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DUNKER, C. I. L.

, RAMIREZ, Heroíza Aragão O Envólucro do Corpo - um estudo em


psicossomática In: III Congresso Nacional de Psicanálise da Unifersidade Federal do Ceará,
2005, Fortaleza. Anais do III Congresso Nacional de Psicanálise da Unifersidade Federal
do Ceará. , 2005. v.1. p.1 - 1

O Corte e o Corpo
Lesões de Órgão e Intervenções Corporais

Heloísa Helena Aragão e Ramirez


Christian Ingo Lenz Dunker

A partir do trabalho de pesquisa que vem acontecendo na Rede Clínica de


Psicossomática temos nos deparado com diferentes modos de relação do sujeito com a
lesão no corpo. Na bibliografia analítica encontramos esta categoria como uma espécie
de ponto limite da investigação psicossomática. A lesão de órgão é uma categoria que
possui um valor etiológico e diagnóstico nos textos psicanalíticos, mas nos surpreende
como ela foi tão pouco estudada pelos próprios psicanalistas, que em geral se
conformam com sua descrição médica, como se a pudéssemos usar sem mediação ao
nosso próprio campo.
Foi neste contexto que surgiu a idéia de investigar o estatuto da lesão de órgão, tal
como se mostra em certos fenômenos psicossomáticos, comparando-o com a lesão de
órgão que decorre de manipulações e intervenções intencionais sobre o corpo, tal como
encontramos em práticas como a suspensão, o cutting, a tatuagem e a body art.
Comecemos pelo caso de um jovem que pode ser apresentado como um portador
contumaz de lesões corporais:
“ cabelos longos e trançados, nove piercings espalhados pelo corpo, um punch na
orelha direita, cinco tatuagens, um branding na perna esquerda, uma escarificação
na coxa direita, alargadores nos dois lóbulos das orelhas, além de ser o primeiro a
suspender-se pelo joelho no nordeste”
No depoimento do jovem, retirado de um site sobre intervenções voluntárias do
corpo, ele explica que é uma questão estética, como afiar os dentes, bifurcar a língua e

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DUNKER, C. I. L., RAMIREZ, Heroíza Aragão O Envólucro do Corpo - um estudo em
psicossomática In: III Congresso Nacional de Psicanálise da Unifersidade Federal do Ceará,
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dilatar o lóbulo da orelha, outras das novas tendências corporais.


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“A adrenalina é altíssima, o tempo parece passar mais rápido, é divertido”
Sobre o fato de suspender o próprio corpo, preso em anzóis que perfuram sua pele,
ele diz que é uma prática milenar surgida entre indígenas norte-americanos. Naquele
tempo
só os homens podiam suspender-se num ritual pelo qual ofereciam o seu sangue, dor e
sofrimento à mãe Terra. Às mulheres era vedada a prática, já que elas prestavam sua
homenagem na menstruação e no parto.
O fenômeno social dos grupos de suspensão e intervenção sobre o corpo é
freqüentemente interpretado como vanguardismo ou rebeldia juvenil. Como se o que
levasse a transformar o próprio corpo se reduzisse ao apelo de inscrição social. Para
alguns se trata “do ressurgimento de práticas milenares, de rituais baseados no prazer e
na dor, de experiências estéticas radicais que questionam inclusive o sentido da arte”
(Cesar1). A suspensão:
“começa com perfurações leves, por meio de desenhos e agulhas, até que no final
as pessoas aparecem penduradas por anzóis de pescar tubarões, ganchos de
açougueiro... Quem se submete à prática adquire outra forma, outra consciência e
uma outra realidade para o seu corpo, relacionando-se consigo mesmo de forma
diferente2”.
Ao nos depararmos com imagens impactantes de corpos suspensos no ar elevados
por ganchos de ferro presos à pele, tal qual uma “libra de carne” exposta, como se, nas
vitrines de um açougue, se é tomado pelo horror da imagem da carne viva. Angústia
1 César, João Batista, Transgressão ou Arte? Comunicação Eletrônica.
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/dez2001/unihoje_ju169pag04.html
2Depoimento: “A semana que antecedia a Suspensão vinha com muita ansiedade e um
ligeiro medo que persistia em andar ao meu lado. Por não saber minha reação ao
“voar”, não queria muita gente no dia e aspoucas pessoas que eu convidara,
recusaram o convite, alegando que não iriam suportar!!! Até o primeiro
gancho ser atravessado nas minhas costas. Ao todo foram quatro lindos ganchos... Eu
particularmente nãogostei muito da parte das perfurações. Então, chega a hora e tudo
depende única e exclusivamente de mim...Como um suicídio mesmo. Parcialmente

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suspenso, só precisava tirar os meus pés do chão e pronto: estariavoando. Com a


impressão que minhas costas iriam rasgar, depois de um certo tempo, estava no ar...
Suspenso... “Livre”.Meu corpo balançava bastante, e por incrível que possa parecer, a
dor acabou!!!
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semelhante a que senti, quando acompanhando a uma consulta médica me deparei com
um corpo inteiro recoberto por placas avermelhadas e escamosas de uma psoríase
gravíssima. Fiz então uma primeira aproximação dentre aquilo que é da ordem da
manifestação no corpo (psoríase) com a intervenção no corpo (suspensão). Observe-
se que o fenômeno visual é o mesmo, nada nos impede de imaginar uma próxima forma
de intervenção corporal baseada na escarificação completa do corpo, produzindo assim
uma mimese perfeita do fenômeno da psoríase. O que dizer então desta mulher que
literalmente transformou-se na imagem mimética de uma vaca, reproduzindo suas
manchas, pretas e brancas ao longo da superfície completa de sua pele ? Uma forma de
vitiligo experimental? Vitiligo voluntário? É claro que se poderia distinguir o fenômeno
pela sua causalidade etiológica diferencial e aos olhos de um bom dermatologista a
diferença seria facilmente reconhecível. Mas aqui também um psicanalista reconheceria
a diferença pela posição subjetiva distinta diante dos dois fenômenos. Há ainda uma
oposição entre as formas de gozo que se realizam na devolução ao sujeito de seu efeito
de imagem. As formações dermatológicas são feitas para esconder, as intervenções
sobre o corpo para mostrar.
A lição freudiana elementar sobre a gramática das pulsões nos ensina a procurar
neste tipo de oposição a identificação que articula a passividade com a atividade da
pulsão. Aprendemos com Lacan que este ponto de transposição da pulsão tem a
estrutura de um corte, uma punção (< >). Todavia se tratam de sujeitos diferentes e é
essa diferença que nos interessa inicialmente. A observação clínica superficial sugere
uma primeira regularidade curiosa: pacientes acometidos por fenômenos
psicossomáticos de tipo dermatológico raramente incorrem em intervenções corporais
irreversíveis. Segundo nossa hipótese é possível que a relação reversa se verifique
também, ou seja, nos praticantes de manipulações corporais encontraremos pouca ou
nenhuma história de manifestações dermatológicas. Paola Miele3, observa que essas
intervenções no corpo se impõem como umanecessidade, como uma tentativa de

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estabilizar uma forma que oscila no próprio corpo e é 3 Mieli, Paola, Sobre as
Manifestações irreversíveis do corpo e outros texto psicanalíticos, 2002, Ed. Contra
Capa.onte de perturbação. Ou seja, trata se sempre de um corte sobre o corpo que é
realizado de forma ativa, interrompendo e invertendo uma forma passiva de sofrimento
ou insatisfação.
“No meu caso, recorro a esse tipo de coisa quando eu estou com a mente meio
desorganizada”; “Muita gente vai ao salão de beleza, mas quando me sinto meio
mal vou ao estúdio pra me sentir melhor e faço alguma mudança. Ajuda por fora e
por dentro.”4.
Essa mesma autora diz que as intervenções irreversíveis no corpo acontecem por
meio de cortes que levam à constituição de uma marca. Esta inscrição pode funcionar
como um apagamento ou como um marco. Landmark, é o nome dado por ela para dizer
da invocação do traço:
“a procura de um corte simbólico, que dá forma definida a um contorno flutuante,
e envolve a suspensão de um olhar que torna sua própria forma vã.”
Mieli postula que essas marcas (Landmarks) dizem respeito à urgência de uma
inscrição simbólica representativa, uma realização em ato, de um traço da função
paterna. O paradoxo desta estratégia de re-alienação é que ao se subjetivar em uma
forma narcísicosocial esta identificação fracassa em seu propósito de provocar um corte
irreversível. Isso explica porque as intervenções tendem a se multiplicar. É um saber
corrente entre os praticantes de cirurgias plásticas recorrentes e da prática da tatuagem
que se deve ponderar muito, principalmente, em fazer a segunda intervenção, mais do
que na primeira. Isso porque a presença de uma segunda intervenção costuma
desencadear uma série que muitas vezes leva a conseqüências trágicas. Isso corrobora a
tese de Mieli pois a incidência do traço paterno deve ser, por estrutura, única; sua
multiplicação corrompe sua função. Assim como na teoria lacaniana do traço, a sua
repetição o transforma em significante e como tal exposto a imaginarização de sua
significância. Com o fenômeno psicossomático parece acontecer algo semelhante, mas
inverso à intervenção voluntária no corpo. Em autores como Guir 5 encontramos a idéia
recorrente de 4 Depoimentos recolhidos na Internet.
http://www.aeso.br/oxente/anteriores/21/vinteeum_comportamento_experiencias.php.
5 Guir, J. – Psicosomática e Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1989.

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que o paciente psicossomático busca traços de identificação com o pai, em uma espécie
de recomposição artificial do traço-unário. A lesão psicossomática funcionaria como
este traço, como um “significante, não de uma presença, mas de uma ausência apagada”
(Lacan, Seminário 9, 1961-1962). Isso levou a uma aproximação clínica entre a
formação psicossomática e um tipo de marca que passa necessariamente pelo ponto de
apagamento. Uma marca de uma história posta fora da memória. Se as intervenções
sobre o corpo são da ordem no número contável, as formações psicossomáticas são da
ordem do número incontável. Essa distinção hipotética poderia ser acrescentada à tese
de Lacan sobre a formação psicossomática, expressa na Conferência de Genebra: “o
corpo se deixa escrever alguma coisa que é da ordem do número”6. A relação entre o
número contável e o número incontável traz imediatamente um paralelo com as duas
formas de gozo distintas por Lacan em sua teoria da sexuação. O gozo feminino é não
todo, e entendemos que sua principal propriedade decorrente não reside no fato dele ser
indizível, mas dele não ser contável. Inversamente o gozo fálico se exprime
justamente pela sua função de discriminação e significantização contável do gozo. Em
ambos o sujeito se inscreve como zero, mas na função ordinal este zero é contável e na
função cardinal é incontável (transfinito).
Aqui poderíamos introduzir uma outra regularidade curiosa acerca das práticas de
intervenção sobre o corpo. A modalidade concernente à suspensão, onde o corte ocorre
principalmente na forma de furos, é virtualmente praticada por homens. Na modalidade
chamada de cutting, o sujeito corta-se com lâminas e a visão do sangue escorrendo
sobre a pela geralmente ocupa uma função erótica característica, há uma absoluta
predominância de mulheres. É uma insistência empírica, os homens se furam e apreciam
suas ereções corporais, as mulheres se cortam e apreciam a sua própria detumescência.
A incidência da cicatriz também é diferencial, no homem cumpre a função mais ou
menos simbólica de testemunho da operação, na mulher, ao contrário, quando as
cicatrizes começam a se tornar visíveis demais, a prática é questionada passando então
ao estatuto de um sintoma. Note-se bem o sintoma está nas cicatrizes, não nos cortes. As
cicatrizes são uma função contável do corte, uma maneira de torná-lo fálico, por assim
dizer. 6 Lacan, J. - Conferência de Genebra, (1975), in Opção Lacaniana, 1998, n°23, 5.

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Se esta separação entre corte contável e o corte incontável é encontrada nas


intervenções corporais, e se esta separação reflete modos distintos de inscrição do gozo,
não se poderia verificá-la também nas formações psicossomáticas? Não seria a
passagem de uma a outra forma de corte algo que se deveria procurar na intervenção
analítica nestes casos?
Um breve fragmento clínico pode ilustrar esta passagem. Trata-se de uma paciente
acometida pela psoríase que associa o início da doença ao momento em que seu pai
abandona, subitamente, a família. Como muitos outros casos a lembrança de uma
situação traumática na origem ou nas recidivas dos sintomas não é feita sem grande
dificuldade pela paciente. Ocorre que esta lembrança funciona como uma espécie de
bloco isolado, fazendo uma lembrança que não é encobridora, no sentido freudiano. É
uma lembrança de um fato não acontecido, uma memória da ausência, posto que não
integrado subjetivamente. Mas como esforço do tratamento analítico esta paciente
começa a recuperar outros significantes ligados à série paterna. Este trabalho a leva ao
reconhecimento de que ela possui uma outra lembrança do pai, uma lembrança, aliás,
esquecida. Trata-se de um pequeno colar que sustenta a imagem de uma santa. Como é
comum acontecer, nos primeiros movimentos do tratamento os sintomas de psoríase
desapareceram. Ocorre que depois de algum tempo ela perde o colar dado pelo pai.
Alguns dias depois surge uma nova formação da psoríase. Em um lugar do corpo no
qual ela jamais havia se manifestado antes: em volta de seu pescoço, recobrindo
exatamente o formato do colar desaparecido. À par da relação mais ou menos evidente
entre a formação psicossomática e a filiação paterna, o tipo específico de identificação e
o trabalho do simbólico envolvido nesta operação, o que pretendemos é chamar a
atenção para um outro aspecto desta seqüência clínica. O fato importante é que esta
aparição das escarificações faz número contável. Ela distingue-se de todas anteriores
que se inscreviam apenas na gramática da ausência ou presença e apontavam para o
retorno do mesmo, como tal incontável. Amancha avermelhada sobre a superfície do
pescoço tem um nome, é um colar. Ela seria então abordável como uma intervenção
voluntária do corpo?

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