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Cultura e Desenvolvimento1

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)


Professor da UNEB no DCH III (Juazeiro)
Mestre em Educação pela UQAC, Québec, Canadá
Doutorando em Educação pela FACED/UFBA
Membro da Secretaria Executiva da RESAB

Eu queria agradecer aos organizadores o convite que me fizeram para vir a


este Fórum, fazer esta fala, e queria destacar a importância de iniciativas como
esta. Eu, que sou educador, tenho me convencido mais e mais que a mudança
social passa pelo investimento cultural e que, inclusive a pedagogia, precisa se
assumir como tecnologia cultural.

Vou dividir minha fala em duas partes. Na primeira vou viajar um pouco no
conceito de cultura, passando pela questão da indústria cultural. Na segunda
vou introduzir a questão do desenvolvimento nesta discussão da cultura, ou o
contrário: a questão da cultura nesta discussão do desenvolvimento.

1. O conceito de Cultura

A noção, o conceito de Cultura é um conceito muito impreciso que, em geral,


leva a interpretações tanto revolucionárias quanto reacionárias. Somos sempre
compelidos a achar que tudo é cultura e temos que admitir que, no fundo, falta
um critério razoável para definir o que é Cultura. Mesmo assim podemos nos
arriscar com o enunciado seguinte: “A cultura é o lugar onde o homem se
produz Homem, para o bem e para o mal, junto com todas as opressões, as
dores e prazeres desta construção”.

A cultura então sintetiza a produção artificial do homem, ou seja, todo aquilo


que ele não tinha ao perceber-se no mundo, confundido entre todos os
animais, apenas como parte da natureza. A cultura então diz respeito ao

1
Tema de abertura do FÓRUM DE CULTURAL REGIONAL, ocorrido dentro da programação
da III Semana Cultural de Pintadas. Pintadas (BA), 2 de maio de 2004.
polimento da pedra e, antes disso, à concepção do uso da pedra como uma
ferramenta; diz também respeito a todo o trabalho de nomeação do mundo, de
invenção da linguagem, das palavras, dos gestos e dos seus sentidos;
portanto, à invenção do símbolo, do signo e de toda uma segunda natureza
humana, a natureza da cultura.

Neste sentido, a cultura, em primeira instância confunde-se com a arte, quando


esta ainda diz respeito ao conjunto dos artifícios humanos, incluindo aí a
linguagem, as formas de comunicação que nos restaram como pinturas
rupestres. Mas, evidentemente a arte evolui no sentido de se tornar um
domínio próprio, com códigos particulares, com critérios de inclusão e exclusão
particulares. A arte tornou-se uma instância particular no âmbito da cultura,
coincidindo, na maioria das vezes com o que conhecemos como “alta cultura”,
como “cultura artística”. Evidentemente todas estas convenções tendem a ser
desconstruídas ultimamente, na atual confusão conceitual em que vivemos.

De fato, em primeira instância, a cultura tem um papel reacionário,


conservador, reprodutivista, enquanto pilar fundamental das sociedades que
tende a se reproduzir internamente, mantendo seus códigos com os quais se
estrutura, incluindo os códigos de dominação e de exclusão, embora, para o
progresso da humanidade, a cultura precisa ser constantemente transformada
e renovada e as sociedades também precisam se renovar sob risco de
asfixiarem-se e se destruírem a si próprias.

Então o termo cultura ilumina o universo da produção dos símbolos, dos


signos, da linguagem, do mundo não material, das instâncias invisíveis. Há um
autor francês chamado Félix Guattari, para o qual a cultura é um conceito
reacionário exatamente porque o conceito esconde (ou não ajuda a ver) que
existem múltiplos agenciamentos e, nestes, inclusive, se reproduzem sutilezas
das formas de subjetivação capitalísticas.

O capitalismo, para sua reprodução e difusão globalizada, produz hábitos e


desejos individualizados, sobretudo aqueles que marcam a chamada “cultura
de massa”, isto é, os modos de ser e de se relacionar, condicionados hoje
sempre mais do que nunca pelo consumismo e a “mercantilização” até de
valores, dos sentimentos, das intimidades e da espiritualidade. É isto que
vamos ver, por exemplo, em outro francês, Edgar Morin, especialmente em
dois dos seus livros: Cultura de massas no século XX, 1: neurose; e Cultura de
massas no século XX, 2: necrose. Morin fala de uma segunda colonização, que
diz respeito à colonização da alma, pela distribuição e consumo de novas
mercadorias que vendem a varejo os ectoplasmas de humanidade, “os amores
e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma” (MORIN,
1997: 14).

Produtos que circulam no cinema e na TV, e daí se desdobram em outras


mercadorias de uma extensa indústria, virando brinquedos, discos, festas
temáticas em escolas, out-doors, as mais-mais das rádios AM e FM, adereços,
cadernos, borrachas, roupas, calçados e tatuagens (não apenas essas que
vêm nos chicletes; mas todas estas coisas que grudam em nossos corpos e
mentes desejantes, até mesmo nos procedimentos institucionais e oficiais).

É exatamente esta indústria, esta maquinaria de produção, distribuição e


consumo em massa destes produtos culturais, que Theodor Adorno e Max
Horkheimer, chamaram de “Indústria Cultural”, em um livro que foi traduzido no
Brasil como Dialética do Esclarecimento (ADORNO & HORKHEIMER, 1985).
Diante disto já não se pode mais dizer sequer que há um “gosto popular”,
sagrado e intocável, como se fosse algo que as pessoas já trazem quando
nascem. Não é verdade: este gosto é produzido assim, nesta maquinaria. É
produzido por uma espécie de repetição que obedece a uma lei que
conhecemos bem, a que afirma que “água mole em pedra dura, tanto bate até
que fura”.

É assim que, de tanto ouvir a mesma música banal, um dia amanhecemos com
ela na cabeça, e passamos o dia a cantarolá-la aonde vamos. É por isso que
Itamar Assumpção, um músico brasileiro que morreu recentemente sem
nenhum destaque; um músico destes que tem conteúdo e que o “povo” não
conhece, porque a indústria cultural não está interessada em conteúdo, ele
inverte o dito popular e diz que “porcaria na cultura, tanto bate até que fura”.
Este é o hipertexto, a exterioridade que dialoga com as subjetividades e com as
individualidades e formatando-as. Evidentemente cada um singulariza a seu
modo esta formação e há, sobretudo, os que fogem disto, os que traçam linhas
de fuga e preferem produzir e consumir coisas que estão fora desta indústria.

De fato, grande parte do que a gente chama de “cultura” é só um mero artifício


do sistema de mercado capitalista voltado, por sua definição, à concentração
de lucro e poder. E isto anda junto com a questão da opção estética, do gosto,
tanto pessoal quanto “popular”. Nossa escolha, nossas opções estéticas são
usurpadas pela industria cultural do sistema (musical, cinematográfica, etc.), na
medida em que o mercado promove, divulga e reitera só algumas produções,
conforme sua necessidade de realizar sempre mais lucro, especulando em
cima da “simplicidade”, espetacularizando banalidades e o poder repetitivo de
alguns produtos culturais que vocês estão preferindo chamar “produtos
culturais amassados”.

Enfim, temos que ter consciência de que também o conceito de “gosto popular”
é cheio de armadilhas, especialmente quando buscamos fazer o chamado
“resgate da cultura popular autêntica”. É importante ter presente que tem muita
coisa atrás da fala: “é disso que o povo gosta”. O sistema almeja que a arte e a
cultura sejam quietas e acomodadas; a indústria cultural hegemônica está
engajada na produção da idiotice e na reprodução de modelos estereotipados,
para anular o potencial transformador da arte. Entretanto, os indivíduos e as
classes sociais comprometidos com a construção de um outro mundo possível,
precisam da promoção cultural que ajude a alterar estas regras.

A indústria cultural, nos termos formulados por Adorno e Horkheimer, pode ser
compreendida através da metáfora do canto das sereias, que consta na obra
Odisséia, de Homero, onde ele que narra as aventuras de Ulisses, o herói
grego da história. Após a guerra de Tróia, onde lutou ao lado dos gregos,
Ulisses precisa voltar da ilha de Ogígia – onde ficou prisioneiro da deusa
Calipso, durante sete anos – para Tróia, por ordem de Zeus. No entanto ele é
alertado pela feiticeira Circe sobre o perigo do canto das sereias, fadas que
habitam as três ilhas do golfo de Nápoles, cujo canto é tão belo que jamais
nenhum homem escapou de seus encantos. A fiticeira Circe orienta Ulisses a
tapar os ouvidos dos seus remadores para que não ouçam nada e, se ele
quiser desfrutar a beleza destes cantos, deve se amarrar ao mastro de sua
embarcação, para, assim imobilizado, poder deleitar, sem perigo, o canto das
sereias. É exatamente isto que Ulisses faz.

Esta metáfora nos diz, segundo Adorno e Horkheimer, que é que a arte é
alienada pela primeira vez e é onde há a primeira divisão social da arte, sendo
convertida em um artigo de luxo, que somente alguns privilegiados podem ter
acesso, ao tempo em que é também esvaziada de poder transformador. Ao
povo (os remadores) os ouvidos tapados. À elite o direito de deleitar a obra de
arte, com a condição de que o poder transformador desta arte esteja anulado
(Ulisses amarrado).

O que acontece é que na indústria cultural de hoje, os próprios bens culturais


oferecidos ao povo já servem como a própria cera para lhe tapar os ouvidos, e
produzir uma espécie de demência da audição. À elite, está reservada uma
arte mais elaborada (e se pressupõe que o povo não entenderia tal elaboração
e tal sofisticação), cujo poder transformador foi reduzido ao aplauso bem
comportado.

Discutir a cultura hoje passa por discutir estas questões. Passa, inclusive, pela
análise de como também aquilo que chamamos de “cultura popular” pode ir
sendo apropriada por esta mesma indústria, e ir virando souvenir (lembrança,
recordação, brinde) dentro de uma indústria capitalística do turismo, cheia das
mesmas redundâncias.

2. Cultura e desenvolvimento

Eu quero entrar nesta relação da cultura com o desenvolvimento fazendo uma


diferenciação da abordagem ecológica. Hoje temos discutido, cada vez mais
com mais ênfase, a questão do desenvolvimento sustentável. Este modelo de
desenvolvimento prevê que cuidemos de três coisas básicas: a)
desenvolvimento econômico; b) prudência ecológica; e c) equidade social. Tal
perspectiva, porém, está baseado no paradigma ecológico, que considera os
muitos estragos que o modelo de desenvolvimento econômico hegemônico tem
causado na natureza. A preocupação desta perspectiva é, sobretudo, com o
esgotamento das condições de vida na terra. A questão da cultura não tem sido
uma tônica nesta perspectiva de abordagem.

Ao tentar fazer a vinculação entre cultura e desenvolvimento, o que me


preocupa já não são mais os estragos na natureza. O que me preocupa, antes,
são os estragos na natureza humana. E porque? Ora, neste início de século e
milênio estamos comemorando duas coisas básicas, relacionadas e
paradoxais: por um lado, um enorme avanço em termos de conhecimento, em
termos de precisão tecnológica e em termos de acúmulo de riquezas e, por
outro lado, um contexto jamais experimentado em termos de exclusão social e
de degradação da natureza, sobretudo da natureza humana. É este aspecto
que me é mais caro quando está em discussão o desenvolvimento.

O francês Félix Guattari, em um livro chamado As Três Ecologias discute estas


coisas e afirma, logo de início, que a relação da subjetividade com sua
exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, cósmica – que se encontra
comprometida, numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização
regressiva das subjetividades. Ele se refere ao turismo dizendo, por exemplo,
que este se resume quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio
das mesmas redundâncias de imagens e de comportamento (GUATTARI,
1990: p. 8).

Esta preocupação com a questão da subjetividade Guattari nomeia de


ecosofia, para contrapor a uma abordagem que só vê degradação numa
natureza que não inclui a natureza humana. Esta degradação aí é a mais
importante. É daí que defendo que estão saindo os in put para o constante
aumento dos índices de violência e hostilidade no meio juvenil.

Podemos afirmar que está se configurando um cenário no qual a juventude é


condicionada e encurralada para se tornar uma “maquina de guerra”. Os jovens
são sempre mais dispostos a “matar ou morrer” (violência, marginalidade,
criminalidade, acidentes de transito etc.), alimentando uma violência
indiscriminada e desregulada. É claro que cada sujeito, cada jovem, expressa
uma exterioridade a partir da percepção de sua singularidade. Mas acho que a
subjetividade oriunda deste processo fica sempre mais espremida entre a
adequação a modelos banalmente massificados e a marginalização criminal e
excludente. O que o grupo “O Rappa”, chama de “fogo cruzado” nos morros do
Rio, existe tanto metaforicamente quanto concretamente, e tem sustentação na
indústria cultural.

De fato, os segmentos juvenis se configuram muitas vezes como uma diferença


não assimilada pelo sistema, expressando anseios peculiares e autônomos,
dos quais - às vezes - a industria cultural se apropria quando for conveniente
para comercializar mercadorias. Nesse contexto, a aceleração do processo de
“erotização” e a difusão de “vulgaridades” estão contribuindo para produzir uma
erosão na adolescência, que – largada a si própria – se tornou um lugar de
angústia e desespero por período cada vez mais longo, já que a adolescência
tem chegando muito mais cedo e isso embora cada vez mais tarde, já que está
submetida a uma indústria da infantilização.

Neste caso – e considerando isto tudo – o desafio na hora de pensar o


desenvolvimento, sobretudo na hora de pensar qual deve ser a contribuição da
cultura para o desenvolvimento (e vice-versa), é pensar ações culturais com
objetivos humanizadores. Porém não mais pensando a humanidade a partir
dos conceitos eurocêntricos, meramente brancos, machos e cristão. Nosso
desafio é abrir espaços para a diferenciação das expressões culturais e
artísticas, saindo da lógica da “mesmice”, dando vazão ao esforço dos jovens e
produzir um ambiente de alteridade, apoiando suas tentativas de construir suas
linhas de fuga, de fazer a poesia habitar novamente a ação cultural. Sobretudo
tem que ser uma ação pautada no presente e não apenas ressentida e olhando
somente para o passado, como sendo o “melhor lugar”.

Parece-me que é assim que têm feito movimentos artísticos muito importantes
que trazem uma renovação de padrões estéticos e ainda fazem dialogar
passado e presente, cultura popular e uma arte mais elaborada, e ainda
colocam poesia e critica social em suas produções. Expressões artísticas desta
natureza podem ser vistas na obra do pernambucano Chico Science (que
sobretudo se nutre de obras como a de Josué de Castro), denunciando a
miséria do povo do mangue; e em muitos outros trabalhos existentes na
periferia da indústria cultural banalizada e massificada (ou amassada, como
querem vocês). Um exemplo mais recente é o trabalho do grupo Cordel do
Fogo Encantado.

A ação cultural, portanto, na perspectiva do desenvolvimento humano – que


considera que a degradação de dá especialmente na natureza humana – deve
se ocupar de proporcionar novos canais, de oferecer e proporcionar acesso a
bens culturais que “agreguem algum valor” (para usar um termo na moda no
mundo dos negócios) à ao processo de formação das novas gerações. Não dá
para defender que as comunidades e os grupos humanos se abasteçam e se
bastem culturalmente da cultura que já possuem. No plano da cultura também
temos o direito e a necessidade de acessar coisas novas, de intercambiar, de
recriar, de destruir códigos atrasados ou de reeditá-los; enfim, de arejar e
revolver o solo da sua própria cultura. E isso só se faz de for permitido e
proporcionado que as pessoas acessem outras coisas, que lhes permitam
desenvolver e consolidar valores.

Era isto que eu tinha a dizer.

Obrigado!

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:


fragmentos filosóficos. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. –


Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

COELHO, Teixeira. Guerras culturais: arte e política no novecentos tardio. –


São Paulo: Iluminuras, 2000.

GUATTARI, Félix. As três ecologias – Campinas, SP: Papirus, 1990.

LINS, Daniel (org.). Cultura e subjetividade: saberes nômades – Campinas, SP:


Papirus, 1997.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.


MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas;
tradução de Marcos de Castro. – Rio de Janeiro: Record, 2001.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. 9ª ed. – Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1997. (O espírito do tempo I)

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: necrose. 3ª ed. – Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1999. (O espírito do tempo II)

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à


consciência universal – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2000.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do


trabalho no novo capitalismo. – Rio de Janeiro: Record, 2001.

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