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Jorge Martínez Barrera

Tradução e prefácio:
Carlos Ancêde Nougué

2007 - Rio de Janeiro


© 2007, Sétimo Selo Editora Ltda.
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Título original
La Política en Aristóteles y Tomás de Aquino

Tradução e Prefácio
Carlos Ancêde Nougué

Revisão
Sidney Silveira

Coordenação editorial
Octacílio Freire e Sidney Silveira

ISBN 978-85-99255-06-3

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

B258p

Barrera, Jorge Martínez, 1954-


A Política em Aristóteles e Santo Tomás
/ Jorge Martínez Barrera ; tradução Carlos Ancêde Nougué.- Rio de Janeiro :
Sétimo Selo, 2007.
250p.
Tradução de: La Política en Aristóteles y Tomás de Aquino
Inclui Bibliografia
ISBN 978-85-

1. Aristóteles - Política. 2. Tomás, de Aquino, Santo,


12257-1274. 3. Ciência Política - Filosofia. 4. Ética. I. Título.

07-4064.
CDD 321.01
CDU 321.01
26.10.07 26.10.07 004063
Sumário

Prefácio ..................................................................................................... i

Introdução . ........................................................................................... 01
I. Aristóteles e o neo-aristotelismo .................................................. 05
1. Dependência ou independência entre metafísica e filosofia prática?
2. A interpretação sistemática e a genética
3. A reabilitação da filosofia prática e o neo-aristotelismo
4. Ciência moral e ciência política
5. Phrónesis e filosofia prática
6. Ethos e filosofia prática

II. Ética e política em Aristóteles . .................................................... 47


1. Eticidade da política e politicidade da ética
2. A justiça na Ética a Nicômaco

III. Forma e liberdade na filosofia política de Aristóteles ........... 65


1. A forma em política: teleologia e pedagogia
2. A liberdade em política: dois planos de significação

IV. A transição para o Cristianismo ................................................. 77


1. A justiça como virtude e a justiça “juridicizada”
2. O agostinismo político
3. O panorama que Santo Tomás encontra

V. As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás . ....................... 91


1. Diferenças quanto ao aprofundamento da análise
a) Filosofia e ciência prática
b) Instâncias de legitimação da lei humana
2. Diferenças quanto à discutibilidade de algumas teses aristotélicas
a) A teoria da escravidão natural
b) O conceito de natureza
b.1) O conceito de natureza em Aristóteles como resposta
aos físicos e a Platão
b.2) Dificuldades com a physis aristotélica
b.3) Como trata Santo Tomás de Aquino o conceito
aristotélico de “natureza”?
b.4) O conceito tomista de natureza e seus alcances políticos
3. Diferenças quanto à inaceitabilidade de algumas teses aristotélicas
a) A comunidade política como âmbito supremo de todas
as realizações humanas
b) Exclusividade étnica da pólis
c) Limitação do número de cidadãos e meios pelos quais ela é alcançável
d) A religião e seu lugar na filosofia das coisas humanas
d.1) A inevitável referência religiosa da ética e dois de seus modelos
d.2) Aristóteles e a religião
d.3) Cujus Deus, ejus religio: Santo Tomás e as diferenças teológicas
com Aristóteles
d.4) Santo Tomás, a religião e suas implicações morais
d.5) A ponte entre religião e moral em Santo Tomás

Conclusão ............................................................................................. 207

Bibliografia .......................................................................................... 217


Prefácio

A verdadeira fonte
da ética e da justiça
“E, dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um
fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário
que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo,
não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio
de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina.”
Santo Tomás de Aquino
(De Regno, 466: 74-80)

Carlos Ancêde Nougué

A história da filosofia traça, grosso modo, uma nítida curva


ascendente-descendente. No início dos esforços humanos por
entender a realidade, foi o impulso superior do pensamento gre-
go com Sócrates, Platão, Aristóteles, impulso que, superando
quedas transitórias, foi em parte retomado – especialmente no
terreno ético-político – pelo estoicismo e pelo pensador romano
Cícero. Depois de Cristo, foi o crescimento orgânico de um
pensamento, o cristão, que atingiu a maturidade com Santo
Agostinho e, sobretudo, oito séculos depois deste, com Santo
Tomás de Aquino, cuja doutrina é a perfeita síntese do que de
melhor haviam produzido os seus antecessores e a superação
de aporias em que todos, em maior ou menor medida, haviam
incorrido: a obra do Aquinate, segundo a feliz expressão que
Louis Jugnet gostava de repetir, é sempre “um cume entre dois
vales” (o que se verá nítida e luminosamente neste A Políti-
ca em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, de Jorge Martínez
Barrera). Por fim, a queda, numa seqüência também orgânica:
Duns Scot e seu superdimensionamento da vontade em detri-
mento da inteligência; Guilherme de Ockham e sua descrença

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 


nominalista na existência dos universais e, portanto, na função
precípua da inteligência; Descartes e seu pensamento que “cria”
até o próprio ser pensante, mas do qual pensamento, e, logo,
do próprio ser pensante que ele cria, se há de duvidar sempre
e metodicamente; Kant e sua incognoscibilidade da coisa-em-
si, ou seja, do real, para a nossa inteligência, cujos conceitos e
raciocínios têm todos caráter apriorístico; Hegel e sua dialética,
que não é senão outro nome de uma negação do princípio da
não-contradição; Marx e sua pá de cal sobre o espírito, com a
entronização absoluta da matéria; e toda a vertiginosa sucessão
de niilismo, irracionalismo e abismo que caracteriza o tempo
dos Wittgensteins, Sartres e Deleuzes.
Intrínseca à parte descendente dessa curva, como se pode
ver por seus últimos rebentos, é a tendência à negação de qual-
quer realidade supramaterial ou metafísica, o que se refletirá
dramaticamente naquilo que Aristóteles chamava “a filosofia
das coisas humanas”: a ética e a política. Desde sempre, esses
dois campos da práxis humana formaram um todo inextricável,
e em geral tinham como fonte primeira a divindade. Já em um
famoso passo da tragédia Antígona, de Sófocles, a protagonista
desafia determinações de Creonte, o rei de Tebas, e presta hon-
ras fúnebres a seu irmão Polinices, morto num combate pelo
poder na cidade: a princesa justifica sua desobediência ao rei
alegando obediência a normas divinas, eternas, intocáveis. Tal
dependência da conduta ético-política, e portanto das leis, com
relação à fonte divina é filosoficamente explícita na obra de
Platão, em particular no diálogo As Leis. É bem verdade que o
mesmo não se dá, indubitavelmente, na obra de Aristóteles; mas
nela ao menos estão asseguradas duas coisas. Primeira: a indisso-
lubilidade entre ética e política. Com efeito, como lembra Jorge
Martínez Barrera, “o último capítulo do último livro da Ética

 - Escreve Étienne Gilson, em Réalisme thomiste et critique de la connaissance (Paris,


Vrin, p. 7), que seu livro é “um ensaio de teratologia metafísica” cujo objetivo é esclare-
cer a corrente de pensamento cartesiano-kantiana “à luz do patológico”.
 - Dirá o Aquinate: “Ainda que a opinião de Platão pareça irracional quanto a supor
que as espécies das coisas naturais são separadas e subsistentes, é absolutamente
verdadeiro, porém, que há algo primeiro que por sua essência é ser e bom, ao qual
chamamos Deus” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia, q. 6, a. 4 c).

ii A Política em Aristóteles e Santo Tomás


a Nicômaco é apresentado pelo próprio Aristóteles como uma
introdução à ciência política, precisamente com o objetivo de
‘levar a uma boa culminação, na medida das nossas capacidades,
a filosofia das coisas humanas’. O que equivale a afirmar que o
telos da ciência moral é a política. Em sua expressão política, a
ética alcança sentido pleno”. Segunda: a existência do justo
por natureza ou justo “primeiro” (próton), o que, porém, não se
dá no Estagirita com todo o desenvolvimento desejável. Como
lemos ainda em Barrera, “à exceção da passagem ‘por isso não
é menos verdade que em qualquer lugar não há mais que uma
só constituição conforme com a natureza, e essa é a melhor’,
que poderia sugerir indiretamente uma relação mais estreita
entre os dois tipos de justo (o natural e o convencional), não
há em todo o livro V [da Ética a Nicômaco], que é, insistamos,
o topos sistemático-analítico da justiça, um desenvolvimento da
possível subalternação da ordem legal ‘convencional’ à natural.
Pois bem, precisamente a busca dessa subordinação será uma
das tarefas do Aquinate”.
Muito antes, porém, que viesse ao mundo Santo Tomás
de Aquino, já os estóicos haviam reconhecido a existência da-
quilo que vincula o ético-político à divindade: a lei natural,
noção que terá grande importância para o pensamento cristão
e, em particular, para o mesmo Aquinate. Essa noção, elevou-a
Cícero a grande perfeição. Seja-me permitido citá-lo longa-
mente: “Existe uma lei verdadeira, a reta razão, conforme com a
natureza difundida em todos os seres, sempre de acordo consigo
mesma, não sujeita a perecer, e que nos chama imperiosamente
a cumprir nossa função, nos interdita a fraude e dela nos afasta.
Jamais o homem honesto é surdo às suas ordens e proibições
[...]. Nesta lei, nenhuma emenda é permitida, não é lícito re-
vogá-la total nem parcialmente. Nem o Senado nem o povo
podem dispensar-nos de obedecer a ela, e não há necessidade de
procurar um Sextus Aelius para explicá-la ou interpretá-la. Esta

 - Martínez Barrera, Jorge, A Política em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, Rio de


Janeiro, Sétimo Selo, 2007, p.54.
 - Ibid., p.98.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás iii


lei não é uma para Atenas, outra para Roma, uma para hoje,
outra para amanhã; é uma única e mesma lei que rege todas
as nações em todos os tempos: para ensiná-la e prescrevê-la a
todos, há um deus único. [...] quem não obedece a esta lei se ig-
nora a si mesmo, e, porque ignora a natureza humana, sofrerá por
isso mesmo o maior dos castigos, ainda que escape aos demais
suplícios”.
Pois bem, no marco daquela parte “descendente” da
história da filosofia, não só se nega a dependência do ético-
político com relação à divindade e a própria existência de
um justo por natureza, mas se dissolve a própria totalidade
das “coisas humanas”. E nessa dissolução sobressai a figura
inaugural de Maquiavel, que, embora refletisse uma realidade
que já se dava em certo grau, é quem nos começos do século
XVI rompe intelectualmente, n’O Príncipe, o elo que sempre
unira e deveria unir inextricavelmente ética e política, sendo
esta, como de fato o é, uma extensão daquela. Esse elo, que,
entre outras coisas, está para a razão prática assim como os
primeiros princípios estão para a razão intelectiva, e que como
tal sempre esteve pressuposto, como quer que fosse, não só na
filosofia anterior, mas também na justiça veterotestamentária,
no direito romano e na doutrina cristã, vê-se bruscamente
desfeito pelas idéias do florentino. Como escreve Martínez
Barrera, “a ética se transforma em assunto puramente privado,
em boa medida estranho ao assunto exclusivamente público
de que se ocupa a política”, enquanto “esta se torna, assim, um
saber dessa segunda esfera, com suas próprias leis e exigências,
que podem coincidir ou não – na maioria das vezes não – com
as da ética. O político passa a ser identificado quase exclusi-
vamente com o problema do poder público, tanto no plano
nacional como no internacional”.
Ora, só num mundo onde tal separação já se fez realidade
completa é possível falar em “moralizar a política”, já que se
trataria antes de reconhecer a intrínseca politicidade da ética

 - Cícero, De republica, III, XXII.


 - Martínez Barrera, Jorge, op. cit., p.49.

iv A Política em Aristóteles e Santo Tomás


e a intrínseca eticidade da política. Mas, para o entendermos
perfeitamente, devemos ler este A Política em Aristóteles e
Santo Tomás de Aquino, porque foram precisamente esses dois
pensadores os que mais desenvolveram sistematicamente a
“filosofia das coisas humanas”, tendo sempre presente, seria
ocioso dizer, aquela união indissociável entre o saber ético e o
político. Aliás, é corrente há muitos séculos a expressão aris-
totelismo-tomismo, sendo visto Santo Tomás não raro como
uma espécie de continuador medieval do Estagirita, ou pelo
menos como o teólogo cristão que teria “batizado” a obra do
grego. Pois um dos objetivos de Martínez Barrera neste livro é
precisamente mostrar quão falsa é tal expressão e concepções.
Embora não faltem, no próprio Aquinate, elementos aparentes
para confirmá-las (entre outros, a enorme deferência de Santo
Tomás para com Aristóteles e, particularmente, o uso por ele
de todo um arcabouço conceptual deste), veremos neste livro
que o frade dominicano se afasta do filósofo grego em pontos
capitais. Antes de tudo, no olhar essencialmente metafísico
com que trata a ética e a política, enquanto o Estagirita as
estuda de um ângulo quase exclusivamente prático. Depois,
no seu conceito de natureza e seus respectivos alcances polí-
ticos, cujos corolários se podem resumir tanto na citação que
pusemos em epígrafe deste Prefácio, como no seguinte comen-
tário do Aquinate a uma passagem da Física aristotélica: “Diz
[Aristóteles] que é freqüente reduzir três das causas a uma, de
modo que a causa formal e a final sejam uma numericamente.
Mas isso se deve entender da causa final da geração, e não da
causa final da coisa gerada. Com efeito, o fim da geração do
homem é a forma humana. No entanto, o fim do homem não
é sua forma, senão que por sua forma lhe convém agir visando
ao fim”; enquanto Aristóteles não só se limita a afirmar que a
forma humana é a causa final da geração humana, mas não lo-
gra ultrapassar os marcos da pólis ou comunidade política en-
quanto ordem teleológica. E por fim no tratamento da religião

 - Tomás de Aquino, Comentário à Fisica, no 205, apud Martínez Barrera, Jorge, op. cit.,
p. 126. O grifo é deste autor.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 


e suas implicações morais, ponte praticamente inexistente na
obra de Aristóteles tal qual chegou até nós.
O livro de Barrera é, como já se disse aqui, luminoso, não
só porque esclarece, a meu ver definitivamente, o que separa
Santo Tomás de Aristóteles, mas também porque, ao fazê-lo,
nos fornece pré-condições para, como o faria o Aquinate, en-
tender metafisicamente o próprio mundo em que vivemos e sua
profunda crise ético-política (e religiosa). Como não haveria
de estar completamente engolfado em tão profunda crise um
mundo que renega a noção de lei natural que, aperfeiçoada
por Santo Tomás de Aquino, radica, como já vimos, não só
no estoicismo, mas em toda a tradição grega que culminou em
Platão, e que, de uma maneira ou de outra, atravessou toda a
história da humanidade até o Renascimento? O Aquinate, sem
negar a doutrina aristotélica e a importância que ela confere ao
sábio na expressão concreta da reta razão, “reformula-a segundo
o espírito paulino da Epístola aos Coríntios, recordando que a
perfeição da razão prudencial depende, em última instância,
de sua conformidade com uma ordem normativa metapolítica,
porque ‘ninguém, propriamente falando, pode impor uma lei a
seus próprios atos’ [Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q.
93, a. 5, resp.].” E, prossegue Barrera, “a grande contrapartida
da visão cristã consiste no reposicionamento axiológico das
questões políticas. Esta conseqüência só se fará sentir, em seus
efeitos práticos concretos, quando a cosmovisão secularizante
da modernidade tenda a expressar-se num novo corpo jurídico
para o qual a lei já não aspirará, como no caso do direito roma-
no, a ser um ars boni et aequi, mas antes a uma enunciação de
direitos e garantias individuais. Essa concepção da lei positiva
é sustentada por uma nova concepção da lei natural, e uma de
suas formulações já pode ser lida no Leviatã de Hobbes”.
Tentemos articular tudo quanto se disse até aqui: a ten-
dência a negar à inteligência sua capacidade própria leva, ao

 - Martínez Barrera, Jorge, op. cit., p. 100. Diz ainda Santo Tomás de Aquino: “A
primeira regra da razão é a lei natural” (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 95, a. 2 c.).
 - Martínez Barrera, Jorge, op. cit., p. 100.

vi A Política em Aristóteles e Santo Tomás


fim e ao cabo, à negação do espírito e de qualquer realidade
metafísica, o que consequentemente impede o reconhecimen-
to da lei natural como emanada da lei eterna e apreensível pela
mesma razão. Ter-se-á, por conseguinte, no plano político, a
tendência à referida secularização, a qual se traduziu numa
visão da história que poderíamos dizer “humano-messiânica”.
Vejamo-lo mais de perto.
Há, ainda grosso modo, outras três maneiras gerais de en-
tender a história do homem. A primeira, a doutrina hinduísta
dos ciclos históricos, segundo a qual cada ciclo perfaz uma ór-
bita da mais alta elevação espiritual para um estado de gradual
degradação, após o qual se dá uma restauração e se retorna
ao início de novo ciclo, e assim ad infinitum.10 A segunda é a
própria doutrina cristã, segundo a qual, após a perda do estado
de justiça original, a vinda do Messias marcou a consumação
dos tempos, girando toda a história humana, tanto a passada
como a subseqüente, em torno deste evento único. Por fim,
a terceira, que engloba uma multidão de correntes de pensa-
mento, é precisamente a que chamei “humano-messiânica”,
porque, numa diametral inversão da doutrina cristã, entroniza
o próprio homem no papel de messias. Por um lado, essa vi-
são pode remontar-se, como o mostrou o neo-aristotélico Eric
Voegelin,11 à concepção do monge cisterciense Joaquim de
Fiore (1132-1202) segundo a qual a história da humanidade se
compõe de três períodos ou reinos: o primeiro foi a era do Pai;
o segundo, a do Filho; e a terceira e última será a do Espírito
Santo ou Terceiro Reino.12 Não é difícil reconhecer as doutri-
nas que lhe são de algum modo caudatárias: a renascentista e
sua divisão da história em idade antiga, média e moderna; a
de Turgot e Comte com suas fases teológica, metafísica e cien-
tífica; a hegeliana e seus três estágios dialéticos que culminam
na auto-realização do espírito absoluto; a marxista e suas três

10 - Esta doutrina foi retomada no século passado por Marcel De Corte, em Essai sur
la fin d’une civilisation (Paris, Librairie de Médicis, 1949), numa tentativa, ao que parece
frustrada, de adaptá-la ao pensamento católico tradicional.
11 - Cf. The New Science of Politics, Chicago, University of Chicago, 1952.
12 - A doutrina de Joaquim de Fiore foi rejeitada pela Igreja.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás vii


etapas do comunismo primitivo, da sociedade de classes e do
comunismo final; e a hitlerista ou nacional-socialista e seu
Terceiro Reich (ou Reino).
Mas todas estas últimas têm um principal denomina-
dor comum: para elas, a história humana marcha, inexo-
ravelmente, para uma espécie de apogeu, por obra e graça
do próprio homem (o “homem universal”, ou uma classe
dele, ou uma raça dele), o qual assim se constrói ou deifi-
ca construindo progressivamente seu paraíso terrestre — e
nisso, como é patente, se afastam radicalmente da doutrina
de Joaquim de Fiore. Pois bem, não é preciso ser nenhum
Aristóteles nem Santo Tomás de Aquino para constatar
que esse ideal programático ruiu com a ruína do mundo que
ele criou: do Renascimento aos dias de hoje, tivemos nada
menos que as centenas de milhões de mortos das guerras
de religião pós-Reforma luterana; da Revolução Francesa e
seu Terror liberal e guilhotinesco; da Revolução Russa, cujas
vítimas feudais, burguesas, pequeno-burguesas e camponesas
(e operárias “reacionárias”, claro) foram abatidas por um Es-
tado que se dizia auto-extinguível; das duas guerras mundiais
e seu inaudito bombardeio de cidades repletas de crianças,
mulheres, velhos e inválidos; do massacre em massa, com
requintes científicos de crueldade, de uma raça em nome da
ereção de outra, sob as escuras brumas nietzschianas e wag-
nerianas de certa doutrina germanófilo-gnóstica; das por
todos os ângulos desnecessárias bombas de Hiroshima e Na-
gasaki e sua herança de degeneração genética; da carnificina
incontável dos Maos Tse-tungs e Pols Pots em nome de uma
revolução cultural nascida da “amplitude” intelectual de um
folheto vermelho. Nunca nenhum Átila, nenhuns bárbaros,
nenhuma civilização tinha sido capaz, tanto absoluta como
proporcionalmente, de tamanha façanha.
Mas importa ressaltar aqui a principal dessas correntes,
da qual, de um modo ou de outro, as outras se geraram, e
que efetivamente é a que se tornou hegemônica: a liberal.
Caracteriza-se ela, antes de tudo, por uma negação ou re-

viii A Política em Aristóteles e Santo Tomás


lativização da idéia de lei natural: 13 para o liberalismo, em
todas as suas configurações pluriformes, a fonte do justo e do
ético não é algo meta-humano, mas, ao contrário, a consciê­
ncia do indivíduo — historicizada e tornada autônoma em
relação ao Sumum Bonum. Perdem o justo e o ético, assim,
qualquer base objetiva pela qual se possam reconhecer, para
obscurecer-se em meio à névoa do subjetivo e, pois, do rela-
tivo. Logo, perde-se, propriamente falando, a noção mesma
do justo e do ético.14 E por essa razão é que a lei já não
pode aspirar a ser um ars boni et aequi, mas somente a ser
mera enunciação de direitos e garantias individuais.15 Não

13 - Como salienta François Lemoine, na história do liberalismo, todas as vezes em que


os seus ideólogos defenderam a lei natural, fizeram-no privando-a do seu fundamento
divino e primevo: o Ipsum Esse (o Próprio Ser), como diria Santo Tomás. A “moral” libe-
ral, pois — em todas as suas linhas —, é uma moral da perda do Sumo Bem, que não se
conforma às consciências individuais pelo simples fato de que estas não são fundantes
dos valores, mas no máximo têm potência para reconhecê-los na estrutura ontológica
da realidade, que culmina no Próprio Ser, de acordo com a metafísica de Tomás de
Aquino. Assim, por uma questão de prioridade ontológica, só poderia dar-se o contrá-
rio: elas é que precisariam conformar-se ao Sumo Bem, sendo a liberdade verdadeira
(na perspectiva cristã) não a escolha entre bens e males, mas a escolha objetiva de
bens reais pela inteligência e pela vontade, potências distintivas da alma humana, para
Santo Tomás. Entre as conseqüências suicidas de uma generalização do liberalismo,
Lemoine aponta: a) a degradação dos fundamentos das religiões; b) a indução dos
indivíduos a relacionar-se com a cultura não mais para “receber e transmitir”, e sim para
“produzir e consumir”; c) tendência dos crentes das religiões a “fabricar” eles mesmos
os seus próprios sistemas de crenças, conformando-os mentalmente às práticas de
suas vidas (pautadas, ainda que escamoteadamente, no elogio da consciência indivi-
dual); d) a diabolização de toda moral universalista, que não pode ter lugar numa socie-
dade em que os indivíduos são induzidos a fazer dos seus umbigos o centro dos valores
objetivos; e) a instauração de um ambiente hedonista e de crescente busca da auto-sa-
tisfação; f) a indução das pessoas a um sensualismo feérico; g) tecnicismo exacerbado.
Ver Lemoine, François, De la liquidité du libéralisme à sa liquéfaction par le libertarisme,
em http://www.laportelatine.org/formation/disputatio/liberalismelemoine/lemoine.php
14 - Tal é verdadeiro ainda que um ou outro autor liberal se esforce por encontrar uma
fonte objetiva para o justo e o ético. Por se tratar precisamente de pensamento liberal,
seu esforço é fadado ao fracasso.
15 - Completamente diverso é o espírito que inspira estas linhas do Aquinate: “Aquele
que quer o bem comum da multidão quer também, por conseguinte, o seu próprio bem,
por duas razões. Primeira, porque o bem próprio não pode existir sem o bem comum,
seja da família, da cidade ou do reino. Razão por que Máximo Valério diz dos antigos
romanos que “eles preferiam ser pobres num império rico a ser ricos num império po-
bre”. Segunda, porque, por ser o homem parte da casa e da cidade, precisa considerar
o que é bom para si levando em conta o que é prudente com respeito ao bem da mul-
tidão, porque, com efeito, a boa disposição das partes é julgada segundo sua relação
com o todo. Por isso diz Agostinho, no livro das Confissões, que “é disforme aquela

A Política em Aristóteles e Santo Tomás ix


só isso: o liberalismo tem por meta política a liberdade,16 que
se concretizaria na perfeita democracia universal segundo o
ideário iluminista.17
Tal meta, porém, mais que quimérica, deriva de e redunda
em algo patológico (e correlato à descendente filosófica car-
tesiano-kantiana, como tratada por Étienne Gilson).18 Como
escreve Martínez Barrera, “a melhor descrição da psicopatolo-
gia e da conseqüente sociopatologia devidas à entronização da
liberdade como uma meta por alcançar é vividamente apresen-
tada por Platão a partir do capítulo 10 do oitavo livro da Repú-
blica”.19 Por que a liberdade é ao mesmo tempo boa, quando é
uma questão ética (como o afirma toda a tradição que vai de
Sócrates ao pensamento cristão), e má como objetivo político?
“A liberdade”, responde Barrera, “não pode ser formulada como
o fim de uma comunidade política que se queira moralmente
aperfeiçoadora porque essa comunidade só existe quando as
ações que a conformam são isto mesmo, ações ou atos, e não
potências ou faculdades. A liberdade, no vocabulário técnico
da filosofia, é um conceito afim ao de potência; a liberdade é
sempre liberdade de algo e não liberdade pura, em si. [...] Se ela
fosse o ideal da comunidade política, esta se poria na situação
de reservar-se o direito de modificação perpétua de todas as
ações, independentemente de sua bondade ou maldade.”20 E
conclui nosso autor: “[...] a prelazia do princípio de liberdade é
precisamente o que leva à dissolução da ciência política numa
simples cratologia, numa ciência do poder. É essa, precisamente,

parte que não é congruente com seu todo” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIª-IIª,
q. 47, a. 10, ad 2).
16 - Aqui, trata-se da liberdade não como um princípio interior inamovível da alma
humana (a partir dos atos livres da vontade e da inteligência), mas da liberdade política,
tão-somente.
17 - Parece-me ouvir os acordes ribombantes que envolvem, na Nona Sinfonia de
Beethoven, a “An die Freude” (Ode à Alegria) de Friedrich Schiller, inspirada precisa-
mente no ideário liberal do Iluminismo. Aliás, o coral beethoveniano com a “Ode” de
Schiller é, desde 1985, o hino oficial da União Européia.
18 - Cf. acima, nota 1 deste Prefácio.
19 - Martínez Barrera, Jorge, op. cit., pp. 73-74
20 - Ibid., p. 74..

 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


a perspectiva maquiavélica da política. Mas ao mesmo tempo se
deve dizer que, se não há liberdade interior, nenhuma decisão
justa e boa será possível. Trata-se antes de reposicionar a função
da liberdade em seu lugar natural, ou seja, o político, como um
conceito subordinado ao de sociedade boa, e não subordinante
dela; e no ético, como uma condição prévia das boas escolhas e
decisões, ou seja, como um instrumento da verdade prática.”21
E, se isso é assim, a própria democracia universal em que
se concretizaria tal meta política também é, mais que quimé-
rica, sociopatológica, no sentido preciso em que lhe dá Platão.
Como, porém, a democracia se transformou no grande ícone
da sociedade moderna, é preciso explicar aqui, minimamen-
te, essa afirmação. Tomemos, em prol da brevidade, apenas a
última palavra de Santo Tomás a respeito do melhor regime
político:22 “A melhor ordenação de uma cidade ou reino aos
príncipes é aquela na qual um é posto como chefe com poder,
o qual a todos preside; e sob o mesmo estão todos os que go-
vernam com poder. Assim, tal principado pertence a todos,
quer porque [o príncipe] pode ser escolhido dentre todos, quer
porque também é escolhido por todos. Tal é, com efeito, o
melhor governo, bem combinado: de reino, quando um só
preside; de aristocracia, enquanto muitos governam com po-
der; e de democracia, isto é, com o poder do povo, enquanto
os príncipes podem ser eleitos dentre as pessoas do povo, e ao
povo pertence a eleição dos príncipes”.23 A preocupação do
Aquinate é aqui, precisamente, a melhor maneira de fazer par-
ticipar a todos no regime político, de sorte que todos se sintam
responsáveis por ele e se evitem o mais possível as dissensões

21 -Martínez Barrera . Idem, p.75.


22 - Tenha-se sempre em mente, todavia, o que diz Martínez Barrera: “Naturalmente,
pode-se saber o que pensava Santo Tomás acerca desta questão [do melhor regime
político], mas não deixemos de ver que ela não é tematizada motu proprio em seu
pensamento. Em outras palavras, Santo Tomás não é um cratólogo político. Por isso
é muito discutível a pretensão de ver nele um defensor dos direitos humanos em sua
versão subjetivista contemporânea, um campeão da democracia, ou um paladino da
monarquia. Se buscarmos isso como filosofia política no Aquinate, estaremos escamo-
teando o verdadeiro status epistemológico que o saber político tem para ele” (Martínez
Barrera, Jorge, op. cit., p.107).
23 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 105, a 1, Resp.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás xi


e sedições, ou mais precisamente, o espírito de partido, que di-
lacera a comunidade política e lhe impede o bem comum pró-
prio: a paz social. É isso o que se dá na democracia moderna,
nascida do Terror da Revolução Francesa? Não, exatamente
pelo que se disse acima, ou seja, porque nela o político não é
um conceito subordinado ao de “sociedade boa”, e porque nela
o ético não é a condição prévia das boas escolhas e decisões,
não é um instrumento da verdade prática. E, neste vácuo éti-
co, a democracia moderna nunca poderá ser senão o que dela
podemos dizer com Chesterton: uma partidocracia a serviço de
uma plutocracia, na qual se sufoca o que supostamente se pre-
tendia valorizar, a liberdade interior, que na tradição socrática
“é a condição sine qua non das decisões que conformarão por
sua vez as ações boas e justas, objeto da política”.24
Mais que isso, porém: o reposicionamento global das coisas
políticas empreendido pelo Aquinate “traduz certa desconfiança
quanto à consecução de uma ordem política perfeita; [ele] suge-
re que a aproximação a esta meta será sempre assintótica. Nisto
Santo Tomás, alinhado com a tradição cristã, é mais estóico
que grego [...]”.25 E isso pode ser assim porque para o Aquinate
o fim do homem está verdadeiramente além da comunidade
política, “a tal ponto, que se poderia dizer, sem medo de errar,
que para Santo Tomás buscamos politicamente fins transpolíticos.
A comunidade política, portanto, não é um fim último e não
constitui a última perfeição humana. Esta doutrina constitui
uma forte impugnação a qualquer forma de totalitarismo e tira-
nia, ainda que essa tirania esteja nas mãos de uma maioria”.26
Eu ousaria dizer até que, mais que uma forte impugnação a
qualquer forma de totalitarismo e tirania, esta doutrina é a úni-
ca garantia que podemos ter contra elas. Diz Santo Tomás: “[...]

24 - Martínez Barrera, Jorge, op. cit., p.73.


25 - Ibid., p.89. Mas esclarece de imediato o mesmo autor: “O distanciamento cristão
do ideal grego de perfeição política, que, seria ocioso esclarecer, não tem as mesmas
raízes da ‘desilusão política’ estóica, foi consolidando ao mesmo tempo sua posição
ante as utopias renascentistas, na medida em que estas eram uma ressonância distan-
te da meta de perfeição política absoluta” (idem).
26 - Ibid., p. 133.

xii A Política em Aristóteles e Santo Tomás


o homem não se ordena à comunidade política segundo toda
a sua pessoa e todas as suas coisas, e por isso não convém que
todos os seus atos sejam meritórios ou demeritórios com relação
à comunidade política. Antes, tudo o que o homem é, tudo do
que ele é capaz e tudo o que ele tem deve ordenar-se a Deus”.27
Trata-se, em verdade, da encruzilhada em que desde sempre se
viu o homem: ou a permanente exposição a uma tirania brota-
da de suas próprias debilidades e limitações, ou a submissão a
uma ordem maior, objetiva, fonte perene do bem e do justo.
Como já o dizia Antígona.

Nota breve sobre a tradução

Com respeito às palavras gregas transliteradas para o alfabe-


to latino, acentuei-as, quando necessário, apenas para marcar as
tônicas. Tentou-se evitar, assim, uma pronúncia demasiado errô-
nea por parte do leitor não familiarizado com a língua grega.

27 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 21, a. 4, ad 3.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás xiii


Introdução

O livro que o leitor tem nas mãos é fruto de uma longa


freqüentação dos autores estudados. A um período inicial de
compreensão seguiu-se outro, de interrogações e dúvidas acerca
do verdadeiro alcance da dívida que o Aquinate teria com o
Estagirita. Fiquei desencantado desde o início com a expressão
“pensamento aristotélico-tomista”. Sem ter aprofundado sequer
por que intuía no início de minhas leituras um equívoco colos-
sal nesse enunciado, o certo é que nunca me persuadi de que
pudesse existir tal híbrido filosófico. Isso me levou a privilegiar
um tipo de estudo em que se pudessem apreciar com maior niti-
dez os pontos suscetíveis de ser comparados. O último capítulo
deste livro, o quinto, recolhe as conclusões a que cheguei após
considerar nos três primeiros capítulos alguns dos principais
tópicos da filosofia política aristotélica, especialmente os que
de uma maneira ou de outra serão retomados depois por Santo
Tomás. Já o último subtítulo do primeiro capítulo, que lhe serve
de conclusão, visa a mostrar que até uma ciência que alcança
sua dignidade epistemológica como ciência prática possui um
inevitável fundo metafísico. Os trabalhos de Enrico Berti e
Franco Volpi me foram aqui de valiosa ajuda.
Uma vez ressaltada a articulação da filosofia prática com
a metafísica, o que lhe assegura, se não a posse, ao menos a
inspiração na busca da verdade, era preciso fazer ver a relação
entre ética e política. Para Aristóteles, a pretensão de “mora-
lizar” a política não tem sentido, dado que ela mesma é uma
ciência prática ou ciência moral. A moralização da política só
é pensável para uma política que já não se concebe a si mesma
como ciência prática. Ao mesmo tempo, a ética só alcança sua
plenitude como saber da virtude moral num contexto político;
por isso, em vez de moralizar a política, trata-se para Aristóteles
de achar a dimensão política da moral. A noção que permite
esta ponte com a dimensão comunitária da ética é a de lei. Ela
tem uma missão de pedagogia moral que adquire sentido na
entronização da justiça. O notável é que essa noção de justiça

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 


a que está vinculada a lei não é uma justiça “jurídica”, mas
uma virtude do caráter. Este é o tema do segundo capítulo. No
terceiro, trato o problema da liberdade política em Aristóteles.
Aqui aparecem dois tópicos. Um deles é o alcance do conceito
de liberdade política no Estagirita. Esta não parece ser uma
noção essencialmente vinculada a uma questão de direitos,
entendidos estes como capacidade juridicamente tutelada,
mas sim à idéia socrática de liberdade interior, associada por
sua vez a certas características psicológicas. Os escravos estão
excluídos da vida política porque não têm liberdade, mas não
a têm não porque a tenham perdido, e sim porque nunca a
tiveram. A escravidão não é a causa da perda da liberdade,
mas a condição mais conveniente para aquele que não é livre
desde o princípio. Por alguma razão inexplicável, o escravo,
tal qual o descreve Aristóteles, não possui a faculdade de de-
liberação que define um homem livre; não tem capacidade
de decisão e, portanto, não pode participar de pleno direito
na comunidade ética da pólis, pois a virtude moral se define,
precisamente, como a perfeição dessa capacidade de decisão.
Como quer que seja, a liberdade não é para Aristóteles o bem
supremo da comunidade política, e isto nos leva ao segundo
problema, ou seja, o suscitado por um tipo de constituição que
faz da liberdade o fim da pólis: a democracia.
Quando Santo Tomás trata estes temas da política aristo-
télica, já sucedeu de permeio mais de um milênio de Cristia-
nismo. Os tempos do agostinismo político ficaram para trás;
a reflexão dos pensadores cristãos já teve ocasião de provar-se
diante de vários antagonistas e alcançou uma maturidade
que lhe permite acolher Aristóteles sem maiores temores. Ou
melhor, este é o caso do Aquinate, não necessariamente com-
partilhado por alguns de seus contemporâneos, que viam nas
doutrinas do Estagirita um sério perigo para a fé. Disso me
ocupo no quarto capítulo.
Eu disse no começo que este livro é fruto de uma longa
freqüentação dos textos. Estou longe, porém, de pretender
que os meses e anos dedicados à leitura e estudo de Aris-
tóteles e Tomás de Aquino garantam, por si sós, uma inte-

 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


lecção acabada de seus respectivos pensamentos. Há certas
lacunas, defeitos e imprecisões que não podem ser corrigidos
por meus exíguos recursos pessoais, não somente no terreno
material, que seria o menos preocupante, mas especialmente
no intelectual. Felizmente, neste último caso contei sempre
com o apoio, o conselho e a crítica dos amigos e colegas.
Não exagero se atribuo os acertos que este trabalho possa
conter à ingerência oportuna deles, e os desacertos somente
a mim mesmo. Neste sentido, quero expressar minha gratidão
a diversas pessoas e instituições que tornaram possível este
livro: o Prof. Ángel Luis González, por tê-lo acolhido na Serie
Cuadernos de Anuario Filosófico, da Universidade de Navarra;
Alejandro Vigo; Joaquín García Huidobro; Carlos Massini
Correas; Héctor Padrón; Ricardo Crespo; Miguel Verstraete;
Jacques Follon; James McEvoy; Juan Cruz Cruz. Todas essas
pessoas me honram com sua amizade e são raros exemplos
de virtude ética e intelectual. Quero agradecer também, na
pessoa do Professor Jan Aertsen, a todo o Thomas-Institut da
Universidade de Colônia, que me proporcionou um ambiente
ideal durante dois meses para eu poder trabalhar no tema da
religião e da ética em Aristóteles e Tomás de Aquino. E, natu-
ralmente, vai toda a minha gratidão à Cristina, minha esposa,
por sua paciência, abnegação e amizade.

Jorge Martínez Barrera

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 


I
Aristóteles e o
neo-aristotelismo
I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

1. Dependência ou independência entre metafísica e


filosofia prática?

A interpretação da filosofia prática de Aristóteles, isto é,


sua filosofia moral e sua filosofia política, oscila hoje entre duas
tendências particularmente evidentes na erudição alemã. Tais
tendências são as seguintes:

a) uma que insiste nos pressupostos metafísicos desta filosofia,


representada particularmente pelos trabalhos de Manfred
Riedel, Metaphysik und Metapolitik. Studien zu Aristoteles
und zur politischen Sprache der neuzeitlichen Philosophie,
Frankfurt-a-M., 1975, e de Andreas Kamp, Die politische
Philosophie des Aristoteles und ihre metaphysischen Grundla-
gen. Wesentheorie und Polisordnung, München, 1985;

b) e uma que insiste, antes, em certa autonomia da filosofia prá-


tica aristotélica. Esta última tendência é, especialmente, a re-
presentada por Günther Bien, Die Grundlegung der politischen
Philosophie bei Aristoteles, Freiburg-München, Alber, 1973.

Entre os autores não alemães que aderem a cada uma dessas


interpretações, temos os seguintes. Em primeiro lugar, os que se
inclinam para a presença de um forte conteúdo metafísico na
reflexão prática aristotélica são, entre os mais conhecidos: Pierre
Aubenque, Le problème de l’être chez Aristote, Paris, 1962 (nova
edição em 1991) e La prudence chez Aristote, Paris, 1963 (3ª.
edição corrigida e aumentada em 1986); Richard Bodéüs, Le

- Edição em espanhol: Metafísica y Metapolítica, Buenos Aires, Alfa, 1976.


 - Cf. Bodéüs, R., Politique et philosophie chez Aristote, Namur, Société des Études
Classiques, 1991, p. vi. Os trabalhos citados por Bodéüs estão referidos na bibliografia.
 - Escreve Aubenque: “Que nos seja permitido, então, voltar a uma interpretação interna
dos textos aristotélicos, essencialmente a Ética a Nicômaco e, acessoriamente, a Ética
a Eudemo e a Grande Moral, pondo porém estes textos em relação com o que constitui
seu marco natural: as doutrinas metafísicas de Aristóteles. O reconhecimento de tal
relação e da necessidade de estudá-la parece evidente; até agora, porém, não parece
ter sido posto em prática. A maior parte dos intérpretes, supondo que uma especializa-
ção excessiva lhes impediu estudar ao mesmo tempo a Metafísica de Aristóteles e suas
Éticas, jamais conseguiu relacionar verdadeiramente uma metafísica que eles supõem

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 


Jorge Martínez Barrera

philosophe et la cité, Paris, 1982; e o já citado trabalho Politique et


philosophie chez Aristote. Também o autor italiano Enrico Berti,
em vários de seus trabalhos, se mostra favorável a interpretar a
filosofia prática aristotélica, se não em linha dedutiva direta, ao
menos como não hostil a certos pressupostos metafísicos.
Em contrapartida, os autores que enfatizam certo grau de
independência da ética e da política com respeito à metafísica
são, entre outros, John Finnis, Fundamentals of Ethics, Oxford,
1983 (2ª. edição em 1985), e especialmente René-Antoine
Gauthier, La morale d’Aristote, Paris, 1958 (3ª. edição revisada
e corrigida em 1973).
Tal divergência de interpretações provavelmente obedece,
como assinala Bodéüs, à própria marcha do pensamento aristoté-
lico, que não permite concluir de maneira definitiva quanto a este
assunto. O certo, de qualquer modo, é que a metafísica aristotélica,
ao conceber a possibilidade de um estudo filosófico do bem huma-
no, rompe com a unidade quase monolítica do bem platônico e se
coloca como um estudo com seus próprios princípios. E, como o
homem não é, para Aristóteles, um deus, mas um ente submetido
ao devir e à mudança, seu bem próprio de alguma maneira também
será afetado por esses processos metabólicos. Como quer que seja, o
lugar que o estudo filosófico do bem humano ocupa no pensamento
do Estagirita encontra-se essencialmente em suas Éticas, na Política
e também, em alguma medida, na Retórica.

2. A interpretação sistemática e a interpretação genética

Um segundo grupo de problemas levantados pela crítica


contemporânea é o da famosa disputa entre a exegese sistemáti-
ca e a genética. Este tema é um problema relativamente recente,
e sua história é resumida nas primeiras páginas do citado livro
de R.-A. Gauthier, La morale d’Aristote.

‘sistemática’ e uma ética que [...] faz profissão, se nos atrevemos a dizê-lo, de assiste-
maticidade” (Aubenque, P., La prudence chez Aristote, Paris, P.U.F., 1986, p. 27).
 - Ver, por exemplo, Aubenque, P., “La philosophie pratique d’Aristote et sa “réhabilita-
tion” récente”, em Revue de Métaphysique et de Morale, nº 2/1990, pp. 249-266.

 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

Sabemos, diz Gauthier, que o Corpus aristotelicum, ou seja,


a coleção de escritos tradicionalmente atribuídos ao Estagirita,
e cuja Editio Princeps é a de Bekker (Berlim, 1830), contém três
tratados de moral: a Ética a Nicômaco, a Ética a Eudemo e a
Grande Ética ou Magna Moralia. A esses três tratados se acres-
centa um trabalho que não está contido no Corpus, o Protréptico.
A primeira questão que a crítica moderna se coloca é, obvia-
mente, a autenticidade de tais trabalhos. A resposta que se dê a
esta pergunta depende em boa parte da maneira de conceber a
exegese do pensamento de Aristóteles. Pois bem, existem dois
grandes tipos de exegese que dividem os especialistas: a exegese
sistemática e a exegese genética.
A primeira delas, a sistemática, prossegue Gauthier, é a
exegese chamada “tradicional”. Ela foi inaugurada, no século II
da nossa era, pelo comentador grego Aspásio. Na Idade Média,
esta interpretação encontrou sua expressão acabada na obra
de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, e foi retomada em
nossos dias por numerosos especialistas, entre os quais os mais
notáveis são Franz Dirlmeier e Ingemar Düring.
Conscientemente ou não, a exegese sistemática é edificada
sobre uma hipótese que para ela é evidente: Aristóteles, enquan-
to filósofo, reuniu num sistema coerente todos os conhecimentos
de seu tempo, e o Corpus aristotelicum contém a exposição desse
sistema. É pois legítimo interpretar as diversas partes desse con-
junto como se tivessem uma sólida conexão intrínseca. Em parti-
cular, este procedimento tem aplicação quando se trata da moral,
que se pode explicar recorrendo à psicologia e à metafísica. Foi
isto o que fizeram os medievais com consumada mestria, embora
não tenham deixado de verificar a existência de vários desacor-
dos. Mas essas contradições não foram capazes de desorientá-los,
porque desde Pedro Abelardo o Sic et Non era o fundo mesmo
do método teológico e não havia, em conseqüência, contradição

 - D irlmeier , F., vols. 6, 7 e 8 da coleção Aristoteles. Werke in deutscher Überset-


zung, respectivamente: vol. 6: Nikomachische Ethik, Berlin, 1956 (5ª. ed., 1969); vol.
7: Eudemische Ethik, Berlin, 1962 (2ª. ed., 1969); vol. 8: Magna Moralia, Berlin, 1958
(2ª ed., 1966).
 - Düring, I., Aristoteles. Darstellung und Interpretation seines Denkens, Heidelberg, 1966.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 


Jorge Martínez Barrera

que não pudesse ser resolvida por uma distinção. Nesse sentido,
vários modernos permaneceram fiéis ao método medieval. Não
obstante, o desacordo entre a psicologia suposta pelos tratados de
moral e a psicologia do tratado De anima é de tal magnitude, que
se fez necessário oferecer uma explicação. E assim nasceu a teoria
da compartimentação, elaborada, entre outros, por John Burnet:
em seus tratados de moral, Aristóteles faz voluntariamente abs-
tração de suas próprias teorias psicológicas, as quais ele considera
demasiado técnicas, para ater-se a uma psicologia popular acessí-
vel a todos. A moral, com efeito, não é para ele uma ciência, mas
uma dialética, ou seja, uma arte de persuadir menos preocupada
com a verdade que com a eficácia.
Assim, em função do sistema atribuído a Aristóteles, a crí-
tica levantou o problema da autenticidade, neste caso ao menos,
das três Éticas atribuídas ao Estagirita. As diferenças obedecem,
em última instância, ao tipo de público a que Aristóteles teria
dirigido cada uma de suas obras.
A exegese genética nasceu em 1923 com a publicação do
trabalho de Werner Jaeger (1888-1961). A tese de Jaeger é, se-
gundo Gauthier, simplesmente genial. Jaeger teria descoberto em
Aristóteles não um sistema fixo e fechado, mas uma investigação
viva. Aristóteles não teria sido sempre Aristóteles, mas tornou-se
o que foi de maneira paulatina. Podemos acompanhar a evolu-
ção de seu pensamento já desde a sua primeira obra, o Gryllos,
publicada por volta de 358 a.C., quando tinha 26 anos, até sua
fuga de Atenas para Cálcis, onde morre em 322 aos 62 anos. De
início preconizara o idealismo platônico, mas depois o criticou
e rejeitou; no momento da rejeição, lançou os fundamentos da
filosofia realista, atenta à experiência concreta, e, lentamente,
levou este modo de ver as coisas até suas últimas conseqüências.
De todos os trabalhos inspirados pelo Aristóteles de Jaeger, o mais
importante é o livro de François Nuyens L’évolution de la psycho-
logie d’Aristote, publicado em holandês em 1938 e traduzido para

 - Burnet, J., The Ethics of Aristotle, London, 1900.


 - Jaeger, W., Aristoteles. Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung, Berlin,
1923 (numerosas edições e traduções posteriores).

10 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

o francês dez anos depois. Dois especialistas notáveis do aristote-


lismo contemporâneo, Mons. Agustin Mansion e sir David Ross,
bem como grande número de especialistas de primeiro nível,
como, por exemplo, H. J. Drossaart Lulofs, fizeram sua a exegese
genética de Jaeger e de Nuyens.
Pois bem, sem negar o enorme mérito dos trabalhos de
Jaeger e da novidade que a interpretação genética implica,
não se pode deixar de considerar que ela apresenta algumas
limitações, que foram assinaladas, entre outros, com particular
agudeza por Pierre Aubenque.10
Embora seja verdade que a crítica de Aubenque à exegese
genética inaugurada por Jaeger se refere essencialmente ao as-
sunto da phrónesis, não é possível deixar de comprovar que suas
observações são de alcance mais amplo que o referente apenas
ao tema da prudência.
“Para querer submergir Aristóteles em seu meio histórico”,
escreve Aubenque, “em reação à tradição da exegese, à força de
multiplicar as pesquisas sobre as fontes e sobre a evolução de seu
pensamento, acabou-se por acentuar quase exclusivamente textos
marginais, como os do Protréptico, da Ética a Eudemo ou da Gran-
de Moral, e por descuidar do texto essencial, que continua a ser o
livro VI da Ética a Nicômaco. Mais ainda”, continua Aubenque,
“o trabalho filosófico de reconstituição das fontes e da evolução,
embora seja verdade que teve como resultado despertar de sua
sonolência uma longa tradição de paráfrase trivial e de ampli-
ficação piedosa, não contribuiu menos, porém, para extraviar a
interpretação numa direção que deixava de lado o essencial.
“Em poucas palavras”, prossegue Aubenque, “poderíamos
resumir assim a nossa crítica: depois dos trabalhos de filólogos
como Ernest Kapp11 e Werner Jaeger, substituiu-se o problema
da interpretação da ética aristotélica no conjunto da especula-
ção aristotélica pelo do lugar da Ética a Nicômaco na história
da ética aristotélica e, mais geralmente, da ética aristotélica na

 - Gauthier, R.-A., La morale d’Aristote, Paris, P.U.F., 1973, pp.5-10.


10 - Aubenque, P., art. cit.
11 - K app, E., Das Verhältnis der eudemischen zur nikomachischen Ethik, Berlin, 1912.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 11


Jorge Martínez Barrera

história da ética. Poder-se-ia dizer que à compreensão horizontal,


que multiplica as conexões com as outras partes do sistema, se
preferiu a compreensão vertical dos diferentes momentos da
história de uma noção ou de um problema. O resultado é que,
à força de ver no aristotelismo uma simples etapa entre o pré-
aristotelismo do jovem Aristóteles e o pós-aristotelismo de seus
epígonos, se acabou por esquecer o que tinha de específico: o
aristotelismo mesmo [...]. Desse modo, o método genético, sem-
pre mais preocupado com os processos que com as estruturas,
sempre mais disposto a descobrir as contradições de uma dou-
trina que sua coerência, sempre mais atento à instabilidade de
um pensamento que à sua vocação para a unidade, tendeu, tal-
vez sem querer, a transformar-se numa interpretação pejorativa
que vê em todas as partes transição e passagem entre extremos,
ali onde o ponto de vista do autor teria permitido discernir pro-
vavelmente um cume”.12
Já mais contemporaneamente, encontramos alguns trabalhos
que de algum modo ratificam as observações de Aubenque contra
a exegese genética. Entre esses autores, podemos mencionar Pierre
Pellegrin.13 A conclusão deste autor é que, ao fim e ao cabo, não
surgiu nada inquestionável das inumeráveis pesquisas que foram
feitas sobre a cronologia interna da Política de Aristóteles. Do mes-
mo modo, ficou por resolver o problema da ordem em que deve ser
lido esse texto. Sabemos, diz Pellegrin, que foram propostas várias
modificações na ordem tradicional dos livros e que, por exemplo, a
hipótese segundo a qual os livros VII e VIII deviam ser transpostos
para depois do livro III remonta pelo menos a Nicolau de Oresme.14
Pois bem, com respeito a essas reacomodações, prossegue Pellegrin,
existem duas classes de reconstituições possíveis: as lógicas e as
cronológicas. Mas estas duas não são senão dois aspectos de uma
mesma tarefa. Com efeito, nossas hipóteses cronológicas, na au-
sência de critérios “objetivos”, não são mais que a sombra de nossas

12 - Aubenque, P., op. cit, pp. 26-27.


13 - Pellegrin, P., “La Politique d’Aristote : unité et fractures. Éloge de la lecture som-
maire”, em Aristote Politique. Études sur la Politique d’Aristote, sous la direction de
Pierre Aubenque, publiés par Alonso Tordesillas, Paris, P.U.F., 1993, pp. 3-34.
14 - A tradução francesa da Política por Nicolás de Oresme dataria de 1370.

12 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

concepções “lógicas” acerca do desenvolvimento do pensamento


aristotélico. Nossas propostas cronológicas fundam-se, por exem-
plo, em nossa convicção de que Aristóteles ou se teria afastado
progressivamente do platonismo, ou teria rompido bruscamente
com ele. E, se levarmos seriamente em consideração esse pressu-
posto hermenêutico e suas exigências, seremos necessariamente
levados a desmembrar não só a ordem dos livros da Política, mas
também o próprio conteúdo deles. Daí, por exemplo, a cronologia
proposta por Aubonnet: a Política fundamental (Urpolitik) seria
constituída por um primeiro esboço dos livros VII e VIII, pelo livro
II reduzido à crítica do Estado platônico, e pelo livro III menos os
capítulos 14 a 18. Depois viriam os livros IV, VI e V; depois o livro
I, e mais adiante o livro II com os estudos sobre Esparta, Creta e
Cartago. Finalmente, Aristóteles teria dado uma nova edição dos
livros III, VII e VIII, harmonizada com os livros IV a VI. Por seu
lado, Phillippe Betbeder, numa importante monografia sobre ética
e política em Aristóteles, adere a um suposto consenso generali-
zado quanto à seguinte ordem: livros VII-VIII, livro II, livro III,
livros IV-VI, enquanto o livro I, mais difícil de situar de maneira
incontrovertível, viria depois do livro III, ou seja, ao final.15
Cabe assinalar que a edição da Ética a Nicômaco de Gauthier e
Jolif também é sobrecarregada de transposições e reacomodações
16

do texto, com a finalidade de respeitar minuciosamente os requisi-


tos da exegese genética, mas, ao fim e ao cabo, essas manipulações
tornam às vezes incompreensível a leitura e até a própria doutrina.
O que nasce com intenção de esclarecer termina, paradoxalmente,
por confundir tudo e fazer perder de vista a coisa mesma de que se
fala, quando não a própria doutrina.
Diante dessa postura, que exacerba os pruridos interpreta-
tivos da exegese genética, Pellegrin mostra-se desencantado.
Em suma, depois de uma longa freqüentação e, sobretudo,
de uma cuidadosa, como a chama ele, “prática do texto”, Pellegrin
julga-se em condições de concluir que a questão da ordem dos

15 - Betbeder, Ph., “Étique et politique selon Aristote”, em Revue des Sciences philoso-
phiques et théologiques, T. LIV (1970), n°3, pp. 453-488.
16 - Aristóteles, L’Éthique à Nicomaque, Louvain, 1970 (2ª. ed.).

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 13


Jorge Martínez Barrera

livros da Política é algo que por ora está fora de nosso alcance.
Além do mais, é um bom método pô-la conscientemente fora de
nosso alcance e adotar, ainda que provisoriamente, a hipótese da
unidade da Política. E, se alguém objeta que a presença de estratos
redacionais de diversas épocas, e até de diversos autores, é uma
evidência inquestionável em algumas passagens, Pellegrin respon-
de que sua leitura quase sistemática não significa ao mesmo tempo
a suposição de que a Política seja uma obra acabada. Nada impede,
com efeito, que uma exegese mais próxima da tradição sistemática
que da interpretação genética possa considerar a Política como uma
obra in statu nascendi, ou como notas reunidas antes da redação
definitiva. Em todo o caso, a proposta de Pellegrin, ante as des-
vantagens que uma hiperespecialização exegética, uma excessiva
insistência em aspectos lexicográficos e de estilo e a sutileza de
prestigiosas análises oferecem à compreensão filosófica profunda do
texto, é de retorno a uma leitura sumária da obra, isto é, a uma lei-
tura que até se coloque aquém das posições antagônicas existentes
hoje. Essa leitura sumária nem sequer deve pretender superar as
atuais contradições, pois esta tarefa se mostra, ao menos no estado
atual das pesquisas, como um beco sem saída.
Há certas regras mínimas de leitura da Política, e talvez
de toda a obra aristotélica, que obedecem à simples precau-
ção de considerar a primeira coisa que deveria ser levada
em conta: o estado literário em que nos chegaram os textos.
Com relação a isto, não há a menor dúvida de que, em geral,
tais textos não têm em sua maioria a forma de obras acaba-
das destinadas à publicação, apesar de existirem espargidas,
aqui e ali, algumas passagens mais “cuidadas”. Em todo o
caso, é sumamente complicado fazer um estudo estilístico
comparável ao que foi feito com os diálogos platônicos, que
permitiu uma ordenação cronológica com respeito à qual há
pouco desacordo.17
O estado literário dos textos, então, prescreve por si só
certas normas de leitura ou interpretação. Entre elas, Pellegrin
menciona as seguintes.

17 - Pellegrin, P., art. cit., p. 5.

14 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

Em primeiro lugar, devemos rejeitar as cronologias funda-


das em critérios doutrinais. Esta regra proíbe, por exemplo, o
seguinte raciocínio: “Aristóteles se afastou do platonismo; logo,
os livros VII e VIII da Política são antigos”.
A segunda regra nos fará rejeitar também as ordenações
de textos segundo critérios “lógicos”, como, por exemplo: “O
livro V da Política deve ser colocado depois do livro VI porque
é preciso terminar de tratar as constituições antes de tratar o
problema de sua corrupção”.
E, em terceiro lugar, devemos privilegiar uma aproximação
formal do texto; isto significa que não devemos extrair nenhu-
ma conseqüência estrutural das diferenças de conteúdo. Em
razão desta terceira regra, tentaremos privilegiar as declarações
programáticas, as fórmulas de abertura e fechamento dos tex-
tos, os anúncios de plano.
Desse modo se evidenciará que a ordem em que nos chega-
ram os textos da Política não é totalmente insensata, e até pode
ser a menos ruim para uma primeira leitura da obra.
Chega então Pellegrin à seguinte conclusão, após ter feito
sua leitura “sumária” de várias passagens da Política: “A leitura que
fizemos da Política é inabitual e frustrante. Ela vai, em todo o caso,
contra uma das convicções mais arraigadas em nossa profissão,
aquela para a qual quanto mais fina é uma leitura — more fine-
grained, diriam nossos colegas anglo-saxões — mais está em con-
dições de explicar os meandros secretos de um texto e, portanto,
é mais verdadeira ou, popperianamente falando, mais dificilmente
‘falseável’. Ante essa prática minuciosa, encontramo-nos um pouco
na situação daquelas pessoas que falam de um livro de que leram
só o sumário. De fato, o caráter sumário de nossa aproximação
lhe deu uma solidez inesperada ao colocá-la abaixo da maior parte
das controvérsias que constituem a história da interpretação da
Política. Ao mesmo tempo que nos dá uma visão geral (poder-se-ia
dizer geográfica?) do texto, esta leitura confirmou a minha primei-
ra impressão: uma interrogação séria sobre a ordem dos livros da
Política excede as nossas (em todo o caso, as minhas) forças [...]”.18

18 - Ibid., p. 34.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 15


Jorge Martínez Barrera

3. A reabilitação da filosofia prática e o


neo-aristotelismo

Com este tema, entramos num dos debates mais interessan-


tes que se suscitaram atualmente com respeito à interpretação da
filosofia prática de Aristóteles. A importância dessas discussões
é garantida em grande parte pelo fato de que não só os pontos
em disputa não remetem apenas a um academicismo erudito,
mas, como tentaremos examinar, estão em jogo implicações
vitais, ou, para dizê-lo em termos atuais, existenciais, muito mais
profundas que as simples considerações científicas.19
Desde o começo da década de 1960 e até o final da de
1970, teve lugar na Alemanha um intenso debate que alcançou
celebridade mundial com o título de “reabilitação da filosofia
prática”.20 Segundo Volpi, os dois textos mais importantes que
abrem a corrente neo-aristotélica são os de Hannah Arendt,
A Condição Humana, publicado nos Estados Unidos pela pri-
meira vez em 1958, e o de H.-G. Gadamer, Verdade e Método,
publicado pela primeira vez em alemão no mesmo ano. Trata-
se de obras com numerosas edições e traduções, também para
o espanhol. Na verdade, o que esteve estritamente na origem
do neo-aristotelismo foram algumas partes desses livros. No de
Arendt, foram os capítulos dedicados à análise da “vita activa”, e
no de Gadamer o referente à “atualidade hermenêutica de Aris-
tóteles”. Berti menciona também os trabalhos de outros autores
que contribuíram para esta reabilitação da filosofia prática em
chave aristotélica: o trabalho de Leo Strauss “What is Political
Philosophy?”, publicado pela primeira vez em What is Political
Philosophy and Other Studies (1959) e reimpresso em Political Phi-
losophy. Six Essays by Leo Strauss (edited with an introduction
by Hilail Gildin, Indianapolis, New York, Pegasus, 1975); o de

19 - Para a preparação deste ponto, sigo em suas linhas fundamentais a análise de


Berti, E., art. cit., pp. 249-266, e a de Volpi, F., art. cit., pp. 461-484. Cabe assinalar
que, segundo Berti, a expressão “neo-aristotelismo” foi usada pela primeira vez por
Jürgens Habermas em 1975.
20 - O livro mais importante sobre este debate foi o trabalho editado por Riedel, M.,
Rehabilitierung der praktischen Philosophie, 2 vols., Freiburg-i.-Breisgau, 1972-1974.

16 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

Wilhelm Hennis Politik und praktische Philosophie. Eine Studie


zur Rekonstruktion der politischem Wissenschaft (Neuwied am
Rhein u. Berlin, Hermann Luchterhand Verlag, 1963); e o de
Eric Voegelin The New Science of Politics (Chicago, University
Press, 1952).21
Uma citação do livro de Hennis nos dará uma idéia dos
motivos que animaram e animam ainda hoje o neo-aristotelis-
mo. Diz este autor na Advertência do livro: “Este trabalho não
tem intenção histórico-científica em sentido rigoroso. Voltado
exclusivamente para a problemática atual e para a tarefa da
ciência política, quer somente recordar a forma primeira dela,
hoje quase desaparecida da consciência moderna. O autor está
convencido de que tal ‘recordação’ pode ser uma orientação e
uma ajuda para o trabalho atual”.22
O movimento de “reabilitação da filosofia prática” nasce
em grande parte como reação ao modo moderno de conceber o
conhecimento científico, e mais especificamente à idéia de que
deve existir um paradigma científico, fundamentalmente teoré-
tico, que deve ser estritamente respeitado por qualquer ramo do
saber que aspire a uma categorização epistemológica. A história
evolutiva do paradigma epistemológico moderno, pelo menos
quanto às matérias morais e políticas, tem raízes em Descartes
e Hobbes, e até se pode remontar à obra de Ockham. Mas, para
nosso propósito, basta assinalar que, em geral, o alvo das críticas
é a célebre tese da neutralidade axiológica (Wertfreiheit) da ciência,
que teve em Max Weber um de seus expoentes. Esta tese proibia
à política e, em geral, a toda e qualquer ciência prática exercer
uma função orientadora e prescritiva da ação, porque isso impli-
caria compromisso pessoal com juízos de valor, os quais, por sua
natureza, não podem ser objeto de ciência. A ciência deve ser,
ao contrário, objetiva, universal e, sobretudo, axiologicamente

21 - Cf. McAllister, T., Revolt Against Modernity. Leo Strauss, Eric Voegelin, and the
Search for a Postliberal Order, Kansas, University Press, 1996; Possenti, V., Le società
liberali al bivio. Lineamenti di filosofia della società, Perugia, Marietti, 1992²; Crespigny,
A. de, & Minogue, K. R., Contemporary Political Philosophers, New York, Dodd, Mead
& Co., 1975.
22 - Política y filosofía práctica, versión castellana de Rafael Gutiérrez Girardot, Buenos
Aires, Sur, 1973, p. 7.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 17


Jorge Martínez Barrera

neutra. “O saber que orienta a moral”, escreve Franco Volpi,


“transforma-se então no saber neutro das ciências do espírito,
das ciências da cultura ou do homem. Sua consideração do
agir se conforma ao ideal da objetividade e da universalidade
descritiva do saber científico; a consideração prático-moral de
outrora se transforma numa consideração teórico-constatadora
e perde, assim, o conteúdo de verdade que lhe era próprio na
tradição anterior [...]. A neutralidade descritiva se transforma,
em determinado momento, num caráter imanente à razão, a
qual, por isso, é progressivamente desapossada de seus conteú-
dos substanciais e se desenvolve assim cada vez mais na direção
da mera instrumentalidade e da mera funcionalidade. Sendo
incapaz de orientá-la, ela perde sua importância para a vida.”23
Mas essa “contaminação” axiológica na ciência política, sobre-
tudo de raiz aristotélica, suscitou não poucas réplicas no sentido
de que esta abriria as portas a posições políticas concretas de
tipo conservador.24 Mas ao “conservadorismo” de Aristóteles
voltaremos mais adiante. O que interessa, em todo o caso, é que
para o Estagirita o propósito cognoscitivo na “filosofia das coi-
sas humanas”, como ele mesmo chama a ética e a política, tem
um fim que vai além do simples conhecimento. Diversas vezes
assinala Aristóteles que a reflexão nestes assuntos se faz com o
propósito de influir no comportamento humano. Não se trata
aqui de uma compreensão livre de juízo valorativo, mas de uma
compreensão que esteja em condições de servir à condução mes-
ma da vida.25 Por outro lado, há uma interessante peculiaridade

23 - Volpi, F., art. cit., pp. 470-471.


24 - Cf. Berti, E., art. cit., p. 251. Segundo Berti, as críticas mais penetrantes ao neo-
aristotelismo foram desenvolvidas por Riedel, M., “Über einige Aporien in der praktischen
Philosophie des Aristoteles”, em Rehabilitierung..., vol. I, pp. 79-97; Habermas, J., “Über
Moralität und Sittlichkeit. Was macht eine Lebensform ‘rational’”, publicado no vol. edita-
do por H. Schnädelbach, Rationalität, Frankfurt-a.M., Suhrkamp, 1984, pp. 218-233.
25 - “[...] o fim da política não é o conhecimento, mas a ação” (Ética a Nicômaco, I, 3, 1095
a 6). “[...] o presente tratado não é teórico como os outros (pois não investigamos para
saber o que é a virtude, mas para ser bons, já que de outro modo seria totalmente inútil),
temos de considerar o relativo às ações, como devemos realizá-las” (Ética a Nicômaco,
II, 2, 1103b 26 ss.). “Com razão se diz, pois, que praticando ações justas a pessoa se faz
justa, e com ações morigeradas, morigerada. E sem praticá-las ninguém tem a menor
possibilidade de vir a ser bom. A maioria, porém, não pratica essas coisas, mas se refugia
na teoria e crê filosofar e assim poder vir a ser homens completos” (Ética a Nicômaco, II,

18 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

na filosofia prática aristotélica que a torna de difícil aceitação


para os critérios epistemológicos de cunho weberiano. Trata-se
daquela segundo a qual, no ato de aprendizado de determina-
do conhecimento, especialmente em questões ético-políticas,
importam em grande medida as próprias disposições éticas do
aluno.26 Este requisito, inaceitável para uma ciência que faça da
neutralidade axiológica sua garantia de solidez e, até, sua con-
dição de saber epistemológico, foi salientado por Hennis: “Se-
gundo a moderna concepção [da ciência], qualquer pessoa pode
pesquisar e aprender; a ética que se deve pressupor na pesquisa
e no aprendizado é uma ética especificamente profissional, e
em parte alguma se dá como condição o pressuposto de que
deve ser um bom homem, nem, muito menos, um bom cidadão,
quem quiser ou puder adquirir conhecimentos científicos [...].
O objeto da ciência política é o nobre e o justo. A investigação
deste campo parte da práxis da vida e se ocupa dela. Dado que
um homem jovem é inexperiente na práxis da vida, é um ou-
vinte inadequado para a ciência política [...]. O realismo desta
concepção é tal, que não é fácil ser surdo e cego a ela. Toda a
experiência, em especial a experiência pedagógica, parece dar
razão a Aristóteles. Se seu ponto de partida, a saber, que na
política se trata do nobre e do justo, é correto, então é claro
que neste campo só está em condições de ter ‘cientificamente’

4, 1105b 9 ss.). “Se destas coisas, e das virtudes, e da amizade, e do prazer já falamos
suficientemente em termos gerais, devemos crer que o tema que nos tínhamos proposto
chegou ao fim, ou, como se diz, o fim, quando se trata de coisas práticas, não é tê-las
considerado todas e conhecê-las, mas antes fazê-las? Então tampouco, tratando-se da
virtude, basta conhecê-la, mas devemos procurar tê-la e praticá-la, ou conseguir qual-
quer outro meio para vir a ser bons” (Ética a Nicômaco, X, 9, 1179a 35-b 2). “E também é
justo que a Filosofia seja chamada ciência da verdade; pois o fim da ciência teórica é a
verdade, e o da ciência prática, a obra” (Metafísica, II, 993b 20 ss.).
26 - O texto capital desta doutrina se encontra no começo mesmo da Ética a Nicômaco:
“[...] o jovem não é discípulo apropriado para a política, já que não tem experiência das
ações da vida, e a política se apóia nelas e sobre elas versa; além disso, por deixar-se
levar pelos sentimentos, aprenderá em vão e sem proveito, dado que o fim da política
não é o conhecimento, mas a ação; e é indiferente que seja jovem em idade ou em
caráter, pois o defeito não está no tempo, mas em viver e procurar todas as coisas
de acordo com a paixão. Para tais pessoas, o conhecimento é inútil, como para os
intemperantes; em contrapartida, para os que conduzem seus desejos e ações segun-
do a razão, o saber acerca destas coisas será muito proveitoso” (Aristóteles, Ética a
Nicômaco, I, 3, 1095a 2-12).

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 19


Jorge Martínez Barrera

experiências — seja de pesquisador originário ou de simples


receptor — quem estiver em condições de abrir a alma para o
que há de ter como experiência [...]. Todos os conhecimentos e
intelecções no campo ético-político pressupõem certa medida
de diferenciação interior, ou seja, o senso dos problemas e a fa-
culdade de distinção. E estas são propriedades que não podem
ser adquiridas pela simples via intelectual”.27
Pois bem, sem deixar de reconhecer que a “reabilitação da filo-
sofia prática” deu extraordinário impulso aos estudos aristotélicos,
deve-se dizer também que a reapropriação do pensamento do Esta-
girita se fez um tanto livremente e de acordo com perspectivas que
às vezes não o traduzem com toda a fidelidade desejável. Mas, antes
de examinarmos mais detalhadamente essas supostas “licenças her-
menêuticas”, é oportuno ressaltar os pontos da compreensão aristo-
télica da práxis sobre os quais se detiveram com maior atenção os
autores contemporâneos “neo-aristotélicos”. Para isso, recorreremos
mais uma vez ao trabalho de Volpi.28 Segundo ele, há três grandes
teses programáticas fundamentais no neo-aristotelismo:

a) Em primeiro lugar, a clara diferenciação entre theoria e


práxis. Esta distinção, tratada de maneira sistemática pela
primeira vez por Aristóteles, obedece por sua vez aos qua-
tro critérios seguintes:

α) A diversidade do fim perseguido. Na theoria o fim é a


verdade (alétheia), enquanto na práxis é a ação mesma
executada de acordo com certos critérios de perfei-
ção. Isso implica, segundo Volpi, uma diferença no
estatuto epistemológico das disciplinas científicas que
correspondem a ambas as atitudes.29

27 - Hennis , W., Politik und praktische Philosophie. Eine Studie zur Rekonstruktion der
politischen Wissenschaft, Neuwied am Rhein u. Berlin, Hermann Luchterhand Verlag,
1963, pp. 47-48.
28 - Volpi, F., art. cit., pp. 473 ss.
29 - Cabe observar a Volpi que é discutível que para o neo-aristotelismo se possa
falar de “ciência prática”. De fato, vários neo-aristotélicos, seguindo nisto a Gadamer,
apóiam-se numa conhecida passagem do livro VI da Ética a Nicômaco (1142a 24) para

20 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

β) As diferentes modalidades dos entes considerados. No


caso das ciências teoréticas, o ente possui uma es-
tabilidade ontológica diante da qual não cabe outra
atitude além da contemplação. As ações humanas, ao
contrário, não são regidas pela necessidade, não são
algo que não possa ser de modo diferente de como
são.30 Mas elas tampouco se produzem de maneira
puramente ocasional e imprevisível (apo tyches). Seu
caráter ontológico se situa entre o necessário e o
acidental, nesse domínio de coisas que sucedem “na
maior parte do tempo” (hos epi to poly).31

γ) Os diferentes graus de precisão (akríbeia). É óbvio que a


natureza relativamente instável do objeto das ciências
práticas, isto é, a ação humana, não pode aspirar ao
mesmo grau de precisão que se pode obter, por exem-
plo, na matemática.32 Como quer que seja, a carência
de exatidão não delata tanto um defeito da inteligên-
negar o estatuto epistemológico do saber prático, pois todo este saber se resume na
phrónesis, a qual, segundo Aristóteles, não é ciência. Ver também VI, 3, 1139b 15-37.
30 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 4, 1140a 1-2: “Entre as coisas que podem ser de
outra maneira, estão o que é objeto de produção e o que é objeto de ação”.
31 - Para Aristóteles, lembram R.-A. Gauthier e J.-E. Jolif em seu comentário à pas-
sagem da Ética a Nicômaco I, 3, 1094b 21, “existem três classes de fatos: os neces-
sários, que se produzem sempre da mesma maneira; os gerais que se produzem na
maior parte do tempo da mesma maneira; os acidentais, que se produzem raramente
da mesma maneira. As ciências exatas têm os primeiros como objetos próprios; a
política tem como objeto os segundos, e os terceiros não podem ser objeto de ne-
nhuma ciência (Cf. Física, II, 5, 196b 10-197a 8; Metafísica, E, 2, 1026b 28-1027a 28;
K, 8, 1064b 30-1065a 6).
32 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 3, 1094b 11 ss.: “Contentar-nos-emos com elu-
cidar isto na medida em que o permite sua matéria; porque não se deve buscar o rigor
igualmente em todos os raciocínios, como tampouco em todos os trabalhos manufa-
turados; a nobreza e a justiça que a política considera apresentam tantas diferenças e
desvios, que parecem ser só por convenção e não por natureza [...]. Por conseguinte,
falando de coisas dessa índole e com tais pontos de partida, temos de nos dar por
satisfeitos com mostrar a verdade de modo amplo e esquemático [...] porque é próprio
do homem educado buscar a exatidão em cada gênero de conhecimento na medida
em que a admite a natureza do assunto; evidentemente, tão absurdo seria aprovar um
matemático que empregasse a persuasão quanto exigir demonstrações de um orador”;
II, 2, 1104a 1 ss.: “Fique estabelecido de antemão, no entanto, que tudo o que se diga
das ações deve ser dito em esquema e não com rigorosa precisão; já dissemos no
início que se deve tratar em cada caso segundo a matéria, e no relativo às ações e
à conveniência não há nada estabelecido [...]”; IX, 2, 1165 a 12-14: “Como dissemos

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 21


Jorge Martínez Barrera

cia quanto uma característica do objeto estudado, a


ação humana. Isso, porém, não impede alguma cate-
gorização epistemológica do saber prático; mas a este
ponto voltaremos mais adiante.33

δ) A diferença das modalidades de argumentação respec-


tivamente levadas a efeito. Em razão dos caracteres
específicos que o determinam, o saber prático não se
estrutura de maneira apodíctica, mas antes de modo
tópico-dialético. Embora seja verdade que o silogismo
prático tem, formalmente, o mesmo rigor procedi-
mental que o silogismo científico teórico, do ponto
de vista material ele não se funda em premissas ne-
cessárias e verdadeiras, mas em premissas prováveis,
opiniões dignas de ser levadas em consideração ou ge-
ralmente aceitas, de modo que as conclusões também
tenham esse caráter de não-necessidade, provável e
tópico-dialético.34

b) Em segundo lugar, a diferenciação entre práxis e poiesis.


Aristóteles, diferentemente de Platão, estabelece uma nova
delimitação sistemática entre a práxis e o saber virtuoso
dela, isto é, a phrónesis, e a poiesis e o saber virtuoso relati-
vo a ela, isto é, a tekhne.35 A distinção entre os dois usos da
razão, que têm em comum o fato de ambos versarem sobre
o que pode ser de outra maneira, é que o fim da poiesis é
exterior à ação mesma pela qual é alcançado, enquanto

muitas vezes, os raciocínios teóricos sobre os sentimentos e as ações são, quanto à


exatidão, o mesmo que seus objetos”.
33 - Vejamos um comentário interessante de Volpi, do qual parece divergir Berti: “[...]
Aristóteles não nega a cientificidade do saber prático; ele não a considera, como se fez
na tradição escolástica, como una espécie de cientificidade menos forte, como se a
philosophia practica fosse um tipo de philosophia minor: o saber prático é, certamente,
um saber somente verossímil, mas não no sentido de que fosse uma aproximação ao
verdadeiro (verosimilitudo) sem alcançar jamais a verdade, e sim antes no sentido de
que é exatamente a verdade do provável (probabilitas)” (Volpi, F., art. cit., p. 474).
34 - Para a importância da tópica na filosofia das coisas humanas, cf. Hennis , W., op.
cit., cap. VI: “Tópica e política”.
35 - Este é o tema dos capítulos 4 e 5 do Livro VI da Ética a Nicômaco.

22 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

o fim da práxis é a própria ação; o fim, diríamos, não é


alheio à ação.36 Isto faz com que exista estreito vínculo
entre a qualificação moral pessoal do sujeito que executa
uma práxis e a obra executada, enquanto para a perfeição
do produto da poiesis esse requisito não é necessário.

c) Em terceiro lugar, temos a especificidade do saber da prá-


xis. Esta especificidade exige uma distinção que delimite,
por um lado, o saber prático e, por outro, o teorético e o
técnico. Mas, para distinguir agora claramente a práxis da
poiesis, Aristóteles não pode referir-se a uma distinção for-
mal de seus respectivos objetos (como o faz quando se trata
de diferenciar práxis e theoria), pois ambas versam sobre um
gênero de entes que podem ser de outra maneira (endechó-
menon allos échein). Aristóteles parece intuir a existência
de uma diferença essencial entre o objeto da poiesis e o
da práxis, mas não chega a formulá-la sistematicamente.37
Mais ainda, quando se trata de precisar a virtude própria
da faculdade de agir (práxis) e a da faculdade de fazer (poie-
sis), o Estagirita repete uma mesma fórmula estilística: a
prudência (phrónesis), virtude da faculdade de agir, é defi-
nida como um “estado habitual razoável e verdadeiro com
respeito ao que é bom e mau para o homem”,38 enquanto a
técnica (tekhne) é definida como um “estado habitual pro-
dutivo acompanhado de razão verdadeira”.39 O que conta
aqui não é, portanto, um critério objetivo, mas a disposição
subjetiva ou interior, na qual se fundam respectivamente
a tekhne e a phrónesis. Como quer que seja, e ainda ape-
sar da falta de desenvolvimento mais amplo da distinção

36 - “[...] o fim da produção é diferente dela, mas o da ação não pode sê-lo: a boa ação
mesma é o fim” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140b 5-6).
37 - “Entre as coisas que podem ser de outra maneira, estão o que é objeto de produ-
ção e o que é objeto de ação, e uma coisa é a produção e outra a ação [...]; de modo que
também a disposição racional apropriada para a ação é coisa distinta da disposição
para a produção. Portanto, tampouco incluem uma à outra; com efeito, nem a ação é
produção, nem a produção é ação” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 4, 1140a 1-6).
38 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140b 4-5.
39 - Ibid., VI, 4, 1140a 20-21

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 23


Jorge Martínez Barrera

entre phrónesis e tekhne, o Estagirita está perfeitamente


consciente de que elas devem ser distinguidas com o maior
cuidado. Esta diferenciação, como dissemos, obedece a
critérios mais descritivos que estritamente analíticos ou
etiológicos. Volpi enumera, entre outros, os seguintes que
nos pareceram os mais evidentes:40

α) A phrónesis, além de referir-se às ações particulares, o


que sucede também com a tekhne, refere-se, diferente-
mente desta, sobretudo à totalidade da vida. Ela con-
cerne à plenitude da vida como um todo: “Quanto à
prudência, podemos compreender sua natureza consi-
derando que homens chamamos prudentes. Pois bem,
parece próprio do homem prudente poder discorrer
sobre o que é bom e conveniente para si mesmo, não
em sentido parcial, por exemplo, para a saúde, para
a força, mas para a vida boa em sua totalidade (to
eu zen holos). Sinal disso é que até em determinado
sentido os chamamos prudentes quando raciocinam
bem visando a algum fim bom dentre os que não são
objeto de nenhuma arte”.41

β) Da tekhne há virtude ou perfeição, enquanto não a


há da phrónesis: “Além do mais, enquanto existe uma
excelência (areté) da arte, não a há da prudência, e na
arte quem erra voluntariamente é preferível, mas em
se tratando da prudência não, como tampouco em se
tratando das virtudes”.42

Na prudência não pode haver graduações em mais ou em


menos; ela não pode dar-se senão em sua perfeição, enquanto
na técnica essa mesma perfeição é alcançada gradualmente por
meio do exercício, e até através dos erros. Volpi assinala que

40 - Volpi, F., art. cit., pp. 477 ss.


41 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140a 23-29.
42 - Ibid., VI, 5, 1140b 21-24.

24 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

a prudência não é aprendida com os erros, ou seja, ninguém


se torna virtuoso praticando vícios. Diante dessa postura de
Volpi, cabe fazer duas observações. Em primeiro lugar, essa es-
tranha afirmação aristotélica (“existe uma excelência da arte,
[mas] não a há da prudência”), uma das incontáveis que apa-
recem no desenvolvimento de seu pensamento sem que nada
na argumentação anterior pareça justificá-lo, não parece tão
dirigida a mostrar que diferença separa a técnica da prudência
enquanto virtudes quanto a repisar que a técnica não é uma
virtude, mas uma faculdade, uma dynamis.43 Esta é a posição
em que insiste firmemente Gauthier em seu comentário à pas-
sagem.44 Se a arte é uma faculdade, ela deve ser qualificada por
uma virtude que, neste caso, leva o mesmo nome da faculdade
que aperfeiçoa. Em contrapartida, a prudência, que é uma vir-
tude, não pode por sua vez ser prudente. Em segundo lugar,
embora seja verdade que da perspectiva estritamente aristo-
télica a phrónesis não é alcançável mediante um processo de
tentativa e erro, tampouco é absolutamente inexato afirmar
que também é possível aprender com o erro. O erro moral
não necessariamente é um vício; para que o seja, deve existir
uma vontade firmemente determinada no hábito de querer
agir contra a reta regra.45 Mas, afinal de contas, ainda que não
exista uma disposição viciosa ou uma invencível inclinação
para o mal, a experiência das coisas da vida tem também, a
seu modo, seus próprios tempos e tentativas, e a prudência,
embora seja uma virtude intelectual, não se aprende só intelec-
tualmente, à maneira de uma ciência. É esta, diga-se de passa-
gem, uma das diferenças com a episteme: “[...] ninguém reflete
ou delibera sobre o que não pode ser de outra maneira, nem
sobre o que não pode fazer. De modo que, se toda e qualquer
ciência é acompanhada de demonstração, e não há demons-

43 - Ibid., II, 5, 1105b 20.


44 - Gauthier, R.-A., op. cit., p. 473: “O que Aristóteles quer dizer é que a arte não é uma
perfeição em si mesma. Há bons e maus artesãos. Para que um artesão saiba fazer
bem sua obra, não lhe basta sua arte; ele precisa, além disso, do domínio dela. Ao con-
trário, a prudência é uma perfeição em si mesma. Não há bons e maus prudentes”.
45 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 7, 1135a 8-11; 8, 1135a 15-1136a 10; II,4, 1105a 28-32.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 25


Jorge Martínez Barrera

tração das coisas cujos princípios podem ser de outra maneira,


e igualmente tampouco é possível deliberar sobre o que é ne-
cessariamente, a prudência não poderá ser ciência nem arte
ou técnica; ciência, porque a ação pode ser de outra maneira;
arte, porque a ação e a produção são de gênero diverso. Tem
de ser, portanto, um hábito de ação razoável e verdadeiro com
respeito ao que é bom ou mau para o homem”.46 Não obstante,
apesar das diferenças entre phrónesis e episteme, ambas têm em
comum o fato de serem virtudes do pensamento e, portanto,
suscetíveis de ensinamento. Como se ensina a phrónesis? Esta é
a enorme questão sobre a qual, explicitamente, não temos um
desenvolvimento sistemático da parte do Estagirita, conquan-
to tenhamos, sim, algumas indicações que poderiam ser muito
valiosas para uma reconstituição orgânica de seu pensamento
neste assunto. Em primeiro lugar, sabemos que, enquanto vir-
tude do pensamento, a prudência pode ser ensinada e apren-
dida.47 Em segundo lugar, sua diferença com relação à episteme
faz com que não possa ser ensinada como propõem os sofistas,
isto é, como se fosse uma ciência exclusivamente intelectual
para a qual a disposição interior do educando absolutamente
não conta.48 Ao contrário, a especificidade da phrónesis faz com
que, embora seja uma virtude da capacidade de pensar, deva
ter um pré-requisito caracterológico que garanta a idoneidade
de tal pensar, porque de outro modo será uma simples destreza
ou habilidade (deinótes).49

46 - Ibid,. VI, 5, 1140a 30 1140b 5.


47 - “Como existem duas classes de virtude, a dianoética e a ética, a dianoética deve
sua origem e seu incremento principalmente ao ensinamento, e por isso requer experi-
ência e tempo; a ética, em contrapartida, procede do costume, razão por que até seu
nome se forma mediante uma pequena modificação de ‘costume’” (Aristóteles, Ética a
Nicômaco, II, 1, 1103a 14-17).
48 - “[...] a política, professam ensiná-la os sofistas, mas nenhum deles a exerce, só os
homens de Estado [...]. Os sofistas que a professam estão, evidentemente, muito longe
de ensiná-la. Em geral, com efeito, não sabem nem de que índole é, nem sobre que tipo
de questões versa; se o soubessem, não diriam que é a mesma coisa que a retórica,
nem que é inferior a ela, nem acreditariam que é fácil legislar reunindo as leis mais bem
conceituadas [...]” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 9,1180b 36 ss).
49 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 12, 1144a 22 - b30.

26 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

γ) A phrónesis não é somente um “estado habitual razo-


ável”, mas algo mais, ainda que Aristóteles não nos diga em
que consiste esse mais. Ele assinala que, embora um hábito em
particular possa ser esquecido, a phrónesis não pode ser perdida
por esquecimento: “Tanto a opinião como a prudência têm por
objeto o que pode ser de outra maneira. Mas a opinião é ex-
clusivamente uma disposição racional, e sinal disso é que uma
disposição assim pode ser esquecida, e a prudência não”.50

4. Ciência moral e ciência política.

Essa insistência na caracterização da prudência como um


saber diferente da técnica deve fazer-nos pensar que aquela não
é um saber de tipo técnico. Isto significa, entre outras coisas,
que a phrónesis não pode consistir num ideal ou num conjunto
de normas ou prescrições que possam ou devam ser aplicadas em
cada caso particular. Não se trata de regras de comportamento
nem de códigos procedimentais prontos para ser usados. Por essa
mesma razão, a política, enquanto phrónesis suprema, tampou-
co é uma técnica das equações de poder, mas antes começa no
espaço aberto diante dela, quando esses problemas técnicos que
a convivência suscita já foram resolvidos. A política é um saber
de forma de vida, e, especificamente, de vida boa (eu zen).
O problema levantado pelo mesmo Aristóteles é o da
categorização científica da phrónesis suprema, isto é, a polí-
tica. Como é possível fazer da política uma ciência, quando
ele mesmo foi muito claro no momento de definir a mesma
ciência? Lemos no topos específico para a definição de ciên-
cia: “[O saber científico] é o conhecimento por meio da de-
monstração. Por demonstração entendo o silogismo científico
[por oposição ao silogismo dialético e ao silogismo retórico],
e chamo científico um silogismo cuja posse mesma constitui
para nós a ciência. Assim, se o conhecimento científico con-
siste no que expusemos, é necessário também que a ciência

50 - Ibid., VI, 5, 1140b 26-29.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 27


Jorge Martínez Barrera

demonstrativa parta de premissas verdadeiras, primeiras, ime-


diatas, mais conhecidas que a conclusão, anteriores a ela e da
qual são causas [...]. Um silogismo pode certamente existir
sem essas condições, mas não será uma demonstração, pois
não produzirá ciência”.51
Aliás, este critério na definição do conhecimento científico
torna muito difícil aplicar o nome de ciência ao que se refere às
coisas humanas. E o mesmo Aristóteles parece corroborar isso
ao afirmar em algumas passagens da Ética a Nicômaco que a pru-
dência não é ciência. E, se a prudência não é ciência, com tanto
maior razão tampouco o será, como já assinalamos, a política.
Esses motivos levaram os neo-aristotélicos em geral a negar pura
e simplesmente qualquer caráter científico à ética e à política.
Pois bem, embora seja verdade que Aristóteles fez uma de-
limitação muito precisa do silogismo científico, e que em razão
da aplicação estrita desse esquema à práxis humana não é pos-
sível uma categorização epistemológica da ética e da política,
também é verdade que há em Aristóteles elementos suficientes
para pensar num possível estatuto científico desses dois sabe-
res. Assinala Volpi: “A determinação da possibilidade de uma
consideração epistêmica do domínio da práxis não só salva esse
domínio em sua autonomia, mas também define e delimita o
da theoria”.52 A exatidão (akríbeia) não é, portanto, o critério
determinante da cientificidade de um saber, e por isso já não
se justifica o estabelecimento de uma oposição radical entre a
doxa e a episteme. Quando na modernidade se tenda a “carregar
nas tintas” contra a theoria como protótipo do saber científico, a
fina diferenciação aristotélica de diversos tipos de cientificidade

51 - Aristóteles, Analíticos Posteriores, I, 2, 71b 17-25.


52 - Volpi, F., art. cit., p. 479. Volpi remete por sua vez a P. Aubenque, op. cit., p. 144: “A
originalidade de Aristóteles não consiste, pois, como se crê às vezes, na afirmação do
caráter prático da prudência, nem na do seu caráter intelectual. Platão nunca dissera
outra cosa da sabedoria, a qual, chamada indiferentemente sophia ou phrónesis, já
era indissoluvelmente teórica e prática [...]. A originalidade de Aristóteles consiste, na
verdade, numa nova concepção das relações entre teoria e prática, ela própria conse-
qüência de uma ruptura consumada pela primeira vez no universo da teoria. O novo em
Aristóteles não é o interesse inédito pela ação — tampouco Sócrates nem Platão ti-
nham sido puros especulativos —, mas a descoberta de uma cisão no interior da razão,
e o reconhecimento desta cisão como condição de um novo intelectualismo prático”.

28 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

se perderá por vários séculos. A “filosofia das coisas humanas”,


isto é, a ética e a política, terá de passar por uma transformação
geométrico-matemática se quiser seguir conservando algum
nível epistemológico.
Pois bem, é precisamente o questionamento desse mode-
lo epistemológico teórico legado pela modernidade o que deu
ensejo aos neo-aristotélicos para tentar uma reabilitação da-
quelas distinções aristotélicas. Não obstante, este renascimento
do Estagirita está condicionado à sua capacidade de resposta
às aporias epistemológicas suscitadas pela situação da ciência
contemporânea, e por isso se pode suspeitar que a leitura des-
ses textos seja, de alguma maneira, tendenciosa pela ansiedade
instrumental de fazer frente ao “fim das certezas”, para usar a
expressão de Ilya Prigogine. Aliás, no pensamento do Estagirita
há suficientes elementos para sustentar a oposição à neutrali-
dade axiológica descritiva que reina na ciência política atual.
Os neo-aristotélicos fizeram da noção de phrónesis da Ética a
Nicômaco sua arma mais contundente contra o modo weberia-
no de compreender a filosofia das coisas humanas. Como torna
a sublinhar Volpi,53 “ao insistirem no caráter de orientação que
possui o saber prático [a prudência é epitaktiké], os neo-aristo-
télicos se opõem aos novos intelectualismos preconizados em
ética e em política”.54 A filosofia das coisas humanas não pode
continuar indiferente às exigências da própria vida ética e po-
lítica; sua cientificidade deve estar radicalmente comprometida
com a exigência essencial da vida humana, isto é, a resposta à
pergunta: como posso vir a ser uma boa pessoa? Nesse sentido,
o neo-aristotelismo redescobre para a pós-modernidade o valor
de uma forma de entender a ética e a política que, sem renun-
ciar ao estatuto epistemológico que legitimamente elas podem
reclamar, toma porém como ponto de partida e de chegada um
estado da existência humana mesma com a finalidade de influir
concreta e eficazmente nele.

53 - Volpi, F., art. cit., p. 481,


54 - “[...] a prudência é normativa [epitaktiké]: o que se deve fazer ou não, tal é o fim a
que se propõe; enquanto o entendimento é somente discriminador” (Aristóteles, Ética
a Nicômaco, VI, 10, 1143a 8-10).

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 29


Jorge Martínez Barrera

Mas também restam alguns problemas por resolver, e


cabe mencionar nesse sentido o que, no entender de Volpi,
é o mais inquietante. O que interessa essencialmente aos
neo-aristotélicos é a noção de phrónesis, porque ela é um for-
midável instrumento de desativação de algumas categorias
epistemológicas modernas cujo esgotamento já não é preci-
so discutir. Pois bem, a phrónesis aristotélica é um saber dos
meios adequados para a consecução de um fim; a determi-
nação do fim não é tarefa da prudência. Mas, “se o que falta
ao mundo moderno, em toda a sua ‘im-prudência’, não são
precisamente os meios, postos cada vez mais à nossa disposi-
ção pela ciência, mas precisamente os fins mesmos, como se
poderia esperar obter alguma indicação sobre os fins através
de uma reabilitação da phrónesis”?55 O risco maior da perda
da sustentação teleológica da phrónesis, ou seja, do fim com
respeito ao qual a prudência deve orientar-se e em função
do qual deve ordenar — como já foi censurado ao defensor
por excelência da phrónesis aristotélica, Gadamer — é que
ela acabe por transformar-se na ideologia de um “agradável
relativismo cultural moderado de tipo conservador”.56
Mas devemos voltar a considerar com algum detença a
existência de uma possibilidade epistemológica para a prá-
xis humana. Esta tarefa se impõe sobretudo depois que a
“reabilitação da filosofia prática” na Alemanha revigorou os
estudos aristotélicos, insistindo fundamentalmente, através
de Gadamer, na exaltação da phrónesis como a quintessên-
cia da filosofia prática. Isto, como já se sugeriu, teve como
efeito colateral indesejado a questionabilidade de uma possí-
vel ciência da práxis, até sua quase completa redução a uma
hermenêutica. Para Berti, Gadamer foi o grande responsável

55 - Volpi, F., art. cit., p. 483. A prudência é somente dos meios: “Além do mais, o
homem leva a efeito sua obra mediante a prudência e a virtude moral, porque a virtude
torna reto o fim proposto e a prudência, os meios que a ele conduzem” (Aristóteles,
Ética a Nicômaco, VI, 12, 1144a 6-8); “[...] e porque a escolha não pode ser reta sem
prudência nem sem virtude, já que uma determina o fim e a outra faz com que se
realizem as ações que conduzem ao fim” (ibid., 13, 1145a 4-6). Cf. Aristóteles, Ética a
Nicômaco, III, 2, 3, 4, 5., e Aubenque, P., op. cit., pp. 139-143.
56 - Volpi, F., art. cit., p. 483.

30 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

por uma leitura demasiado tendenciosa do livro VI da Ética


a Nicômaco, leitura segundo a qual todo o saber prático é re-
duzível à virtude da phrónesis.57 Com efeito, Gadamer escreve
em Verdade e Método: “O saber moral, tal como o descreve
Aristóteles, não é, evidentemente, um saber objetivo. Quem
sabe não está confrontado com um estado de coisas que não
teria mais que ser constatado. Ao contrário, quem sabe está
imediatamente implicado por aquilo de que adquire conheci-
mento. É algo que tem de fazer. É claro que este saber não é
o saber da ciência. Nesse sentido, a delimitação operada por
Aristóteles entre o saber moral da phrónesis e o saber teórico
da episteme é simples, em particular se considerarmos que para
os gregos a ciência é pensada sobre o modelo da matemática,
ciência do imutável, ciência fundada na prova e que qualquer
pessoa pode aprender”.
Atrás de Gadamer há vários intérpretes que — cada um
à sua maneira — acreditaram ver na prudência aristotélica o
resumo de todo o saber prático. Um dos mais influentes, junto
com Gadamer, foi Joachim Ritter, o qual, além de sublinhar a
importância da phrónesis, insistiu especialmente no enraizamen-
to do saber prático no ethos existente e em vigor na época do
Estagirita, isto é, nas tradições, nos costumes, nas instituições
da pólis. Escreve Ritter: “É ‘ético’ o que pertence ao ethos, e este
é para Aristóteles [...] o lugar onde se vive, e por conseguinte
o ‘hábito’ ligado especificamente a cada lugar em particular. O
domínio ético compreende, portanto, os usos, os costumes, os
hábitos, as formas de comportamento justo e correto no sentido
da virtude, e também as instituições que sustentam tais formas
de comportamento [...]. O ‘justo’ pertence ao ethos e ao nomos
da pólis, ao ‘hábito’ da casa”.58
Na mesma linha de Ritter encontramos Günther Bien,
seu discípulo, que em sua importante monografia (já citada)
afirma: “O bem está [...] presente para os homens como norma

57 - Esta também é a posição de R.-A. Gauthier em seu Commentaire...


58 - Ritter, J., Metaphysik und Politik. Studien zu Aristoteles und Hegel, Frankfurt-a.M.,
Suhrkamp, 1977, p. 110, apud E., Berti, art. cit., p. 254.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 31


Jorge Martínez Barrera

nas decisões e na constituição ética (poderíamos dizer tam-


bém na virtude) daqueles homens que são considerados bons,
do mesmo modo que, em relação à verdade das proposições,
um endoxon é o que parece aceitável aos endoxoi”.59
Desse modo, comenta Berti, o critério essencial do
bem é o comportamento do homem virtuoso,60 onde se
encarna o ethos da pólis. Pois bem, se a interpretação de
Ritter e de Bien for a correta, as acusações de conservado-
rismo dirigidas contra a filosofia aristotélica podem parecer
justificadas, pois “a consideração do ethos em vigor como
critério de moralidade equivale praticamente à justificação
do regime sociopolítico existente”.61
Até aqui podem ser distinguidos, portanto, dois elemen-
tos da interpretação neo-aristotélica: a primazia da phrónesis
como nec plus ultra da racionalidade prática, e a conformação
ao ethos como critério de moralidade. Esses elementos, aliás,
se encontram com todas as letras nos textos do Estagirita e,
como dizíamos mais acima, constituem um extraordinário
argumento contra um paradigma epistemológico das coisas
humanas que, segundo os neo-aristotélicos, já não pode sus-
tentar-se. Não obstante, é preciso examinar mais de perto os
textos mesmos do Estagirita para ver se esta versão de seu
pensamento não é excessivamente matizada por um interesse
que, se em si mesmo é perfeitamente legítimo, poderia revelar-
se também como uma tentativa de forçar demasiadamente o
pensamento de Aristóteles.

59 - “Die menschlichen Meinungen und das Gute. Die Lösung des Normsproblem in der
Aristotelischen Ethik”, em Riedel (ed.), op. cit., I, p. 359, apud Berti, E., art. cit., p. 255.
60 - “Quanto à prudência, podemos compreender sua natureza considerando a que
homens chamamos prudentes [...] Por isso pensamos que Péricles e os que são
como ele são prudentes porque podem ver o que é bom para eles e para os homens”
(Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140a 23-1140b 10). A própria definição de virtude
se apóia na referência ao homem virtuoso: “É portanto a virtude um hábito de decidir
que consiste num termo médio relativo a nós, determinado pela razão e por aquela de
acordo com a qual decidiria o homem prudente” (ibid., II, 6, 1106b 36).
61 - Berti, E., art. cit., p. 255.

32 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

5. Phrónesis e filosofia prática

É prioritário examinar agora se a phrónesis de que fala


Aristóteles coincide em toda a extensão com a filosofia prática.
Já sabemos que a prudência é uma capacidade de boa delibera-
ção com respeito ao que é bom para uma vida feliz em sentido
global, isto é, numa projeção temporal ampla.62 Esta virtude
possui uma série de características que realmente a diferenciam
do saber teórico ou científico. Mas, por seu lado, a filosofia
prática, tal como o mesmo Aristóteles a esboça, tem certas ca-
racterísticas próprias que não coincidem completamente com
a phrónesis. E o que é a filosofia prática para Aristóteles? Mais
ainda, há de fato uma filosofia ou ciência prática em Aristóteles?
A resposta de Berti é afirmativa. Há uma filosofia prática que é
mencionada nos seguintes textos:

• “E também é justo que a Filosofia seja chamada ciência


da verdade; pois o fim da [filosofia] teórica é a verdade, e o da
[filosofia] prática, a obra”; 63
• “[...] a filosofia das coisas humanas [...]”; 64 “[...] e dado
que a política se serve das demais ciências práticas [...]”; 65 “Este
é, pois, o objeto de nossa investigação (méthodos), que é certa
disciplina política”66 (indicação de um aspecto metódico, o que
é próprio da ciência);
• “[...] e resta, ademais, campo para a ciência política [...]”;67
• “Com efeito, a questão [dos regimes políticos] tem algu-
mas dificuldades, e é próprio de quem faz um estudo filosófico
e não visa unicamente à prática o não desprezar nem deixar de

62 - A ristóteles , Ética a Nicômaco, I, 7, 1098a 18-20. Cf. quanto a este ponto o


trabalho de Vigo , A., La concepción aristotélica de la felicidad. Una lectura de Ética
a Nicómaco I y X 6-9, Santiago de Chile. Universidad de Los Andes/Instituto de
Filosofía, 1997, cap. 4.
63 - Aristóteles, Metafísica, II, 1, 993b 20 21.
64 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 9, 1181b 15.
65 - Ibid., I, 2,1094b 4-5.
66 - Ibid., I, 2,1094b 11.
67 - Aristóteles, Retórica, I, 4, 1359b 17.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 33


Jorge Martínez Barrera

lado nenhum aspecto, mas pôr em evidência a verdade sobre


cada um deles”.68

Além do mais, o estatuto epistemológico desta ciência é


ilustrado pelo mesmo Aristóteles no começo da Ética a Nicô-
maco, quando se refere ao grau de certeza esperável nela. Nessa
passagem,69 o Estagirita sustenta que devemos contentar-nos
com mostrar a verdade de maneira geral e em suas grandes li-
nhas, e, “dado que falamos só do que ocorre em geral [...], basta
chegar a conclusões semelhantes”. Assim, embora seja verdade
que nesta passagem se nega ao saber prático a exatidão própria
da matemática em razão da natureza de seu objeto, não é menos
verdade que Aristóteles conserva para esta instância cognosci-
tiva certo estatuto epistemológico, dado precisamente por sua
estrutura demonstrativa, com todos os limites que esta possa ter
quanto a precisão.
Nos Segundos Analíticos, onde ilustra o estatuto da ciên-
cia em geral,70 Aristóteles afirma que a demonstração, que é
própria do conhecimento científico, pode ser de caráter neces-
sário (o caso da matemática), ou de um modo que se verifi-
ca na maior parte dos casos (hos epi to poly). E, embora neste
segundo modo aluda provavelmente à filosofia do ente móvel
(a física), suas afirmações podem estender-se sem dificuldade à
filosofia das coisas humanas, na qual, de fato, os termos physis
e physiké são recorrentemente empregados. É claro pois que, no
meio da confusão e entrecruzamento de textos diversos, emer-
ge também uma filosofia ou ciência prática diversa da phrónesis,
a qual não é, segundo o próprio Aristóteles, uma ciência. E,
enquanto ciência, ela versa sobre o universal ou sobre o geral;
neste caso, sobre a generalidade que é própria das coisas hu-

68 - Aristóteles, Política, III, 8, 1279b 12-14.


69 - Aristóteles, Ética a Nicômaco., I, 1, 1094b 11-22.
70 - “Não há conhecimento demonstrativo do que sucede por acaso, porque isto
não é necessário nem sucede na maior parte do tempo, mas acontece fora disto. [...]
Qualquer dedução é feita através de proposições relativas ao necessário ou através
de proposições relativas ao que sucede na maior parte do tempo. E as conclusões
respectivas também terão esse caráter [...]” (Aristóteles, Analíticos Posteriores, I, 30,
87b 19-20).

34 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

manas, ou seja, o que sucede na maior parte do tempo. Berti


chega até a identificar duas personagens da Ética a Nicômaco
que encarnariam cada uma destas duas formas de saber, isto é,
o saber prudencial, que não é ciência, e o saber “científico” da
práxis. Como personificação do primeiro plano, temos Péricles,
o político, e como personificação do segundo, Sócrates, o cien-
tista.71 Este último não só era um spoudaios, um homem valioso,
mas também queria saber, buscava a essência, pois a essência
é o princípio das argumentações e dos silogismos, que são os
instrumentos da ciência: “Sócrates, que se entregou ao estudo
das virtudes éticas, foi também o primeiro a buscar para elas
definições universais [...]. Sócrates [...] buscava, com razão, a
essência; pois tentava raciocinar silogisticamente, e o princípio
dos silogismos é a essência [...]. Duas coisas, com efeito, podem
ser reconhecidas a Sócrates com justiça: a argumentação in-
dutiva e a definição universal; estas duas coisas correspondem
efetivamente ao princípio da ciência”.72
Por outro lado, na Ética a Nicômaco, há várias passagens
onde Aristóteles ilustra claramente o método da filosofia prá-
tica. O mais famoso se encontra talvez no início do Livro VII,
com respeito à continência: “Como nos demais casos, devere-
mos estabelecer os fatos observados e resolver primeiramente
as dificuldades que ofereçam, para provar depois, se possível,
todas as opiniões geralmente admitidas sobre estas afecções, e,
se não, a maioria delas e as principais, pois, se se resolverem
as dificuldades e permanecerem de pé as opiniões geralmente
admitidas, a demonstração será suficiente”.73
Nesses procedimentos argumentativos referentes às coisas
morais, que são preponderantemente dialéticos, estamos por
certo muito longe do modelo epistemológico matemático. Mas
também estamos muito longe do saber da phrónesis, que, como
sabemos, não é ciência. E, por outro lado, até as ciências teóricas,
como a física e a metafísica, empregam métodos dialéticos. Em

71 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 13, 1144b 18, 28.


72 - A ristóteles, Metafísica, XIII, 4, 1078b 17-30.
73 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII, 1, 1145b 2-7.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 35


Jorge Martínez Barrera

suma, a filosofia prática de Aristóteles apresenta um modelo


de racionalidade diferente do da simples phrónesis, embora seja
verdade que elas não se encontram separadas. Sucede apenas
que a filosofia prática, enquanto saber, é mais sólida que o saber
da simples prudência, e também está em condições de orientar
a ação. Diz Berti: “[...] a filosofia prática [aristotélica] pode ser
considerada uma verdadeira ciência, do mesmo tipo que a física
e a metafísica, ainda que seja diferente quanto ao método da
matemática, e ainda que conserve o caráter prático, ou seja,
orientado para a ação. Isso aparecerá ainda mais claramente se
prestarmos atenção a certos ‘pressupostos’ de ordem física e me-
tafísica que estão na base da filosofia prática, os quais, todavia,
não atentam contra a autonomia da moral aristotélica”.74

6. Ethos e filosofia prática

Vejamos agora até que ponto a filosofia prática do Estagi-


rita se funda no ethos existente para termos uma idéia de suas
posições “conservadoras”. É verdade que, em várias passagens
da Ética a Nicômaco e da Política, Aristóteles parte de premissas
longamente aceitas, os éndoxa, e dali chega a algumas conclusões
originais. É o caso exemplar da doutrina da felicidade exposta
na Ética a Nicômaco. O ponto de partida é um éndoxon, mas seu
ponto de chegada é a identificação entre felicidade e virtude.
Pois bem, a exposição toda se funda numa tese filosófica espe-
cífica e original: o bem de cada ente consiste no exercício da
função que lhe é própria (érgon). E, como o próprio do homem
é a razão, seu bem consiste, portanto, no exercício (enérgeia)
da razão. Isso constitui uma verdadeira antropologia filosófica,
ainda que seja construída em traços gerais e sem maiores pre-
cisões, de acordo com as próprias indicações metodológicas de
Aristóteles para este tipo de saber. Mas temos agora uma questão
interessante: Aristóteles afirma a primazia da vida contemplati-
va sobre a vida ativa, o que é reflexo de sua concepção de que

74 - Berti, E., art. cit., p. 261.

36 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

as virtudes dianoéticas são superiores às virtudes éticas. Esse


coroamento da reflexão deve ter parecido bastante paradoxal à
opinião comum, ao ethos de seu tempo, na medida em que para
um grego a plenitude da vida devia passar por uma plenitude
política, isto é, da vita activa. Mais ainda, Aristóteles ratifica
a superioridade do bios theoretikós em consonância com toda
uma tradição de figuras filosóficas pré-socráticas como Tales
ou Anaxágoras, que aos olhos da pólis democrática apareciam
como personagens um tanto extravagantes, como o próprio
Aristóteles se encarrega de lembrar. A doutrina da felicidade
está, portanto, associada a um tipo de vida que é a contraface
da vita activa, pois esta última, que encontra sua plenitude na
prudência política, tem caráter quase instrumental com respeito
à sophia. A atividade de governar, ainda que seja exercida com
espírito de prudência e justiça, é porém orientada para um fim
diferente e superior. Esse é o conteúdo da Ética a Nicômaco, X, 7
e 8. Nesse sentido, é digna de nota a tese de Bodéüs: “A grande
virtude do político, contudo, é a virtude da inteligência (nous),
a qual lhe permite (re)conhecer o fim, ou seja, conhecer com
certeza em vista de que ordena o que ordena, principalmente
quando se trata da leis constitucionais. Por meio desta virtude,
que dá à ciência uma ‘cabeça’, o político se aproxima, por certo,
do sophós e do artista, cujos modelos não deixaram de influen-
ciar Aristóteles”.75
Essa orientação teleológica da vita activa, que alcança sua
perfeição na medida em que se orienta, como a seu fim, para
a vita contemplativa, contém por sua vez um pressuposto de
ordem teológica, na medida em que a orientação da theoria al-
cança sua perfeição na contemplação do ente mais perfeito de
todos, ou seja, Deus. Isso é dito explicitamente por Aristóteles
ao final da Ética a Eudemo, onde a sophia, em vista da qual
a phrónesis ordena, é definida como “servir e contemplar a
divindade”: “[...] Deus não é um legislador imperativo, mas o
fim em vista do qual a prudência ordena [...]. Aquela decisão
ou posse de bens naturais — sejam corporais, riqueza, amigos

75 - Bodéüs , R., op. cit., p. 47.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 37


Jorge Martínez Barrera

ou outras coisas — que mais gere contemplação de Deus, essa


decisão ou posse é a melhor; essa é a medida mais nobre de to-
das, e tudo o que por falta ou excesso impeça a contemplação
e o serviço de Deus é mau”.76
Esta doutrina concorda com a definição de sophia propos-
ta no livro I da Metafísica, onde Deus aparece entre as causas
primeiras que o sophós deve conhecer: “Pois a [ciência] mais
divina é também a mais digna de apreço. E em dois sentidos
é a mais divina: pois será divina entre as ciências a que tiver a
Deus principalmente, e a que versar sobre o divino. E só esta
reúne ambas as condições; pois Deus parece a todos ser uma
das causas e certo princípio, e tal ciência pode tê-la ou a Deus
somente ou a ele principalmente. Assim, todas as ciências são
mais necessárias que esta; mas melhor, nenhuma”.77
A contemplação, portanto, é também uma ciência arqui-
tetônica, e em vista dela se ordena a ciência prática; para dizer
de outro modo, a plenitude humana consiste no exercício de
uma faculdade especificamente humana, a razão, orientada
para seu objeto mais perfeito, Deus. Mas esta orientação teo-
teleológica contém um pré-requisito de ordem ética, o qual só
é plenamente satisfeito na vida comunitária perfeita, isto é, na
vida política.78

76 - Aristóteles, Ética a Eudemo, VII, 15, 1249b 13-20. Voltaremos a este texto quando
tratarmos as diferenças religioso-teológicas entre Aristóteles e Santo Tomás.
77 - Aristóteles, Metafísica, I, 2, 983a 5-11. Escreve Guariglia , O.: “É importante subli-
nhar o fato de que Aristóteles [...] procura por todos os meios expressivos enfatizar o
caráter teológico da vida filosófica, por mais estranho e até repulsivo que hoje isso nos
possa parecer” (“La eudaimonía en Aristóteles: un reexamen”, em Méthexis, X [1997],
p. 96). O autor não esclarece as razões de tal “repulsa”.
78 - A ciência é um hábito da verdade, e neste ponto convergem o filósofo e o político.
Um busca, contempla e ama o objeto mais digno de todos, Deus, e o outro faz o mesmo
com a verdade prática. A ciência mais perfeita (porque aspira ao objeto mais perfeito)
é também uma atividade, uma práxis que tem dois aspectos inseparáveis. Um deles
é o da atividade contemplativa mesma, práxis suprema, e o outro, o da vida filosófica
com suas exigências específicas, a qual se desdobra no meio da comunidade política.
Neste último sentido, o exercício da filosofia não está reservado ao filósofo profissional.
Todo e qualquer homem tem vocação para a verdade, uma vez que todos desejam,
por natureza, saber; a política tem por isso um compromisso com as condições éticas
de acesso à verdade. Sobre esta segunda face da vita contemplativa tem jurisdição o
político, mas uma jurisdição orientada para o serviço da contemplação, com especia-
líssimo cuidado (therapeía) da paradigmática, ou seja, a divina. A contemplação de
Deus produz desse modo indireto a reta ordenação da pólis.

38 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

Esta doutrina, obviamente, tem muito pouco que ver com


um conservadorismo político por parte do Estagirita. Também
tem muito pouco que ver com uma conexão de tipo dedutivo
entre ética e metafísica. Para Aristóteles, a sophia não dá ordens
concretas, nem Deus, como acabamos de ver nas passagens ci-
tadas. Deus, com efeito, não necessita de nada. Não necessita,
por exemplo, que o mundo esteja ordenado.
Este modo de ver não concorda com a maneira de pensar
mais usual na época do Estagirita, quando o culto dos deuses
implicava sacrifícios e ações rituais, e a divindade, em todo o
caso, não era objeto de contemplação. Neste ponto capital, o
Estagirita não se conforma ao ethos existente. Como quer que
seja, vemos muito claramente nesta doutrina as relações entre
ética e metafísica. Certamente, não se pode dizer que haja es-
trita dependência metafísica entre ética e política, como bem
assinalam os representantes da “reabilitação da filosofia práti-
ca”, isto é, não há uma dependência no sentido de que a meta-
física ditasse certas normas à práxis. Mas isso não significa que
a filosofia prática e a phrónesis mesma não tenham nenhuma
vinculação com a metafísica.
Há outros exemplos que mostram que Aristóteles se dis-
tancia do ethos de sua época. Na concepção política, por exem-
plo, ao conceber a pólis como uma comunidade de iguais, ele se
afasta de uma tradição paternalista ainda presente em Platão:
“[A justiça política] existe entre pessoas que participam de uma
vida comum para tornar possível a autarquia, pessoas livres e
iguais, quer proporcional, quer aritmeticamente. De modo que
entre os que não estão nestas condições não pode haver justiça
política de uns com relação aos outros, mas só justiça em certo
sentido e por analogia. Há justiça, com efeito, para aqueles cujas
relações são reguladas por uma lei [...]”.79
Também a concepção da crematística é antitradicional.
Aristóteles se opõe a Sólon, que é considerado, porém, um dos
grandes legisladores e, portanto, um criador do ethos: “Assim,
há uma espécie de arte aquisitiva que é naturalmente parte da

79 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 6, 1134b 26-31.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 39


Jorge Martínez Barrera

economia: aquela em virtude da qual a economia tem à mão,


ou procura ter à mão, os recursos armazenáveis necessários à
vida e úteis para a comunidade civil ou doméstica. Esses recur-
sos parecem constituir a verdadeira riqueza, pois a propriedade
dessa índole que basta para viver bem não é ilimitada, como diz
o verso de Sólon: ‘Nenhum limite de riqueza foi prescrito aos
homens’; há um limite aqui como nas demais artes [...]”.80
É oportuno assinalar agora um aspecto da reflexão política
do Estagirita que pode fazer pensar, contra a objeção que desen-
volvemos, em certo conservadorismo de sua parte. Trata-se do
que alguns estudiosos chamaram seu “maquiavelismo político”.
Aristóteles é particularmente detalhista quanto ao compor-
tamento que um tirano deve ter se deseja conservar o poder.
Vejamos algumas passagens da Política:

• “O tirano deve agir ou parecer agir como um rei; não


deverá permitir-se dispêndios que irritam o povo, quando são
feitos à custa de seus trabalhos e sofrimentos, e em beneficio de
cortesãs, estrangeiros e artífices; deverá prestar conta do recebi-
do e do gasto, como já fizeram alguns tiranos, pois desse modo
parecerá um administrador e não um tirano”; 81
• “Em segundo lugar, quanto às contribuições e tributos
públicos, deverá aparentar que os recolhe por causa da admi-
nistração comum [...]. Não deverá parecer duro, mas majestoso,
e de modo tal que inspire aos que com ele se encontrem não
temor, mas veneração”; 82
• “Em geral [...] o tirano deve cuidar da cidade e embe-
lezá-la como se fosse um guardião dela e não um tirano; deve
fazer ver que se interessa extraordinariamente e em todos os
momentos pelo culto dos deuses, porque os súditos temem me-
nos sofrer a ilegalidade por parte de um homem desta índole
quando julgam aquele que os governa temeroso da divindade e
crêem que pensa nos deuses, e conspiram menos contra ele por

80 - Aristóteles, Política, I, 8, 1256b 26-34.


81 - Ibid., VII (V), 11, 1314a 39-1314b 7.
82 - Ibid., VII (V), 11, 1314b 14-20.

40 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

crer que os deuses lutam ao lado ele, e deve mostrar-se religioso


sem parecer por isso ridículo”; 83
• “Uma medida preventiva comum a qualquer monarquia
é não elevar nenhum indivíduo a uma dignidade superior ou,
se se fizer, elevar muito, porque assim se vigiarão mutuamente;
no caso de ser preciso elevar alguém, dever-se-á evitar ao me-
nos que seja um homem de caráter ousado, porque são os mais
acometedores em todas as empresas, e, se o tirano considerar
conveniente despojar alguém de seu poder, deve fazê-lo gradu-
almente e não tirar-lhe toda a autoridade de uma vez”; 84
• “Como as cidades são constituídas por duas classes, os
pobres e os ricos, uns e outros devem estar convencidos de
que a tirania é a sua salvaguarda e o que impede que cada
uma das classes sofra a menor injustiça por parte da outra,
e a mais forte das duas deverá ser associada de preferência
ao poder, porque nessas condições o tirano não necessitará
dar liberdade aos escravos nem tirar as armas [...]. O tirano
deve mostrar-se aos súditos não como tal, mas como pai de
família ou como um rei, não como o senhor, mas como o ad-
ministrador da cidade; seguir em sua vida a moderação e não
o excesso, manter boas relações com as classes superiores e
cultivar a popularidade com a multidão”; 85
• “Todos os procedimentos tirânicos também parecem
democráticos, quer dizer, por exemplo, a anarquia dos es-
cravos (que pode até certo ponto ser conveniente), a das
mulheres e crianças, e o permitir que cada um viva como
quiser (serão muitos, com efeito, os que apoiarão este tipo de
regime, porque para a maioria dos homens é mais agradável
viver desordenadamente que com temperança). Para o le-
gislador ou para os que querem estabelecer um regime desta
natureza, não é a única nem a maior tarefa estabelecê-lo,
mas conservá-lo [...]. Por isso, partindo dos meios de conser-
vação e de destruição que antes consideramos, devem tomar-

83 - Ibid., VII (V), 11, 1314b 36-1315a 4.


84 - Ibid., VII (V), 11, 1315a 8-14.
85 - Ibid., VII (V), 11, 1315a 31- 1315b 4.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 41


Jorge Martínez Barrera

se as medidas necessárias para sua segurança, prevenindo os


fatores de destruição e estabelecendo leis, tanto não-escritas
como escritas, de natureza tal, que compreendam no maior
grau possível o que conserva os regimes, e não se deve con-
siderar democrático ou oligárquico o que contribua para que
a cidade se governe mais democrática ou oligarquicamente,
mas sim por mais tempo”.86

Essas passagens, como nota Bodéüs, podem comparar-se a


algumas do Príncipe de Maquiavel (capítulo XVIII): “[...] Um prín-
cipe não tem de possuir todas as qualidades descritas, embora deva
aparentar possuí-las. Atrever-me-ei até a dizer que, se as tem e ob-
serva sempre, lhe são prejudiciais; em contrapartida, aparentando
tê-las, são-lhe úteis [...]. Seu espírito deve estar disposto a variar se-
gundo os ventos da fortuna e as alterações dos fatos [...]. O príncipe
deve ter supremo cuidado em não pronunciar algo que não leve o
selo das cinco virtudes mencionadas, de modo que pareça, ao ser
visto e ouvido, cheio de piedade, boa-fé, integridade, humanidade
e religião. Nada se deve aparentar mais que esta última”.
Enfim, o certo é que o Estagirita se mostra hostil ao princípio
das revoluções políticas, e, na medida em que determinada cons-
tituição busque o bem comum da cidade,87 sempre é melhor um
paciente trabalho de reforma que um novo começo ou revolução.
Mas chama enormemente a atenção que até uma constituição
pervertida deva ser resguardada de uma mudança substancial. Por

86 - Ibid., VIII (VI), 4-5, 1319b 27-1320a 4.


87 - Lembremos que, de maneira esquemática, Aristóteles enumera três constituições
retas e três respectivos desvios. O critério de retidão e desvio é o do bem comum:
“Dado que regime e governo significam a mesma coisa e governo é o elemento sobe-
rano das cidades, necessariamente será soberano ou um indivíduo, ou a minoria, ou a
maioria; quando um ou a minoria ou a maioria governam visando ao interesse comum,
esses regimes serão necessariamente retos, e aqueles em que se governe visando ao
interesse particular de um, dos poucos ou da massa serão desvios [...]. Dos governos
unipessoais, costumamos chamar monarquia ao que visa ao interesse comum; ao go-
verno de poucos, mas mais de um, aristocracia [...]; e, quando é a massa quem governa
visando ao interesse comum, o regime recebe o nome comum a todas as formas de
governo: república (politéia) [...]. Os desvios dos regimes mencionados são: a tirania,
da monarquia; a oligarquia, da aristocracia; a democracia, da republica. A tirania é, efe-
tivamente, uma monarquia orientada para o interesse do monarca, a oligarquia atende
ao dos ricos, e a democracia, ao interesse dos pobres; mas nenhuma delas busca o
proveito da comunidade” (Aristóteles, Política, III, 7, 1279a 25-1279b 10).

42 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

que essa insistência do Estagirita em antes tomar partido da conser-


vação do regime que por sua mudança? É essa ótica surpreendente
de seu pensamento o testemunho de um compromisso político
“conservador” concreto? Essas perguntas serão mais bem compre-
endidas se se levar em conta a função da lei na pedagogia moral
da pólis, ou, para expressá-lo em outros termos, a relação existente
entre nomos e ethos, entendido este último já não como costume
ancestral, mas como formação do caráter, pois “os homens não
buscam o tradicional (to pátrion), mas o bom (tagathon)”.88
Aristóteles indicou dois elementos na aquisição da vir-
tude moral, virtude que, como vimos, é o inevitável caminho
para alcançar a felicidade: em primeiro lugar, a virtude requer,
e este é um elemento de sua definição, o hábito de decidir e
agir de determinada maneira. Mas o hábito requer por sua
vez o tempo; não pode haver hábito sem um desdobramento
na temporalidade, mais precisamente, na duração. A noção
mesma de vida boa (eu zen), recorrente ao longo de toda a
Ética a Nicômaco e de toda a Política, traz em seu próprio con-
ceito o de duração: “[...] o bem humano é uma atividade da
alma conforme com a virtude, e, se as virtudes são várias, de
acordo com a melhor e mais perfeita, e além do mais numa vida
inteira. Porque uma andorinha só não faz verão, nem um só
dia, e assim tampouco faz venturoso e feliz um dia só ou pouco
tempo [...]. Parece até que qualquer pessoa poderia continuar
e articular completamente o que está bem esboçado, e que o
tempo é nestas coisas bom inventor ou colaborador”.89
Em segundo lugar, a aquisição do hábito virtuoso, em razão da
natureza civil do homem, é uma tarefa comum que compete a uma
série de organizações comunitárias, em especial à mais perfeita de
todas: a pólis. Pois bem, o instrumento mais perfeito de que dispõe
a cidade para a formação do caráter de seus cidadãos é a lei. Ela é a
ponte entre a ética e a política no pensamento do Estagirita, como

88 - Aristóteles, Política, II, 8, 1269a 4.


89 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 7, 1098a 16-25. Para um estudo exaustivo da
estrutura temporal da práxis, cf. Vigo, A., Zeit und Práxis bei Aristoteles. Die Niko-
machische Ethik und die zeitontologischen Voraussetzungen des vernunftgesteuerten
Handelns, Freiburg/München, Verlag Karl Alber, 1996.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 43


Jorge Martínez Barrera

bem se pode ver nos últimos parágrafos da Ética a Nicômaco, que


são apresentados pelo mesmo Aristóteles como uma introdução
à Política.90 Pois bem, se a lei, especialmente a lei constitucional,
deve formar o caráter dos cidadãos em certos hábitos, ela deve ser
duradoura, e, se a lei constitucional for duradoura, também o será o
regime que ela sustenta. E, se tal regime for contrário ao fim moral
a que deve estar orientado, não se deve proceder a uma mudança
substancial, isto é, a uma modificação do regime, mediante o corte
abrupto no tempo que a revolução ou o golpe de Estado implicam.
Deve-se proceder, em contrapartida, a uma reforma. Os regimes
desviados podem e devem ser corrigidos, a tirania no sentido da
monarquia e a democracia no sentido da república.91
Assim, quando Aristóteles parece mostrar-se um tanto ma-
quiavélico quanto à preservação do regime, é preciso compreen-
der que ele considera muito mais grave uma alteração da lei que
os males resultantes de um regime desviado, sem que isso implique
um reconhecimento do regime corrupto; tal regime deve ser modi-
ficado, mas de forma que não seja em detrimento do poder da
lei. Vejamos uma importante passagem da Política: “Alguns se
perguntam se é prejudicial ou conveniente para as cidades mudar
as leis tradicionais no caso de haver outra melhor [...]. Tem [esta
questão] dificuldades, e poderia parecer que é melhor a mudança;
é indubitável, em se tratando das outras ciências, que é conve-
niente a mudança; por exemplo, a medicina, a ginástica e em ge-
ral todas as artes se afastaram de sua forma tradicional, de modo
que, se se deve considerar a política como uma delas, é claro que
com ela terá de suceder o mesmo. Poder-se-á dizer que os fatos
o mostram, pois as leis antigas são demasiado simples e bárbaras
[...]. Por essas considerações, é evidente que algumas leis, e em
determinadas ocasiões, devem ser suscetíveis de mudanças, mas
de outro ponto de vista isto isso parece requerer muita precau-
ção. Quando a melhoria for pequena e em contrapartida puder
ser funesto que os homens se acostumem a mudar facilmente

90 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 9.


91 - “É útil, pois, estar familiarizado [com os traços da democracia] para estabelecer
precisamente a democracia que se deseja e para as retificações [tas diorthóseis]”
(Aristóteles, Política, VIII [VI], 1, 1317a 33-35).

44 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


I - Aristóteles e o neo-aristotelismo

as leis, é evidente que deverão ser desprezadas algumas falhas


dos legisladores e dos governantes, pois a mudança não será tão
útil quanto daninho o introduzir o costume de desobedecer aos
governantes. A comparação com as artes é também errônea; não
são a mesma coisa introduzir mudanças numa arte e introduzi-las
numa lei, já que a lei não tem outra força para se fazer obedecer
senão o uso, e este não se dá senão mediante o transcurso de
muito tempo, de modo que o substituir facilmente as leis existen-
tes por novas debilita a força da lei”.92
E em outra passagem o Estagirita observa que a lei con-
suetudinária é superior à escrita: “Além do mais, as leis con-
suetudinárias são mais importantes e versam sobre coisas mais
importantes que as escritas”.93
O problema para Aristóteles é, portanto, simples: embora
seja perfeitamente legítimo e necessário modificar a lei consti-
tucional ou o regime desviado, isso não se pode fazer pelo meio
pedagogicamente catastrófico da revolução. O ensinamento das
virtudes se ressente muito mais com a manipulação da lei que
com uma relativa tolerância com o regime injusto. Isso explica o
programa estabelecido no começo do livro VII (V): “Já tratamos
quase todos os pontos a que nos propusemos, e nos cabe consi-
derar em seguida quais, quantas e de que índole são as causas das
mudanças de regime, quais são as corrupções próprias de cada
um, de que regimes se costuma passar a quais, que meios há de
preservá-los, tanto em geral como para cada regime, e por que
meios se poderia conservar melhor cada um deles”.94
Por outro lado, a argumentação aristotélica acerca da
conveniência ética da estabilidade política apresenta também
certa circularidade ou retroalimentação se a consideramos com
relação ao assunto da amizade (philia) política.
Não se trata, então, de simples conservadorismo político
no sentido de compromisso concreto com determinado regime
(“os homens não buscam o tradicional, mas o bom”), mas de

92 - Aristóteles, Política, II, 8, 1268b 27-1269a 25.


93 - Ibid., III, 16, 1287b 5-6.
94 - Ibid., VII (V), 1, 1301a 19-25.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 45


Jorge Martínez Barrera

algo mais, de um conservadorismo capaz de pôr em questão


toda a ordem existente para orientá-la para uma conformada às
exigências que a natureza humana suscita em sua ascese para a
plenitude que lhe é própria.
Para concluir a respeito da “reabilitação da filosofia práti-
ca” operada pelos neo-aristotélicos, quanto a seus méritos, já os
assinalamos ao longo desta exposição:

a) desarticulação do paradigma epistemológico moderno


baseado na ciência matemática e em critérios de exatidão
como garantia de estatuto epistemológico;

b) desativação da ciência humana axiologicamente neutra,


preconizada sobretudo por Max Weber;

c) patenteação, de maneira muito convincente, da estrutura


dialética do pensamento prático aristotélico, o que permite
introduzi-lo no movimento das chamadas “éticas do dis-
curso”, ou da argumentação, ou da comunicação, represen-
tadas hoje sobretudo por Apel e Habermas.

Mas os limites do neo-aristotelismo são bastante sérios:

a) redução da filosofia prática à phrónesis, com o conseguinte


detrimento da dignidade epistemológica da ética e da polí-
tica;

b) e, sobretudo, há um preconceito persistente contra a meta-


física e, em geral, “contra qualquer forma de filosofia mais
ou menos logicamente imperativa, o que induz a alimentar
suspeitas sobre tudo aquilo que se apresenta com caráter de
saber autêntico, em especial, de saber metafísico”.95

95 - Berti, E., art. cit., p. 266.

46 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II
Ética e política em
Aristóteles
II - Ética e política em Aristóteles

1. Eticidade da política e politicidade da ética

Interessa-nos agora centrar a atenção em alguns aspec-


tos do pensamento político aristotélico que saem do “circuito
normal” que os historiadores das idéias costumam fazê-los per-
correr. Com efeito, e provavelmente devido à profunda crise
da política e da filosofia política contemporâneas — crises que
não têm por que coincidir forçosamente —, acostumamo-nos
a admitir com toda a naturalidade a validade das interpreta-
ções cratológicas não só da política aristotélica, mas também de
qualquer forma de pensamento político. Queremos sugerir com
isso que se abusou de uma categoria hermenêutica, no caso a
categoria “poder”, para compreender as reflexões sobre as coisas
políticas. Provavelmente, o interesse pelo poder como chave
de abóbada na interpretação do político surge com Maquiavel,
pois nele se opera de fato a separação de dois saberes que no
pensamento clássico e medieval se implicavam mutuamente:
a ética e a política. De fato, a possibilidade de independência
epistemológica da política depende, para Maquiavel, da refor-
mulação de seu objetivo. Desse modo, a ética transforma-se em
assunto puramente privado, em boa medida estranho ao assunto
exclusivamente público de que se ocupa a política; esta se torna,
assim, um saber dessa segunda esfera, com suas próprias leis e
exigências, que podem coincidir ou não — na maioria das vezes
não — com as da ética. O político passa a ser identificado quase
exclusivamente com o problema do poder público, tanto no pla-
no nacional como no internacional. Desse modo, torna-se muito
difícil examinar a politicidade intrínseca de certas ações huma-
nas executadas em âmbito não-público, como, por exemplo, as
ações que concernem às relações entre os membros da família.
Aristóteles, em contrapartida, vê uma conexão teleológica entre
as comunidades celulares e a comunidade política global.96 Isso
pode ser visto claramente quando ele descreve, por exemplo,
que tipo de relação “política” há entre os membros da família.97

96 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, 9, 1160a 27-28.


97 - Aristóteles, Política, I, 12; 13, 1260b 9 ss.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 49


Jorge Martínez Barrera

A teleologia política aristotélica, que explica suficientemente


todas as possibilidades legítimas de associação humana, exige,
além do mais, uma cuidadosa sincronização pedagógico-moral
de todos e cada um de seus momentos: “Quanto ao marido e à
mulher, aos filhos e ao pai, a virtude própria de cada um deles
e as relações entre si, o que é bom e o que não é bom, e como
devem seguir o bem e evitar o mal, são pontos que teremos de
examinar quando tratarmos das formas de governo”.98
Segundo o Estagirita, deve existir uma coerência mínima
entre os fins do Estado e os fins das comunidades infrapolíticas,
assim como na ordem natural existe essa coerência entre os
estágios inferiores do desenvolvimento de um organismo e sua
plenitude. Assim como o fim de um feto não pode ser indepen-
dente do fim de um homem, assim também o fim de um muni-
cípio não pode ser independente do fim da cidade. E, ainda que
para a sensibilidade contemporânea essa analogia organicista
possa não ser totalmente válida, para Aristóteles de fato parece
sê-lo. Mais ainda, a desarticulação teleológica em qualquer pro-
cesso evolutivo tem efeito centrífugo-desagregador da unidade
natural. Na verdade, a reflexão aristotélica não exige que se
tenha de “fazer política” (no sentido em que vulgarmente se
entende esta expressão em nossos tempos pós-maquiavélicos)
para que uma ação seja especificamente política. O importante,
em todo o caso, é a beleza da ação, ou seja, sua perfeição mo-
ral (ou seja, sua justiça), ainda que sua realização tenha como
âmbito uma koinonia menor que a pólis. Em outros termos, a
politicidade da práxis não parece depender tanto de seu caráter
público quanto de sua correção moral voluntariamente buscada
por um homem maduro. Aristóteles chega até a tratar a política
como uma virtude intermediária entre o ético e o intelectual.99
A perspectiva maquiavélica100 considera, ao contrário, que o lu-
gar prioritário e até excludente da práxis política é o imediata-

98 - Ibid., I, 13, 1260b 9-13.


99 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 8, 1141b 23.
100 - Chamamos “perspectiva maquiavélica” a qualquer forma de considerar as coisas
políticas como especificamente diferentes das questões morais.

50 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

mente relacionado com o poder supremo da comunidade e seu


exercício. As associações inferiores ficam fora de seu interesse.
Em Aristóteles a política não é pensada como um saber dife-
rente da ética, de maneira que a fratura entre o público e o privado
não é sugerida nem, muito menos, tematizada em sua doutrina.101
A análise da doutrina política aristotélica deve, pois, levar
em consideração uma precaução hermenêutica básica, qual
seja, a de não reduzir a política a uma cratologia, a um estudo
sobre o poder.
A questão da estreita proximidade entre ética e política
corre o risco de sofrer um superdimensionamento enquanto
tema de estudo cuja origem é nitidamente moderna. Se boa
parte da filosofia política contemporânea está tão interessada
em descobrir a ponte entre a ética e a política, é simplesmen-
te porque essa ponte se perdeu. Na verdade, Aristóteles não
diz em nenhum momento que ética e política sejam uma só e
mesma coisa, vista de ângulos diferentes, senão indiretamente
na já citada passagem da Ética a Nicômaco onde se trata da
prudência.102 Para Aristóteles é tão evidente que ética e política
não correspondem a universos epistemológicos diversos, que a
questão nem sequer é tematizada em sua “filosofia das coisas
humanas”,103 como ele chama, precisamente, esse saber unitário
que tem dois grandes capítulos sem solução de continuidade
(ou três, se incluirmos a Retórica). O enorme interesse, não só

101 - “No final da Ética a Nicômaco, Aristóteles formula e explica o programa da Política
[...], que mostra até que ponto a Ética e a Política não são em sua mente senão duas
partes de uma mesma disciplina, duas etapas de uma tarefa intelectual única” (Marías ,
J., Introducción a la Política de Aristóteles, edición bilingüe y traducción por Julián
Marías y María Araujo, Madrid, 1970, p. xxxiii).
102 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 8, 1141b 23 ss: “Pois bem, política e prudência
são um só e mesmo estado da alma, mas visto de ângulos diferentes. Assim, uma das
duas partes da prudência que tem por objeto a cidade é a prudência arquitetônica;
trata-se da prudência legislativa. Mas a sua outra parte, a que é prudência individual,
apropriou-se do nome que deveria ser comum às duas partes, quer dizer, o de prudên-
cia política... Mas aos olhos de todos também há uma prudência, e até é a prudência
por excelência, que tem por objeto um único indivíduo, o sujeito mesmo. Mas ela tam-
bém se apropriou do nome que deveria ser comum a todas as partes da prudência”.
103 - Ibid., X, 10, 1181b 15. Para o comentário desta expressão, cf. Bodéüs , R., Politique
et philosophie chez Aristote. Recueil d’études, Namur, Société des Études Classiques,
1991, pp. 83-85.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 51


Jorge Martínez Barrera

teórico, mas sobretudo prático, que a proximidade entre ética e


política suscita hoje pode ser compreendido, assim, a partir da
separação entre elas operada de fato por Maquiavel.104
Para Aristóteles, portanto, ética e política são em prin-
cípio, se não idênticas, ao menos dois tipos de saber cujas
diferenças não chegam a especificar campos epistemológicos
diversos. Mas também é verdade que a linguagem corrente
tende a fazer pelo menos alguma distinção entre elas. Pois
bem, na reflexão clássica acerca da política, a linguagem
corrente, longe de ser desprezada, é, ao contrário, seriamente
levada em conta como ponto de partida do raciocínio. O pro-
blema epistemológico que se coloca então é averiguar em que
elas se identificam e em que divergem. Temos um começo de
solução para isso precisamente numa passagem do comentário
de Santo Tomás ao lugar aristotélico citado, onde se alude
a essa identidade. Escreve o Aquinate: “Diz [Aristóteles] que
política e prudência são o mesmo hábito quanto à sua subs-
tância, pois cada uma delas é a reta razão aplicada às ações
humanas boas ou más [recta ratio rerum agibilium circa humana
bona vel mala], as quais porém diferem segundo sua razão [se-
cundum rationem, ou seja, não in re]. Com efeito, a prudência
é a reta razão aplicada às coisas boas ou más, a qual dirige as
ações de um só homem, ou seja, a si mesmo. A política, em
contrapartida, refere-se às coisas boas ou más do conjunto da
multidão civil. E por isso é evidente que a política está para a
prudência assim como a justiça legal está para a virtude”.105

104 - Escreve Barker, E.: “Maquiavel, na medida em que é o pai da ciência política
moderna entendida como uma indução científica a partir da história, é ainda mais emi-
nentemente o autor do divórcio entre política e ética [...]. Mas devemos recordar que
tal distinção é alheia a Aristóteles. Ela não está implicada na separação de um tratado
sobre a ética de um sobre a política. O próprio termo ‘justiça’ é usado, por Aristóteles
e por Platão, para designar não somente a bondade moral, mas também a obrigação
legal” (The Political Thought of Plato and Aristotle, New York, Dover Publications, Inc.,
s/f., p. 241; grifo do autor).
105 - Tomás de Aquino, Sententiae Sexti Libri Ethicorum, 356:23-31. Estritamente fa-
lando, o texto aristotélico que o próprio Santo Tomás tem diante de si não autorizaria
seu comentário. Diz o texto: “Est autem et politica et prudentia idem quidem habitus,
esse quidem non idem ipsis” (destaque nosso). A idéia é que, embora a política e a
prudência sejam um mesmo hábito, não o são quanto à sua substância. Mas o Aquinate
sustenta que Aristóteles “Dicit ergo prima quod politica et prudentia sunt idem habitus

52 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

Ética e política aparecem separadas por uma distinção de


razão no Comentário de Santo Tomás, e é importante subli-
nhar que o critério desta distinção não coincide com o que as
separa na ótica estritamente factual (ou seja, in re) de Maquia-
vel. Há coincidência material no sentido de que para este a
ética dirige as ações de um só e a política as da multidão, mas
falta a esta última perspectiva a ratio formalis da reta razão,
lugar de convergência de ambas.
Assim, numa simples leitura da Ética a Nicômaco, salta aos
olhos que se trata de um trabalho sobre política do princípio ao
fim, literalmente falando. Um simples exame da estrutura global
desta obra deve bastar para nos persuadir disso.106 Vejamos:

a) O começo mesmo da Ética a Nicômaco107 visa a demons-


trar, com o rigor científico que o tema admite,108 que é
perfeitamente possível um tratamento epistemológico da
ação humana no que ela tem de específico, e que a ciência
suprema nesta matéria é a política.

b) No começo do livro II, cujo tema específico é a análise


da virtude moral, há uma importante referência à função
dos legisladores na educação moral da cidade: “[...] os
legisladores tornam bons os cidadãos fazendo-os adquirir
costumes, e essa é a vontade de todo e qualquer legislador;
todos os que não o fazem bem erram, e nisto se distingue
um regime de outro, o bom do mau”.109

secundum substantiam [...]” (destaque nosso), ou seja, exatamente o contrário. Pois


bem, Santo Tomás pode ter-se perguntado como é possível que política e prudência,
sendo um mesmo hábito, não coincidam quanto à sua substância. De qualquer forma,
não se desvanece a suspeita de uma interpretação errônea, nesta passagem, do texto
aristotélico por parte de Santo Tomás.
106 - Não tratamos aqui da autenticidade e/ou aceitabilidade da atual estrutura da Ética
a Nicômaco, pois uma possível revisão futura da ordem de seus livros não afetará em
nada o nosso propósito.
107 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 1, 1094a 1-1094b 11.
108 - Ibid., I, 1, 1094b 11-1095a 2.
109 - Ibid., II, 1103b 3-6.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 53


Jorge Martínez Barrera

c) A justiça, virtude política por excelência,110 tem seu topos


sistemático-analítico na Ética a Nicômaco e não na Política.
Quando Aristóteles menciona a justiça na Política, já dá por
suposto seu tratamento como virtude moral na Ética. Por
outro lado, em outra passagem da Ética a Nicômaco, diz o Es-
tagirita: “Estudamos até aqui as relações entre o recíproco e o
justo; mas não devemos esquecer que o objeto de nossa inves-
tigação é a justiça tal como ela é realizada na cidade [...]”111.

d) No livro VIII, onde se trata da amizade, Aristóteles não só a


considera em si mesma, mas também em relação à justiça e
às diferentes formas de constituição política.112

e) O último capítulo do último livro da Ética a Nicômaco113 é


apresentado pelo próprio Aristóteles como uma introdução
à ciência política, precisamente com o objetivo de “levar a
uma boa culminação, na medida das nossas capacidades, a
filosofia das coisas humanas”.114 O que equivale a afirmar
que o telos da ciência moral é a política. Em sua expressão
política, a ética alcança seu sentido pleno.

Os pontos a), b), c) e d), insistimos, acham-se tematica-


mente enquadrados na Ética.
E, reciprocamente, na Política abundam as passagens “mo-
rais”. Podemos ler um bom resumo da eticidade da política na
Política (mais adiante aparecerão outras passagens “morais”):
“Mas [os homens] não se associaram somente para viver, mas
para viver bem (caso contrário, haveria também cidades de

110 - Cf. Aristóteles, Política, I, 2, 1253a 15; a 37; III, 13, 1283a 38-40; IV, 4, 1291a 25
ss.; e sobretudo quando se identifica a justiça com o bem comum: “[...] esta é a ciência
política, cujo bem é a justiça, em outras palavras, o bem comum” (Política, III, 12, 1282b
17). Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, 11, 1160a 13-14. E na Ética a Nicômaco,
V, 10, 1134a 26, se observa um nexo entre “justiça” e “comunidade”. Cf. Aristóteles,
Retórica, I, 6, 1362b 27-34.
111 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 10, 1134a 23-26; grifo nosso.
112 - Ibid., VIII, 11, 12 e 13.
113 - Ibid., X, 10.
114 - Ibid., X, 10, 1181a 13 ss.

54 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

escravos e dos outros animais, mas não as há porque eles não


participam da felicidade nem podem escolher sua vida). Tam-
pouco se associaram para formar uma aliança bélica com o
fim de não ser vítimas de nenhuma injustiça, nem para a troca
e a ajuda mútua, já que então os tirrenos e os cartagineses e
todos os que têm contratos entre si seriam como cidadãos de
uma só cidade. Há, sem dúvida, entre eles convênios relativos
às importações e contratos pelos quais se comprometem a não
faltar à justiça e documentos escritos sobre sua aliança. Não
têm, todavia, magistraturas comuns a todos para essas ques-
tões, mas diversas em cada um deles, nem têm de se preocupar
uns com o que são os outros [...]. Em contrapartida, todos os
que se interessam pela boa legislação indagam sobre a virtude e
a maldade cívicas. Assim, também é patente que a cidade que
verdadeiramente o é, e não só de nome, deve preocupar-se com a
virtude; porque, se não o faz, a comunidade se transforma numa
aliança [...] e a lei num convênio e, como diz Licofron, o sofis-
ta, numa garantia dos direitos de uns e de outros, mas deixa
de ser capaz de tornar os cidadãos bons e justos [...]. É claro,
pois, que a cidade não é uma comunidade de lugar, cujo fim
seja evitar a injustiça mútua e facilitar o intercâmbio. Todas
essas coisas se darão necessariamente, sem dúvida, se existir a
cidade; mas o fato de que se dêem todas não basta para haver
cidade, que é uma comunidade de casas e famílias com o fim de
viver bem, de conseguir uma vida perfeita e suficiente. Esta não
poderá realizar-se, no entanto, sem que os cidadãos habitem
num mesmo lugar e contraiam entre si matrimônio. Daí surgi-
ram nas cidades as alianças de família, as fratrias, os sacrifícios
públicos e as diversões da vida em comum; e estas coisas são
produto da amizade, já que a escolha da vida em comum supõe a
amizade. O fim da cidade é, pois, o viver bem, e essas coisas são
meios para este fim. A cidade é a comunidade de famílias e aldeias
numa vida perfeita e suficiente, e esta é, a nosso ver, a vida feliz
e boa. Deve-se concluir, portanto, que o fim da comunidade
política são as boas ações e não a convivência”.115

115 - Aristóteles, Política, III, 9, 1280a 31-1281a 2.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 55


Jorge Martínez Barrera

2. A justiça na Ética a Nicômaco

Detenhamo-nos agora brevemente na reflexão aristotéli-


ca sobre a justiça (Livro V da Ética a Nicômaco). Em primeiro
lugar, sua caracterização inequívoca como virtude moral exige
do Estagirita um método semelhante ao que veio seguindo até
agora com as demais virtudes. Trata-se de determinar duas coi-
sas: qual é o objeto da virtude em questão e qual é a disposição
interior com que nos devemos aproximar desse objeto. Assim,
no caso da justiça teremos:

a) em que consiste o justo;

b) como devem ser obradas as coisas justas para que quem age
seja tido por justo, por possuidor da virtude da justiça.116
Note-se, de passagem, que este é a mesma via seguida por
Santo Tomás em seu tratado De iure et iustitia da Suma
Teológica: primeiro se trata do objeto da virtude e depois
da forma como o justo deve ser obrado.117

Esse procedimento marca os limites temáticos precisos do


Livro V. O ponto a), depois de uma introdução que se desenvolve
em 1, 1129a 3-26 e se desdobra em 2, 1129a 26-10, 1135a 14. O
ponto b) é tratado entre 10, 1135a 15-15, 1138b 5, com um apên-
dice intermédio acerca da eqüidade entre 14, 1137a 31-15, 1138b
13, em cujo interior também é aplicado o método de que estamos
falando: determina-se o que é o eqüitativo e examina-se a dis-

116 - O comentário de Gauthier-Jolif ad loc. (neste caso do segundo) afirma que “não
se vê claramente a que método se refere Aristóteles”. De qualquer modo, sempre se-
gundo Jolif, há um procedimento que parece ser comum em Aristóteles, o de distinguir
claramente o sentido dos termos de que se falará (Aristote, L’Éthique à Nicomaque,
Introduction, Traduction et Commentaire par R. A. Gauthier, O.P., et J.-E. Jolif, O.P.,
Louvain, Publications Universitaires de Louvain/Paris, Éd. Béatrice-Nauwelaerts, Tome
II Commentaire Première Partie, livres I-V, pp. 329-330).
117 - Hoje se presume que o Comentário à Ética a Nicômaco é contemporâneo da IIa-IIae
da Suma Teológica, onde se encontram as questões De iure et iustitia. Cf. Weisheipl, J.,
Friar Thomas d’Aquino. His Life, Thought and Works, Washington D.C., 1983, p. 380.

56 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

posição interior com que a pessoa deve agir para ser chamada
eqüitativa.118
Há em Aristóteles a perfeita consciência de que para ser-
mos justos não basta fazer coisas justas; requer-se ainda que
tais atos justos sejam produto de um convencimento pessoal
que, em sua expressão mais acabada, adquiriu estado habitual.
Embora a concreção exterior de um ato possa ser idêntica, não
são a mesma coisa um ato de justiça e um ato justo. A reposição
de um depósito, por exemplo, pode ser um ato justo sem ser
inteiramente um ato de justiça, quando o motivo é o temor
da sanção por morosidade em vez do íntimo e livre conven-
cimento, presente no espírito de maneira habitual, de que é
preciso restituir os bens alheios. Neste último caso, tratar-se-ia
de um ato de justiça, ou seja, de um ato suscitado pela virtude
da justiça. E, se se quiser apurar mais a análise, deve-se dizer
que um ato justo intencionalmente cumprido também pode
não ser um ato de justiça, na medida em que a reta intenção
seja acidental, e não habitual. E o mesmo vale para os atos in-
justos. Não somos injustos somente por cometer atos injustos.
Toda a diferença reside no motivo do ato, e toda a gravidade,
na presença ou ausência do hábito.119 Em suma, para um ato
ser um ato de justiça e para por ele sermos chamados justos,
é preciso que seja ek prohairéseos (não katà symbebekós) e que
corresponda a uma inclinação habitual. Do mesmo modo, não
podemos ser chamados injustos por termos cometido um ato
injusto por ignorância ou se, ainda que o tenhamos cometido
com consciência, interveio a paixão. Um ato de injustiça requer
também uma escolha deliberada nascida de uma disposição ha-
bitual: “Temos de ir um pouco mais longe: o que é a virtude não

118 - As permanentes extrapolações de algumas passagens e interpolações de outras


de diferentes famílias de manuscritos feitas na tradução de Gauthier-Jolif, com o objeti-
vo de aplicar rigorosamente à Ética a Nicômaco a teoria genética de Jaeger, podem dar
uma imagem falsa da verdadeira estrutura interna do livro V. De qualquer maneira, não
é menos verdade que, qualquer que seja a ordem real deste livro, os temas em questão,
ou seja, o da definição do justo e o da disposição interior do sujeito com respeito ao
objeto da virtude, se encontram realmente nele.
119 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 10, 1135a 15-1136a 9.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 57


Jorge Martínez Barrera

é meramente a disposição conformada à reta razão, mas o que é


acompanhado da reta razão”.120
Ou seja, não basta a obediência cega a um imperativo de-
ôntico, é preciso, ademais, para a perfeição moral do ato, que a
reta razão seja própria e não de outrem. A verdadeira virtude
deve ser dirigida do interior. O que importa na obra justa é,
obviamente, a retidão da práxis, mas também que essa retidão
seja intencional. A grande pergunta da filosofia moral não é
somente a pergunta de Kant na Crítica da Razão Prática, ou
seja, “que devo fazer?”,121 mas também “como posso vir a ser
o tipo de pessoa que habitualmente faz o que se deve fazer?”:
“[...] as ações de acordo com as virtudes não são feitas justa
ou morigeradamente se elas mesmas são de certa maneira, mas
também se quem as faz reúne certas condições ao fazê-las: em
primeiro lugar, se as faz com conhecimento; em segundo lugar,
escolhendo-as, e escolhendo-as por elas mesmas; e, em terceiro
lugar, se as faz com uma atitude firme e inabalável”.122
Um leitor contemporâneo pode surpreender-se ao compro-
var que Aristóteles privilegia a justiça legal e a exalta como per-
feição da justiça mesma.123 Não obstante, essa opinião corrente
segundo a qual, aparentemente com alguma superficialidade, o
justo consiste no respeito à lei e o injusto em sua desobediência
é corroborada pouco depois do exame do conteúdo mesmo da
lei. Vale a pena citar a passagem da Ética a Nicômaco: “Como
o transgressor da lei era injusto e quem se conformava a ela,
justo, é evidente que tudo o que é legal é de certo modo justo,
pois o estabelecido pela legislação é legal e de cada uma dessas
disposições dizemos que é justa. As leis se referem a todas as
coisas, propondo-se ao que convém em comum a todos, ou aos

120 - Ibid., VI, 13, 1144b 26-27.


121 - K ant, I., Crítica da Razão Prática, A8005/B883.
122 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 4, 1105a 28-110b 1. Ver também VI, 12, 1144a
13-20.
123 - Ibid., V, 3, 1129b 25-31. Aristóteles emprega até, segundo o comentário de
Gauthier-Jolif ad loc., um recurso pouco habitual em seu árido estilo literário científico
ao permitir-se citar o verso de um poeta desconhecido, quando diz que como ela não
brilham “nem a estrela d’alva nem o luzeiro vespertino”, e um verso de Teógnis: “Na
justiça se encontra o resumo de todas as virtudes” (Elegias, 147).

58 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

melhores, ou aos que estão no poder, ou a alguma outra coisa


semelhante; de modo que, em certo sentido, chamamos justo ao
que é de índole a gerar e preservar a felicidade e seus elementos
para a comunidade política”.124
Há aqui um ponto do maior interesse: o que nos ordena
a lei, já que respeitá-la é condição necessária no caminho da
aquisição da virtude da justiça? A resposta de Aristóteles, logo
depois da passagem citada, é esta: “Também ordena a lei que se
faça o que é próprio do valente, por exemplo, não abandonar a
formação, nem fugir, nem desfazer-se das armas; e o que é pró-
prio do homem morigerado, como não cometer adultério nem
comportar-se com insolência; e o que é próprio do homem de
caráter manso, como não bater em ninguém nem falar mal do
outro; e igualmente o que é próprio das demais virtudes e das
formas de maldade, ordenando um e proibindo o outro [...]”.
E em 1130b 22 ss temos: “[...] em geral, a maioria das dispo-
sições legais é constituída de prescrições da virtude total, porque
a lei manda viver de acordo com todas as virtudes e proíbe que
se viva em conformidade com todos e quaisquer vícios. E, das
disposições legais, servem para produzir a virtude total todas as
estabelecidas acerca da educação para a vida em comunidade”.
Também pode ser curiosa para um leitor contemporâneo,
habituado a ver a ética e a política como disciplinas confor-
madas a estatutos epistemológicos impermeáveis, a relação
tão estreita entre o conteúdo da lei e a virtude moral. No
pensamento aristotélico, a obediência à lei é condição sine
qua non para a aquisição da virtude da justiça, mas sempre
e quando a prescrição legal esteja por sua vez contextuali-
zada por um ideal ético. Em suma, o que é inabitual hoje
é a própria função pedagógico-moral da lei. Na perspectiva
aristotélica, as ações moralmente boas, a eupraxia, são legal-
mente exigíveis, do mesmo modo que as más ações devem ser
juridicamente proibidas. Fica assim definido o marco geral
da justiça e do conteúdo da lei, ao qual deverão cingir-se as
especificações mais particulares delas em função dos diversos

124 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 3, 1129b 11 ss.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 59


Jorge Martínez Barrera

tipos de comércio possível entre os concidadãos. Não basta


dizer que é preciso agir como faz o valente, o temperado,
o calmo, etc. Na verdade, sem uma especificação maior, a
justiça geral ficaria reduzida a um ideal ético, magnífico sem
dúvida, mas sem aplicação concreta. Donde o Estagirita sus-
tentar o seguinte: “Em todo o caso, porém, o que estamos
investigando é a justiça que é parte da virtude, pois há uma
que o é, como dissemos”.125
Assim, uma vez definido o fim da lei (o interesse comum) e
o marco ético geral em que esse fim deve ser procurado, o Estagi-
rita passa a indagar sobre seus conteúdos concretos, particulares.
Eles serão definidos principalmente em função dos diversos tipos
possíveis de interação entre cidadãos de pleno direito, e levando
em consideração o tipo de igualdade (aritmético ou proporcio-
nal) que deve reger tais interações. A obediência aos preceitos
legais assim concebidos é a obediência ao justo, e a perfeição
última desse respeito só é alcançável na comunidade perfeita.
É assim que o justo político, que no essencial é um justo moral,
constitui o telos de toda e qualquer forma de justiça. Vemos cla-
ramente que, para Aristóteles, se trata antes de encontrar a di-
mensão política da moral do que a moralização do político. Esta
moralização é apenas um ponto de partida tácito e pressuposto
da indagação. Pois bem, a lei é a ponte pela qual necessaria-
mente terá de passar a ética para projetar-se politicamente. Ela
torna-se o exponencial político da virtude, ou, para usar uma
expressão de Martin Rhonheimer, uma “sabedoria moral insti-
tucionalizada”.126 Toda a passagem do cap. 10, livro X, da Ética a
Nicômaco, entre 1179b 31 e 1181b 23, é concebida para mostrar
precisamente isso. Vejamos apenas alguns parágrafos:

• “Mas é difícil encontrar quando jovem a direção reta


para a virtude, se não se foi educado sob tais leis [...]”;127

125 - Ibid., V, 4, 1130a 15.


126 - Rhonheimer, M.“Perché una filosofia politica? Elementi storici per una risposta”,
em Acta Fhilosophica, vol. I (1992), fasc. 2, p. 235.
127 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1179b 31.

60 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

• “Não é suficiente impor-se um regime alimentar e uma


regra de vida correta quando se é jovem; até na idade adulta
devemos praticar certas regras e habituar-nos a elas, e para isso
também necessitamos de leis. Em suma, necessitaremos delas
por toda a vida [...]”;128
• “O melhor, sem dúvida, é que a cidade se ocupe destas
coisas pública e retamente [...]. É evidente, com efeito, que os
cuidados que uma comunidade requer são levados a efeito por
meio de leis, e bem por meio de boas leis”;129
• “É provável, pois, que também quem quiser, mediante
seu cuidado, tornar melhores a outros, sejam muitos ou poucos,
deve procurar tornar-se legislador, se é que nos tornamos bons
mediante as leis”.130

Retenhamos então isto: a articulação entre ética e políti-


ca depende do conteúdo moral da lei positiva, e não somente
quando esta é um decreto, mas sobretudo na lei constitucional,
porque “a constituição é a vida mesma da comunidade”.131
A pergunta sobre a melhor constituição não pode ser dis-
sociada, segundo Aristóteles, da pergunta sobre a vida boa e
feliz. Vejamos apenas três passagens suficientemente ilustrativas
do modo como, assim como a Ética é um tratado sobre política,
a Política é também uma obra sobre moral:

• (Aristóteles critica aqui a constituição de Faléias da


Calcedônia, cujo propósito era acabar com a injustiça distribu-
tiva mediante uma reforma radical do regime de propriedade):
“Mas, além disso, ainda que se estabelecesse para todos uma
propriedade moderada, não se ganharia nada com isso, porque
é mais necessário igualar as ambições do que a propriedade,
e isso não é possível senão graças a uma educação suficiente
por meio das leis” (aqui, a grande questão contemporânea da

128 - Ibid., X, 10, 1180a 1.


129 - Ibid., X, 10, 1180a 29 ss.
130 - Ibid., X, 10, 1180b 23.
131 - Aristóteles, Política, IV, 11, 1295a 40-b 1.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 61


Jorge Martínez Barrera

‘justiça social’ é recolocada de uma perspectiva ético-pedagógi-


ca que toca radicalmente as causas da injustiça antes que suas
conseqüências);132
• “Consideraremos agora qual é a melhor forma de governo
e qual é o melhor tipo de vida para a maioria das cidades e para
a maioria dos homens [...]. Com efeito, se se disse com razão na
Ética que a vida feliz é a vida sem impedimento de acordo com
a virtude [...]. E estes mesmos critérios serão necessariamente os
da virtude ou maldade da cidade e do regime, porque o regime
[politéia] é a forma de vida da cidade”;133
• “Quem se propuser a fazer um estudo adequado do me-
lhor regime terá de definir primeiro, necessariamente, qual é a
vida preferível, pois enquanto isto não estiver claro tampouco
poderá estar, forçosamente, o melhor regime. É, com efeito, na-
tural que corra tudo da melhor maneira possível para os que se
governam melhor dadas as suas circunstâncias, se não ocorre
nada de anormal. Por isso temos de chegar a um acordo, antes
de tudo, quanto a qual é a vida preferível, por assim dizer, para
todos; e, depois, quanto a se é a mesma para a comunidade e
para o indivíduo ou não”.134

Como conseqüência residual, mas não menos importante,


da imbricação entre ética e política, temos que os grupos infe-
riores à comunidade política, inferiores tanto por seu número
como por sua posição de subalternação teleológica, também são
integrados ao fim da política. Quando ética e política se separa-
rem vários séculos depois, a reflexão tenderá a centrar-se antes
nas relações do indivíduo com a pessoa jurídica da comunidade,
ou seja, o Estado, o qual terá passado a ser um macroindivíduo
com fins e direitos próprios não necessariamente coincidentes
com os de seus membros, também concebidos monadicamente.
Barker sustenta, com razão, que “a concepção do Estado [grega]
como uma associação ética para alcançar a virtude implicava

132 - Ibid., II, 7, 1266b 28-31.


133 - Ibid., IV, 10, 1295a 25 ss.
134 - Ibid., VII, 1, 1323a 14 ss.

62 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


II - Ética e política em Aristóteles

uma concepção das relações do Estado com o indivíduo dife-


rente da atual [...]. O fato é que, para o pensamento político da
Grécia, a noção de indivíduo não se destaca, e a concepção de
‘direitos’ parece não ter sido alcançada. Como o indivíduo exer-
cia influência direta sobre a vida do todo, talvez por isso não
pretendesse ter direitos diante deste. Certo de sua valia social,
não precisava preocupar-se com sua pessoa individual. E, por
conseguinte, partindo de um ponto de vista ético e da concep-
ção de Estado como uma associação moral, o pensamento grego
sempre postulou uma solidariedade que é estranha a boa parte
do pensamento moderno”.135
Atenas são os atenienses concretos e não uma persona
ficta. A vida boa e feliz a que se refere Aristóteles não enseja
uma antropologia individualista. Quando o Estagirita afirma
a natural politicidade humana, está perfeitamente consciente
do que significa “natural”. A plenitude humana é uma questão
essencialmente relacional, como o prova, entre outras, a seguin-
te passagem da Ética a Nicômaco: “Porém não entendemos por
suficiência o viver só para si uma vida solitária, mas também
para os pais e os filhos e a mulher, e em geral para os amigos
e concidadãos, dado que o homem é por natureza político”136
(veremos mais adiante que, no entanto, este texto apresenta
certas dificuldades de conciliação com outro da Política,137 no
qual a autarquia aparece como a face superlativamente perfeita
do telos político).
A separação moderna entre ética e política tem como uma
de suas conseqüências que, quando inevitavelmente for preciso
tentar recompor as relações entre elas, a única política possível
a partir de uma ética subjetivista será de tipo consensualista ou
contratualista.138

135 - Barker, E., op. cit., p. 7.


136 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 5, 1097b 8 ss.
137 - Aristóteles, Política, VII, 3, 1325b 14 ss.
138 - É preciso, porém, matizar um pouco a afirmação de que a modernidade em geral
produziu a separação entre a ética e a política. Nos casos de Rousseau e de Hegel, há,
ao contrário, um sério esforço por encontrar o fundamento e o sentido moral do Estado.
Ver Barker, E., op. cit., pp. 520-522.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 63


Jorge Martínez Barrera

A felicidade perfeita, ao ser concebida por Aristóteles


como uma práxis ou atividade, e não simplesmente como um
estado, transforma-se na questão principal da política, que é,
precisamente, a ciência suprema da práxis139. Mas essa felicidade
é alcançável mediante o exercício de uma vida virtuosa, ou seja,
de uma vida cujos atos constitutivos são dirigidos por uma razão
verdadeira. E para isso se requer uma completa liberdade de
ação. Não podem existir limitações nem condições para o exer-
cício da virtude, porque desse modo a atividade suprema não
seria absoluta e perfeita em si mesma. E já não se trata somente
de limitações materiais ou físicas, que obviamente tampouco
são compatíveis com a felicidade, mas de limitações espirituais.
Barker exemplifica-o: “Punir o vício é um ato virtuoso; mas
é um ato condicionado à existência do vício, e portanto não
é um ato de virtude absoluta. A virtude absoluta é positiva e
criativa, não negativa e destrutiva. É uma virtude suportar com
inteireza a doença e a pobreza; mas é uma virtude condiciona-
da a essas limitações e não uma virtude absoluta”.140 Por essa
mesma razão, a justiça legal, na medida em que é capaz de gerar
belas ações incondicionadas, está mais próxima da felicidade
do que a justiça particular, na medida em que esta gera ações
precedidas do mandato coercitivo de um juiz (reposição de um
depósito, cumprimento de uma pena, etc.). Este é precisamente
o sentido do termo dikaioma,141, isto é, o ato de justiça mencio-
nado mais acima. Dito de outro modo, a incondicionalidade
das ações geradas pela justiça legal também tem como efeito
colocar o cidadão na posição de senhor absoluto de suas ações;
ao contrário, em boa parte das ações geradas pela justiça par-
ticular, esse caráter se perde e com ele a conexão de acesso
imediato à vida feliz.

139 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 1, 1094a 22-1094b 7.


140 - Barker, E., op. cit., p. 28.
141- Cf. Ética a Nicômaco, V, 10, 1135a 5-13.

64 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


III
Forma e liberdade
na filosofia política
de Aristóteles
III - Forma e liberdade na filosofia política de Aristóteles

1. A forma em política: teleologia e pedagogia

O conceito de “forma” (eidos) não é sistematicamente


tratado por Aristóteles em sua filosofia das coisas humanas,
especialmente na Política. No entanto, nada obsta a que exami-
nemos como esta noção capital da filosofia aristotélica tem uso
implícito e bastante claro em seu pensamento político.
É facilmente comprovável, por outro lado, que o conceito
de forma é intrinsecamente ligado a outro que para Aristóteles
ocupa o lugar de honra em seu pensamento: o de teleologia ou
finalidade; “aquilo em vista do qual” (to hou héneka) são mais
exatamente as palavras do Estagirita. E isso é a tal ponto assim,
que ambos os termos recebem freqüentemente o mesmo trata-
mento.142 A forma é fim, e o fim é a forma: a forma de uma árvo-
re é o fim da árvore, já desde o seu vir ao mundo como semente.
Este aspecto finalístico da forma é especialmente evidente na
ordem natural, ou pelo menos nas coisas submetidas a processos
de geração e crescimento. Precisamente, o fato de que as coisas
naturais tenham um fim, e de que em seu conjunto a natureza
seja causa de uma ordem finalisticamente orientada, constitui
um dos grandes temas de discussão de Aristóteles, em seus li-
vros físicos, contra o mecanicismo atomístico de Demócrito.
O que está em potência de ser algo pertence em todas as suas
progressões a esse algo final para o qual se dirige o seu próprio
dinamismo evolutivo. Por isso, entre outros exemplos que se
poderiam aduzir, o embrião de um ser animado “pertence” a si
mesmo ou à sua própria forma final como indivíduo desenvol-
vido, antes que ao eventual indivíduo portador e provedor de
seu habitat biológico.143
O que sucede na ordem das questões humanas tem várias
semelhanças com o que sucede na ordem natural subumana.
A coincidência fundamental é que as formas comunitárias ele-
mentares têm, para Aristóteles, além de uma coordenação ho-

142 - Aristóteles, Política, 1252b 32 ss; Física, 198a 25-26, inter alia.
143 - Esta é uma idéia que também está presente em Tomás de Aquino, Suma Teológica,
Ia, q. 118, a. 2, ad 2.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 67


Jorge Martínez Barrera

rizontal-interior, uma ordenação finalística de tipo vertical-ex-


trínseca, que, paradoxalmente, é a mais importante e dá sentido
às primeiras. Assim como num sistema biológico a morfologia e
a fisiologia citológica e histológica só se podem explicar exaus-
tivamente se compreendidas como ordenadas ao fim superior
do organismo plenamente constituído, sendo este, por sua vez,
etiologicamente mais compreensível à luz de sua integração na
biocenose (ou, diríamos, na ordem ecológica), assim também as
comunidades práticas tomam seu sentido de uma comunidade
política última que lhes provê sua energia aglutinante. A ordem
política é a forma final natural das associações infrapolíticas.144
A práxis humana é, por natureza, ordenada a uma perfeição
cujo acabamento só é possível na instância política. Por isso,
a forma mais perfeita de qualquer ordem comunitária é alcan-
çada quando se instaura uma ordem política. Essa virtualidade
política de toda e qualquer ação humana, e portanto de toda e
qualquer comunidade — que é, materialmente, um conjunto de
ações —, constitui o que é mais radicalmente natural das co-
munidades. Com a expressão “radicalmente natural” aludimos
a certa ordem de coisas que não depende de nós. Assim como
não é problema nosso, mas da natureza, decidir sobre a ordena-
ção fisiológica de determinada estrutura celular ou orgânica,
tampouco nos compete decidir se as comunidades infrapolíticas
devem ou não ordenar-se à comunidade política. Sobre o fim e
sobre as coisas do passado não se delibera, sustenta o Estagirita.
Até aqui, muito abreviadamente, as semelhanças entre a ordem
natural e a ação humana.
Mas, junto a essas similitudes, coexistem algumas diferenças
importantes com relação à ordem natural não-humana. A mais
significativa de todas, e provavelmente a mais esquecida, é que,
embora na natureza haja certa espontaneidade dos processos de
desenvolvimento orgânicos e metabólicos (a etimologia de “es-
pontâneo” remete à idéia de uma promessa — donde “esponsais”
— e, em grego, a uma promessa que tem os deuses como garanti-
dores), no relativo à práxis a ordenação teleológica das comunidades

144 - Cf., inter alia, Aristóteles, Política, 1252a 4-7; 1252b 28-1253a 1.

68 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


III - Forma e liberdade na filosofia política de Aristóteles

não é garantida por essa espontaneidade em nenhum de seus momen-


tos evolutivos. Não necessariamente, ou espontaneamente, uma
família se ordenará a uma forma superior de associação, por mais
que seu bem mais perfeito, enquanto comunidade familiar, seja
extrafamiliar. As coisas humanas têm a especial característica de
que, embora não podendo nada contra a ordenação finalística
pela qual se encontram tendencialmente dirigidas, a consecução
de seu fim é sempre algo encomendado e não garantido. Por isso o
“político” de uma comunidade depende de decisões humanas e é
uma questão de configuração permanente. Pois bem, uma comu-
nidade pode ser chamada “política” quando possui uma constitui-
ção; por isso, a constituição é a forma dessa comunidade, aquilo
por que é assegurada a sua identidade. “A constituição”, escreve
Aristóteles, “é a vida mesma da cidade.”145 Não obstante, essa
mesma constituição pela qual uma comunidade é política não é,
por sua vez, um conjunto de disposições jurídicas que tenham por
fim assegurar certas regras de jogo claras, ou garantir os direitos
individuais. Nada mais estranho ao pensamento aristotélico que
a idéia de lei como uma garantia de direitos.146 Ao contrário, a
lei, e especialmente a lei constitucional, é para o Estagirita uma
questão de pedagogia moral pública; dito de outro modo, a lei,
antes que uma “vantagem juridicamente protegida”, é o expo-
nencial político da virtude moral. Por isso, uma associação só
pode ser chamada política quando sua constituição manifesta
publicamente a vontade de conformar uma comunidade etica-
mente orientada. Desse modo, o fim da lei é, sim, constituir uma
comunidade política, mas essa comunidade só poderá chamar-se
“política” se a lei constitucional que a conforma concordar com
uma meta de perfeição moral. Esta perfeição moral é nada mais
nada menos que o fim mesmo da vida, do qual se ocupa precisa-
mente a política. Não basta haver tratados comerciais, um apare-
lho judicial, um território comum, etc., para existir uma pólis.147

145 - Ibid., 1295a 40-b1.


146 - Não obstante, o livro de Fred Miller defende a tese de que a idéia de “direitos
subjetivos” está de algum modo presente em Aristóteles. Cf. Miller, F., Nature, Justice,
and Rights in Aristotle’s Politics, Oxford, Clarendon Press, 1995, cap. 4.
147 - Aristóteles, Política, 1280a 31 ss.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 69


Jorge Martínez Barrera

Assim, os diversos graus de complexidade associativa das comu-


nidades humanas se encontram, por um lado, teleologicamente
vinculados e tendencialmente orientados à forma política. Mas,
por outro lado, esta inclinação não transmite, por si só, suficiente
impulso inercial para produzir o trânsito automático de uma fase
organizacional a outra até chegar à forma política. A natureza,
neste caso, provê a tendência; à arte humana compete completar
a obra que a natureza esboçou e delimitou.148
Aliás, a teleologia política aristotélica, à qual são integradas
e pela qual são suficientemente explicadas todas as possibilida-
des de associação humana, exige, dado o seu caráter de não-au-
tomaticidade, uma cuidadosa sincronização pedagógico-moral de
todos os seus momentos. A pedagogia familiar, por exemplo, deve
guardar uma coerência mínima com a pedagogia política. A
discordância de objetivos pedagógicos entre os diferentes estra-
tos da vida social tem efeito centrífugo sobre as comunidades.
Essa desarticulação dos momentos educativos, especialmente
evidente para Aristóteles no regime democrático,149 provê as
bases psicológicas de um egoísmo social cuja conseqüência é a
injustiça em suas mais variadas expressões. Mas, na perspecti-
va aristotélica, é claramente identificada a razão por que a lei
deve ser o instrumento político da ética, o qual contribui para a
formação de uma ordem política concebida como um todo mo-
ralmente aperfeiçoador.150 Não há lugar neste pensamento para
uma separação entre “moral pública” e “moral privada”, pois a
moral mesma tem como única possibilidade de propagação o
seu tornar-se pública; sua perfeição é uma questão de pedagogia
social em qualquer de seus planos: nem exclusivamente fami-
liar, nem exclusivamente estatal.151 E, como a lei é dada pelo

148 - Obviamente, este conceito de “arte” é empregado aqui como sinônimo de faculdade
prática geral, e não o restringimos à sua acepção de “técnica” nem à de “belas-artes”.
149 - Aristóteles, Política, 1337a 21-34.
150 - “À pergunta de um pai sobre a melhor maneira de educar eticamente o filho, um
pitagórico deu a seguinte resposta (também atribuída a outros): “Fazendo-o cidadão
de um Estado com boas leis” (Hegel, G. W. F., Principios de la filosofía del derecho, par.
153, traducción de J. L. Vermal, Sudamericana, Buenos Aires, 1975).
151 - “A pedagogia é a arte de tornar éticos os homens; ela considera o homem como
natural e lhe mostra o caminho para voltar a nascer, para transformar sua primeira

70 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


III - Forma e liberdade na filosofia política de Aristóteles

legislador, a educação moral deste deve ser a primeira preocu-


pação pedagógica da comunidade. Por isso a Ética a Nicômaco é
um tratado escrito para eles, os legisladores, e não é totalmente
esotérica nem totalmente exotérica. Convém lembrar isso por-
que poderia dar a impressão de que o esquema moral proposto
nessa obra é demasiado exigente, pouco “realista”, esquecido o
fato de que seu destinatário não é o povo, que Aristóteles consi-
dera praticamente incapaz de alcançar a perfeição do caráter,152
mas quem é chamado a regê-lo. A estrutura mesma da Ética a
Nicômaco e não poucas passagens aparentemente desconexas
ficam suficientemente claras se conservarmos a hipótese de que
seu destinatário não é o povo (demos), mas os chamados a dar
a este sua forma ou identidade como comunidade política, isto
é, os legisladores (nomothetes). Não se trata, pelo menos nesta
perspectiva, de encontrar a fórmula de “moralizar a política”,
mas de achar a dimensão política da moral — o que não é exa-
tamente a mesma coisa — por meio de uma rigorosa pedagogia
ética dos futuros legisladores.

2. A liberdade em política: dois planos de significação

Quanto à questão da liberdade, este conceito não tem


gravitação tão decisiva como categoria ético-política no Cor-
pus aristotelicus, como erroneamente alguém poderia sentir-se
inclinado a julgar se tivesse de guiar-se somente por um tes-
temunho estilométrico. Ou pelo menos não a tem se o con-
siderarmos como uma meta política. Vejamos a afirmação de
um autor insuspeito: “É notável que o ideal de liberdade, que
impera como nenhum outro na época moderna da Revolução
Francesa para cá, não desempenhe nenhum papel importante

natureza numa segunda natureza espiritual, de tal maneira que o espiritual se converta
num hábito [...]. O hábito pertence tanto ao ético como ao pensamento filosófico, pois
este exige que o espírito seja educado contra as ocorrências arbitrárias e que estas
sejam derrotadas e superadas para que o pensamento racional tenha caminho livre”
(Hegel, G. W. F., op. cit., par. 151, Agreg.).
152 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1180a 4 ss.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 71


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no período clássico do helenismo, apesar de a idéia de liberdade


como tal não estar ausente desta época”.153 A liberdade é um
conceito político, mas sua significação no universo pedagó-
gico-moral aristotélico não alcança as dimensões que podem
ver-se na modernidade. A condição de “livre” deve ser enten-
dida na filosofia política clássica como oposta à de “escravo”,
nada mais, nada menos. Neste contexto, a liberdade não tem
o inabarcável alcance ético e metafísico da modernidade, o
qual “alimenta e informa toda a arte, toda a poesia e toda a
filosofia do século XIX”.154 Não obstante, no Corpus aristoté-
lico encontramos um tratamento da liberdade aparentemente
confuso. Por um lado, são numerosos os lugares onde se alude
à perfeição ética que a formação de um caráter livre implica.
O homem livre parece ser um dos objetivos pedagógicos mais
desejáveis.155 Mas, por outro lado, a liberdade é o princípio de
um dos regimes de governo classificados por Aristóteles como
corrupto; com efeito, como para Platão, a democracia é para
o Estagirita um regime odioso, entre outras coisas porque o
espírito que o rege é o da liberdade.156 Devemos pois encontrar
uma explicação para este equívoco.
Sócrates, com seu conceito de domínio interior do homem
por si mesmo (enkráteia), esboça a teoria da liberdade como uma
questão de interioridade moral. Platão sistematiza este ponto de
vista ético em sua conhecida teoria do comunismo.157 A preocu-
pação platônica é afastar de qualquer forma de cobiça que pudes-
se desviar de sua função os que cuidam da ordem política.158 No
pensamento platônico, a liberdade é uma liberdade interior que se
alcança mediante a renúncia e o despojamento. Quanto menos
se tenha, mais livre se é e mais eficazmente se poderá dirigir o

153 - Jaeger, W., Paideia: los ideales de la cultura griega, México, FCE, 1980 (quinta
reimpresión), p. 433.
154 - Idem.
155 - Cf., inter alia, Aristóteles, Política, 1338b 2-4; 1279a 21 (“a cidade é uma comu-
nidade de homens livres”).
156 - Ibid., cap. 7, Livro III; ver também 1291b 30 ss; Retórica, 1366a 4-5.
157 - Cf. Platão, República, Livro V, cap. 7.
158 - Cf. Barker, E., op. cit., p. 154.

72 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


III - Forma e liberdade na filosofia política de Aristóteles

Estado. No fundo, a perspectiva aristotélica não abandona em


nenhum momento sua vinculação à tradição socrático-platônica
quanto à interioridade da liberdade, e nunca este termo é empre-
gado em referência a uma suposta faculdade jurídica. A crítica
aristotélica à posição platônica não é tão radical como se pode-
ria supor; bastava apenas discutir a tese “comunista”, no sentido
de que não necessariamente a posse de bens é um obstáculo
para a virtude, mas é até algo necessário para o florescimento
da perfeição moral.
Uma das passagens do Corpus aristotelicus onde curio-
samente se vê de modo mais claro esta questão da liberdade
é a teoria da escravidão. O homem livre é livre porque não é
escravo; mas o escravo não é aquele que perdeu a liberdade, e
sim aquele que é escravo por não ser livre. Dito de outra ma-
neira, a escravidão é uma condição do espírito segundo a qual
quem a padece não é livre para decidir acerca de sua vida, e
portanto não pode decidir acerca da dos demais. A análise
aristotélica da escravidão é muito reveladora neste sentido.
Depois de uma breve descrição fenomênica do escravo,159
Aristóteles passa a tratar a detidamente a questão de uma
perspectiva psicológica,160 e afirma, entre outras coisas, que
para alguns homens “a escravidão é ao mesmo tempo conve-
niente e justa”, ou que “o senhor e o escravo que por natureza
merecem sê-lo têm interesses comuns e amizade recíproca, e,
quando não é este o caso, sendo senhor e escravo por conven-
ção e violência, sucede o contrário”.
A liberdade interior é, na tradição socrática, a condição
sine qua non das decisões que conformarão por sua vez as ações
boas e justas, objeto da política. Ela não é nunca uma meta
política. Quando a liberdade é formulada como o ideal de uma
organização política, está selada a condenação de morte desta.
A melhor descrição da psicopatologia e da conseqüente socio-
patologia devidas à entronização da liberdade como uma meta
por alcançar é vividamente apresentada por Platão a partir do

159 - Aristóteles, Política, 1254a 13-17.


160 - Ibid., 17-1255b 15.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 73


Jorge Martínez Barrera

capítulo 10 do oitavo livro da República. É muito importante


não perder de vista o lugar que ocupa no pensamento platônico
e aristotélico a referência à pedagogia pessoal com respeito à
ordem política a que se aspira. Mas permanece aqui a pergunta:
por que a liberdade é ao mesmo tempo boa, quando é uma ques-
tão ética, e má como objetivo político? A explicação disso é
que, na verdade, a liberdade não pode ser formulada como o fim
de uma comunidade política que se queira moralmente aperfei-
çoadora, porque essa comunidade só existe quando as ações que
a conformam são isto mesmo, ações ou atos, e não potências ou
faculdades. A liberdade, no vocabulário técnico da filosofia, é
um conceito afim ao de potência; a liberdade é sempre liberdade
de algo e não liberdade pura, em si. Algo similar sucede com o
próprio conceito político de poder. A grandeza ou infâmia do
poder dependem do ato a que este se ordena; o poder nunca
existe em estado quimicamente puro, é sempre poder de algo,
e é esse algo (o ato de governo) o que qualifica moralmente o
poder. E o mesmo vale para a liberdade. Se ela fosse o ideal da
comunidade política, esta se poria na situação de reservar-se o
direito de modificação perpétua de todas as ações, independen-
temente de sua bondade ou maldade. A liberdade, enquanto é
atributo de uma potência (ou seja, do orektikós nous ou órexis
dianoetiké),161 se orienta tanto para o que é bom como para o
que é mau. Mas é preciso romper essa indefinição em favor do
bom e justo, que é a única coisa capaz de configurar uma ver-
dadeira ordem política, antes de privilegiar, como no caso da
democracia, o estado de permanente indefinição com respeito
ao justo e bom. A face “politicamente correta” desse ceticismo
é apresentada hoje como uma intangibilidade das preferências
valorativas.162 Não obstante, a prelazia do princípio de liberda-
de é precisamente o que leva à dissolução da ciência política
numa simples cratologia, ou seja: numa ciência do poder. É essa,
precisamente, a perspectiva maquiavélica da política. Mas ao

161 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1139b 4-5.


162 - Cf. Annas, J., “Prescindiendo de valores objetivos: estrategias antiguas y moder-
nas”, em Schofield, M., e Striker, G. (orgs.), Las normas de la naturaleza. Estudios de
ética helenística, Buenos Aires, Manantial, 1993, pp. 13-40.

74 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


III - Forma e liberdade na filosofia política de Aristóteles

mesmo tempo se deve dizer que, se não há liberdade interior,


nenhuma decisão justa e boa será possível. Trata-se antes de
reposicionar a função da liberdade em seu lugar natural, ou seja,
o político, como um conceito subordinado ao de sociedade boa,
e não subordinante dela; e no ético, como uma condição prévia
das boas escolhas e decisões, ou seja, como um instrumento da
verdade prática. Em todo o caso, porém, a liberdade não pode
figurar, por seu caráter de atributo de uma potência, como um
fim, porque este é sempre um ato. Na harmonização dessa dia-
lética liberdade-ato moralmente aperfeiçoadora, está em jogo
para o Estagirita a verdadeira forma da ordem política.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 75


IV
A transição para o
Cristianismo
IV - A transição para o Cristianismo

1. A justiça como virtude e a justiça “juridicizada”

Necessariamente, o Cristianismo tardo-medieval tinha


de ver com simpatia a doutrina aristotélica, pelo menos com
respeito à idéia que esta tem da justiça (esta sim, chave de abó-
bada da interpretação do pensamento político clássico), a qual,
sendo ao mesmo tempo uma questão de moralidade pessoal,
requer para a sua perfeição uma projeção política. Mas isto su-
cede, insistimos, muito tarde no tempo. Nos primeiros tempos
do Cristianismo, como quer que seja, o caráter de interioridade
da justiça (caráter que, diga-se de passagem, a transforma eo ipso
numa virtude moral) é assegurado por Platão.
A doutrina política aristotélica, e por conseguinte sua dou-
trina da justiça, é uma delicada harmonia entre moral, direito
e política, para dizê-lo em termos contemporâneos.163 As defor-
mações na concepção da justiça durante os primeiros tempos do
Cristianismo vêm da parte de duas grandes correntes: da justiça
veterotestamentária e do direito romano. As duas têm em co-
mum o fato de favorecer a tendência a uma interpretação aética
da justiça. Ao empregarmos a expressão “interpretação aética
da justiça”, não queremos referir-nos a uma suposta garantia
jurídica para o cumprimento de ações imorais, mas, como diz
Giuseppe Graneris, a uma “prestação amoral do ius, ou seja,
non considerato qualiter ab agente fiat”.164 Essa concepção aética
consiste na hipertrofia do elemento positivo-legal (em relati-
vo detrimento da efetiva intenção do agente), à qual tendem
a aderir o rigorismo legalista veterotestamentário e os juristas
romanos. Embora seja verdade que, por exemplo, no caso do
direito romano não se perde de vista o conteúdo ético da lei, seu
afã codificador, porém, faz com que as questões morais sejam
reduzidas à sua expressão jurídica. Com isso, a justiça aparece
também como um remédio para a injustiça já cometida, em vez
de conotar uma inclinação habitual da vontade, prévia à ação

163 - Cf. Barker, E., op. cit., pp. 6-7.


164 - Graneris , G., Contribución tomista a la filosofía del derecho, traducción de C.
Lértora Mendoza, Buenos Aires, EUDEBA, 1977², p. 40.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 79


Jorge Martínez Barrera

por realizar. Pode-se até dizer que esta forma de justiça exige, em
alguns casos, a injustiça como condição de sua manifestação. A
ipsa res iusta é exigível às vezes por via contenciosa, ou seja, a
contrapelo da “[...] intenção principal da lei humana, [que] é
produzir a amizade dos homens entre si”.165 Por isso Santo Tomás
também pode sugerir “que o direito não é a coisa justa em toda a
sua perfeição, mas um iustum imperfectum, enquanto pode dar-se
independentemente das disposições de espírito do agente (etiam
non considerato qualiter ab agente fiat).166 Dito de outro modo,
se enfocarmos a questão por uma ótica puramente jurídica, a
justiça virá depois da ação, e de uma ação que em princípio é
considerada injusta por uma das partes; em contrapartida, da
perspectiva ética ela é também um propósito da vontade, livre-
mente decidido e anterior à ação, ou seja, não condicionado
por uma ação prévia injusta que requer ser reparada.167 É toda
a diferença que há, por exemplo, entre o pagamento de uma
multa e o pagamento de um dízimo ou uma doação.
Não parece evidente, de qualquer modo, que a justiça vete-
rotestamentária e o direito romano sejam afetados, eles mesmos,
pela deformação mencionada; mas, especialmente a primeira, a
favoreceram de fato em sua confrontação com o Cristianismo.
Por seu lado, o “positivismo jurídico” romano, em boa medida de-
vido à extensão do Império, introduzia um perigo adicional: o re-
lativismo ético. Não é casual que Cícero, por exemplo, associe os
bons e velhos tempos da república ao florescimento das virtudes.
Em outras palavras, a lei humana positiva, devido a seu próprio
caráter prudencial (cujos aspectos a lei natural não necessita:
conselho e deliberação, por exemplo), por isso mesmo tem certos

165 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae q. 99, a. 2 c.


166 - Graneris , G., op. cit., p. 45.
167 - Aqui é sumamente interessante uma opinião de Barker, E.: “O casamento entre
a Ciência Política e o Direito Romano terminou com a deterioração da primeira. A lei
levou as concepções políticas para um terreno irreal, pois a vontade espiritual, que é
a base do Estado, é substituída por um contrato mais material, mas menos real. A lei,
ao passar a ser concernente ao ato exterior e à prevenção dos prejuízos, transformou
o Estado em algo assim como uma força externa ao indivíduo, e eficaz somente para
proteger sua propriedade, em vez de ser uma concepção do espírito humano e dirigida
a seu bem espiritual. Por influência da lei, a Ciência Política, em certo sentido, é des-
moralizada” (op. cit., p. 519; grifo do autor).

80 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


IV - A transição para o Cristianismo

limites diacrônicos e geográficos, transgredidos os quais ela perde


força e de fato o alcance jurisdicional; não chega a gerar costume
(ethos), que é, segundo o Estagirita, o verdadeiro poder da lei.168
Daí a pouca simpatia tanto aristotélica como ciceroniana pela
forma política imperial.169
Um dos inconvenientes sociológicos mais sérios suscitados
pela constituição imperial romana foi o multiculturalismo. A
coabitação sincrônica de uma variadíssima gama de costumes,
às vezes antagônicos, sob uma só soberania exigia um esforço
legislativo sobre-humano.170 Em outras palavras, o problema
era como assegurar à lei sua força consuetudinária num meio
político tão vasto que se caracterizava, precisamente, pela
coexistência de muitos costumes. Mas, como a legislação era
absolutamente necessária, os imperadores romanos não tiveram
outra saída senão tentar codificar o direito, ou seja, traduzi-lo
em fórmulas já prontas e preparadas para seu emprego, tornan-
do até supérflua a missão do praetor peregrinus, cuja tarefa, no

168 - Cf., inter alia, Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 1, 1103b 2 ss; Política, II, 8, 1269a
20; I, 6, 1255a 22; III, 16, 1287b 5.
169 - A república é uma forma política que deve seu bom funcionamento, segundo
Cícero, ao reinado da justiça, e, precisamente, o fundamento desta é a fé. Obviamente,
não se trata para Cícero da fé em Cristo, mas do que hoje chamaríamos “boa-fé”, quer
dizer, certa confiança nas relações interpessoais que surge de um clima de integri-
dade moral. Mas esta “boa-fé”, garantia do bom funcionamento da república, só é
possível numa comunidade onde de algum modo seus membros se conhecem entre si.
Como quer que seja, o primeiro passo já estava dado e não será desaproveitado pelos
cristãos, que não terão maiores dificuldades em transformar esta fé ciceroniana em
confiança em Cristo. Um dos exemplos mais claros disso é constituído pelo De officiis
ministrorum de Santo Ambrósio. Cf. para isso Markus , R. A., “The Latin fathers”, em
Burns , J. H. (ed.), The Cambridge History of Medieval Political Thought, Cambridge, at
the University Press, 1988, pp. 97-98. Recordemos a conhecida definição ciceroniana
de república, sobre a qual se deterá depois Santo Agostinho: “Est igitur... res publica
res populi”; pois bem, o povo não é “omnis hominum coetus quoquo modo congre-
gatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus” (De
republica, I, XXVI, 39). Esse “iuris consensu” é quase impossível quando o tamanho da
comunidade política excede certos limites, com o que se favorece certo debilitamento
dos laços legais.
170 - Escreve Aristóteles: “Por outro lado, os fatos também evidenciam que é difícil e
talvez impossível que a cidade demasiado populosa seja bem legislada; de fato, entre
as que têm fama de governar-se bem, não vemos nenhuma em que não se limite a
população. [...] a lei é, com efeito, certa ordem, e a boa legislação tem de ser uma
ordenação boa, e um número excessivamente elevado não pode participar da ordem;
isso requereria sem dúvida uma força divina, como a que mantém unido o universo”
(Política, VII, 4, 1326a 25 ss; grifo nosso).

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 81


Jorge Martínez Barrera

começo da expansão dos territórios romanos, era “traduzir” as


contendas dos não-cidadãos (peregrini) para categorias jurídicas
romanas. O curioso é que, pelo menos até o século III d.C., a
administração de justiça romana não exigia que o pretor nem o
juiz fossem jurisconsultos ou advogados. Mas num território tão
amplo, no qual coexistiam tantas culturas, a única saída foi co-
meçar com as codificações para assegurar a governabilidade do
Império. O jurista Juliano, cumprindo uma ordem do imperador
Adriano (117-138), foi quem produziu a primeira codificação
permanente do edito pretoriano. Gradualmente, o imperador
passou a assumir poderes legislativos através das constituições
imperiais, em detrimento das resoluções do Senado. O impera-
dor legislava por meio de editos, e para isso requeria cada vez
mais a opinião dos juristas, cujo trabalho até então se limitara
quase ao comentário das resoluções judiciais e à elaboração de
casos imaginários com suas respectivas soluções jurídicas pos-
síveis. Isso fez com que a principal fonte legislativa a partir do
século III d.C. fossem os próprios escritos dos juristas, elevados
à categoria de leis pelo imperador.
Conhecemos várias codificações (o Edito de Caracalla ou
Constitutio Antoniniana, de 212 d.C.; as constituições de Diocle-
ciano, do final do século III d.C.; a Lei das Citas de Teodósio II,
de 426; e o Código Teodosiano, de 438), mas a mais importante é
a de Justiniano. Esta constava de três partes: o Digesto (ou Pan-
dectas), cuja dificuldade de compreensão, além de seu volume,
gerava tão numerosos problemas, que se tentou resolvê-los com
suplementos: os Instituta, baseados num manual de Gaio, um
professor de direito pouco reputado em seu próprio tempo (sé-
culo II d.C.), mas possuidor de invejável clareza; e o que conhe-
cemos como Código. O conjunto destes três trabalhos (Digesto,
Instituta e Código) nos é conhecido pelo nome de Corpus Iuris
Civilis, e só foi terminado em 534 com a publicação do Código.
Com isso, Justiniano reduziu a totalidade do direito a esta obra,
a qual daí em diante devia ter força de lei. Compreende-se que
depois de tal esforço ele não desejasse nenhuma modificação
nela, e por isso proibiu qualquer referência a autoridades an-
teriores, bem como o seu comentário. Este Corpus, concebido

82 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


IV - A transição para o Cristianismo

para ser aplicado univocamente em todo o Império, devia ser


oferecido, segundo Justiniano, como um exemplo de coerência
interna. Com efeito, uma unidade política tão grande e variada
requeria uma lei igualmente unitária e omniabrangente, uma
espécie de megadireito. Mas a realidade foi muito diferente.
Apesar do propósito romano de unidade do Império, a verdade
é que era muito difícil conciliar sob uma mesma constituição,
e sobretudo sob um mesmo direito, nações tão diferentes. Con-
seqüentemente, de maneira inevitável e apesar da intenção de
Justiniano, o Corpus apresentava também uma série de pontos
contraditórios entre si.
Mas, apesar do prejuízo que essa gigantesca juridiciza-
ção do justo significou para a relação delicada entre ética e
política, não é menos verdade que ela, bem como todas as
codificações anteriores, não perdeu nunca de vista o caráter
essencialmente moral da lei.171

2. O agostinismo político

Contra essas duas correntes (a lei pré-evangélica com sua


justiça, e o direito romano com a sua), ou melhor, contra o
perigo que elas encerravam de favorecer a hipertrofia do ele-
mento legal-positivo da justiça em claro detrimento de seu lado
moral, escreveram São Paulo, em suas Epístolas aos Gálatas e
aos Romanos, e Santo Agostinho, em De civitate Dei.
Mas o esforço convergente de São Paulo e de Santo Agos-
tinho por quebrar a hegemonia de um rigorismo legalista da
justiça em favor de seu caráter prioritário de virtude da alma,
e sobretudo de sua função de suporte da amizade pessoal com
Deus,172 teve como conseqüência política o favorecimento de

171 - Cf. Stein, P. G., “Roman Law”, em The Cambridge History of Medieval Political
Philosophy, pp. 37-47.
172 - “A noção mesma de ‘justiça’ [paulina] expressa menos uma virtude que um
estado habitual de amizade e de boas relações com Deus” (A rquillière , H.-X.,
L’augustinisme politique. Essai sur a formation des théories politiques du moyen âge,
Paris, Vrin, 1972², p. 78).

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 83


Jorge Martínez Barrera

uma tendência contraposta. Esta última é conhecida na his-


tória da filosofia política pelo nome de “agostinismo político”.
Consiste essa tendência, em traços gerais, na redução da inde-
pendência relativa da comunidade política à potestade papal.
Isso teve como fundamento o pressuposto de que a única justiça
possível (e a justiça, bem entendido, era concebida como a es-
sência mesma de uma comunidade) era a cristã, e que o Papa,
enquanto representante verdadeiro de Cristo na Terra, tinha o
monopólio dela. A justiça cristã era a verdadeira, e nisto tinha
razão Santo Agostinho, porque era a única a privilegiar o ele-
mento de virtude moral e não o jurídico-positivo: “Já é chegado
o momento de dizer com a maior concisão e clareza possíveis o
que prometi esclarecer no segundo livro desta obra, a saber: nas
definições formuladas por Cipião na obra ciceroniana intitula-
da A República, nunca existiu um Estado [res publica] romano.
Define ele com brevidade o Estado [res publica] como uma ‘em-
presa do povo’ [res populi]. Se esta definição é verdadeira, nunca
existiu um Estado romano, porque nunca foi empresa do povo,
definição que ele escolheu para o Estado. Ele define o povo,
efetivamente, como uma multidão reunida em sociedade pela
adoção em comum acordo de um direito e pela comunhão de
interesses [coetum multitudinis, iuris consensu et utilitatis commu-
nione sociatum] [...]. Assim, onde não há verdadeira justiça não
pode haver uma multidão reunida em sociedade pelo acordo
com respeito a um direito, ou seja, não pode haver um povo, se-
gundo a citada definição de Cipião [...]; a conclusão inevitável
é que onde não há justiça não há Estado”.173
Não obstante, um pouco mais adiante, Santo Agostinho
atenua um pouco sua afirmação: “Mas, se definirmos a realida-
de ‘povo’ de outra maneira, por exemplo: ‘é o conjunto multitu-
dinário de seres racionais associados em virtude de uma partici-
pação conforme a interesses comuns’, então, logicamente, para
saber que tipo de povo é, devemos ver que interesses ele tem

173 - Santo Agostinho, La Ciudad de Dios, XIX, 21, 1, in Obras Completas de San Agus-
tín, edición bilingüe, traducción de Santos Santamarta del Río y Miguel Fuertes Lanero,
vol. XVII/2, Madrid, B.A.C., 1988, pp.608-609.

84 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


IV - A transição para o Cristianismo

[...]. De acordo com esta definição, que é nossa, o povo romano


é verdadeiro povo, e sua empresa, uma empresa pública, um Es-
tado, sem dúvida alguma [...]. O que acabo de dizer com respeito
a este povo e a este Estado entenda-se, igualmente, afirmado
e sentido com relação a Atenas e demais Estados gregos, ao
Egito, àquele antigo império assírio, à Babilônia [...] e, em geral,
a qualquer outro Estado da Terra”.174
Esta última definição é precisamente a que o agostinismo
político desprezou. O excesso do agostinismo derivou, assim,
num desvio da tendência sugerida por Santo Agostinho, no
sentido de aprofundar a questão do fundamento moral natural
da ordem jurídica, para uma interpretação teologizante da vida
política. Assim, se da lei veterotestamentária e do direito roma-
no nasce uma tendência a obscurecer o caráter moral da justiça
em favor de uma versão juridicizada dela, com o agostinismo
político se tendeu a obscurecer a politicidade mesma da moral.

3. O panorama que Santo Tomás encontra

Temos até aqui, resumindo, o seguinte quadro à espera do


Aquinate:

a) Aristóteles: seu pensamento político oferece as bases de


uma legítima articulação entre ética e política. Seu conceito
de justiça como virtude moral suprema é ao mesmo tempo
plenamente compreensível em sua realização política. Mas
o tipo de comunidade em que isso é possível apresenta sé-
rias limitações de caráter variado (a começar pelo tamanho
mesmo da pólis ideal) que enfraquecem o valor paradigmá-
tico deste pensamento para o Cristianismo, o qual aponta,
sim, para uma expressão política da moral, mas universal.
Uma segunda limitação importante está em seu conceito
de autarquia antropológica (deve-se atentar, porém, para o
fato de que essa autarquia antropológica não implica obri-

174 - Ibid., 24, p. 623.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 85


Jorge Martínez Barrera

gatoriamente, para Aristóteles, um antropocentrismo). Em


terceiro lugar, no pensamento aristotélico o indivíduo não
é responsável diante de Deus por seus atos. Na verdade,
a consciência moral, tal como a entende o Cristianismo,
está ausente em Aristóteles, e com isso falta também uma
sistematização filosófica da noção de obrigação moral em
sentido forte. Essa falta de um Deus-Pessoa diante do qual
somos responsáveis pelos nossos atos é de alguma maneira
suprida em Aristóteles pela importância da doxa, da repu-
tação ou da glória, que podem gerar as belas ações. Esta é a
única possibilidade de imortalidade de que somos capazes.
A ação deve, de certo modo, gerar uma épica; sua visibili-
dade e exterioridade são requisitos essenciais.175

b) O direito romano: aqui o ideal de universalidade está


salvo, mas a articulação entre ética e política está grave-
mente comprometida, enquanto a justiça tende a diluir-se
numa instância jurídica. A “juridicização” da justiça leva
ao predomínio da justiça particular sobre a geral, ou seja, ao
daquela “parte” da justiça em que importa mais a ipsa res
iusta do que a disposição moral do agente.

c) O agostinismo político: deve-se dizer agora que para o


Cristianismo a idéia de império nunca foi de todo anti-
pática. Os pensadores medievais viam em Constantino o
paradigma do monarca cristão. Pois bem, o agostinismo po-
lítico pensava, com não pouca lógica, que a melhor forma
política de governo terreno seria um império cuja cabeça
estivesse submetida ao representante e vigário na terra do
Imperador Celestial. Desse modo o governo político imi-
tava de maneira perfeita o governo divino. Por outro lado,
era muito mais fácil (ao menos teoricamente) transmitir
e viver o Evangelho e sua Lei numa comunidade política
unitária, ferreamente unida, do que numa plêiade de na-

175 - Cf. Vergnières, S., Éthique et politique chez Aristote. Physis, Êthos, Nomos, Paris,
PUF, 1995, pp. 3-4.

86 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


IV - A transição para o Cristianismo

ções independentes, cada uma com seus próprios sistemas


jurídicos, costumes, etc. Mas isso não foi uma invenção do
Cristianismo; há uma importante tradição pagã atrás do
conceito icônico de poder político (imperator = pontifex),
já elaborada, por exemplo, por Temístio, para quem a mo-
narquia terrena era uma cópia da monarquia cósmica de
Zeus, o Imperador Supremo (Basileus). Com a conversão
de Constantino, Eusébio de Cesaréia não teve senão de
sistematizar essa convicção ancestral em favor do Cris-
tianismo, ainda que com a correção de que desta vez o
dominus não era ao mesmo tempo Deus.176 Tal é também
o ideal político carolíngio, o qual, além de ser tributário
da concepção constantiniana de poder, e sobretudo do
agostinismo político, tem profunda inspiração platônica,
na medida em que a reflexão política de Platão propõe a
unidade como o bem maior de uma comunidade.177

Santo Tomás, com todos esses elementos na mão, opera


uma síntese que, embora se apresente como superadora das
aporias, reafirma porém a visão cristã (paulino-agostiniana)
da comunidade política, mas livre dos excessos do agostinismo
político. O Aquinate tentará, assim, uma recuperação da idéia
aristotélica de justiça num contexto mais amplo que o da pólis
grega, e sem cair no radicalismo agostiniano por não propor um
império político regido pela Igreja, nem, portanto, um Corpus
Iuris. O império em que pensa Santo Tomás não é político.
Com efeito, o Aquinate, que já assistiu ao desmembramen-
to do Império Carolíngio, que leu a Ética a Nicômaco e a Políti-
ca aristotélicas, e que está convencido de que as comunidades
políticas têm origem numa aspiração legítima da “parte sã” da
natureza humana — ou seja, a parte não ferida pelo pecado ori-
ginal —, tem consciência de que uma investigação sobre as coi-
sas políticas que se queira prática já não pode ser more platonico,

176 - Cf. Nicol, D. M., Byzantine Political Thought, em The Cambridge History of Me-
dieval Political Thought, p. 51.
177 - Vejam-se as críticas de Aristóteles a essa aspiração platônica em Política, II,
caps. 2 e 3.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 87


Jorge Martínez Barrera

mas, precisamente, more prático,178 e para isso se deve renunciar


à unidade como categoria hermenêutica da indagação. Por isso,
a idéia de um Imperium parece aceitável em sede tomista, mas
com a condição de serem respeitados certos requisitos:

• que sua lei tenha, sim, a força necessária para gerar um


ethos universal (ruptura com o excesso exclusivista grego);
• mas, por sua vez, esta lei não pode ter, no essencial,
um fundamento estritamente prudencial-jurídico que a limite
tanto histórica como geograficamente (ruptura com o excesso
imperialista romano). A lei em questão aqui é prudencial, en-
quanto se considere o mandado da razão como o ato principal
da prudência (“sapientis est ordinare”). Mas não é prudencial na
medida em que: a) é excluído dela o processo deliberativo; b) ela
não é ordenada a seu cumprimento hic et nunc, mas em todos os
lugares e para sempre, não admitindo dispensa nem correções
de nenhuma natureza em seus preceitos principais (diferente-
mente da epikia no caso da lei humana positiva) e não podendo
ser modificada em razão das circunstâncias (como sucede com
a lei humana positiva);
• que o fim último desta lei já não seja somente a realização
de um bem comum político, mas a visão beatífica ultra-histórica,
a qual, todavia, não nega o valor das coisas intramundanas, com
a condição de estas estarem subordinadas àquele fim último.

Entende-se, assim, que o único império possível com tal lei


não é um império político. Com isso tocamos um aspecto capital
do reposicionamiento axiológico das coisas políticas introduzi-
do pelo Cristianismo como conseqüência imediata de sua nova
orientação teleológica. Esta doutrina se acha indiretamente
sistematizada pelo Doutor Angélico, e algumas de suas fórmu-
las mais explícitas podem ser lidas numa célebre passagem da
Suma Teológica: “[...] o homem não se ordena à comunidade
política segundo toda a sua pessoa e todas as suas coisas, e por
isso não convém que todos os seus atos sejam meritórios ou

178 - Cf. o Prooemium de seu Comentário à Política de Aristóteles.

88 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


IV - A transição para o Cristianismo

demeritórios com relação à comunidade política. Antes, tudo


o que o homem é, tudo do que ele é capaz e tudo o que ele
tem deve ordenar-se a Deus”;179 e em De regno: “E, dado que o
homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior,
que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da
multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver
segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa,
chegar à fruição divina”.180
Esta posição traduz certa desconfiança tomista quanto
à consecução de uma ordem política perfeita; o Aquinate su-
gere que a aproximação a esta meta será sempre assintótica.
Nisto Santo Tomás, alinhado com a tradição cristã, é mais
estóico que grego, e por isso seria muito importante identifi-
car com maior precisão as indubitáveis fontes estóicas de seu
pensamento, pelo menos naqueles pontos em que esta última
doutrina é, em alguma medida, uma filosofia do desencanto po-
lítico.181 O distanciamento cristão do ideal grego de perfeição
política — que, seria ocioso esclarecer, não tem as mesmas
raízes da “desilusão política” estóica — foi consolidando ao
mesmo tempo sua posição ante as utopias renascentistas, na
medida em que estas eram uma ressonância distante da meta
de perfeição política absoluta.

179 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 21, a. 4 ad 3.


180 - Tomás de Aquino, De regno, 466: 74-80 (ed. Leonina)
181 - Verbeke, G., um dos maiores estudiosos da influência estóica no pensamento
medieval, defende que a noção de lei natural contém inegáveis marcas do estoicismo:
1. Há uma lei suprema que constitui a norma fundamental da conduta moral.
2. Esta lei se identifica com a natureza.
3. A natureza em questão coincide com a Razão (Logos).
4. O logos se identifica com a Divindade imanente: este ponto foi corrigido pelos
filósofos medievais no sentido da transcendência divina.
5. A lei natural é a mesma para todos os homens e para todos os tempos.
6. Ela constitui a base de qualquer regra moral ou jurídica particular.
7. Ela é conhecida por um saber antecipador que se encontra em todos os homens.
(“Aux origines de la notion de loi naturelle”, em AA.VV., La filosofia della natura nel
Medioevo, Milano, 1966, p. 172).

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 89


V
As diferenças
entre Aristóteles
e Santo Tomás
V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

Com o marco global do reposicionamento cristão das


coisas políticas no contexto de uma teleologia de alcance mais
vasto, é preciso inventariar em seguida os pontos de diferença
mais relevantes entre Aristóteles e Santo Tomás. Eles podem
ser reunidos em três grandes temas:

1. Diferenças quanto ao aprofundamento da análise;


2. Diferenças quanto à discutibilidade de algumas
teses aristotélicas;
3. Diferenças quanto à inaceitabilidade de algumas
teses aristotélicas.

1. Diferenças quanto ao aprofundamento da análise

a) Filosofia e ciência prática

Em primeiro lugar, portanto, examinemos a perspectiva


científica em que se instala o Aquinate, a qual não coincide
exatamente com a aristotélica. Com efeito, Santo Tomás não
faz uma reflexão prático-prática sobre seu objeto de estudo, mas
teórico-prática.182 Nesta questão, assumimos como hipótese que
seu pensamento político é expresso, em suas linhas essenciais,
no Prooemium de seu Comentário à Política de Aristóteles, em sua
filosofia da ordem183 e nos tratados De lege e De iure et iustitia
da Suma Teológica, e não em De regno. Este último é um opús-
culo incompleto, escrito por encomenda e pertencente antes ao
gênero “espelho de príncipes”, que tanta fortuna teve nos anos
dourados do agostinismo político. É verdade, sim, que há nele
importantes elementos de filosofia política, mas seu espírito
geral é o de uma exortação moralizante ad usum principis. Há

182 - Cf. Crespo, R., “Nota acerca de las precisiones tomistas al concepto aristotélico
de ciencia práctica y la noción contemporánea de ciencias sociales”, em SAPIENTIA,
n°193-194 (1994), pp. 297-305.
183 - Permitimo-nos remeter ao nosso artigo “De l’ordre politique chez saint Thomas
d’Aquin”, em Actualité de la pensée médiévale, recueil d’articles édités par J. Follon et
J. McEvoy, Louvain-a-Neuve, Éditions de l’Institut Supérieur de Philosophie, Louvain-
Paris, Éditions Peeters, 1994, pp. 247-267.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 93


Jorge Martínez Barrera

em Santo Tomás, para dizê-lo em outras palavras, mais uma


filosofia política do que uma ciência política, ainda que em seu
vocabulário não se possa fazer distinção precisa entre filosofia
e ciência. Em todo o caso, o que ele chama scientia civilis é na
verdade uma philosophia civitatis. Em Aristóteles, ao contrário,
há uma reflexão prática sobre um objeto prático; sua busca aqui
não é como adquirir um conhecimento, mas como adquirir o
hábito das boas ações (e na medida do possível a feitura de uma
constituição para Atenas).184 Daí um estranho requisito exigido
pelo Estagirita a seus alunos de ciência política: é necessário
ser boa pessoa, se não no sentido pleno do termo, ao menos na
sinceridade da intenção.
Se se tivesse de resumir a distinção mais notória entre uma
filosofia política e uma ciência política, poder-se-ia dizer que o
elemento diferenciador é o tempo. A filosofia é sempre “vespe-
ral”: trata do que já aconteceu. Uma reflexão filosófica sobre
as coisas políticas que se queira realista não pode ser feita antes
do já sucedido. Em contrapartida, uma ciência política, por
conter uma intenção prescritiva, tem um caráter antecipador.185
O mandado prudencial da razão não se pode dar depois do
acontecido, porque esse mesmo mandado é o que “constrói” o
acontecer mesmo: “Nada do que já ocorreu é objeto de escolha;
por exemplo, ninguém escolhe que Tróia tenha sido saqueada;
porque tampouco se delibera sobre o passado, mas sim sobre o
futuro e possível, e o passado não pode não ter ocorrido; por
isso diz bem Agatão: “Disto se vê privado até Deus: poder fazer
com que não se tenha dado o que já está feito”.186
Trata-se aqui, segundo o próprio Aquinate, do “ordo quem
ratio considerando facit in operationibus voluntatis”.187 Por isso
uma lei, que é o mandado prudencial da razão em sua expressão
184 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 2, 1095a 5-6: “o fim (telos) aqui não é o conheci-
mento (ou gnosis), mas a ação (alla práxis)”.
185 - Política = prudência arquitetônica = lei positiva: Sententia Libri Ethicorum, In VI,
356:36-45; 357:83-94; In X, 605:21-25; 606:110-112; 607:137-141. Cf. Tomás de Aquino,
Suma Teológica, Ia-IIae, q. 95, a. 1, ad 2: “[...] os legisladores julgam em universal e
referindo-se ao futuro [...]” (grifo nosso).
186 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 2, 1139b 6-11.
187 - Tomás de Aquino, In I Eth. Nic., 4, 22-24 (ed. Leonina).

94 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

política, perde um grau ontológico quando se limita a ordenar


o que já sucedeu, porque neste caso sua gramática já não será
imperativa, mas apenas narrativa. A lei, na perspectiva “aris-
totélico-tomista”, busca configurar uma ordem de justiça que
ainda não existe, antes que legitimar um estado de coisas exis-
tente. Em suma, uma especulação sobre a práxis não é neces-
sariamente antecipador-prescritiva; uma ciência prática, sim, o
é. Mas vejamos um pouco mais detalhadamente como concebe
Santo Tomás as relações entre a teoria e a prática, questão que,
não tematizada por Aristóteles, ainda hoje continua a opor os
especialistas e está na base de uma nova atitude científica do
Aquinate com relação à política.
Uma inferência apressada do dito até aqui neste item,
a qual nem por isso deixou de ser feita, é que não se pode
falar, propriamente, de “filosofia prática”, pois isso seria
uma contradição de termos. Com efeito, sendo a filosofia
um saber “vesperal”, um saber sobre o ser, mal poderia ser
ao mesmo um saber sobre o dever-ser, que é um saber sobre
o futuro, ou seja, sobre o que não é. Não obstante, o míni-
mo que se pode dizer é que o bom acabamento prático da
ciência política penderia de um fio se não estivesse apoiado
numa sólida instância teórica. O futuro em que consiste o
dever-ser e, em geral, toda perspectiva deontológica, dado
que ainda não é e tampouco será necessariamente, perten-
ce ao plano do acidental. Pois bem, o acidente necessita
do suporte do não-acidental, neste caso, do ser e do que
foi (tampouco o passado é acidental), e por isso é perfei-
tamente legítimo estabelecer algum tipo de conexão entre
ser e dever-ser. Dito de outro modo, a ordem deontológica,
por seu caráter acidental, necessita sustentar-se na ordem
ontológica do ser e do que foi. Isso é ainda mais evidente
no caso que nos ocupa, ou seja, no do ser diacrônico que é a
comunidade humana. A configuração futura da boa socie-
dade não é uma pura questão de “construção”, desvinculada
de toda e qualquer referência ao ser presente e passado; há
um ineludível passo teórico prévio. E tanto melhor será a
práxis política quanto mais verdadeiro for seu antecedente

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 95


Jorge Martínez Barrera

teórico: “O próprio apetite reto do fim pressupõe sua reta


apreensão, a qual depende da razão”.188
E escreve também Santo Tomás: “O verdadeiro e o bom se
incluem mutuamente. O verdadeiro é também de algum modo
bom, pois de outra forma não seria apetecível; e o bom é também
de algum modo verdadeiro, pois de outra forma não seria inte-
ligível. E, assim como o objeto do apetite pode ser o verdadeiro
enquanto este tem razão de bem, como quando alguém deseja
conhecer a verdade, assim também o objeto do intelecto prático
é o bem ordenável à ação, sob razão de verdadeiro”.189
Não se trata aqui, simplesmente, como se vê nestes exemplos,
de “deduzir” a ordem normativa da ordem teórica. Santo Tomás
não menciona esse tipo de relação entre o intelecto prático e o
especulativo, ou melhor, nesses usos de um mesmo intelecto; em
todo o caso, o que ele verifica é que um mesmo intelecto pode
torna-se prático per extensionem. E esta “extensão” prática do inte-
lecto é acidental e não tem força suficiente para romper a unidade
específica da razão, cujo objeto formal, tanto teórico como prático,
é a verdade. Assim, o intelecto prático não é uma faculdade dis-
tinta do especulativo: “Deve-se dizer que o intelecto prático e o
especulativo não são faculdades diversas [...]. É acidental que uma
coisa apreendida pelo intelecto seja ordenável à ação ou não”.190
Em suma, esta análise sumária das relações entre o inte-
lecto prático e o especulativo pode servir para ilustrar como é
possível uma nova postura epistemológica das coisas políticas.
Santo Tomás consegue com isso um duplo efeito: aprofunda a
análise aristotélica sobre a razão prática, ao mesmo tempo em
que recupera para seu tempo a possibilidade de um tratamen-
to epistemológico da política. Isto é feito sobre bases distintas
das do Estagirita: por exemplo, não são os endoxa os pontos de
partida de uma filosofia política, mas tais bases constituem um
antecedente imprescindível para a práxis política concreta. Por
que isso é assim é o que trataremos no próximo item.

188 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 19, a.3, ad 2.


189 - Ibid., Ia, q. 79, a. 11, ad 2.
190 - Ibid., Ia, q. 79, a. 11 c.

96 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

b) Instâncias de legitimação da lei humana

Ainda dentro deste grupo de questões que não são propria-


mente diferenças irredutíveis com relação ao Estagirita, mas
que, pelo menos, constituem um aprofundamento da análise,
encontramos o tema da instância de legitimação última da lei
humana positiva. É preciso insistir em que não se trata tanto
de uma oposição a Aristóteles quanto de um aprofundamento
na análise da cadeia etiológica. Com efeito, para Aristóteles “o
justo político (ao qual se refere a lei humana) pode ser natural
ou convencional”.191 Já se assinalou com razão que se pode veri-
ficar, por parte de Aristóteles, uma defesa do justo por natureza
ou direito natural.192 Mas o que não foi indicado com a mesma
insistência é que o Estagirita não desenvolveu com maior am-
plitude a tese da subordinação do justo positivo ao justo natu-
ral, como o faz Santo Tomás. O texto citado até permite inferir
que Aristóteles sugere uma subordinação de ambos os tipos de
justo (o positivo e o natural) ao justo político. Na passagem da
Ética a Nicômaco de V, 10, 1134b 18-1135a 5, Aristóteles, depois
de admitir a existência do justo por natureza, que também será
chamado o justo “primeiro” (próton) algumas linhas adiante,193
propõe-se sobretudo a rebater a opinião sofística de que o justo
político é somente convencional, antes que a sugerir uma rela-
ção de dependência entre o primeiro e o segundo. À exceção da
passagem “por isso não é menos verdade que em qualquer lugar
não há mais que uma só constituição conformada à natureza,
e essa é a melhor”,194 que poderia sugerir indiretamente uma
relação mais estreita entre os dois tipos de justo (o natural e
o convencional), não há em todo o livro V, que é, insistamos,
o topos sistemático-analítico da justiça, um desenvolvimento

191 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 10, 1134b 18.


192 - Ibid., V, 10, 1134b 24 - 1135a 5.
193 - Ibid., V, 10, 1136b 34.
194 - Ibid., V, 10, 1135a 4. Qual é essa constituição conformada à natureza e, portanto,
a melhor? A resposta a esta difícil pergunta não está na Ética a Nicômaco nem na
Política. Talvez esteja na Metafísica, XII, 10, 1076a 3-4: “Não é coisa boa o mando de
muitos: um só deve exercer o mando”.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 97


Jorge Martínez Barrera

da possível subalternação da ordem legal “convencional” à na-


tural. Pois bem, precisamente a busca dessa subordinação será
uma das tarefas do Aquinate.
Em todo o caso, para Aristóteles a norma do justo político
parece depender em última instância do juízo prudencial do
homem virtuoso. O orthós logos é encarnado num sujeito con-
creto: “De acordo com o que dissemos, a virtude é um estado
habitual que dirige a escolha (proháiresis), e consiste num justo
meio relativo a nós, cuja norma é a regra moral, ou seja, a mes-
ma que lhe daria o sábio”.195
Mas, para o Aquinate, fazer depender em última instân-
cia o orthós logos do juízo prudencial de um homem, por mais
excepcional que este seja, choca-se com numerosas passagens
bíblicas, a começar pelos Livros Sapienciais (Jó, Provérbios,
Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria), cuja culminação é, preci-
samente, o Livro da Sabedoria (particularmente os capítulos 7 e
8). A estas passagens se juntam as neotestamentárias que fazem
referência específica à questão. Entre elas:

• Romanos, XVI, 27: “Só Deus é sábio”;


• Ibidem, XI, 33-34: “Oh, abismo da riqueza, da sabedoria e
da ciência de Deus! Quão insondáveis são seus decretos e quão
incompreensíveis seus caminhos! Com efeito, quem conheceu
alguma vez o pensamento do Senhor? Quem foi alguma vez seu
conselheiro?”;
• especialmente I Coríntios, passim; em particular: I, 17-II,
16 (I, 30: “Porque Ele é para nós sabedoria e justiça, santifica-
ção e redenção”), e III, 18-20;
• Colossenses, II, 3: “[em Deus] encontram-se, ocultos,
todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento”.

Compreende-se sem dificuldade por que Santo Tomás


não se detém muito na figura do phrónimos aristotélico como
referência última de legitimação sapiencial. Por outro lado,

195 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 6, 1106b 36; III, 6, 1113a 22-33; IV, 14, 1128a 31;
X, 5, 1176a 9-24.

98 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

tendo o estatuto epistemológico da teologia conseguido fir-


mar-se solidamente a partir do século XII, o Aquinate não terá
maiores dificuldades em traduzir o tom apologético-exortató-
rio da doutrina escriturária para uma formulação mais técnica
e mais de acordo com as expectativas da razão científica natu-
ral. A função do phrónimos aristotélico não é abolida, mas na
verdade Santo Tomás pode perguntar-se, com toda a lógica,
de onde finalmente obtém o sábio sua recta ratio se não for de
uma instância normativa transubjetiva. Nisso consiste o seu
aprofundamento da análise da cadeia etiológica antes mencio-
nada. Se não fosse possível formular esta pergunta e oferecer
a resposta dada pelo Aquinate, o raciocínio ficaria preso num
círculo vicioso: o sábio é tal por obedecer à reta razão, e a reta
razão, por sua vez, é a norma pensada pelo sábio.
No comentário à seguinte passagem da Ética a Nicômaco:
“Da razão teórica, e não da prática nem da poiética, o bem e o
mal são, respectivamente, a verdade e a falsidade — pois nisso
consiste a obra da atividade intelectual toda —, enquanto o
bem da parte intelectual prática é a verdade que está de acordo
com o desejo reto”,196 o Aquinate não deixa de assinalar certa
circularidade na argumentação aristotélica: “Aqui aparece algo
duvidoso. Com efeito, se a verdade do intelecto prático é de-
terminada com relação ao apetite reto, e ao mesmo tempo a
retidão do apetite é determinada pelo que é conformado à razão
verdadeira, como se disse antes, então parece seguir-se certa
circularidade [quaedam circulatio] em tais afirmações”.197
Santo Tomás pretende encontrar a solução para esse
círculo vicioso na argumentação do Estagirita na mesma
Ética a Nicômaco, na passagem imediatamente seguinte à
anterior: “Por isso se deve dizer que o apetite é do fim e dos
meios; por sua vez, o fim é assinalado para o homem pela
natureza, como diz Aristóteles no livro III [cap. 13, 1114b 13-
19], mas os meios não nos são assinalados por ela, devendo
ser investigados pela razão. Assim, é evidente que a retidão

196 - Ibid., VI, 2, 1139a 27 ss.


197 - Tomás de Aquino, In VI Ethic., 337: 109-114.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 99


Jorge Martínez Barrera

do apetite com respeito ao fim é a medida da verdade na


razão prática, e de acordo com isso se determina a verdade
da razão prática segundo sua harmonia com o apetite reto.
A mesma verdade da razão prática é a regra da retidão do
apetite dos meios. Assim, chama-se apetite reto o que segue
o que a razão verdadeira diz”.198
Aliás, a expressão concreta da reta razão é sempre
humana e pessoal; a importância do sábio não é de modo
algum diminuída. Longe de negar a doutrina aristotélica,
trata-se antes de reformulá-la segundo espírito paulino da
Epístola aos Coríntios, recordando que a perfeição da razão
prudencial depende, em última instância, de sua confor-
midade com uma ordem normativa metapolítica, porque
“ninguém, propriamente falando, pode impor uma lei a
seus próprios atos”.199 Embora um príncipe sábio possa ser
legibus solutus 200 quanto à pura coercitividade da lei positi-
va, e sua voluntas legis habet vigorem,201 essas prerrogativas
desaparecem ante a lei natural, porque ela não depende
de sua vontade.
Como quer que seja, como temos insistido, a grande
contrapartida da visão cristã consiste no reposicionamento
axiológico das questões políticas. Esta conseqüência só se
fará sentir, em seus efeitos práticos concretos, quando a cos-
movisão secularizante da modernidade tenda a expressar-se
num novo corpo jurídico para o qual a lei já não aspirará,
como no caso do direito romano, a ser um ars boni et aequi,
mas antes a uma enunciação de direitos e garantias indivi-
duais. Essa concepção da lei positiva é sustentada por uma
nova concepção da lei natural, e uma de suas formulações já
pode ser lida no Leviatã de Hobbes.

198 - Ibid., 114-127.


199 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, q. 93, a. 5 c. Ver também ibid., q. 96, a.
5, ad 3; IIa-IIae, q. 104, a. 1, ad 2; IIa-IIae, q. 45, a. 3, ad 2.; Ia-IIae, q. 95, a. 2 c.: “A primeira
regra da razão é a lei natural”. Lembremos que a lei natural, embora resida na razão,
não se identifica com ela.
200 - Digesto, I, 3, 31.
201 - Ibid., I, 4, 1.

100 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

2. Diferenças quanto à discutibilidade de algumas


teses aristotélicas

a) A teoria da escravidão natural

A escravidão não é para Aristóteles, no essencial, uma ca-


tegoria trabalhista, política ou racial, mas ético-psicológica.202
Por isso, a inabilitação política do escravo é conseqüência de
determinada situação de seu espírito, atribuível sobretudo a
uma natureza deficiente. Esse é um ponto de vista compartilha-
do por toda a tradição socrática, desde Xenofonte,203 e até pelos
próprios Padres da Igreja. A divergência destes últimos reside
em que não é possível admitir uma escravidão por natureza, pois
isso implicaria que Deus tivesse criado duas naturezas huma-
nas, o que é claramente inadmissível. Deve-se notar, todavia,
se é que os Padres se dirigem a Aristóteles quando negam que
Deus tenha podido criar uma natureza escrava, que o Estagirita
não trata o escravo como se ele fosse uma natureza diferente;
o escravo não é outra espécie do gênero “animal”, diferente do
homem, mas um homem cuja natureza é de escravo.204 É óbvio
que com este esclarecimento acerca da humanidade do escravo
se infere que o sentido em que Aristóteles está empregando o
termo natureza não é o de forma substancial, mas antes o de
solvência intelectual (logos) e/ou caráter (ethos), como quando
nós mesmos nos referimos a uma pessoa como de boa ou má
natureza. Em todo o caso, o acordo de base reside em que a
escravidão é uma característica espiritual cuja origem é para
Aristóteles a natureza, e para os Padres, o pecado. Ainda assim,
uma explicação não exclui a outra: a causa imediata da escravi-
dão é a natureza (até aqui Aristóteles), que por sua vez foi ferida
pelo pecado (e esta é a causa remota assinalada pelos Padres).
Ser escravo não é uma condição necessariamente infeliz, e até

202 - Para uma análise mais detalhada da teoria da escravidão em Aristóteles, permiti-
mo-nos remeter ao nosso trabalho “Psicología de la libertad política en Aristóteles”, em
Revista Analogía Filosófica (México), nº 1 (1997), pp. 167-185.
203 - Xenofonte, Memorabilia, I, 5, 5-6 e IV, 5, 2-5.
204 - Aristóteles, Política, 1254a 14-17.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 101


Jorge Martínez Barrera

para Aristóteles é o mais conveniente para um homem que não


é livre, ou seja, que não é capaz de decidir e escolher por si só
um rumo conveniente para a sua vida.
Como dissemos, este é um ponto “discutível”, mas não intei-
ramente inadmissível para os pensadores cristãos. É muito pouco
o que os padres latinos, por exemplo, tinham para dizer contra
a escravidão.205 A oposição à doutrina aristotélica se dá antes,
como dissemos, com respeito a seu caráter supostamente “natu-
ral”, pois isso implicaria que Deus tivesse criado duas naturezas
humanas, uma destinada a mandar despoticamente, e outra des-
tinada à escravidão. Tal doutrina contradiz abertamente o dado
bíblico referente, pelo contrário, à natural igualdade de todos os
homens. Em todo o caso, se há uma desigualdade tão extrema
entre alguns homens e outros, a ponto de alguns só poderem
sobreviver na condição de escravos, isso se deve ao pecado origi-
nal, responsável último pelas trevas da inteligência. Ao perder o
homem o trato familiar com Deus e o privilégio de ver aquele que
tudo vê, seu espírito fica numa dependência incomparavelmente
maior de suas próprias forças, que são, como o prova a própria
condição atual da humanidade, insuficientes para alcançar por si
sós o fim que seu Criador quis para ele.
Contudo, apesar da importância daquela instituição no
funcionamento da economia greco-romana, esta, no fundo, não
é uma questão que afete no essencial a natureza da mensagem
evangélica, e portanto não aparece como algo de que tenha de
ocupar-se de maneira urgente. Ser escravo não é uma condição
necessariamente infeliz e até pode ser boa em alguns casos, como
o mostram alguns sermões de Santo Agostinho, por exemplo.206
É quase um dever de caridade dirigir alguns homens, cuja estul-
tícia congênita desestimula brutalmente as melhores intenções
pedagógicas, e que parecem andar pelo mundo guiados por uma
bússola mal imantada. Em todo o caso, a condição de escravo
implica, antes que qualquer outra coisa, determinado estatuto

205 - Cf. Chadwick, H., Christian Doctrine, em The Cambridge History of Medieval Po-
litical Thought, pp. 15-16.
206 - Idem.

102 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

jurídico-político dentro da comunidade, e não mais que isso. A


escravidão antiga não é uma categoria racial nem trabalhista.
Mas, se considerarmos que são justamente as coisas políticas
o que vem a ser relativizado pelo Cristianismo, entenderemos
por que a escravidão não apresentava para os cristãos um inte-
resse premente como tema de reflexão. Não devemos esquecer
a perda do caráter prioritário que as coisas políticas sofrem na
perspectiva cristã. Na verdade, a oposição à escravidão como
instituição parece ter-se gerado antes de maneira fática que teó-
rica. Essa maneira fática, que vem, desta vez sim, sacudir os pró-
prios fundamentos institucionais da escravidão, é o movimento
monástico. Aqui se tratava de viver no tempo histórico a perfei-
ção evangélica do Sermão da Montanha, e isso implicava uma
reformulação das condições de convivência que não deixaria de
afetar, direta ou indiretamente, a cidade secular, devido ao ca-
ráter de verdadeira matriz cultural dos mosteiros. Mas, seja dito
uma vez mais, o espírito monástico tampouco fez da escravidão
ou de sua eventual abolição uma questão prioritária.
De qualquer forma, ainda que haja uma divergência de
base com Aristóteles com respeito à origem da escravidão, é de
notar que a doutrina do pecado original também implique uma
determinação psicológica acerca de quem é escravo e quem não
o é. Neste ponto, volta a existir acordo com o Estagirita, para
quem a escravidão é essencialmente uma questão de capacidade
intelectual, ou melhor, uma categoria psicológica que acarreta
inevitavelmente certas conseqüências no estatuto político dos
que a padecem. O escravo é aquele que não é capaz de deci-
dir livremente acerca de sua vida, nem, muito menos, acerca
da vida dos demais. Esta doutrina aristotélica, cujo contexto
é a vida política, não apresenta maiores dificuldades para ser
transposta para termos evangélico-soteriológicos: “A verda-
deira escravidão é a do pecado”, etc. Escreve Santo Tomás na
Suma Teológica: “[...] aqueles que se tornam filhos de Deus pela
graça estão livres da escravidão do pecado, ainda que não da
servidão corporal, pela qual os senhores têm súditos [...]”;207 mas

207 - Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa-IIae, q. 104, a. 6, ad 1.

A Política em Aristóteles e Santo Tomás 103


Jorge Martínez Barrera

na mesma questão, ao final, lemos um parágrafo sumamente


interessante: “O homem deve obedecer ao homem nas coisas
exteriores feitas pelo corpo. No entanto, naquelas coisas referen-
tes à natureza mesma do corpo, o homem não é obrigado a obedecer
ao homem, mas só a Deus, porque todos os homens são iguais por
natureza, como, por exemplo, no concernente ao sustento do
corpo e à geração da prole”.208
Outra passagem significativa e suficientemente clara é a
seguinte: “[...] porque a distinção entre as posses e as servidões
não é estabelecida pela natureza, mas pela razão humana para a
utilidade da vida”.209
Assinalemos também esta: “[...] que este homem seja es-
cravo em termos absolutos, mais que este outro, não tem razão
natural, mas só segundo certa utilidade conseqüente, enquanto
é útil que seja regido por um mais sábio [...]. Daí que a escravi-
dão de que fala o direito das gentes é natural do segundo modo
e não do primeiro”.210
Também temos o assunto tratado com maior precisão te-
mática na própria Suma Teológica: “[...] Existem três tipos de
servidão. A primeira, enquanto o homem é escravo do pecado,
segundo as palavras ‘quem peca é escravo do pecado’ [João,
VIII, 34] [...]. A segunda é aquela pela qual um homem serve a
outro homem. Mas um homem é escravo de outro não segundo
o espírito, mas segundo o corpo, como antes se disse [q. 104, a.
5; a. 6 ad 1]. E a terceira é a servidão de Deus”.211
Outras referências podem ser vistas nesta passagem: “[...]
nas coisas espirituais, existe uma dupla servidão e uma dupla
liberdade. Uma é a servidão do pecado; outra é a servidão da
justiça. Do mesmo modo, há uma dupla liberdade: uma é com
respeito ao pecado; outra, da justiça, como é evidente pela
Escritura [Romanos, VI, 20-22]. Assim, a servidão do pecado
ou da justiça se dá quando alguém é inclinado ao mal pelo há-

208 - Ibid., a. 5 c; grifo nosso.


209 - Ibid., Ia-IIae, q. 94, a. 5, ad 3; grifo nosso.
210 - Ibid., IIa-IIae, q. 57, a. 3, ad 2.
211 - Ibid., IIa-IIae, q. 122, a. 4, ad 3.

104 A Política em Aristóteles e Santo Tomás


V - As diferenças entre Aristóteles e Santo Tomás

bito pecaminoso, ou ao bem pelo hábito da justiça [...]. Assim,


dado que o homem é inclinado à justiça segundo a razão na-
tural, e o pecado é contra a razão natural, então se segue disso
que a liberdade do pecado é a verdadeira liberdade, a qual se
agrega à servidão da justiça. E por meio de ambas o homem
tende ao que lhe convém. E, do mesmo modo, a verdadeira
servidão é a servidão do pecado, a qual se une à liberdade da
justiça. Por meio destas duas o homem é impedido de obrar o
que lhe convém”.212
Santo Tomás não faz aqui outra coisa senão recolher os
frutos de uma antiga doutrina cristã. Para Santo Ambrósio, por
exemplo, ser livre ou escravo não é nem sequer uma questão de
direitos políticos, mas de disposição interior.213 E o Aquinate
não tem nada que acrescentar a esta tradição de pensamento.
Examinamos os pontos que justificam a calorosa acolhida
do pensamento do Estagirita por parte do Doutor Angélico,
e algumas diferenças.214 Até aqui, tais diferenças foram antes
no sentido de um maior aprofundamento de reflexões que já
tinham sido, pelo menos, começadas por Aristóteles. Mas agora

212 - Ibid., IIa-IIae, q. 183, a. 4 c.


213 - Cf. Santo Ambrósio, Epístola 37, apud Markus , R. A., op. cit., p. 98.
214 - As vicissitudes da recepção da Política de Aristóteles não são objeto deste tra-
balho. O que nos interessa é indagar, do ponto de vista das idéias, os limites mesmos
da compatibilidade e incompatibilidade entre dois mundos diferentes, o cristão e o
pagão. Para o assunto, certamente apaixonante, da chegada da Política aristotélica ao
Ocidente latino, ver Lohr, C., “The Medieval Interpretation of Aristotle”, em The Cam-
bridge History of Later Medieval Philosophy, edited by N. Kretz