheciam.
Todos eram chamados pelo nome. Quem era o médico? Quem era
o voluntário? Quem era o educador?

Chucran! – é o mesmo que “obrigado”, mas em libanês. No hospital,


o Rafael descobria as suas raízes culturais. A mãe, de véu cobrindo
os cabelos e o rosto, estudava a história da terra onde nasceram. E a
professora ensinava português ao Rafael, enquanto a mãe do Rafael
ensinava libanês à professora. Num recanto entre duas enfermarias,
um pai ajuda o seu filho a preparar uma pintura, enquanto um
voluntário muda a garrafa do soro. Eram curadas as mazelas do
corpo e as do espírito.

O Luís tinha quatro anos. Vivia no hospital quase desde o dia em


que nascera. Sofria de doença degenerativa. Só conhecia o mundo
lá de fora através da janela da enfermaria e através do mundo
que as professoras lhe descreviam. A sua melhor amiga contraíra
pneumonia e morrera. O Luís quebrou um silêncio de vários dias:

Por que é que a Carol nunca mais veio brincar comigo?

A voluntária encostou o rosto do Luís no seu colo. Um longo afago

3   Dicionário das Utopias da Educação. Belo Horizonte, WAK.


foi a resposta. E eu evoquei o último capítulo do “Pequeno Príncipe”:

Agora já me consolei um pouco. Sei que voltou ao seu planeta;


pois, ao raiar do dia, não lhe encontrei o corpo. Não era um corpo
tão pesado assim...

O vosso avô estava perto da morte e tão perto da vida! Como era
possível tão pouco espaço conter tanta humanidade?

Envio-vos esta carta, após ter tomado a decisão de manter viva


esta troca epistolar e enquanto escuto o velho Bobby McFerrin
entoando o “Arioso” de Bach. E vos deixo com palavras do saudoso
Pablo Casals: Eu estou sempre a renascer. Cada nova manhã é o
momento de recomeçar a viver. Há oitenta anos que eu começo
o meu dia da mesma maneira – e isto não significa uma rotina
mecânica, mas algo de essencial para a minha felicidade, uma
maneira de retomar o contacto com o mistério da vida.

Com Amor,

O vosso avô José.


Volu
me

“O professor era tão aprendiz quanto


I

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e

o estudante. E a ausência da palavra


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aula era de fato a expressão da
ausência dela. Não existe aula, mas
construção de conhecimento.”
Josineide
Granja Viana, no primeiro dia de março de 2040

Neste dia de há exatos vinte e nove anos, falecia o meu amigo Walter
Steurer. Chamo-lhe amigo, mas poderia chamar-lhe irmão, porque
irmanados num mesmo propósito: salvar vidas de jovens. Foi isso
que o amigo Walter me pediu, em 2007, quando nos conhecemos.
Disso dá conta a carta, que me enviou em dezembro de 2008:

Caro amigo, Professor José Pacheco,

Quando nos encontramos, em 2007, naquele Encontro de


Educação, no Projeto Âncora, conversamos sobre nosso sonho
de fazer da entidade uma escola, uma escola como sonhamos
e sabemos que é possível existir. Na ocasião, você nos disse que
poderíamos contar com sua assessoria. Achamos que a hora
está chegando. Ano que vem, poderia ser o ano de organização
dessa escola, para, em 2010, começarmos a funcionar. Uma escola
modelo para Cotia, escola a ser seguida pelas escolas públicas da
região e, por que não, também as particulares.
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Será que poderíamos conversar sobre isso? Começar a sonhar a
realidade? Começar a construir o sonho? Marcamos um encontro?
Aqui, ou em sua cidade? Quando? Podes escolher. Aguardo ansioso
e esperançoso.

Receba meu abraço fraterno e os votos de Boas Festas.

Walter Steurer, Projeto Âncora.

Quando perguntei ao Walter por que queria que eu o ajudasse a


fazer a escola dos seus sonhos, respondeu:

Aqui, nós só fazemos contraturno de escola. Mas é como tentar


enxugar gelo. Estes jovens praticam desporto, fazem formação na
oficina de circo, aprendem música, ou como se faz um mosaico.
Mas, no dia seguinte, depois de passarem pelas suas escolas,
chegam iguais ao dia anterior e perdem-se. Eu quero salvar a vida
desses jovens. E só com uma escola isso será possível.

Alguns anos mais tarde, a minha amiga Josineide publicou um


resumo da sua dissertação de mestrado, a obra “Escola Projeto
Âncora – Uma Ponte para a Inovação Pedagógica no Brasil”. Ontem,
quando arrumava a biblioteca, encontrei esse livro. E nele li: É uma
prática que corrobora com o desenvolvimento do estudante,
através do incentivo na visão do ser social, do que se podia fazer
pelo outro e com o outro; das habilidades e valores que poderiam
servir de alicerce para o desenvolvimento da construção do ser
humano presente em cada estudante da Escola Projeto Âncora (...)
O professor era tão aprendiz quanto o estudante. E a ausência da
palavra aula era de fato a expressão da ausência dela. Não existe
aula, mas construção de conhecimento. (…) E a sua construção foi
fundamentada em autores brasileiros, sendo respeitada a cultura
do país (…) Uma ruptura! Há Inovação. Assim mesmo, com letra
maiúscula…
No início de 2011, a Regina me comunicava estar o seu marido muito
doente. No primeiro dia desse mês, o meu amigo perdia a sua luta
contra um câncer. No leito de morte, dissera à Regina: Pede ao
Professor Pacheco que venha fazer uma escola.

Com a Cláudia, tomei a decisão de me mudar de Minas Gerais


para São Paulo. Fizemos parte de uma equipe de extraordinários
educadores, ajudando a erguer um projeto, que viria a ser
considerado um dos melhores projetos, que o Brasil e o mundo
já viram. Durante quatro anos, fui educador voluntário no chão
da Escola do Projeto Âncora. E o sonho de um homem bom virou
realidade.
Volu
me
I

I
e

“Quem prende a água que corre


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É por si próprio enganado
O ribeirinho não morre
Vai correr por outro lado.”
Aleixo
Osasco, 5 de março de 2040

Como vos disse, o sonho de um homem bom havia sido concretizado


e, em 2015, a Escola do Projeto Âncora viria a ser considerada por
curadorias internacionais como uma das melhores escolas do
século XXI. Porém, no início de 2020, as redes sociais faziam eco da
sua agonia e morte. Um veemente apelo ecoava nas redes sociais:
Reconhecida internacionalmente como escola inovadora, que
serviu de inspiração para muitas outras escolas, o Projeto Âncora
pede socorro!

Ainda guardo comentários à situação do Âncora “postados” no


facebook: Rezo baixinho, mas cheia de convicção, a famosa oração
dos alquimistas «Meu Deus, liberta-nos da horrível escuridão da
nossa mente, ilumina os nossos sentidos». Já não tenho a certeza
que a ciência e a inovação resultantes do espírito investigador do
ser humano se manifestem em toda a espécie Homo sapiens...

Um Mário solidário versejava: Zé, pois é, meu irmão / Por falar em


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educação / Será que temos salvação? / Não diga adeus, ainda
não / Incomode um pouco mais / Os acomodados de plantão / E
viva com rima: Lauro de Oliveira Lima / E um salve, sem lamento:
À Barsanulfo de Sacramento / Mineiro como Sebastião Rocha e
Rubem Alves… A Janaina lembrava que escolas não são edifícios,
que são pessoas e pessoas são seus valores. O Wilson e o Guga
acrescentavam que escolas são pessoas e não as instalações físicas.
E o Sérgio concluía: Esse momento do atual Âncora caiu pra mim
como uma bigorna cai na cabeça. Mas seguimos esperançosos!
Falo no plural, porque temos um núcleo hoje na escola, da qual
a Kelly vem transmitindo saberes e indagações vindas do escolas
transformadoras. Vira e mexe, a gente toma uma acusação de
estarmos querendo ser “moderninhos”, mesmo usando ciência da
educação do Brasil e do mundo já produzida há décadas!

Uma Simone “brasileira, inovadora e gratuita”, como se descrevia,


assim falava: Essa é a escola Projeto Âncora. Iniciativa linda,
que impactava muitas crianças e suas famílias, ensinando o
protagonismo juvenil, o senso de comunidade, a resolução de
conflitos, uma aprendizagem eficiente e para a vida. Mas para
quê? Para termos brasileiros questionadores, críticos, pensantes! E
é isto que está acontecendo. Um exemplo que deveria ser seguido,
espalhado pelo Brasil todo, está morrendo por falta de verba. E o
que podemos fazer? Sinto-me tão impotente, tão só, tão pequena…

A uma distância de vinte anos, ainda é necessário lembrar tempos


sombrios, para que nunca mais projetos humanizadores pereçam,
para que não se repitam criminosos atos. Uma corrente de apoio se
formava, porém, impotente para obstar à destruição de uma escola,
que, na verdade, não estava morrendo somente por falta de verba,
mas por outros motivos. Em Cotia, o assistencialismo e a ignorância
tinham vencido, mas a “alma” do projeto habitava nos educadores
de uma bela equipe, a que eu tive a honra de pertencer. E, como
vedes, a esperança não morreu. Em 2040, se concretiza o que
escrevi para o Marcos, no início do século – Para os filhos dos filhos
dos nossos filhos (São Paulo, Papirus) – no livrinho que a Janaína
transformou numa bela peça de teatro.

Queridos netos, não penseis que o projeto perecera. O que fora o


sonho do amigo Walter, apenas mudava de endereço: o Projeto
Âncora migrava para São Paulo, para todo Brasil, para o mundo...
Porque, como diria o poeta Aleixo, quem prende a água que corre
/ é por si próprio enganado / o ribeirinho não morre / vai correr por
outro lado.
Volu
me
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“Por mais que haja sucessos e fracassos, concordâncias


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e discordâncias, sempre terei fé nos que se abrem para
a transformação ocorrer, do que nos que nos erguem
barricadas e nos atacam com canhões de fofocas,
assédio moral, desmotivação, retaliações e outras coisas.”
Sérgio
Bom Jesus dos Perdões, 8 de março de 2040

Transcrevo parte de uma carta recebida do amigo Sérgio, vinte anos


atrás. Entre Bom Jesus dos Perdões e Atibaia, se gestava um dos
mais belos projetos de que vos dou notícia. E o Sérgio pressentia
que a maldade humana rondava aquele lugar.

Assisti a criação do Projeto Rosende. Já conhecia a Janaina, passei


a conhecer Eulália, Matoso, Ana e outros... Uma luta admirável. O
problema é que “quem é contra” sempre quer resultados mágicos
e rápidos (que a escola velha e carcomida nunca sonhou em dar).
Assisti a ataques vindos de professores de dentro, de outras escolas
(um dia alguém precisará explicar a burrice que é escolas públicas
competindo) e de secretários... Pude ir, uma vez, dar uma oficina e
ver como transformações são incrivelmente difíceis, porque exigem
que as pessoas que as propõem já estejam mudando a si mesmo.

Por mais que haja sucessos e fracassos, concordâncias e


discordâncias, sempre terei fé nos que se abrem para a
17
transformação ocorrer, do que nos que nos erguem barricadas e
nos atacam com canhões de fofocas, assédio moral, desmotivação,
retaliações e outras coisas. Por fim, me desculpo. É uma necessidade
de “dialogar” e diminuir a solidão que me bate, quando estou entre
os adultos, na escola. Espero que não esteja sendo um estorvo. É
a forma de eu tornar viva a rede social que sempre prima pelo
diálogo ultra superficial.

Abraço.

De Atibaia onde vivo... De Perdões onde semeio...

O Sérgio semeava em terreno fértil, mas consciente dos obstáculos.


Sabia que, se o maior aliado de um professor é o outro professor,
também sabia que o maior inimigo de um professor ético, é… o
outro professor.

Isso acontecia num tempo em que deputados propunham que se


acabasse com o regime de ciclos e com a progressão continuada.
Não sabiam que nunca os ciclos foram concretizados (os manuais
dirigiam-se apenas a “ano de ciclo”). E que a progressão continuada
não poderia ser extinta, porque nunca havia sido posta em prática
(apenas se praticara “aprovação automática”).

Enfim! O sistema educativo permanecia dependente de decisões


de políticos ignorantes e infestado de corrupção intelectual
e moral. Nesse tempo de novas inquisições, prosperavam os
fundamentalismos. Acontecia a perseguição daqueles que, como o
Sérgio, amavam a infância e buscavam caminhos de humanização
da escola.

Talvez sem que o soubesse, o Sérgio fazia eco de palavras do Lauro,


que, na década de sessenta do século passado, na sua obra “Escola
no Futuro”, assim se manifestava: Não esqueçamos o exemplo de
duas professoras, publicamente expulsas de uma cidade paulista,
porque tiveram a ousadia de, na cadeira de Biologia, referirem-se
às teorias evolucionistas de Darwin! Uma senhora veio à imprensa
carioca denunciar o fato altamente periculoso de professores
permitirem que os alunos estudassem estilística comentando
obras “pornográficas” como as do Jorge Amado.

Queridos netos, em 2040, não restam vestígios desses tempos


sombrios. Vivemos num mundo que aprendeu com os erros do
passado. Mas vos asseguro que, há cerca de vinte anos, assistíamos
a aberrações idênticas àquelas que o Mestre Lauro descrevia.

Séculos atrás, o Papa Pio V havia criado o Index Librorum


Prohibitorum, um índice dos livros proibidos. No Brasil de 2020,
ocorria algo semelhante, enquanto se proclamava que a Terra
era plana. Talvez até assistíssemos ao ressurgimento do medieval
trivium ou do quadrivium… Por mais inverosímil que vos possa
parecer, o espírito da Idade Média da Educação ressurgira, erguera-
se do túmulo, na segunda década do século XXI.
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“A educação de um povo somente em


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partes se faz pelas suas escolas.”

Anísio Teixeira
Caetité, 12 de março de 2040

Ontem, completaram-se 69 anos sobre o dia em que Anísio Teixeira


foi assassinado. Como não é por acaso que há acasos, estou em
viagem, prestes a chegar a… Caetité. Isso mesmo: irei revisitar a
casa onde Anísio viveu os últimos anos da sua vida. Visitei-a quando
adentrei os cafundós da educação baiana, no início deste século.
Passei longas e saborosas horas lendo livros da biblioteca que Anísio
nos deixou. Num desses livros, Anísio falava-nos de um “divisor de
águas entre duas “mentalidades, que se defrontavam no Brasil: de
um lado, os que, explícita ou implicitamente, não acreditavam no
Brasil, e de outro, os que achavam que a nação se poderia redimir
pela educação.

As escolas do passado eram cemitérios de talentos, túmulos de


inovadores. A escola absorvera funções tradicionais da família e da
vida comunitária e que à vida comunitária deveria ser devolvida,
dado que, nas palavras do mestre, “a educação de um povo somente

21
em parte se faz pelas suas escolas”.

O malogrado Mestre pugnava por uma nova escola, que


substituísse aquela que reproduzia formas arcaicas de ensino
pela “exposição oral” e “reprodução verbal”. Uma nova escola,
irmanada com outras instituições de transmissão da cultura,
“em uma comunidade altamente complexa e de meios de vida
crescentemente especializados”. Lauro tinha publicado a obra
“Escola da Comunidade” e era de comunidade de aprendizagem
que o mestre Anísio, a seu modo, nos falava.

Anísio estava consciente de que não poderíamos continuar


estrangulados numa camisa de força legal, graças à qual “alterar
a posição de uma disciplina no currículo ou diminuir-lhe ou
aumentar-lhe uma aula fosse considerada uma ‘reforma de
ensino’”. Mas, os regulamentos das secretarias da educação estavam
concebidos para manter o statos quo. No mundo da educação de
há vinte anos, imperava o tráfico de influências, a corrupção e a
“incompetência especializada”, reforçadas pela indiferença de
uma sociedade civil manipulada. O problema era estrutural, não
era meramente conjuntural. Funcionários movidos por Interesses
corporativistas e outros obscuros interesses haviam conseguido
que a corrupção também penetrasse na… Educação.

Uma secretaria citava Anísio no documento orientador da política


educacional do estado (“Currículo em Movimento”). Mas o currículo
imposto pela secretaria impedia o movimento, estava parado no
tempo. Os funcionários dessa secretaria chamavam “escola classe”
e “escola parque” – conceitos criados por Anísio – a alguns prédios
que, nesse tempo, eram considerados “escolas”. Mas as práticas
desenvolvidas dentro desses prédios eram contrárias à proposta
do Anísio da “Escola Nova”. Anísio postulava que o aluno deveria
ser o centro do processo de aprendizagem, mas a administração
educacional impunha às escolas práticas instrucionistas, nas quais
o centro era o… professor.

A escola-classe, que Anísio tentou instalar em Brasília, em meados do


século passado, foi rechaçada, em abaixo-assinado, pela população
de um bairro de classe média alta, com o apoio da administraçao.
E, nesse já distante 2020, os burocratas instalados nas secretarias
da educação assassinavam projetos que, concretizados, tornariam
realidade o sonho escolanovista e assegurariam a todos o direito
à educação. Impunemente, a burocracia perpetrava o segundo
assassinato de Anísio Teixeira: a morte da memória.
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“Que as escolas não eram prédios, mas


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pessoas, e que as pessoas deveriam agir
solidariamente, em comunidade.”

José Pacheco
Ibiúna, 15 de março de 2040

O início de década de vinte ficou conhecido pelo tempo do vírus


corona. Perante medidas como o cancelamento das aulas, o ministro
da saúde manifestava preocupação: a liberação das crianças,
potenciais vetores de transmissão, exporia ainda mais um dos
principais grupos de risco: os idosos. A covid-19 preferia dizimar,
prioritariamente, pessoas com mais de 60 anos, pessoas como o
vosso avô.

Alguns especialistas recomendavam que crianças e adolescentes


evitassem o contato com parentes acima dos sessenta anos. Mas, se
os pais teriam de ir trabalhar, amorosamente, os avós se expunham
ao contágio. Quem iria cuidar das crianças, que não iam à escola, na
ausência dos pais? Os avós!

O vírus demonstrava que, com ou sem escola-gueto de crianças,


nunca os avós deveriam ser separados dos netos. O vírus ensinava
que jamais a relação entre as duas gerações deveria ser interrompida.
25
Que a educação era tarefa conjunta da escola, da família e da
sociedade. Que as escolas não eram prédios, mas pessoas, e que as
pessoas deveriam agir solidariamente, em comunidade.

Por esse tempo e para os lados de Ibiúna, andava a minha amiga Mila
em busca de ajuda para a sua equipe de projeto. Talvez não tivesse,
de imediato, entendido que a ajuda não viria de teóricos e áulicos e
que o seu maior mestre e aliado era o covid-19. A mensagem que o
vírus deixava aos mortais era a melhor das ajudas.

A ameaça global requeria solidariedade global. Exigia que as


pequenas diferenças se tornassem insignificantes. A humanidade
não precisaria de passar por nova provação, para se permitir repensar
o modelo de escola, que, nesse tempo, era hegemônico e que
havia sido afetado pelo vírus da corrupção intelectual e moral. Eu
queria acreditar que a Mila – inteligente e sensível, como qualquer
professora – acabaria por entender a mensagem.

Outro educador sensível, o meu amigo André, havia inoculado


outro “vírus” na sua prática – o vírus da mudança – que levaria a
sua prática muito para além da escola instrucionista criada pelos
estados-nação europeus do século XIX. O André se iniciava em novas
práticas, anunciadoras de uma sociedade solidária e de cooperação
global. E sofria por escutar alunos manipulados por uma mídia
irresponsável e por práticas escolares, que fomentavam o egoísmo
e múltiplas ignorâncias: Professor, vou jogar álcool gel na caixa
d’água lá de casa. Quando tomar banho e lavar as mãos, vou
matar o vírus. Professor, ontem, eu limpei meu celular por causa
desse vírus. Pinguei água e um pouco de detergente e limpei com
papel. Ele tá funcionando normalmente.

Era esse o nível de preparo científico que a escola de então promovia.


Porém, discretamente, um imenso potencial humano se revelava.
Porque esses tempos de crise eram, também, tempos de novas
oportunidades. O quase centenário Edgar Morin assim resumia a
situação: A sociedade produz a escola, que produz a sociedade.
Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade?
Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola? E o
meu amigo António Nóvoa afirmava que o bem da humanidade
ia muito para além dos interesses e benefícios pessoais. Que
nada poderia ser pensado apenas à luz do tempo imediato, mas
colocado à vista de um futuro, que não dispensava os educadores
das responsabilidades no presente.

Nesses conturbados tempos, houve quem escutasse esses mestres.


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“Porque o otimismo é da natureza do


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tempo e a esperança é da natureza da
eternidade. Aquilo que ousemos fazer
repecurte-se por décadas.”
José Pacheco
Sepetiba, 19 de março de 2040

A leitura da vossa última carta deixou-me a impressão de que


podereis considerar-me um pessimista. Não penseis, queridos
netos, que eu o seja. Mas, também nunca fui otimista. Aliás, o
amigo Rubem dizia-me que o educador não é um otimista, é
um esperançoso. Porque o otimismo é da natureza do tempo e a
esperança é da natureza da eternidade. Aquilo que ousemos fazer
repercute-se por décadas.

Já vos falei do meu amigo André. Mas, nunca será demais evocar
esse extraordinário ser humano, um dos educadores mais amorosos,
que me foi dado conhecer. Sobretudo, quando estou de passagem
por Sepetiba, observando a obra queele nos legou. No tempo do
vírus corona, quando se anunciava o fecho de fronteiras, o André
esperançava: Se o meio ambiente não une os povos, nada como
um vírus para lembrar que não existem fronteiras e que somos
todos moradores da mesma casa. O Torga havia dito o mesmo,

29
mas em verso, há quase um século: de um lado terra / do outro
lado, terra / de um lado, gente / do outro lado, gente…

Para que conste e a memória não se apague, vos falarei de uma


época de fronteira físicas e de outras mais sutis, de um tempo
em que o diálogo escasseava. E recorrendo, mais uma vez, a
mensagens recebidas do amigo André: Se nós não nos cuidarmos,
vamos adoecer psiquicamente e perder o equilíbrio e praticar uma
comunicação agressiva com quase todas as pessoas do nosso
convívio. Precisamos acalmar o nosso coração e sermos mais leves
e mais maduros. O ódio cega e nos aprisiona. O caminho não é
responder com o ódio. É responder com amor. Ser crítico, mas sem
adoecer e sem colocar os problemas do mundo nas nossas costas.
A não-violência só será estabelecida na sociedade, quando nós
pararmos de nos violentar e de nos agredir. Não estamos lidando
apenas com ameaças virais — outras catástrofes já estão surgindo
no horizonte: secas, tempestades fora de controle…

Na mitologia grega, Gaia é o nome da deusa da Terra, companheira


de Urano (Céu) e mãe dos Titãs (gigantes). É a personificação do
planeta Terra, que é representada como uma mulher gigantesca
e poderosa. Em homenagem à deusa grega, a Teoria de Gaia
(também conhecida como “Hipótese de Gaia”) descreve a Terra
como um organismo vivo com capacidade para manter e alterar
suas condições ambientais.

A “Hipótese Gaia” dizia-nos que a biosfera e os componentes físicos


da Terra estavam intimamente integrados, formando um complexo
sistema, que mantinha as condições climáticas em homeostase.
As reações do planeta às ações humanas não seriam mais do que
respostas autorreguladoras desse imenso organismo vivo. Porém,
nesse conturbado tempo, sozinha, talvez Gaia não conseguisse
resolver a delicada situação. Talvez tivesse que contar com uma
ajudinha dos humanos e com o surgimento de um vírus benigno,
transformador.

A primeira ação de formação “GAIA Escola” decorreu entre julho


de 2015 e julho de 2016, em Brasília. Essa formação de professores
inspirou-se nas práticas da Escola da Ponte e do Projeto ncora,
e contemplou as quatro dimensões da sustentabilidade: social,
ecológica, econômica e cultural.

Decorridos quatro anos, a “Hipótese Gaia” era discutida no Facebook


e as teorias da conspiração surgiam e desapareciam no frenético
ritmo do WhatsApp. Apercebermo-nos de que a humanidade
não havia entendido a mensagem do vírus corona. Foi, então, que
decidimos fazer uma nova formação, uma formação começada
pelo… fazer. E, com educadores como o André, esse tempo feito de
medo e mentira foi, também, tempo de esperançoso recomeço.
Volu
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‘’O mundo demandava uma nova maneira


m

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de nos relacionarmos, um vírus nos oferecia a
oportunidade de conviver na experiência da
dádiva, para resgatar a fluidez da partilha.’’
José Pacheco
Itapoá, 22 de março de 2040

Ao passar pelo local onde, há vinte anos, existia a Escola Zilda Arns,
lembrei-me da minha amiga Carol, que nela semeou humanização.
Esses eram tempos de confinação de crianças em prédios a que
chamavam “escola”.

Arquitetas de novos tempos, a Carol e a Cláudia repensavam o


papel da escola e se preparavam para ressignificar espaços de
aprendizagem no Paranoá e no Itapoá, de modo a que a instituição
cumprisse a sua missão de produzir conhecimento e de reelaborar
cultura, em diálogo com outros lugares de criação cultural. Até que
chegou o vírus corona…

Na semana anterior e na Itália, o arquiteto do Centro Cultural de


Belém, o criativo Vittorio Gregotti, fora a primeira vítima ilustre
da covid-19. Em 2019, nesse CCB se havia reunido um grupo de
educadores, que buscavam alternativas à escola-prédio. E, no mês
de março de 2020, com o alastramento da pandemia e talvez não
33
por coincidência… as escolas-prédios viraram desertos.

Os jovens residentes em condomínios passavam os dias no


interior das suas casas, polegares batendo tecla de ifone e celular.
Ou assistiam a “videoaulas”, prodigamente enviados pelos seus
professores, através da Internet. Por seu turno, aturdidos pela súbita
alteração do seu papel, os professores, refugiavam-se nas suas casas,
passando os dias frente ao computador, na busca de informação
sobre a evolução da pandemia e a exportar os ditos vídeos.

Assim como os prédios das escolas haviam sido guetos de infância,


lugares de suposta segurança, os altos muros do condomínio
pareciam proteger os condôminos de assaltos e vírus. Se alguma
faxineira ainda nele entrasse, todos os objetos tocados eram lavados
e supostamente desinfetados. Se o carteiro entregasse alguma
correspondência, as mãos de quem a recebia eram cuidadosamente
lavadas e passadas por um milagroso protetor em gel.

O mundo demandava uma nova maneira de nos relacionarmos,


um vírus nos oferecia a oportunidade de conviver na experiência
da dádiva, para resgatar a fluidez da partilha. Na cooperação
encontraríamos caminhos de uma nova economia. Mas, parecia que
a humanidade não entendia a mensagem… Nesses idos de 2020,
o vírus de nome “corona” não era o maior dos perigos. Perigosos
eram os vírus do egoísmo e do medo.

As faxineiras e os jardineiros, cuja sobrevivência dependia dos


serviços prestados nos condomínios, foram dispensados. As
manicures e barbeiros entravam em desespero, por não haver mais
clientes para cuidar e já faltar o sustento das famílias. E o egoísmo
e o medo faziam com que já faltasse o álcool em gel e o papel
higiénico nas gôndolas dos mercados…

Na Idade Média, as pestes dizimaram o povo. Mas também mataram


gente da nobreza e do Clero, quando penetraram nos castelos.
Muitas das muralhas de pedra foram substituídas por muralhas
simbólicas. E os residentes em condomínios acreditavam estar
protegidos. Estariam?

Uma narrativa Sufi descreve o modo como havia sido destruída


uma inexpugnável fortaleza islâmica do século XII. Outro conto Sufi
nos avisa de que nem as mais altas muralhas resistem ao desgaste
operado pelo egoísmo e pelo medo.

A Peste ia a caminho de Bagdá quando encontrou Nasrudin, que


lhe perguntou:

Aonde vais?

A Peste respondeu:

Vou a Bagdá, matar dez mil pessoas.

Dias depois, a Peste reencontrou Nasrudin. Muito zangado, o mullah


disse-lhe:

Mentiste-me. Disseste que matarias dez mil pessoas e mataste


cem mil.

A Peste respondeu:

Eu não menti, matei dez mil. O resto morreu de medo.


Volu
me
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e

‘’Quero uma escola que seja iluminada


m

Volu
pelo brilho dos inícios.’’

Rubem Alves
Valinhos, 24 de março de 2040

Gosto de ver nascer o sol, um dos momentos de diário convivo


com o sagrado. Hoje, ao contemplar o nascer do sol e os pássaros
ocupados na costumeira azáfama matinal, recordei outra manhã,
uma manhã radiosa, que coloriu de esperança tempos sombrios
de 2001. O meu amigo Rubem Alves passava alguns dias na minha
casa. E, mais uma vez, o levei a visitar a Escola da Ponte.

Pelo caminho, fomos escutando um concerto para piano. Estacionei


o carro junto à escola, mas dele não saímos. Após escutarmos o
segundo andamento, um reverente silêncio se instalou em nós. Ao
meu lado, visivelmente, emocionado, o Rubem enxugava furtivas
lágrimas. Emocionado já eu o vira, nas nossas visitas ao seu sítio de
Pocinhos de Rio Verde e a Valinhos. Nessas viagens, era o Rubem
quem dirigia. E. sempre que ele parava a viatura, eu sabia que isso
se devia a ter surgido a visão de um ipê. Quando perguntaram a
uma criança quem tinha sido Rubem Alves, a criança respondeu:

37
O Rubem era um homem que gostava de ipês.

O Rubem escreveu no livro “A Escola com que sempre sonhei,


sem imaginar que pudesse existir”: Quero uma escola que seja
iluminada pelo brilho dos inícios. Sempre com o brilho dos inícios!
Como fazem as crianças e os adultos, que não matam a criança que
há em cada um de nós. O Rubem dizia que, quem mata a criança
grande que tem dentro de si, não fica adulto – adultera-se.

Querido Marcos, há quase quarenta anos, no colo do teu pai,


balbuciavas uns sons só aparentemente desconexos. E eu, que estava
longe de ser um entendido na palavra pura, que ainda confundia
uma arenga babélica com a fala transparente, não conseguia traduzir
o teu balbuciar. Este avô, ainda que empenhado no desaprender do
palavrear adulto, deturpava o verbo virginal, confundindo-o com o
linguarejar de adultos tagarelas. Subitamente, fixaste o olhar num
ponto qualquer, como quem depara com o Aleph.

Não interrompi a absorvente contemplação e segui a direção do


seu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano,
protagonizado por um adulto comendo uvas raquíticas e formulando
desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos
erros que desejou não cometer no último dos dias do ano anterior.
Os adultos eram mesmo assim. Viviam viciados no futuro.

Não sei se te recordarás, querido neto, de um livrinho, a que chamei


“Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”. Ele nasceu nessa noite
de passagem de ano e viria a ser transformado numa bela peça de
teatro, pela minha amiga Janaína. Escrevi-o especialmente para ti
e para as crianças agora nascidas. Era como que uma história da
educação contada às crianças, que só terminaria, agora, no tempo
dos filhos dos filhos dos filhos dos vossos pais. No nosso tempo, na
Idade da Educação.
Nesse livrinho, eu recuperava a velha fábula do Adam Férrière.
No início do século XX, esse pedagogo da Escola Nova publicara
um texto com o título “Escola Invenção do Diabo”. E só mesmo o
Diabo poderia inventar uma escola onde se proibia as crianças de
ver o mundo com olhos de inícios. Muitos adultos tinham perdido
essa virtude. No tempo do vírus corona, depois de proclamar o
caos e decretar novas solidões, os adultos pareciam ter perdido a
oportunidade de não se fecharem ao novo e ao imprevisível.
Volu
me
I

“Eu temia que, depois de dissipada a crise, a normose


e

regressasse e não houvesse um ‘novo início’, que os


m

Volu
brasileiros não tivessem entendido a recomendação
do vírus e continuassem a ignorar a necessidade de
mudança no sistema político, no econômico e... no
educacional.”

José Pacheco
Carapicuiba, 26 de março de 2040

No final de março de 2020, a pandemia havia entrado em regressão


em alguns países. Na China, não registravam novos casos de
infetados pelo vírus e mais de metade do total de infectados já
havia recuperado. Todos os sete pacientes tratados num hospital de
Nova Délhi se recuperaram. Numa combinação de medicamentos,
médicos indianos obtinham sucesso no tratamento e pesquisadores
do Centro Médico Erasmus afirmavam ter encontrado um anticorpo
contra o vírus. O plasma de pacientes recém-recuperados podia
tratar outros infectados. Na Coréia do Sul, o número de novos casos
estava diminuindo. Uma avó chinesa de 103 anos se recuperara
totalmente. A China havia fechado o seu último hospital de
tratamento de infetados com o vírus corona. E a Apple reabria todas
as suas lojas da China…

Os noticiários veiculavam essa informação e alguns governantes


brasileiros tomavam decisões responsáveis, como o confinamento

41
nos lares, para suster o contágio. Outros políticos, em manifestações
de irresponsável liderança, ora diziam não haver motivo para
preocupações, ora contribuíam para semear a visão do apocalipse. Se
um bispo afirmava que o desprezo à ciência poderia ser desastroso,
um pastor garantia que ninguém iria pegar coronavírus em um
culto. E enfatizava: Se algum crente botar o pé aqui [no culto], esse
vírus morre.

A crendice desprezava a medicina. Irresponsáveis desdenhavam da


ciência, colocando em risco a saúde da população. A preocupação
com a bolsa de valores parecia maior do que garantir a preservação
da vida humana. Mas, se algo o vírus nos ensinara fora que, após
sair da crise, seria necessário repensar uma economia predatória e
pensar um modelo de economia solidária. Eu temia que, depois de
dissipada a crise, a normose regressasse e não houvesse um “novo
início”, que os brasileiros não tivessem entendido a recomendação
do vírus e continuassem a ignorar a necessidade de mudança no
sistema político, no econômico e… no educacional.

No campo educacional, o Brasil insistia manutenção de práticas


instrucionistas, embora dispusesse de práticas potencialmente
inovadoras. Enquanto, na manhã de hoje, passava pelo Carapicuíba,
me lembrei de que fizera uma visita à Casa Redonda, um dos projetos
de que o Brasil se poderia orgulhar. Na Casa Redonda, convivi com a
alegria espontânea das crianças. Observei-as, enquanto brincavam,
no exercício de uma liberdade que lhes permitia viver seu próprio
tempo. Eram de elevada qualidade as experiências vividas pelas
crianças e propiciadoras de aprendizagens significativas. Já
os gregos da antiguidade clássica sabiam que o ócio é o tempo
necessário para o desenvolvimento da reflexão e da capacidade de
pensar. E uma verdadeira scholé – o “lugar do ócio” – ali acontecia.

No decurso da crise vírica, nas gôndolas de muitos mercados, dois


produtos haviam sumido: papel higiénico e jogos de tabuleiro. O corpo
brincante das crianças, confinado ao espaço do seu lar, se limitava
a sedentárias ocupações. Por força das circunstâncias, o espaço
restrito da casa limitava o brincar de gestos amplos, expansivos.
O brincar restrito a jogos de concentração intelectual contribuía
para consolidar o resultado do uso prematuro do computador. Se
uma criança de tenra idade chorava, ou usava o grito para captar
a atenção dos adultos, de imediato, os progenitores lhe colocavam
na mão, não um clássico brinquedo, mas uma consola de jogos, ou
um celular. E as crianças iam desaprendendo de brincar.
Volu
me
I

I
e

“Tal como o vírus, o sistema de


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ensinagem possuía grande capacidade
de adaptação.”

José Pacheco
Magé, 29 de março de 2040

No tempo em que o COVID-19 se instalava, havia quem contrariasse


conselhos de amigos e governamentais imposições. Jovens
transgressores esgueiravam-se do ninho protetor, para ir “brincar lá
fora”, batendo polegares em computadores. “Turmas” de solitários
seres, reproduziam o modelo escolar. E a “aula” do século XIX
instalava-se nas ruas e nos lares do século XXI.

Apesar dos pesares, o confinamento imposto ajudou a salvar muitas


vidas. E foi, também, oportunidade de conhecer outras vidas, pois
vizinhanças ocultas se revelaram. A solidariedade tomou forma
de mensagens de rede social. Como aquelas que evocarei nesta
cartinha.

A primeira era de leal franqueza e dizia: Professor, por que passa a


vida a escrever? Pouca gente lê e são poucas as minhas colegas
que o entendem. E até se ofendem, quando o professor diz que
não se deve dar aula. Essa professora tentara demover as suas
45
colegas do rame-rame da ensinagem tradicional. Em vão tentou e
colheu desdém. Inclusive, efeitos colaterais da sua solidária atitude
levaram-na até ao divã do psiquiatra... E por aí se quedou a sua
intenção de mudança., que não a da minha amiga Cecília.

A sua vida foi dedicada a inventar modos e lugares de fazer pessoas


sábias, seres humanos felizes. Dotada de uma enorme força de
vontade e de uma amorosidade ilimitada, dera forma a um dos
mais inovadores projetos, que o Brasil conheceu: o Projeto Alto
Independência de Petrópolis.

Quando a Secretaria de Educação, mancomunada com professores


antiéticos, extinguiram o projeto, a Cecília foi semear humanidade
em outros lugares. Dois anos decorridos e em plena crise do vírus
corona, dela eu recebia notícia: Passamos por um momento difícil
com a pandemia do Coronavírus, que acabou mostrando muitas
fragilidades escondidas em rotinas e sistemas, que estão agora
escancaradas para a sociedade. Estas fragilidades deixaram a
todos perdidos, ao se verem em isolamento.

Vejo escolas e secretarias de educação em desespero, com medo


de o currículo sufocar a todos, com o ano letivo atípico. E vejo, a
cada dia que passa, mais e mais estratégias de enviar conteúdo
para casa, em horários marcados para pegar o material na escola,
para estudar com ele em casa (parecendo que só é legitimado
o conhecimento organizado ali), banco de atividades propostas
por professores, separadas por ano de escolaridade, aplicativos,
plataformas...

A psicologia da memória diz-nos que a melhor memória de um


velho é aquela a que chamam de “longo prazo”. Talvez os psicólogos
tenham razão, porque me recordo perfeitamente de, no dia em que
recebi as mensagens da Cecília e do André, ter escutado de uma
casa próxima sons de contenda:

Vai já fazer a tarefa que a professora mandou! Já a mandei. E não


repito! – era a voz de uma mãe preocupada, ordenando à filha que
fosse lesta a cumprir as tarefas, que a secretaria de educação tinha
despachado pela Internet.

Não quero! Já disse que não quero!... Pronto! Já vou! – Eram bem
audíveis os gritos chorosos de mãe e filha, altercando.

Por amor, a mãe da chorosa criança obrigava a filha a engolir


“currículo pronto a vestir”. A “overdose de tarefas de casa” recebida
da secretaria de nada servia, a não ser para manter as crianças
ocupadas. Na sala de aula, os professores fingiam que ensinavam
e as crianças fingiam que aprendiam. No conforto dos lares, as
crianças cumpriam tarefas sem sentido e os pais acreditavam que
elas estavam aprendendo. Tal como o vírus, o sistema de ensinagem
possuía grande capacidade de adaptação...
Volu
me
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e

“Porém, aconteceu o inadiável. Educadores conscientes


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desse risco decidiram não esperar pela pandemia
seguinte. Conceberam uma nova Educação, criaram
uma nova Escola onde, realmente, se aprendia a
aprender, aprendia a ser e a... conviver.”

José Pacheco
Valparaíso de Goiás, 31 de março de 2040

Queridos netos, esta cartinha contém a transcrição de mensagens,


que guardei durante todos estes anos, para que a memória dos
absurdos de há vinte anos não se desvanecesse. Com elas vos deixo.

Eis a primeira, recebida no WhatsApp: Boa noite. Já que isto aqui é


uma rede de ajuda, eu queria saber se, no grupo, há mais alguma
mãe surtada, ou se só seu eu mesmo. Porque vou ser muito sincera
com vocês. Dever de casa acabou. Acabou a paciência. Acabou
a responsabilidade social. Acabou tudo! Já não tou dando conta,
não! Tou surtada, entendeu?

As crianças precisam voltar prá escola urgentemente. Por amor


de Deus! Estou ficando com ódio! Ódio de cada professor, que
me manda link para eu entrar, prá dazer exercício. Não tenho
condição de fazer exercício com ninguém. Eu vou dar férias, aqui,
prá todo mundo, por conta. Porque, lá na Espanha, já resolveram
que esse negócio de homeschooling estressa as mães. A sério! Eu
49
não sou pedagoga! Como é que eu vou fazer, agora, prá cozinhar,
prá limpar e ainda fazer homeschooling?

Outra mãe assim se expressava: Eu estou nessa situação com


minha filha no ensino médio. Ontem ela precisou scanear e enviar
para o e-mail da professora uma lista de palavras para separar as
silabas… E todos os professores mandam links e links e mais links,
tarefas e mais tarefas…

Uma terceira mãe, tão exausta como as anteriores: Ontem recebi o


e-mail de um aluno de 11º ano, que é um jovem cheio de energia,
completamente em pânico! Ninguém lhes explica nada! Estivemos
mais de uma hora a teclar no Messenger. Ele não quis chamada de
voz, para a mãe não ouvir e não ficar preocupada. E lá foi dormir,
espero eu, mais tranquilo...

Vou comentar e já sei que me vão criticar, mas é o que penso.


Repensemos o que é realmente relevante! Neste momento, a
nossa preocupação fundamental devia ser o equilíbrio do aluno
e não a sobrecarga de tarefas, que o obrigam a estar sentado em
frente ao computador a acompanhar aulas online. Não entendo
esta necessidade de se enfatizar o pior das práticas, os montes de
fichas e testes, em vez de se destacar a janela de oportunidade de
processos diferentes e inovadores. É só links, videoaulas, lives. Hoje,
ouvi uma pessoa dizer que estava com medo de abrir a geladeira
e encontrar uma LIVE lá dentro...

Por essa altura, enquanto as “ajudas” às famílias surgiam online,


sob a forma de virtuais paliativos de um modelo de ensino obsoleto
e sem fundamento científico, o ministro da saúde afirmava agir
autonomamente, orientado pela ciência. Mandetta apelava ao
Isolamento social. Mas, confinados nas suas casas, os jovens
denotavam total ausência de autonomia. A escola da aula fizera
deles seres dependentes, individualistas.

Eu temia que professores e famílias não tivessem entendido a


mensagem do vírus. Nos últimos duzentos anos, a escola da aula
havia recusado o direito à educação a milhões de seres humanos,
havia feito mais vítimas do que o vírus corona. Eu temia que, após
a crise, as bases do sistema econômico e do educacional não se
modificassem.

Porém, aconteceu o inadiável. Educadores conscientes desse risco


decidiram não esperar pela pandemia seguinte. Conceberam uma
nova Educação, criaram uma nova Escola onde, realmente, se
aprendia a aprender, aprendia a ser e a... conviver.

Irei falar-vos do que aconteceu nesse mês de abril de há vinte anos.


Volu
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e

“Por que é preciso transporte escolar? O


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que se aprende o jovem dentro de um
edifício chamado escola, que não possam
aprender fora dele?”
José Pacheco
Agreste, 02 de abril de 2040

Num janeiro de há uns vinte anos, eu seguia de Toritama para Serra


Talhada, a caminho de Cajazeiras. À medida que se avança para o
interior, na proximidade do Sertão, o clima fica cada vez mais seco,
e a paisagem mais árida. Na madrugada da passagem pelo Agreste,
o que mais me chamou a atenção foi o cortejo de crianças, mochilas
nas costas, esperando o transporte escolar.

Conversei com algumas e com a mãe de uma delas. A filha havia


sido acordada cerca das cinco horas. Todos os dias era retirada do
leito de madrugada. Cerca de uma hora, caminhava por estradas
de pó e espinhos, até ao ponto onde o ônibus a esperaria, quando
fossem sete horas.

No ônibus, as crianças dormitavam. O cansaço marcava o semblante


de todas. Segui o trajeto do ônibus escolar. Aos trancos e barrancos,
após meia hora de padecimento, num trajeto de buracos e alguns
pedaços de estrada, eis-nos chegados a um prédio, que denotava
53
abandono e a que chamavam… escola.

Na Brasília daquele tempo, crianças moradoras em São Sebastião,


por não haver “vaga” – o conceito de vaga era um absurdo, um
dos sutis modos de negar o direito à educação – eram obrigadas
a enfrentar transporte para outros locais do Distrito Federal,
crianças de tenra idade eram transportadas em ônibus alugados
pela secretaria de educação. Os alunos mais velhos enfrentavam o
transporte público, alguns precisando de quatro passagens, para
chegar à… “escola”.

Mensalmente, se desperdiçava um milhão e seiscentos mil reais!


Certamente, os funcionários responsáveis pelo transporte escolar
ainda não haviam tido tempo de ler o documento orientador da
política educacional da sua da secretaria. Nele, Anísio sugeria uma
gestão de espaços educacionais alternativos ao da “escola da vaga”.
Dizia que a escola deveria ser o bairro, a comunidade… onde não era
preciso transporte escolar.

No dia seguinte, participei numa mesa de debate sobre evasão


escolar. O momento alto do debate foi provocado por uma oportuna
intervenção vinda da plateia, referência a uma notícia, que dava
conta da deleção de um empresário de ônibus, que atingia esferas
de poder. Falta de ônibus impedia alunos de estudar em Rondônia.
Algumas crianças já tinham perdido dois anos letivos. E o governo
dizia que a situação ficaria normalizada. Era apenas mais um
exemplo de corrupção, que grassava no transporte, na merenda
escolar… e não só.

Naquele tempo, havia muita gente que pensava que escola era
um prédio e que, dentro do prédio, era suposto que as crianças
aprendessem algo, que justificasse acordar de madrugada e
percorrer a via sacra de estradas do interior. Não radicaria aí uma
das causas da evasão? Aproveitei para lançar o debate: Por que é
preciso transporte escolar? O que aprendem os jovens dentro de
um edifício chamado escola, que não possam aprender fora dele?

Uma “especialista” do departamento de transporte escolar da


secretaria interrompeu a leitura do seu power point, para me
invectivar: O senhor doutor é um europeu, não consegue entender.
Não vê que, aqui, é preciso levar as crianças para a escola?

Retorqui: Mas, não foi um pernambucano que escreveu que


aprendemos uns com os outros mediatizados pelo mundo? Não
consta que o vosso conterrâneo tenha escrito “mediatizados por
um prédio”. Escolas são pessoas, não são prédios, minha senhora”.

Um esgar de desagrado e de desdém atravessou a face da


“especialista”. Ignorou a minha interpelação. Passou, também, a
ignorar a minha presença. E essa secretaria de educação nunca
mais me convidou para “palestrar”.
Volu
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e

“E os obreiros da mudança davam-se conta


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Volu
de que, se o maior aliado de um professor
era o outro professor, o maior inimigo do
professor era... o outro professor.”
José Pacheco
Gama, 04 de abril de 2040

Naquele dia de abril, de há vinte anos, acordei com todas as dores


do mundo em mim. Era (ainda sou) mais um daqueles educadores,
que carregavam o insustentável peso de conscientização. Isso
mesmo: eu era (e continuo a ser) freiriano, graças a Deus! Apercebia-
me de que a administração educacional usava artifícios virtuais,
para prolongar a agonia e os trágicos efeitos de um sistema de
ensinagem. E os professores talvez não tivessem entendido uma
subliminar mensagem e perdessem a oportunidade de fazer o que,
já há mais de cem anos, precisaria ser feito.

Para recuperar a serenidade, precisei de recorrer a um dos meus


lenitivos. Ignoro se ainda está disponível, numa das antigas
empresas de serviços online e software, um vídeo, que reproduz
o final de um filme sobre a vida de Beethoven. No velho Google,
estava disponível neste endereço: https://youtu.be/qXDSW83Sc2I.
Era uma versão romanceada da primeira audição da nona sinfonia.

57
No filme, o maestro Beethoven entrava em palco no início do
quarto e último andamento, levando consigo uma jovem, que,
discretamente, lia a pauta e lhe dava indicações de regência, o
que, na realidade, não aconteceu. E o quarto andamento estava
encurtado. O realizador e a produção tinham suprimido muitos
compassos… mas vamos ao essencial.

No “hino da alegria” – a Ode An Die Freude de Schiller,


magistralmente musicada por um surdo – o coro canta: Alegria,
formosa centelha divina! Tua magia volta a unir o que o costume
rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam onde teu doce
voo se detém. O filme mostra que, no final da sinfonia, o público
se levantou, num longo e caloroso aplauso. Na verdade, não houve
salva de palmas, mas apupos, ainda que com algumas palmas à
mistura.

O poema “An die Freude” foi escrito por Schiller, em 1785. O poeta
apelava à prática de ideais como a liberdade, a paz e a solidariedade.
Ideais partilhados com um Beethoven, que viu censurada a sua obra.
Na primeira apresentação da Nona Sinfonia, os “tradicionalistas”
chamaram “aberração” ao último dos seus andamentos. Nesses
tempos sombrios, os detratores do génio opunham-se a que se
cantasse que “o Homem é para todo o Homem um irmão” e que “a
alegria é a filha querida dos deuses”.

Quando me batia, o meu pai gritava: Não chora!”. E eu engolia o


choro. Mas, os homens também choram. Nos derradeiros compassos
dessa sinfonia, suave, serena, alegremente, as lágrimas rolavam pelo
meu rosto. Nos dias em que a indignação se soerguia e se tornava
mais difícil suportar os ecos da barbárie, a audição da “Nona de
Beethoven” era um bálsamo retemperador.

Nos tempos sombrios que atravessávamos, era arriscado defrontar


o fundamentalismo pedagógico. Inconformistas, dotados de poder
criador ajudavam a quebrar algemas sociais. Mas, eram raríssimos
os que ousavam operar mudança no submundo da escola da sala
de aula. A mediocridade e a maledicência espreitavam em cada
recanto físico, ou virtual. E os obreiros da mudança davam-se conta
de que, se o maior aliado de um professor era o outro professor, o
maior inimigo do professor era… o outro professor.
Volu
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e

“Na minha vida de professor nunca parei de perguntar:


m

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‘O que queres fazer?’ ‘O que queres ser?’ E não
acrescentava ‘quando fores grande’. Porque deixaria de
ser uma pergunta, para ser um xingamento.
Criança não vai ser - criança é!”

José Pacheco
Arraial d’Ajuda, 05 de abril de 2040

Na Bahia de 2020, a mãe do Tiê operava amorosas transformações.


Não apenas para o seu filho, mas para os filhos da sua comunidade.
Disso vos falarei numa cartinha dedicada ao Jardim Cirandas.
Hoje, falar-vos-ei de saber perguntar. E nisso o Tiê era especialista.
Pergunta de criança é pergunta inteligente. Quando a fazia, o Tiê já
possuía um princípio de resposta.

João dos Santos, o criador da Casa da Praia – procurai registro dessa


instituição, porque vale a pena conhecer a sua estória – escreveu
um livro, na década de 1970, que tinha por título: “Se não sabe, por
que é que pergunta?”. Uma pergunta contém muito mais do que
uma interrogação, traz com ela muita informação. O Tiê não parava
de perguntar. E o vovô Zé, como o Tiê me chamava, também não.

Você tem a mania de fazer perguntas! – diziam, só porque eu


havia descoberto, nos idos de setenta, que os professores tinham
mais certezas do que interrogações. Quase nonagenário, ainda sou
61
curiosidade pura, tão questionador quanto o é uma criança.

Quando jovem professor, elaborei um roteiro de estudo, para


reelaboração da minha cultura profissional, algo como um
“decálogo”: Por que se aprende? O que se deve aprender? Quem
aprende? Quem me ajuda a aprender? Quando aprendo? Com
quem aprendo? De que preciso para aprender? Onde aprendo?
Como aprendo? Como saber que aprendi?

Quando andava pelas escolas, incentivando nos professores a prática


de uma comunicação dialógica, começava por perguntar aos seus
alunos: O que queres saber? E me desgostava ouvi-los responder
com outra pergunta: Tio, eu posso dizer o quero saber? E o que eu
quero aprender?

Eram crianças de tenra idade, mas já com meia dúzia de anos de


escutar respostas a perguntas que jamais fizeram. Nas aulas, tinham
desaprendido de perguntar.

Na minha vida de professor, nunca parei de perguntar: O que queres


fazer? O que queres ser? E não acrescentava “quando fores grande”.
Porque deixaria de ser uma pergunta, para ser um xingamento.
Criança não vai ser… Criança é!

Criança perguntadora, aproveitando o tempo a que costumavam


chamar de “interrupção da atividade letiva”, eu fui visitar um lugar
a que costumam chamar “escola”. Recomendação de um amigo:
Olha que vais gostar. O projeto é bem interessante.

Não entendi por que seria “interessante”, mas, movido pela


curiosidade, lá fui. O prédio estava quase vazio, como no tempo
do vírus corona. Deparei com um portão fechado, dois olhos
inquisidores e a voz ameaçadora do guarda do bunker: Que deseja?
Estamos fechados! A escola está fechada.
Subitamente, o alarido de uma campainha invadiu salas e corredores
desertos. A campainha soava, rotineira e absurda, porque não havia
alunos à escuta do “toque de recolher” à sala de aula.

Por que tocava a campainha em tempo de férias? Por que havia


férias escolares? A inteligência dos alunos parava de funcionar em
dezembro, para só voltar a funcionar após o Carnaval? Os hospitais
entravam em férias? A igreja fazia férias? Imagine-se a situação: o
crente a deparar com portas fechadas e um cartaz: Volte depois do
Carnaval. O pastor está de férias.

Ainda hoje formulo perguntas, que considero pertinentes: Quando


se aprende?

Em 200 letivos, ou nos 365 dias de cada ano? Em quatro ou cinco


horas de aula, ou nas vinte e quatro horas de cada dia? Em uma
dúzia de anos, ou durante toda a vida?

Já velho, eu sei que exaspero auleiros saudosistas. Sei que ainda há


quem creia que se aprende ouvindo aula. Eu sei…
Volu
me

“Se, no domínio da acumulação de conhecimentos, o


I

‘ensino tradicional’ falhou rotundamente, o que dizer


me

da aprendizagem de outros saberes? O ‘tradicional’


Volu
ostracismo a que era votado o desenvolvimento
sóciomoral dos jovens, contribuía para reforçar a ideia de
que teríamos de aceitar como fatalidade uma sociedade
de vícios privados e públicas virtudes.”
José Pacheco
Mafra, 06 de abril de 2040,

Queridos netos,

Enquanto ligava o computador, recordava um episódio de antanho.


Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens. Discutíamos
as virtudes e os defeitos da escola de antigamente, num ambiente
de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições
críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos,
um dos jovens assumiu a defesa do chamado “ensino tradicional”:

Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu aprendi


tudo o que sei ouvindo aula. Saí da escola muito bem preparado!

Ainda bem. – respondi, atenuando a irritação do jovem.

Ele insistiu, realçando as qualidades do dito “ensino tradicional”,


nomeadamente, “a preparação que dava na Matemática e na
Língua Portuguesa”.

65
Eu contrapus:

Permitis que vos coloque algumas perguntas?

Faça o favor! – disseram, num tom desafiador.

Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples,


uma relacionada com a Matemática, outra com o Português. Alguns
ainda balbuciaram algo ininteligível, depois fez-se um silêncio de
embaraço. E eu rematei a discussão com crueldade. Recorri a outras
perguntas a que ninguém ninguém soube responder.

Se, nas áreas nobres, já estávamos conversados, a incursão na


História acabou com a resistência daqueles combativos jovens.
Todos se gabavam de saber na ponta da língua as datas e os nomes.
Mas, tudo se lhes tinha varrido da memória, à semelhança do que
decoravam para os exames, que preencheram o seu itinerário
escolar até à universidade. Tudo tinham “vomitado” nas provas e,
depois, esquecido, para “arranjar espaço para o que não cabia na
cola”.

Magnânimo (como convinha à circunstância…), eu lá fui dizendo que


nem tudo se deveria rejeitar no “ensino tradicional”, que era falsa
a dicotomia entre moderno e antigo, inovação e tradição. Afirmei-
lhes ter testemunhado inovações no “antigamente”, ilustrando a
afirmação.

Nos primórdios da década de setenta e nos vigiados e estreitos


corredores de liberdade de uma escola sujeita aos ditames da
ditadura, um professor desafiou-me para a aventura de um
conhecimento, que nos era sistematicamente ocultado. Incitou-
nos a conduzir os nossos destinos: O que quereis fazer? O que
quereis aprender? – perguntou logo no primeiro dia de aulas. E nós
ficámos perplexos, receosos de uma eventual armadilha contida na
pergunta. Rapidamente se desvaneceu a desconfiança. Partimos
na aventura de descobrir.

No meu percurso de estudante, nunca mais ouviria da boca de um


professor esses estimulantes desafios. Mas as palavras e os gestos
desse professor ficaram a levedar no mais profundo do subconsciente,
à espera do momento propício para se transmudarem em atos.

Aqueles “velhos” jovens rejuvenesceram:

Estudamos a História de ponta a ponta, mas ficou pouca coisa.


A gente tem de ser humilde e aceitar que as coisas eram mesmo
assim.

Se, no domínio da acumulação de conhecimentos, o “ensino


tradicional” falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem
de outros saberes? O “tradicional” ostracismo a que era votado o
desenvolvimento sóciomoral dos jovens, contribuia para reforçar a
ideia de que teríamos de aceitar como fatalidade uma sociedade
de vícios privados e públicas virtudes.

Felizmente, a educação familiar e aquela que alguns professores vos


propiciaram protegeu-vos dos malefícios de uma “tradição podre”.

Recebei o amoroso abraço do vosso avô José.


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e

“Meu pedido é: ajude seus alunos a


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tornarem-se humanos.”

Sobrevivente do Holocausto
Jardim Botânico, 07 de abril de 2040

Nos idos de abril de 2020, a crise do vírus progredia. Para aliviar o


sofrimento de amigos, que haviam perdido familiares, eu enviava-
lhes umas cartinhas virtuais. Outras eu endereçava ao mundo da
educação. Foi o que fiz, há precisamente vinte anos, quando a
secretaria de educação publicou um anúncio da Internet: “Tire suas
dúvidas sobre como serão as tele aulas”. A secretaria anunciou
que transmitiria um programa educativo na internet, para auxiliar
alunos da rede pública durante a pandemia.

Acrescentava o anúncio: as atividades não são obrigatórias e não


contam como dia letivo, mas podem ajudar a manter a rotina. Elas
servem para oferecer conteúdo aos estudantes enquanto as aulas
não voltam (sic). O anúncio também nos convidava para participar
de um encontro no facebook, no qual a secretaria de educação
responderia a perguntas sobre o programa Escola em Casa.

Aquilo que vi e ouvi no facebook foi merecedor de um comentário.


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Reproduzi-lo-ei nas próximas cartinhas. Espero que tenhais
paciência e tempo para o ler. Fá-lo-ei sem usar jargão científico, ou
recorrer a notas de pé de página e bibliografia. Porém, não deixará
de acontecer sob a forma de diálogo fundamentado no bom senso
e numa ciência prudente. Tal como agiu o ministro da saúde de
então, perante a pandemia.

Mandetta, os profissionais de saúde e serviços, bem como muitos


solidários professores, correram riscos, para salvar vidas. Foram
os meus heróis durante a crise. Mandetta não se demitiu, apesar
de ameaçado e criticado nas redes sociais,. Leal ao Juramento de
Hipócrates, ele assumia que: “o médico não abandona o paciente”.

Eu sugeria que se estendesse à nobre profissão de educador o


mesmo princípio: “nenhum aluno pode ser deixado para trás”. Mas,
as secretarias continuavam a impor a professores temerosos e
famílias preocupadas com o bem-estar dos seus filhos um modelo
de ensino responsável por um autêntico genocídio educacional. As
famílias desejavam que os seus filhos fossem felizes, mas a secretaria
impunha a muitos seres humanos um destino feito de infelicidade.
Nesse tempo, muitos professores adoeciam e o suicídio juvenil
atingia níveis nunca vistos.

Durante duzentos anos, esse modelo de escola fora um dos


responsáveis por inúmeras catástrofes e flagelos. A escola da
ensinagem engendrou degradação ambiental e guerras sem
fim. Consciente de que fora vítima de uma educação decrépita e
arcaica, um sobrevivente do holocausto deixou, num campo de
concentração nazista, uma carta dirigida aos professores:

Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração.


Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de
gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas
por médicos diplomados.

Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres


e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e
universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação.
Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus
esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas
hábeis. Ler, escrever e saber aritmética, só serão importantes se
fizerem nossas crianças mais humanas.

Infelizmente, a escola da ensinagem sobreviveu à segunda guerra.


Seria preciso substituí-la pela escola da aprendizagem. Durante a
crise, para que, após o reinado do corona, não se corresse o risco de
viver uma terceira… e última guerra.
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“A criança não faz o que quer - a criança


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quer aquilo que faz, porque faz sentido.”

José Pacheco
Piracanga, 08 de abril de 2040

O Tiê não parava de perguntar. Ainda não havia chegado à idade de


“ir à escola”. Dizem estudos que, à entrada no Fundamental, metade
das crianças já não fazem perguntas. No final do Fundamental, a
cifra cai para menos de dez por cento. Nas escolas de Ensino Médio,
são raros os jovens que interrogam. E, nas universidades, quantos
alunos fazem perguntas?

Fui professor do Fundamental. Quando entrava na sala, dizia: Bom


dia, meus amigos!

Respondiam: Bom dia, professor!

Quando trabalhei na Universidade, entrava na sala, fazendo idêntica


saudação: Bom dia, meus amigos!

Em silêncio, os jovens universitários escreviam nos seus cadernos:


“Bom dia, meus amigos”.

73
Quem os havia posto assim? Quantos professores se interrogam
sobre as origens deste drama?

Recordar-te-ás, certamente, querida Alice, das cartas que este avô


te enviou, quando nasceste: Recorria a personificações, metáforas
e outras figuras de linguagem. Quarenta anos depois, excelente
profissional de Psicologia que és, contigo poderei usar de uma
linguagem técnica, científica. Mas, com o Tiê, não.

Perguntou: Vovô o teu cabelo e branquinho... por quê?

Por que será? – respondi com a pergunta, que dispara a busca de


resposta…

Num sei, vovô…

Brinquei com o Tiê. E, com a minha ajuda, ele encontrou a resposta.


Para a Alice psicóloga, a conclusão é simples: contrariamente àquilo
que a näo-diretividade ingénua postula, a criança não faz o que quer
– a criança quer aquilo que faz, porque faz sentido. Já percebeste
que estou a falar de Vygotsky…

Pois fica sabendo que encontrei doutorados em socio


construtivismo, que davam aula. Diziam aos formandos que os
alunos deveriam ser o centro do processo, enquanto davam aula,
centrada no… professor. Das duas, uma: ou eram esquizofrênicos,
ou analfabetos funcionais – leram Vygotsky, mas nada entenderam.
Eram os “porquenins”, seres do nem sim, nem não. Em Brasília,
encontrei uma subespécie: os “porquessins”. Se lhes perguntássemos,
por exemplo, por que havia aula, eles respondiam: Porque sim. E…
pronto! É assim, porque é assim, porque eu mando que seja assim.

Mancomunados com porquessins e porquenins, os “porquenãos”


impunham que se ensinasse a voar a todos como se de um só se
tratasse, como se cada ser não fosse um ser único e irrepetível.
Muitos professores não ousavam sair da caixa preta da sala de
aula, com medo de que algum porquenim espreitasse e fosse
contar pecadilhos a um porquenão. E os obstinados porquenãos
continuaram no fazer, sem saber explicar por que faziam. Era assim...
e pronto!

Aos porquenins – ora de acordo com uns, ora com outros, conforme
a ocasião e como lhes dava mais jeito – o Darcy deu o nome de
áulico. Os áulicos eram semelhantes aos papagaios, aves que
repetem e não refletem. Os áulicos eram surdos, insensíveis a uma
interpelação fundamentada, criaturas horríveis.

Mas, como diria um outro rouxinol (de nome Pessoa), se deixasse


de haver seres horríveis, o mundo ficaria mais pobre, só porque
teriam deixado de existir. Por isso, estendíamos mãos solidárias
aos porquenins, aos porquessins e porquenãos, na intenção de os
ajudar a compreender e a decidirem ser éticos.

Foi o amor, sempre presente no canto das almas sensíveis, que


comoveu as almas empedernidas dos porquenãos e as redimiu do
pecado da ignorância e da maldade. A doce paciência das almas
sensíveis ajudou os pássaros doentes a não terem medo da luz
diurna, a não fechar os olhos à claridade. Convenceu porquenãos
e porquenins da inutilidade da sua azáfama de pássaros rotineiros.

Irei contar-vos como tudo aconteceu.


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“A escola da ensinagem engendrou


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degradação ambiental e guerras sem fim.”

José Pacheco
Recanto das Emas, 09 de abril de 2040

No primeiro dia de abril, mais de dez mil pessoas morreram na


Espanha, vítimas do vírus. No sexto dia desse mês, a China não
registrou qualquer morte por COVID-19. No Brasil, ia sendo atingido
o pico da pandemia. Estas são anotações contidas nuns cadernos,
que ciosamente guardei no armário das velharias – estou velho e
tenho por hábito guardar papéis.

O caderno número 5 – eu era bem metódico, como vedes… – contém


registro de ocorrências desse mês e respetivas observações e
inferências. Estão redigidos numa linguagem pouco adequada às
finalidades destas carinhas. E, dado que nem todos os leitores estão
familiarizados com os saberes das ciências da educação, recorrerei,
em breves linhas, a metáforas inspiradas no covi-19. Creio que, assim,
talvez nos entendamos. Metaforizemos…

Também eu, de tenra idade, fui vítima do “vírus da ensinagem” (o


designarei por inen-1900). Esse vírus havia surgido na Prússia militar
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do século XIX, na França dos conventos e casernas, e na Inglaterra
da primeira revolução industrial, nas usinas da produção em série.

A epidemia alastraria pelo mundo e chegaria à América do Sul,


trazida por um senhor chamado Lancaster, a convite de Simon
Bolívar. E penetrou no Brasil, no tempo Imperador. Por aqui ficou,
até hoje, contribuindo para reproduzir um sistema escolar e social
iníquo.

O inen-1900 foi responsável por inúmeras catástrofes e flagelos. A


escola da ensinagem engendrou degradação ambiental e guerras
sem fim. Nas salas de aula, por onde passei, todos fomos infetados por
esse vírus, através da fala do professor, quando nos encontrávamos
a menos de dois metros dele. E pelos espirros pedagógicos do
professor, quando a menos de seis metros de distância.

Outros professores me ajudaram na cura. Um padre e uma


professora de francês me ajudaram a contrair o “vírus da mudança”
(o muvi-68). Duas professoras da Escola da Ponte me inocularam
o “vírus da aprendizagem” (o apvi-76). Professores, famílias e
comunidades brasileiras me ajudaram a contrair o “vírus da
inovação”. Metaforicamente o chamei de invi-20, pois se tratava de
uma mutação benigna do vírus da ensinagem.

Por que foi o vosso avô procurar os cadernos? – perguntareis.


Para que a memória não me traísse. Na página do dia 8 do quinto
caderno, está escrito que a Cláudia utilizou o WhatsApp – lembrais-
vos desse software? – para convidar o “Grupo de Trabalho das
Comunidades de Aprendizagem” para um encontro virtual. Era
nossa intenção partilhar a reflexão sobre a iniciativa da secretaria
de educação “Escola em Casa”. E ver de que modo poderíamos
auxiliar a secretaria a garantir que os jovens aprendessem, enquanto
o isolamento social durasse.
O GT das comunidades tinha sido criado pela secretaria de
educação. A origem do projeto remontava a 2015, quando a
secretaria de educação nos pediu – a mim e à Cláudia – para criar
duas comunidades de aprendizagem: uma na regional do Paranoá,
outra na de São Sebastião. Isso fizemos, gastando muito tempo,
muita paciência e muito dinheiro. Foi trabalho voluntário e não
recebemos sequer um real da secretaria.

Em outra carta, vos direi o que sucedeu, após o fraterno convite


enviado pela Cláudia. Também vos falarei desse projeto e de como
a corrupção intelectual e moral se tinha instalado no sistema
educacional da ensinagem. Preciso contar-vos e com precisão,
tudo o que aconteceu nesse distante mês de abril. O registro destas
memórias poderá evitar que tempos sombrios regressem.
Volu
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“E, do mais recôndito recanto dos lares,


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do mais profundo da alma humana, um
insuspeito gérmen da compaixão e da
solidariedade se revelava.”
José Pacheco
Pau dos Ferros, 10 de abril de 2040

Para muitos dos vivos, a imposição do isolamento agia como prisão


domiciliar. Sem saber como gerir a solidão, não suportando a
solidão do outro, não partilhando as dores, muitos seres humanos
se aperceberam de que sempre tinham estado sozinhos. E, do mais
recôndito recanto dos lares, do mais profundo da alma humana, um
insuspeito gérmen da compaixão e da solidariedade se revelava.

No tempo em que um vírus impôs o isolamento social, o vosso


avô enviava e recebia mensagens, na intenção de ajudar a mitigar
desavenças, a debelar conflitos, de que me chegavam notícia.
Vinte anos antes, eu publicara um livrinho, que dava pelo título de
“Sozinhos na escola”. Em 2040, ele se apresenta como premonitório.
Em 2004, antecipava a denúncia, ainda agora apenas sussurrada,
da solidão da sala de aula. Ainda possuo um exemplar velhinho,
como eu, de onde respiguei este episódio:

O Miro percorreu a via-sacra de várias escolas, até chegar àquela, por


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recomendação de uma técnica de serviço social e de uma psicóloga.
O seu calvário académico incluía várias passagens pelo ensino
especial e por outros padecimentos. Um professor aproximou-se
do jovem recém-chegado e propôs-lhe que escrevesse as suas
primeiras impressões da nova escola.

Não sei, não sou capaz, não faço. E você não me pode obrigar!

O professor insistiu com jeitinho: Mas…

Mas eu não sou obrigado a fazer. Você não manda em mim. Você
não é meu pai! Ponha-me lá fora. Na outra escola, quando me
portava mal, punham-me lá fora. Marque-me uma falta e pronto!

O Miro não sabia que só estava carente de firmeza e carinho. O pai


não poderia dá-lo, porque, há muito, abandonara a família. A mãe
“já não tinha mão nele”. Professores, a julgar pelo condicionamento
que nele se tinha operado, poucos teria encontrado pelo caminho.
O Miro tinha passado sete anos sozinho em casa e outros tantos na
escola, e deixara de acreditar ser possível aprender.

À quarta tentativa de persuasão, quando lhe pediram que fizesse


algo de que ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem
da tortura da escrita e lhe “ditassem umas contas, mas só de dois
números”, pois apenas se recordava (e mal) das contas de somar
e de diminuir: Eu sou assim. No hospital, a psicólica até disse à
minha mãe que eu sou atrasado da cabeça p´raí uns cinco anos.
Eu sou burro…

Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas


singulares, mas também espaços de comunicação. Sabemos
que não é bem assim. As escolas são, quase sempre, espaços de
solidão. O trabalho dos professores é um trabalho feito de solidão
e a solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos
alunos – professores e alunos estão sozinhos nas escolas.

Decorridos dois meses, o Miro já escrevia algumas frases, até já lia


palavras em inglês! E foi a professora de Inglês que protagonizou
um episódio que viria a influenciar o curso da recuperação do Miro.

Perante uma atitude menos correta do Miro, a professora


repreendeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências
da reprimenda, num momento ainda tão frágil da reciclagem dos
afetos, pediu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão.

Aqui, os professores pedem desculpa? – inquiriu o Miro, estupefato.

Claro! – respondeu a professora.

O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu


viagem, para que a professora não visse que pela sua cara de traquina
inveterado passeava a manga da camiseta com que limpava uma
teimosa lágrima.

A solidão do Miro sofrera um rude golpe… e a cura havia começado.

Beijos do vosso avô, José...

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