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Tradução e prefácio:
Carlos Ancêde Nougué
Título original
La Política en Aristóteles y Tomás de Aquino
Tradução e Prefácio
Carlos Ancêde Nougué
Revisão
Sidney Silveira
Coordenação editorial
Octacílio Freire e Sidney Silveira
ISBN 978-85-99255-06-3
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
B258p
07-4064.
CDD 321.01
CDU 321.01
26.10.07 26.10.07 004063
Sumário
Prefácio ..................................................................................................... i
Introdução . ........................................................................................... 01
I. Aristóteles e o neo-aristotelismo .................................................. 05
1. Dependência ou independência entre metafísica e filosofia prática?
2. A interpretação sistemática e a genética
3. A reabilitação da filosofia prática e o neo-aristotelismo
4. Ciência moral e ciência política
5. Phrónesis e filosofia prática
6. Ethos e filosofia prática
A verdadeira fonte
da ética e da justiça
“E, dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um
fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário
que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo,
não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio
de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina.”
Santo Tomás de Aquino
(De Regno, 466: 74-80)
- Tomás de Aquino, Comentário à Fisica, no 205, apud Martínez Barrera, Jorge, op. cit.,
p. 126. O grifo é deste autor.
- Martínez Barrera, Jorge, op. cit., p. 100. Diz ainda Santo Tomás de Aquino: “A
primeira regra da razão é a lei natural” (Suma Teológica, Ia-IIae, q. 95, a. 2 c.).
- Martínez Barrera, Jorge, op. cit., p. 100.
10 - Esta doutrina foi retomada no século passado por Marcel De Corte, em Essai sur
la fin d’une civilisation (Paris, Librairie de Médicis, 1949), numa tentativa, ao que parece
frustrada, de adaptá-la ao pensamento católico tradicional.
11 - Cf. The New Science of Politics, Chicago, University of Chicago, 1952.
12 - A doutrina de Joaquim de Fiore foi rejeitada pela Igreja.
parte que não é congruente com seu todo” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIª-IIª,
q. 47, a. 10, ad 2).
16 - Aqui, trata-se da liberdade não como um princípio interior inamovível da alma
humana (a partir dos atos livres da vontade e da inteligência), mas da liberdade política,
tão-somente.
17 - Parece-me ouvir os acordes ribombantes que envolvem, na Nona Sinfonia de
Beethoven, a “An die Freude” (Ode à Alegria) de Friedrich Schiller, inspirada precisa-
mente no ideário liberal do Iluminismo. Aliás, o coral beethoveniano com a “Ode” de
Schiller é, desde 1985, o hino oficial da União Européia.
18 - Cf. acima, nota 1 deste Prefácio.
19 - Martínez Barrera, Jorge, op. cit., pp. 73-74
20 - Ibid., p. 74..
‘sistemática’ e uma ética que [...] faz profissão, se nos atrevemos a dizê-lo, de assiste-
maticidade” (Aubenque, P., La prudence chez Aristote, Paris, P.U.F., 1986, p. 27).
- Ver, por exemplo, Aubenque, P., “La philosophie pratique d’Aristote et sa “réhabilita-
tion” récente”, em Revue de Métaphysique et de Morale, nº 2/1990, pp. 249-266.
que não pudesse ser resolvida por uma distinção. Nesse sentido,
vários modernos permaneceram fiéis ao método medieval. Não
obstante, o desacordo entre a psicologia suposta pelos tratados de
moral e a psicologia do tratado De anima é de tal magnitude, que
se fez necessário oferecer uma explicação. E assim nasceu a teoria
da compartimentação, elaborada, entre outros, por John Burnet:
em seus tratados de moral, Aristóteles faz voluntariamente abs-
tração de suas próprias teorias psicológicas, as quais ele considera
demasiado técnicas, para ater-se a uma psicologia popular acessí-
vel a todos. A moral, com efeito, não é para ele uma ciência, mas
uma dialética, ou seja, uma arte de persuadir menos preocupada
com a verdade que com a eficácia.
Assim, em função do sistema atribuído a Aristóteles, a crí-
tica levantou o problema da autenticidade, neste caso ao menos,
das três Éticas atribuídas ao Estagirita. As diferenças obedecem,
em última instância, ao tipo de público a que Aristóteles teria
dirigido cada uma de suas obras.
A exegese genética nasceu em 1923 com a publicação do
trabalho de Werner Jaeger (1888-1961). A tese de Jaeger é, se-
gundo Gauthier, simplesmente genial. Jaeger teria descoberto em
Aristóteles não um sistema fixo e fechado, mas uma investigação
viva. Aristóteles não teria sido sempre Aristóteles, mas tornou-se
o que foi de maneira paulatina. Podemos acompanhar a evolu-
ção de seu pensamento já desde a sua primeira obra, o Gryllos,
publicada por volta de 358 a.C., quando tinha 26 anos, até sua
fuga de Atenas para Cálcis, onde morre em 322 aos 62 anos. De
início preconizara o idealismo platônico, mas depois o criticou
e rejeitou; no momento da rejeição, lançou os fundamentos da
filosofia realista, atenta à experiência concreta, e, lentamente,
levou este modo de ver as coisas até suas últimas conseqüências.
De todos os trabalhos inspirados pelo Aristóteles de Jaeger, o mais
importante é o livro de François Nuyens L’évolution de la psycho-
logie d’Aristote, publicado em holandês em 1938 e traduzido para
15 - Betbeder, Ph., “Étique et politique selon Aristote”, em Revue des Sciences philoso-
phiques et théologiques, T. LIV (1970), n°3, pp. 453-488.
16 - Aristóteles, L’Éthique à Nicomaque, Louvain, 1970 (2ª. ed.).
livros da Política é algo que por ora está fora de nosso alcance.
Além do mais, é um bom método pô-la conscientemente fora de
nosso alcance e adotar, ainda que provisoriamente, a hipótese da
unidade da Política. E, se alguém objeta que a presença de estratos
redacionais de diversas épocas, e até de diversos autores, é uma
evidência inquestionável em algumas passagens, Pellegrin respon-
de que sua leitura quase sistemática não significa ao mesmo tempo
a suposição de que a Política seja uma obra acabada. Nada impede,
com efeito, que uma exegese mais próxima da tradição sistemática
que da interpretação genética possa considerar a Política como uma
obra in statu nascendi, ou como notas reunidas antes da redação
definitiva. Em todo o caso, a proposta de Pellegrin, ante as des-
vantagens que uma hiperespecialização exegética, uma excessiva
insistência em aspectos lexicográficos e de estilo e a sutileza de
prestigiosas análises oferecem à compreensão filosófica profunda do
texto, é de retorno a uma leitura sumária da obra, isto é, a uma lei-
tura que até se coloque aquém das posições antagônicas existentes
hoje. Essa leitura sumária nem sequer deve pretender superar as
atuais contradições, pois esta tarefa se mostra, ao menos no estado
atual das pesquisas, como um beco sem saída.
Há certas regras mínimas de leitura da Política, e talvez
de toda a obra aristotélica, que obedecem à simples precau-
ção de considerar a primeira coisa que deveria ser levada
em conta: o estado literário em que nos chegaram os textos.
Com relação a isto, não há a menor dúvida de que, em geral,
tais textos não têm em sua maioria a forma de obras acaba-
das destinadas à publicação, apesar de existirem espargidas,
aqui e ali, algumas passagens mais “cuidadas”. Em todo o
caso, é sumamente complicado fazer um estudo estilístico
comparável ao que foi feito com os diálogos platônicos, que
permitiu uma ordenação cronológica com respeito à qual há
pouco desacordo.17
O estado literário dos textos, então, prescreve por si só
certas normas de leitura ou interpretação. Entre elas, Pellegrin
menciona as seguintes.
18 - Ibid., p. 34.
21 - Cf. McAllister, T., Revolt Against Modernity. Leo Strauss, Eric Voegelin, and the
Search for a Postliberal Order, Kansas, University Press, 1996; Possenti, V., Le società
liberali al bivio. Lineamenti di filosofia della società, Perugia, Marietti, 1992²; Crespigny,
A. de, & Minogue, K. R., Contemporary Political Philosophers, New York, Dodd, Mead
& Co., 1975.
22 - Política y filosofía práctica, versión castellana de Rafael Gutiérrez Girardot, Buenos
Aires, Sur, 1973, p. 7.
4, 1105b 9 ss.). “Se destas coisas, e das virtudes, e da amizade, e do prazer já falamos
suficientemente em termos gerais, devemos crer que o tema que nos tínhamos proposto
chegou ao fim, ou, como se diz, o fim, quando se trata de coisas práticas, não é tê-las
considerado todas e conhecê-las, mas antes fazê-las? Então tampouco, tratando-se da
virtude, basta conhecê-la, mas devemos procurar tê-la e praticá-la, ou conseguir qual-
quer outro meio para vir a ser bons” (Ética a Nicômaco, X, 9, 1179a 35-b 2). “E também é
justo que a Filosofia seja chamada ciência da verdade; pois o fim da ciência teórica é a
verdade, e o da ciência prática, a obra” (Metafísica, II, 993b 20 ss.).
26 - O texto capital desta doutrina se encontra no começo mesmo da Ética a Nicômaco:
“[...] o jovem não é discípulo apropriado para a política, já que não tem experiência das
ações da vida, e a política se apóia nelas e sobre elas versa; além disso, por deixar-se
levar pelos sentimentos, aprenderá em vão e sem proveito, dado que o fim da política
não é o conhecimento, mas a ação; e é indiferente que seja jovem em idade ou em
caráter, pois o defeito não está no tempo, mas em viver e procurar todas as coisas
de acordo com a paixão. Para tais pessoas, o conhecimento é inútil, como para os
intemperantes; em contrapartida, para os que conduzem seus desejos e ações segun-
do a razão, o saber acerca destas coisas será muito proveitoso” (Aristóteles, Ética a
Nicômaco, I, 3, 1095a 2-12).
27 - Hennis , W., Politik und praktische Philosophie. Eine Studie zur Rekonstruktion der
politischen Wissenschaft, Neuwied am Rhein u. Berlin, Hermann Luchterhand Verlag,
1963, pp. 47-48.
28 - Volpi, F., art. cit., pp. 473 ss.
29 - Cabe observar a Volpi que é discutível que para o neo-aristotelismo se possa
falar de “ciência prática”. De fato, vários neo-aristotélicos, seguindo nisto a Gadamer,
apóiam-se numa conhecida passagem do livro VI da Ética a Nicômaco (1142a 24) para
36 - “[...] o fim da produção é diferente dela, mas o da ação não pode sê-lo: a boa ação
mesma é o fim” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140b 5-6).
37 - “Entre as coisas que podem ser de outra maneira, estão o que é objeto de produ-
ção e o que é objeto de ação, e uma coisa é a produção e outra a ação [...]; de modo que
também a disposição racional apropriada para a ação é coisa distinta da disposição
para a produção. Portanto, tampouco incluem uma à outra; com efeito, nem a ação é
produção, nem a produção é ação” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 4, 1140a 1-6).
38 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140b 4-5.
39 - Ibid., VI, 4, 1140a 20-21
55 - Volpi, F., art. cit., p. 483. A prudência é somente dos meios: “Além do mais, o
homem leva a efeito sua obra mediante a prudência e a virtude moral, porque a virtude
torna reto o fim proposto e a prudência, os meios que a ele conduzem” (Aristóteles,
Ética a Nicômaco, VI, 12, 1144a 6-8); “[...] e porque a escolha não pode ser reta sem
prudência nem sem virtude, já que uma determina o fim e a outra faz com que se
realizem as ações que conduzem ao fim” (ibid., 13, 1145a 4-6). Cf. Aristóteles, Ética a
Nicômaco, III, 2, 3, 4, 5., e Aubenque, P., op. cit., pp. 139-143.
56 - Volpi, F., art. cit., p. 483.
59 - “Die menschlichen Meinungen und das Gute. Die Lösung des Normsproblem in der
Aristotelischen Ethik”, em Riedel (ed.), op. cit., I, p. 359, apud Berti, E., art. cit., p. 255.
60 - “Quanto à prudência, podemos compreender sua natureza considerando a que
homens chamamos prudentes [...] Por isso pensamos que Péricles e os que são
como ele são prudentes porque podem ver o que é bom para eles e para os homens”
(Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140a 23-1140b 10). A própria definição de virtude
se apóia na referência ao homem virtuoso: “É portanto a virtude um hábito de decidir
que consiste num termo médio relativo a nós, determinado pela razão e por aquela de
acordo com a qual decidiria o homem prudente” (ibid., II, 6, 1106b 36).
61 - Berti, E., art. cit., p. 255.
76 - Aristóteles, Ética a Eudemo, VII, 15, 1249b 13-20. Voltaremos a este texto quando
tratarmos as diferenças religioso-teológicas entre Aristóteles e Santo Tomás.
77 - Aristóteles, Metafísica, I, 2, 983a 5-11. Escreve Guariglia , O.: “É importante subli-
nhar o fato de que Aristóteles [...] procura por todos os meios expressivos enfatizar o
caráter teológico da vida filosófica, por mais estranho e até repulsivo que hoje isso nos
possa parecer” (“La eudaimonía en Aristóteles: un reexamen”, em Méthexis, X [1997],
p. 96). O autor não esclarece as razões de tal “repulsa”.
78 - A ciência é um hábito da verdade, e neste ponto convergem o filósofo e o político.
Um busca, contempla e ama o objeto mais digno de todos, Deus, e o outro faz o mesmo
com a verdade prática. A ciência mais perfeita (porque aspira ao objeto mais perfeito)
é também uma atividade, uma práxis que tem dois aspectos inseparáveis. Um deles
é o da atividade contemplativa mesma, práxis suprema, e o outro, o da vida filosófica
com suas exigências específicas, a qual se desdobra no meio da comunidade política.
Neste último sentido, o exercício da filosofia não está reservado ao filósofo profissional.
Todo e qualquer homem tem vocação para a verdade, uma vez que todos desejam,
por natureza, saber; a política tem por isso um compromisso com as condições éticas
de acesso à verdade. Sobre esta segunda face da vita contemplativa tem jurisdição o
político, mas uma jurisdição orientada para o serviço da contemplação, com especia-
líssimo cuidado (therapeía) da paradigmática, ou seja, a divina. A contemplação de
Deus produz desse modo indireto a reta ordenação da pólis.
101 - “No final da Ética a Nicômaco, Aristóteles formula e explica o programa da Política
[...], que mostra até que ponto a Ética e a Política não são em sua mente senão duas
partes de uma mesma disciplina, duas etapas de uma tarefa intelectual única” (Marías ,
J., Introducción a la Política de Aristóteles, edición bilingüe y traducción por Julián
Marías y María Araujo, Madrid, 1970, p. xxxiii).
102 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 8, 1141b 23 ss: “Pois bem, política e prudência
são um só e mesmo estado da alma, mas visto de ângulos diferentes. Assim, uma das
duas partes da prudência que tem por objeto a cidade é a prudência arquitetônica;
trata-se da prudência legislativa. Mas a sua outra parte, a que é prudência individual,
apropriou-se do nome que deveria ser comum às duas partes, quer dizer, o de prudên-
cia política... Mas aos olhos de todos também há uma prudência, e até é a prudência
por excelência, que tem por objeto um único indivíduo, o sujeito mesmo. Mas ela tam-
bém se apropriou do nome que deveria ser comum a todas as partes da prudência”.
103 - Ibid., X, 10, 1181b 15. Para o comentário desta expressão, cf. Bodéüs , R., Politique
et philosophie chez Aristote. Recueil d’études, Namur, Société des Études Classiques,
1991, pp. 83-85.
104 - Escreve Barker, E.: “Maquiavel, na medida em que é o pai da ciência política
moderna entendida como uma indução científica a partir da história, é ainda mais emi-
nentemente o autor do divórcio entre política e ética [...]. Mas devemos recordar que
tal distinção é alheia a Aristóteles. Ela não está implicada na separação de um tratado
sobre a ética de um sobre a política. O próprio termo ‘justiça’ é usado, por Aristóteles
e por Platão, para designar não somente a bondade moral, mas também a obrigação
legal” (The Political Thought of Plato and Aristotle, New York, Dover Publications, Inc.,
s/f., p. 241; grifo do autor).
105 - Tomás de Aquino, Sententiae Sexti Libri Ethicorum, 356:23-31. Estritamente fa-
lando, o texto aristotélico que o próprio Santo Tomás tem diante de si não autorizaria
seu comentário. Diz o texto: “Est autem et politica et prudentia idem quidem habitus,
esse quidem non idem ipsis” (destaque nosso). A idéia é que, embora a política e a
prudência sejam um mesmo hábito, não o são quanto à sua substância. Mas o Aquinate
sustenta que Aristóteles “Dicit ergo prima quod politica et prudentia sunt idem habitus
110 - Cf. Aristóteles, Política, I, 2, 1253a 15; a 37; III, 13, 1283a 38-40; IV, 4, 1291a 25
ss.; e sobretudo quando se identifica a justiça com o bem comum: “[...] esta é a ciência
política, cujo bem é a justiça, em outras palavras, o bem comum” (Política, III, 12, 1282b
17). Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, 11, 1160a 13-14. E na Ética a Nicômaco,
V, 10, 1134a 26, se observa um nexo entre “justiça” e “comunidade”. Cf. Aristóteles,
Retórica, I, 6, 1362b 27-34.
111 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 10, 1134a 23-26; grifo nosso.
112 - Ibid., VIII, 11, 12 e 13.
113 - Ibid., X, 10.
114 - Ibid., X, 10, 1181a 13 ss.
b) como devem ser obradas as coisas justas para que quem age
seja tido por justo, por possuidor da virtude da justiça.116
Note-se, de passagem, que este é a mesma via seguida por
Santo Tomás em seu tratado De iure et iustitia da Suma
Teológica: primeiro se trata do objeto da virtude e depois
da forma como o justo deve ser obrado.117
116 - O comentário de Gauthier-Jolif ad loc. (neste caso do segundo) afirma que “não
se vê claramente a que método se refere Aristóteles”. De qualquer modo, sempre se-
gundo Jolif, há um procedimento que parece ser comum em Aristóteles, o de distinguir
claramente o sentido dos termos de que se falará (Aristote, L’Éthique à Nicomaque,
Introduction, Traduction et Commentaire par R. A. Gauthier, O.P., et J.-E. Jolif, O.P.,
Louvain, Publications Universitaires de Louvain/Paris, Éd. Béatrice-Nauwelaerts, Tome
II Commentaire Première Partie, livres I-V, pp. 329-330).
117 - Hoje se presume que o Comentário à Ética a Nicômaco é contemporâneo da IIa-IIae
da Suma Teológica, onde se encontram as questões De iure et iustitia. Cf. Weisheipl, J.,
Friar Thomas d’Aquino. His Life, Thought and Works, Washington D.C., 1983, p. 380.
posição interior com que a pessoa deve agir para ser chamada
eqüitativa.118
Há em Aristóteles a perfeita consciência de que para ser-
mos justos não basta fazer coisas justas; requer-se ainda que
tais atos justos sejam produto de um convencimento pessoal
que, em sua expressão mais acabada, adquiriu estado habitual.
Embora a concreção exterior de um ato possa ser idêntica, não
são a mesma coisa um ato de justiça e um ato justo. A reposição
de um depósito, por exemplo, pode ser um ato justo sem ser
inteiramente um ato de justiça, quando o motivo é o temor
da sanção por morosidade em vez do íntimo e livre conven-
cimento, presente no espírito de maneira habitual, de que é
preciso restituir os bens alheios. Neste último caso, tratar-se-ia
de um ato de justiça, ou seja, de um ato suscitado pela virtude
da justiça. E, se se quiser apurar mais a análise, deve-se dizer
que um ato justo intencionalmente cumprido também pode
não ser um ato de justiça, na medida em que a reta intenção
seja acidental, e não habitual. E o mesmo vale para os atos in-
justos. Não somos injustos somente por cometer atos injustos.
Toda a diferença reside no motivo do ato, e toda a gravidade,
na presença ou ausência do hábito.119 Em suma, para um ato
ser um ato de justiça e para por ele sermos chamados justos,
é preciso que seja ek prohairéseos (não katà symbebekós) e que
corresponda a uma inclinação habitual. Do mesmo modo, não
podemos ser chamados injustos por termos cometido um ato
injusto por ignorância ou se, ainda que o tenhamos cometido
com consciência, interveio a paixão. Um ato de injustiça requer
também uma escolha deliberada nascida de uma disposição ha-
bitual: “Temos de ir um pouco mais longe: o que é a virtude não
142 - Aristóteles, Política, 1252b 32 ss; Física, 198a 25-26, inter alia.
143 - Esta é uma idéia que também está presente em Tomás de Aquino, Suma Teológica,
Ia, q. 118, a. 2, ad 2.
144 - Cf., inter alia, Aristóteles, Política, 1252a 4-7; 1252b 28-1253a 1.
148 - Obviamente, este conceito de “arte” é empregado aqui como sinônimo de faculdade
prática geral, e não o restringimos à sua acepção de “técnica” nem à de “belas-artes”.
149 - Aristóteles, Política, 1337a 21-34.
150 - “À pergunta de um pai sobre a melhor maneira de educar eticamente o filho, um
pitagórico deu a seguinte resposta (também atribuída a outros): “Fazendo-o cidadão
de um Estado com boas leis” (Hegel, G. W. F., Principios de la filosofía del derecho, par.
153, traducción de J. L. Vermal, Sudamericana, Buenos Aires, 1975).
151 - “A pedagogia é a arte de tornar éticos os homens; ela considera o homem como
natural e lhe mostra o caminho para voltar a nascer, para transformar sua primeira
natureza numa segunda natureza espiritual, de tal maneira que o espiritual se converta
num hábito [...]. O hábito pertence tanto ao ético como ao pensamento filosófico, pois
este exige que o espírito seja educado contra as ocorrências arbitrárias e que estas
sejam derrotadas e superadas para que o pensamento racional tenha caminho livre”
(Hegel, G. W. F., op. cit., par. 151, Agreg.).
152 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1180a 4 ss.
153 - Jaeger, W., Paideia: los ideales de la cultura griega, México, FCE, 1980 (quinta
reimpresión), p. 433.
154 - Idem.
155 - Cf., inter alia, Aristóteles, Política, 1338b 2-4; 1279a 21 (“a cidade é uma comu-
nidade de homens livres”).
156 - Ibid., cap. 7, Livro III; ver também 1291b 30 ss; Retórica, 1366a 4-5.
157 - Cf. Platão, República, Livro V, cap. 7.
158 - Cf. Barker, E., op. cit., p. 154.
por realizar. Pode-se até dizer que esta forma de justiça exige, em
alguns casos, a injustiça como condição de sua manifestação. A
ipsa res iusta é exigível às vezes por via contenciosa, ou seja, a
contrapelo da “[...] intenção principal da lei humana, [que] é
produzir a amizade dos homens entre si”.165 Por isso Santo Tomás
também pode sugerir “que o direito não é a coisa justa em toda a
sua perfeição, mas um iustum imperfectum, enquanto pode dar-se
independentemente das disposições de espírito do agente (etiam
non considerato qualiter ab agente fiat).166 Dito de outro modo,
se enfocarmos a questão por uma ótica puramente jurídica, a
justiça virá depois da ação, e de uma ação que em princípio é
considerada injusta por uma das partes; em contrapartida, da
perspectiva ética ela é também um propósito da vontade, livre-
mente decidido e anterior à ação, ou seja, não condicionado
por uma ação prévia injusta que requer ser reparada.167 É toda
a diferença que há, por exemplo, entre o pagamento de uma
multa e o pagamento de um dízimo ou uma doação.
Não parece evidente, de qualquer modo, que a justiça vete-
rotestamentária e o direito romano sejam afetados, eles mesmos,
pela deformação mencionada; mas, especialmente a primeira, a
favoreceram de fato em sua confrontação com o Cristianismo.
Por seu lado, o “positivismo jurídico” romano, em boa medida de-
vido à extensão do Império, introduzia um perigo adicional: o re-
lativismo ético. Não é casual que Cícero, por exemplo, associe os
bons e velhos tempos da república ao florescimento das virtudes.
Em outras palavras, a lei humana positiva, devido a seu próprio
caráter prudencial (cujos aspectos a lei natural não necessita:
conselho e deliberação, por exemplo), por isso mesmo tem certos
168 - Cf., inter alia, Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 1, 1103b 2 ss; Política, II, 8, 1269a
20; I, 6, 1255a 22; III, 16, 1287b 5.
169 - A república é uma forma política que deve seu bom funcionamento, segundo
Cícero, ao reinado da justiça, e, precisamente, o fundamento desta é a fé. Obviamente,
não se trata para Cícero da fé em Cristo, mas do que hoje chamaríamos “boa-fé”, quer
dizer, certa confiança nas relações interpessoais que surge de um clima de integri-
dade moral. Mas esta “boa-fé”, garantia do bom funcionamento da república, só é
possível numa comunidade onde de algum modo seus membros se conhecem entre si.
Como quer que seja, o primeiro passo já estava dado e não será desaproveitado pelos
cristãos, que não terão maiores dificuldades em transformar esta fé ciceroniana em
confiança em Cristo. Um dos exemplos mais claros disso é constituído pelo De officiis
ministrorum de Santo Ambrósio. Cf. para isso Markus , R. A., “The Latin fathers”, em
Burns , J. H. (ed.), The Cambridge History of Medieval Political Thought, Cambridge, at
the University Press, 1988, pp. 97-98. Recordemos a conhecida definição ciceroniana
de república, sobre a qual se deterá depois Santo Agostinho: “Est igitur... res publica
res populi”; pois bem, o povo não é “omnis hominum coetus quoquo modo congre-
gatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus” (De
republica, I, XXVI, 39). Esse “iuris consensu” é quase impossível quando o tamanho da
comunidade política excede certos limites, com o que se favorece certo debilitamento
dos laços legais.
170 - Escreve Aristóteles: “Por outro lado, os fatos também evidenciam que é difícil e
talvez impossível que a cidade demasiado populosa seja bem legislada; de fato, entre
as que têm fama de governar-se bem, não vemos nenhuma em que não se limite a
população. [...] a lei é, com efeito, certa ordem, e a boa legislação tem de ser uma
ordenação boa, e um número excessivamente elevado não pode participar da ordem;
isso requereria sem dúvida uma força divina, como a que mantém unido o universo”
(Política, VII, 4, 1326a 25 ss; grifo nosso).
2. O agostinismo político
171 - Cf. Stein, P. G., “Roman Law”, em The Cambridge History of Medieval Political
Philosophy, pp. 37-47.
172 - “A noção mesma de ‘justiça’ [paulina] expressa menos uma virtude que um
estado habitual de amizade e de boas relações com Deus” (A rquillière , H.-X.,
L’augustinisme politique. Essai sur a formation des théories politiques du moyen âge,
Paris, Vrin, 1972², p. 78).
173 - Santo Agostinho, La Ciudad de Dios, XIX, 21, 1, in Obras Completas de San Agus-
tín, edición bilingüe, traducción de Santos Santamarta del Río y Miguel Fuertes Lanero,
vol. XVII/2, Madrid, B.A.C., 1988, pp.608-609.
175 - Cf. Vergnières, S., Éthique et politique chez Aristote. Physis, Êthos, Nomos, Paris,
PUF, 1995, pp. 3-4.
176 - Cf. Nicol, D. M., Byzantine Political Thought, em The Cambridge History of Me-
dieval Political Thought, p. 51.
177 - Vejam-se as críticas de Aristóteles a essa aspiração platônica em Política, II,
caps. 2 e 3.
182 - Cf. Crespo, R., “Nota acerca de las precisiones tomistas al concepto aristotélico
de ciencia práctica y la noción contemporánea de ciencias sociales”, em SAPIENTIA,
n°193-194 (1994), pp. 297-305.
183 - Permitimo-nos remeter ao nosso artigo “De l’ordre politique chez saint Thomas
d’Aquin”, em Actualité de la pensée médiévale, recueil d’articles édités par J. Follon et
J. McEvoy, Louvain-a-Neuve, Éditions de l’Institut Supérieur de Philosophie, Louvain-
Paris, Éditions Peeters, 1994, pp. 247-267.
195 - Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 6, 1106b 36; III, 6, 1113a 22-33; IV, 14, 1128a 31;
X, 5, 1176a 9-24.
202 - Para uma análise mais detalhada da teoria da escravidão em Aristóteles, permiti-
mo-nos remeter ao nosso trabalho “Psicología de la libertad política en Aristóteles”, em
Revista Analogía Filosófica (México), nº 1 (1997), pp. 167-185.
203 - Xenofonte, Memorabilia, I, 5, 5-6 e IV, 5, 2-5.
204 - Aristóteles, Política, 1254a 14-17.
205 - Cf. Chadwick, H., Christian Doctrine, em The Cambridge History of Medieval Po-
litical Thought, pp. 15-16.
206 - Idem.