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Ficha técnica
Diagramação
Letícia Oenning
Revisão do original
Juliano Adrian
Capa
Izabela Drozdowska-Broering sobre imagem de Beata Ewa Białecka, Must
Have, 2015, óleo sob tela e bordado.
Conselho Editorial
Geovana Quinalha de Oliveira (UFMS)
Renata de Felippe (UFSM)
Clélia Mello (UFSC)
Gabriela Falcão (UFPE)
Daniel Serravalle de Sá (UFSC)
E-book (PDF)
ISBN 978-65-87206-46-2
CDU: 82.01
MEMÓRIAS DO CORPO
1ª edição
Florianópolis
UFSC
2020
Sumário
Apresentação
Izabela Drozdowska-Broering e Marcio Markendorf...........................................06
Memórias do corpo na escrita autobiográfica de sujeitos vulneráveis
Roseli Boschilia .................................................................................................... 11
Cicatrizes e memórias: as marcas da violência em The Dew Breaker, de Edwidge
Danticat
Leila Assumpção Harris e Priscilla da Silva Figueiredo ......................................... 33
Verso em viva voz: três preceitos wagnerianos
André Fiorussi ...................................................................................................... 46
Literatura infantil, ciência e imaginação sob gestão no Estado Novo: CNLI e
INPE
Celdon Fritzen e Gladir da Silva Cabral ................................................................ 58
Strobo. Corpo e espaço entre êxtase e esquecimento
Izabela Drozdowska-Broering ....................................................................................... 75
Espaço, objetos e afetos: uma fenomenologia das coisas
José Cláudio Siqueira Castanheira ................................................................................. 87
"A palavra sopra-me da boca feito flama": a poesia de Paula Ludwig
Maria Aparecida Barbosa.............................................................................................. 104
Do corpo ao corpus: Jorge Amado bio-grafado
Marina Siqueira Drey e Tânia Regina Oliveira Ramos ......................................... 112
Das regularidades às rupturas discursivas das corporalidades audiovisuais no filme
Coringa (2019)
Patrícia de Oliveira Iuva ..................................................................................... 124
A poesia de Antonella Anedda: “Il mondo che il linguaggio ci permette di
scrutare nasce dal dettaglio”
Patricia Peterle.................................................................................................... 148
A política e a estética do cotidiano no corpo e na voz
Pedro de Souza .................................................................................................. 160
Eros e Tânatos: o feminicídio no século XIX em D. Narcisa de Villar, de Ana
Luísa de Azevedo Castro
Rosana Cássia dos Santos ................................................................................... 175
Corpos e memória: um lugar para chamar de seu
Tânia Regina Oliveira Ramos ............................................................................. 188
Voz e corpo no arquivo musical
TerezaVirginia de Almeida ................................................................................. 199
Notas biográficas........................................................................................... 209
Apresentação
Izabela Drozdowska-Broering
Marcio Markendorf
10
Memórias do corpo na escrita autobiográfica de sujeitos
vulneráveis
Introdução
11
respeito aos acontecimentos, personagens e lugares, foram selecionados fragmentos
de narrativas nas quais afloraram lembranças mediadas por representações
associadas ao corpo, tais como gestos, sensações físicas, sentimentos e emoções.
12
de que os reis tinham o miraculoso poder de curar pessoas portadoras de
escrófulas2, através do simples toque das mãos.
2
Afecção na pele provocada pelo aumento dos gânglios linfáticos, normalmente associada à
tuberculose.
13
Braudel e, depois, Jacques Le Goff, Emanuel Le Roy Ladurie e Roger Chartier, que,
embora tenham herdado o gosto pelos temas ligados às massas anônimas, aos
grupos populares e às minorias, procuraram ultrapassar os limites conceituais da
história das mentalidades, adotando uma concepção da história como narrativa e
apropriando-se de conceitos como práticas e representações, caros a uma nova
abordagem que ficou conhecida como nova história cultural ou “nova história”.
14
mudança de percepção em relação ao “papel ativo da linguagem e das estruturas
narrativas na criação e descrição da realidade histórica” (AURELL, 2014, p. 344).
Como resultado desta nova percepção, pode-se referir como exemplo não só
os estudos realizados por Carlo Ginzburg, sobre Menocchio (1976), e Natalie
Davis, que se debruçou sobre a trajetória de Martin Guerre (1983), mas também as
reflexões de Edward Thompson (1979), preocupado com as experiências das
classes trabalhadoras, ou ainda de Robert Darnton (1986), que procurou
reconstituir modos de pensar e viver de camponeses e artesãos franceses no século
XVIII.
Como observa Beatriz Sarlo (2007, p. 15), a partir dessas mudanças, “o olhar
de muitos historiadores e cientistas sociais, inspirados no etnográfico deslocou-se
para a bruxaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o campesinato, as estruturas
do cotidiano, buscando o detalhe excepcional”. Ou seja, esse redirecionamento do
olhar dos pesquisadores sobre novos objetos de pesquisa colocou em cena sujeitos
anteriormente ignorados pela historiografia tradicional, que, via de regra, se
dedicava ao estudo de eventos coletivos ou de personagens vinculados aos espaços
de poder.
3
Em 1835, Pierre Rivière matou, a golpes de foice, a mãe, a irmã e o irmão. Os testemunhos e o
surpreendente relato desse jovem durante o processo de seu julgamento foram analisados por
uma equipe de pesquisadores, coordenada por Michel Foucault (1982).
4
Condenado à morte no final do século XIX, Emilie Noguier escreveu, a pedido do médico do
presídio onde ele cumpriu pena, um diário intitulado Memórias de um detento e uma autobiografia
que tem como título Lembranças de um pardal ou as confidências de um prisioneiro (ARTIÈRES, 1998).
15
em relação a sujeitos anteriormente ignorados pelas ciências humanas, ou seja,
pessoas marcadas por vidas precárias, conforme definição de Judith Butler (2011).
16
particularidade da história oral em relação a documentação escrita é que na sua
produção, outras linguagens, além da narrativa, podem fornecer informações
esclarecedoras para a análise do discurso. Neste rol, merecem destaque não só os
movimentos do corpo, das mãos em particular, as expressões faciais, gestos e
olhares, mas, sobretudo, manifestações de emoção e ressentimento, muitas vezes
representadas pelo silêncio5. Como bem observa Leonor Arfuch, “contar a história
de uma vida é dar vida a essa história” (ARFUCH, 2010, p. 42).
5
Como Michael Pollak (1989), alerta, o silêncio ou a dificuldade de narrar não significam
necessariamente esquecimento. Muitas vezes, o silêncio pode ser entendido como sinal de
resistência, sobretudo quando a experiência do narrador está atravessada por memórias
traumáticas.
17
“Como um novo Prometheu”
18
Originário de uma aldeia “situada numa praia do Minho” e filho de
pescadores, Francisco relata que abandonou a escola “quase aos dez [anos], sem
saber assinar o nome ou soletrar duas palavras!” (AMORIM, 1875, p. 31). Pouco
tempo depois, ele e o irmão foram convencidos por “aliciadores [que] inundavam
[...] as províncias do norte do reino, agarrando gente por todos os meios possíveis”
(AMORIM, apud CARVALHO, 1998, p. 21) a viajar para o Brasil, onde ambos
foram submetidos ao regime de trabalho análogo ao de escravo, à época mais
conhecido como “escravidão branca”.
19
de contratar a mão de obra oferecida pelo capitão, ele faz o seguinte relato:
“Apenas desembarcamos, formaram-nos em turmas no cais da alfândega, para que
os negociantes da cidade viessem escolher dentre nós os que mais lhe agradassem”
(AMORIM, 1875, p. 35).
20
brusca partida do irmão, mas, sobretudo, o sentimento de dor de quem, de repente,
se vê entregue à própria sorte, num ambiente completamente desconhecido e
hostil.
Por fim, de entre os compradores que me rodeavam, saiu um, vestido de
pardo, e acariciou-me, pondo-me a mão no rosto, e convidando-me a
seguí-lo. Então, rebentaram-me as lágrimas com violência; até ali
suportara resignadamente a desgraça, que mal apreciava; tanto, porém,
que me chegou a vez de partir, como os outros, sem saber para onde,
chorei! (AMORIM, 1875, p. 37, sem grifo no original).
De acordo com sua narrativa, o interesse pela leitura, hábito que, à primeira
vista, poderia ser caracterizado como uma iniciativa individual, fazia parte do
cotidiano de muitos caixeiros:
21
No Pará era raro, naquele tempo, o patrão que permitia aos seus
caixeiros ocuparem na leitura as horas vagas; mas o fruto proibido aguça
o apetite; a tirania inspira naturalmente o desejo de resistência; e por isso
era também raro o caixeiro que não se entregava com avidez a leituras
clandestinas. E a isso talvez deva aquela cidade o grande número de
mancebos ilustrados que hoje dirigem o seu comércio (AMORIM, 1875,
p. 41).
22
Todos podem ir correndo,/ Em procura de outro céu;
A todos o mundo é livre;/ Todos vão; fico só eu,
Nesta rocha encadeiado,/ Como um novo Prometheu! (AMORIM,
1875, p. 86-9).
O difícil regresso
23
guerra (1914-1918), quando a Alemanha apresentou um déficit significativo da sua
força laboral, em razão da maior parte dos civis terem se alistado no exército
(SHEPHARD, 2012).
Shephard (2012) aponta que nos primeiros meses da década de 1940, saíram
da Polônia, com destino à Alemanha, cerca de dez trens por dia e cada um deles
levava, em média, mil trabalhadores. Apesar da imprecisão dessas cifras, cabe
lembrar que ao final da guerra 1,6 milhão poloneses foram repatriados para o
território polonês, sem falar daqueles que morreram em solo alemão, vítimas dos
bombardeios, das epidemias e de outras doenças e, ainda, de um terceiro grupo de
deslocados que, diante das incertezas de retornar aos seus locais de origem,
destruídos pela guerra, preferiu emigrar para outros países, especialmente da
América.
7
A partir desse período, Bolka passou a residir em Curitiba (capital do estado do Paraná), cidade
onde a família do seu marido - Venceslau Kolwalczuk -, estava radicada desde o final do século
XIX.
24
A narrativa acerca da experiência de deslocamento protagonizada por Bolka
foi registrada em uma longa entrevista, realizada a partir da metodologia da História
oral, em 2006.8
25
Ao narrar o reencontro com a família, Bolka, longe de explorar as memórias
traumáticas que experimentou durante o período de guerra ou mesmo o sentimento
de dor e de saudade que sentiu durante o tempo que permaneceu longe de casa,
seleciona especialmente dois aspectos: a emoção de retornar à terra natal e, ao
mesmo tempo, a dificuldade de se reconhecer como integrante daquele grupo
familiar.
Nós chegamos lá, sabe, eu já vai conhecendo: „Mas esta casa já tá nova,
essa tá nova, a minha também, já foi, sabe, bombardeada, sabe,
modificada mas no mesmo lugar, o mesmo estilo. Entramos, sabe, e
portão não tava fechado, entramos lá perto do poço, sabe, e eu dizendo
para mim: „ Olha Bolka, você tem que ser forte, tua mãe já tem 76
anos [...] a tua mãe está com 76 anos, você não pode assustar, porque ela
pode...‟ [...] Ela tava assim de lenço assim amarrado atrás, branco [...]
Meu Deus do céu, eu achava que eu não ia agüentar, sabe, pegar ela com
jeitinho, mas não dá, não adianta! Mas quando eu gritei: „Mama! [...],
ainda consegui pegar ela nos braços e ela quase desmaiou
(KOLWALCZUK, 2006, sem grifo no original).
26
No exercício de ativar o passado no presente, conforme observa Ricoeur
(1999, p. 16), Bolka encontra dificuldades para reconhecer vestígios de identificação
afetiva com o grupo familiar do qual ela ficou afastada durante tanto tempo.
De acordo com Jelin (2002, p. 2), “toda memoria es uma reconstrucción más
que un recuerdo” e nesse sentido, é preciso estar atento para outras chaves de
ativação das memórias que são de caráter expressivo ou performativo. Para Bolka,
no exercício de reconstrução de lembranças, o sentimento de pertença só emerge
em sua memória, a partir do momento em que alguns gestos passam a ser
“ritualisticamente compartilhados” (CATROGA, 2001). Assim, um gesto quase
involuntário de sua mãe é suficiente para que ela, finalmente, encontre traços
capazes de recompor os espaços vazios provocados pelo esquecimento, conforme
ela narra:
27
para o coração] ela me largou, me pegou assim [faz gestos de
demonstração, acompanhando a fala] e foi embora. E, eu, nesse
instante, que eu reconheci pelos toques, sabe, reconheci que era a minha
mãe [...] Tem que ter um gesto, uma coisa que te lembra, sabe
(KOLWALCZUK, 2006).
Considerações finais
28
do deslocamento forçado, sem dúvida, interferiu no modo de lembrar. As
rememorações acerca dos sentimentos e as representações sobre o passado,
construídas em uma etapa temporal na qual os narradores já haviam chegado à
maturidade certamente sofreram distorções, tendo em vista a impossibilidade das
experiências do passado serem memorizadas e recuperadas na sua integridade.
Referências:
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Internacional, 1875.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio
de Janeiro. EdUERJ, 2010.
ARTIÉRES, Phillipe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
CPDOC, n.21, 1998.
29
AURELL, Jaume. Textos autobiográficos como fontes historiográficas: relendo
Fernand Braudel e Anne Kriege. Tradução Wilton C. L. Silva. História (São Paulo)
História (São Paulo) v.33, n.1,p.340-364,jan./jun.2014.
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Paulo Cesar Gonçalves; Pablo Oller Mont Serrath (orgs.). Diásporas Globais e
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BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar.
São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
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CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
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FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI. Tradução de Maria Lucia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero: um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
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30
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Crítica, 1979.
31
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO,
Ciro F. ; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1987. p. 127- 162.
32
Cicatrizes e memórias: as marcas da violência em The Dew
Breaker, de Edwidge Danticat
Pense no Haiti/
Reze pelo Haiti/
O Haiti é aqui/
O Haiti não é aqui
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
33
interpreting life narratives (2001), as críticas estadunidenses Sidonie Smith e Júlia
Watson comentam: "se pensarmos nos atos de memória não como uma atividade
que pertença inteiramente ao âmbito privado, mas como uma atividade situada nas
políticas de cultura, podemos reconhecer em que grau a memória é uma atividade
coletiva" (SMITH; WATSON, 2010, p. 25)9. A memória anticolonial, ou seja, a que
resiste ao apagamento colonial/imperialista, é antes de tudo coletiva porque está
engajada no projeto de resistência do qual fazem parte as práticas decoloniais.
9
A não ser pelas traduções identificadas nas referências bibliográficas, todas as outras são de
nossa autoria.
34
No ensaio “Daughters of Memory”, que faz parte do livro Create Dangerously,
publicado em 2010, Danticat afirma:
35
relevância de autoras caribenhas contemporâneas tais como Julia Alvarez, Achy
Obejas, Edwidge Danticat, entre outras, refletindo sobre o papel que elas exercem
como
as novas arqueólogas de um sítio histórico ao qual daríamos o nome de
"amnésia". Porta-vozes de uma maioria que é, todavia marginalizada em
culturas ultrapassadas, patriarcalmente regulamentadas, elas buscam
elucidar as variadas vidas de mulheres que se passam entre as paredes
confinantes de suas identidades nacionais, identidades nacionais que são,
atualmente, inteiramente definidas como masculinas (CHANCY, 2012,
xxii)
36
problematizando noções de identidade nacional e às vezes produzindo
versões problemáticas de tais identidades variadas (CHANCY, 20012,
xxxiii).
37
escolhido por Duvalier (Papa Doc) para designar a milícia voluntária que
aterrorizou o Haiti durante a ditatura de trinta anos, liderada por ele e emais tarde
seu filho (Baby Doc). Comentando sua escolha do título, Danticat fala do seu
fascínio pelo uso de uma expressão tão poética, chouket laroze, para descrever uma
figura tão desprezível, e de sua decisão de buscar a expressão mais serena possível
ao traduzi-la para o inglês. 12 Em portugês, o significado da expressão (literalmente
aquele que quebra o orvalho) torna-se mais claro através da fala de uma das
personagens da obra. Beatrice Saint Fort, uma das vítimas de tortura, ao relembrar
as figuras sinistras: “Eles invadiam sua casa. Quase sempre durante a noite. Mas
muitas vezes também chegavam pouco antes do amanhecer, conforme o orvalho
cobria as folhas, e eles levavam você” (DANTICAT, 2004, p.131).
12
https://www.bookbrowse.com/author_interviews/full/index.cfm/author_number/1022/edwi
dge-danticat, Acesso em 24/08/2017.
38
(ARMENDARIZ, 2010, p. 34). Questionada sobre sua escolha em relação à
estrutura do livro, Danticat diz que seu objetivo foi „abrir‟ a história, fazendo com
que cada personagem introduzido ou incidente narrado, crie novos significados,
adicionando novas „camadas‟ à figura central do ex-torturador, que é visto a partir
de vários ângulos.13 Em outro contexto, afirma também que sua intenção não foi
escrever um romance ou uma coletânea de contos, mas “algo entre [os dois tipos de
ficção]” (DANTICAT: 2010a, p. 62; nossa ênfase). Observamos então a
organicidade entre a estrutura e a temática da obra. A estratégia narrativa escolhida
reflete a condição intersticial dos personagens que habitam esse mundo ficcional,
onde as ambivalências e mediações que fazem parte de uma existência hifenizada
são complicadas pelo legado de violência que carregam consigo.
13
https://www.bookbrowse.com/author_interviews/full/index.cfm/author_number/1022/edwi
dge-danticat, Acesso em 24/08/2017.
39
Estado, ou outros tipos de estado de exceção vítimas figuram como personagens
centrais e algozes como secundários. Ao discorrer sobre as estratégias narrativas
que adota, usando histórias interligadas, com as histórias das vítimas girando em
torno da figura central de um ex-torturador, Danticat explica:
Por um longo tempo essa figura foi um fantasma, o centro da vida dessas
pessoas – uma espécia de machete, o matador de suas memórias,
atravessando seus caminhos. Então decidi lhes dar voz na história. E é
através delas, através dessas pessoas diferentes que tiveram encontros
terríveis com o personagem central, The Dew Breaker, e através dos seus
olhares que eu quis revelá-lo14.
40
possibilidade redenção, ele encontra conforto na esperança de que sua filha seja o
símbolo de uma nova vida, uma continuação dele, mas sem seu fardo.
Carol Boyce Davies argumenta que em The Dew Breaker, a metáfora central
é a cicatriz que a filha talha na escultura que representa seu pai e que marca não só
o rosto dele, mas toda a família e também a nação haitiana (DAVIES, 2010, p. 754)
No livro, a personificação da violência ocorre principalmente através da figura do
chouquèt laroze/ dew breaker, representada pelo barbeiro, pai de Ka. No entanto, as
inúmeras referências ao guarda da prisão, ao assassino, ao torturador, que podem
ou não ser a mesma pessoa assim como o fato de o barbeiro permanecer anônimo
(apesar de ser protagonista em pelo menos duas histórias) reforçam a sensação de
uma violência generalizada e incontida.
41
se passa durante uma tarde na ocasião em que Beatrice, às vésperas de sua
aposentadoria, é entrevistada por Aline Cajuste, uma jovem jornalista estagiária da
revista Haitian American Weekly. No decorrer da entrevista, Beatrice revela que foi
vítima de tortura no Haiti, não por estar envolvida em política, mas porque recusou
o convite de um tonton-macoute.
42
ainda pesa sobre seu corpo mesmo que a violência física tenha cessado há bastante
tempo. As cicatrizes não afetam apenas sua mente e as solas de seus pés. O trauma
toma conta de todo seu ser.
43
se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”.
(SARLO, 2007, p. 119, ênfase da autora). Logo, quando a realidade pretérita é
intolerável, a literatura, fluida que é, escorre por entre as brechas abertas pela
distância científica da historiografia e pela proximidade experimental da memória
para que as feridas possam, enfim, começar a ser tratadas.
Referências
ARMENDARIZ, Aitor Ilbarrola. “The Language of Wounds and Scars”. In: Journal
of English Studies, Vol. 8 (2010), 23-56.
CHANCY, Myriam. From Sugar to Revolution: women’s vision of Haiti, Cuba, and the
Dominican Republic. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 2012.
DANTICAT, Edwidge. The Dew Breaker. New York: Alfred A Knopf, 2004.
44
DANTICAT, Edwidge. Create Dangerously: the Immigrant Artist at Work.
Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2010.
DAVIES, Carole Boyce. Black Women, Writing and Identity: Migrations of the
Subject. London, New York: Routledge, 1994.
FALQUINA, Silvia Martínez. “Postcolonial Trauma Theory and the Short Story
Cycle: Edwidge Danticat‟s The Dew Breaker”. In: Revista de Filologia Inglesa 35 (2014):
171-192.
HUA, Ann. “Diaspora and Cultural Memory”. In: AGNEW, Vijay (Ed). Diaspora,
Memory, and Identity: A Search for Home. Toronto: University of Toronto Press, 2008,
p. 191.
LALEAU, Marc. “Haiti‟s Poverty Stirs Nostalgia for Old Ghosts”. The New
York Times. 23 de março de 2008. Disponível em
https://www.nytimes.com/2008/03/23/world/americas/23haiti.html.
Acesso em 30/de junho de 2020.
SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Reading Autobiography: a guide for interpreting life
narratives. 2nd. ed. Minneapolis: University of Minnesota Press. 2010.
SPIVAK, Gayatri. Chakravorty. Questions of Multi-culturalism. In: HARASYM,
Sarah, ed. The Post-Colonial Critic: interviews, strategies, dialogues with Gayatri
Chakravorty Spivak. New York: Routledge, 1990, p. 59-66.
45
Verso em viva voz: três preceitos wagnerianos15
46
possível farmacopeia é a terceira parte do tratado Ópera e drama (1852), em que
Richard Wagner oferece uma prescrição detalhada para a arte do drama musical,
indicando um caminho para que o poeta e o músico promovessem um encontro
pleno entre as palavras e os sons. O texto deve interessar aos que estudam a virada
musical da poesia simbolista e certos elementos aptos a figurar numa história do
verso moderno. Pode-se dizer que a proposição wagneriana de três preceitos
fundamentais para o verso – um principal, ligado ao ritmo, e dois derivados desse
primeiro, ligados à aliteração e à assonância – constitui uma das mais claras e
detalhadas exposições de que dispõe o estudioso da poesia simbolista para
reconhecer os modos de operação dessas escolhas e avaliar a própria historicidade
que se inscreve na música daquela poesia. O animismo fonético, o cratilismo
rimbaudiano, os ors mallarmaicos, os instrumentismos, as vozes veladas e os violons
de l’automne seriam alguns dos mistérios decimonônicos envolvidos com o
wagnerismo.
16
Ao longo deste texto, traduzo ou parafraseio trechos de Ópera e drama a partir da célebre
tradução inglesa de William Ashton Ellis (Opera and Drama, 1893). Consultei também a tradução
ao espanhol da terceira parte do tratado por Ilse T.M. de Brugger, publicada como livro
independente, sob o título de La poesía y la música en el drama del futuro (1952).
47
Quer dizer que esse alento que venceria o enrijecimento cadavérico, a
anquilose, o engessamento da língua, esse alento seria a música – e todo o resto era
mera literatura, como completaria Verlaine em sua “Arte Poética”, ou mero logos
desvocalizado, como diria Adriana Cavarero (2011). Recordemos também Mallarmé
(2010: 163), que escreve, em “Crise de vers”: “Ouvir o indiscutível raio – como
traços douram e dilaceram um meandro de melodias: ou a Música junta-se ao Verso
para formar, desde Wagner, a Poesia”17.
O impacto geral da obra de Wagner em seu tempo foi assim descrito por
Lacoue-Labarthe:
É difícil formar hoje uma ideia do choque que Wagner provocou, seja
para quem o admira ou para quem o desdenha. Foi, por toda a Europa,
um acontecimento; e se o wagnerismo – uma espécie de fenômeno de
massa da burguesia culta – se espalhou com tamanho vigor e rapidez, foi
devido não só ao talento do mestre para a propaganda ou ao zelo de seus
idólatras, mas também à súbita aparição daquilo que o século havia
tentado produzir desesperadamente desde os inícios do romantismo:
uma obra de “grande arte” na escala imputada a obras da arte grega, ou
mesmo na escala da grande arte cristã, foi então finalmente produzida, e
descobriu-se o segredo daquilo que Hegel chamava a “religião da arte”.
De fato, o que se fundou foi como que uma nova religião. (LACOUE-
LABARTHE, 1994, p. xix)
17
“Ouïr l‟indiscutable rayon – comme des traits dorent et déchirent un méandre de mélodies – ou
la Musique rejoint le Vers pour former, depuis Wagner, la Poésie” (MALLARMÉ, 1897, p. 244).
48
pública de Wagner – como músico, compositor, teórico, pensador e possivelmente
em qualquer papel que tenha desempenhado – foi muitas vezes agressiva e
controversa, de modo que hoje não resta uma vírgula sua que não tenha sido
contundentemente questionada, criticada, desmentida, desmascarada ou até
ridicularizada. Entre os ataques mais completos e efetivos contra Wagner podem-se
destacar dois livros de Nietzsche – O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, ambos de
1888 – e um de Adorno, cujo título em inglês é In Search of Wagner, de 1953. Até
mesmo Edouard Schuré, wagneriano inveterado, escreve esta polida ressalva em seu
panegírico a Wagner: “Como poeta e como músico, Wagner foi o mais universal
dos artistas; como homem e como pensador, foi o mais obstinado dos teutões, e
creio que seu germanismo exclusivista o fez às vezes injusto para com outras
nações como a França e a Itália” (1944, p. 16).
49
números, pela qual se destacavam as árias, os duetos e outras seções em que a
canção assume um amplo predomínio sobre os demais elementos. A crítica de
Wagner consiste, basicamente, em acusar os compositores de retalharem canções
populares tradicionais para obter a empatia do público, privando-o, no entanto, de
um contato com a verdadeira arte que estaria por detrás daquelas melodias. Para
Wagner, a ária reciclava as canções tradicionais, ceifando-lhes as palavras com que
haviam sido compostas e substituindo-as por quaisquer outras que fossem capazes
de fazer com que uma antiga melodia coubesse agora no tema da representação.
Para sustentar essa distinção, Wagner escreve que o povo é o solo que conserva
ainda as raízes da verdadeira arte e da verdadeira linguagem, sob uma camada de
neve que é a civilização; alegoriza assim a valorização romântica de uma arte
popular, coletiva e tradicional, que expressa coisas verdadeiras e naturais, contra
uma arte enganosa que se compraz em imitar essas formas naturais para agradar
plateias e patrões, dando ares de grandeza a coisas mesquinhas.
50
ritmos da poesia grega tenham correspondido, no tempo em que surgiram, a
aspectos não escritos da prática de que participavam, como os modos de
declamação, os gestos dos declamadores e, em muitos casos, o acompanhamento
musical. Ao apreendê-los dos registros escritos, a poesia moderna teria prescindido
dessas ligações fundamentais e adotado (ou mesmo inventado) um esquema
absolutamente artificial, sem profundidade histórica e sem correspondência alguma
com os ritmos e metros da linguagem realmente usada pelos homens antigos ou
modernos. Para Wagner, um verso alemão concebido como imitação da
inapreensível métrica grega provocaria um choque entre o sentimento e o
entendimento do ouvinte ou leitor: o sentimento o levaria a reconhecer uma frase
escrita em sua língua familiar, mas o entendimento teria que desempenhar a todo
momento a tarefa indigna de indicar ao sentimento um esquema métrico que lhe
era estranho. Wagner compara essa operação à de um pintor que, tendo desenhado
uma vaca que em nada se parece a uma vaca, precisasse escrever a seu lado, como
aviso aos espectadores – atenção, “isto é uma vaca” (1893, p. 241).
51
melodia rítmico-musical. Observe-se que, se a oposição com o verso vivo faz
pensar no verso escrito como verso morto, isto não significa que os únicos
exemplos de versos vivos sejam os versos de seus próprios libretos: também
haveriam sido vivos na antiguidade os versos dos poemas gregos, e seguiriam
vivendo os versos das canções populares de que ele falara na primeira parte do
tratado.
52
um número maior de acentos seja emitido em uma só expiração, enquanto um
profundo e doloroso sofrimento vai consumir todo o alento com sons menos
numerosos e mais prolongados”18 (1893, p. 257).
53
a um momento longínquo e idealizado em que a palavra teria sido criada por
reverberação de seu mais puro referente. Novamente, sua explicação é alegórica;
recorre a imagens da natureza para marcar sua visão orgânica de uma linguagem
original: a vogal é o sangue quente que circula pelo organismo da raiz; o povo é o
solo que conserva as raízes da verdadeira linguagem sob uma camada de neve que é
a civilização (1893, p. 265, 267).
54
poetas! Permiti-lhe ver vossa cara, a cara da palavra, e não as nádegas caídas, que
vais arrastando, frouxas e sem vida, na rima final de vosso discurso prosaico e que
ofereceis ao ouvido para contentá-lo” (1952, p. 41). Mas aí termina a preceituação
para o poeta libretista, e começa a primeira tarefa do músico, que é colorir com
timbres de instrumentos adequados as aliterações (orquestração) e, sobretudo,
revelar o parentesco de todas as vogais em tons (harmonia). O “drama do futuro”
seria, por fim, o resultado desse encontro entre o poeta e o músico.
A aliteração tem longa tradição na poesia em língua inglesa e alemã, mas não
nas línguas neolatinas, que historicamente privilegiaram a rima final como elemento
coesivo do aspecto sonoro dos versos19. Com Verlaine e os simbolistas, assume um
papel de destaque na poesia francesa, e logo passa a aparecer abundantemente em
português, italiano e espanhol como marcas de uma guinada musicalizante da
elocução e simbólica da invenção poética, constando também, vale lembrar, como
procedimento que abre caminho para a quebra de velhos padrões métricos em
favor de uma conformação rítmica que, para muitos autores, está na base do
desenvolvimento do moderno verso livre (cf., por exemplo, STEELE, 1990).
Parece seguro afirmar, nesse sentido, que os preceitos poéticos de Wagner tenham
afiançado a possibilidade de novos usos, paralelamente à preceptiva acadêmica. É
evidente, porém, que não se deve tomar o tratado de Wagner como “causa” (muito
menos como “causa única”) dessas mudanças. Caso aceitemos, como os poetas
mencionados, sua proposição de que a música era o alento capaz de revigorar o
corpo morto do idioma poético, devemos também considerar que a música
efetivamente soprada para dentro do verso não foi apenas a de Wagner, mas um
19
“More than most others, the Romance languages have neglected alliteration in favor of
assonance, the reason perhaps being that Italian, Spanish, and Portuguese poetry have
traditionally preferred short lines with vowel (often followed by consonant) echoes in the final
two syllables. Even though it is said that French poetry by the 17th century considered alliteration
“mauvaise” [...], the French classical alexandrine did make some use of it […]. But most French
poets from Victor Hugo to Saint-John Perse have found other devices more appealing to the ear”
(Adams & Cable, 2016: 8).
55
conjunto imenso de manifestações diversas, gravadas desigualmente na memória do
corpo de cada poeta: pensemos no emblemático Cruz e Sousa de Leminski (2013),
que aliterava ao violão como insuspeito bluesman do Desterro, soprando “soluços ao
luar, choros ao vento” (1900, p. 58), “afflicto, afflicto, amargamente afflicto...”
(1900, p. 25).
Referências
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais. Filosofia da expressão vocal. Tr. Flavio Terrigno
Barbeitas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.
CRUZ E SOUSA. Faróis. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Profissional,
1998.
ADAMS, P.G.; CABLE, T. Alliteration. In GREENE, Roland; CUSHMAN,
Stephen (eds.). The Princeton Handbook of Poetic Terms. 3.ed. Princeton: Princeton
U.P., 2016.
LACOUE-LABARTHE, Philippe. Musica ficta (Figures of Wagner). Tr. Felicia
McCarren. Stanford: Stanford U.P., 1994.
LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski. São Paulo: Companhia
das Letras, 2013.
MALLARMÉ, Stéphane. Divagações. Tr. Fernando Scheibe. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2010.
______. Divagations. Paris: Bibliothèque Charpentier, Eugène Fasquelle, 1897.
SCHURÉ, Eduardo. Wagner: el genio de la música a través de sus obras. Tr. Gastón
Gómez Lerroux. Buenos Aires: Suma, 1944.
SISCAR, Marcos. Poetas à beira de uma crise de versos. In Poesia e crise. Campinas:
EdUnicamp, 2010.
STEELE, Timothy. Missing Measures: Modern Poetry and the Revolt Against Meter.
Faieteville / London: The U. of Arkansas P., 1990.
VERLAINE, Paul. Jadis et Naguère. Paris: Léon Vanier, 1884.
______. Poèmes Saturniens. Paris: Alphonse Lemerre, 1866.
56
WAGNER, Richard. Opera and Drama. Tr. William Ashton Ellis. In Richard Wagner’s
Prose Works, vol. 2. London: K. Paul, Trench, Trübner, 1893.
______. La poesía y la música en el drama del futuro. Trad. Ilse T.M. de Brugger. Buenos
Aires: Espasa-Calpe, 1952.
57
Literatura infantil, ciência e imaginação sob gestão no
Estado Novo: CNLI e INPE20
20
Este texto foi elaborado a partir de dois artigos. Um, publicado na Revista Brasileira de Educação
(“Rute e Alberto resolveram ser turistas: a leitura literária para crianças no período Vargas”);
outro, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (“O positivismo e a literatura infantil:
desmistificando a doxa e mitificando a ciência”). Às comissões editoriais desses periódicos
agradecemos pela autorização desta publicação.
58
Meireles e Elvira Nizinska da Silva. Com a saída de Cecília Meireles, entrariam na
Comissão Maria Eugênia Celso e Lourenço Filho.
Mais à frente, ao fim de 1939, vem à luz por intermédio do jornal O globo a
divulgação de uma pesquisa em realização pelo INEP (Instituto Nacional de
Pesquisas Pedagógicas) sobre suplementos literários destinados por periódicos a
crianças e adolescentes. O nome da matéria é “Qual a influência educativa dos
jornaes (sic) e revistas infantis e juvenis” e sua apresentação é feita por meio de
entrevista com o diretor do Instituto, o Prof. Lourenço Filho, que situa a
metodologia da pesquisa e ressalta que um dos principais objetivos desta, além de
oferecer subsídios orientadores para os órgãos responsáveis pelas publicações, é o
de conhecer e avaliar objetivamente essas produções culturais no intuito de aferir o
seu grau de influência na formação do seu público.
59
crítico que ideológico e de maneira a atender às demandas educativas do Ministério
Capanema.
60
O ambivalente conceito de literatura infantil da CNLI: recrear e educar
21
Todas as informações sobre a Comissão Nacional de Literatura Infantil e sobre a pesquisa do
INEP que à frente abordaremos foram consultadas no arquivo privado de Gustavo Capanema,
GCG g 1936.04.29, CPDOC/FGV.
61
deveria servir de disfarce, pois segundo ele “a didactica compete aos mestres” (GC
36.04.29; S 0822/3).
Os meninos nem esperam que ele chegue às portas de suas casas, vão ao
seu encontro. O suplemento juvenil é o que mais se vende nos dias de
sua saída. A matéria desse jornal é a mesma. Um polícia (sic) que
persegue o bandido, o bandido que se disfarça. Este é o grande assunto.
Outra seção procurada, sobretudo pelos meninos nas edições do
domingo nos jornais é o cinema, para a coleção de artistas. As meninas
se empenham grandemente mais do que os meninos nesse gênero de
pesquisa. (GC 36.04.29; 0821/2)
Vê-se que, embora divertisse e cooptasse o gosto das crianças, esse era um
tipo de leitura de que se temia um prejuízo na formação, pois, por exemplo, o
contato com os relatos sobre feitos criminosos poderia causar uma influência
negativa. Não é à toa que as atenções da Comissão se voltaram também para a
influência dos programas infantis de rádio no comportamento das crianças, tendo
62
em vista que o rádio se transformara num “poderoso aparelho educacional” (GC
36.04.29; S 0865/2). Com essa preocupação, a CNLI escreveu, em maio de 1936, à
Associação Brasileira de Imprensa, sugerindo que esta constituísse também uma
comissão a fim de estudar a influência do sensacionalismo sobre crianças e
adolescentes. Destacava, em particular, “o noticiário sobre crimes de morte,
roubos, suicídios, desastres impressionantes”, cuja configuração nem sempre se
mostrava adequada em relação aos cuidados que a Imprensa “deve ter sobre a
educação do povo”. E continuava:
Curiosamente, isso permite concluir que já não é o lúdico decisivo para fazer
com que o texto seja abrigado no gênero literatura infantil, uma vez que, sendo
atendido esse critério pelos suplementos infantis dos jornais da época, assim
mesmo medidas que visavam a controlar tais publicações foram sugeridas. Se basta
aos livros didáticos o elemento recreativo para a Comissão julgar que possam ser
inscritos no gênero literatura infantil, o mesmo não ocorre às publicações não
didáticas da indústria cultural, que mesmo divertindo as crianças podem
comprometer a sua educação. Ou seja, aqui o lúdico se tornava perigoso tendo em
vista que podia subverter a dimensão educativa. Ora, isso não sugere que, para a
CNLI, o pedagógico seria ao fim a instância decisiva na seleção e estímulo da/à
produção literária dirigida às crianças?
63
edificar, e ainda admita que o livro que apenas pretende-se divertido pode também
ensinar, o que se mostra decisivo, ao fim, é o caráter pedagógico e moral da
produção literária22.
Por fim, refira-se que um dos expedientes criados pela CNLI para julgar as
obras e implementar uma seleção a oferecer por meio do Estado para o público em
questão foi a produção de uma ficha com critérios de avaliação. A ficha tem
participação decisiva de Lourenço filho na sua formulação. Nela, há uma divisão de
pesos que estabelece 40% para o fundo, 30 a 35% para a forma e o restante para os
aspectos materiais, entendidos estes como tipo e cor do papel, qualidade da
22
Embora mais interessada na questão dos concursos literários promovidos pela Comissão – em
particular uma obra ganhadora de Érico Veríssimo que apresentava didaticamente a história do
Brasil –, as conclusões de Gomes se assemelham às nossas: “Não é literatura infantil todo um
conjunto de textos com explícitos objetivos didáticos e programáticos, além daqueles de caráter
técnico e científico, não importando a faixa etária a que se destinavam. Isso significava que a
Comissão definia (desejava e projetava) como literatura infantil aquela que, por excelência,
investia na imaginação infanto-juvenil e, nesses termos, contribuía para educar. A “fantasia”,
como se dizia, deveria presidir o texto, que teria que ser “recreativo”, para, dessa maneira, ser
“instrutivo” (2003, p. 118).
64
impressão e das ilustrações, formato e encadernação. No quesito forma, são
definidos como critérios a adequação vocabular ao destinatário em questão (eram
três faixas de idade: de sete a dez anos, de onze a doze e de treze a quinze anos),
uso da norma padrão, qualidade narrativa. Dentro desses critérios, pontos
considerados negativos no que se refere à forma são o emprego intenso de
regionalismos ou expressões giriáticas, posicionamento em torno da Língua que
tende para a defesa da sua homogeneização, o que está bem afinado, como
sabemos, com a ideologia do Estado Novo (CAMPOS, 2006).
65
aceitável socialmente são os horizontes a partir dos quais se pode qualificar o
conteúdo das obras infantis. O aspecto da imaginação é um ponto sobre o qual vale
a pena fazer algumas considerações, pois o critério avaliativo do lúdico, antes tão
endossado e vigiado nos debates da CNLI, apresenta-se agora aqui associado à
fantasia. Desse modo, numa perspectiva pedagógica que controla o lúdico, trata-se
de fantasia subordinada a uma compreensão de leitura literária como oferta de bons
modelos para a imitação. Ou seja, a experiência estética da catarse oferecida ao
público infanto-juvenil deve ser circunscrita a determinados personagens que
possam constituir-se como exemplares à inspiração de “sentimentos nobres e
elevados”. O que disso se depreende é que a objetividade desejada do enfoque da
pesquisa, no seu afã de cientificidade, termina por submeter o fenômeno estético da
literatura infantil ao utilitarismo pedagógico, o que implicaria na ausência de
reconhecimento da sua especificidade, pois é o modelo comportamentalista que ao
fim preside os julgamentos de valor literário.
A pesquisa
23
Clarice Nunes (1998) situa biograficamente Lourenço Filho entre a tradição ensaística da
Escola de Direito do Recife e a influência objetiva da medicina, curso cujos primeiros anos ele
frequentou antes de se dedicar à psicologia experimental. Esse perfil também se observa na
criação dos testes ABC que à época eram uma tecnologia de classificação dos estudantes em
termos de potencialidade de aprendizagem (MONARCHA, 2008), dispositivo atualmente
criticado e em desuso.
66
desta não significou o abandono do objeto. Era patente que a modernização do
sistema escolar, em sintonia com os princípios nacionalistas do Estado Novo,
implicava na avaliação, seleção e estímulo à produção de materiais de leitura que se
mostrassem coerentes com o ideário defendido. Essas operações particularmente se
faziam naquela ótica necessárias porque já se ia um bom tempo em que José
Veríssimo reclamava da qualidade, quando não da ausência de livros de leitura
produzidos no Brasil e abordando o Brasil24. O mercado editorial brasileiro havia se
desenvolvido consideravelmente desde o fim do século XIX, ganhando relevo com
o aumento de leitores e a ampliação das ofertas de leitura.
24
“A nossa história literária é nula. Como disse, apenas possuímos, escrita por nacional, uma
história Geral do País que mereça ser citada. Os trabalhos históricos parciais contam-se; e os
raros feitos, publicados nas obscuras revistas daqueles raros e pobres institutos sem ônus para os
autores, rarissimamente são editados em livros, para assim ganharem mais ampla publicidade. O
ensino da história pátria, além de escassissimamente feito, é pessimamente dado. Os compêndios,
insisto, são em geral despidos de qualquer merecimento didático. São pesados, indigestos e mal
escritos.” (VERÍSSIMO, 1985, p. 112)
25
Todavia, observe-se que mesmo a obra de Lobato está atravessada com graus diversos de
didatismo.
67
dos perigos causados pela sua leitura, segundo Walter Taylor Field, autor norte-
americano apresentado no relatório da pesquisa da Secretária de Psicologia
Aplicada (SPA) orientada por Lourenço Filho e desenvolvida por Manoel Marques
de Carvalho à frente do órgão:
Quanto aos aspectos negativos, é fácil verificar que há nas críticas uma
certa soma de exagero. Todas as críticas reconhecem que há boa e má
literatura. Mas não se sabe qual é a proporção de má literatura que anda
por aí deformando a mente infantil. (...) as críticas, são muitas vezes,
opiniões, onde os fatos reais apontados são insignificantes em relação ao
26
A referência apresentada no documento é: W. T. FIELD. A guide for children. Ginn and
Company, 1928, New York, p. 1-12.
68
número de leitores. Daí a necessidade de um estudo objetivo, em nosso meio, que
venha esclarecer esses problemas. [grifo nosso] (GCg 36.04-29; 914/2)
69
valor educacional das publicações. Além disso, questionários destinados a mães,
professores e alunos a fim de verificar a influência dos suplementos também
tiveram suas respostas tabuladas e analisadas, bem como um estudo de processos
criminais junto ao Juízo de Menores do Distrito Federal para examinar se a leitura
em questão se havia tornado causa da delinquência juvenil.
70
Porém, a desmistificação operada cientificamente pelo estudo da SPA não
deixa também, noutra ponta, de basear-se numa mitificação acerca dos efeitos da
literatura infantil. Isso é desdobrado num processo que: 1- abertamente, determina
a identidade entre o leitor e o modelo de herói como principal critério avaliador das
obras; e, 2-tacitamente, localiza subalternamente a literatura – e a arte em geral –
em relação ao utilitarismo científico, tanto que ela tanto mais possui valor quanto
mais pedagógica que lúdica ao fim se revela. Desenvolvamos a exposição desse
processo.
Todavia, tal proporção só não é tão assustadora porque, logo abaixo nos diz
o relatório, em uma das publicações é compensada pelo nacionalismo, com que “se
procura combater o mau estrangeiro que aqui aporta, assim como prevenir o
brasileiro contra esse inimigo”. De toda forma, é ainda uma compreensão exemplar
de literatura, a oferecer modelos para a imitação do leitor, o que embasa essa
avaliação. Assim, a criança e o jovem são tomados como uma massa pronta e
disponível a ser modelada pelo teor das leituras dos suplementos, sem nenhuma
resistência crítico-reflexiva. Seja o criminoso ou o herói nacionalista, a pesquisa
71
trabalha ao fim com uma interpretação de tipo mecânico, na qual o assunto e o tipo
de personagem determinam a “formação do caráter” dos leitores.
72
pedagógico, que encaminha para o conhecimento científico e utilitário, típicos da
atuação adulta no mundo das coisas.
Referências
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985.
ARQUIVO GUSTAVO CAPANEMA. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV. CG g
36.04.29. Pastas 1, 2, 3, 4.
CAMPOS, C. M. A política da língua na Era Vargas: proibição do falar alemão e resistências
no sul do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2006.
73
GOMES, Ângela de Castro. As aventuras de Tibicuera: literatura infantil, história
do Brasil e política cultural na Era Vargas. Revista da USP, São Paulo: USP, n. 59, p.
116-133, set./nov. 2003.
MONARCHA, C. Testes ABC: origem e desenvolvimento. Boletim - Academia
Paulista de Psicologia, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 7-17, 2008.
NUNES, C. Historiografia comparada da escola nova: algumas questões. Revista da
Faculdade de Educação, São Paulo, v. 24, n. 1, p.105-125, 1998.
VERÍSSIMO, J. A educação nacional. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
74
Strobo. Corpo e espaço entre êxtase e esquecimento
Introdução
28
O caso do livro Axolotl Roadkill (2010) da autora alemã não somente tornou o livro plagiado e o
próprio livro de Hegemann mais famoso, mas também, de modo interessante, destacou a leitura
do romance pela lente da idade e do sexo da autora, desnudando o jeito paternal e positivista de
uma parte dos críticos. Aqueles indignados com o jogo intertextual de Hegemann muitas vezes
explicaram as escolhas da autora por sua idade imatura (17 anos no ano da primeira edição do
livro) e, portanto, por falta de experiência e de memórias próprias. Ver, entre outros: Rüther (2010)
e Schuchter (2010).
75
(ANDERSON, 1983), Appadurai (1991) traz o conceito de etno-paisagens
(ethnoscapes) e geografias imaginárias como prática social.
76
por palavras relacionadas às festas, sexo e drogas, mas, também, à falta de uma
norte, falta de enraizamento, falta de relação não apenas com aquilo que é externo
ao próprio corpo, mas também consigo.
30
Schabowski, que apresentava a decisão do governo da RDA de derrogar as leis restringindo
viagens, perguntado por um jornalista a respeito da data da implementação das novas orientações,
respondeu, sem ter muita certeza, de que valiam imediatamente. O anuncio do Schabowski que,
mesmo no quadro de massivas fugas dos cidadãos oeste-alemães e massivos protestos da
população, custou-lhe o cargo ocupado e acelerou o aparentemente inevitável processo de
reunificação das duas repúblicas. Ver: HUBER (2009).
31
A expressão usada pela primeira vez em 1983 pelo então chanceler da Alemanha Ocidental
Helmut Kohl e depois de uso recorrente na imprensa, referia-se aos alemães nascidos depois do
ano 1930 como aqueles que eram jovens demais, para poder ser culpados pelos crimes do regime
nazista.
77
guerra, mas sim pensando nos anos de formação já após a reunificação. A parte
oriental da capital das Alemanhas reunidas – Berlim, desvalorizada e mal cuidada
em comparação com a burguês Berlim ocidental e a antiga capital da República
Federativa – Bonn, ficou esvaziada. Não somente de moradores, mas também dos
trabalhadores que não conseguiram concorrer com indústria do oeste alemão.
32
Todas citações de fontes em língua alemã: tradução minha.
33
Dessa suposta onipresença do corpo fala entre outros Richard Sennett no seu livro Carne e
Pedra, no qual destaca a intensificação de experiência do corporal na mídia de um lado e, de
outro, os crescentes medos da fragilidade do corpo e da proximidade (SENNETT, 2008).
78
Mesmo não alcançando a popularidade do livro de Hegemann, o primeiro
romance do blogger alemão que até hoje prefere não mostrar o seu rosto, foi
recebido com bastante entusiasmo, porém, principalmente, pelo público específico
da cena. Louvado foi principalmente o áspero tom que parece vibrar ao som de
techno ao descrever dias pálidos de trabalho e noites marcadas por excesso. Adreas
Glumm, escritor e jornalista, opina sobre o livro:
Airen conta do seu dia a dia marcado pelo techno e confusão de drogas,
felizmente, sem frescura, mas com sangue no olho, para mostrar o que
pode acontecer dentro da gente nesta fase de viagem entre as dimensões.
De algum modo pensei durante a leitura de que isso poderia ser o lado
escuro, sujo, da mistura de dança do amor com “Berlin Calling”34 na
versão bissexual – sem sexo baunilha e final feliz. Estou contente de que
se mostra aqui também esta faceta que faltava até agora entre as
representações de techno dos últimos anos.” (ADREZAK, 2009)
“Um livro que não apenas descreve, mas sim provem da cena berlinense.
Próximo, nu e compassivo.”, acrescenta ainda Marc Degens (2010).
34
Título do filme de Hannes Stöhr (2008) e de um álbum do DJ e músico alemão Paul
Kalkbrenner.
79
Strobo e a carne sem memórias
35
Além dos meandros da dolorida história das duas Alemanhas, durante a divisão e, depois, com
a reunificação, a cidade de Berlim de modo especial presenciou, especialmente no século XX, fim
da era de Reinado de Prússia, época da República de Weimar, tempos de nazismo e III Reich –
anos de expulsão, perseguição e extinção não somente de judeus, mas também de outras minorias
étnicas, religiosas e sexuais, entre outros. Nos anos 1950 e 1960 a parte ocidental da cidade, bem
como toda a Alemanha Ocidental, contou com vinda de chamados trabalhadores convidados
(alemão: Gastarbeiter) da Turquia, Itália, Grécia e Portugal, que perante falta de mãos de obra
deviam, apenas temporiamente, girar o mecanismo de milagre econômico ocidental. Até os anos
oitenta do século XX a divisa entre as Alemanhas na cidade dividida virou um cruel memorial de
moradores da República Democrática assassinados ao tentarem ultrapassar a divisa. Hoje o
centro ao redor do Portal de Brandemburgo num espaço físico relativamente pequeno concentra
80
A dor física como resultado do uso abusivo de drogas, da descontrolada vida
sexual e da dança em trance parece ser aqui o único sinal palpável de existência.
Perdidas no tempo e espaço urbano as personagens de Airen tentam construir um
espaço alternativo, efêmero, sem memórias, ou seja, com esquecimento
programado e praticado. Mas, afinal, que espaço é esse?
sítios históricos tais como: Memorial de Holocausto, Memorial do Muro de Berlim, Memorial das
Vítimas de Guerra (Neue Wache), Memorial de Sinti e Roma, Memorial de Rosa Luxemburg,
Memorial da Resistencia Alemã, Monumento de Soldados Soviéticos, além de outros lugares e
prédios históricos (na sua maioria reconstruídos) tecendo a memória de séculos da cidade
cosmopolita que hoje em dia conta com uma população proveniente de mais de 190 países e
etnias (Statistisches Bundesamt, https://www.destatis.de/DE/Themen/Gesellschaft-
Umwelt/Bevoelkerung/Migration-Integration/_inhalt.html). Ver também: FRANÇOIS;
SCHULZE, 2001; VENZKE, 2011; SCHOEPS, 2012, entre outros.
36
A autora é traduzida para o português e ultimamente tem sido bastante explorada dentro das
ciências humanas em vista do seu trabalho com o conceito de espaços ou lugares de memória, termo
inicialmente usados pelo francês Pierre Nora (1982), inspirado pelo conceito de memória coletiva
(HALBWACHS, 1939).
81
ou espaço de memória enfatizasse o próprio esquecimento como uma caraterística
central.
82
numa síncope. Segundo Modeville, os órgãos sentem compaixão com partes do
corpo doentes ou doloridos e parcialmente assumem as suas respectivas funções.
Assim deve funcionar também a cidade, sendo uma unidade pulsante e viva.
Que corpo é esse, então, este corpo num lugar dentro da geografia
imaginária? É um corpo sofrido ou um corpo que busca se conhecer pela dor, pelas
extremas experiências do corporal? Um corpo que usa e abusa de drogas, do sexo,
porém, sem criar relações afetivas? Depois de uma das noites passadas, desta vez,
com uma mulher, o protagonista de Strobo conclui que, cada vez que faz sexo com
uma mulher, precisa simular o “joginho de amor” – uma coisa que pelo visto
almeja, mas que, de outro lado, deixa-o apavorado. Prefere ter contatos sexuais
com homens, não para intensificar o prazer, mas para eliminar o perigo de afeto.
Apaga as migalhas de memórias nos clubes, de preferência nos banheiros ou
darkrooms, para ler nos dias seguintes a partir das marcas e dores no corpo como
passou a última noite e se, por acaso, não foi preso:
Hoje, quatro dias depois, sinto mais dor nós pés do que no queixo. Às
quatro horas finalmente chego em casa: a minha carteira está vazia, o
meu MP3-player sumiu. Quando acordo, examino primeiro as pontas
83
dos meus dedos. Nada de tinta. Depois o meu braço: sem picada.
(AIREN, 2009, p. 54, tradução minha)
Não é daquela dor que o protagonista sente medo ou que percebe como
desconforto. O que o deixa inquieto é a dor não voluntária, dor ligada à doença e à
morte. Também neste contexto aparece o lugar da festa como solução, como
refúgio e escolha, em vários sentidos, do não canônico:
84
Interessante destacar nesse contexto que o espaço da maioria das festas
descritas em Strobo ocorre num clube que não somente acolhe sujeitos não
conformistas e rejeitados pela sociedade, mas muitas vezes se torna, sozinho, o
espaço da padronização e da rejeição. O clube Berghain tem a fama de ser não
somente um dos melhores avaliados no mundo, mas também uma casa noturna
com seleção extremamente rigorosa e, por vezes, bastante arbitrária na entrada. Os
corpos dos clientes viram um reflexo do clube e é o corporal que se torna motivo
principal da arte exposta no lobby do estabelecimento. Também a programação
mensal de Berghain conta com a contribuição de artistas contemporâneos
convidados. Corpos gays em várias constelações, corpos amarrados e imobilizados
em bondage ou estilizados em formas vegetais que copulam, corpos ousadamente
fantasiados apontam para o diferente, aquilo rejeitado pela sociedade normativa e
majoritária. Constroem a memória deste espaço ilhéu e imaginário que, em tempos
da chamada normalidade, pulsa vida ao ritmo de techno e em tacto de luz de
estroboscópios e atualmente, devido à pandemia do novo coronavirus, virou uma
espaçosa galeria de arte com instalações sonoras. Os visitantes de Berghain, agora
longe uns dos outros devido às precauções sanitárias, contemplam a arte sonora e
visual circulando lentamente pelas salas bem iluminadas. Parece que a covid19 não
somente obrigou o público do clube a manter o distanciamento, mas deflagrou um
distanciamento e insularidade dos corpos sempre existente neste espaço de eterno
hoje.
Referências
85
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87
Espaço, objetos e afetos: uma fenomenologia das coisas
Introdução
Este texto se propõe a fazer uma breve reflexão sobre as imagens (em
específico, o cinema) como forma de reconhecimento do mundo e das coisas do
mundo e, ao mesmo tempo, como maneira de expressar ambos. E se, em uma
atitude reflexiva, mundo e coisas também pudessem se manifestar acerca de nós,
aqueles que os observam e filmam? Não falamos aqui do tipo de manifestação
mediada que é um filme (de um observador qualquer) discorrendo sobre um fato,
um objeto, sobre situações da vida. Mesmo porque essa será sempre uma
manifestação humana sobre as coisas. O filme expressa a fala que atribuímos a ele
de alguma maneira. Pensamos em algo menos evidente e, diriam os humanistas,
mais extravagante. Pensamos sobre a vontade consciente das coisas, e aqui
tratamos mais especificamente das imagens, de falar sobre o mundo (incluindo os
humanos). Essa é uma provocação, claro. Mas trata-se de uma provocação que toca
em pontos que julgamos importantes em nossa relação com objetos, com
máquinas, com um ambiente modificado e atravessado por camadas e camadas de
ações que não são nossas (embora, em algum ponto tenham de nós partido), mas
que modificam profundamente nossa relação com tudo o que nos cerca.
Algumas direções devem ser clareadas para que esta reflexão produza um
mínimo de sentido e para que possamos, ao menos, entrever as novas relações
entre humanos, tecnologias e imagens. Primeiramente, como mencionamos a
vontade consciente das imagens, devemos discorrer um pouco sobre o caráter
fenomenológico da percepção do mundo. Sem isto, dificilmente compreenderemos
88
a proposição que se fará, ao final do texto, de uma fenomenologia das coisas.
Como toda descrição fenomenológica, lidamos aqui com uma tentativa de
entendimento do processo de apreensão das imagens e como estas podem gerar um
sentido que, se não universal, afeta a todos nós que nos expomos diariamente, de
diferentes formas, às mesmas.
89
A tarefa fenomenológica
Pensar a tarefa fenomenológica como um endereçamento da experiência
material significa avançar na ideia de que há uma distância intransponível entre os
objetos e nós, observadores de tais objetos. Nesse sentido, assim como as demais
vertentes do pensamento ocidental nos últimos séculos, a fenomenologia constitui
um sujeito e um objeto do conhecimento, sendo que apenas à relação entre os dois
é que podemos ter acesso. Quentin Meillasoux (2008) nomeia esse fenômeno de
“correlacionismo”, base de praticamente todo processo hermenêutico de contato
com o mundo. Assim como a psicanálise, a fenomenologia tende a colocar
qualquer hipótese a respeito das coisas fora destas, através de estruturas mentais.
90
irrefutável. O sujeito, da mesma forma, também se constitui pela reflexão. O Ego
Transcendental deve se afastar do objeto para ter uma ideia clara e estar livre de
pressuposições, mas também deve se afastar de sua própria existência irrefletida.
Husserl parte da experiência imediata da consciência, que está sempre consciente
de algo. “Consciência é um fluxo entre dois pólos: sujeito e objeto. Consciência é
um vetor que realiza uma síntese organizacional.” (KOESTENBAUM, 1998, p. xxvii).
91
estabelece a primazia lógica e ontológica da experiência sobre a
linguagem. O método fenomenológico é a análise descritiva da
experiência. A pressuposição necessária, portanto, é que a linguagem
corporifica a experiência, isto é, que as estruturas da linguagem são
paralelas e representativas da experiência (KOESTENBAUM, 1998, p.
xii).
92
incapacidade de dar um passo atrás e retratar objetivamente a ação sensível tornaria
o corpo apenas um portador de sensações. “Um olho não se mostra para a própria
visão de alguém” (HUSSERL, 1989, p. 155). Quando usamos os sentidos,
abandonamos a intencionalidade da mente e navegamos em uma espécie de
“automático” corporal.
No entanto, o tato teria uma qualidade para o filósofo que lhe daria
supremacia sobre outros sentidos. Seu duplo aspecto, a capacidade de tocar sendo
tocado, confere a esse sentido um lugar privilegiado na esfera da consciência. O
corpo sente e é sentido, ao contrário do que ocorre com a visão. “O Corpo como
tal pode ser constituído originalmente apenas na tatilidade e em tudo que é
localizado com as sensações do tato” (Ibid., p. 158). De qualquer forma, o corpo
não é interno à consciência ou externo ao sujeito no mundo. Encontra-se entre um
campo subjetivo e um campo material.
Mais uma vez, é clara a distinção entre a ideia de experiência abstrata que
podemos alcançar na consciência e os limites da sensualidade real que está presente
no corpo. “Os conteúdos co-entrelaçados das sensações têm uma localização que é
dada intuitivamente, mas as intencionalidades não, e elas são tidas como
relacionadas ao Corpo ou presentes no Corpo apenas metaforicamente” (Ibid., p.
161).
93
Em seus últimos escritos, Husserl tenta recuperar um mundo histórico-
cultural concreto que precederia qualquer conceitualização metafísica e científica. O
“mundo da vida”, ou Lebenswelt, está conectado ao Ego, em uma relação entre
consciência e mundo, na qual o foco é um a priori pré-categórico, que cria novas
abordagens para conceitos como intencionalidade e intersubjetividade. A ideia de
um mundo que precede toda experiência é encontrada posteriormente em
pensadores como Heidegger e Merleau-Ponty.
94
Sujeito e objeto não estão submetidos a um Cogito que só enxerga a si mesmo. Se
corpo e mundo partilham da mesma natureza, torna-se possível atribuir a este
último um caráter reflexionante, ou seja, de ente que pode produzir efeitos sobre os
demais corpos, inclusive o nosso. O mundo abrange as cogitações dos dois
elementos.
95
O corpo se coloca como condição de existência não apenas do meu
pensamento, mas também do mundo concreto. “O corpo é nada mais, nada
menos, a condição da possibilidade da coisa” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 202).
O outro é constituído a partir dos estímulos como eu os recebo e a partir dos
pensamentos como eles se organizam em minha consciência. “Pelo menos, meu
mundo privado deixou de ser apenas meu; é, agora, instrumento manejado pelo
outro, dimensão de uma vida generalizada que se enxertou na minha” (Id., 2007, p.
22).
96
experiência cinematográfica de forma distinta daquela dos atos de consciência ou
do pensamento. Existe um corpo do filme, constituído por trechos filmados
separadamente, por tempos e espaços descontínuos, mas que garantem,
internamente, uma coerência espaço-temporal – ainda que essa coerência não seja
plenamente compreendida de imediato. Esse corpo-vivo possui seus próprios
órgãos perceptivo e expressivo. No caso do filme clássico, atribuiríamos à câmera e
ao projetor esses papeis. A tela funcionaria como o centro da experiência
significativa. Contemporaneamente, esse sistema perceptivo-expressivo tornou-se
mais complexo, exigindo uma maior sutileza nas descrições tanto do dispositivo
quanto dos efeitos da experiência sobre a consciência.
97
Espaços como condição de existência
98
tratando de um outro tipo de significado, derivado da forma, e totalmente
codificado. Nos dois casos, os sentidos do filme são partilhados, de maneira mais
ou menos homogênea, por diferentes plateias. Se não há um perfeito entendimento
por algum grupo, é porque não há o compartilhamento integral de um determinado
sistema de códigos comum. O cinema clássico-narrativo, que em sua própria
denominação já se propõe como universal, depende da padronização de tais
códigos. Com isso, queremos apontar também para a padronização de modos de
habitar o mundo.
99
se em uma espécie de “não-lugar”: um tipo de espaço, como bem descreve Marc
Augé (2011), impessoal (como aeroportos, por exemplo), pertencente a um mundo
globalizado em que a padronização de modos de ser e de relacionar-se com o outro
inibe qualquer vínculo afetivo mais forte.
Quando nos referimos a “ver” alguma coisa, é bem difícil não entendermos
esse ato, de cara, como uma ação humana. Mesmo tendo se tornado uma metáfora
para fenômenos para além do nosso alcance físico, a ideia de que há uma
subjetividade humana por trás do processo permanece. Em ambientes midiáticos
povoados por milhares de câmeras ou telas, ainda que seja virtualmente impossível
saber “quem” está por trás de cada uma delas, continuamos a atribuir uma
“consciência” mais próxima da nossa natureza biológica ao denso emaranhado
informacional.
100
arrumadas em uma sala de monitoramento – nosso imaginário ainda tende a
vincular a observação das múltiplas imagens a um operador humano, capaz de
tomar determinadas atitudes ao identificar ocorrências indesejadas em seu conjunto
de monitores. Cada vez menos, a interferência humana tem sido condição para o
funcionamento tanto dos mecanismos de observação quanto das respostas
disparadas por ações captadas por esses mecanismos.
101
redes de informação. Imagens movidas por uma existência dispersa em um espaço
expandido virtualmente executam refletidamente e reflexivamente as tarefas de
percepção e expressão de um corpo-vivo, em uma espécie de fenomenologia
algorítmica. Podemos não ter consciência de todo esse corpo que é onipresente,
mas ele, certamente, tem plena consciência de nós.
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Vol. 27, nº 2. Fayetteville: The University of Arkansas Press, 1999. p. 205-226.
102
KOESTENBAUM, Peter. Introductory essay. In The Paris lectures. Dordrecht:
Kluwer Academic Publishers, 1998.
103
"A palavra sopra-me da boca feito flama": a poesia de
Paula Ludwig
104
deus negro em seus arrojos, as partes desse corpo vasto se expõem, escandidas no
poema pelas palavras que testemunham o efeito devastador do enlevo erótico: os
olhos consumidos, o coração sorvido, a luz turvada, o ventre semeado por sêmen
de estrelas.
38
Agatão.
Sócrates, após todas as falas que enumeraram do surgimento às propriedades mais diversas do
Amor, relata dos ensinamentos da estrangeira Diotima que o iniciou no conhecimento desse
deus. O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem
dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos
sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo
ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte divinatória, como também a
dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de
toda adivinhação e magia. Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser que
se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como
quando dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o
sábio em qualquer outra coisa, arte ou oficio, é um artesão. E esses gênios, é certo, são muitos e
diversos, e um deles é justamente o Amor.
"Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em
outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é
como ouroou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja
vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e
sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só
contemplar e estar ao seu lado. Que pensa-mos então que aconteceria, disse ela, se a alguém
ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de
cores e outras muitas ninharias mor-tais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma
única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela
direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou
não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode
ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará
tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando? Eis o que me dizia Diotima, ó
Fedro e demais presentes, e do que estou convencido; e porque estou convencido, tento
convencer também os outros de que para essa aquisição, um colaborador da natureza humana
melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis por que eu afirmo que deve todo homem
honrar o Amor, e que eu próprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos
105
"Aquilo que nos mostra o poema não vemos com nossos olhos da
matéria, e sim com os do espírito. A poesia nos faz tocar o impalpável e
escutar a maré do silêncio". (PAZ, 1994, p. 11)
outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou
capaz." A alma individual, mortal, correspondente à alma imortal do universo, Vênus, é
gradualmente elevada à imortalidade pelo amor de Eros. (GRIMAL, Pierre. Dicionário da
mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2000. p. 399 - 400.)
106
semânticas, sintáticas frustraram de vez a palavra de sua qualidade de definitude -
desde os protestos românticos, desde os manifestos da lírica absoluta.
Oh
Como queria falar de ti sem cessar
Sua doçura inteira revelar -
Esmaecida a memória de uma aliança perene com o estado divino, com uma
palavra pronunciada em sons semânticos e sintáticos provindos de lábios divinos,
resta ao poema-livro sua natureza fugaz atroz de grito em manifesto insosso, baço,
rouco. Perdida a voz que despertava outrora à paisagem noturna do encontro
erótico com o peregrino, o sentimento de solidão é que se intensifica.
Já aumenta a solidão
Em torno de mim crescendo
Feito um muro branco
107
Estaria eu fadada a um destino de sonho?
Ou já fui banida
Em navio-fantasma
No supremo instante
De minha viagem marítima?
Exilada. Exilado.
108
Barbara Glauert-Hesse, a pesquisadora que editou as cartas, bem como os
volumes Die Lyrik in vier Bändern. (Berlin: ARGON, 199639), informa que com o
rompimento dos amantes, os poemas originais - geralmente documentados em
correspondência epistolar – se encontravam com Paula e se perderam. Em 1952
Claire os traduziu ao francês e os publicou: a pesquisa apura omissões e alterações
entre as versões do alemão. Essas traduções de Claire (que ela encomendara a
Celan e depois decidiu assumir, não sem antes instaurar um escândalo conhecido
como “Affair GOLL” com acusações que abalaram definitivamente o grande poeta
da língua alemã).
39
Mit der gemeinsamen Übersiedlung nach Paris begann 1919 für Claire und Yvan Goll ein
Jahrzehnt intensiver literarischer Produktivität, die ihre Liebe in unzähligen Briefen und
Gedichten ausdrückt. Es entstanden die berühmten Sammlungen Poèmes d’Amour (1925), Poèmes de
Jalousie (1926) und Poèmes de la Vie et de la Mort (1927). In diesen Gedichtbänden treten die
Stimmen Claire und Yvan Golls in einen lebhaften Dialog, aus dem sich ein vieltöniger
'Wechselgesang der Liebe' ergibt, bei dem nicht immer klar ist, wem welche Stimme gehört.
Während Claire Goll dichtet: 'Ich liege mit deinen Träumen', bekennt Yvan Goll: 'Ich lebe in
deiner Liebe.'
109
Para promover esse mencionado diálogo entre os poemas, apresento por
inteiro o poema dedicado “a Paula” de 2 de março de 1931, que tanto é epígrafe de
Ao deus negro, como também é o poema que abre as Canções malaias de autoria de
Goll. E, encerrando esse ensaio que é uma homenagem à poesia de Paula Ludwig, a
tradução de trechos do poema-livro Dem dunklen Gott:
“Dez mundos fundos sob nós/ Retumba o subsolo/ Dez céus distantes/
Agitam-se bandos de gaivotas polares./ Sentimos os anseios das nossas
genuflexões?/ O envelhecimento de nossos cabelos?/ Nós nos mantemos/ Na
altura de nossos olhos ínfimo/ / Sem atentar aos mundos / Abaixo e acima deles.”
110
Majestade quando resplandece.
**
Referências
LUDWIG, Paula. Dem dunklen Gott. Ein Jahrgedicht der Liebe mit einem Nachwort von
Volker Weidermann. München: C. H. Beck, 2015.
GLAUER-HESSE, Barbara. "Textkritische Erläuterungen". In: GOLL, Ivan. Die
Lyrik II. Berlin: ARGON, 1996.
PAZ, Octavio. A dupla chama AMOR E EROTISMO. Tradução Wladyr Dupont.
São Paulo: Siciliano, 1994.
111
Do corpo ao corpus: Jorge Amado bio-grafado
112
corpóreas40 –, os arquivos pelos quais caminham os biógrafos para a (re)construção
das imagens desses corpos-personagens não são memória acabada, fechada em caos
na desordem arquivística, mas, antes, uma falta originária, constitutiva ao sujeito e,
portanto, sempre resultado de uma ausência da verdade. Desse ponto recupero a
afirmação de Derrida (2001, p. 22) ao afirmar: “O arquivo tem lugar em lugar da
falta originária e estrutural da chamada memória”.
No arquivo, a carne é considerada aquilo que sai fora. A carne não pode
acolher nenhuma memória do osso. Só os ossos falam da memória da
carne. A carne é cega? Desaparece. Certamente, essa é uma equação
cultural, indiscutivelmente estranha àqueles que reivindicam a oralidade,
as histórias contadas, a visitação, a improvisação, ou incorporam as
práticas rituais como história. (SCHNEIDER, 2001, p. 102 apud
TÉRCIO, 2017, p. 103).
40
Retomo Pierre Bourdieu (2006) n‟A ilusão biográfica para sinteticamente ilustrar tal questão: no
caso, o procedimento biográfico mencionado diz respeito à ação de apresentar/escrever a vida
dos sujeitos progressivamente, como uma unidade, do nascimento à morte, com início, meio e
fim. Sendo recorrente a descrição cronológica como plano estruturante para o biógrafo
apresentar toda a vida de alguém. A essa pretensão, o autor atribui a qualidade da “ilusão” e
reivindica a percepção de que o trabalho biográfico é constituído a partir do embate entre
experiências e identidades, organizadas pela comunicação e linguagem, pois essa operação
inscreve-se num espaço em que o factual histórico e o ficcional operam em conjunto.
113
por isso no lugar do arké, mobilizando, simultaneamente, as noções de começo e
comando, história e lei:
Daí entende-se que o processo arquivístico não pode operar senão como
prática política que, na origem, provoca a existência de uma ação autoritária, pois a
seleção documental do que expor e dizer, isto é, as escolhas que constroem as
narrativas dos corpos-personagens biográficos estarão sempre subordinas àquele
que o arquiva, o arconte, dado que lhe é incumbida a organização, seleção,
identificação e categorização de um arquivo. Nessa compreensão, a crítica
biográfica contemporânea, traz noções como a de Eneida Maria de Souza (2011)
quando afirma que “Biografar é metaforizar o real”, no sentido de que tal operação
significa ter em conta tanto os fatos quanto as ações praticadas pelo corpo
biografado como possibilidade de inserção na esfera ficcional.
Nesse contexto, a operação biográfica de “metaforizar do real” que cabe a
mim está relacionada à pesquisa acadêmica no Acervo Mala de Jorge Amado,
reunião documental de 1543 páginas oriundas do exílio desse escritor em 1941 e
1942. Na ocasião, em razão de sua proximidade com o então Partido Comunista do
Brasil, Amado morou em Montevidéu e em Buenos Aires para escrever uma
biografia de Luiz Carlos Prestes e colaborar para a campanha de anistia desse que
foi até hoje o maior símbolo da luta comunista no país. No período histórico em
questão, o Brasil vivia o Estado Novo, sendo inviável a redação desse texto
biográfico em meio à perseguição do governo getulista àqueles envolvidos com o
PCB.
114
Dessa forma, Jorge Amado ficou menos de dois anos fora do país e ao
retornar, em 1942, não trouxe consigo material algum. Sete décadas depois, essa
reunião de papeis que ficou para trás chegou ao Núcleo Literatura e Memória
(nuLime/UFSC) como doação para pesquisa acadêmica. Foram nos meus
primeiros passos como pesquisadora de Iniciação Científica41 que simbolicamente
iniciei a perturbação biográfica do “mal de arquivo”:
41
Fui bolsista de IC do projeto “A Mala de Jorge Amado: 1941-1942” (PIBIC/CNPq-UFSC)
entre agosto de 2013 e fevereiro de 2015.
42
Aqui abro um parêntese mais demorado, pois essas considerações relativas à repetição das
parcas informações sobre 1941-1942 são simplistas. Resumo dessa forma a existência da lacuna
porque o foco de discussão neste texto é outro. A fim de justificar com mais demora o ponto,
explico: na minha pesquisa de mestrado – “Não fiz anotações, morrem comigo”: o arquivo e a
lacuna biográfica de Jorge Amado – localizei obras que falavam sobre 1941-1942, tanto para além
das “parcas linhas” quanto em relação ao conteúdo. A questão é que inicialmente eu partia do
pressuposto de que a lacuna estava subordinada diretamente à existência ou não de materialidades
textuais. Assim, no momento em que comecei a localizá-las cogitei que q pesquisa havia perdido
o sentido, porque, afinal, havia achado informações que falavam de 1941 e 1942. E qual sentido
115
A repercussão poderia ter sido outra se o escritor tivesse desembarcado em
Porto Alegre com o que recolheu e produziu enquanto esteve exilado. Essa
afirmação é resultado do contato com os documentos que constituem o corpus do
Acervo Mala de Jorge Amado, pois eles se apresentam como uma outra forma para
se contar a história desses dois anos da década de 40. Digo isso tendo como norte a
proposição de Walter Benjamim acerca da “operação crítica do passado”
(BENJAMIN, 2016), naquilo que passa pela oposição à noção da história como um
processo linear e contínuo de evolução e acertos, no qual aquele que se estabeleceu
como vencedor e, portanto, tem direito à palavra, deve ser tomado como símbolo
absoluto da “verdade”. No caso específico, refiro-me a pluralidade de corpos que
constituem o corpus do arquivo em questão e que foram desconsideradas tanto no
discurso dominante da história de vida de Jorge Amado quanto, por conseguinte,
da própria história da literatura brasileira.
faria trazer à tona o que nunca desapareceu da vista? Eis o erro: esquecer, ou demorar para notar,
que não basta “se fazer ver”, há que “se fazer legítimo” antes de tudo. Quando me dei conta de
que “achei”, depois de muito pesquisar, obras que não ignoram o autoexílio, que pude
reorganizar os pontos de pesquisa em questão. Isto é, dei-me conta de que encontrei tais dizeres
de 1941 e 1942 após, objetiva e continuamente, procurá-los. Ou seja, apenas depois de frustrar-
me com buscas “erradas” consegui reunir um corpus. E quem mais, além de um pesquisador ou
um leitor muito interessado o faria? Quero dizer, por qual motivo demorei para encontrá-las? Por
que não há larga difusão de exemplares com essas informações como há, por exemplo, dos
exemplares popularmente difundidos como Cadernos de Literatura Brasileira: Jorge Amado e Jorge
Amado: Literatura Comentada? Ainda, notei que, mesmo localizando informações algo não se
preenche, no sentido de que os dados, por si só, não conseguem suprir o espaço deixado por esse
intervalo de tempo que pouco tem destaque no discurso biográfico do escritor, e nisso incluo a
própria Fundação Casa de Jorge Amado, abrigo oficial da materialidade de sua obra e vida.
Também pude notar que os livros que encontrei, por mais que trouxessem elementos de 1941-
1942, não dispensavam o Acervo, quero dizer, é evidente que um acervo literário não cabe em
duas ou três páginas de livro, mas não é a respeito disso que falo. A questão reside na percepção
de que a lacuna existe mesmo diante desses materiais, que o hiato se edifica não porque há
“parcas linhas” sobre o período, mas devido à sua constituição histórica e factual: é a sua
formação motivada por um regime de exceção, são os sujeitos escondidos atrás dos pseudônimos
das correspondências, é o abandono de sua materialidade por parte de Jorge Amado, é, enfim,
um contínuo de ilegitimidades que abrem e solidificam essa lacuna para além da existência ou não
de dados biográficos.
116
como o faz o historicismo, a considerar que um acervo literário, por excelência, é
descontínuo e livre de qualquer pretensão de fechamento. Nesse sentido, o Acervo
Mala de Jorge Amado comporta muitas histórias, a exemplo daquelas relativas aos
remetentes que escreveram para o escritor entre 1941 e 1942, dentre os quais
editores, como José de Barros Martins (Editora Martins) e Antonio Zamora
(Editorial Claridad), amigos pessoais e de militância, como Ivan Pedro de Martins,
intelectuais latinoamericanas, como Alba Roballo e Carmen Alfaya Ghioldi, e
muitos outros. Ainda, esse arquivo é capaz de descrever e contextualizar parte da
produção intelectual do escritor no período.
43
Toda uma literatura suicidou-se Stefan Zweig
Jorge Amado (Especial para “La Razon”)
“Ya no me quieda esperanza”, escreveu Stefan Sweig e se suicidou em Petrópolis, a aristocrática
cidade de veraneio onde as ruas são ladeiras de jardins magníficos de hortênsias. Ele amava o
Brasil e creio que o amava principalmente porque, no meio da guerra, se encontrava um país
tranquilo.
Hoje o Brasil está a dois passos da guerra, essa guerra que há tantos anos andava acompanhando
Sweig de país em país: desde a Áustria conquistada até a Conferência de Chanceleres no Rio de
Janeiro. Há um detalhe a guardar na carta que Stefan Sweig deixa no mundo intelectual: nesse
momento o autor de “Três mestres” encontra que é impossível reconstruir sua vida. Suicida-se
então. Morre desesperado.
117
Figura 1. Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado, 2020.
118
Embora nunca tenham se conhecido pessoalmente, Jorge Amado conservava
admiração por esse escritor, que, já na década de 1920, era um dos mais traduzidos
no mundo. Em Petrópolis, desolado com a guerra, Stefan Sweig tomou uma dose
letal de barbitúricos junto com a esposa, Lotte Altam, na cidade onde estavam
exilados. O suicídio de Sweig adquiriu ampla dimensão política e simbólica no
contexto histórico, marcado pela expatriação de corpos e destruição humana e
material. Para a narrativa biográfica de Amado, esse texto ilustra a atividade
profissional do autor nesses dois anos de 1940, escrevendo e publicando em
periódicos locais.
44
Ouvi, senhora, a história de uma família.
Por Jorge Amado
Vos falarei de Leocádia, de Olga e de Anita, avó, mãe e neta. É uma história dramática, cheia de
sofrimento, mas, apesar disso, ouvi, é uma história bela e heroica. Há uma filha que nunca viu o
pai, apenas dele ainda viver. Uma filha que mal viu a mãe, que apenas a viu sofrer. Menina de
cinco anos, o pai numa prisão, a mão num campo de concentração. Seu coração distribuído pelo
mundo, seu pequeno coração. Assim é Anita, senhora que ouves minha história, essa história
dramática mas heroica. Eu queria, senhora, ser dono dos adjetivos mais doces e ternos para vos
falar da neta, da pequena Anita, seus olhos puxados para o Brasil onde o pai está preso, seus
olhos puxados para a Alemanha, onde diária e lentamente assassinam sua mãe.
119
Figura 3. Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado, 2020.
45
“[...] eu me aventurei pouco em outros gêneros. Eu sou mesmo um romancista” (AMADO
1997 apud CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 1997, p. 44).
120
Figura 4. Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado, 2020
Do autor:
Romances:
Os romances da Bahia:
1-O país do Carnaval
2-Cacau
3-Suor
4-Jubiabá
5-Mar Morto (Prêmio Graça Aranha)
6-Capitães da Areia
7-Agonia da noite (inédito no Brasil)
8-São Jorge dos Ilheus
9-Cabaré (em preparo)
(Acervo Mala de Jorge Amado, 2020).
Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado, 2020.
Agonia da Noite não só foi um dos títulos dados ao romance inédito, como
visto.
Como vemos na imagem, “Biografias” traz o registro de ABC de Castro Alves,
publicado em 1941, e O Cavalheiro da Esperança, título parcialmente aproveitado para
a publicação da biografia de Prestes no Brasil, pois aqui o livro foi intitulado de “O
Cavaleiro da esperança”; quer dizer, Jorge Amando pensou Prestes de gentleman a herói
nacional. Já nas indicações de romances, lemos a previsão de um texto ainda
inédito a que o escritor deu o nome Agonia da Noite. O título nomeia um livro
121
inédito e inacabado que Amado deixou no Acervo, mas também intitula outro
texto: um dos livros da trilogia dos Subterrâneos da Liberdade (1954). Ademais, vê-se
que o escritor dizia preparar Cabaré, que acabou não sendo lançado, mas anos mais
tarde publicou Teresa Batista Cansada de Guerra (1972). Uma hipótese levantada
acerca dessa produção é que Teresa possa ser uma ideia iniciada como Cabaré. Ainda
e por fim, o destaque recai na predileção do autor por nomes já utilizados em
textos anteriores. Aqui vimos alguns exemplos, que se estendem ao longo do
Acervo.
Referências
122
AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de
memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma vida. Trad. Gilson César
Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 2009.
123
Das regularidades às rupturas discursivas
dascorporalidades audiovisuais no filme Coringa (2019)
124
uma grande repercussão na mídia e serve como um primeiro gatilho de quem
Arthur virá se tornar. Almejando tornar-se uma celebridade na televisão como
comediante – tal qual Murray Franklin (interpretado por Robert de Niro) – ele
tenta trabalho em um bar de stand-up comedy. Mas o efeito colateral dessa
tentativa é a disseminação de um vídeo do fracasso de sua apresentação, fazendo de
Arthur um alvo de piadas. Esse acontecimento lhe rende o convite para uma
entrevista no programa televisivo de Murray Franklin, algo tão sonhado e desejado
por Arthur. No entanto, trata-se de um convite cujas intenções são as piores
possíveis: zombar de Arthur na frente de milhares de espectadores. É como
Coringa que ele vai ao programa e dispara tiros sobre Murray Franklin,
assassinando o apresentador ao vivo. Preso num ciclo entre apatia e crueldade e,
em última instância, traição, Arthur “liberta-se” e abraça sua multiplicidade
expressa pelo Coringa e, a partir daí, contamina o caos já instaurado na cidade de
Gotham.
Nesse sentido, assinalo que o viés teórico que irei seguir opera uma
conjunção das propostas de Deleuze e Guattari (1995, 1996, 1997) com as
125
proposições de Foucault (1995, 2014), de modo que compreendo que os
agenciamentos respondem a ordens de estratificação, de territorialização (de
regularidades discursivas, nos termos de Foucault), mas carregam rastros, vestígios
que possibilitam os movimentos de ruptura e de desterritorialização (ou de
descontinuidades foucaultianas). É sob a esteira dessa conjunção teórico-
metodológica que me proponho observar as corporalidades audiovisuais no filme
Coringa.
126
não havia lugar para o corpo. De acordo com Lúcia Santaella, Marcus Doel é
bastante enfático nas afirmações de que o sujeito cartesiano não tem necessidade de
“pele, carne, face ou fluido. O corpo nunca é. Os corpos são os inimigos dos
sujeitos. O sujeito é o que resta quando o corpo é retirado” (DOEL, 2001, p. 87
apud SANTAELLA, 2004, p15).
Não se trata aqui de divagar numa discussão acerca das noções de corpo e
sujeito, mas o de apontar a necessidade de circunscrever de onde falamos quando
estamos problematizando o corpo. Diante disso, é importante ressaltar a “crise” ou
“morte” do sujeito a partir do século XX, que contribuiu para a proliferação dos
estudos acerca das subjetividades descentradas e, por conseguinte, a compreensão
dessas subjetividades corporificadas. Ou seja, ao invés das antigas abordagens do
“eu” e do “sujeito” (unificado e centrado), dá-se lugar para as subjetividades
dialógicas, múltiplas, inscritas no corpo e pela linguagem (SANTAELLA, 2004). A
subjetivação, portanto,
127
Dos agenciamentos de enunciação surge o sentido, que se expressa enquanto
resultado da mistura dos corpos,
46
A designação, a manifestação e a significação, dimensões discutidas por Deleuze em DELEUZE,
Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.17.
128
neste trabalho, alinho-me às proposições do corpo como significante flutuante no
regime de signos (GIL, 1997). Trata-se desse modo de ser do corpo (da
corporalidade), “que ocorre na correlação do físico, da mente, psique, alma, ou seja,
em pluriarticulacoes de elementos” (ROSÁRIO; AGUIAR, 2014, p.168), cujos
efeitos de sentido por vezes apontam de modo hegemônico à manutenção de
determinados padrões (constituindo regularidades discursivas), mas em outras
também podem escapar às lógicas de regulação em direção à rupturas e
descontinuidades.
A ideia de significante flutuante foi desenvolvida por José Gil (1997) a partir
dos escritos de Lévi-Strauss. Em alguns casos cria-se uma “situação paradoxal: há
sentido, há significado, mas é impossível atribuir-lhe um sentido referenciável e
preciso” (GIL, 1997, p16). Em um cotejo com o pensamento foucaultiano, seria
possível dizer que uma dada corporalidade na condição de significante flutuante
constitui-se enquanto um elemento desestabilizador da decifração de um sentido
homogêneo, o que permitiria compreender o discurso como um acontecimento:
séries homogêneas, mas também descontínuas, marcadas por rupturas que
dispersam os sujeitos em uma pluralidade de posições e funções possíveis, com
certa regularidade e com determinadas condições de possibilidade (FOUCAULT,
2014, p. 54-55).
129
que ela assume um modo de resistência sempre provisório, pois irá produzir,
quando assimilada, novos procedimentos de normalização e de institucionalização.
130
faz e o que se diz? E entre ambos, entre conteudo e a expressao, se
estabelece uma nova relacao [...]: os enunciados ou as expressoes
exprimem transformacoes incorporais que “se atribuem” como tais
(propriedades) aos corpos ou aos conteudos (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 219)
47
Ressalto que identifico o agenciamento ator-personagem, ou seja, o corpo do ator Joaquin
Phoenix com seus personagens Arthur Fleck-Coringa, e que o mesmo enuncia e visibiliza
determinados efeitos de sentido; no entanto, as reflexões acerca desse agenciamento apontam
para outros caminhos que serão discutidos em um estudo posterior, sob a lógica da relação ator-
autor.
131
de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos
elementos da língua” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32).
132
como linhas de fuga agenciando outras misturas de corpos, outras enunciações
coletivas. É rompendo com o território existente que a multiplicidade do corpo-
sujeito de Arthur Fleck pode se tornar o Coringa.
Figuras 1 a 6 – Cenas de Arthur Fleck que enunciam isolamento social, a dependência de remédios e o convívio
solitário com sua mãe. Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros.
Entertainment Inc.
133
quando não mais sob efeito dos medicamentos, passará a se manifestar enquanto
Coringa. As figuras de 7 – 12 expressam dois momentos diferentes do filme em
que Arthur é atacado fisicamente. Isto é, sob a face do palhaço que interpreta em
seu trabalho no cotidiano, há um corpo-sujeito repleto de dor. As cenas são
filmadas de modo a enfatizar o rosto de Arthur, justamente porque ele opera com a
contradição, com a ambiguidade do falso sorriso – um palhaço que por dentro
chora.
O modo como o filme enuncia e visibiliza a transformação de Arthur em Coringa
Figuras 7 a 12 – Cenas em que Arthur Fleck é atacado violentamente durante seu trabalho como palhaço.
Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros. Entertainment Inc.
acontece de forma gradual e progressiva pela narrativa, bem como pela mise-èn-
scène48. Um momento chave dessa transformação se dá logo após ao assassinato
dos jovens empresários no metrô. Arthur deixa a cena do crime às pressas,
correndo, como se estivesse fugindo do que acabara de acontecer. É então que
adentra um banheiro público e ali, ao invés de demonstrar remorso ou mesmo
pânico, transparece uma mórbida tranquilidade ao performar uma dança em estilo
de balé – quase como um momento celebratório de quem ele virá se tornar. As
figuras de 13 – 18 representam momentos da cena, a qual acontece embalada por
48
A mise-en-scène diz respeito a um conjunto de elementos que compõem a encenação fílmica,
desde uma orquestração de olhares, de objetos de cena, de movimentos dos atores e da câmera.
Ou seja, a mise-en-scène abrange o enquadramento, os gestos, a iluminação, a entonação de voz.
(BORDWELL, 2008).
134
uma música instrumental49 de tom melancólico. Sendo assim, há que se considerar
a heterogeneidade das duas formas: de um lado o enunciado da cena, e de outro a
visibilidade da mesma. As relações de tensão entre “o som e a imagem” operam
uma composição estratificada: o visível e o enunciável, “a receptividade da luz e a
espontaneidade da linguagem, operando além das duas formas ou aquém destas”
(DELEUZE, 2006, p. 77). Aqui parece ser o primeiro momento em que a conexão
Arthur–Coringa começa a se expressar.
Figuras 13 a 18 – Cena no interior de um banheiro público em que Arthur Fleck, logo após assassinar jovens no
metrô, performa uma dança em estilo de balé num momento sombrio de tranquilidade. Fotogramas extraídos
do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros. Entertainment Inc.
49
A música é intitulada “Bathroom scene” e foi originalmente composta para o filme pela artista
Hildur Guðnadóttir.
135
virtual e latente em toda a espécie de corpos empíricos que nos formam e
habitam”. Isto é, as relações pelas quais a corporalidade de Arthur Fleck foi
exposta ao longo do filme, produziram as condições de sua transformação em
Coringa. Nas figuras de 19 – 22, as relações entre as imagens e os enunciados
extrapolam os limites das palavras. Tais relações nos dão a ver um corpo em
transformação, um corpo não mais aprisionado e que por isso abraça sua
multiplicidade. É muito importante ressaltar que essa cena, para além da fotografia
que lança luz sobre esse corpo em transformação, conta com a música “That´s
life”, cantada por Frank Sinatra. Trata-se de um jazz orquestrado cuja letra expressa
a necessidade de resiliência, de enfrentamento e superação dos obstáculos como
forma de alcançar seus objetivos e tornar-se quem você deveria ser.
136
Ora, Coringa não está dado ou presumido como sujeito vilão no filme; seu modo
de ser é expressão de um agenciamento com outros corpos e estratos. Assim,
Coringa atualiza murmúrios acerca de categorias como loucura, sanidade, vilania,
não as assumindo destarte pelo prisma da homogeneidade e da unidade. As
relações entre as imagens e os enunciados no filme extrapolam os limites das
palavras e das coisas, pois estão inscritas em um cenário
137
Figuras 23 a 28 – Cena da escadaria na qual o Coringa performa em êxtase uma dança ao som de Rock and Roll
part 2. Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros. Entertainment Inc.
138
Figuras 29 a 33 – Cena em que a corporalidade Arthur Fleck–Coringa ensaia gestos e falas para a entrevista no
programa de Murray Franklin. Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros.
Entertainment Inc.
139
por parte da mídia, pelas manifestações contrárias de uma coletividade – que vê nos
assassinatos de jovens empresários por uma figura vestida de palhaço um sopro de
resistência e de combate aos ricos.
Figuras 34 a 39 – Imagem da Cidade de Gotham; cenas de manifestações sociais (após os assassinatos cometidos
por Arthur Fleck com sua fantasia de palhaço) e de Thomas Wayne em pronunciamento de reeleição para
prefeito; a última imagem evidencia Arthur em meio à manifestação, mas totalmente desconectado do
acontecimento. Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros. Entertainment Inc.
Nesse contexto é que Arthur Fleck sofrerá com o corte da assistência social
psiquiátrica e, uma vez sem seus medicamentos, escapará ao controle, à norma
regulatório institucional. “Desde que existe desorganização de uma ordem ou
desagregação de uma estrutura, vêem-se surgir forças livres, desligadas” (GIL, 1997,
p. 204). Nesse momento do filme Arthur Fleck passa a sofrer com delírios que irão
contaminar (influenciar) seu próprio corpo, bem como o corpo de uma
coletividade excluída, agenciando-se sentidos semióticos irredutíveis, quase como
uma explosão incontrolável. Quando ele assume e domina seu corpo (como
doente), há aí uma transformação do corpo-sujeito. Esta transformação não se dá
meramente no nível narrativo das ações dramáticas, mas é visível e enunciável pelas
imagens (ver figuras 40 – 42) de um corpo que se contorce de maneira assombrosa
e de um rosto cujos sorrisos perturbadores expõe a contradição desta
corporalidade.
140
Figuras 40 a 42 – imagens do corpo esquelético de Arthur e seu sorriso amargo/triste. Fotogramas extraídos do
filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner Bros. Entertainment Inc.
O lugar do cinema, das mídias em geral, sempre foi a preservação “da ideia
do eu”, pois isso conforma práticas regulatórias institucionais, o status quo. Santaella
(2004) discorre sobre esse aspecto, assinalando a seguinte pergunta: “enquanto os
estudos sobre os corpos e as subjetividades esforçam-se por denunciar os vultos
fantasmagóricos que se escondem por trás dos axiomas das crenças do “eu”, as
mídias fazem pesar a balança para o lado das ilusões. Quem ganha a batalha dos
incautos?” (SANTAELLA, 2004, p. 125). Diz ela que as mídias ganham. O que nos
leva para um questionamento acerca do agenciamento Coringa–Cidade de Gotham:
que efeitos de sentido são produzidos a partir dessa semiose?
A análise crítica de José Geraldo Couto (2019), afirma que o filme refere-se
a um levante alegórico da América Profunda, de modo que Coringa é um produto
de seu tempo que, simultaneamente, olha para o passado, aos tempos em que o
cinema norte-americano da década de 70 encarava o abismo, a crise do sujeito, a
141
crise de uma América perdida. É bastante identificável ao longo do filme uma série
de escolhas enunciativas que dialogam com o estilo do cinema norte-americano da
década de 70, principalmente com obras como Táxi Driver (1976) e Rei da Comédia
(1982), ambos dirigidos por Martin Scorsese e protagonizados por Robert de Niro.
No entanto, numa perspectiva da semiose, os efeitos de sentido de Coringa, sobre a
corporalidade da cidade de Gotham, expressam um coletivo desequilibrado,
anarquista, que só precisa de um leve empurrão para ser levado à loucura.
Identifico aqui uma possível dimensão de memória política, coletiva e
acontecimental de fen menos e manifestações amplamente conhecidos como:
Occupy Wall Street (Estados Unidos da America); Occupy London (Inglaterra),
15M/Indignados (Espanha), Que se lixe a Troika! (Portugal, 2012); Occupy Gezi
(Turquia, 2013); Jornadas de Junho (Brasil, 2013), até manifestações mais recentes.
Nas figuras 43 – 48 o foco recai sobre o que se vê: Coringa dentro de um carro da
polícia, enquanto no ambiente externo manifestações de revolta e ações de caos e
destruição. Há quem diga que se trata de um empoderamento do povo contra as
opressões do regime capitalista. Em certa medida talvez. No entanto, o que pode
ser dito sobre o visível não está expresso somente no conteúdo da cena, mas no
encadeamento de sentidos remissivos aos enunciados ao longo do filme. Nesse
sentido, cabe um contraponto importante aqui, sobre essa segunda ordem dos
agenciamentos expressa pelo corpo social da cidade de Gotham. Essa coletividade
que sai às ruas (e nos remete aos fenômenos que mencionei anteriormente) está
amparada, afinal, em quê? No código da loucura de Arthur? No código da
perversidade ou vilania de Coringa?
142
Figuras 43 a 48 – imagens da cena posterior ao assassinato de Murray Franklin, na qual Coringa está sendo
escoltado pela polícia e vislumbra da janela do carro as manifestações de revolta do povo da cidade de Gotham,
muitos dos quais estão usando máscaras de palhaço. Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & ©
2018 Warner Bros. Entertainment Inc.
3. Considerações finais
143
sobre os monstros dos contos infantis e dos filmes de terror: que
encarnam pulsões, desejos e medos dos quais queremos nos livrar. Se a
morte do monstro é um triunfo da civilização contra as forças do
inconsciente, a vitória do herói sobre seu arqui-inimigo é um triunfo da
ordem social vigente, uma restituição do status quo (COUTO, 2019, p.01).
Foucault (1977, 1995, 2014) nos faz questionar: quem pode falar? De que
lugar fala? Que relações estão em jogo entre a pessoa que fala e o objeto do qual
fala com quem está sujeito à sua fala? Isto é, o que pode o cinema falar sobre a
loucura, distúrbios mentais, psicopatia, vilania, etc? Essas enunciações não são
postas em discurso por meio de um sujeito unificante, e tampouco produzem esse
sujeito como consequência. Tratam-se de condições históricas e sociais, da
ocupação de um lugar e particular para que os regimes de enunciação e de
visibilidade aconteçam. Por isso é possível, por exemplo, observarmos tratamentos
tão díspares do personagem Coringa ao longo da história no cinema50.
50
Vários filmes, séries e animações já adaptaram o personagem de Coringa. Aqui é possível
conferir uma lista com algumas das 8 adaptações mais relevantes dentro do universo nerd:
<https://www.nerdsite.com.br/2019/10/listamos-os-8-melhores-coringas-do-cinema-do-pior-
para-o-melhor-vem-ver/>. Acesso em: 02/06/2020.
144
corpo-sujeito doente e nos acontecimentos histórico-sociais condições que
produzem o agenciamento e a transformação da loucura como uma forma de
expressão da multiplicidade do eu. O filme opera semioses que nos permitem
compreender a corporalidade Arthur Fleck–Coringa sob o prisma do corpo abjeto.
Esse agenciamento semiótico remete-nos às regularidades discursivas dos corpos
marginalizados. Mas, ao mesmo tempo em que produz tais repetições, a
singularidade de Arthur Fleck–Coringa, ao operar enquanto significante flutuante,
funciona como transmutador de códigos – de modo a desorganizar os códigos da
sanidade, da psicopatia, do vilão. Para Gil (1997, p. 58)
145
um “pano de fundo” (background). As figuras 49 – 51 expressam o foco da imagem
sobre Coringa, a multidão que o abraça e o celebra não tem rosto – é desfocada.
Figuras 49 a 51 – após ser liberto da escolta polícia por um figurante usando máscara de palhaço, Coringa é
aclamado, tal qual um herói, pela multidão. Fotogramas extraídos do filme pela autora, 2019. TM & © 2018 Warner
Bros. Entertainment Inc.
51
No original: Esa es, en efecto, la paradoja de los figurantes: tienen un rostro, un cuerpo, gestos
bien característicos, pero la puesta en escena que los demanda los quiere sin rostro, sin cuerpo,
sin gestos característicos. A menudo, por lo demás, uno tiene la impresión de que los figurantes
se vengan de la indiferenciación que se les impone mediante una indiferencia discreta, pero a
veces fácilmente perceptible – vuelta contra la história misma que decoran.
146
Nesse sentido, os agenciamentos operam, por um lado, movimentos de
reterritorialização. Ora, “a reterritorialização como operação original não exprime
um retorno ao território, mas essas relações diferenciais interiores à própria
desterritorialização, essa multiplicidade interior à linha de fuga” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997b, p. 225). As linhas de fuga proliferam rizomaticamente, até
encontrar as linhas de árvore que segmentarizam e estratificam uma virtualidade
num movimento de reterritorialização: Coringa passa, portanto, de vilão, a herói-
líder celebrado. No interior deste território de significação as ações de uma
coletividade amorfa e desequilibrada poderiam ser justificadas.
Referências
147
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014
GIL, J. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio d‟Água, 1997.
MARCONDES FILHO, Ciro. O escavador de silêncios. São Paulo: Paulus, 2004.
MIRANDA, Danniele. Semioses das ocupações: o corpo como significante flutuante no
exercício performativo de ocupar as ruas. Anais do 42º Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação, 2019.
ROSÁRIO, Nísia Martins; AGUIAR, Lisiane M. Implosão midiática: corporalidades
nas configurações de sentidos da linguagem. Significação, v. 41 - nº 42, p.166-185,
2014.
SANTAELLA, Lúcia. Corpo e Comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.
Filmografia
Coringa (Joker). Direção: Todd Phillips. Warner Bros. Pictures & DC Comics. Los
Angeles/EUA. 2019.
148
A poesia de Antonella Anedda: “Il mondo che il linguaggio
ci permette di scrutare nasce dal dettaglio”
149
que me lembrassem as imagens que encontrei num livro com que me
deparei no salão de uma velha tia. Era uma edição de luxo do Inferno de
Dante. Achava que os heróis cujos feitos bruxuleavam na galeria da
Coluna deviam ser tão suspeitos quanto as multidões sujeitas à
penitência, fustigadas por ventos em turbilhão, enxertadas em troncos de
árvores sangrentos, congeladas em glaciares. Por isso esse deambulatório
era o inferno, a antítese do círculo da graça que envolvia a
resplandecente Vitória lá no alto. Em certos dias havia pessoas lá em
cima. Contra o céu, pareciam-me ter contornos negros como as
figurinhas dos álbuns de recortar e colar. Não lançava eu mão da tesoura
e cola para, depois de terminada a construção, distribuir bonecos
semelhantes pelos portais, nichos e parapeitos de janelas? (BENJAMIN,
2017, p. 74-75)
150
O passado irrompe no presente, causando um curto-circuito numa visão de
tipo cronológica. É para esse movimento que a citação-título de Antonella Anedda
parece, então, apontar. O que acontece nos momentos em que o detalhe é
percebido? Quais surpresas esses momentos conservam? O que faz quem olha um
pouco mais de perto? Essas são algumas questões presentes no livro de Daniel
Arasse dedicado ao detalhe, que é visto pelo estudioso da arte como um desvio, ao
deslocar a própria obra – mesmo permanecendo paradoxalmente ali –, no qual os
particulares passam a receber, na medida em que são vistos, um outro tratamento.52
52
Cf. ARASSE, Daniel 2017. Em La vita dei dettagli, Anedda cita Arasse numa urdidura
interessante: Anedda, que cita Arasse que fala de Rilke, que fala de um quadro de Jan van Eyck. E
segundo Anedda é também a partir do fragmento de Rilke que Arasse sublinha o “triunfo do
detalhe” como um “aceno” subjetivo, cujo efeito se da por meio do deslocamento e do delirante.
(ANEDDA 2009, p. 77).
53
“Il binocolo ingigantisce i dettagli. Mi fermavo su un cappello, una giacca, un bastone. Non
inventavo storie, componevo quadri mentali e da quei particolari si spalancavano visioni surreali,
accostamenti impensabili. Guardavo le bocche che si aprivano, senza sentire i discorsi, e
immaginavo i dialoghi, le unioni, gli abbandoni. Quelle osservazioni solitarie si sono trasformate
nel tempo in uno dei miei piaceri più duraturi, in isole del pensiero con una pazza callida iunctura.”.
151
pespontando coisas distantes e, a princípio, estranhas e desconectadas. Um
anacronismo, uma quebra nas relações de tempo, que fica explicitado a partir de
uma outra suspensão vinda de Horácio: “callida iunctura”. Ou seja, a aproximação de
dois termos de forma engenhosa, cuja soma lhes dá um terceiro significado – mais
uma sobreposição. Quem já possui certa familiaridade com a escrita de Antonella
Anedda sabe que o detalhe não é um adereço, não é um mero acabamento, mas é
um coração pulsante. O deslocamento e a decomposição de uma imagem, os
recortes dos detalhes, por exemplo, estão presentes em La vita dei dettagli (2009),
cuja última seção tem como título “Collezionare perdite” [Colecionar perdas].
Chama a atenção, aqui, o uso do verbo “colecionar” no infinitivo por dar a ideia de
uma ação que ainda se faz, além da refinada impureza encontradas nessas páginas.
Pegar uma fotografia, cortar as partes mais adoradas é o gesto proposto por
Anedda para dar forma a uma realidade à qual não se tem acesso de outro modo.
Recortes que também se fazem presentes em sua escrita, em alguns momentos feita
também com recortes, farrapos de uma língua comum, do dialeto sardo, de um
diálogo intermitente com a tradição. O corpo da escrita se inscreve no corpo de
uma experiência, que é inapreensível.
Além de Vita dei dettagli, é a quinta coletânea de poemas, Salva con nome
(2012), que expõe na poesia esse gesto hibridizar as formas: letra, palavra, imagens,
fotografias. O termo “salva” no título indica a tentativa dessa operação, que evoca
uma ação mais do que comum com quem trabalha com o computador: o comando
de indicar o nome de um documento quando este está sendo, justamente, salvo na
memória do computador ou numa outra memória a este acoplada. Como os
arquivos salvados e esquecidos quando recuperados não são mais os mesmos, as
fotografias desse livro são espectrais porque falam de algo que não mais existe, mas
que de alguma forma ainda resiste: “são eles, mas não exatamente eles” [sono loro
ma non exatamente loro] (ANEDDA, 2012, p. 16). O que fica, portanto, é a
dimensão do insalvável, cujo centro é a instabilidade, a sensação de fragilidade e de
152
completa exposição. Salvar – para retomar as imagens das agulhas e fios, presentes
nas fotografias de Salva com nome – é, portanto, uma tentativa de tecer, coser,
selecionar, excluir e remendar os fragmentos. Gesto que deixa sua marca no
percurso-cicatriz deixado pela linha (linha da costura, linha da escrita), que mesmo
parecendo invisível está ali: é o detalhe. A linguagem, como o fio na costura – que
ora aparece ora some –, é o que permite perscrutar o detalhe e dele, às vezes,
prospectar. Nesse sentido é possível trazer o nome de uma autora cara a Anedda,
Marina Cvetaeva, para quem a arte não tem o fim em si mesmo, mas é uma ponte –
eis o papel da linguagem – não um fim. De fato, a escrita desloca a todo momento
o sujeito, o questiona a partir dessa experiência que deixa uma inscrição (a própria
experiência, por exemplo, com o dialeto sardo). Nas palavras de Simone Moschen
Rickes, “a escrita funciona como uma cicatriz, produzindo junção aí onde a cisão é
irremediável. É inapagável” (RICKES, 2002, p. 67).
Romana de origens sardas, desde seu primeiro livro Residenze invernali (1992),
Anedda traz uma pluralidade de linguagens que pouco a pouco com as demais
publicações vai se intensificando. A paisagem essencial e atemporal presente desde
as memórias da infância parece calibrar a sua própria voz poética (“os rochedos
sem flores” [gli scogli senza fiori]), que corrói o canto para encontrar seu verso, sua
essencialidade. Na prosa de 2013, dedicada ao arquipélago da Maddalena54, algumas
reflexões feitas a partir da geografia e desse espaço tão peculiar podem ser indícios
que retornam em sua relação com a linguagem. Logo no primeiro capítulo,
“Aproximação” [Avvicinamento], são dadas algumas coordenadas: 1) “Conhece a
proteção, mas também o máximo de exposição” e ainda:
A constrição do espaço dilata, escancara-o para todos os quatro pontos
cardeais, não para de nos fazer sonhar com o que existe para além do
mar. De uma ilha se imaginam os continentes, as extensões de terras,
54
Grupo de ilhas ao norte da costa leste da Sardenha. é o primeiro livro dedicado a esse território,
mas ele já se fazia presente em publicações anteriores.
153
percorríeis. A constrição aumenta o desejo de distância. (ANEDDA,
2013, p.3)55
Naquela Suécia, onde eu devia falar uma língua que me era estrangeira,
compreendi que podia habitar minha língua, com sua fisionomia
subitamente particular, como sendo o lugar mais secreto, porém mais
seguro de minha residência nesse lugar sem lugar que é o país estrangeiro
onde nos encontramos. (FOUCAULT, 2016, p. 38)56
55
“Conosci la protezione ma anche il massimo dell‟esposizione”, “La costrizione dello spazio
dilata, lo spalanca per tutti i quattro punti cardinali, non smette di farci sognare quello che c‟è
oltre il mare. Da un‟isola si immaginano i continenti, le terre distese, percorribili. La costrizione
aumenta il desiderio della distanza.
56
Num outro momento dessa conversa, Foucult toca num aspecto que também é mais do que
caro no laboratório poético de Antonella Anedda, a saber, o sujeito, a dicção do “eu”. Diz
Foucault: “Escreve-se para se chegar ao limite da língua, para se chegar por conseguinte, ao limite
de toda a linguagem possível, para fechar enfim através da plenitude do discurso a infinidade
vazia da língua. [...] Escreve-se também para não se ter mais rosto, pa fugir de si mesmo sob sua
própria escrita. [...] Escrever, no fundo, é tentar fazer fluir, pelos canais misteriosos da pena e da
escrita, toda a substância, não apenas da existência, mas do corpo nesses traços minúsculos que
depositamos sobre o papel. Não ser mais, em matéria de vida, que essa garatuja ao mesmo tempo
morta e tagarela que depositamos sobre a folha branca, é com isso com que se sonha quando se
escreve” (FOUCAULT, 2016, p .66)
154
É numa situação de deslocamento que Foucault, numa das conversas com
Claude Bonnefoy, entre o verão e o outono de 1968, pensa no que chamou de
“casinha da linguagem”. A escrita é também fruto de uma impotência, em que a
relação com a morte só pode estar latente nesse gesto. Tal experiência, a da
precariedade, de uma potência de não, também é tratada por Anedda no livro
dedicado ao arquipélago da Maddalena.
57
“La lingua non mia, almeno all‟inizio, mi culla. Essere stranieri rende il nostro linguaggio
precario. Vivere in un paese non nostro costringe alla povertà ma evita le frasi scontate.
Contempla l‟allerta quasi continua del corpo e della mente. Parlare un‟altra lingua ci spella vivi e ci
scaccia proprio nell‟angolo in cui pensavamo non saremmo più tornati e dove – conosciamo il
terreno – ci sono sabbie mobili, smottamento, fango e la nostra voce che muore. Esistono punti
della nostra vita in cui affondiamo per metà inghiottiti e agitiamo le braccia e le gambe per
risalire, ma quando finalmente risaliamo con quel pugno di parole cominciamo a sopravvivere,
sopravviviamo.”
58
FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira: Sobre literatura. Trad. Fernando Scheib. Belo
Horizonte: Autêntica, 2016, p. 57. Ver também PETERLE, 2017.
155
O poema dedicado a Amelia Rosselli é um canto de luto e uma tentativa de
falar sobre essa irrecuperável ausência causada pela morte. O título de um texto de
Andrea Cortellessa sobre Rosselli também diz muito, “Amelia Rosselli, uma
aproximação ao Tremendo” [Amelia Rosselli, una vicinanza al Tremendo], e o
crítico ainda acrescenta que sua obra precisa e merece ser repensada. Filha de Carlo
Rosselli, um dos fundadores em 1929 do movimento Giustizia e Libertà,
assassinado na França provavelmente por ordem de Mussolini, e de Marion
Catherine Cave, ativista política, teve uma formação entre a cultura de língua
inglesa e italiana. Sua formação deu-se entre a Suíça, os Estados Unidos e a
Inglaterra. Em 1946, retorna à Itália e vai se aproximar dos círculos literários
romanos, chamando depois a atenção de poetas como Andrea Zanzotto, Pier Paolo
Pasolini e Giovani Raboni. Essa formação híbrida lhe permitiu escrever tanto em
italiano quanto em inglês, além de fazer várias traduções para editoras italianas. O
diagnóstico de esquizofrenia nunca foi totalmente aceito por ela, que se suicida no
dia 11 de fevereiro de 1996, devido a uma grande depressão. A data do suicídio
remete a uma escritora que Rosselli muito traduziu e sobre a qual também escreveu,
Sylvia Plath. Os versos do longo poema dedicado à sua morte, escrito um mês
depois do suicídio e sem título, expressam por parte de Antonella Anedda o desejo
de transformar a partida, a perda num diálogo afetivo para além da morte: “Non
ho voce, né canto / ma una lingua intrecciata di paglia / ma una lingua intrecciata
di paglia / una lingua di corda e sale chiuso nel pugno /e fitto in ogni fessura / nel
cancello di casa che batte sul tumulo duro dell‟alba / dal buio al buio / per chi resta
/ per chi ruota”. (ANEDDA, 1999, p. 68)59 Interessante lembrar que nesse livro,
59
Na entrevista publicada em Vozes: “Este é o fim de uma longa poesia escrita para o suicídio de
uma das vozes mais importantes da poesia italiana do século XX: Amelia Rosselli. Era um canto
de luto, mas também um diálogo com Amelia e com a poesia, com a pessoa e com a morte, com
a ausência e com a linguagem que tenta dizer dessa ausência”. (PETERLE; SANTI, 2017, p. 270.
E sobre Rosselli, em Cosa sono gli anni, Anedda na abertura do capítulo intitulado “Diario” diz: “Li
Diario ottuso di Amelia Rosselli, em poucas horas noturnas. De manha, enquanto o leite fervia,
preguei as páginas rasgadas na parede da cozinha, na altura dos olhos. Dever-se-ia ter a força de
pensar na morte, de falar da morte sem nunca pronunciar essa palavra eu. Quem escreve deveria
156
Notti di pace occidentale, a quarta seção intitulada “Notturni [Noturnos], marcada pelo
equilíbrio entre o tom prosaico e lírico, não deixa de ecoar Diario ottuso (1954-1968)
de Amélia Rosselli.
Voltemos, agora, ao início desse texto, à epígrafe: “Ora solo il linguaggio può
ridire quei gesti / scriverne piano ripetendo l‟ardore con cautela / fissando perché
restino ancora in questa stanza / le grandi ombre di allora.” (ANEDDA, 1999, p.
59). Só a linguagem pode dizer novamente aqueles gestos (reminiscências, algo da
esfera do irrecuperável) – ela abre, (re)cria mundos – constrói abrigo para aquilo
que é residual. Aqui o termo linguagem retorna com toda sua intensidade e
potencialidades, nesses versos, inseridos, extamente, na seção “Notturni”. Numa
tendência que os leva quase ao limite, beirando a prosa, eles são embalados por um
ritmo próprio, parecem acolher e, ao mesmo tempo, expor uma demanda, a saber,
a fragilidade das experiências e a necessidade de recordação. A linguagem, nesse
sentido, é um meio para manter de algum modo viva o ardor das reminiscências, é
um registro mesmo que parcial da relação(ões) e a sobrevivência daquelas “grandes
sombras de então”. Uma forma de trabalhar a linguagem, então, consiste em sair da
própria língua, sentir-se estrangeiro dentro dela. Nesse sentido, como aponta
Riccardo Donati, além de Amelia Rosselli, Paul Celan, Ossip Mandelstam são
outros nomes que a acompanham em seuas leitura e na sua escritura. 60
distanciar-se de tudo, deixar a morte sozinha, tirar-se toda voz”, “Si dovrebbe avere la forza di
pensar ela morte, di parlare della morte senza mai pronunciar ela prarola io. Chi scrive dovrebbe
scostarsi del tutto, lasciare la morte sola, togliersi ogni voce”. (ANEDDA, 1997, p. 29).
60
Cf. DONATI, 2020.
157
eloquentia, do Livro II,9, quando Dante fala desse espaço como um regaço. 61
Anedda, leitora de Dante, adentra e percorre em diferentes momentos seus textos.
A estância da poesia, como a morada da língua, regaço que abre um espaço para a
partilha na intimidade de um ser estranho, expondo-o e acolhendo-o. Um fio em
direção ao mistério
Será então que essas estâncias podem ser lidas como pegadas ou rastro de
eventos idos, uma espécie de concreção arqueológica, de “pensamentos
petrificados”, que na escrita, encontram um abrigo?62 Uma linguagem pré e pós-
gramatical na urdidura dessa poesia, que não deixa de expor a própria linguagem e
com ela a singularidade das relações; mas também sua precariedade e a experiência
de impotência.63 Tudo isso comporta a suspensão dos significados usuais e
desbotados e das palavras para que se conserve algo que o tempo cisma em apagar.
61
“A respeito disso é preciso saber que este vocábulo foi criado somente em consideração da
arte, isto é, de modo tal que aquilo em que estivesse contida toda a arte da canção fosse chamado
de stantia – o que significa residência capaz ou também receptáculo – de toda a arte. Pois, do
mesmo modo que a canção é como o regaço de toda a sentença, assim a stantia recolhe no seu
regaço toda a arte”. (AGAMBEN, 2007, p. 17).
62
Cf. ANEDDA, 2013, p. 40.
63
ANEDDA, 1997, p. 51-52.
158
um trecho sobre transmissão e contágio com o dialeto. E, enfim, em Historiae,
publicado em 2018, cuja primeira seção intitulada “Osservatorio”, abre o livro com
um poema intitulado “Limba”. Uma presença que é constante, talvez uma busca
pela sobrevivência de certas lembranças e experiências. A propósito dessa relação, é
interessante lembrar que Anedda, como ela mesma já teve a oportunidade de dizer,
escreve da Sardenha coisas que possui e guarde em sua intimidade mais profunda, a
memória. Ela se considera uma sarda que vive em outro lugar, mas que talvez não
poderia viver na Sardenha, além disso “non parlo sardo, lo capisco e lo ascolto”
[não falo sardo, o entende e o escuta]. (ANEDDA, 2007, p. 31) Sua “limba”, diz a
poeta, não é inata e não é pura; é, portanto, na incerteza, na solidão – e porque não
na estranheza da língua – que está seu modo de fazer poesia: atraversar “uma terra
estrangeira como uma língua não completamente minha”. (ANEDDA, 2007, p. 32)
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007, p. 17.
AGAMBEN, Giorgio. Ideia de prosa. Trad. João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999.
ANEDDA, Antonella. “La memoria”. In: Cartos de logu: scrittori sardi allo specchio.
Cagliari: CUEC, 2007, p.31
ANEDDA, Antonella. Cosa sono gli anni: saggi e racconti. Roma: Fazi Editore, 1997, p.
29
ANEDDA, Antonella. Isolatria: viaggio nell’arcipelago della Maddalena. Roma, Bari:
Laterza, 2013.
ANEDDA, Antonella. La vita dei dettagli. Roma: Donzelli, 2009, p. 77.
ANEDDA, Antonella. Notti di pace occidentale. Roma: Donzelli, 1999.
ANEDDA, Antonella. Salva con nome. Milano: Mondadori, 2012, p. .
ARASSE, Daniel. Il dettaglio: la pittura vista da vicino. Trad. Aurelio Pino. Milano: Il
Saggiatore, 2017.
159
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única: infância berlinense. Trad. João Barrento.
Belo Horizonte: Autêntica, 2017, pp. 74-75.
DONATI, Riccardo. Apri gli occhi e resisti: l‟opera in versi e in prosa di Antonella
Anedda. Firenze: Carocci, 2020.
FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira: Sobre literatura. Trad. Fernando Scheib.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016ª.
FOUCAULT, Michel. O belo perigo: conversa com Claude Bonnefoy. Trad. Fernando
Scheib. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. Vozes: cinco décadas de poesia italiana. Rio de
Janeiro: Comunità, 2017.
PETERLE, Patricia. “Limites e perigos”. In: Rascunho, n. 199, Curitiba. Disponível
em http://rascunho.com.br/limites-e-perigos/ . Acesso 15/06/2017.
RICKES, Simone Moschen. “A escritura como cicatriz”. In: Educaçao e Realidade, n.
27, jan.-jun., 2002.
160
A política e a estética do cotidiano no corpo e na voz
161
– ainda que sem escapar ao sinal, parado no vermelho ou no amarelo. Desta forma,
intento assinalar um acontecer pontual de dessubjetivação na trajetória de uma
cantora popular. São atos éticos através dos quais, é somente enquanto canta que
Elis Regina desinstala em si sítios insustentáveis de subjetivação. A cantora age na
contramão dos modos de reação subjetiva à ditadura militar: por um lado não adere
à interpelação de ativistas radicais, por outro desobedece a censura imposta ao
regime e decide, usando sua voz no canto, não ficar calada.
Não obstante, vale lembrar que, embora se trate de uma cantora percorrendo
regiões discursivas passíveis de fazer sua biografia, em vez de objetiva-la
analiticamente como pessoa, abordo-a no quadro de seu ato cantante em vias de
realização. O que me interessa é observa-la na natureza corpórea e incorpórea de
seu ato (DELEUZE, 1995). Corpórea porque é ação vocal originada no corpo,
incorpórea no que a voz produz como efeito para além da área corporal que a
lança. Daí que o canto de Elis pode, a cada execução, tornar-se agente capaz de
produzir uma realidade, a mesma de que fala em versos e melodia no tempo em
que dura seu cantar.
162
a ouvir a denúncia dos horrores vividos em tempo presente. Meu interesse é
analisar como a performance da cantora, materializada no corpo e na ação vocal,
pode descrever o trabalho do sujeito sobre si corporificado na voz.
Entretanto, não se trata de separar o que vive a cantora no palco daquilo que
vive a mulher em sua vida cotidiana, ou seja, quando não está no palco. Por isso,
noção de “vida artista”, cunhada por Michel Foucault, deve ser sempre o fio
condutor axial a reger meu procedimento de análise. Essa expressão – “vida-artista”
-, do modo com que é formulada por Foucault conduz a considerar o plano do
vivido em que, em certo domínio artístico, se percebe como o sujeito se expõe em
processo de constituição. Mais precisamente importa focalizar aí não só a
subjetividade acontecendo pela criação de uma obra, mas o sujeito enquanto
acontece fazendo de sua existência uma obra de arte. Nesta perspectiva, destaca-se
a vida-artista encetando por certo exercício etico-politico tendo sempre lugar na
medida em que a arte de viver no/pelo sujeito é produto de uma recusa, recusa a se
dobrar a certo modo fascista de vida.
163
sujeito e o que ele mesmo faz de si. O estilo próprio presente na obra como
produto se confunde com o estilo de existência do artista. Em Elis, parece que a
maneira de existir cantando demarca-se pela exacerbação no ato de cantar, levando
em conta as respectivas circunstâncias em que acontece o canto.
Se o estilo de vida não se reduz à obra, também não se descola dela. O fazer
da arte, na forma material que lhe é próprio, mantém-se como vestígio na obra,
mas pode sobretudo designar o modo de o artista existir. Isto não só porque Elis
tornava-se intérprete de si mesma cantando ao vivo ou em disco. Só que sua voz
soava como um indicador apontando para fora de si um canteiro de vidas outras
em obra, inventando maneiras de resistir ao golpe militar exilando possibilidades de
encontros. Vale citar o critico e analista da discografia de Eleis Regina, Winnie
Minuz, que, a meu ver, quando analisa o disco Elis, lançado em 1977, melhor
ilumina um caso de vida artista tendo lugar na voz.
164
dela uma testemunha singular. Negando-se a confrontar os algozes que a
torturaram sem tocá-la e tampouco consentindo a fazer coro com seus parceiros de
momento que se lançaram na luta armada, expôs sua voz contra a corrente
interceptora de fluxos íntimos e coletivos de encontros e de vida em tempo de
ditadura no Brasil. Isso é o que ecoa nas modalidades vocais articuladas em
oráculos de cartomante e em anúncios de boa nova para chorosas Marias e Clarices.
2.
Na ação vocal que Elis Regina emprega para cantar “Sinal Fechado”, há uma
temporalidade em que nada acontece a não ser pelo ato enunciativo pontuando
instâncias verbais de interlocução. Aí pode se entrever um vozear emitido de modo
a dar forma à sua existência no instante do encontro entre dois amigos. Ao mesmo
tempo, pelo procedimento de distribuição das falas na letra e na melodia, adotado
pelo compositor Paulinho da Viola, apresenta-se a modalidade do cotidiano, não
como algo já dado, mas como efeito da experiência ordinária que o falante produz a
si no entrecruzamento de sua voz com a de outro.
Olá como vai: Tudo bem eu vou indo. E você, tudo bem? Desta maneira é
que se abre nos dois primeiros versos a canção apontando para o ordinário de
existências que resistem e insistem malgrado o subjugo de um regime ditatorial
impedindo cenas cotidianas de encontros na rua. Basta este destaque em meio ao
desenvolvimento da canção para, aplicando o ponto de vista de Lorenzini, mostrar
como a voz pode ser uma modalidade de técnica de transformação na relação
consigo mesmo, com os outros e com o mundo.
165
levemente o ritmo ao emitir, no final da frase melódica, na poeira da rua. No
segundo, o vozeado articula-se melodicamente de modo ralentado; figurando
prosodicamente a fuga do que se tem a dizer, algo que ali esteve e agora não mais,
Ao proferir as duas últimas sílabas da palavra „lembrança‟ a voz vai desmaiando até
esvair-se na última sílaba. Não obstante, a voz não perde sua força ocupando seu
tempo no tempo melódico da canção a fim de deixar registrado o pedido – por
favor, telefone, eu preciso beber alguma coisa rapidamente – e a dar a vez de
emendar a promessa – esta semana, eu procuro você.
166
O elemento a destacar aí é a maneira como as articulações vocais dentro da
melodia da canção remete à pura experiência ordinária Cada transeunte há de
sempre dizer a outro: “me perdoe a pressa, é a alma de nosso negócio.” Pontuo,
nesses termos, a tensão entre o tempo em curso no presente da enunciação e o
tempo a viver. Assim se tece a escrita do cotidiano através da voz em curso, soando
numa autonomia relativa junto ao corpo. Temos aqui uma cartografia heterotópica
em que vários corpos sonorizam na voz da cantora uma dor que é de mais de um.
167
cena na voz. Neste caso, tenho de me deter nas intermitentes modulações vocais
em que a atuação da cantora Elis Regina no palco dá a ver a presença do si
expondo o que se passa consigo nas condições politicas que subjazem à sua
performance. Tem-se aqui a protagonização da voz dando conta do labor ético e
político moldando a existência da artista no e fora do espetáculo que estrela. O que
sobressai é a intensidade da emissão vocal, mais que o conteúdo e a estrutura frasal
emitida. Sobressai o trabalho ético do sujeito buscando o caminho de deixar-se
conduzir por outro a fim de conduzir a si mesma. A ditadura cerceia, mas não
elimina no sujeito alguma força tendendo ao resistir. Isso, demostro a seguir, vem
em tempo forte, quando Elis Regina termina esta parte do espetáculo cantando a
música de João Bosco e Aldir Blanc, Transversal do tempo.
168
Esta afirmação balizada em uma filosofia analítica politicamente orientada,
me conduz a destacar, no ato vocal da cantora, a operação ética e política realizada
na voz da cantora enquanto transita da melodia hesitante e intermitente de “Sinal
fechado”, para o tom assertivo e denunciante de Transversal do tempo. Na
transição de uma melodia e letra para outra, a voz faz perceber o trabalho a que
deve atentar no instante de passagem de um lugar a outro de subjetivação. Entre o
canto que se realiza em “Sinal fechado”, e o que se produz em Transversal do
tempo, há uma passagem do ato de se deixar conduzir por forças controladoras do
tempo de ser sujeito ao ato de se conduzir promovendo em si forças contrapostas
na região da memória do poder tendo seu auge no feixe de militares que se
sucederam na presidência do Brasil. Imprescindível alertar que, sem considerar
essas condições políticas, fica impossível tornar visível e audível um exercício de
resistência e de recusa a que aplico o conceito de dessubjetivação. É bem este o
trabalho ético e político que ressalto em certa atuação vocal historicamente
emblemática na vida artista de Elis Regina.
169
da nota musical, a cantora marca de forma apropriada o sentido de cada frase, e
nele mesmo o movimento de subjetivação dramatizado no limite da resistência.
É possível neste ponto de minha análise, colocar o ato de Elis Regina, não
no plano da ação filosófica, mas no lugar do sujeito comum que, pelo que tanto que
sabe de sua experiencia ordinária, define o papel da filosofia conforme propõe
Cavell. Se nos atentamos ao modo realiza seu canto, podemos perceber que Elis
Regina faz sua audiência colocar a atenção sobre o que declara estar diante dos
próprios olhos. Aí reside o ponto de contato entre as duas frases melodicamente
pronunciadas, cada uma tendo seu tempo duração na voz: ªas coisas que eu sei de
mimª [...] ªsão pivetes da cidadeª. Assim dizendo e cantando, Elis conduz sua plateia
a prestar atenção não apenas no que diz, mas que é capaz de fazer ver, enquanto
canto, a respeito de uma experiência cotidiana.
Quero sim forçar um pensamento sobre o labor ético do sujeito sobre si que
poderia ser o do filosofo, mas aqui equivale ao trabalho estético que, no caso, é o
de uma cantora. Arrisco-me a aplicar ao evento que ressalto em uma execução
vocal de Elis Regina o que seria da alçada do fazer filosófico, nos termos em que
bem esclarece Danielle Lorenzinni.
170
Parafraseando uma célebre afirmação de Wittgenstein, poderíamos dizer que,
para chegar a ver claro acerca da ética, nos é preciso descrever (prestar atenção na
descrição) maneiras ordinárias de viver, pois é bem “na linguagem (no que dizemos
e lemos) que se exerce a ética”: É esta capacidade de ver o óbvio, que constitui
segundo Cavell a dificuldade principal da filosofia, encontra portanto na literatura e
no cinema lugares privilegiados a de exercício e de colocação à prova.
171
numa ambulância‟‟. De modo alongado e intenso, a emissão da vogal arrastando-se
como é ao mesmo tempo o audível da sirene somado ao grito de quem pede escuta.
Mais que aludir ou referir, é preciso fazer aparecer a cena indiciada na voz.
Para esse efeito de presença do que estaria fora da enunciação é que a cantora
mantém na e pela ação vocal uma pronunciação abrindo espaço para o tempo de
emitir, palavra a palavra, na frase cantada. Aí, dramaturgicamente, vale pontuar, o
sentir-se pouco à vontade, bem como o ver-se fechada dentro de um táxi, em vez
de coisa dita, é o que acontece mediante o trabalho da voz em ato na enunciação
cantada.
172
Palavras finais
Ao longo deste texto pretendi desenvolver uma análise mediante os
conceitos de experiência ordinária e de dessubjetivação. Adotando, nesta parte
final, uma atitude mais de revisão que de conclusão, considero tais dos conceitos
mais do que explicitado em um quadro teórico preciso, funcionaram mais um efeito
da análise que o, o pressuposto dela.
173
Tudo isso fica visível e compartilhável no exato momento em que estende a
cena do difícil encontro entre amigos diante do sinal fechado para a cena do sujeito
que solitariamente se depara com situações desconcertantes diante do sinal sem sair
do amarelo. Pontuo, assim analiticamente, a recusa do sujeito cuja coragem é poder
dizer não ao que sabe de si despontado no ordinário da experiência de viver
acorrentado nas malhas de um poder tirano.
Por seu turno, o corpo que serve de lugar de transferência vale como um
tubo de ensaio permitindo isolar a voz no seu movimento de pura atividade
enunciativa. Em síntese, o trabalho da cantora em cena do espetáculo Transversal
do tempo pode descrever a performatividade de uma enunciação enquanto, no
174
campo da linguagem, é o ter lugar da dessubjetivação. Do que vivera na experiência
de ser interpelada e constrangida pela ditadura, Elis Regina exibiu em sua própria
atuação a experiência do sujeito de saber urbano a vir.
Referências
175
Eros e Tânatos: o feminicídio no século XIX em D.
Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro
64
Uma versão deste texto foi publicada na dissertação “A morte da personagem feminina na
prosa romântica brasileira” (UEL, 2002). Essa nova versão se justifica por se tratar de texto de
raro romance de autoria feminina do século XIX, um dos únicos, talvez o único, a abordar o
feminicídio, e uma vez que o texto original possui apenas uma cópia física disponível na
biblioteca da Universidade Estadual de Londrina. A retomada desta abordagem se dá em virtude
do novo projeto de pesquisa a ser desenvolvido, o qual tratará do fio tensionado da literatura, ao
destacar as escritoras de ontem e de hoje.
176
Apesar do reduzido espaço literário ocupado pelas escritoras na história
literária do século XIX, houve as que publicaram seus poemas, assim como, em
menor número, aquelas que publicaram romances65. Torna-se assim bastante
interessante e pertinente que se possa conhecer a maneira com que essas escritoras
tratavam dos temas mais caros ao Romantismo, como amor e morte, por exemplo.
Assim, destaca-se o romance D. Narcisa de Villar, de Ana Luísa de Azevedo Castro
(1823?-1869) publicado em folhetins, em 1858, e com consequente publicação em
livro, um ano depois66. A autora utilizou o pseudônimo Indygena do Ypiranga,
sendo essa prática comumente utilizada por outras escritoras da época, dentre
muitas possibilidades, como forma de se defenderem dos ataques da crítica literária.
São escassas as informações biográficas em relação à autora. Dentre os dados
disponíveis no estudo introdutório do romance67, consta que nasceu em Santa
Catarina, provavelmente em 1823, casou-se no Rio de Janeiro, onde veio a falecer,
em 1869. Trabalhou por muitos anos como diretora e professora de um colégio de
instrução primária e humanidades para meninas. Após a publicação do folhetim em
1858 e a publicação do romance em livro em 1859, a obra só foi novamente
publicada em 1990, pela Editora Mulheres, e vem recebendo algumas edições desde
então68, inclusive integrando o rol de obras literárias para o vestibular da UFSC, na
primeira década deste século.
65
A esse respeito sugere-se conhecer a obra Escritoras brasileiras do século XIX, coleção em três
volumes, organizada por Zahidé L. Muzart e referenciada na bibliografia deste texto.
66
Essa edição encontra-se disponível em formato digital na Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3916
67
MUZART, Zahidé L. “Uma precursora: Ana Luísa de Azevedo Castro”. In: D. Narcisa de
Villar: Legenda do tempo colonial. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.
68
A edição utilizada para este texto é a 1997, publicada pela Editora Mulheres.
177
instruir”. Enfatiza essa mesma ideia em outros trechos e acrescenta: “D. Narcisa de
Villar foi escrita quando apenas tinha eu 16 anos: merece, portanto, que desculpeis
a mediocridade da linguagem e a singeleza com que decorei as cenas”. (CASTRO,
1997, p. 17-18).
69
A grafia de época foi respeitada na transcrição dos excertos, conforme as fontes consultadas.
70
Importante ressaltar, de acordo com estudo de Regina Dalcastagnè, que mais de setenta por
cento dos romances brasileiros publicados por algumas das maiores editoras do país nas últimas
décadas são de autoria masculina.
71
Ressalte-se aqui a valorização da literatura oral e a presença de duas narradoras, sendo uma
delas de origem indígena.
178
[...] e pois começou [mãe Micaela] a sua história de modo porque a
vamos expor; porém como nos é impossível referi-la com o tom e
termos característicos com que ela nos contou, perdoe-nos o leitor que a
substituamos pela nossa linguagem, guardando todavia certas expressões
que pertencem inteiramente à narradora. (CASTRO, 1997, p. 21).
Depois da morte da mãe de D. Narcisa, ela veio ao Brasil para ficar com seus
irmãos, o já citado D. Martim, D. Luiz e D. José. A descrição da personagem segue
os moldes preconizados pelo Romantismo: “[...] não tinha mais que doze anos,
porém seu talhe era tão delgado que se lhe não daria mais do que oito. Sua
fisionomia era doce e meiga; parecia que a dor a tinha tocado muito cedo, porque
seu sorriso era sempre melancólico, e seu semblante pensativo.” (CASTRO, 1997,
p. 24).
179
[...] e o reconhecimento muito vivo que sentia por esses dois entes, que
tanto por ela se interessavam, se foi transformando pouco a pouco em
amizade, de sorte que D. Narcisa já não podia viver sem Efigênia e seu
filho. Querendo mostrar mais vivamente a sua gratidão à índia, tomou a
si o trabalho da educação de Leonardo; ensinou-o a ler, e instruiu-o tanto
quanto pode na religião católica, fazendo o discípulo progressos com
aquela mestra inspirada. (CASTRO, 1997, p. 25-26)
Como era costume para mulheres como D. Narcisa, era chegada a hora de se
escolher um marido para desposá-la e, na falta de seu pai, essa tarefa cabia aos seus
irmãos. Os critérios para a eleição do futuro esposo seriam aqueles de interesse
essencialmente financeiro. O escolhido foi o fidalgo Sr. Coronel Pedro Paulo.
Desde que a ele havia sido apresentada, já lhe causara repugnância. Ela começou a
perceber que seus sentimentos por Leonardo se tornaram mais intensos, e chega
mesmo a reconhecê-lo como merecedor de ter nascido príncipe. A narradora se
esmera na descrição de Leonardo, na tentativa de torná-lo “digno” desse
sentimento de D. Narcisa: “O exterior do mancebo era altivo e agradável ao
mesmo tempo, e ninguém o podia ver sem sentir-se tocado de admiração.”
(CASTRO, 1997, p. 32). Quando Leonardo percebe o acordo de casamento sendo
firmado pelos irmãos de D. Narcisa, a palavra morte aparece pela primeira vez no
romance: “Ele desejava morrer naquele momento, diante dela, talvez que a sua
agonia, a sua morte, arrancassem de seus olhos uma lágrima de compaixão – uma
lágrima dela, por quem daria com prazer em troco sua inútil vida!...”. (CASTRO,
1997, p. 32)
180
de tão grande amor!” (CASTRO, 1997, p. 32). Um casal formado por uma fidalga e
um índio jamais poderia ter um final feliz, pois a concretização de seu amor não
dependia apenas da vontade de ambos, mas estava condicionada à aceitação de uma
sociedade que, se à época da escritora era ainda tão arraigada a preconceitos vários,
ainda mais o seria em período anterior, ao tempo da narrativa. O que instiga a
continuação da leitura é saber como reagirão seus protagonistas frente às
adversidades que estariam por vir, de que forma a pena movida pela mão da
escritora conduziria uma história já desde o início fadada a um triste final.
181
Quando há a narrativa do contrato firmado para a realização do casamento
de D. Narcisa com o coronel Pedro Paulo, a narradora expressa a aflição da
personagem feminina e o quanto deveria ser doloroso para as mulheres serem
tratadas como mercadoria. Tomem-se por exemplos os seguintes trechos:
Ela tremia nesse trajeto como treme a pomba debaixo das garras do
gavião.
[...] a donzela obedeceu a tudo sem hesitar, sem indagar mesmo o
motivo.
Cheia de medo, não ousava pesquisar o que achava de se passar, com
temor de descobrir uma verdade que naquele momento a mataria.
[...] era ele o coronel Pedro Paulo, rico nobre, e de bom nome, que de
tão longe vinha pedir a mão de D. Narcisa de Villar; esta aliança que
vinha achar tão forte apoio na vontade de D. Martim, o fez dispor de sua
irmã, como senhor, e não era preciso para a conclusão desse negócio [grifo da
autora] o consentimento inútil, como pensava ele, de uma menina que
mal sabia o que fazia. Demais, sua irmã, criada no isolamento, havia
adquirido o caráter dócil e brando das pessoas só acostumadas à
obediência. (CASTRO, 1997, p. 39-40)
182
último recurso para que sua vontade pudesse prevalecer. Era conhecedora, afinal,
de possuir o livre-arbítrio em optar pela vida ou pela morte:
Teria de combater, para defender o seu sossego; mas como sairia ela do
combate, fraca e tímida moça, que só à vista de seus irmãos se enregelava
de medo? Como sairia? Viva ou morta?... Ah! Leonardo ali estava, ferido
e quase a morrer, talvez por sua causa: e sem ele para que queria ela a
vida?... (CASTRO, 1997, p. 44)
183
feminina, e também pela criação da personagem D. Narcisa, que difere de outras
personagens do Romantismo por suas opções e por enfrentar o jugo daqueles que a
consideravam uma mercadoria. A resposta que deu ao pedido de fuga de Leonardo
demonstra sua audácia: “Depois de uma curta oração, tomou um capote, p -lo
sobre os ombros e, corajosa como uma mulher que ama deveras: – partamos, meu
amigo, disse, ousada; leva-me para onde quiseres...”. (CASTRO, 1997, p. 82).
Uma luta desigual foi travada com quatro homens contra um. Leonardo
lutou bravamente, mas estava praticamente morto quando ainda conseguiu reunir
forças e atirar uma pedra certeira que atingindo o crânio do coronel o levou à
morte.
A cena de tragédia ganha novos tons quando surge a mãe de Leonardo e
ante todos confessa o seu segredo: Leonardo era filho de D. Luiz de Villar. Mesmo
assim não consegue abrandar a ira dos irmãos da famíllia Villar. Leonardo estava já
morto, nada mais prendia D. Narcisa à vida. Ela mesma clama aos irmãos que a
184
matem, pois sua felicidade agora estaria condicionada à morte, pois acreditava que
isso seria um bem para ela, uma possibilidade de encontrar a felicidade no céu. Para
seus irmãos, seria uma forma de castigá-la por seu erro, como que confirmando
serem seus senhores, e retomarem a ordem social. Ainda que pese uma linguagem
romanesca própria do período, a transcrição a seguir trata de um dos momentos
mais violentos contra a mulher representado no Romantismo brasileiro:
No epílogo, explica-se o motivo pelo qual a Ilha do Mel era considerada mal-
assombrada. A narradora conta que quando a noite está escura, dois vultos brancos
185
se transformam em pombas que são perseguidas por três corvos, que quando
chegam no meio do mar se transformam em aves noturnas de mau agouro. Em
seguida, apresenta a singela explicação para o fato: “É LEONARDO e D.
NARCISA DE VILLAR [maiúsculas utilizadas pela autora] que vêm do céu fazer a
sua peregrinação na terra onde tanto sofreram; os corvos são os orgulhosos irmãos
da santa mártir que estão no inferno todos três”. (CASTRO, 1997, p. 131).
Ignez Sabino, no já citado livro Mulheres Ilustres do Brasil, teve por objetivo
ressuscitar mulheres do passado que se tornaram invisibilizadas pelos anos,
colocando-as novamente no lugar de destaque que ela julgava merecerem. Através
de sua obra, buscava abrir espaço à discussão sobre a condição feminina e a
necessidade de medidas que modificassem esse panorama:
186
preconceitos em relação às mulheres, mais ainda às mulheres que se aventurassem
na literatura, um território quase que exclusivamente masculino, conforme
anteriormente referido. O tema da educação72 volta a ser questionado,
estabelecendo-se como ponto decisivo, pois sem educação adequada, às mulheres
restariam poucas chances no mundo das letras.
Ana Luísa de Azevedo Castro, apesar das escusas por ter escrito o romance
D. Narcisa de Villar, cria uma personagem ao mesmo tempo tradicional, sob o
ponto de vista da estética romântica, e inovadora, com feições próprias, que sua
criadora coloca à disposição para auxiliar uma causa, colaborando para que as ideias
sobre o papel conferido às mulheres na sociedade oitocentista fossem revistas. D.
Narcisa foi conrajosa em vários momentos da narrativa, e conduziu seu destino
assumindo riscos. No contexto em que sua história se inseria, sua morte, apesar de
ter sido assassinada, foi, em certa medida, uma escolha sua. A partir de uma restrita
perspectiva e com as poucas opções que lhe seriam possíveis, decidiu pelo risco da
morte. A morte assim, representaria uma insubmissão às ordens e desejos de seus
irmãos, em um ato de rebeldia, constituindo-se D. Narcisa em uma personagem
transgressora, em muitos aspectos diferente de outras criadas no mesmo período.
Apesar dos diferentes períodos históricos citados neste texto, ainda hoje a
violência contra as mulheres permanece, com índices alarmantes que acabam sendo
recebidos de forma letárgica. A lei Maria da Penha foi um marco nessa discussão,
mas ainda insuficiente diante dos inúmeros casos verificados. Na literatura, poucas
escritoras se arrojaram como Ana Luísa de Azevedo Castro, pois são em pequeno
número os romances que abordam o feminicídio. A vida das mulheres é tratada de
forma secundária, há sempre questões mais urgentes e importantes que se impõem
no plano social. No campo literário, fica uma espécie de interdito, uma
recriminação sub-reptícia às escritoras, que caso tratem de questões mais específicas
72
Uma das maiores contribuições sobre esse assunto é a de Nísia Floresta (1810-1885), a qual
recebeu vários estudos críticos por Constância Lima Duarte.
187
a si mesmas são consideradas como autoras menores, de obras menores, por
grande parte da crítica literária, que insiste no apagamento das identidades autorais,
e se centra em uma pretensa universalidade da literatura. Torna-se mais do que
necessário romper esses paradigmas, estamos há muitos séculos pedindo escusas
para viver sem incomodar. É tempo já.
Referências
188
Corpos e memória: um lugar para chamar de seu
Meu texto quer aqui ser um lugar de fala, ser um salutar exercício de
descontinuidades, de acúmulo de coisas já ditas e tornadas públicas agora fora de
uma cronologia e de uma hierarquia, escrito a partir das palavras-chave, deste
evento: memórias e corpo. Do meu corpo, por exemplo. Qual é o destino de minha
produção? Periódicos nacionais, publicações online, eventos nacionais e
internacionais no Brasil, livros organizados e capítulos de livro. Retomo a minha
biblioteca particular, constituída nos últimos anos, enquanto professora de
Literatura Brasileira, vejo livros traduzidos, muitos solitários, muitos solidários e
cooperativos. Lanço mais uma vez o olhar em direção às prateleiras, de minha casa
e na UFSC, procurando entender, acima de tudo, o que ficou desses livros,
enquanto memórias de leituras (e não apenas da literatura), da escrita feminina, da
relação literatura e ensino, de arquivos e memórias, de narrativas apontadas como
cânone contemporâneo e das teorias que estão literalmente (ou simbolicamente)
situadas na fila da frente, mais perto dos olhos e das mãos. Norberto Bobbio, no
livro que faz um balanço de sua vida73, dizia que a biblioteca de um professor é
como um bazar: há brinquedos de luxo e há quinquilharias. Que disposição eu dei
aos livros adquiridos? Aos documentos por mim guardados? Encontro, com
facilidade, a minha produção em anais, periódicos e livros, dispostos separadamente
dos demais. Por que não junto e misturado? Quais de meus livros e de minhas
publicações foram, são ou serão fundamentais para releituras? Há quanto tempo
não abro alguns livros e pastas de documentos reais e virtuais, que foram
73
BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória. De Senectude e outros escritos biográficos.
Tradução Daniela Versiane. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997.
189
referências imprescindíveis na compreensão da história da literatura, história que
me apontava caminhos para a inserção de textos em uma tradição; ou onde estão os
livros que possibilitaram a construção de um discurso efetivamente crítico naquilo
que a crítica contém em seu radical enquanto mudança, crise e criatividade?
190
biografias, periódicos, e em muitos livros org. Que livros, meus pares e eu, temos
em comum? O que compartilhar neste esforço de memória literária e cultural do
corpo enquanto matéria?
75
Uso como suporte a publicação da Fundação Getúlio Vargas. TRAVANCAS, Isabel et alii.
Arquivos Pessoais. Reflexões Multidisciplinares, e Experiências de Pesquisa. RJ: FGV, 2013.
191
UFSC, nos anos 80, registrada em fotos foi a semente, a criação institucional do
nuLIME pelo politizado professor intelectual do Departamento de Língua e
Literatura Vernáculas, Dr. João Hernesto Weber e pela guardiã da memória das
mulheres e da literatura catarinense, Dra. Zahidé Lupinacci Muzart e por mim.
Dos corpos ausentes, das memórias presentes.
O trabalho que temos feito nos últimos anos tem a ver em certa parte com a
recuperação, digitalização e a disponibilização na internet, de obras e acervos de
autoras e autores, junto ao NUPILL, coordenado pelo professor Dr. Alckmar Luiz
dos Santos. Partiu-se da hipótese da urgência da superposição de temporalidades,
numa tensão entre passado, presente e futuro. Com esse esforço se quis e se quer
não apenas permitir o acesso digital, mas democratizar a utilização de informações,
autores e obras para pesquisas futuras de acervos que se encontravam inacessíveis,
armazenados em condições precárias, caixas familiares, armários assistemáticos, sob
a guarda algumas vezes desinteressada, por contingências governamentais, da
Academia Catarinense de Letras. Ou acervos esquecidos e impossibilitados da
guarda em espólio familiar.
192
Nesse contexto descritivo, num evento que pretende falar de memórias do
corpo, fiz questão de trazer corpos invisíveis numa mesa marcada pela diferença e
assim encontrar um ponto de fuga, uma possibilidade de desterritorializar nomes
próprios e de se fazer conhecer. Por que a invisibilidade de acervos, manuscritos e
datislocritos da literatura e da cultura catarinense, por exemplo? Como temos
descoberto mulheres ou a participação poética e política de muitas delas nas ruínas
dos acervos dos escritores homens? Qual o papel da Instituição como um todo
diante da guarda de pesquisas e de acervos documentais?
193
Laus sobre seus ditos e interditos. O que pudemos fazer para não nos
transformarmos apenas em acumuladores da materialidade física e digital de
espólios familiares, mesmo que os democratizemos virtualmente?
Temos o armário de Harry Laus (1922-1992), que lutou por tantos anos para
sair do armário. Escritor e crítico de arte catarinense, deixou seus documentos,
separados em pastas, álbuns, diários, envelopes, além de parte de sua biblioteca.
76
Todas estas subjetivações constam de cartas e reportagens contidas no Acervo da autora.
194
Encontramos fotografias, recortes de jornais, documentos pessoais, manuscritos,
tratativas editoriais, correspondência pessoal e as várias versões dos datislocritos de
seus romances, agora digitalizados. E por laços de sobrenome ou por obra e arte de
Zahidé Muzart, que recebeu como herança essa materialidade de Harry,
encontramos no material pesquisado, uma pasta da professora e escritora Lausimar
Laus. A escritora catarinense nasceu em 1916, em Itajaí. Nos anos trinta, veio
estudar em Florianópolis e em 1936 terminou seu Curso Normal. Como Maura de
Senna Pereira, como Ruth Laus, e outras jovens catarinenses, muda-se para o Rio
de Janeiro.
77
LAUS, Lausimar. O Guarda-Roupa Alemão. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.
195
Nádia Battela Gotlib, com Clarice Lispector78, para escrever biografias (e reinventar
acervos) de um número significativo de escritoras brasileiras, mesmo as de fora dos
grandes centros, que parecem sempre estar em um processo de hibernação em
pastas e caixas. Encaixotadas para (o) presente.
78
Gotlib, Nádia Batella. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
79
REGO, José Lins do. Gregos e Troianos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.
196
obrigatória, para uma minoria, passou a ser uma literatura acolhida em um portal
catarina, em um espaço digital, democraticamente disponível, a quem interessar
possa. Se interessar possa. Do espólio ao legado. E ainda temos a valiosa mala do
baiano Jorge Amado.
Transponho assim esse raciocínio para o esforço de pesquisa que temos feito
no acervo de Jorge Amado nos seus dois anos no exílio em Buenos Aires e
Montevidéu (1941-1942) para escrever a biografia de Luiz Carlos Prestes. Um
acervo masculino e plural. Predominantemente. Mas como não mencionar que ele
só foi preservado porque uma mulher assim o desejou e o guardou por tantos
anos? Como não ler nas entrelinhas e em muitas linhas nomes como Maria Borges,
militante da ALN; Matilde Garcia Rosa, sua primeira esposa; a atuação no Brasil de
Bluma Wainer, esposa de Samuel Wainer; Carmen Somosa, da Editoral Claridad as
cartas minuciosas de Lygia Prestes dando notícias do irmão, da mãe e da pequena
Anita Leocádia? A carta de Gabriela Mistral para Jorge Amado dando notícias da
América? As referências às esposas e namoradas, porque ainda jovens, deixadas
para trás em favor da militância? Como não ler as cartas ousadas e apaixonadas de
Ruth e Zilah e suas paixões por padres pecadores nos anos 30, guardadas, pelo
escritor baiano como se com elas quisesse fazer um romance? Corpos ardentes:
Padre Francisco, ainda sinto o calor do teu corpo.......
Nictheroy 30 de maio de 1938
Padre Francisco
Padre Francisco tenho feito todas as vontades ao senhor apezar de estar
longe não vê mas ando de meias que o frio aqui tem çido muito, o
senhor manda me perguntar se eu aceito um radio? Do senhor aceitarei
tudo menos pancada, carinho muito, Não quero que aranjas ou se agrade
de outra moça sou muito ciumenta o senhor longe de mim nem sei o que
será. As vezes pode ir celebrar a missa e ter alguma mas emgraçadinha
mais pintada e mas rica e esqueçer de mim.
Pesquisar arquivos pessoais não é apenas investigar sobre esse arquivo. Mas
sim produzir dados biográficos a partir de indícios de corpos que se nos oferecem.
197
Entender, por exemplo, o que mereceria ser investigado por uma nova história
literária, política e cultural do Brasil e perceber que o arquivo pessoal é ele mesmo
um filtro entre o que se desejou público – a obra e o que se desejou privado – a
vida. Além disso, ao verificarmos, por exemplo, os inúmeros ensaios, versões,
manuscritos e datislocritos de Jorge Amado, concluímos que todo livro e todas as
vidas nascem de acúmulos. Há registros materiais desse processo, retidos em
pastas, cadernos, livros, recortes. Antes da obra existe o caos. Antes do caos
existem os corpos. O século XX nos habita. O século XXI nos inquieta. Corpos
fragmentados, corpos abandonados numa multiplicação de fragmentos. O corpo da
glória e dos esquecimentos têm no nuLIME uma longa e variada história e não só
representam os corpos por si mesmos, mas a ideia que deles formamos. O cânone
Jorge Amado, por exemplo, não é só o homem representado, mas a representação
que se fez do homem Jorge Amado. Toda figuração que dele fazemos, na realidade,
é alegórica, essa persona da Mala é irrepresentável. Que corpos encaixotados para o
presente são esses? Dissertações e teses restituem a esses corpos seu próprio
cuidado, como desejava Foucault?
198
como se desse corpus utópico se ouvisse a voz baiana ressoando na UFSC, versos
inéditos guardados na Mala, abrindo espaço à invenção do saber, ou melhor, a
novos saberes que correspondem às experiências corporais e afetivas das nossas
pesquisas: Chove chuva chuverando/ sobre as misérias do mundo.
Referências
GOTLIB, Nádia Batella. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
REGO, José Lins do. Gregos e Troianos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.
199
Voz e corpo no arquivo musical
200
instrumento. Há certamente não somente uma relação entre a precisão dos gestos e
a excelência como, ainda, uma singularidade a ser rastreada através da escuta. Sim.
201
canção. Um arquivo musical em que se imprime a voz cantada traz em si uma
extensão bem maior do que a voz falada.
No mais, não se trata mais de falar da relação de um sujeito com seu objeto,
como no caso dos instrumentistas. A voz só existe enquanto parte constitutiva do
202
sujeito cantante e só pode se tornar instrumento para outrem, como no caso do
engenheiro de som a quem me referi no início, pois este é capaz de manipular a
voz, interferir em sua qualidade , estender a duração de notas, diminuir ou
aumentar sua potência. A voz é, portanto, um objeto para o engenheiro. Mas para
o sujeito que canta, a voz não é objeto, mas parte constitutiva de si mesmo, parte
que integra seu corpo. A lição, a aprendi com Silvia Davini que pergunta: “Se a voz
é instrumento, onde está o instrumentista?” (DAVINI, 2008, p. 309). “Um
instrumento”, diz Davini, “é uma ferramenta, uma prótese que utilizamos para um
dado fim; portanto, não é nem pode ser humano” (DAVINI, 2008, p. 312). E ela
conclui: “Não „usamos‟ a voz. A voz „habita‟ corpo e linguagem” (DAVINI, 2008,
p. 314).
Antes de tudo, o que se compreende como voz é algo que não pode ser
fragmentado em elementos menores. A voz é um todo que advém do corpo e que
apresenta uma qualidade individual que compreendemos como timbre. Mas que é
muito além disto. Cada voz se acopla às palavras de formas muito particulares. O
sotaque é uma delas. Cada voz também se modela à canção através de uma rítmica
203
própria que define a duração de notas, sua potência, sua forma de entrar e sair das
frases melódicas. As características de emissão de uma voz estão profundamente
relacionadas às possibilidades corpóreas de cada ser cantante. A duração das notas
e frases, por exemplo, está conectada ao fôlego, à capacidade respiratória individual.
Além do mais, na canção, a voz nem sempre atua em relação a palavras. Há uma
diversidade de possibilidades de improvisos que trazem consigo sons que não
formam palavras. Há, ainda, na canção popular, a tendência a explorar murmúrios e
sons guturais como forma de trazer expressividade.
204
arquivo musical a tonalidade, o compasso, o ritmo e o andamento são exemplos do
que se coloca como moldura. Cada corpo em performance traz em si a memória da
performance de outro corpo. E a canção se realiza através do entrelaçamento de
memórias corpóreas de forma que não é mais possível identificar um sujeito único
para o que está sendo transmitido. Embora a voz se sobressaia e seja comumente
considerada como a portadora da significação de uma canção, na verdade, é da
conexão entre os corpos, cada qual com suas habilidades, inclusive de escuta, que
resulta a canção.
205
responde aquele ou aquela que escuta. O instrumentista ou a instrumentista toca
seu instrumento (e aqui cabe chamar atenção para a ambiguidade da palavra toca)
enquanto ouve aos demais instrumentistas. O vocalista ou a vocalista se modela a
ou incorpora as palavras a partir da escuta dos demais instrumentistas. Não
estamos mais na esfera da linguagem cotidiana em que palavras são feitas para
comunicar sentidos, embora aqui mesmo seja possível rastrear um além da
significação no estilo do dizer. O arquivo musical traz a memória de corpos sendo
afetados por outros corpos, através de uma troca performática que, pelo seu caráter
sensorial, desafia a apreensão semântica da canção. Em outras palavras, há algo na
ressonância que se dá entre as trocas sonoras que se coloca diametralmente oposta
à linguagem verbal embora esse algo também venha para significar.
206
de forma a tornar uma canção mais vibrante ou mais dramática. Estas escolhas
antecedem a gravação durante a qual o andamento é guiado por um metrônomo.
Mas o que acontece com a voz durante a gravação? Parte do que essa voz realiza, a
forma como atua advém da maneira como aquele corpo recebe em escuta as
sonoridades dos instrumentos. A outra parte diz respeito ao que é inerente àquela
voz em específico e que será tão singular, tão único como o é cada corpo.
Não é por acaso que Adriana Cavarero escolhe uma figura que para todo ser
se traduz como singularidade para tematizar a voz: a figura materna. É na cena
207
primordial da infância quando a criança ainda não adentrou o âmbito da linguagem
que a filósofa identifica a essência da esfera vocálica.
O que traz das memórias dos corpos um arquivo musical? Era a pergunta
que tínhamos a princípio. Não estaria no arquivo musical, com suas sonoridades,
seus processos de acoplagem entre corporeidades, gestualidades, respirações,
escutas simultâneas justamente a memória dessa cena materna da infância anterior à
significação?
Acredito ser possível dizer que o arquivo musical traz como memória esse
momento em que, anteriores aos conceitos, anteriores à linguagem, vivenciávamos
o mundo através da ressonância da voz materna, dos contornos melódicos da voz
materna advinda de um corpo que, antes de tudo, no princípio de tudo, um dia foi
morada.
Referências
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio
Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2011.
DAVINI, Silvia. Voz e palavra, música e ato. In: MATOS, Claudia Neiva de et ali.
Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2008.
208
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de
Moraes Rego. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
DOLAR, Mladen. A voice and nothing more. Cambridge, The MIT Press, 2006.
TATIT, Luiz. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo, Editora Escuta, 1994.
209
Notas biográficas
210
Americana, mas atua também na área de Teoria Literária e no Mestrado em
Educação.
211
contemporâneas de autoria feminina, estudos culturais. Líder do grupo de pesquisa
do CNPQ A voz e o olhar do Outro: questões de gênero e/ou etnia nas literaturas de língua
inglesa. Publicações em 2019: artigos em periódicos, REF (27.1) e Revista Antares
(11.22), e capítulos de livro.
212
em Publicidade e Propaganda pelo Curso de Comunicação Social da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Áreas de interesse: montagem cinematográfica,
estética audiovisual, semiótica, teoria do autor no cinema, extra-fílmicos/paratextos
(trailers, making ofs), campo cinematográfico e trajetória do artista, narrativas
seriadas, gênero, identidade e sexualidade.
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Priscilla da Silva Figueiredo – Doutoranda em Estudos de Literatura do
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-UERJ). Bolsista CNPq. Mestre em
Literaturas de Língua Inglesa. Integrante do grupo de pesquisa do CNPq A voz e o
olhar do Outro: questões de gênero e/ou etnia nas literaturas de língua inglesa.
Integrante do grupo de extensão Circularidades na Escola (CAp-UERJ). Áreas de
atuação: literatura caribenha em expressão inglesa, literatura e decolonialidade,
literatura, memória e história. Publicações em 2019: artigos em periódico, REF
(27.1) e capítulo de livro.
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Catarina onde atua desde 1996. Em 1999, realizou estágio pós-doutoral na
Universidade de Stanford, nos Estados Unidos e, em 2013, na Universidade La
Trobe, na Austrália. Suas publicações apresentam temas diversificados, mas nelas se
destaca seu interesse nos estudos acerca da voz e da canção. A pesquisadora é,
ainda, cantora e compositora tendo lançado os CDs Tereza Virginia (2008), Aluada
(2011) e Bemmevi (2018).
Neste lugar agradecemos à artista Beata Ewa Białecka que gentilmente cedeu as leis
autorais da sua obra Must Have de 2015 para o projeto gráfico deste livro.
www.bialecka.pl
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Livro diagramado em fonte Garamond
Linha de Pesquisa Subjetividade, Memória e História
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