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Novembro / 2020

Professor/autor: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida


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SUMÁRIO

Teologia Sistemática III - Antropologia e Soteriologia

Unidade I - A criação do cosmos e do ser humano

1.1. O Gênesis: a criação em dois relatos............................................................................05

1.2. A criação do ser humano................................................................................................11

1.3. A constituição do ser humano no Antigo Testamento.................................................20

1.4. A constituição do ser humano no Novo Testamento...................................................30

Unidade II - O drama humano

2.1. Mandato cultural.............................................................................................................43

2.2. Queda e pecado..............................................................................................................51

2.3. Tentação, fraqueza e responsabilidade humana..........................................................61

2.4. O problema do mal..........................................................................................................73

Unidade III - Fundamentação bíblica da salvação

3.1. A salvação no Antigo Testamento.................................................................................82

3.2. A salvação no Novo Testamento.................................................................................104

Unidade IV - Temas e estruturas da salvação

4.1. A cruz de cristo.............................................................................................................118

4.2. Sistemas soteriológicos...............................................................................................129

4.3. A amplitude da salvação..............................................................................................136

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UNIDADE 1 – A criação do cosmos e do ser humano
A disciplina de Teologia Sistemática III abrange o estudo de duas áreas
clássicas da dogmática cristã que são a Antropologia Teológica e a
Soteriologia. A Antropologia tem como assunto principal o ser humano,
incluindo o tema de sua criação, inserida na perspectiva mais ampla d
a criação do mundo como um todo. Ela também tratará o estudo dos
temas da queda, do pecado e do mal. Já a Soteriologia é área responsável
pelo estudo do tema da salvação. Estas duas áreas encontram-se unidas
nesta disciplina visando construir uma ponte entre a queda e o pecado
humano, e a salvação do estado em que ele se encontra após a queda.
Iniciaremos nosso estudo com a temática da criação geral, ou seja, da
criação do cosmos ou da natureza, para depois tratarmos do ser humano.

“No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1:1). Esta é a afirmação
que encontramos no primeiro versículo da Bíblia. De forma introdutória,
utilizamos esta mesma afirmação no estudo da Teontologia ou de Deus —
na disciplina de Teologia Sistemática I. Também recorremos a ela, agora,
para falar da criação, uma vez que esta primeira afirmação estabelece
um pressuposto teológico para toda a revelação que segue, conforme
apresentada nas Escrituras. Importa, assim, refletir sobre a profundidade
desta máxima, observando os detalhes e efeitos que ela nos traz.

Em alguns círculos evangélicos ainda encontramos a discussão,


normalmente na forma de embate, entre criacionismo e evolucionismo.
Ainda que alguns tentem dar um tratamento científico à discussão,
eles parecem perder de vista um pressuposto fundamental que é a
impropriedade em tentar ler o discurso bíblico como se ele fosse científico.
Aqui é necessário retomarmos alguns conceitos elaborados nas aulas de
Introdução à Teologia naquilo que se refere ao entendimento da revelação
escriturística. O conteúdo, a mensagem, ou seja, o objetivo primário do
texto bíblico não é revelar a mecânica do universo com suas leis físicas,
químicas, biológicas, etc. A intenção da revelação bíblica é comunicar
ao ser humano aspectos fundamentais sobre a sua existência, incluindo
origem e destino, propósito e dignidade, problemas e soluções referentes
ao seu drama. O uso de uma variedade de estilos e formas linguísticas nas
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Escrituras se dá como meio de comunicação, próprio de cada contexto
histórico e limitado a estes mesmos contextos. Sendo assim, ainda que
não haja preocupação com a perspectiva científica, como a conhecemos
hoje, os textos deixam transparecer algumas percepções de cosmovisão
daqueles contextos antigos, considerando suas culturas e suas ciências,
porém, sem a preocupação de explicá-las nem fazer destas referências o
fundamento para o entendimento da mensagem.

O que ocorre quando tentamos utilizar o texto bíblico, na forma como


ele aparece nas Escrituras, como fundamento para uma discussão no
campo da ciência, no mesmo patamar de argumentação, é, no mínimo,
um equívoco metodológico. Me parece claro que a mensagem bíblica
afirma que todas as coisas vieram à existência por um ato intencional de
Deus. No entanto, a narrativa utiliza uma linguagem simbólica que não
deve, por questões hermenêuticas (de metodologia de interpretação), ser
lida como um tratado científico que busca a exatidão de suas expressões.
Aliás, é curioso notar que a sequência do relato da criação se aproxima,
de certa forma, da teoria evolucionista, mesmo o autor bíblico não tendo
qualquer intenção de fazer essa comparação. Perceba que a ordem das
coisas criadas, apresentada no primeiro capítulo do livro de Gênesis,
inicia com a criação da flora, seguindo para os animais aquáticos, depois
as aves, os animais terrestres, culminando com a criação do ser humano.
No entanto, independentemente de qualquer aproximação entre as
teorias, sou da opinião de que esta é uma discussão improdutiva. Nosso
foco, portanto, estará naquilo que concerne aos aspectos teológicos,
com seus desdobramentos existenciais, ministeriais e missiológicos.

1.1. O Gênesis: a criação em dois relatos


Relembrando que a abordagem que temos utilizado para as disciplinas
de Teologia Sistemática tem como aporte metodológico a Teologia
Bíblica, gostaria de iniciar o estudo da criação ressaltando a presença
de dois relatos distintos no texto de Gênesis. Seguindo a divisão
proposta por Ernst Sellin e Georg Fohrer (1978), o primeiro relato é
aquele compreendido entre os versículos 1:1 e 2:4a e o segundo entre
os versículos 2:4b e 25. Exegeticamente falando, os relatos pertencem a
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duas fontes editoriais diferentes. O primeiro relato é atribuído à tradição
sacerdotal (Sellin e Fohrer, 1978, p. 248) e o segundo à tradição javista
(idem, 1978, p. 200). Sem nos aprofundarmos muito na questão literária
das tradições, podemos observar que todo o primeiro relato se refere
a Deus usando a palavra hebraica Elohim, enquanto o segundo relato
refere-se a Deus usando a expressão Iahweh Elohim, traduzido como
Senhor Deus. Ambos os relatos parecem completos em si, no sentido de
desenvolverem a ideia da criação, com introdução e conclusão. Vejamos:
• Relato 1 – “No princípio Elohim criou os céus e a terra [...]. Abençoou
Elohim o sétimo dia e o santificou, porque nele descansou de toda a
obra que realizara na criação. Esta é a história das origens dos céus e
da terra, no tempo em que foram criados” (Gn 1:1-2:4a).
• Relato 2 – “Quando o Iahweh Elohim fez a terra e os céus [...]. O homem
e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha” (Gn 2:4b-25).

Saiba mais
Para melhor entendimento da questão literária dos textos do Antigo
Testamento, sobre autoria, datação e tradições, sugiro a consulta
às referências bibliográficas indicadas nesta unidade ou a fontes
semelhantes.
Tratando especificamente das expressões utilizadas para
identificar a Deus nos relatos de Gênesis, vale a pena atentar para
o problema introduzido pela tradução da língua original para o
português. Algumas versões da Bíblia traduzem a palavra Iahweh
como “SENHOR”, com letras maiúsculas, enquanto a palavra
adonai, que em hebraico se refere a uma forma de tratamento de
alguém em posição de domínio, é traduzida como “Senhor”, com
letras minúsculas. Isto causa uma natural confusão ou, no mínimo,
a perda da informação sobre a carga teológica que a tradição do
monoteísmo javista traz para o entendimento dos textos. Algo
semelhante ocorre com a tradução de elohim que tanto pode
designar o Deus do povo de Israel quanto qualquer outro deus.

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No fundo, os relatos seguem a teologia própria de suas tradições.
A tradição javista, mais antiga, pode ser datada no tempo da “realeza
davídica” (Sellin e Fohrer, 1978, p. 207), e tem como características a
“aprovação da sociedade de cultura agrária”, “a exaltação da fertilidade
da terra” (idem, 1978, p. 203) e ricas “representações antropomórficas”
indicando que “o Deus transcendente está perto do homem e fala com
ele” (idem, 1978, p. 206). Já a tradição sacerdotal, entendida como
tendo sua origem no tempo do pós-exílio babilônico (idem, 1978, p. 258),
apresenta um Deus “absolutamente transcendental” (idem, 1978, p. 256)
sem um “acesso imediato”, em que esse caminho de comunicação deve
“passar pelo clero em sua função mediadora” (idem, 1978, p. 257).

Não comentando ainda aspectos específicos da criação do ser humano,


que será tratada mais adiante, podemos ver que os relatos se equivalem
em apontar para a formação da natureza como o habitat do ser humano.
No primeiro, observamos a perspectiva da teologia sacerdotal mostrando
um Deus distante de sua criação apenas comandando sua formação sem
uma direta interação com a mesma. Vemos, portanto, uma abrangência
maior com a referência aos elementos da criação, formação dos astros,
da flora e das espécies de animais, em uma divisão temporal  usando a
palavra hebraica yom que pode significar dia, ano ou tempo. No segundo
relato o autor procura delimitar uma região geográfica descrevendo o
habitat humano como um jardim, com o uso da linguagem agrária. Deus
aparece em maior proximidade tanto no trato com a criação quanto na
forma do discurso e diálogo estabelecido na narrativa, que pode ser
percebido de maneira ainda mais intensa na sequência do capítulo 3.
Podemos pensar, então, que a presença dos dois relatos na editoração
final das Escrituras se deu porque eles oferecem uma complementação de
ideias entre si. Ambos trazem perspectivas interessantes, principalmente
no que se refere ao ser humano, mas também em relação à criação geral.

Com o intuito de analisar melhor a primeira narrativa (Gn 1:1-2:4), assumo


o pressuposto de que sua composição foi feita pela tradição sacerdotal
no tempo do pós-exílio, destacando suas particularidades contextuais
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históricas. Jean Louis Ska (2005) nos ajuda nessa tarefa interpretativa
defendendo a ideia de que o relato de Gênesis 1 faz um contraponto
teológico à mitologia mesopotâmica de Babilônia. O ambiente de um
caos aquático que é organizado criativamente por Deus faz sentido para
uma região banhada pelos rios Tigre e Eufrates, fundamentais para a
vida naquela região. No entanto, a primeira importante concepção que
difere, e até mesmo confronta, a cultura mesopotâmica é a afirmação
da superioridade do Deus de Israel sobre aqueles que eram seus
dominadores. Ao relatar que o sol e a lua eram “criaturas” de Deus (v.
16), a teologia judaica se autentica, pois, “as divindades mesopotâmicas
eram identificadas com os astros — o deus Shamash era o sol, o deus
Sin era a lua, a deusa Ishtar era o planeta Vênus etc. Também os
monstros marinhos — que aparecem em alguns mitos mesopotâmicos
sobre a criação — são criados por Deus no quinto dia (Gn 1:21)” (Ska,
2005, p. 29). Para Ska, esse fato é de suma relevância porque “a fé de
Israel sobreviveu às provas do exílio graças a esse esforço de reflexão
teológica” (ibidem). O autor ainda enxerga neste relato uma resposta ao
contexto de desesperança surgido no exílio:

Para combater o desespero e desânimo muito difundido


entre os israelitas, o texto de Gênesis 1 torna a partir
das origens do mundo para mostra que o “mal” não faz
parte do plano divino. O mundo criado por Deus é de todo
positivo. Por exemplo, o texto de Gênesis 1 não contém
uma única negação. Por bem sete vezes (número
sagrado), o texto repte que “Deus viu que [o que tinha
feito] era bom” (1,4.10.12.18.21.25.31). Na última vez
diz mais, que “Deus viu tudo o que tinha feito. Eis que
era muito bom” (1,31). Significa, portanto, que a raiz de
todas as coisas e de todo ser neste mundo é sadia. Se
existe corrupção, morte e mal, estes chegaram apenas
em um segundo compasso (2005, pp. 29-30)

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O primeiro relato, enfim, representa um todo harmônico que aponta para
a organização do caos, a promoção da vida e do equilíbrio na criação,
principalmente na relação entre a natureza e o ser humano. É nele
também que vemos o destaque dado ao sábado (shabbat), que, embora
inclua o tema do descanso, a teologia sacerdotal passou a enfatizar a
atenção especial dedicada ao sétimo dia da semana que deveria estar
voltado para as práticas religiosas. Contudo, é de suma importância
ressaltar o tema do descanso uma vez que a tradição javista, autora do
segundo relato, indica o trabalho como um fardo inevitável da vida, como
aquilo que é responsável pela produção do sustento de subsistência
(Gn 3:19). No fundo, o conceito de descanso aparece teologicamente
ampliado, ainda relacionado à criação, tratando de questões ecológicas
e de justiça. Notamos isso na lei do “sábado de anos”, indicada no texto
de Êxodo 23:10-11 e seu correlato em Levítico 25:1-1-7, e na lei do jubileu
descrita em Levítico 25:8-34.

Analisando agora o segundo relato (Gn 2:4-25), diferentemente do


primeiro, ele tem como centro o ser humano. Enquanto o primeiro trata
da criação de maneira mais ampla, o segundo concentra a sua narrativa
em torno do ser humano e suas relações existenciais, no caso, “seu
espaço vital (o jardim), os mantimentos (os frutos do jardim), o trabalho
(2.15), a comunidade (2.18-24), e, em tudo isso, a relação com seu
Criador” (Westermann, 2013, p. 36). Primeiro o ser humano é criado e
depois todas as outras coisas são feitas em função de sua existência.
Os detalhes descritos procuram situar geograficamente este ambiente
inicial na Mesopotâmia, talvez o lugar mais antigo que se conhecia
ou de onde vinham as histórias mais antigas. De maneira semelhante
ao primeiro relato, o segundo também aponta para uma criação que
expressa harmonia e equilíbrio, em que as árvores são “agradáveis aos
olhos e boas para alimento” (Gn 2:9), a vida recebe um tratamento de
centralidade — “no meio do jardim estavam a árvore da vida [...]” (Gn 2:9)
—, e o ser humano se relaciona em plenitude (Gn 2:22-25).
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Exercício de fixação - 01
Considerando o estudo apresentado sobre as narrativas da
criação no livro de Gênesis é falso afirmar que:
a. Ambas as narrativas têm como base dois pontos de vistas
de tradição editorial que se complementam;
b. As narrativas pretendem refutar as propostas científicas
contrárias ao criacionismo;
c. Elas têm por objetivo apontar para a origem do mundo a
partir da vontade criadora divina;
d. O foco principal das narrativas são as questões ontológicas,
indicando o lugar do ser humano na criação;
e. Nenhuma das narrativas trazem detalhes sobre o “como”
do processo criador.

Há, no entanto, no segundo relato, um objetivo que vai além da


apresentação da teologia da criação, que é servir como prólogo para o
drama humano apresentado nos capítulos seguintes. Ainda no relato da
criação é indicada a presença da “árvore do conhecimento do bem e do
mal” (Gn 2:9) e do mandamento para não comer do seu fruto (Gn 2:17).
É em função dessa informação que o evento da queda se desenvolve
no capítulo 3. Na verdade, poderíamos dizer que é em função dessa
introdução que obtemos o que se chama na teologia clássica de História
da Salvação (Heilsgeschichte), talvez o principal tema para a humanidade
e em função do qual as próprias Escrituras são desenvolvidas.

Sem dúvida os relatos da criação presentes no livro de Gênesis são os


mais importantes e mais referenciados na teologia bíblica, mas há outros
textos que afirmam e confirmam a perspectiva teológica produzida pelo
povo de Israel ao longo da história. Entre os mais importantes podemos
ressaltar os apresentados nos livros de Salmos, Isaías e Jó.
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1.2. A criação do ser humano
Podemos dizer que a criação do ser humano, conforme apresentada
nas Escrituras, é o ápice da construção teológica sobre a criação como
um todo. Se entendemos os textos iniciais como um prólogo para o
grande acontecimento que gira em torno da existência humana, vemos a
elaboração de um pano de fundo que apresenta o habitat e as condições
iniciais para que a vida humana ocorra. Mais adiante estudaremos outros
aspectos da relação do ser humano com o seu habitat e com a sociedade,
que ele estabelece para desenvolver a vida. Por hora, nos concentraremos
nos conteúdos específicos, referentes ao ser humano em si, naquilo que
concerne à sua essência desde a perspectiva da teologia da criação.
Mais uma vez, apoiaremos a maior parte de nossas reflexões nos dois
relatos de Gênesis, seguindo o mesmo tipo de investigação já iniciado.

1.2.1. O ser humano como imagem e semelhança divina


O primeiro relato trata a criação do ser humano indicando uma
diferenciação em relação aos outros seres vivos. Enquanto as plantas
e animais são criados segundo o seu “tipo” (mino) ou espécie, o ser
humano é criado segundo a “imagem e semelhança” de Deus: “Então
disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem (tsalemenu), conforme
a nossa semelhança (demutenu)’” (Gn 1:26). Antes de discutirmos como
podemos interpretar essa dupla expressão, vejamos como as palavras
são tratadas no dicionário de hebraico:

[Imagem] Basicamente, a palavra se refere a uma


representação, uma semelhança. Cinco vezes diz
respeito ao homem como criado à imagem de Deus.
Duas vezes designa as cópias de ouro dos ratos e
inchaços que afligiam os filisteus (1 Sm 6.5, 11; e veja-
se ‘opel). Na maioria das vezes refere-se a um ídolo [...]
tselem refere-se à imagem como uma representação
da divindade. Nesse sentido, as imagens eram
terminantemente proibidas. Observe-se que nem toda

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escultura era proibida (cf. querubins de ouro), mas
apenas os ídolos (Hartley, 1998, p. 1288).

[Semelhança] Embora este substantivo seja usado


apenas 26 vezes no AT, é uma palavra bastante
importante. Ela aparece na seção teofânica de Ezequiel
(1.5, 10, 13, 16, 22, 26, 28; 10.1, 10, 21, 22), e com bastante
frequência justaposta a kemarê, “como a aparência de”
[...] Todas essas passagens em Ezequiel referem-se
a semelhanças visuais, mas Isaías 13.4 mostra que
demût também pode ser empregado para designar
semelhanças sonoras e semelhanças estruturais, no
sentido de ser um padrão ou modelo (2 Rs 16.10, onde
a palavra é paralela a tabnît).

Analisamos, por fim, duas passagens importantes em


que se afirma que o homem foi criado “à [imagem e]
semelhança de Deus” (Gn 1.26; 5.1) e uma passagem
onde se diz que Adão gerou um filho, Sete, “à sua
semelhança” (Gn 5.3) [...] Procuraremos verificar
especificamente a relação, em Gênesis, entre tselem
(imagem, q.v.) e demût (“semelhança”). Em nenhuma
outra passagem do AT esses dois substantivos são
paralelos ou relacionados um com o outro [...] Não
se deve procurar estabelecer nenhuma distinção
entre essas duas palavras. Elas são totalmente
intercambiáveis (Hamilton, 1998, p. 316).

Como visto, as duas palavras querem expressar uma ideia única, de alguma
coisa que se parece com outra. Da mesma maneira como uma escultura
se assemelha, pela imagem transferida ao material utilizado na sua
confecção, àquilo que quer representar, o ser humano é dito como alguém
parecido com Deus. Seguindo o raciocínio já iniciado anteriormente,
considerando que a dupla expressão é utilizada como parte da criação
geral, parece haver uma intenção do autor em afirmar a particularidade do

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ser humano e sua diferença em relação a todas as outras criaturas. O ser
humano é, por assim dizer, único, porque parece com Deus.

É certo que muito já foi escrito sobre o que se convencionou chamar de


imago Dei na teologia, no entanto, sou da opinião de que este esforço é
um exagero, considerando o pouco conteúdo bíblico que temos para nos
debruçar sobre. Mais que isso, não me parece haver, da parte dos autores
bíblicos, a mesma preocupação filosófica que há da parte dos teólogos
em tentar explorar o fenômeno da criação humana em função da pessoa
de Deus. Há consenso de que a similitude entre o ser humano e Deus não
trata de questões de aparência e sim de alguns dos seguintes aspectos:
espírito, raciocínio, moral, liberdade, consciência, etc. Como indicação
resumida daquilo que a ideia de imagem e semelhança possa significar,
utilizo a reflexão de Emil Brunner:

Aquele que cria através da Palavra, que, como Espírito


cria em liberdade, quer ter um “reflexo”, que é mais do
que um “reflexo”, que é uma resposta à Sua Palavra, um
ato espiritual livre, uma correspondência de Seu falar.
Só assim pode o seu amor realmente dar-se como amor.
Porque o amor só pode dar-se onde é recebido em amor.
Daí o coração da existência humana do homem é a
liberdade, auto-existência, de ser um “Eu”, uma pessoa.
Apenas um “Eu” pode responder a um “Tu”, apenas
uma Auto que é auto-determinação pode livremente
responder a Deus. Um autômato não responde; um
animal, em contraposição a um autômato, pode de fato
re-agir, mas não pode re-sponder. Não é capaz de falar,
de livre auto-determinação, ele não pode ficar a uma
distância de si mesmo, e, portanto, não é re-sponsável.

O Ser livre, capaz de auto-determinação, pertence


à constituição original do homem como criado por
Deus. Mas desde o início, essa liberdade é limitada.
Não é primária, mas secundária [...] Deus quer a minha
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liberdade, é verdade, porque Ele quer glorificar a Si
mesmo e dar-se a si mesmo. Ele quer a minha liberdade,
a fim de tornar esta resposta possível; minha liberdade
é, portanto, desde o início, responsiva. Responsabilidade
é liberdade restrita, que distingue os humanos da
liberdade divina; e é uma restrição que também é livre
— e isto distingue a nossa liberdade humana limitada
daquela do resto da criação. Os animais, e Deus, não
têm nenhuma responsabilidade —animais, porque estão
abaixo do nível de responsabilidade, e Deus, porque está
acima dela; os animais porque não têm liberdade, e Deus
porque tem liberdade absoluta (1952, pp. 55-56).

Reforçando a ideia de que a expressão quer, ao mesmo tempo,


estabelecer semelhanças e diferenças, Brunner destaca que o ser
humano se assemelha a Deus na consciência de existência autônoma e
na liberdade. Essa condição difere o ser humano das outras criaturas, em
especial, os animais, ao ponto de exercer domínio sobre eles, conforme
a sequência do texto: “[...] Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os
pequenos animais que se movem rente ao chão” (Gn 1:26b). Por outro
lado, ao gerar filhos o ser humano transfere essa imagem e semelhança
com algo que agora lhe é próprio: “Aos 130 anos, Adão gerou um filho
à sua semelhança, conforme a sua imagem; e deu-lhe o nome de Sete”
(Gn 5:3). É também esta imagem e semelhança que lhe confere valor e
dignidade únicos: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu
sangue será derramado; porque à imagem de Deus foi o homem criado”
(Gn 9:6). Para Brunner, o grande objetivo da formação do ser humano
como imagem e semelhança divinos é lhe conferir a capacidade para
vivenciar um relacionamento livre, e em amor, com Deus, seu criador.

É importante ressaltar que a ideia de imagem e semelhança não está presente


no segundo relato de Gênesis, em que o ser humano é descrito como sendo
formado como um boneco de barro. Neste sentido, a aproximação do ser
humano é maior com a terra da qual ele é feito, conforme veremos a seguir.
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1.2.2. O ser humano como homem e mulher
A questão do gênero é muito clara nos dois relatos de Gênesis, embora
ofereçam diferentes perspectivas na formação do ser humano. O
primeiro relato é simples e sintético apontando para a formação dos
gêneros masculino e feminino em um mesmo patamar: “Então disse
Deus: ‘Façamos o homem (adam) à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança’ [...] Criou Deus o homem (adam) à sua imagem, à imagem
de Deus o criou; homem (zakar) e mulher (neqevah) os criou” (Gn 1:26-
27). Observando o texto, ofereço a seguinte alternativa de tradução: Então
disse Deus: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança’ [...]
Criou Deus o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho
e fêmea os criou”. Parece claro que a palavra adam  depois traduzida
como Adão  é uma indicação geral de humanidade, pois, diz o texto,
que Deus cria o adam como macho (zakar) e fêmea (neqevah), ou seja,
o adam é criado com dois gêneros distintos, sexuados, à semelhança
dos animais, como macho e fêmea, o sexo masculino e feminino. O ser
humano, portanto, macho e fêmea, são criados à imagem de Deus, ao
mesmo tampo, no mesmo patamar de dignidade e valor.

O segundo relato é um pouco mais complexo, trazendo outros termos


para se referir ao ser humano, bem como detalhando a maneira como
o autor propõe a teologia por trás das relações iniciais e posteriores à
queda. Segue um apanhado de versículos focando nossa atenção na
questão do gênero.
7
Então o Senhor Deus formou o homem [adam] do pó
[aphar] da terra [adamah] e soprou em suas narinas o
fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente
[...] 18Então o Senhor Deus declarou: “Não é bom que o
homem [adam] esteja só [bado]; farei para ele alguém
que o auxilie [ezer] e lhe corresponda [negedo]” [...]
20
Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos
domésticos, às aves do céu e a todos os animais
selvagens. Todavia não se encontrou para o homem

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alguém que o auxiliasse [ezer] e lhe correspondesse
[negedo]. 21Então o Senhor Deus fez o homem [adam]
cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-
lhe uma das costelas [tsela], fechando o lugar com
carne [basar]. 22Com a costela que havia tirado do
homem [adam], o Senhor Deus fez uma mulher [ishah]
e a levou até ele. 23Disse então o homem [adam]: “Esta,
sim, é osso [tsem] dos meus ossos e carne [basar] da
minha carne! Ela será chamada mulher [ishah], porque
do homem [ish] foi tirada”. 24Por essa razão, o homem
[ish] deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher [ishah],
e eles se tornarão uma só carne [basar]. 25O homem
[adam] e sua mulher [ishah] viviam nus, e não sentiam
vergonha (Gênesis 2:7, 18, 20-25).

Esse relato, mais antigo que o primeiro, apresenta uma direta relação
entre o termo adam e adamah. Ambos possuem a mesma raiz hebraica
e Leonard Coppes sugere que “embora a etimologia de ’ādām não possa
ser explicada com certeza [...] a palavra está provavelmente relacionada
com a cor avermelhada da pele humana” (1998, p. 13). Daí a associação
com a terra (adamah) da qual o ser humano é dito ser moldado. Como
indica Coppes, “originalmente, a palavra tinha o sentido de solo vermelho
arável” (1998, p. 14). Para o autor,

A Bíblia estabelece um forte relacionamento entre o


homem (’ădām) e a terra (’ădāmâ) [...] No princípio,
Deus faz ’ădām da ’ădāmâ para lavrar a ’ădāmâ [...]
Então veio o pecado. A unidade ’ădām (Adão e Eva;
veja também Rm 5.12) violou a estrutura criada. A
’ădāmâ, daí em diante, produziu espinhos e cardos em
vez de frutificar livremente (Gn 3.17). Visto que ’ădām
provocou o rompimento do estado paradisíaco de
produção de vida, foi expulso da ’ădāmâ paradisíaca
e recebeu a sentença de volta à ’ădāmâ (Gn 3.19)
(Coppes, 1998, pp. 14-15).
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Como vimos, a expressão adam tende a significar a ideia do ser humano,
homem e mulher, como um ser formado dos elementos da terra, sem
distinção. No entanto, o autor do texto bíblico aplica o termo adam tanto
para se referir ao ser humano em geral, quanto para se referir apenas
ao gênero masculino e também para dar nome ao primeiro homem, em
contraposição à primeira mulher, na história do Éden. Este intercâmbio
do uso da palavra adam, embora possa causar confusão, não deve nos
impedir de tentar compreender as mensagens que o texto quer transmitir.

No primeiro relato encontramos as expressões zakar (macho) e neqevah


(fêmea), as mesmas usadas para os animais, para se referir aos gêneros
humanos nas formas de um ser sexuado. No segundo relato encontramos
os termos ish e ishah, reportando-se a outro tipo de ênfase. No pano
de fundo construído pelo autor podemos perceber que o foco está no
relacionamento humano: “Não é bom que o adam esteja só” (Gn 2:18).

Saiba mais
A ênfase sobre a ideia do ser humano como um ser social é uma
máxima que vale para todos, independente do gênero, mesmo o
relato do Gênesis tendo sido construído a partir do sexo masculino.
Ela é reafirmada pelas ciências humanas, desde Aristóteles, que
dizia que o ser humano era um animal político, ou seja, entendido
essencialmente em sociedade.
O mesmo vale para as teorias da psicologia que avaliam a formação
da personalidade desde as primeiras relações estabelecidas com
a mãe, pai, família estendida, escola e tantos outros ambientes de
convivência:

“Os seres humanos são animais sociais, e o teor da


vida social de alguém é uma das influências mais
importantes em sua saúde mental e física. Sem
relacionamentos positivos e duradouros, tanto a
mente quanto o corpo podem desmoronar.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 17


Os indivíduos começam a vida dependendo para
sobreviver da qualidade de seu relacionamento
com seu cuidador principal, geralmente sua mãe.
A sobrevivência da humanidade como espécie
também depende da capacidade de viver em
sociedade. A maior parte da história humana foi
passada em pequenos grupos nos quais cada
indivíduo dependia de outros para sobreviver;
evidências sugerem que esta é a condição à qual os
humanos estão mais bem adaptados”.
Fonte: https://www.psychologytoday.com/us/
basics/social-life

Em função, então, desta premissa constituinte da condição humana,


o autor do segundo relato apresenta, como num romance, a história da
formação da mulher. Não sendo bom a solidão humana, Deus faz passar
diante do adam todos os animais criados para ver qual deles poderia
“estar diante dele na mesma condição” (negedo) e tornar-se assim o seu
“socorro” (ezer). Não havendo nenhum animal naquela condição, Deus
forma a esposa, não mais do pó da terra, mas do mesmo osso (tsem, ou
tsela — costela) — e da mesma carne (basar) — do esposo. A esposa é feita,
portanto, da estrutura fundamental do organismo do marido e por ele é
assim reconhecida. Entretanto, é interessante ressaltar que as expressões
hebraicas usadas na história não são macho e fêmea, como nos animais,
mas sim uma referência ao homem e à mulher remetendo-os à questão
do relacionamento, como indica Thomas McComiskey ao dizer que “um
dos usos mais comuns de ’îsh é no sentido de marido” (1998, p. 63) e
que a “palavra [’ishshâ] é usada com frequência no sentido de ‘esposa’”
(1998, p. 99). Concluindo a ideia das companhias que estão na mesma
condição e servem de ajuda mútua, propõe-se a união dos dois gêneros
numa misteriosa simbiose em que eles se tornam como um único ser ou
uma só carne. Mais ainda, eles convivem sem o empecilho da vergonha ou
do desapontamento mútuo, indicando um relacionamento pleno.
18 | Teologia Sistemática III | FTSA
Esta breve introdução sobre a criação do ser humano mostra a
complexidade da existência. A teologia da criação não se preocupa em
discutir detalhadamente o fenômeno humano, mas é capaz de apresentar
alguns conceitos fundamentais que estabelecem uma a perspectiva que
deve nortear toda e qualquer aproximação que façamos em direção ao
ser humano. Pelo menos duas grandes questões se impõem. A primeira é
que o ser humano possui dignidade intrínseca e capacidade responsável
para se relacionar com Deus. A segunda é que o ser humano é igualmente
valoroso em sua representação nos gêneros masculino e feminino,
sendo essencialmente formado para viver em busca de relacionamentos
equânimes de companheirismo e complementariedade.

Exercício de aplicação - 02
Tendo em vista os conceitos apresentados de Imagem e Semelhança
de Deus, como podemos tornar estes conceitos eficazes em nossa
vida cotidiana:
a) Ao saber que possuo um espírito, assim como Deus, sei também que
nada nem ninguém pode ir contra o meu espírito, por isso, tudo na minha
vida será como eu quero que seja;
b) Ser imagem e semelhança de Deus, me torna exatamente como Deus,
por isso tenho poder e controle sobre todas as situações ao meu redor.
c) Sendo imagem e semelhança de Deus tenho permissão e dever de dominar
sobre toda a criação, escolhendo qual será o futuro da criação, inclusive de
outros seres humanos que estão sob meu domínio.
d) Sendo imagem e semelhança de Deus, me pareço com ele na minha
liberdade de decidir e agir, assim, tenho capacidade para escolher cumprir
os planos de Deus e me manter em um relacionamento sadio com ele,
comigo mesmo, com os outros e com o restante da criação.
e) A imagem e semelhança de Deus me dá acesso ao mundo espiritual,
permitindo que tenha acesso a ele em oração, experimente as coisas
celestiais e lute contra as potestades demoníacas.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 19


1.3. A constituição do ser humano no Antigo Testamento
Como visto até aqui, entendemos que o ser humano possui uma relação
íntima com a natureza. Primeiro, por ser formado da mesma matéria
ou dos mesmos elementos presentes em todo o resto da criação.
Segundo, porque ela é o seu habitat, ou seja, a sobrevivência humana
depende diretamente da natureza. Também vimos que o ser humano é
eminentemente social, estabelecendo ligações que podem chegar a um
alto nível de intimidade e cumplicidade, como no caso da relação entre
os gêneros. Há muitas outras perspectivas que podemos tomar para
falar do ser humano, o que faremos mais adiante, mas gostaria de tratar
de uma questão que possui vários desdobramentos para a Antropologia
Teológica, que é o tema da constituição humana.

Já vimos que o ser humano é constituído dos elementos da terra


(adamah), das mesmas substâncias que formam toda a matéria que
conhecemos no universo. No entanto, este aspecto da constituição
nos aponta, como consequência, para as dimensões físicas, químicas,
biológicas, etc. sem indicar outros aspectos que fogem, a princípio, desta
questão material. Como já mencionado antes, se entendemos que faz
parte da constituição humana aquilo que é percebido como imagem e
semelhança divina, e sendo Deus imaterial, necessitamos lidar com
essa dissemelhança, que é o fato de o ser humano ser físico e Deus ser
metafísico — além da matéria. Ao mesmo tempo, precisamos lidar com
as dimensões da existência humana que são informadas pela imagem e
semelhança com o ser divino.

No fundo, estamos adentrando uma arena bastante complicada,


exatamente por sermos limitados em nossa materialidade ou àquilo que
é físico, imanente. A imaterialidade (metafísico, transcendente) é, em
si, incompreensível e nos conduz, na maioria das vezes, ao campo da
experiência pessoal e mística, o que reduz a possibilidade de elaboração
de teologias — lembro que esta discussão já foi levantada na disciplina
de Teologia Sistemática I. Permanecendo, portanto, no âmbito da Teologia
Bíblica, investigando os relatos bíblicos da criação e outros textos referentes
20 | Teologia Sistemática III | FTSA
ao ser humano no que se refere à sua constituição, nos concentramos
no segundo relato Gênesis, uma vez que o primeiro relato não traz outra
informação além da já discutida questão da imagem e semelhança.

Assim, lemos no segundo relato a seguinte construção textual: “Então


o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas
narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2:7).
Historicamente a teologia cristã, desde os pais gregos, interpretam este e
outros textos bíblicos como indicação de uma possível subdivisão do ser
humano. Embora existindo como um ser único, a discussão gira em torno
de três opções de entendimento. A primeira opção é entender o ser humano
como uma unidade (monismo), a segunda, como sendo subdividido em
duas partes constituintes (dicotomia) e a terceira, como subdividido em
três partes (tricotomia). Acredito que a maioria das correntes teológicas
evangélicas brasileiras atuais tem assumido a compreensão tricotômica
do ser humano, entendendo que ele é formado de corpo, alma e espírito.
As razões para este posicionamento podem ser explicadas como tendo
sido causadas pela influência de algumas correntes teológicas norte-
americanas, principalmente as de cunho pentecostal, e pela limitação à
interpretação do texto de 1 Tessalonicenses 5:23. Contudo, historicamente,
a compreensão teológica da constituição humana é diversa, apresentando
ao longo da história defensores das três opções.

Voltando ao texto de Gênesis 2:7, necessitamos olhar para a sua redação


tentando entender a cosmovisão e intenção do autor e, de maneira
geral, a teologia desenvolvida ao longo do Antigo Testamento. Para isso,
recorremos à língua original e ao significado dos termos ali presentes.
O que lemos é: “Então o Senhor Deus formou o homem (adam) do pó
(aphar) da terra (adamah) e soprou (naphach) em suas narinas (aph) o
fôlego (neshamah) de vida (chayyim), e o homem (adam) se tornou um ser
(nephesh) vivente (chayyim)”. Considerando o relato da criação como um
todo, não enxergo aqui uma intenção do autor em desenvolver uma teologia
profunda, detalhada, da constituição humana, nem mesmo a indicação de
uma possível tricotomia. Pelo contrário, o que vejo é a transmissão de uma
| Teologia Sistemática III | FTSA | 21
ideia, de maneira até simples, mostrando de modo figurado a formação
do ser humano. A descrição fala da modelagem de um tipo de boneco
feito do “pó da terra” que, como qualquer estátua, é inanimado, ou seja,
não tem vida. Para que ele se torne um ser vivente, Deus sopra em suas
narinas. Em nenhum momento vemos uma preocupação ou cuidado do
autor em detalhar como o pó da terra se transformou em ossos, músculos
e órgãos ou como se transformou naquilo que a língua hebraica denomina
de carne (basar). Não aparece também no texto qualquer referência ao
fôlego (neshamah) de vida como estando associado ao vento ou espírito
(ruach), ainda que outros textos façam esta associação posteriormente.
O que parece ocorrer é uma breve descrição do ser humano como alguém
criado por Deus dos elementos da terra que vem à existência, ou seja,
torna-se um ser (nephesh) vivente pela ação divina.

Exercício de reflexão - 03
Certamente você já leu este relato de Gênesis 2, porém, pode ser
que não tenha atentado para o tipo de interpretação que está sendo
proposto aqui. Por isso, releia o relato de Gênesis 2, na versão
bíblica de sua preferência, e escreva em 3 ou 4 linhas, a partir dos
estudos feitos até aqui, suas percepções sobre a criação humana.

Aprofundando um pouco mais nossa investigação, e utilizando o


detalhado estudo de Hans Walter Wolff sobre a Antropologia do Antigo
Testamento, encontramos o seguinte alerta:

Ao traduzir, via de regra, os substantivos hebraicos


mais frequentes com as palavras “coração”, “alma”,
“carne” e “espírito”, ocorreram equívocos de graves
consequências. Eles remontam já à antiga tradução da
Septuaginta e acarretam uma antropologia dicotômica
ou tricotômica, na qual o corpo, a alma e o espírito se
encontram em oposição mútua. É necessário examinar
22 | Teologia Sistemática III | FTSA
até que ponto, quando passou a usar a língua grega,
a filosofia helênica deturpou e substituiu concepções
semítico-bíblicas. Para isso, temos que esclarecer o
uso veterotestamentário das palavras (2007, p. 29).

Para Wolff, assumir o entendimento dicotômico ou tricotômico é um


equívoco que surge pela influência de uma interpretação filosófica grega
que se sobrepõe à cultura original do texto bíblico que é semítica. O autor
ainda comenta sobre duas características da literatura hebraica. A primeira
é uma forma de paralelismo sinonímico em que há o uso de termos que se
referem a partes ou funções humanas e que podem ser trocados uns pelos
outros designando o ser humano todo, mostrando “diversos aspectos do
sujeito único” (2007, p. 30). Como exemplo o autor cita o Salmo 84:2: “A
minha alma anela, e até desfalece, pelos átrios do Senhor; o meu coração
e o meu corpo cantam de alegria ao Deus vivo”. Alma, coração e corpo são
referências ao ser humano, mas que funcionam como sinônimos indicando
o todo do seu ser, porém, vistos por distintas perspectivas.

A segunda característica da literatura hebraica Wolff chama de


“‘pensamento sintético’ que, com a menção de uma parte do corpo,
refere-se à sua função” (2007, p. 30). Desta forma, “com um vocabulário
relativamente pequeno, por meio do qual designa as coisas e também
justamente as partes do corpo humano, o hebreu pode e precisa expressar
toda uma série de matizes sutis, fazendo com que o nexo sintático
acentue as possibilidades, atividades, propriedades ou experiências
do sujeito mencionado” (idem, p. 31). Um exemplo desta segunda
característica aparece no texto de Isaías 52:7: “Como são belos nos
montes os pés daqueles que anunciam boas-novas [...]”. Na interpretação
de Wolff teríamos: “‘Como é belo que o mensageiro se aproxime com
rapidez pelas montanhas!’ O hebreu diz ‘pés’, mas pensa no aproximar-se
aos saltos” (ibidem). A palavra pés, embora sendo apenas uma parte do
corpo, representa, metaforicamente, a qualidade de uma ação humana,
realizada em sua integralidade.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 23
1.3.1. Os conceitos de carne, alma e espírito — basar,
nephesh e ruach
Fundamentado numa vasta apresentação de aplicações bíblicas de
termos, Wolff procura explicar como a cultura hebraica entende o ser
humano. Assim, ele apresenta o conceito de basar (‫)בָּ שָׂ ר‬, que logo vemos
na narrativa sobre a criação da mulher, quando ao tirar a costela do
homem, Deus preenche aquele espaço com “carne” (Gn 2:21) e o homem
reconhece que a mulher é “carne da sua carne” (Gn 2:23):

‫ ָבּ ָשׂר‬ocorre ao todo 273 vezes e em 104 vezes se refere


a animais, isto é, em mais do que a terça parte dos
casos. Isso já mostra que ‫( ָבּ ָשׂר‬a seguir: b.) designa
algo que, em grande escala é próprio tanto do ser
humano como do animal [...] designar principalmente a
parte visível do corpo, a seguir também pode significar
todo o corpo humano [...] aparece no sentido daquilo
que une os seres humanos entre si, podendo tornar-
se praticamente um termo jurídico de parentesco [...]
caracteriza a vida humana em geral como fraca e
caduca em si mesma [...] À natureza caduca da criatura
se acrescenta a fraqueza ética (2007, pp. 57-65).

Embora seja fácil entendermos o conceito de basar como a dimensão


física do ser humano — pele, músculos, órgãos, ossos, etc. —,
representando um pedaço ou o todo, vemos que o termo acabou
recebendo um significado mais amplo e figurativo, para tratar da fraqueza
moral, tipicamente humana, incluindo a questão ético comportamental.
Essa é a ideia desenvolvida pelo apóstolo Paulo no capítulo 7 da carta
aos Romanos — com destaque para o versículo 18. Isto significa que
aquilo que entendemos simplesmente como a “parte” física, numa ótica
dicotômica ou tricotômica, também recebe teologicamente aspectos
morais, identificados, normalmente, com outras áreas ou “partes” do ser
humano que não a física. Em outras palavras, tratamos a questão dos
valores éticos no âmbito interior, na esfera da consciência, vontade e
24 | Teologia Sistemática III | FTSA
decisão, por isso, pensamos que isto ocorre na mente, na alma ou algo
semelhante e não nos músculos, ossos, etc.

Wolff também esclarece o conceito por trás da palavra nephesh (‫)נ ֶפשׁ‬, ֶ֫
indicando que seu uso no texto de Gênesis 2:7 “certamente, não significa
“alma’. N. deve ser vista aqui em conjunto com a figura total do ser
humano e especialmente com sua respiração; por isso, o ser humano
não tem n., mas é n., vive como n.” (2007, p. 34) — “n.” nesta citação
é a abreviação de nephesh. O autor define a ideia de grega de psyche
de maneira diferente de nephesh, que também é traduzida por alma
em português. Para o grego a alma (psyche) aponta para o “lugar” dos
sentimentos e estados de ânimo na interioridade humana. Já a nephesh
é entendida como algo referente ao ser humano como um animal
biológico. Aliás, os animais também são chamados de “seres viventes”
(nephesh chayah) (Gn 2:19), no entanto, a teologia evangélica não atribui
a eles uma alma — entendida mais como o conceito grego de psyche —
como o faz com o ser humano. Aprofundando sua análise e recordando
as duas características da literatura hebraica destacadas anteriormente
— paralelismo sinonímico e pensamento sintético —, Wolff explica que

Em nossa compreensão analítica talvez se abra


um acesso à riqueza de significação dada com o
pensamento sintético, se perguntarmos com que parte
do corpo humano podem ser identificados o ser e o agir
humano designados por n. [...] Em geral, o pensamento
estereométrico-sintético visualiza um membro do
corpo juntamente com suas atividades e capacidades
especiais, e estas, por sua vez, são concebidas como
características de todo o ser humano (2007, pp. 34-35).

Por isso, ele segue seu raciocínio apresentando as associações de


nephesh com alguns órgãos humanos, indicando, assim, que tipo de
compreensão obtemos do uso desse termo na Bíblia. Nephesh aparece
associada à goela, boca e garganta, ou seja, aos órgãos de ingestão de
alimentos e da saciação (Is 5:14; Hc 2:5; Sl 107:5,9; Pv 13:25; Ec 6:7). Há
também uma associação com as funções da respiração (Êx 23:12; 2 Sm
| Teologia Sistemática III | FTSA | 25
16:14; Sl 69:1-3; etc.). O que se conclui é que “para os semitas o ato de comer,
de beber, e de respirar realizava-se na garganta; assim, ela era simplesmente
a área das necessidades elementares da vida” (Wolff, 2007, p. 39). Por isso,

Se laçarmos um olhar sobre o grande espectro em que se


contempla a n. do ser humano e o ser humano como n.,
vemos ou o ser humano principalmente como o ser vivo
individual que não alcançou a vida por si mesmo nem
a pode conservar por si mesmo, mas que, em anseio
vital, procura a vida, conforme dão a entender a garganta
como órgão da ingestão de alimentos e da respiração e o
pescoço como parte do corpo principalmente ameaçada.
Se, assim, n. mostra o ser humano principalmente em
sua carência e cobiça, isso inclui sua excitabilidade e
vulnerabilidade emocional. A acepção vital, que também
compete ao animal, contribui essencialmente para que
n. possa significar a pessoa e o indivíduo destacável,
seguindo-se daí, em um caso extremo, a significação
de “cadáver”. A n. nunca se torna sujeito de atividades
especificamente mentais (Wolff, 2007, p. 55).

Resumindo, nephesh, na maioria das vezes, indica o ser humano como um todo,
naquilo que representa os seus anseios, desejos, buscas, anelos, aspirações
ou cobiças vitais. Ela se refere àquilo que está no interior, no “lugar” profundo
do ser humano, comparando esta sensação à da fome, sede e respiração
que estão no limiar da existência e que precisam ser satisfeitas; tudo isto
desde uma perspectiva mais animal e intuitiva, sem o controle consciente da
razão. Sendo assim, a nephesh não é uma coisa que se tem; não é uma parte
humana localizável ou possível de ser separada de sua existência total. Ela
funciona como uma referência a um aspecto da constituição humana assim
como outros termos se referirão a outras características.

Tratando agora do conceito de espírito ou vento — ruach (�‫)רוּ‬


ַ —, que
possui uma associação com o fôlego de vida, já mencionado, e ainda
considerando o segundo relato da criação, Wolff comenta:

26 | Teologia Sistemática III | FTSA


O “vento” (r.) [r. como abreviação para ruach] do ser
humano é, antes de mais nada, sua respiração. Por isto, r.
não poucas vezes está em paralelo com ‫נְשׁ ָמה‬ ָ [neshamáh]
(p. ex., em Is 42.5) [...] Também esse “vento”, como força
vital do ser humano, é “dada” por Javé; ele “molda” (‫ )יצר‬a r.
no interior do ser humano (Zc 12.1). No interior dos ídolos
de madeira ou pedra, não há r., isto é, respiração e, assim,
nenhuma força vital, sem a qual não é possível despertar e
levantar-se (Hc 2.19; cf. Jr 10.14 = 51.17). Apenas depois
de Javé dar a r. como respiração às ossadas revestidas
de músculos, carne e pele, os corpos se tornam vivos (Ez
37.6,8-10,14) (2007, pp. 68-69).

Seguindo este raciocínio, o que chamamos de espírito humano está


relacionado à vida e à sua manutenção. Por isso, quando cessa a vida o
entendimento é que o vento que era soprado constantemente por Deus
sobre o ser humano, para de ser soprado, ou seja, é “recolhido” ou “retorna”
a Deus, enquanto o seu corpo retorna à terra da qual é formado. Essa é
a compreensão apresentada pelo autor de Jó: “Se fosse intenção dele,
e de fato retirasse o seu espírito e o seu sopro, a humanidade pereceria
toda de uma vez, e o homem voltaria ao pó” (Jó 34:14-15). O que vemos
é uma estreita relação de ruach com a sua origem, que é Deus, ainda que
em poucas passagens se fale
da r. como ente invisivelmente autônomo que não
é concebido necessariamente como a r. de Javé,
estando, contudo, inteiramente à sua disposição [...] R.,
como um ente enviado por Javé, opera no ser humano
principalmente pela fala, é também aquela r. da mentira
que engana os profetas de Acabe (1Rs 22.21-23). R. é
como um conjunto de forças que podem ser distribuídas
por muitas pessoas (Wolff, 2007, pp. 72-73).

Neste ponto temos um óbvio encontro entre a Antropologia e a


Pneumatologia em que o ruach é entendido como uma capacitação,
por êxtase ou não, momentânea, ou seja, algo além daquele ruach que

| Teologia Sistemática III | FTSA | 27


mantém a vida, sem que seja identificado como algo constituinte do
ser humano. No mesmo sentido, encontramos o elo entre ruach e as
reações humanas ligadas à respiração, próximo ao conceito de nephesh,
e relativos aos estados de ânimo — agitação, irritação, paciência,
pulsilanimidade, desânimo, orgulho, angústia, aflição, amargura, mágoa,
tristeza, etc. Concluindo, Wolff diz:

Deve-se registrar que r. é empregado duas vezes mais no


sentido de vento e força vital de Deus do que de respiração
do ânimo e vontade do ser humano. A maioria dos textos
que tratam da r. de Deus ou dos seres humanos mostra
Deus e o ser humano em relação dinâmica. O fato de que
um ser humano como r. é vivo, quer o bem e age com
autoridade não vem dele (2007, p. 77).

Com esta explicação de Wolff fica difícil entender a ideia do espírito como
algo que constitua uma “parte” do ser humano, como algo que lhe seja
pessoal e confira autonomia própria ou possibilidade de identificação de
forma separada de seu ser como um todo. Também não conseguimos
identificá-lo como responsável pela personalidade, consciência, mente
ou outra dimensão daquilo que pretende descrever a complexidade da
existência humana.

1.3.2. O conceito de coração — leb/lebab


Para Wolff, “a palavra mais importante para a gramática da antropologia
veterotestamentária geralmente se traduz por ‘coração’ [...] diferentemente
dos outros conceitos principais, refere-se, quase unicamente, ao
ser humano” (2007, p. 79). Noto que exatamente aquilo que é mais
enfatizado na teologia do ser humano no Antigo Testamento, que é o
leb, não é considerado pelas perspectivas dicotômica e tricotômica, que
se restringem aos conceitos de corpo, alma e espírito, respectivamente,
basar, nephesh e ruach. O que torna o termo leb (‫)לב‬ ֵ interessante é a
vasta amplitude de seu significado, porém, tipicamente apontando para
a interioridade humana. Ainda que a sua tradução imediata seja coração,
“conhecido como um órgão inacessível, oculto no interior do corpo” e
28 | Teologia Sistemática III | FTSA
que “se contrapõe à aparência externa” (idem, pp. 83-84), este sentido
típico do pensamento sintético hebraico quer indicar exatamente este
paralelismo de ideias, tornando o coração não um mero órgão, mas o
centro da interioridade humana, incluindo aquilo que hoje entendemos
como funções cerebrais ou de “natureza intelectual-psíquica” (idem,
p. 84). Segue uma lista de exemplos de atos que são atribuídos ao leb
humano, elaborada por Wolff:
a) Sensibilidade, emocionalidade, estado de ânimo (1 Sm 2:1; Sl 25:17;
Pv 15:13);
b) Desejo, aspiração — próximo daquilo que foi apresentado referente
à nephesh (Nm 15:39; Sl 21:2; Is 9:10-11);
c) Entendimento, compreensão, consciência, memória (Dt 29:4; Pv 7:3;
18:15; Is 6:10);
d) Decisão, vontade, planejamento (Gn 6:5; Sl 20:4; Pv 16:9).

Resumindo, o ser humano, como nephesh, é visto a partir de seus


desejos, anseios e cobiças, indicando um aspecto mais instintivo, animal,
quase incontrolável. Como ruach, ele é enxergado como alguém cuja
vida é dependente da fonte divina, quer em sua sustentação, quer em
sua motivação e capacitação. Como leb, o ser humano é percebido como
um ser consciente e responsável por seus sentimentos, pensamentos e
ações. Mais uma vez, seguindo a compreensão hebraica da antropologia,
o coração não é identificado como uma “parte” e sim como representante
figurativo da integralidade humana.

Essa breve discussão sobre a constituição humana na ótica do Antigo


Testamento tem por objetivo esclarecer o entendimento do pensamento
hebraico que, originalmente, forma a Antropologia bíblica e que informa,
em grande parte, a compreensão dos escritores do Novo Testamento.
Certamente, o contato com a cultura grega, principalmente com a filosofia,
influenciou a argumentação dos autores neotestamentários, uma vez que
sua mensagem foi escrita para alcançar a igreja primitiva que se tornou
prioritariamente gentílica, ou seja, sem possuir a bagagem histórico-
| Teologia Sistemática III | FTSA | 29
teológica do pensamento hebraico. Nosso próximo passo, portanto,
será investigar como os autores do Novo Testamento apresentam o ser
humano em sua constituição, visando formar uma perspectiva ampla da
teologia bíblica.

Exercício de fixação - 04
Qual das opções abaixo representa a melhor interpretação do
termo hebraico nephesh aplicado à constituição humana?
a) A vida como um todo, com atenção para os desejos humanos
mais básicos;
b) O âmbito do ser humano onde se reconhece a personalidade;
c) A área da vida que se relaciona com as outras pessoas;
d) A área da vida que se relaciona com Deus pela expressão dos
sentimentos;
e) O âmbito do ser humano referente às coisas espirituais.

1.4. A constituição do ser humano no Novo Testamento


Certamente a Antropologia Teológica adotada pela maior parte da
igreja evangélica contemporânea é mais influenciada pelos escritos
do Novo Testamento que do Antigo. Nem por isso podemos afirmar
que esta perspectiva componha uma antropologia neotestamentária
porque mesmo utilizando os textos que ali se encontram, percebemos
que muitas interpretações atuais são influenciadas por paradigmas que
parecem fugir da intenção dos autores bíblicos. É por essa razão que
faremos a investigação de alguns textos do Novo Testamento, tentando
entendê-los à luz daquilo que estudamos sobre como Antigo Testamento
apresenta a constituição do ser humano. Nosso objetivo final é obtermos
uma teologia bíblica abrangente e coerente.
30 | Teologia Sistemática III | FTSA
Após analisarmos alguns termos gregos, focaremos a investigação em
dois grupos de textos que acredito serem suficientes para a compreensão
daquilo que estou propondo. O primeiro grupo de textos é referente aos
evangelhos, tentando obter o tratamento dado por Jesus e seus discípulos
ao tema durante aquele período. O segundo grupo terá os textos paulinos
que, ao tentar traduzir sua teologia para o mundo greco-romano, acabou
estabelecendo a principal referência utilizada pela igreja contemporânea,
mesmo parecendo haver problemas atuais de interpretação daquilo que
ele tinha a intenção de ensinar.

Como vimos, a antropologia bíblica tem seu início com a teologia


desenvolvida pelos autores do Antigo Testamento. Por esta razão, é ela
que norteia aquilo que foi desenvolvido, mais tarde, pelos autores do
Novo Testamento, considerando que a fé cristã é uma continuidade da fé
hebraica. Mais que isso, a maioria dos autores neotestamentários eram
judeus ou possuíam formação cultural e religiosa dentro do judaísmo.
Dessa forma, quando os autores utilizaram palavras gregas para
escreverem seus textos, no fundo, eles tinham um pressuposto teológico
hebraico, conforme apresentado na unidade anterior.

Saiba mais
A Septuaginta
Muito antes de escreverem seus textos, os autores do Novo
Testamento já possuíam a referência da Septuaginta. São os textos
da Septuaginta que aparecem sendo citados pelos autores do Novo
Testamento em seus livros quando se referenciam às Escrituras,
portanto, era natural que usassem os termos gregos adotados
naquela versão que traduziam os termos hebraicos originais.

“Septuaginta, abreviação LXX, a mais antiga

| Teologia Sistemática III | FTSA | 31


tradução grega existente do Antigo Testamento do
hebraico original. A Septuaginta foi provavelmente

feita para a comunidade judaica no Egito, quando


o grego era a língua comum em toda a região. A
análise da linguagem estabeleceu que a Torá, ou
Pentateuco (os primeiros cinco livros do Antigo
Testamento), foi traduzido perto da metade do
século III a.C. e que o restante do Antigo Testamento
foi traduzido no século II a.C.

O nome Septuaginta (do latim, “70”) foi derivado


posteriormente da lenda de que havia 72 tradutores, 6
de cada uma das 12 tribos de Israel, que trabalharam
independentemente para traduzir o todo e, por fim,
produziram versões idênticas. Outra lenda afirma
que os tradutores foram enviados a Alexandria por
Eleazar, o sacerdote principal de Jerusalém, a pedido
de Ptolomeu II Filadelfo (285–246 a.C.), embora sua
fonte, a Carta de Aristeas, não seja confiável. Apesar
da tradição de que foi perfeitamente traduzido, há
grandes diferenças de estilo e uso entre a tradução
da Torá pela Septuaginta e suas traduções dos livros
posteriores do Antigo Testamento. No século III d.C.,
Orígenes tentou esclarecer os erros dos copistas que
haviam se infiltrado no texto da Septuaginta, que
então variava amplamente de uma cópia para outra,
e vários outros estudiosos consultaram os textos
hebraicos para tornar a Septuaginta mais precisa”.
Fonte: https://www.britannica.com/topic/Septuagint

32 | Teologia Sistemática III | FTSA


Abaixo apresento um quadro que correlaciona os termos hebraicos aos
termos gregos, que apontam para a principal opção de tradução, assim
como a correspondência em português:

Hebraico Grego Português


basar (‫)בָּ שָׂ ר‬ sarx (σάρξ) carne
nephesh (‫)נ֫ ֶ פֶשׁ‬ psyche (ψυχή) alma
ruach ( ַ‫)רוּח‬ pneuma (πνεῡμα) espírito
leb (‫)לֵב‬ kardia (καρδία) coração

1.4.1. Os conceitos de carne, alma, espírito e coração -


sarx, psyche, pneuma e kardia
Nossa tarefa inicial será verificar como se comporta a tradução dos
conceitos hebraicos para o grego. Para isso, recorremos aos dicionários e
léxicos da língua grega. Seguindo a ordem de termos indicadas na tabela,
encontramos a tradução de basar como sarx. Em uma análise rápida, vemos
que a tradução é bastante próxima já que sarx designa “a parte muscular
do corpo humano ou animal”, abarcando a totalidade do corpo físico
(Schweizer, 1971, p. 99-101). Eduard Schweizer (1971, pp. 98-151) faz uma
longa apresentação do emprego da palavra, desde de a Antiguidade até os
pais apostólicos, e chama a atenção para a influência da filosofia grega na
atribuição de uma conotação negativa do termo, como algo corruptível, em
contraposição à psyche, como algo imortal e superior. Mencionando as
reações às difundidas ideias de Epicuro, Schweizer comenta que

Não se deve esquecer que seus oponentes pertenciam


a uma tradição que desde o tempo de Platão via os
desejos e vontades do corpo como os meios por onde
a alma era enfeitiçada, manchada e poluída. Nos dias
do NT, então, a expressão ἡδονῂ σαρκός [desejo ou
sensualidade da carne] era um slogan, especialmente
popular no judaísmo helenista. Era constantemente visto

| Teologia Sistemática III | FTSA | 33


como uma convocação às formas mais cruas de prazer.
Os animais não conheciam nada melhor que ἡδονῂ, sem
retidão divina; todas as coisas serviam ἡδονῂ σαρκός e à
satisfação de seu desejo (1971, p. 104).

É com esse pano de fundo que o apóstolo Paulo utiliza o termo, de


forma figurativa, em suas cartas, pensando na natureza humana caída,
com tendência ao pecado. Jürgen Moltmann esclarece a concepção
teológica paulina:
“Carne”, aqui, é uma afirmação sobre a totalidade do
homem, e não pode ficar limitada à corporalidade do
homem. A sede do pecado, que fracassa no encontrar
a vida, não é a sensualidade, nem são os impulsos ou
instintos assim chamados inferiores, mas é o homem
todo, primordialmente sua alma ou seu coração, o
centro de sua consciência ou de sua vontade, na medida
em que é possuído pelo impulso da morte (1999, p. 91).

Nesse sentido, sarx se distancia do conceito de basar, que não carrega


esse mesmo entendimento figurativo, e negativo, no pensamento hebraico.

Passando para a análise da tradução de nephesh por psyche, Albert


Dihle explica que essa palavra é a de menor ocorrência, dentre as aqui
investigadas, e que significa “a impalpável essência central do homem,
a sede do pensamento, desejo e emoção, a quintessência da vida
humana” (1974, p. 616). É na psyche que se reconhece a personalidade,
a existência como indivíduo, possuindo um entendimento, já mencionado
anteriormente, como algo imortal, em contraste com sarx. “Quando usada
para denotar a sede do intelecto e intenção, ψυχή [psyche], naturalmente,
não corresponde ao hebraico ‫נ ֶפשׁ‬,ֶ֫ nem a muitas outras palavras no
vocabulário psicológico hebraico, que é rico, embora diferente, quando
comparado com o grego, c.f. ‫[ ֵלב‬leb], �‫רוּ‬
ַ [ruach]” (Dihle, 1971, p. 632). Aqui
também vemos um distanciamento entre a ideia de nephesh e psyche,
causando certo descompasso com a construção veterotestamentária.
Como vimo, nephesh não é considerada como aquilo que move o
pensamento ou se reconhece a personalidade.
34 | Teologia Sistemática III | FTSA
Tratando da palavra pneuma, usada na tradução de ruach, Hermann
Kleinknecht explica que, “apesar do estoicismo, πνεῡμα [pneuma] possui
apenas uma leve e secundária significação no pensamento grego como
um todo. Isto está em contraste com o seu importante papel no NT”
(1968, p. 357). Isso significa que a expressão recebeu nos textos do
Novo Testamento um significado maior que aquele presente na cultura
grega visando se adequar ao Antigo Testamento. Para a cultura grega
pneuma significava algo semelhante a um dos entendimentos de ruach,
o de fluxo de ar ou sopro do vento, além dos aspectos relacionados à
respiração e da ideia de algo que enchia o ser humano de inspiração e
entusiasmo. Contudo, ruach também carregava o entendimento do vento
proveniente de Deus como a força vital no ser humano e de capacitação.
Principalmente com o apóstolo Paulo, a adjetivação de pneuma recebeu
a conotação de nova existência, como um sopro do vento divino gerando
nova vida a partir do relacionamento com Jesus Cristo.

Exercício de aplicação - 05
Ao olharmos para a constituição do ser humano, a partir da
antropologia bíblica, é correto afirmarmos que:
a) É possível perceber o corpo, assim como o sopro do espírito, que vivifica
a minha alma. Por isso, assim como Deus, me percebo trino.
b) Como não consigo perceber a minha alma, considero que o corpo físico
é o elemento mais importante na minha existência.
c) Percebo facilmente meu corpo físico, mas é bastante difícil distinguir
a alma e o espírito. Assim, aquilo que didaticamente conhecemos como
corpo, alma e espírito me parecem perspectivas do meu ser, que é uma
unidade indivisível.
d) Percebo claramente o meu espírito e consigo facilmente diferenciá-lo
da minha alma e corpo físico, a carne. Sabendo que o sopro de Deus é
o responsável por me dar o espírito, ele acaba se tornando a parte mais
importante.
e) A minha alma são os meus sentimentos e raciocínio. O meu espírito
é como percebo a minha comunicação com Deus, sem que precise usar
o raciocínio. Tudo isto acontece na minha carne, por isto, me percebo
composto como três partes distintas e separáveis.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 35


Por último, observamos que a palavra kardia, traduzindo leb, representa
na cultura grega o órgão central do corpo humano e dos animais. Ela
também era usada pelos poetas para representar a sede da vida moral,
intelectual, das paixões e emoções. Johannes Behm explica que “o uso
do NT da palavra concorda com o uso do AT mas é distinto do uso grego”
(1965, p. 611); isto porque o entendimento de leb recebe, à semelhança
de rûach, uma interpretação teológica mais ampla e profunda que acaba
sendo absorvida no Novo Testamento. Assim, “o coração é de maneira
suprema o centro no homem a que Deus se volta, em que a vida religiosa
é enraizada, que determina a conduta moral” (1965, p. 612).

1.4.2. O ser humano nos evangelhos


Diferente dos textos do apóstolo Paulo, que procura organizar o
pensamento doutrinário da igreja gentílica, as narrativas dos evangelhos
não têm esta preocupação sistematizadora. Assim, nossa observação
ficará restrita aos acontecimentos como tais, tentando propor possíveis
compreensões e caminhos para a antropologia ali apresentada. Um
detalhe importante que deve estar em nossa mente é que os relatos dos
evangelhos são posteriores, em termos de datação, aos textos paulinos.
Eles foram compostos na língua grega, mas tinham a intenção de relatar
os acontecimentos da vida e ministério de Jesus e seus discípulos.
Esse grupo de pessoas, de quem os textos tratam, assim como seus
contemporâneos, falavam aramaico e hebraico e possuíam a prerrogativa
da teologia judaica, anterior ao tempo da igreja. Além disso, para eles,
as Escrituras continham apenas os textos do que hoje chamamos de
Antigo Testamento, ou seja, a Bíblia Hebraica. Esse alerta é importante
por causa de possíveis interpolações de ideias considerando os
cruzamentos de contexto e tempo que envolveram o registro dos textos
feitos posteriormente em grego.

A dinâmica utilizada para essa investigação é a de encontrarmos


passagens que mencionem os principais termos que se refiram ao ser
humano, a partir daquilo que foi desenvolvido pelo Antigo Testamento.
Mais especificamente, procuramos as ocorrências de basar, nephesh,
ruach e leb, em suas correspondências em grego que são, respectivamente,
36 | Teologia Sistemática III | FTSA
sarx, psyche, pneuma e kardia, além da inclusão de soma nesta busca.

Antes, porém, ressalto a importância de mantermos em mente o


contexto em que os textos foram produzidos, caracterizado pela forte
influência da cultura grega e da apocalítica judaica. Ambas as influências
contribuíram para a perspectiva dualista da realidade e dicotômica
do ser humano. Lembro que o dualismo apocalíptico construiu uma
expectativa escatológica que percebia o mundo dividido entre Deus
e Satanás, e seus respectivos exércitos angelicais, céu e inferno, vida
e morte eterna, etc. Nesse sentido, é interessante notarmos como a
teologia neotestamentária dialogou com esse ambiente na construção
da compreensão do ser humano.

Observando os textos, não percebo haver uma preocupação doutrinária


na menção de algum aspecto da condição humana. Pelo contrário, as
referências parecem concordar, em sua maioria, com o entendimento
hebraico do assunto, conforme já discutido na apresentação dos textos do
Antigo Testamento. Contudo, algumas narrativas de contornos escatológicos
tendem a fortalecer um possível entendimento dicotômico do ser humano,
mas elas também dão margem para uma interpretação de fundo apenas
didático e não necessariamente definidor de sua constituição.

Comecemos com algumas referências em que encontramos o uso da


palavra sarx, que traduz o termo hebraico basar. Nos textos sinóticos de
Mateus 16:17 e Lucas 24:39 percebemos um dualismo, não radical, em
oposição ao pneuma, além da diferenciação entre aquilo que é puramente
humano e aquilo que recebe a influência divina. Já nos textos do evangelho
de João, cuja mensagem encontra-se mais integrada à cultura grega,
vemos o mesmo dualismo, mas também uma conotação negativa de
sarx quando associada à ideia de humanidade pecadora (e.g. Jo 1:13, 14;
3:6; 6:51, 52, 56, 63). De forma semelhante, temos o tratamento de soma,
entendido como conceito paralelo ao da sarx — c.f. Mateus 14:12 — em
Mateus 10:28, mas nesse texto ele se encontra em oposição a pneuma.

Os textos que mencionam a psyche, como possível indicação de nephesh,


ou seja, significando simplesmente vida, não trazem novidade para o
| Teologia Sistemática III | FTSA | 37
entendimento da constituição humana (e.g. Mt 26:38; Lc 2:35) a não ser a
visível influência da perspectiva escatológica (Mt 16:26) apontando para
o conceito grego de imortalidade.

O termo mais complicado na comparação entre a antropologia do Novo


Testamento e do Antigo é pneuma. Isso porque ele traz a compreensão
apocalíptica e grega de representação de seres angelicais ou
demoníacos, sem se referir à constituição humana em si (e.g. Mt 8:16;
10:1; 12:43; Mc 3:30). Também percebemos indícios de uma possível
compreensão dicotômica, de maneira similar e talvez até intercambiável
com o que ocorre com psyche (e.g. Mt 26:41; Mc 2:8; Lc 1:47; Jo 11:33,
13:21). Contudo, o maior uso parece concordar com a perspectiva
veterotestamentária em que o ruach dá e sustenta a vida — também a
nova vida —, capacita e influencia o comportamento e estado de ânimo
das pessoas (e.g. Mt 27:50; Lc 1:47, 67, 8:55, 9:55; Jo 4:23, 11:33, 13:21).

Por último, quando os evangelhos usam a expressão kardia, ela


concorda com o Antigo Testamento sem qualquer novidade e mudança
no entendimento da constituição humana (e.g. Mt 9:4; 12:34; Mc 7:21;
Lc 2:35; Jo 12:40) ou mesmo na inclusão da mesma em alguma opção
dicotômica ou tricotômica.

1.4.3. O ser humano no pensamento paulino


O apóstolo Paulo é o principal autor a ser investigado sobre a complexidade
da constituição humana. Foi ele o responsável pela estruturação,
mesmo em forma de carta, das doutrinas da igreja. Também parece
ter assumido o encargo de fazer a transição entre a teologia hebraica
e nova realidade contextual greco-romana. Particularmente, defendo a
hipótese de que seus textos possuem uma intencionalidade didática,
em especial, na exposição da antropologia teológica. Apesar do texto da
carta aos Tessalonicenses, particularmente o versículo 23 do capítulo
5, ser a referência que fundamenta a opção por uma compreensão
tricotômica do ser humano, não podemos cair no equívoco de sintetizar
todo o pensamento paulino nele. Pelo contrário, a fim de entendermos o
que o apóstolo Paulo pensava sobre a constituição humana, devemos

38 | Teologia Sistemática III | FTSA


investigar a argumentação presente no conjunto de sua obra.
Uma rápida apresentação de alguns textos de Paulo me parece suficiente
para mostrar que ele não tem a intenção de apresentar uma doutrina
sistematizada da constituição humana. Em diferentes situações,
contextos e propósitos ele menciona o ser humano caracterizando-o de
forma inconclusiva:
• Romanos 1:24 – kardia e soma (coração e corpo);
• Romanos 2:29 – soma e pneuma (corpo e espírito);
• Romanos 7:23 – melos e nous (corpo e mente)
• Romanos 8:13 – sarx e soma (carne e corpo);
• 1 Coríntios 5:3 – soma e pneuma (pessoa e espírito);
• 1 Coríntios 5:5 – sarx e pneuma (carne e espírito);
• 1 Coríntios 14:15 – pneuma e nous (espírito e mente);
• 1 Coríntios 15:44 – soma psychikon e soma pneumatikon (corpo
natural ou psíquico e corpo espiritual);
• 1 Coríntios 15:45 – pneuma e psyche (espírito e alma);
• Filipenses 4:7 – kardia e nous (coração e mente);
• 1 Tessalonicenses 5:23 – pneuma, psyche e soma (espírito, alma
e corpo)

Nessa lista incluí o termo nous, traduzido como mente, que embora não
tenhamos abordado anteriormente, possui grande proximidade com
o conceito de leb no hebraico. Outro termo mencionado foi melos que
significa um membro ou uma parte do corpo físico, muito próximo da
palavra sarx. Interessante é percebermos o uso das expressões corpo
natural e corpo espiritual, que foge da tendência de se considerar o corpo
como algo apenas físico, especialmente quando interpretamos o texto
de 1 Tessalonicenses 5:23. O que parece concluir-se dessa pequena
lista é que o texto que acabou sendo utilizado como fundamento para a
tricotomia não se repete em nenhum outro ensino de Paulo e, portanto,
acaba ficando como algo isolado em sua antropologia. Arrisco dizer que
a perspectiva paulina concorda com a do Antigo Testamento, mas utiliza
diversas caracterizações de funções ou percepções do ser humano para
poder transmitir sua mensagem. Por isso, Schweizer afirma:
| Teologia Sistemática III | FTSA | 39
Os termos antropológicos de Paulo não são consistentes
ou originais. O Espírito Santo afeta o homem todo e não
pode ser explicado psicologicamente. Isso permite que
Paulo adote idéias populares quase que livremente. A
tese de que não há um πνεῡμα antroplógico em Paulo
dificilmente pode ser sustentada. Junto com σωμα
e σάρξ, πνεῡμα é usado quase exclusivamente para
as funções físicas do homem, 1Co 7:34; 2Co 7:1; Cl
2:5(?). Pode ser um paralelismo com ψυχή, (Fl 1:17) ou
paralelismo com σάρξ, pode denotar o homem como
um todo, com uma ênfase mais forte em sua natureza
psíquica do que física, 2Co 2:13; 7:5; cf. 7:13; 1Co 6:18,
tudo com pronomes pessoais (1968:434-435).

Como conclusão do que procurei expor tanto no que se refere à


constituição do ser humano, desde uma perspectiva neotestamentária
quanto veterotestamentária, considerando as categorias dicotômica ou
tricotômica, apresento a opinião de Philip J. Hefner:

Há um sério questionamento sobre se qualquer


uma destas categorias é útil ou mesmo inteligível
para nós hoje. Lutero, por exemplo, já as contestou
porque acreditava que a criatura humana é um ser
unitário perante Deus, uma pessoa que é totalmente
criação de Deus, totalmente pecadora e totalmente
redimida [...] Em acréscimo a esta consideração
teológica, a compreensão contemporânea do ser
humano e da estrutura da personalidade humana não
permite uma concepção dicotômica ou tricotômica,
exceto metaforicamente. Requer-se uma perspectiva
evolutiva moderna. Dentro desta perspectiva, há ainda
considerável ambiguidade, incerteza e desacordo sobre
a relação entre corpo e espírito ou mente. Nem mesmo
há total acordo a respeito de como a mente deveria ser
descrita. Não obstante, espírito ou mente e corpo ou
40 | Teologia Sistemática III | FTSA
matéria são vistos como parte do mesmo processo, e
não como entidades separadas [...] Para os teólogos na
tradição da Reforma, as categorias contemporâneas
de pensamento são libertadoras porque permitem
expressar de maneira lúcida uma perspectiva unitária
da criatura humana. O ser humano é uma criatura una,
uma criatura da natureza, criada com uma relação
especial com Deus o Criador e com a capacidade de
perceber essa relação e de viver uma vida de resposta a
Deus. O ser humano é uma criatura unitária em termos
de origem e destino em termos de pecado e de erro e
em termos de redenção (1990, pp. 335-337)

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42 | Teologia Sistemática III | FTSA


UNIDADE 2 – O drama humano
Essa unidade procurará discutir aspectos ontológicos do ser humano,
ou seja, tratará da sua existência, propósito e destino com um olhar na
teologia da criação e mais especificamente na continuidade da narrativa
que nos apresenta a Queda. É este estado existencial apresentado pela
teologia da Queda e do Pecado que estabelece a condição na qual toda
a vida humana se desenvolve e, por esta razão, identificada aqui como o
Drama Humano. Antes de estudarmos a Queda e o Pecado, que também
incluirá a discussão do tema do Mal, introduziremos mais um elemento
que constitui o pano de fundo da condição humana ainda como parte
da Teologia da Criação. Este elemento é o que se acostumou chamar de
“mandato cultural”.

2.1. Mandato cultural


A expressão mandato cultural reúne duas palavras cujo sentido sai
do texto do segundo relato da criação presente no livro de Gênesis,
que representa o mandamento divino para que o ser humano cultive o
ambiente em que ele habita. Como explica Justo González,

Para entrar rapidamente na questão, estipulemos muito


brevemente que uma cultura é, em essência, o modo
pelo qual um grupo humano qualquer se relaciona entre
si e com o ambiente circundante. Por isso, ela tem o
que bem poderíamos chamar de um elemento externo
e outro interno. No elemento externo, ela responde aos
desafios e oportunidades de seu ambiente [...] Esta
dimensão externa, por assim dizer, das culturas pode ser
vista na própria palavra cultura, que deriva da mesma
raiz de cultivo. Isto se deve naturalmente ao fato de que
um dos meios mais antigos pelos quais as sociedades
enfrentaram os desafios de seu meio ambiente foi o
cultivo. Uma das mais antigas manifestações culturais
é a agricultura (2011, p. 37-38).
| Teologia Sistemática III | FTSA | 43
É a partir desta ideia e da implícita preocupação da teologia javista, autora
do segundo relato, com a promoção da sociedade agrária, que lemos o
seguinte texto: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para
cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2:15). O texto de significado paralelo, elaborado
sob outra ótica e que se encontra no primeiro relato, nos diz: “Deus
os abençoou e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e
subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu
e sobre todos os animais que se movem pela terra’” (Gn 1:28). O primeiro
texto fala de cultivo, o segundo de domínio. Ambos se referem à relação
estabelecida entre o ser humano e o ambiente em que vive.

Nosso estudo não ficará restrito a esses relatos; eles apenas introduzem
a ideia inicial sobre o mandato cultural humano. O objetivo aqui será
investigar tudo o que envolve este conceito e suas consequências para a
promoção da vida humana em seu habitat.

2.1.1. Vocação e relacionamentos


Gostaria de começar nosso estudo trazendo à tona uma afirmação
que aparentemente parece óbvia, mas que provoca uma série de
consequências para a existência humana: a grande e primeira vocação
do ser humano é viver como um humano. A já discutida imagem e
semelhança não faz do ser humano alguém divino, no sentido de possuir
as mesmas prerrogativas e qualidades. Há quem pense que faz parte
da vocação do ser humano ser como Deus, talvez considerando uma
interpretação equivocada daquilo que ele requer que reflitamos, como
santidade, justiça, amor, etc. A diferença, no entanto, é que todas estas
expressões do chamado caráter divino devem ser manifestas na condição
humana e não em outra esfera qualquer.

Relembro que o conceito de santificação, ou de santo-ficar — este conceito


foi tratado na disciplina de Teologia Sistemática II —, que tem como
referência a expressão do texto de Levítico 19:2, “Sejam santos porque
eu, o Senhor, o Deus de vocês, sou santo”, não é um mandamento que
tem a intenção de nos tornar divinos. Pelo contrário, como demonstrado,

44 | Teologia Sistemática III | FTSA


ele é extremamente prático no sentido de sua aplicação nas relações
humanas e sociais.

O dualismo dicotômico, que interpreta a espiritualidade ou o âmbito


do espírito como sendo algo superior e mais próximo de Deus parece
produzir uma expectativa semelhante. Ao invés de nossa vocação estar
voltada para aquilo que é próprio da condição humana, acabamos por
projetar uma existência imprópria e impossível. Algumas expressões
da religiosidade procuram fazer da experiência de fé algo que foge do
tangível e da realidade da vida humana. Um tipo de misticismo angelical
ronda esse tipo de percepção. O Salmo 8:4-5, citado em Hebreus 2:6-7,
é muito claro em afirmar que o ser humano foi criado em uma condição
diferente, “um pouco menor do que os seres celestiais” ou “anjos”, o que
não significa dizer que ele possa disfrutar dessa prerrogativa celestial. Ao
contrário, o ser humano é essencialmente terreno. Ele é o adam formado
da adamah. Repito a afirmação que fiz anteriormente, também na
disciplina de Teologia Sistemática II: quanto mais espiritual uma pessoa
for, mais humana ela será, pois foi assim que Deus a criou. Deus não nos
fez seres angelicais, imateriais, para vivermos em uma região celestial.
Ele nos fez humanos para vivermos sobre a terra — habitat que ele criou
— e convivermos uns com os outros e com a natureza, em harmonia, em
equidade, em justiça e em amor. Portanto, quanto mais próximos nos
tornamos de Deus, quanto mais cheios e conduzidos por seu Espírito,
mais próximos estaremos da condição humana criada e mais sensíveis a
cumprirmos este propósito de vida: ser verdadeiramente humanos.

Outra fundamental questão da condição humana são os seus


relacionamentos. Já mencionamos, ao falarmos de sua criação, que o ser
humano é eminentemente social, ou seja, não é bom que esteja só. Contudo,
uma abordagem mais clássica da antropologia teológica indica quatro
tipos de relacionamentos próprios da condição humana. Dois já foram
mencionados, os relacionamentos com o seu habitat e com os outros seres
humanos. Os outros dois são os relacionamentos com Deus e consigo
mesmo. O mandato cultural lida com os dois primeiros relacionamentos; já
os outros, serão tratados, mais adiante, sob o tema da queda.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 45
Tratando do relacionamento social entre os seres humanos, podemos
pensá-lo como um desdobramento da relação entre os gêneros, já
apresentado, ou como parte do tema do cultivo. Sendo o cultivo e a
cultura um fenômeno coletivo, próprio de um grupo, ele só funciona
quando existe acordo entre as pessoas do grupo. Muito dificilmente
alguém consegue sobreviver sozinho. É na força da coletividade que
encontramos as maiores possibilidades de perpetuação da espécie
humana. Por isso, a convivência para ser duradoura deve ser envolvida
por respeito, compreensão, solidariedade, etc. Esse cenário ideal precisa
entender as diferenças que existem naturalmente entre as pessoas em
suas habilidades, personalidades e até mesmo limitações. A máxima
bíblica para que a sobrevivência humana possa ocorrer em sociedade é
indicada como amar o próximo como a si mesmo.

2.1.2. Cultivo e domínio sobre a natureza


Podemos dizer que o cultivo e domínio sobre a natureza estão diretamente
relacionados à sobrevivência humana. Os textos de Gênesis indicam
esse aspecto:
28
Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam férteis
e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra!
Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu
e sobre todos os animais que se movem pela terra”.
29
Disse Deus: “Eis que dou a vocês todas as plantas que
nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas
as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão
de alimento para vocês. 30E dou todos os vegetais como
alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos
os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e
a todas as criaturas que se movem rente ao chão”. E
assim foi (Gn 1:28-30).
8
Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no
Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem
que formara. 9Então o Senhor Deus fez nascer do
solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas
para alimento [...] 15O Senhor Deus colocou o homem
46 | Teologia Sistemática III | FTSA
no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. 16E o
Senhor Deus ordenou ao homem: “Coma livremente de
qualquer árvore do jardim [...]” (Gn 2:8-16).

A sobrevivência humana é dependente do cultivo da fonte de alimentos,


vegetal e animal. Em outras palavras, é subjugando e dominando estas
fontes que o ser humano obtém seu sustento. No entanto, considerando
a posição de Deus como o criador, o domínio humano não é direto; ele
é visto como uma transferência de responsabilidade daquele que cria
e sustenta todas as coisas. Isso é o que chamamos de mordomia, ou
seja, o ser humano exerce a função daquele que cuida dos bens de um
patrão — que é Deus. A responsabilidade humana, portanto, é um dos
elementos mais importantes a serem considerados no mandato cultural.
Em que sentido, pois, a responsabilidade ou mordomia se torna prática?
Poderíamos listar os seguintes aspectos:
• A sustentabilidade ecológica
• O uso da tecnologia
• O acesso à terra
• A promoção da justiça aos pobres e necessitados
Sustentabilidade e ecologia são temas bastante atuais na sociedade.
Embora pareça óbvio, o que vemos hoje em nível global são os
resultados de uma má mordomia humana. O ser humano, organizado
em suas diversas estruturas sociais, particularmente as que possuem
alto grau de industrialização, ao lidarem com as fontes de recursos
naturais, e suas transformações, tem gerado o esgotamento delas. Além
disto, há a produção de um estado que, mantido nesse ritmo, inviabiliza
a perpetuação da vida. Não apenas os recursos naturais têm sido
explorados de forma irresponsável, mas tudo aquilo que permeia estes
recursos tem sido destruído  o ar, a água e o solo. A teologia da criação
mostra que todas as coisas estão interligadas, formando o que hoje
denominamos de ecossistema, o sistema de interdependência daqueles
que constituem a casa ou habitat humano — eco, do grego oikos, que
significa casa.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 47
Exercício de fixação - 06
Qual das afirmações abaixo melhor representa aquilo que
entendemos teologicamente como vocação humana:
a) A vocação humana se expressa principalmente pelas diversas formas
de trabalho e profissão;
b) A vocação humana é fundamentalmente tornar-se como Deus;
c) A vocação humana se expressa principalmente em seu chamado
missionário;
d) A vocação humana não pode ser exercida por causa do efeito da
queda e do pecado.

e) A vocação humana é fundamentalmente assumir a condição humana


em todos os seus âmbitos de vida, cuidando de si e do cosmos;

A industrialização, entretanto, não pode ser vista como algo


simplesmente negativo e, sim, o abuso dos recursos quando feito de
forma irresponsável. De fato, o que estamos tratando aqui é da tecnologia,
que é o desenvolvimento e aprendizado do uso de ferramentas visando
melhorar o cultivo dos recursos que promovem a sobrevivência humana.
A invenção do arado, por exemplo, há muitos milênios, é tido como algo
que foi fundamental para o desenvolvimento da agricultura e para o
aumento da produção de alimentos nas primeiras sociedades humanas.
A industrialização, tida como a aplicação de um conjunto de tecnologias,
de certa forma, visa exatamente o mesmo tipo de aumento de produção.
O problema, no entanto, é quando a tecnologia não está à serviço da
sobrevivência e sim da exploração, ganância e domínio de alguns seres
humanos sobre outros.

Já a importância da terra na sociedade contemporânea urbanizada


talvez não seja muito percebida, uma vez que as pessoas compram seus
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alimentos em supermercados. Contudo, a terra é, e sempre foi, a principal
fonte de alimentos vegetais e animais. Observando a história antiga,
vemos o quão significante era ter acesso à terra e, por isso, quantas
guerras e disputas se estabeleceram para que isso ocorresse. Muitas
narrativas bíblicas giram em torno deste tema. Desde Abraão, quando
lemos sobre o seu chamado e aliança com Deus, vemos a centralidade do
tema da terra (Gn 12:1). Não à toa, a construção do personagem Abraão
envolve o aspecto da fé e esperança. Abandonar sua terra em direção
a uma outra ainda não conhecida significava grande insegurança para
a sobrevivência daquele clã. A história dos patriarcas, mesmo descrita
em uma condição seminômade, procura narrar os vários conflitos pelo
controle da terra e da água. Também a história da libertação do Egito,
que se inicia com o fenômeno migratório por causa da fome, traz como
alvo posterior a posse da terra de Canaã, a mesma das peregrinações
dos patriarcas e, novamente, envolve um longo processo de guerra e
conquista que permanece durante todo o tempo dos reinos de Israel
e Judá. Não por menos, a teologia do Antigo Testamento afirma que o
dono da terra é sempre Javé e não Israel ou o ser humano (Dt 10:14). Por
este motivo, é Deus quem estabelece os critérios para o seu uso e para
que justiça seja promovida em função da sobrevivência humana.

Especificamente, o tema da justiça possui direta relação com a terra


ou com as consequências econômicas de seu uso. Aqueles que, por
alguma razão, não tem acesso à terra ou não conseguem tirar dela o seu
sustento, são tratados como pobres ou necessitados pela teologia do
Antigo Testamento. Destaco que a palavra economia é formada pelas
palavras gregas oikos e nomos que significam, respectivamente, casa
e lei ou regra. É daí que surge o conceito de economia, como a maneira
que se gerencia a casa —considerando os grupos humanos a casa
pode ser entendida como, cidades, estados, países, ou todo o planeta.
Quando a mordomia desta grande casa social é malfeita, o resultado
é um desequilíbrio nas condições de sobrevivência. Para sanar estes
problemas, Deus estabelece leis de proteção aos pobres e até mesmo de
redistribuição da terra (Dt 15; Lv 25).
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Além dos aspectos relativos à responsabilidade humana e mordomia, o
domínio sobre a natureza carrega um interessante elemento que alguns
autores denominam de atividade co-criadora, Certamente o ser humano
não é capaz de criar algo além da matéria já criada por Deus. Como
teria dito Lavoisier: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma”. No entanto, ao transformar a natureza, podemos pensar que
o ser humano também é capaz de criar coisas novas. Esta capacidade
criativa, que utiliza a matéria existente, é resultado das descobertas
científicas que faz e, desta forma, o ser humano imagina, inventa e
constrói. Todos os artefatos, ferramentas, objetos, sistemas, estruturas,
etc. fazem parte deste processo; desde o arado e roda, até os foguetes
espaciais e a manipulação genética. Mas como um efeito consequente
do domínio humano, nem tudo o que ele faz pode ser considerado bom,
exigindo de todos a avaliação constante e correção de caminhos que
sejam favoráveis à perpetuação da vida.
Em suma, ao pensarmos no ser humano em suas mais primitivas
características, tendo como pano de fundo a teologia da criação, em
especial suas relações com o habitat e com os seus semelhantes,
podemos recorrer a três expressões que sintetizam as ideias aqui
elaboradas. Todas as expressões partem do pressuposto de que o
ambiente no qual existimos, o nosso jardim, pode ser entendido também
como a nossa grande casa. Para que essa casa (oikos) seja promotora
da vida e da subsistência humana necessitamos pensar em como cultivá-
la de forma sustentável, sem destruí-la ou sem destruir a nós mesmos
como consequência direta. Quando pensamos assim, pensamos na
ecologia (oikos e logos).
Mas também precisamos estabelecer regras, estruturas de organização
e controle para que nossa ação e trabalho resultem em algo ecológico e
promotor da justiça. Pensando nesta perspectiva, adentramos o terreno
da economia (oikos e nomos).
Por fim, tudo isso só ocorrerá quando houver nos relacionamentos
humanos, interpessoais e coletivos, o respeito mútuo e a cooperação em
amor. Falamos agora de um tema amplo, mas que merece, pelo menos,
50 | Teologia Sistemática III | FTSA
a menção, que é o ecumenismo (oikos e menos), a casa em que habitam
todos os seres humanos sem distinção de raça, gênero, posição social,
posição econômica ou crença.

2.2. Queda e pecado


Este tópico funciona como um ponto de virada no estudo da Antropologia
Teológica. Os primeiros assuntos apresentaram o cenário geral de
quem é o ser humano e do seu estado como criatura. Agora somos
inseridos mais profundamente no drama humano que procura explicar
seus dilemas, sofrimentos e mazelas. Começamos com os temas da
queda e do pecado e mais adiante trataremos da tentação, fraqueza,
responsabilidade humana, e, finalmente, o problema do mal.

Até aqui estudamos alguns temas relacionados à criação divina.


Iniciamos tratando da criação geral, ou seja, da criação de todo o universo
existente, tendo como prisma interpretativo o ser humano. É em torno do
ser humano que as narrativas se concentram buscando descrever seu
habitat e as relações que surgem neste ambiente onde se desenvolve
a sua existência. Os diferentes estilos de narrativas, considerando
principalmente as tradições javista e sacerdotal, nos dão distintas
informações, respeitando suas características.

No segundo relato temos um estilo de maior riqueza simbólica e


figurativa e encontramos ali a narrativa do que se convencionou chamar
de queda. Esta narrativa aparece como tema integrante da criação, sendo
apresentada em Gênesis 3. Embora muitos possam tratar a criação
e a queda como dois assuntos distintos, eles fazem parte da mesma
narrativa que fala das origens do ser humano. O texto que contém o
relato da queda se inicia em Gênesis 3:1, trazendo a seguinte expressão:
‫“ — ֙שָׁח ָנַּה ֽו‬mas a serpente”. O emprego do termo ‫ ֽו‬é assim explicado pela
Gramática Hebraica de Genesius:

Wāw copulativum (‫ ) ֽו‬serve para conectar duas ou mais


sentenças, ou simples palavras [...] Seu uso, todavia,
não está de modo algum restrito simplesmente a juntar
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duas sentenças que são, na verdade, coordenadas.
Frequentemente a língua emprega meramente a
simples conexão pelo Wāw, mesmo para introduzir uma
antítese (Gn 17, 19, Lv 2, Jó 6, e muito frequentemente
em cláusulas substantivas), ou quando uma das duas
cláusulas é não-coordenada, mas subordinada a outra
(1910, p. 484-485).

O que isso significa é que o autor ou editor do texto de Gênesis fez uma
associação imediata em sua narrativa juntando a criação e a queda por
meio de um tipo de conjunção hebraica. No texto, a criação inclui a queda
com a mudança da perspectiva. Criação e queda aparecem, então, integradas
uma a outra. Uma demonstração ainda mais clara de que a queda faz parte
de um mesmo conjunto de ideias é a preparação feita no texto anterior em
função das árvores que simbolizam “a vida” e o “conhecimento do bem e do
mal” (Gn 2:9). Estas árvores funcionam como uma referência para o relato
da queda. Primeiro vemos o papel da árvore que aponta para a questão do
desejo humano pelo conhecimento divino, que leva ao que entendemos
como desobediência e pecado original (Gn 3:6). Depois, como consequência
do pecado vemos o ser humano sendo impedido de ter acesso à árvore que
representa a perpetuação da vida (Gn 3:24).

Essa breve introdução argumentativa poderá fazer sentido um pouco


mais adiante em nosso estudo. Por hora, partamos do pressuposto
de que a queda é definida como parte integrante do questionamento
existencial humano e que ela aparece como o deslocamento conceitual
— por isso queda, caída — entre um estado antropológico superior e um
estado inferior, ou entre um bom e um mal.

2.2.1. Preâmbulo da queda


É importante notarmos que não há na narrativa qualquer preocupação
espaço e tempo. O texto se concentra na questão ontológica, ou seja, na
existência humana que pergunta sobre as suas origens, suas limitações
e sobre o sofrimento que faz parte da vida. A resposta teológica a este

52 | Teologia Sistemática III | FTSA


profundo questionamento aparece na forma de um pequeno drama
ambientado no jardim da criação. Os personagens são os seres humanos
— esposa e esposo —, a serpente e Javé. Todos os personagens, de
certa forma, são apresentados no relato da criação. A maior dificuldade
hermenêutica que enfrentamos é com o personagem da serpente, que
não possui qualquer relevância na narrativa anterior a não ser uma
inclusão implícita entre os animais do campo criados — hayyah sadeh
(Gn 2:19). Seguindo a aproximação pela Teologia Bíblica, evito aqui a
interpretação da serpente como o diabo ou Satanás, uma vez que o texto
não traz este conteúdo.

Saiba mais
A simbologia da serpente no Antigo Testamento
É interessante notar que nenhum texto do Antigo Testamento faz
a associação entre a serpente e o diabo. Pelo contrário, vemos
em alguns textos até mesmo uma conotação positiva em relação
à serpente, como representação simbólica. Por exemplo, o texto
de Números 21:4-9 fala de uma serpente de bronze que salva —
este mesmo texto é revisitado em João 3:14. É apenas no livro
de Apocalipse que aprece uma indicação, não totalmente clara,
que identifica o dragão, ou a antiga serpente, sem mencionar a
narrativa do Gênesis, com a figura do diabo. Por outro lado, o papel
da serpente é visto como representante daquilo que denominamos
tentação e, neste sentido, o Novo Testamento faz a associação
teológica com Satanás, que assume o papel de tentador.

Ao invés de pessoalizarmos a serpente, num primeiro momento, uma vez


que nossa preocupação é ontológica, pensemos nela como a representação
simbólica da tentação. O tema da tentação, como algo que influencia o ser
humano, será estudado mais adiante, assim, nosso foco ficará concentrado
mais no conteúdo da tentação, na queda e suas consequências.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 53
Embora a narrativa esteja elaborada como uma sequência de atos e
diálogos, iniciando com a serpente e a mulher e, depois, inserindo o homem,
não me preocuparei com estes detalhes e sim com a mensagem maior
que o texto parece querer transmitir. Para o questionamento ontológico
profundo que o texto propõe, considero irrelevante tentar encontrar
diferenças teológicas entre o papel da mulher e do homem. Tanto a
tentação quanto a queda afetam o ser humano, indistintamente, em sua
existência e gêneros. Olhando por este prisma, o que compreendemos
é que a tentação mais profundamente nociva à existência humana
é aquela que sugere a possibilidade de ser como Deus. É isto o que
simboliza desejar comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e
do mal — elaborado em Gênesis 3:5 e 22, em que conhecer o bem e o
mal representaria o conhecimento pleno, de todas as coisas, o que só é
possível para Deus.

Nossa investigação, então, se concentra no desejo humano de querer ser


como Deus em sua existência. O problema aqui não é o conhecimento
ou a curiosidade humana. Paul Sponheim (1990) argumenta que o desejo
pelo conhecimento não é o problema em si, já que a própria literatura
sapiencial aponta para um convite de Deus neste sentido (e.g. Provérbios
2). Citando Dietrich Bonhoeffer, Sponheim explica que

Na proibição, Adão é abordado em sua liberdade e em


sua condição de criatura, e pela proibição o seu ser é
confirmado em sua espécie. (...) O limite do homem se
encontra no meio de sua existência, não na margem.
O limite que procuramos na margem é o limite de sua
condição, de sua tecnologia, de suas possibilidades.
O limite no meio é o limite de sua realidade, de sua
existência verdadeira. Adão sabe disso. (...) O limite
é graça porque é a base da condição criatural e da
liberdade; o limite é o meio. (...) A proibição do paraíso é
a graça do Criador para com a criatura. Deus não tenta
o homem (apud, 1990, p. 400).

Ora, o que Bonhoeffer sugere é que a queda surge da tensão interna que
54 | Teologia Sistemática III | FTSA
existe no ser humano como um ser criado à imagem e semelhança de
Deus, mas em uma condição de liberdade limitada. A liberdade humana
faz parte de sua existência, de forma não programada e aberta aos
relacionamentos e às escolhas. Sobre tudo isto, entretanto, incide o outro
lado da moeda, que é a responsabilidade. A limitação da liberdade é parte
da condição de criatura. Esta limitação, ainda que convivendo com os
desejos interiores que tentam romper a esta condição, está, nas palavras
de Bonhoeffer, no centro de sua existência, e dela não se pode fugir. Se
nesta liberdade limitada o ser humano se revolta e tenta viver como se
fosse totalmente livre, como se fosse autossuficiente, conhecedor de
tudo, tomando decisões e agindo com base em sua própria mente, ele se
depara com um abismo intransponível. Mais que isso, ele se depara com
uma existência impossível e entra em colapso.

Exercício de aplicação - 07
A maior tentação do ser humano e o que o levou ao estado decaído
foi o desejo de ser como Deus, de ser autossuficiente e plenamente
hábil para decidir sobre os rumos de sua vida e da criação. Ainda
hoje nos deparamos diariamente com esta tentação. Qual das
situações abaixo são reflexos de ceder a esta tentação?
a) O excesso de organização com as finanças pessoais;
b) O alto investimento no crescimento profissional para ser bem-
sucedido(a);
c) A insistência nos relacionamentos com pessoas não cristãs;
d) O uso de todo tipo de recurso para controlar os que estão ao seu redor;
e) Falar muito e fazer pouco pelas pessoas que não conhecem a Cristo.

2.2.2. Pecado original


A teologia do pecado, na maneira como é mais conhecida na igreja,
não é encontrada diretamente no texto da criação-queda. Emil Brunner
argumenta neste sentido dizendo,
| Teologia Sistemática III | FTSA | 55
Agora, é extremamente significante que quando a Bíblia
fala de pecado, ela nunca nos relembra da história da
queda, nem o Antigo nem o Novo Testamento. Assim,
a teologia eclesiástica, que é baseada inteiramente na
história da queda de Adão, e da transferência de seu
pecado para as gerações sucessoras, está seguindo um
método que não é em sentido algum bíblico. Mesmo a
passagem de Rm 5:12, que parece ser uma exceção, e
tem sido vista como o locus classicus da teologia cristã
desde o tempo de Agostinho, não pode ser vista como
suportando a perspectiva agostiniana, que foi seguida
pelas gerações subsequentes. Porque aqui, Paulo não
está tentando explicar o que é o pecado; de fato, não há
nada em Rm 5 que descreva a natureza do pecado. O tema
de Paulo é, antes, que Cristo conquistou a morte, que ele
é o que traz vida a todos. Visando explicar essa verdade,
Paulo se refere a história da queda, para interpretar um
ponto à luz da mesma: em “Adão” todos são pecadores;
em Cristo, todos são redimidos (1952, pp. 98-99)

O que Brunner nos alerta é que a narrativa sobre o pecado de Adão e Eva
não é considerada pelos escritores bíblicos como sendo o foco desta
teologia. Nem mesmo a ideia da hereditariedade ou transmissão do
pecado aos descendentes está no centro de sua elaboração. A teologia
do pecado, tanto nos outros textos bíblicos quanto no entendimento das
pessoas na igreja, está mais concentrada na quebra das leis — ou da
Lei — do que no grande drama da queda. Por isso, quando lemos o relato
da criação-queda temos a tendência a pensar de maneira abstrata. O
relato de Gênesis trata daquilo que se convencionou chamar de pecado
original, mas que em nossa análise não aparece como um ato concreto
e sim como o simbolismo da tentativa humana de dar vazão ao desejo
existencial de querer ser o que não se é, ou seja, de querer ser divino.
Mesmo não aparecendo explicitamente a palavra pecado no relato da
queda, entendemos que este conteúdo está presente. Isto fica mais
claro no texto seguinte que trata do assassinato de Abel por Caim, onde
56 | Teologia Sistemática III | FTSA
a expressão hattat (pecado) aparece (Gn 4:7). A definição da palavra
hebraica hattat está associada à ideia de erro, “errar um alvo ou um
caminho” (Smick, 1998, p. 637). Neste sentido, quando o ser humano
tenta ser Deus, ele erra o caminho existencial de sua condição humana
limitada e, assim, peca.

Gostaria de desenvolver um raciocínio sobre como associar a ideia do


pecado original às outras concepções de pecado que encontramos
nas Escrituras. O pecado tanto é tratado como um estado abrangente e
indistinto que indica o ser humano como alguém que erra, como é tratado
como atos específicos, a princípio, manifestações deste pecado maior. Na
linguagem paulina, este pecado maior encontra-se na essência existencial
humana, que o apóstolo identifica como gerado, simbolicamente, pela
carne — basar, no hebraico ou sarx, no grego. Ainda que não haja uma
grande elaboração bíblica sobre a associação do pecado com a carne
(humanidade), entendemos que é por causa do desajuste original, que
desalinha a condição do ser humano como criatura limitada, que ele erra
a sua trajetória existencial. Quando isto ocorre, o ser humano dá vazão
a um modo de vida em que os seus pensamentos, sentimentos e ações
atentam contra a sua própria existência, individual e coletiva. Aquilo
que chamamos de pecado original, construído de forma representativa
na narrativa da criação-queda, seria a causa desta deficiência crônica
da existência humana, chamada apenas de “pecado”, que gera os atos
concretos identificados como “pecados”.

É em função dos pecados, gerados pelo estado de pecado, que a teologia


do Antigo Testamento se desenvolve. Mais especificamente, é em função
da Lei, ou seja, do cumprimento de seus mandamentos que a teologia
do pecado é construída. Pecar, nesta perspectiva, é não cumprir a Lei.
Em função disto, a teologia veterotestamentária também elabora os
conceitos de juízo, perdão, santidade e salvação. Como vemos, existe uma
preocupação teológica em associar o tema do pecado ao da salvação, e
que será estudado mais adiante. Por outro lado, ampliaremos um pouco
a discussão do pecado, observando-o desde a ótica da tentação e do
conflito humano em sua fraqueza e responsabilidade. O que importa
| Teologia Sistemática III | FTSA | 57
agora é analisarmos a continuação do relato do texto de Gênesis que
apresenta as consequências do pecado ou, mais especificamente,
entender de forma efetiva o que significa a queda.

2.2.3. A queda
A expressão queda nos remete à ideia de um deslocamento entre um
estado de existência superior e um inferior ou entre um estado bom e
outro mal. Quando o ser humano tenta concretizar o seu desejo de
ser como Deus, ele decai em seu estado existencial. Já mencionamos
que a transição entre o relato da criação e o da queda se dá por uma
conjunção adversativa — o Wāw hebraico ou, “mas” em português —, o
que significa uma mudança de rumo. O quadro pintado na criação é de
harmonia e plenitude. As necessidades básicas humanas, tudo o que
é primordial para a sua sobrevivência e existência, estavam atendidas.
Metaforicamente, o ser humano tinha casa, alimento e companhia. Suas
relações eram saudáveis e promoviam a sua condição humana em
equilíbrio. Ele estava nu e não se envergonhava.

Ao cair em tentação, ao dar vazão ao desejo de tentar ser o que não é,


o ser humano se depara com uma outra condição existencial imediata.
Chamo à atenção para esta linha de raciocínio que propõe a análise da
queda, vista como consequência do pecado original, não como uma
punição posterior ou um castigo imposto por Deus, mas sim como um
resultado existencial intrínseco à sua desesperada tentativa de ser divino
ou de ser ilimitado.

A narrativa da queda é dramática e rica em simbolismos. O que lemos


é a descrição de um mundo perfeito que rui, cai, se despedaça. Toda a
harmonia e plenitude dá lugar ao dissentimento e à confusão. Seleciono
aqui algumas partes do texto de Gênesis 3:

Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam


nus [...] esconderam-se da presença do Senhor Deus
entre as árvores do jardim [...] “fiquei com medo, porque
estava nu; por isso me escondi” [...] “Foi a mulher que me
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deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e
eu comi” [...] “A serpente me enganou, e eu comi”. Então
o Senhor Deus declarou à serpente: “Uma vez que
você fez isso, maldita é você entre todos os rebanhos
domésticos e entre todos os animais selvagens! Sobre
o seu ventre você rastejará, e pó comerá todos os dias
da sua vida. Porei inimizade entre você e a mulher, entre
a sua descendência e o descendente dela; este ferirá a
sua cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar”. À mulher, ele
declarou: “Multiplicarei grandemente o seu sofrimento
na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu
desejo será para o seu marido, e ele a dominará”. E ao
homem declarou: “[...] maldita é a terra por sua causa;
com sofrimento você se alimentará dela todos os dias
da sua vida. Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e
você terá que alimentar-se das plantas do campo. Com
o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que
volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é
pó, e ao pó voltará”. Então disse o Senhor Deus: “Agora
o homem se tornou como um de nós, conhecendo o
bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome
também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para
sempre”. Por isso o Senhor Deus o mandou embora do
jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado.
Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim
do Éden querubins e uma espada flamejante que se
movia, guardando o caminho para a árvore da vida.

A descrição da queda inicia fazendo referência à conclusão da narrativa


da criação (Gn 2:25), dando lugar a uma condição oposta. O ser humano
ao pecar percebe-se nu, vulnerável, com medo e envergonhado. Ele foge,
tenta se esconder de Deus. Pensando nos relacionamentos fundamentais
da existência humana, observamos os seus rompimentos ocorrendo
como se fosse um efeito cascata. O ser humano experimenta um conflito
interno, consigo mesmo, descrito pelos sentimentos de vergonha e
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medo. Ele também foge do criador, evita a relação com aquele que lhe
sustenta a vida. Rompe a relação de companheirismo e cumplicidade
com a esposa, acusando-a, responsabilizando-a por seu ato e escolha,
ao mesmo tempo em que responsabiliza a Deus por ter lhe dado aquela
mulher como companheira. A esposa, igualmente, demonstra o conflito
interno que vive ao responsabilizar a tentação — serpente — por seu ato.

O resultado de toda esta desestruturação é apresentado em três


declarações de Deus feitas, respectivamente, à serpente, à mulher e
ao homem. Novamente, é com a serpente que encontramos a maior
dificuldade no entendimento da mensagem proposta. Desde que
evitamos a sua associação direta com o diabo, neste texto, por falta
de mais informações, ainda que de forma metaforicamente concreta,
a serpente representa a força da tentação. Se assim o é, o discurso
direcionado à serpente a caracteriza como maldita, indicando que ela
irá percorrer os caminhos mais baixos e desprezíveis, alimentando-se
do que há de pior, em constante conflito com o ser humano, ferindo-o
sucessivamente, até que ele, em um tempo projetado pela esperança, a
derrote definitivamente.
A consequência para a mulher é declarada como uma vida de dor e
sofrimento. De modo mais significativo ainda, ela é vista como uma
vida de conflito permanente com o homem, que a subjugará, esvaziando
os seus desejos e exercendo um controle dominador. Este estado é o
oposto daquele que é descrito como uma relação de companheirismo,
solidariedade e ajuda complementar entre os gêneros, conforme descrito
na criação. Podemos dizer que é a queda, ou o efeito do pecado, que
gera o desequilíbrio que conhecemos hoje no que se refere ao machismo
ou qualquer tratamento que inferioriza a mulher na existência humana.
Concordar ou contribuir para este estado é concordar com algo diferente
daquilo que Deus criou como bom.

Por último, vemos o discurso direcionado ao homem. Embora possa


parecer estranho que a declaração divina comece com uma maldição
apontada para terra, temos que lembrar que existe uma conexão simbiótica
entre ela e o ser humano no relato da criação: o adam é feito da adamah.

60 | Teologia Sistemática III | FTSA


O que vemos, contudo, na maldição da terra é uma maldição que atinge o
ser humano. A terra, ou o jardim, não mais dará de bom grado o alimento
de sobrevivência ao ser humano, ela o resistirá. O ser humano terá que
sobreviver na terra com muito esforço; com sangue, suor e lágrimas.

Mais triste ainda neste cenário é a ideia de morte. Se antes havia o acesso
à árvore da vida, suprindo uma possível falência humana, agora, este
acesso é proibido, e o ser humano deixa de existir; retornando à terra como
pó. Qualquer que seja a concepção de vida eterna, nestes relatos ela não
aparece de maneira clara. No entanto, não podemos ignorar a grande
decepção existencial que acomete o ser humano quando ele se depara com
o decreto divino de impedimento ao acesso à árvore da vida por causa de
sua escolha, de seu pecado e da queda (Gn 3:22-24). Diante do ser humano
está a fatalidade, uma existência limitada, a mais cruel das realidades, contra
a qual ele lutará com todas as forças enquanto houver fôlego.

Enfim, estas narrativas simbólicas não devem ser lidas como coisas
específicas acontecendo a criaturas específicas. Ela é uma poesia sobre
o drama da existência humana. O que afeta a serpente, a terra, a mulher e
ao homem, afeta toda a criação, num cenário de tristeza e desolação, ao
mesmo tempo que enseja a esperança por um estado nostálgico, de voltar
a ser como era no jardim, antes da queda. O grande drama humano, debaixo
do poder do pecado, gera de forma imediata a expectativa pela salvação.

2.3. Tentação, fraqueza e responsabilidade humana


Uma vez introduzida a discussão sobre a queda e o pecado, somos
levados a refletir, desde uma perspectiva antropológica, como se dá
esta dinâmica na vida humana. Particularmente, nos preocupamos em
aprofundar a investigação sobre a participação humana, no que diz
respeito à sua liberdade, vontade, decisão e responsabilidade, no trato
com o pecado. Partindo dos relatos da criação-queda, incluímos também
o tema da tentação nesta dinâmica.

Ressalto que o foco continuará a ser mais conceitual e reflexivo do que


prático. Desde que temos optado por olhar para a antropologia com
| Teologia Sistemática III | FTSA | 61
uma aproximação de cunho mais existencial, as aplicações desses
conceitos deverão seguir caminhos de acordo com a realidade particular
de cada contexto e pessoa. Da mesma forma, a intenção aqui não é ser
exaustivo nem taxativo e sim provocar a reflexão e o raciocínio que sejam
capazes de produzir um discurso teológico que consiga dialogar com a
contemporaneidade.

2.3.1. Tentação
A tentação pode ser entendida como a sugestão mental que usa a força
dos desejos que se encontram no nosso íntimo. De forma consciente
ou subconsciente, o ser humano alimenta interiormente estes desejos
tentando concretizá-los em sua vida. Os resultados, porém, da
concretização dos desejos humanos podem ser danosos para a sua
existência como um todo. Por causa desta característica de sutileza,
do complicado envolvimento da racionalidade, da sensorialidade e da
volição — razão, sensação e vontade —, a tentação é representada pelo
“mais astuto de todos os animais selvagens” (Gn 3:1).

Saiba mais
A palavra hebraica arum, traduzido pelo adjetivo “astuto” aplicado à
serpente, é utilizada apenas dez vezes no Antigo Testamento: uma
vez neste texto de Gênesis e, não por acaso, todas as outras nove
nos livros sapienciais de Jó e Provérbios — livros de Sabedoria. Seu
significado está associado ao conceito de esperteza, prudência e
bom senso, tanto no sentido negativo quanto positivo, como vemos:
• Jó 5:12 – “Ele frustra os planos dos astutos, para que fracassem
as mãos deles”;
• Jó 15:15 – “O seu pecado motiva a sua boca; você adota a
linguagem dos astutos”;
• Provérbios 13:16 – “Todo homem prudente age com base no
conhecimento, mas o tolo expõe a sua insensatez”;

62 | Teologia Sistemática III | FTSA


• Provérbios 14:8 – “A sabedoria do homem prudente é discernir
o seu caminho, mas a insensatez dos tolos é enganosa”;
• Provérbios 14:15 – “O inexperiente acredita em qualquer coisa,
mas o homem prudente vê bem onde pisa”;
• Provérbios 22:3 – “O prudente percebe o perigo e busca refúgio;
o inexperiente segue adiante e sofre as consequências”.

É na concretização do impulso de ceder a alguns desejos, que se dá na


forma de ações, comportamentos, posturas, etc., que nos deparamos
com o que estamos acostumados a identificar como pecado. Nesta
complicada dinâmica, do processo mental e concretização, temos
algo difícil de ser elaborado teologicamente. Pelos autores do Novo
Testamento, entendemos que a tentação não é em si pecado (Hb 4:15).
Vemos também que o pecado, de certa forma, passa a existir no íntimo
antes de sua concretização (Mt 5:27-30). No entanto, é na concretização
daqueles desejos que causam danos à condição humana, de diversos modos,
que identificamos o pecado. É a partir daí, então, que encontramos outro tipo
de tratamento da questão, como que afirmando a sua ação permanente na
existência humana. Esse parece ser o entendimento de Tiago:

12
Feliz é o homem que persevera na provação, porque
depois de aprovado receberá a coroa da vida, que
Deus prometeu aos que o amam.13Quando alguém
for tentado, jamais deverá dizer: “Estou sendo tentado
por Deus”. Pois Deus não pode ser tentado pelo
mal e a ninguém tenta. 14Cada um, porém, é tentado
pelo próprio mau desejo, sendo por este arrastado e
seduzido. 15Então esse desejo, tendo concebido, dá à
luz o pecado, e o pecado, após ser consumado, gera a
morte (Tg 1:12-15).
| Teologia Sistemática III | FTSA | 63
O texto que vem logo após à queda, que narra a história do assassinato
de Abel por Caim, pode ser lido como um desdobramento dela. Ali
encontramos a seguinte afirmação: “Se você fizer o bem, não será aceito?
Mas, se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja
conquistá-lo, mas você deve dominá-lo” (Gn 4:7). O que o autor indica
é essa constante luta entre o desejo mal, que pode corromper o estado
existencial humano, e a sua concretização, entendida como pecado. Ao
ser humano cabe dominar, exercer autocontrole, governar seus desejos e
suas ações, enfim, ser responsável por suas escolhas.

Qual, então, é a origem da tentação? Seria ela é originada na própria


mente humana, despertada por instintos e desejos, ou possui uma
origem externa, digamos, diabólica? A dificuldade em definirmos esse
princípio surge porque dependendo da abordagem bíblica que adotarmos
podemos optar por um ou outro caminho e, por conseguinte, lidaremos
com seus respectivos desdobramentos. Uma terceira alternativa seria
tentar conjugar estas duas vias, requerendo de nós uma argumentação
ainda mais complexa. Observando, inicialmente, as duas vias de modo
separado, vimos que tanto no relato da queda quanto nas palavras de
Tiago, Deus não é o responsável pela tentação. Em Genesis 3 vemos a
intervenção da serpente, como expressão do desejo humano — ou, para
outros, como representação do diabo. Em Gênesis 4 e em Tiago vemos
apenas a questão do desejo humano promovendo a tentação. Contudo,
nos evangelhos sinóticos encontramos uma narrativa específica sobre
a tentação de Jesus pelo diabo ou Satanás (Mateus 4:1-11; Marcos
1:12-13; Lucas 4:1-13). Algo estranho ocorre nesta narrativa que é o fato
de Jesus ser conduzido pelo Espírito para ser tentado, como se Deus,
indiretamente promovesse esta tentação. No entanto, por tudo o que
envolve a pessoa de Jesus Cristo como, por exemplo, a afirmação de
que ele foi tentado sem ter cometido pecado (Hebreus 4:15), não me
aprofundarei em sua experiência.

Buscando outros textos que apoiem, então, a premissa da tentação


diabólica, acabamos não encontrando algo consistente e doutrinário.
64 | Teologia Sistemática III | FTSA
Temos apenas o texto de Paulo, em 1 Tessalonicenses 3:5, que fala do
tentador, mas que não faz menção explícita ao diabo. Importante ressaltar
que a palavra grega traduzida como tentador (peirazo) possui o significado
de “testador” ou “examinador”, aquele que aplica um teste ou exame.
Essa é a conotação da tentação, também podendo ser traduzida como
provação. Ela funciona como um teste, uma prova, uma tentativa. Não
há em si uma conotação negativa e sim de validação dos pensamentos,
sentimentos e ações correspondentes às escolhas que fazemos. O próprio
apóstolo Paulo ensina a igreja de Corinto afirmando: “Não sobreveio
a vocês tentação que não fosse comum aos homens. E Deus é fiel; ele
não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar.
Mas, quando forem tentados, ele mesmo providenciará um escape, para
que o possam suportar” (1 Coríntios 10:13). Ora se a tentação não é algo
fora do comum ao ser humano, ou seja, se ela não é sobre-humana ou
sobrenatural, mesmo que entendamos que haja a participação do diabo,
nos deparamos com uma mesma realidade: a de não podermos transferir
a responsabilidade pelas decisões tomamos a quem quer que seja. É o ser
humano quem deve assumir a responsabilidade por cair em tentação e
cometer pecados, mesmo que ele peça ajuda divina.

Exercício de fixação - 08
O que podemos considerar como a principal fonte de tentação?
a) A tentação vem do próprio Deus, para testar a fé humana;
b) A tentação é posta por Satanás, para arrastar o ser humano
ao pecado;
c) A tentação é um plano de Deus e Satanás, como narrado na
história de Jó;
d) A tentação vem do próprio ser humano, para satisfazer seus
desejos básicos;
e) A tentação vem do próprio ser humano, para satisfazer seus
desejos cobiçosos;

| Teologia Sistemática III | FTSA | 65


2.3.2. Fraqueza
O que quero ao tratar desse tema é, no fundo, tentar mergulhar nas
peculiaridades humanas, nos paradoxos existenciais que compõe o nosso
complexo ser. Vimos dois textos que indicam a necessidade de uma
postura de resistência perante a tentação (Gênesis 4:7; 1 Coríntios 10:13).
Entretanto, também vimos que a tentação se dá com base em nossos
desejos. É neste sentido que estou me referindo à fraqueza humana.

Os desejos são inerentes ao ser humano. Fazem parte da sua imaginação,


de algo que está além de si mesmo. Eles perpassam a mente e não
possuem valor, a princípio, até que sejam julgados, em cada consciência,
com base em algum parâmetro, quer seja religioso, moral, social, etc.
Podemos dizer que a fraqueza é percebida quando não conseguimos
controlar o desejo, ou seja, quando o desejo determina as ações sem que
se resista de forma suficiente. A necessidade de controle é para que o
desejo não cause danos à nossa existência e sobrevivência pessoal, bem
como a de outra pessoa. Dar vazão a um desejo que não comprometa
a nenhum desses dois referenciais não seria considerado fraqueza. Por
exemplo, se alguém está com fome e deseja comer algum alimento,
concretizar este desejo é considerado normal. No entanto, se para
concretizar este desejo é necessário comprometer a própria existência ou
a de outro, isso pode ser considerado uma fraqueza, conduzindo ao erro
ou ao pecado. É claro que há muitas possibilidades e alternativas nesta
simples explicação, mas o importante é entendermos a ideia básica.

Este processo de julgamento do desejo que ocorre em cada consciência


não é puramente lógico e racional. A força do desejo é aumentada quando
criamos situações imaginadas em nossa mente, alimentando-o em sua
raiz, que é o nosso próprio mundo interior. O apóstolo Paulo toca um pouco
nesta complexa dinâmica em Romanos 7, de onde destaco alguns trechos:

Que diremos então? A Lei é pecado? De maneira


nenhuma! De fato, eu não saberia o que é pecado, a não
ser por meio da Lei. Pois, na realidade, eu não saberia o

66 | Teologia Sistemática III | FTSA


que é cobiça [epithumeo], se a Lei não dissesse: “Não
cobiçarás”. Mas o pecado, aproveitando a oportunidade
dada pelo mandamento, produziu em mim todo tipo de
desejo cobiçoso [...] Não entendo o que faço. Pois não
faço o que desejo [thelo], mas o que odeio. 16 E, se faço
o que não desejo, admito que a Lei é boa. Nesse caso,
não sou mais eu quem o faz, mas o pecado que habita
em mim. Sei que nada de bom habita em mim, isto é,
em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que
é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não
é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer
esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero,
já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em
mim. Assim, encontro esta lei que atua em mim: Quando
quero fazer o bem, o mal está junto de mim. No íntimo
do meu ser tenho prazer na Lei de Deus; mas vejo outra
lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando
contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da
lei do pecado que atua em meus membros. Miserável
homem que eu sou! (Romanos 7:7-24).

Chamo à atenção um esclarecimento sobre uma questão de tradução


neste texto. O termo “desejo” ou “querer” (thelo) tem o significado de
intenção, disposição desapaixonada, enquanto a expressão “cobiça”
ou “desejo cobiçoso” (epithumeo) é a que estamos tratando como,
simplesmente, desejo, na argumentação desenvolvida até aqui. Por isto,
quando Paulo fala que deseja fazer o bem isto parte de uma resolução
racional de quem avaliou como ruim aquilo que o desejo cobiçoso
tentava levá-lo a praticar. O drama, contudo, é que ele está confirmando
que é muito difícil ao ser humano resistir ao desejo cobiçoso e, mesmo
considerando errado, ainda assim ele se deixa levar e peca. Para Paulo,
este processo mental é encarado como uma guerra.

A solução deste drama, para o apóstolo, é descrita no capítulo seguinte


quando ele aponta para a necessidade de se estar aberto e sensível ao
| Teologia Sistemática III | FTSA | 67
Espírito de Deus, que deve guiar o ser humano pelo melhor caminho de
sua existência (Romanos 8:14). Num raciocínio simples, Paulo indica que
a dinâmica da vida tem a ver com inclinar-se, pender-se, caminhar mais
para um lado que para outro. De certa forma, o desejo cobiçoso é algo
que pode ser alimentado ou sufocado. Nossa fraqueza, ao nos deixarmos
dominar pelos desejos, tem relação direta com aquilo que alimentamos a
mente. Esta metáfora também foi usada por Paulo: “Portanto, não sejam
insensatos, mas procurem compreender qual é a vontade do Senhor.
Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem, mas deixem-se
encher pelo Espírito, falando entre vocês com salmos, hinos e cânticos
espirituais, cantando e louvando de coração ao Senhor” (Efésios 5:17-
19); e, “tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for
correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa
fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas
coisas” (Filipenses 4:8). Também alguns ensinamentos de Jesus, que
se assemelham ao conteúdo sapiencial, nos auxiliam neste sentido
(Mateus 6:22-23; 15:17-20). Assim, o caminho para vencer a fraqueza é
empreender um esforço de resistência consciente e constante.

2.3.3. Responsabilidade
Já comentamos rapidamente sobre a responsabilidade que pesa sobre
o ser humano quanto ao pecado, mesmo quando ele ocorre sob o efeito
da tentação, que explora a sua fraqueza. Aprofundando um pouco mais
esse tema, podemos trazer para a discussão os conceitos de liberdade e
livre arbítrio há tanto tempo presente na Antropologia Teológica.

A questão aqui é procurarmos entender como se relaciona a liberdade


de escolha e de ação do ser humano com a sua natureza inclinada ao
pecado. Antes, porém, cabe diferenciar o que estamos indicando como
liberdade e como livre arbítrio. O conceito de liberdade está associado às
possibilidades que o ser humano tem para agir, para se relacionar, enfim,
para viver sem estar condicionado a algo pré-determinado. Já comentamos
que esta liberdade é limitada pela condição de criatura do ser humano. Ele
é livre dentro dos limites de sua existência, ou seja, ele não é totalmente
68 | Teologia Sistemática III | FTSA
livre como Deus. É isto o que lemos no relato figurativo de Gênesis. O texto
indica que ele é livre para comer de qualquer árvore do jardim, mas limitado
para comer da árvore do conhecimento do bem e do mal.

O livre arbítrio, por sua vez, pode ser entendido como um componente
da liberdade, contudo, associado ao julgamento de uma decisão a ser
tomada ou de uma ação. Arbitrar significa escolher após avaliar as
possibilidades. A discussão, portanto, está em determinar como esta
liberdade de escolha e de ação, que o ser humano possui, se relaciona
com a responsabilidade pelas consequências de ambas. Outro elemento
a ser considerado é o pecado como algo presente em suas entranhas.
Wolfhart Pannenberg contribui com o seguinte raciocínio:

Quando se mostra a universalidade estrutural do


pecado no contexto do desejo e da busca de si, se
acentua ainda mais o problema da responsabilidade
do pecado, que tem ocupado reiteradamente a
doutrina cristã do pecado até a discussão moderna:
só parece sensato falar de pecado quando se trata de
um comportamento imputável como culpa. De outra
maneira, seria mais correto falar de enfermidade ou de
carência. A responsabilidade, segundo a antiga obra
de Agostinho sobre o livre arbítrio, só se dá na ação
realizada livremente. Essa concepção coincidia com a
mais antiga tradição patrística: apenas ao autor, mais
exatamente, a vontade pecadora, se imputa justamente
o pecado. Pois, então, como é possível pecar com
algo que não se pode evitar? O adversário pelagiano
de Agostinho invocaria mais tarde em seu favor esses
princípios: pode haver culpa em uma situação em que
alguém se encontra sem sua colaboração, e induzido
já antes de nascer? Agostinho, por sua vez, se remete
à Escritura, a qual qualificaria como puníveis também
as infrações cometidas por inadvertência, e inclusive

| Teologia Sistemática III | FTSA | 69


aquelas que o homem teria querido evitar, mas não
pode (Rm 7:15). Ainda assim, ele não supunha, todavia,
uma resposta ao aspecto objetivo do argumento, que
vincula a reponsabilidade e a culpa à vontade do autor.
Apenas se oferecia uma saída caso se pensasse na
liberdade de decisão de Adão antes da queda, ligada a
ideia, supostamente paulina, de que em Adão estavam
presentes todos os seus descentes e, assim, tiveram
parte em sua livre decisão de pecar, pecaram “nele” (Rm
5:12). Por conseguinte, a questão da responsabilidade
pelo estado atual de domínio do pecado tem sido forte
motivo para recorrer a Adão e, portanto, à ideia de uma
participação dos descendentes de Adão em seu pecado
(1996, pp. 275-276).

Para Pannenberg, não se poderia responsabilizar o ser humano por


seus pecados caso eles fossem um tipo de enfermidade transmitida
hereditariamente pelo primeiro ser humano. Agir como resultado de algo
que é uma condição pré-estabelecida e contra a qual nada se pode fazer
seria apenas uma reação, e não uma ação consciente, sobre a qual não se
poderia imputar responsabilidade, culpa ou juízo. Para que o ser humano
possa ser responsabilizado pelo pecado que comete, esta relação entre
o pecado original e o pecado que efetivamente pratica deve receber outro
tratamento.

Recorrendo ao pensamento de Brunner sobre o tema, encontramos uma


interessante argumentação sobre o texto paulino do livro de Romanos que
tende a ser a principal referência para a interpretação da pecaminosidade
humana como algo atrelado a Adão:

Mas tudo isso não nos leva ao mistério da ideia bíblica


da solidariedade do pecado. Essa concepção está
estritamente conectada a verdade da revelação cristã.
É apenas pela revelação cristã que, como vimos, o
indivíduo pode ser percebido, no sentido pleno, como

70 | Teologia Sistemática III | FTSA


uma pessoa individual. “Eu”, o indivíduo, nos colocamos
diante de Deus, “Eu”, o indivíduo, devo crer. “Eu”, o
indivíduo, sou convocado por Deus à decisão [...] Fui Eu
quem levou Cristo à cruz. Ele morreu por mim [...] Isso
é o que “Eu” sabe quando eu estou diante de Cristo. E
uma vez que sei isso sobre “mim mesmo”, eu sei que é
verdade para todos os outros que estão diante de Cristo.
Foi para mostrar isso, ou antes para mostrar como Jesus
Cristo é o Redentor de toda a humanidade que Paulo
retornou à história da Queda — uma vez, e não mais.
Ele fez isso para dizer essa única coisa, na linguagem
que o permitiu dizê-lo da maneira mais plena. Assim
como em Jesus todos foram redimidos, também em
Adão todos pecaram […] Diante de Cristo todos somos
uma humanidade indivisível. O ato de rebelião que vejo
em Cristo como meu pecado, vejo ali como o idêntico
ato de todos. Todas as particularizações e cálculos são
impossíveis. Esse ato é o mesmo; não é apenas similar,
mas idêntico. Aqui, estamos diante de um mistério que
não compreendemos totalmente — pelo menos não
intelectualmente; um mistério, entretanto, que é um
mistério de fé para todos que se colocam diante de Cristo
como seu Senhor e Salvador. É por isso, e não de outra
forma, nessa solidariedade no pecado, que nós homens
nos colocamos diante Dele (1952, pp. 96-97).

O entendimento de Brunner é que a passagem de Romanos fala sobre


a solidariedade da raça humana no pecado, mas não fala como essa
unidade em Adão acontece. Ela não fala da transgressão de Adão, que
todos os seus descendentes compartilham, mas do fato de que todos
estão envolvidos na morte porque todos cometem pecados. Paulo não
fala nada sobre herança ou hereditariedade pela descendência natural ou
mesmo qualquer relação entre pecado e a concepção biológica. Assim,
Brunner conclui:
| Teologia Sistemática III | FTSA | 71
Quando pecado é mencionado, o ser humano é visto
como a “pessoa diante de Deus”; ali ele se coloca na
dimensão da responsabilidade, de existência pessoal
responsável. O fato que essa personalidade responsável
“diante de Deus” é uma única solidariedade humana
não altera seu caráter pessoal. Em Jesus Cristo nos
colocamos diante de Deus como um único “Adão”,
como uma humanidade que é totalmente infectada
com um indissolúvel peso de culpa. O segredo dessa
unidade não deve ser barateado sendo removido para
a região dos fatos biológicos visíveis, para o domínio
da hereditariedade. Aqui — usando termos modernos —
não estamos lidando com cromossomos e genes. Aqui
estamos lidando com uma situação real que está no
exato extremo oposto da escala da existência — em que
“Eu”, que sou convocado por Deus, me coloco diante
do divino “Tú”. Nós estamos preocupados aqui com o
mistério de que cada ser humano foi feito responsável
por Deus pela morte de Cristo (1952, p. 104).

Ao estudarmos os conceitos de tentação, fraqueza e responsabilidade


humana, percebemos a complexidade do assunto e a carência de maior
clareza na construção doutrinária e fundamentação bíblica. Exatamente
por causa desta frágil estrutura de ideias e reflexão, devemos tratar destes
temas de maneira sóbria, aplicando o mesmo cuidado ao lidarmos com
o tema da salvação.

Exercício de reflexão - 09
Escreva em 3 a 4 linhas o que você entendeu sobre a responsabilidade
humana em relação ao pecado:

72 | Teologia Sistemática III | FTSA


2.4. O problema do mal
Encerrando a seção sobre Antropologia Teológica, após termos tratado do
ser humano, discorrendo sobre o entendimento teológico de sua origem,
constituição e drama frente a queda e o pecado, não podemos deixar de
comentar algo sobre o tema do mal. Este tema, no fundo, surge como
consequência tanto da percepção que temos da situação desfavorável em
que vivemos debaixo do domínio do pecado, como também da percepção
consequente do sofrimento humano. Talvez seja o sofrimento o grande
responsável pela pergunta sobre o mal. O desconforto, o desajuste,
a sensação de que algo está fora do lugar quando experimentamos o
sofrimento nos move às perguntas que querem explicá-lo.

Sendo assim, a intenção aqui é fazermos uma investigação inicial sobre


mais este complexo tema, que faz parte da realidade humana, procurando
apresentar algumas possibilidades de entendimento sem que elas sejam
suficientes para encerrar a discussão, como veremos.

2.4.1. Teodiceia
O problema do mal tem sido discutido na filosofia e na teologia a partir
de um termo mais amplo que procura elaborar qual é a participação,
associação ou envolvimento de Deus. A expressão Teodiceia representa
a tentativa de se propor um encaminhamento de raciocínio pelo conceito
de justiça divina — theos e dike, respectivamente, Deus e justiça.
Embora esta discussão ocorra também em círculos não teológicos, seus
questionamentos tentam dar conta das dúvidas de quem experimenta o
sofrimento diante daquilo que pensamos da pessoa Deus. As perguntas
principais seriam: se Deus é bom por que existe o mal? Se Deus é justo
por que o inocente sofre?

Relacionada a esta discussão estão os temas da preservação e do


governo divino sobre a sua criação. A preservação está associada à
ideia de sustentação da vida em função das leis naturais — podemos
considerar ou não alguma ação divina constante. Já o governo é
entendido como exercido por meio de intervenções divinas intencionais
| Teologia Sistemática III | FTSA | 73
na história. Neste ponto, podemos mencionar o Deísmo, que defende a
existência da divindade, mas sem que ela tenha qualquer interferência
nas coisas criadas e na história humana. Assim, a partir da prerrogativa
deísta a pergunta sobre o mal fica automaticamente respondida. Para
esta corrente de pensamento o mal ocorre como algo natural, que faz
parte da vida humana, sem que se precise pensar na teodiceia ou na
justiça divina, uma vez que Deus não intervém.

Glossário
Deísmo
No século 19 e no início do século 20, a palavra deísmo foi
usada por alguns teólogos em oposição ao teísmo, a crença em
um Deus imanente que intervém ativamente nos assuntos dos
seres humanos. Nesse sentido, Deísmo foi representada como a
visão daqueles que reduziram o papel de Deus a um mero ato de
criação de acordo com as leis racionais detectáveis pelo homem e
sustentaram que, após o ato original, Deus virtualmente se retirou e
se absteve de interferir nos processos da natureza e dos caminhos
do ser humano.
Fonte: https://www.britannica.com/topic/Deism

No entanto, a reflexão teológica a que nos propomos gira em torno


da tentativa de adequar conceitos como justiça, graça, misericórdia,
bondade, enfim, amor divino, e o sofrimento experimentado pelo ser
humano visto como uma criatura que é alvo desses pressupostos
divinos. Brunner nos alerta, contudo, que este questionamento talvez
seja feito de maneira imprópria. Ele diz: “No problema da teodiceia
a contradição em que a criatura está envolvida contra o Criador, é
teoricamente objetivada e, assim, imediatamente falsificada na proposta
do questionamento. Assim também, todas as tentativas de responder
essa questão no plano de objetividade teórica são respostas enganosas,
74 | Teologia Sistemática III | FTSA
soluções enganosas” (1952, p. 184). Brunner chama à nossa atenção
de que o ser humano tenta levantar a questão do mal como se fosse
neutro em relação a ela, baseando-se em especulações teóricas que não
envolveriam a queda, o pecado e a responsabilidade sobre o seu estado
atual. Antes de caminharmos para alguma tentativa de resposta, que fuja
desta armadilha objetivista humana, buscando aporte bíblico para tal, é
importante discutirmos em mais detalhes o problema do mal.

2.4.2. Perspectivas bíblicas e teológicas do mal


Até aqui não discutimos o conceito do mal como um princípio absoluto,
embora essa ideia pudesse estar implícita naquilo que foi apresentado
até aqui. Como dito anteriormente, o mal parece ser uma questão
que se refere diretamente ao ser humano — e quem sabe, exclusiva.
Em outras palavras, o mal seria a percepção de algo que lhe causa
sofrimento e não, necessariamente, algo que esteja presente na criação
de forma independente de sua existência. Estou me referindo aqui, mais
especificamente, às principais teses sobre a origem do mal, ou seja,
seu surgimento, sua causalidade, sua fonte, etc. Como argumentações
imediatas, visando desvendar o mistério do mal, sugiro caminharmos por
quatro alternativas que parecem permear as várias discussões sobre o
tema. Seriam elas: (1) Deus; (2) a antítese metafísica de Deus; (3) o Diabo
ou Satanás; e (4) o ser humano

Pensar em Deus como a origem do mal, ou seja, como aquele que cria o
mal como algo que faz parte da criação, traz um imediato desconforto pelo
simples fato de termos que admitir a possibilidade de um Deus sádico.
Se Deus cria o mal, com que objetivo ele o faz? Pensar na possibilidade
do mal como um instrumento de teste, de terapia, de aperfeiçoamento
ou outra coisa direcionada ao ser humano não afasta a conclusão de que
este Deus, no fundo, não é totalmente bom ou não ama profundamente
suas criaturas, pois, em sua criação ele inclui algo que é percebido como
sofrimento. Ao mesmo tempo, esta primeira tese de Deus como a origem
do mal não possui fundamentação bíblica. Pelo contrário, as Escrituras
afirmam exatamente o oposto. Elas definem Deus como amor e sua
criação como boa ou muito boa.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 75
Saiba mais
Um alerta. Há quem faça a interpretação indevida do texto de
Isaías 45:7 para justificar a origem do mal em Deus: “Eu formo a
luz e crio as trevas, faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas
estas cousas”. Este texto, na versão ARA, não trata da criação nem
tampouco de qualquer elaboração doutrinária sobre esta temática.
O texto é uma profecia, estruturada como um discurso, direcionada
ao rei persa Ciro, que quando governava a Babilônia permitiu que
os judeus retornassem à Jerusalém sob a liderança de Esdras.
Se lermos o texto de Isaías 45:1-7 atentamente, veremos que a
profecia trata da ação de Ciro como um poderoso governante e
conquistador, porém, enxergado como alguém usado por Javé para
realizar as intervenções históricas que ele determina. Ciro é visto
como um agente divino, ungido para a função de liderança sobre
as nações, e Javé é visto como Deus, que cria todas as coisas e
age na história. O mal aparece no texto como contraponto à paz,
que naquele contexto estava diretamente relacionada aos conflitos
provenientes das guerras de conquista. A palavra hebraica utilizada
é ra, traduzida em algumas versões como desgraça, mas que
também é entendida como miséria e adversidade. Neste sentido,
o mal, aqui, deve ser interpretado pela ótica do entendimento
teológico monoteísta javista, que responsabiliza Deus por todas
as coisas que ocorriam sobre a terra, compreendendo, igualmente,
a sua intervenção direta sobre a história humana. O mal é visto
como representado pelas guerras, mas que cessam quando Deus
estabelece a paz.

A segunda alternativa sugerida para o entendimento da origem do mal,


é a de supormos que ele seja uma antítese natural de Deus. Aqui, para
efeito argumentativo, estou limitando nossa análise ao campo conceitual
— se levarmos a mesma ideia para o campo da existência pessoal,
chegamos próximo à terceira alternativa que é atribuir o mal a um ser, no
caso, o Diabo. Continuando, por enquanto, no campo conceitual, o que
76 | Teologia Sistemática III | FTSA
esta alternativa propõe é pensarmos no mal como uma antítese de Deus.
Seria o mesmo que afirmar que se existe bem, então, existe mal, por antítese
imediata. O problema com essa conjectura é que se o mal é uma antítese de
Deus, ela também tem que ser divina. Assim, a antítese é o próprio Deus ou
um outro deus no mesmo patamar de igualdade. As Escrituras, entretanto,
jamais afirmam esta possibilidade. Pelo contrário, elas dizem que só há um
único Deus e ele é bom.

Refletindo sobre a terceira alternativa, em que poderíamos considerar o


Diabo ou Satanás como a origem do mal, a dificuldade enfrentada é a falta de
fundamentação bíblica para isto. Para assumirmos esta opção teríamos que
melhor definir o que entendemos como mal. Se o mal originado por Satanás
é grande o suficiente para alcançar toda a criação, incluindo o ser humano,
teríamos que admitir um poder semelhante ao de Deus e voltaríamos às
argumentações da primeira alternativa. Se, por outro lado, o mal originado
por Satanás atinge apenas o ser humano, temos que incluir na discussão
a queda, o pecado e suas consequências. Contudo, já desenvolvemos esta
discussão sobre o reconhecimento da responsabilidade humana sobre
as consequências do pecado. Temos que considerar ainda que se o mal
é gerado por Satanás tendo influência sobre o ser humano sem que Deus
intervenha, então retornamos às duas primeiras alternativas. Se Deus criou
Satanás com a possibilidade do mal, então, Deus é a origem do mal. Ou, se
Satanás é a origem do mal, como oposição ao absoluto bem divino, então
ele também é Deus.

A última alternativa é tentar entender o mal como algo originado pelo


ser humano. Esta perspectiva parece mais plausível se considerarmos
o mal não como algo absoluto, e em antítese ao bem e a Deus, mas com
o algo que possui uma referência relativa ao próprio ser humano. Aquilo
que denominamos mal, no fundo, é uma interpretação que fazemos de
coisas que afetam o ser humano e lhe causam sofrimento. Utilizando uma
interpretação bastante rápida do relato da criação, poderíamos dizer que
o maior mal, do ponto de vista humano, é a morte, em direta oposição à
vida criada. A cessação da existência é o maior dos males e o maior
inimigo humano. É naquele relato que vemos uma indicação de possível
atribuição do mal como sendo originado pelo ser humano, a partir de sua

| Teologia Sistemática III | FTSA | 77


livre decisão, pela qual deve se tornar responsável: “[...] mas não coma da
árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer,
certamente você morrerá” (Gênesis 2:17). Na continuação deste relato, na
qual vemos a apresentação da queda, como não há na narrativa a inclusão
da morte física do ser humano, somos levados a interpretar esta morte,
indicada no verso 2:17, como sendo o conjunto das consequências da
queda, entendido também como sofrimento, e, ultimamente, o voltar ao pó,
ou seja, a cessação da existência. Neste entendimento, o mal surge, desde
uma percepção humana, como consequência da queda e do pecado.
Isto nos leva a ampliar o questionamento sobre o mal em função daquilo que
experimentamos na existência humana e que entendemos como sofrimento.

Exercício de aplicação - 10
A partir do que foi estudado sobre o mal, como podemos aplicar estes
conceitos em nossa vida a fim de compreender a sua existência e
superá-lo?
a) É preciso sempre estar próximo de Deus, por meio dos ritos religiosos
e das leituras bíblicas, evitando que o mal domine o nosso ser, pois, a
presença de Deus por si só é suficiente para derrotar o mal;
b) Devemos sempre avaliar se nosso estilo de vida, nossos pensamentos
e desejos, nos levam para uma condição oposta à da criação, com
consequente desarmonia, injustiça e sofrimento. Se assim for, é preciso
que mudemos a nossa mente e comportamento, buscando viver como
Deus espera vivamos;
c) É preciso rejeitar por completo tudo aquilo que o mundo nos oferece,
pois as estruturas são dominadas pelo mal e ao aceitá-las estamos
aceitando a existência do mal em nossas vidas;
d) É dever da igreja, enquanto instituição devidamente constituída, derrotar
o mal e fazer imperar o bem, custe o que custar. A igreja deve manter
longe de seu espaço aqueles que vão contra a sua teologia, mantendo o
Templo santo;
e) Apenas com jejum e oração seremos capazes de vencer o mal e as
pessoas que nos cercam que o representa.

78 | Teologia Sistemática III | FTSA


2.4.3. O problema do sofrimento
A expressão do mal vista a partir do sofrimento humano parece ser a sua
mais fundamental referência. Filosoficamente falando, o mal é definido
desde a perspectiva humana. Comumente, não aplicamos o conceito de
mal àquilo que ocorre no resto da criação sem que haja direta relação
com o ser humano. Por exemplo, quando um animal fere ou mata
um outro animal, mesmo que possamos fazer alguma associação
com a questão humana, não atribuímos a esse evento a ideia de mal.
Mesmo outros eventos naturais como terremotos, tsunamis, furacões,
erupções vulcânicas; quando ocorrem sem envolver vítimas humanas,
não são considerados maus. Assim, enxergamos o mal apenas quando
referenciado ao ser humano e, em especial, associado ao sofrimento.
O desconforto, contudo, que acompanha o sofrimento, é a falta de
respostas ou explicações.

Em suma, o problema do mal ou da teodiceia sempre esteve presente


na humanidade como uma tentativa de se entender e explicar aquilo que
experimentamos como sofrimento e que, intuitivamente, rejeitamos como
sendo oposto à vida. Diante de um tema tão complexo talvez a melhor
postura seja a de humildade e reconhecimento de nossa ignorância. Por
esta razão, apelamos com o mesmo sentimento para a salvação divina
que seja capaz de resolver o drama humano.

Referências bibliográficas
BRUNNER, Emil. The Christian doctrine of creation and redemption.
Dogmatics Vol. II. Philadelphia: Westminster, 1952.
GENESIUS’ HEBREW GRAMMAR. E. Kautzsch (ed.). Oxford: Oxford
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Deus. São Paulo: Hagnos, 2011.
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistematica. Vol. II. Madrid: UPCO, 1996.
SMICK, Elmer B. 638 ‫( ָח ָטא‬hātā’) errar, sair do caminho, pecar, etc.. In:

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HARRIS, R. Laird (org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
SPONHEIM, Paul. O pecado e o mal. In: BRAATEN, Carl E. e Jenson, Robert
W. (ed.). Dogmática Cristã. Vol.1. São Leopoldo: Sinodal, 1990.

80 | Teologia Sistemática III | FTSA


UNIDADE 3 – Fundamentação bíblica da salvação
A Antropologia Teológica pode ser tida como uma boa introdução à
Soteriologia, que é a área da dogmática cristã que estuda o tema da
salvação — soteria, em grego. A condição humana atual, descrita na
unidade anterior, como aquela que se desenvolve em um estado caído
e dominado pelo pecado, cria um natural anseio por superação, ou se
preferir, por salvação. É claro que aqui a ideia de salvação ganha uma
dimensão mais existencial sem a preocupação com qualquer aspecto
religioso ou doutrinário. Estamos falando da superação do grande drama
humano de viver em um constante estado de inadequação e sofrimento.

Certamente a salvação é um dos temas mais relevantes para o dia a dia da


igreja, se não, o principal deles. Contudo, nem todos a compreendem da
mesma forma. Alguns não pensam a salvação partindo desta perspectiva
mais profunda, considerando a precária condição existencial humana. As
mais variadas propostas religiosas alimentam ideias sobre a salvação.
No fundo, a maioria dos nossos esforços e pensamentos teológicos
corriqueiros está associada à salvação, quer seja a nossa própria ou a de
outras pessoas que nos cercam. Quase tudo o que fazemos em nossa
vivência na igreja, tais como a pregação do Evangelho, a busca por uma
vida ética elevada, a rejeição de práticas pecaminosas, até mesmo a
frequência aos cultos, carregam no subconsciente a busca pela salvação,
como se ela funcionasse numa relação de troca com Deus.

Há ainda outro fator que complica o entendimento da teologia da


salvação. A principal ideia que parece prevalecer na igreja evangélica
está relacionada a uma perspectiva escatológica futura, que inclui a
preocupação com o céu, inferno e vida eterna. Mas isto nem sempre
foi assim. O conceito de salvação, visto pelo prisma da teologia bíblica,
foi algo construído paulatinamente na relação entre Deus e seu povo,
em suas experiências históricas. Isto se deu muito antes da elaboração
daquilo que se constituiu como o principal conteúdo da mensagem
evangélica atual: a aceitação pessoal individual do sacrifício de Cristo na
cruz pelos pecados humanos.
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Mais que isto, o conceito de salvação na Bíblia é composto por um conjunto
de vários outros conceitos que contribuem para formar aquilo que foi, de
certa forma, simplificado em uma única expressão. Em outras palavras,
a expressão salvação carrega vários outros conceitos que foram sendo
ajuntados como uma única coisa. No entanto, ao final do processo de
revelação bíblica a igreja cristã parece ter optado por enfatizar apenas uma
perspectiva da complexa doutrina da salvação. Minha intenção, portanto,
será apresentar os vários conceitos soteriológicos desenvolvidos ao
longo das Escrituras, baseados nas expressões empregadas na língua
original — hebraico e grego — e suas aplicações nos contextos em que
foram revelados, considerando os possíveis desdobramentos para o
nosso entendimento atual do tema da salvação.

3.1. A salvação no Antigo Testamento


Se considerarmos que o drama humano da queda gera em nós uma
expectativa de salvação, logo ficamos curiosos para encontrar na
continuação daquela história no livro de Gênesis alguma coisa que
indique uma clara resposta à solução do problema. Aquilo que alguns
autores identificam como protoevangelho (Gn 3:15), já analisado
anteriormente, é muito rápido e sútil em lidar com o assunto. Aliás, as
narrativas ali são pouco consoladoras nos deixando com a expectativa
ainda mais aguçada. Lembro que na discussão sobre este texto, vimos
que uma possível interpretação pode ser apenas a do tratamento da luta
contra tentação, uma vez que não há nada explícito sobre o significado
da vitória sobre a serpente nem o uso deste texto em qualquer outra parte
do Antigo Testamento.

Seguindo a narrativa de Gênesis, o capítulo 3 termina com a expulsão


do ser humano do jardim do Éden e com a impossibilidade de que ele
consiga retornar. Este ser humano, agora sem lar, é logo encontrado em
uma situação ainda mais drástica, pintada com as duras cores do primeiro
assassinato — a história de Caim e Abel (Gn 4:1-16). A morte, enfim, chega
de uma maneira bem cruel, com um irmão acabando com a existência
do outro. Antes do assassinato, Deus alerta Caim sobre a questão do
82 | Teologia Sistemática III | FTSA
desejo cobiçoso e nocivo, a tentação para concretizá-lo, a necessidade
de resistência e a responsabilidade pelas decisões tomadas (Gn 4:7). O
que vem a seguir é exatamente Caim não resistindo aos maus impulsos
e cometendo a pior das atrocidades: dar fim a uma vida. Poderíamos
nos perguntar: e onde está a salvação? Esta pergunta se aplica ao ser
humano como um todo em seu estado de queda e desespero diante
da fraqueza em ceder às consequências da tentação, que colocada em
prática se torna pecado.

No meio deste cenário angustiante vemos uma primeira pista da


misericórdia e graça salvadora divina aplicada, curiosamente, ao
assassino Caim:

“Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a


boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão.
Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da
sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”.
Disse Caim ao Senhor: “Meu castigo é maior do que
posso suportar. Hoje me expulsas desta terra, e terei
que me esconder da tua face; serei um fugitivo errante
pelo mundo, e qualquer que me encontrar me matará”.
Mas o Senhor lhe respondeu: “Não será assim; se
alguém matar Caim, sofrerá sete vezes a vingança”. E
o Senhor colocou em Caim um sinal, para que ninguém
que viesse a encontrá-lo o matasse (Gn 4:11-15).

O texto demonstra a aversão de Deus pela morte humana, mais


especificamente, pelos os atos de atentado contra a vida. Alguns
detalhes do texto são interessantes. A narrativa constrói a ideia de Deus
colocando um sinal em Caim para ser visto por todos os outros seres
humanos. O objetivo é o de protegê-lo, ou salvá-lo, de uma possível morte
por assassinato a ser cometido por alguém, da mesma forma que ele
fez com seu irmão. Assim como ocorreu com Adão e Eva, há um castigo
sobre Caim — aliás, muito semelhante ao que é descrito em Gn 3:17-19,
24 — mas ele não inclui a sua morte física, como que para compensar a
| Teologia Sistemática III | FTSA | 83
morte de Abel. Pelo contrário, o que vemos é Deus agir com misericórdia
e cuidado para que o mal não se espalhe pela humanidade.

O que é interessante notar é que esta construção teológica do Gênesis não


será mencionada ao longo de todo o Antigo Testamento. Curiosamente,
também, não encontramos nenhum termo que se refira ao que será mais
adiante elaborado como conteúdo da salvação. Sendo assim, deixaremos
de lado, por hora, a importante narrativa do Gênesis sobre o drama o
humano e a tentativa de entendimento sobre a solução salvífica para ele.
Faremos, então, uma busca pelos conceitos, conteúdos e termos que se
referem à ideia de salvação no modo como são apresentados ao longo
dos outros livros. Nesta investigação daremos atenção à ocorrência
dos termos mais importantes e suas aplicações em cada contexto das
narrativas veterotestamentárias. Em outras palavras, buscaremos as
raízes das expressões referentes à ideia de salvação e seus correlatos.

3.1.1. Salvação como livramento


A ideia inicial de salvação nas Escrituras não possui qualquer relação
com o pecado ou com a vida eterna. Sua construção é feita com base no
tipo de teologia próprio das primeiras tradições escriturísticas, que lidam
de maneira bem concreta com a vida humana, assim como com a relação
com Deus. Os primeiros conceitos estão diretamente relacionados aos
contextos específicos do povo de Deus no Antigo Oriente Próximo.
Encontramos várias expressões que procuram informar um estado ou
situação em que a salvação é representada por um livramento, ou seja,
por sair de uma situação de risco, que tanto pode ser individual quanto
coletiva. Assim, resumiremos toda esta primeira ideia sobre salvação
com o conceito de livramento, que também é o mais amplo. Veremos
que esta concepção é a mais antiga e concentra-se principalmente
nos primeiros textos das Escrituras, nos patriarcas e tradição mosaica,
anteriores ao estabelecimento de todos os códigos legais (Torá).

Seguindo a ordem dos livros bíblicos, que não é necessariamente


histórica, mas apenas a maneira como se acham dispostos nas
84 | Teologia Sistemática III | FTSA
Escrituras, encontramos a narrativa do livramento de Ló da destruição de
Sodoma e Gomorra: “Assim que os tiraram da cidade, um deles disse a
Ló: ‘Fuja por amor à vida! Não olhe para trás e não pare em lugar nenhum
da planície! Fuja para as montanhas, ou você será morto!’” (Gn 19:17). O
termo hebraico traduzido como “fuja” é malat que é assim explicado por
G. Lloyd Carr:
Embora mālat possa denotar a fuga dos deveres
na corte a fim de ver os parentes (1 Sm 20.29) ou o
livramento que os necessitados experimentam da
aflição (Jó 29.12), a nuança mais destacada é a de
livramento ou fuga da ameaça de morte, às mãos de
um inimigo pessoal (1 Sm 19.11; 23.13) nacional (2 Sm
19.10), ou por motivo de enfermidade (Sl 107.20).

A ênfase costumeira recai sobre o papel de Yahweh no


livramento (em particular sendo traduzida na LXX pelo
verbo ryomai; Sl 116.4; 107.20; 22.5[6]). Sua salvação
é para os justos (Pv 28.26; Jó 22:30), mas não se pode
fugir do seu juízo sobre o pecado (1 Rs 19.17; Am
2.14-15). O livramento só é possível para aqueles que
clamam por ele (Jl 2.32 [3.5]). Ele é o Deus protetor e
libertador. Em contraste, a possibilidade de escape não
se encontra na força de um cavalo (Sl 33.17), nem no
poder de alguma outra nação (Is 20:6), nem nas riquezas
(Jó 20:20) nem no próprio entendimento (1998, p. 840).

Embora alguns dos textos indicados na citação traduzam malat pelo


verbo salvar, sua melhor tradução seria escapar. Por outro lado, escapar
está diretamente associado a não morrer, ou seja, a salvar-se. Desta
forma, a expressão malat procura explorar a ideia de escapar de alguma
situação difícil, de algum perigo de vida concreto e contextual, sendo
entendida como um componente do conceito de salvação que se espera
que seja promovida por Deus.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 85
Um segundo termo usado pelos autores bíblicos é shalah, que traz
uma conotação semelhante à malat, traduzido pela ideia de deixar ir ou
mandar embora. Vale ressaltar que as expressões libertação e livramento
derivam desta mesma raiz, e são as mais usadas para caracterizar o
evento da libertação do povo de Israel do Egito. Vejamos alguns textos:
• Gênesis 19:29 - “Quando Deus arrasou as cidades da planície,
lembrou-se de Abraão e tirou Ló do meio da catástrofe que destruiu
as cidades onde Ló vivia”;
• Gênesis 37:22 - “E acrescentou: “Não derramem sangue. Joguem-no
naquele poço no deserto, mas não toquem nele”. Rúben propôs isso
com a intenção de livrá-lo e levá-lo de volta ao pai”.
• Êxodo 4:21 - Disse mais o Senhor a Moisés: “Quando você voltar ao
Egito, tenha o cuidado de fazer diante do faraó todas as maravilhas
que concedi a você o poder de realizar. Mas eu vou endurecer o
coração dele, para não deixar o povo ir”.

Nos textos acima, shalah é traduzido por “tirar”, “livrar” e “deixar ir”. No
caso da história de Ló, sabemos que a ação de o tirar das ruínas de
destruição das cidades de Sodoma e Gomorra significou ter a sua vida
poupada, ou seja, salva. O mesmo raciocínio vale para o caso de José,
conforme se refere o texto de Gênesis 37:22. Rúben salva José de seus
próprios irmãos, que queriam matá-lo, sugerindo que ele seja lançado em
uma cisterna. Ao propor esta saída, ele livra José da morte que poderia
ser executada por seus irmãos. Já na história do Êxodo, deixar o povo ir
é o mesmo que salvá-lo da opressão que sofria no Egito.

Saiba mais
A opressão do povo de Israel no Egito
A terceira expressão hebraica que pode ser incluída em nossa
construção do conceito veterotestamentário da salvação é peletah.
Podemos vê-la aplicada nos seguintes textos:

86 | Teologia Sistemática III | FTSA


• Gênesis 32:7-8 – “Jacó encheu-se de medo e foi tomado de
angústia. Então dividiu em dois grupos todos os que estavam
com ele, bem como as ovelhas, as cabras, os bois e os camelos,
pois assim pensou: ‘Se Esaú vier e atacar um dos grupos, o outro
poderá escapar’”;

• Gênesis 45:7: “Mas Deus me enviou à frente de vocês para lhes


preservar um remanescente nesta terra e para salvar-lhes a vida
com grande livramento”;

• 2 Crônicas 12:7 – “Quando o Senhor viu que eles se


humilharam, veio a Semaías esta palavra do Senhor: “Visto que
eles se humilharam, não os destruirei, mas em breve lhes darei
livramento. Minha ira não será derramada sobre Jerusalém por
meio de Sisaque”.

Embora a tradução em português varie, o significando da expressão


pode ser entendido como aquilo que escapa, que é poupado, ou ainda,
livramento, fuga, escapada. Ao analisarmos as narrativas dos três textos
acima, chegamos a um entendimento comum sobre aquilo que é indicado
por esta expressão. O primeiro texto fala do medo de Jacó, quando
estava para se reencontrar com seu irmão Esaú, depois de muitos anos
após a sua traição, ao enganá-lo pelo direito de primogenitura. Este texto,
diferente dos outros, está aqui apenas para entendermos a aplicação
da palavra peletah. Os outros dois, entretanto, já mostram o conceito de
salvação, promovido por Deus em função do seu povo, por meio da ideia
de escape ou livramento de uma situação de risco de morte.

Até aqui, o que vimos foi o desenvolvimento de uma percepção teológica


de salvação como uma ação divina que promove o livramento de pessoas
ou de seu povo em meio às mais diversas situações contextuais concretas
da vida, tais como catástrofes; ameaças de morte; doença; opressão
social, política e econômica; guerras; fome; etc. Os termos hebraicos têm
| Teologia Sistemática III | FTSA | 87
a sua importância limitada em função da construção de uma ideia maior
que eles representam e que nos auxiliam a compreender o que a teologia
do Antigo Testamento apresenta como conceito de salvação.

3.1.2. Salvação como libertação


O conceito teológico de libertação talvez seja o mais importante para
o Antigo Testamento por causa do grande evento da saída do povo de
Israel do Egito. Este evento, cercado de tantos outros elementos que
acabaram por constituir a base da teologia e religiosidade do povo para
os séculos seguintes, gira em torno da expressão de libertação de uma
situação de opressão social, política e econômica. Como vimos no
tópico anterior, o termo shalah foi aplicado a esta história com a ideia de
deixar ir ou livrar. O que estou me referindo como libertação não difere da
ideia de livramento, pelo contrário, ambas fazem parte da mesma linha
de raciocínio. Apenas decidi destacar a ideia de libertação por causa da
importância que ela tem para todo o Antigo Testamento.
O termo em questão é natsal, que significa ser libertado ou colocado
para fora. É muito próximo de shalah, mas em outras conjugações pode
significar saquear, despelar ou remover. Dessa forma, a ideia é de um
livramento ou libertação com o uso de força. Antes mesmo do Êxodo,
encontramos o uso de natsal no livro de Gênesis:
• Gênesis 31:9 - “Foi assim que Deus tirou os rebanhos de seu pai e os
deu a mim”;
• Gênesis 32:11 - “Livra-me, rogo-te, das mãos de meu irmão Esaú,
porque tenho medo que ele venha nos atacar, tanto a mim como às
mães e às crianças”;
• Especificamente na libertação do povo do Egito, natsal é traduzido da
seguinte forma:
• Êxodo 12:27 - “respondam-lhes: É o sacrifício da Páscoa ao Senhor, que
passou sobre as casas dos israelitas no Egito e poupou nossas casas
quando matou os egípcios”. Então o povo curvou-se em adoração”;
• Êxodo 18:10 - “Disse ele: “Bendito seja o Senhor que libertou vocês

88 | Teologia Sistemática III | FTSA


das mãos dos egípcios e do faraó; que livrou o povo das mãos dos
egípcios!”.

É curioso notar que esta versão do texto de Êxodo 18:10 traduz as duas
ocorrências do termo natsal, conforme destacado em itálico, por dois
sinônimos: libertou e livrou. Observando outros textos encontramos
opções de tradução como tirou e poupou. Contudo, não vejo necessidade
de nos aprofundarmos em mais detalhes sobre esta ideia de salvação
como libertação, uma vez que ela está bastante desenvolvida na história
do povo de Israel, apresentada nas Escrituras. O que observamos é que
este é o principal evento teológico do Antigo Testamento, entendido
como um ato de salvação promovido por Deus, e que é sempre lembrado
para reforçar esta relação de aliança e cuidado e fortalecer a fé do povo:
Juízes 6:9; 1 Samuel 10:18; 1 Reis 8:16; 1 Crônicas 17:5; Salmo 78:12;
Isaías 10:24; Jeremias 2:6; Ezequiel 20:6; Daniel 9:15; Oséias 2:15; Amós
2:10; Miquéias 6:4; Ageu 2:5.

Exercício de fixação - 11
Qual das opções abaixo representa melhor a ênfase comum
presente no significado teológico dos termos hebraicos malat,
shalah, peletah, natsal?
a) A salvação do pecado que está enraizado na vida humana desde
Adão;
b) A salvação vista como a libertação das forças do mal que atacam
o ser humano;
c) A salvação como escape das tentações que conduzem ao
pecado;
d) A salvação como livramento de situações concretas nos vários
contextos de risco para o ser humano;
e) A salvação promovida pelo Messias de Israel.

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3.1.3. Salvação como redenção ou resgate

De certa forma, ao concentrarmos nossa atenção no estudo da salvação


no Antigo Testamento sobre o grande tema do livramento, acabamos
quase que nos restringindo aos textos do período patriarcal da história de
Israel. No entanto, partindo do pressuposto de que o conceito de salvação
consiste em uma construção baseada em vários outros conceitos
apresentados nas narrativas bíblicas, seguimos nossa análise incluindo
a perspectiva de outros períodos da experiência do povo de Israel com
Deus. A investigação continuará pautada na etimologia histórica dos
termos, mantendo em mente que os conceitos, mesmo sendo antigos,
contribuem para a nossa percepção teológica contemporânea.

Vimos que o primeiro estágio da construção do conceito de salvação tem


estreita relação com as circunstâncias concretas da vida em que se apela
para Deus na busca da salvação de situações de risco e de iminência
de morte. Com o advento da Lei mosaica e da aliança nela baseada,
assim como com a institucionalização da religião javista, surgiram novos
entendimentos sobre o raciocínio teológico e religioso acerca da salvação.
O novo contexto social que passou de uma estrutura fluida seminômade
para uma estrutura radicada, primeiramente com a Liga Tribal e depois
com a monarquia, também contribuiu para o desenvolvimento de outros
conceitos de salvação. Muito influente também foi a posterior teologia
sacerdotal desenvolvida nos períodos exílico e pós-exílico como veremos.

Nossa observação agora recai sobre o conceito de redenção. Este


conceito possui direta relação com o conceito de livramento, mas a razão
para fazermos uma análise em separado se dá por causa do surgimento
de algumas características específicas na teologia da salvação. O que
ocorreu foi que a ideia de redenção passou a ser usada como parte dos
ritos religiosos e de culto e não apenas com as situações concretas da
vida e dificuldades do dia a dia. Obviamente estes aspectos se tornam
mais perceptíveis com a inserção do Tabernáculo e, depois, do Templo
90 | Teologia Sistemática III | FTSA
de Jerusalém, na religiosidade do povo de Israel. Sem nos preocuparmos,
especificamente, com estes ritos religiosos, nos voltamos novamente
para a análise terminológica.

É possível que o entendimento teológico que temos hoje sobre redenção


dificulte a percepção mais simples da expressão, que significa resgate.
Originalmente, o uso da expressão redenção, que é uma das traduções
da raiz hebraica pada, acontecia aplicada à situações comuns da vida
social, conforme explica William Coker:

O sentido básico da raiz hebraica é o de conseguir a


transferência de propriedade de uma pessoa para
outra mediante o pagamento de uma quantia ou de um
substituto equivalente. A raiz ocorre em assírio com
o sentido de “poupar”, e em ugarítico é usada com o
significado de “resgatar” (UT 19: no. 2013). A raiz e
seus derivados aparecem 69 vezes no AT.
O desenvolvimento semântico de pādâ tem grande
relevância para a teologia cristã. De início era um
termo comercial, designado para o pagamento de um
valor exigido para transferência da posse de alguma
propriedade. Êxodo e Levítico 19.20 falam do resgate
de uma jovem escrava com vistas ao casamento. A raiz
também é empregada em referência ao resgate da vida
dalgum condenado à morte, como em 1 Samuel 14:45,
em que Jônatas foi resgatado pelo povo de Israel.

Com o êxodo a palavra recebeu uma significação


religiosa especial. Quando Deus livrou Israel da
servidão no Egito, ele o fez ao preço da morte de todos
os primogênitos existentes naquele país, quer homens
quer animais (Êx 4.23; 12.29) (1998, p. 1200).

| Teologia Sistemática III | FTSA | 91


Como visto, redimir significava resgatar, comprar ou recomprar. A ideia
era a de alguém que, por alguma circunstância, se via obrigado a vender
ou penhorar algum bem e em algum momento desejava resgatar ou
recomprar esse bem. O mesmo se passava no caso de pessoas que se
tornavam escravas, voluntariamente ou não, e em determinado momento
alguém da família ou um representante legal poderia decidir resgatá-
las. Também se usava essa expressão para o caso de casamentos
negociados a base de dotes que, em sendo malsucedidos, seria possível
resgatar as moças de volta à sua família. Alguns textos bíblicos são
exemplos do uso comum do termo pada:

• Êxodo 21:8 - “Se ela não agradar ao seu senhor que a escolheu,
ele deverá permitir que ela seja resgatada. Não poderá vendê-la a
estrangeiros, pois isso seria deslealdade para com ela”;

• Êxodo 30:12 - “Quando você fizer o recenseamento dos israelitas,


cada um deles terá que pagar ao Senhor um preço pelo resgate por
sua vida ao ser contado. Dessa forma nenhuma praga virá sobre eles
quando você os contar”.

A mesma palavra usada com uma aplicação teológica, conforme


apontado por Coker, possui ocorrências bíblicas que foram desenvolvidas
após a intepretação do êxodo:

• Deuteronômio 7:8 – “Mas foi porque o Senhor os amou e por causa


do juramento que fez aos seus antepassados. Por isso ele os tirou
com mão poderosa e os redimiu da terra da escravidão, do poder do
faraó, rei do Egito”;

• Salmo 111:9 - “Ele trouxe redenção ao seu povo e firmou a sua aliança
para sempre. Santo e temível é o seu nome!”;

• Miquéias 6:4 – “Eu o tirei do Egito, e o redimi da terra da escravidão;


enviei Moisés, Arão e Miriã para conduzi-lo”.

92 | Teologia Sistemática III | FTSA


Saiba mais
A redenção do povo de Israel do Egito

Na teologia construída após a libertação do povo de Israel do Egito,


a redenção passou a ser vista como o valor que custou o resgate
do povo das mãos de Faraó. Este valor foi atribuído à morte dos
primogênitos e ao sacrifício simbólico de um cordeiro por cada
família hebraica. O evento ficou conhecido como a décima, e última,
praga e recebeu o nome de Páscoa, cuja tradução seria “passar
sobre”, para significar que o anjo da morte passaria sobre as casas
que estivessem marcadas com o sangue do cordeiro imolado sem
ferir os primogênitos que ali se encontravam. Como já ressaltado,
este ato redentor duplo, de libertar o povo da situação de opressão
no Egito e de poupar a vida dos primogênitos hebreus, tornou-se o
evento mais significativo para a religiosidade do Antigo Testamento,
indicando inclusive o início do ano no calendário israelita: “O Senhor
disse a Moisés e a Arão, no Egito: ‘Este deverá ser o primeiro mês
do ano para vocês’ [...] Este dia será um memorial que vocês e todos
os seus descendentes celebrarão como festa ao Senhor. Celebrem-
no como decreto perpétuo” (Êxodo 12:1,2,14).

Sabemos também que este conceito foi ampliado no Novo Testamento


tendo a interpretação simbólica de Jesus como o cordeiro oferecido pela
redenção da humanidade no seu sangue. Nas palavras do evangelista
João: “No dia seguinte, João viu Jesus aproximando-se e disse: “Vejam!
É o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1:29). Ou ainda,
com o apóstolo Paulo: “Livrem-se do fermento velho, para que sejam
massa nova e sem fermento, como realmente são. Pois Cristo, nosso
Cordeiro pascal, foi sacrificado” (1 Coríntios 5:7). Mas além do símbolo
de cordeiro, Jesus também carrega outra simbologia que é a de redentor.
Esta figura representa aquele que promove a redenção, ou seja, que faz
| Teologia Sistemática III | FTSA | 93
a ação de resgate. A palavra hebraica que dá origem a estas expressões
é goel. Esta raiz, em suas derivações, também acabou sendo traduzida
como variantes do verbo redimir, mas ela foi primeiramente traduzida
como vingador, que era uma função exercida por algum membro do
clã, responsável por executar a justiça reparadora — o Pentateuco traz
algumas leis específicas sobre esta função (Lv 25:25ss; Nm 35; Dt
19). Em uma reelaboração histórica dessa função, o goel passou a ser
entendido como redentor ou, simplesmente, aquele que resgata. Abaixo
vemos algumas aplicações deste conceito:

• Números 35:12 - “Elas serão locais de refúgio contra o vingador da


vítima, a fim de que alguém acusado de assassinato não morra antes
de apresentar-se para julgamento perante a comunidade”;

• Jó 19:25 – “Eu sei que o meu Redentor vive e que no fim se levantará


sobre a terra”;

• Salmo 78:35 - “Lembravam-se de que Deus era a sua Rocha, de que o


Deus Altíssimo era o seu Redentor”.

Em suma, a teologia da salvação do Antigo Testamento vê Deus como o


redentor de seu povo, aquele que promove o resgate de suas vidas nas
situações difíceis, em especial, as de opressão.

3.1.4. Salvação como expiação ou propiciação


Um tema bem mais associado aos fenômenos religiosos, que veio
a compor a teologia da salvação, é o da expiação ou propiciação.
Comparado com tudo o que desenvolvemos até aqui, este tema parece
escapar da ideia básica da salvação como livramento. A concentração
destes termos nas Escrituras, particularmente no livro de Levíticos,
indica um desenvolvimento tardio, elaborado pela tradição sacerdotal,
com interesse em afirmar as práticas religiosas centralizadas no Templo.

94 | Teologia Sistemática III | FTSA


Expiar, propiciar ou tornar propício, que também engloba os conceitos
de apaziguar, pacificar ou reconciliar, se refere a um entendimento sobre
a relação entre Deus e os seres humanos que estaria estremecida, para
não dizer rompida. O que parece estar por trás deste conceito é um tipo
de ideia que comunica a necessidade de acalmar um Deus irado, que
tem a intenção de punir, podendo chegar a matar, as pessoas por suas
faltas. A princípio, este tipo de concepção religiosa não ocorre apenas na
teologia hebraica. Todas as religiosidades, de certa forma, em maior ou
menor grau, carregam esta noção de conquista do favor divino por meio
de uma troca que pode ser alguma oferenda ou sacrifício.

Esta teologia também é construída em função do cumprimento rigoroso


da Lei. Sabemos que era praticamente impossível o cumprimento
perfeito da Lei, por isso, o resultado foi o desenvolvimento de um
estado constante de inadequação e inimizade entre Deus e o povo. Aqui
temos caracterizada a ideia de pecado, como a falha no cumprimento
da Lei, que deveria ser reparado por um processo expiatório. Assim, a
tradição sacerdotal criou um detalhado processo ritual que estabelecia
o que era necessário fazer para tornar-se novamente propício a Deus
ou para apaziguar a relação estremecida. O que observamos, portanto,
é uma compreensão diferente do conceito de pecado, que se distancia
da questão mais existencial, conforme apresentada pela Antropologia
Teológica. Este conceito de pecado se move da esfera existencial
profunda para a prática de atos específicos diferentes e contrários à lista
apresentada nos códigos legais. É em função de uma condenação deste
tipo de pecado, também prevista na Lei, que se fazia necessário cumprir
os rituais de expiação para se escapar dos resultados danosos sobre a
vida individual e coletiva.

O termo hebraico kipper é o que traduz esta ação de expiação ou


propiciação, que possui uma conotação e uso mais amplo como “cobrir
algo”. No caso, o ritual era feito com a oferta e, principalmente, com o
sacrifício de algum animal. Vejamos alguns usos do termo:
• Êxodo 30:10 – “Uma vez por ano, Arão fará propiciação sobre as
pontas do altar. Essa propiciação anual será realizada com o sangue
| Teologia Sistemática III | FTSA | 95
da oferta para propiciação pelo pecado, geração após geração. Esse
altar é santíssimo ao Senhor”.

• Êxodo 32:30 – “No dia seguinte Moisés disse ao povo: “Vocês


cometeram um grande pecado. Mas agora subirei ao Senhor e talvez
possa oferecer propiciação pelo pecado de vocês”.

O entendimento teológico da expiação dá impressão de que o sacrifício


animal de expiação tinha o objetivo de “cobrir” o pecado de quem fazia o
ato. Contudo, a interpretação do ritual de expiação não é muito simples.
Talvez a ideia mais difundida seja a de que o sangue e a morte do
animal substituem o sangue e a morte do ofertante, mas este não é o
entendimento de Roland de Vaux:

A vítima é apresentada pelo ofertante que deve estar


em estado de pureza ritual. Ele põe sua mão sobre a
cabeça da vítima. Este não é um gesto mágico que
estabelece um contato entre Deus e o homem, não é
tampouco o símbolo de uma substituição do ofertante
pela vítima de quem ela tomaria os pecados para os
expiar; sem dúvida, na cerimônia do bode expiatório,
Lv 16.21, o animal é assim carregado com as faltas do
povo, mas precisamente por causa dessa transferência,
ele torna-se impuro e indigno de ser sacrificado. A
imposição das mãos pelo ofertante não é tampouco
uma simples manumissio, um abandono da vítima a
Deus, ela é a atestação solene de que esta vítima vem
dele, ofertante, que o sacrifício que vai ser apresentado
pelo sacerdote é oferecido em seu nome e que os frutos
serão dele [...] Quase metade do código sacrificial do
segundo Templo tem por objetivo os sacrifícios que
chamamos expiatórios, mas para os quais o ritual
não tem um termo comum: ele trata sucessivamente
ou conjuntamente de duas espécies de sacrifício que
96 | Teologia Sistemática III | FTSA
têm por fim restabelecer a aliança com Deus, rompida
pelas faltas do homem: o sacrifício pelo pecado,
hatta’t, e o sacrifício de reparação, ’asham. Apesar
dos desenvolvimentos do texto, é difícil determinar a
significação própria a um e a outro e a razão de sua
distinção [...] Esses ritos acentuam bastante o valor
expiatório do sangue, que se liga à função que lhe era
reconhecida como suporte da vida: “a vida da carne
está no sangue. Este sangue, eu tenho dado a vós, para
fazer sobre o altar o rito de expiação por vossas vidas;
pois é o sangue que faz expiação por uma vida”, ou:
“que expia pela vida que está nele”, Lv 17.11, com o que
se comparará Hb 9.22: “Sem derramamento de sangue
não há remissão” [...] O fato de que a gordura é queimada
sobre o altar e que a carne dos sacrifícios pelos pecados
dos particulares seja comido pelos sacerdotes como
“uma coisa santíssima”, Lv 6.22, contradiz a teoria
segundo a qual a vítima seria carregada com o pecado
do ofertante, tornando-se ela mesma “pecado”. Não, ela
é uma vítima agradável a Deus, que, em consideração
dessa oferenda, tira o pecado. É evidentemente nesse
sentido ritual que a palavra é retomada por são Paulo:
“O Cristo que não conheceu o pecado, Deus o fez
“pecado” (hatta’t, vítima pelo pecado) a fim de que nele
nos tornemos justiça de Deus”, II Co 5.21 (p. 454-457).

Na expiação, o sangue e a morte são considerados itens necessários


para aplacar a ira divina pelo o pecado, mas não como elementos
mágicos. A exigência da prática do ritual funciona como representação
simbólica que demonstra a pior consequência do pecado que é a morte.
O ser humano ao pecar, imediatamente encontra a morte, que na prática
religiosa é simbolicamente coberta pelo sacrifício de um animal. O

| Teologia Sistemática III | FTSA | 97


que torna complicada a compreensão dessa prática são as influências
culturais, não apenas hebraica, da tentativa de atribuir-se um efeito
mágico ao ritual e seus elementos. É isso que Vaux procura esclarecer.

Saiba mais
O significado técnico de mágica
Mágica na antropologia é a crença de que a manipulação ritualística
de elementos naturais pode causar efeitos sobrenaturais. Definem-
se ainda dois tipos de mágica, a simpática e a contagiante. A
mágica simpática é aquela em que uma coisa semelhante produz
um efeito semelhante. Um exemplo seria a mágica vodu em que de
se faz um boneco de alguém e se coloca agulhas no mesmo para
que a pessoa que o boneco representa sofra as consequências
daquele ato. A mágica contagiante é aquela em que a manipulação
de algo próximo seria capaz de produzir um efeito sobre aquilo
com a qual possui proximidade. Por exemplo, alguns chamados
trabalhos de macumba manipulam objetos de uma pessoa, ou
fio de cabelo, unha, etc., para que aquela pessoa sofra alguma
consequência pretendida no ritual. Danças da chuva, de guerra,
sacrifícios, oferendas, etc., partem deste mesmo princípio.

O que Vaux está argumentando é que a expiação na teologia do Antigo


Testamento, que envolve sacrifícios animais, não possui a prerrogativa
mágica; ela é apenas simbólica. Lembramos que esta discussão
também ocorre em torno do ritual da Santa Ceia ou Eucaristia. Para
algumas correntes, ela tem um efeito mágico, em que o pão e o vinho se
transubstanciam, ou seja, se tornam realmente corpo e sangue de Cristo.
Para outras, mesmo não havendo transubstanciação, entende-se algum
efeito mágico ao comer os elementos. Entendemos, no entanto, que os
98 | Teologia Sistemática III | FTSA
textos no Novo Testamento são claros ao afirmarem de que se trata de um
memorial simbólico (Lc 22:19; 1 Co 11:24-25). Também devemos lembrar
a clara proibição na Lei sobre a prática da magia, como um princípio: “Não
permitam que se ache alguém no meio de vocês que queime em sacrifício
o seu filho ou a sua filha; que pratique adivinhação, ou se dedique à magia,
ou faça presságios, ou pratique feitiçaria” (Dt 18:10).

Concluindo o breve estudo do tema da expiação no Antigo Testamento,


notamos que havia um ritual específico, anual, em que o sacerdote fazia
a expiação de seus próprios pecados e dos pecados de todo o povo. Este
dia era chamado de Yom Kippur, ou em português, Dia da Expiação. A
palavra yom significa dia e kippur é uma variante de kipper, significando
expiação. É deste ritual que advém a expressão “servir como bode
expiatório”, que significava levar a culpa de outro, como vemos no relato
de Levítico 16:5-22. O que esta prática traz de interessante é a noção de
pecado coletivo, praticamente ausente na soteriologia contemporânea.
Um clássico exemplo histórico desta compreensão teológica é a narrativa
do pecado de Acã, apresentada em Josué 7.

Devemos observar que a compreensão da salvação acontece como


consequência do ato de expiação, ou seja, a expiação não é a salvação
em si, diferente do que ocorre com os termos investigados anteriormente,
que sugerem uma associação imediata das expressões, em especial, com
o conceito de livramento. A novidade, no entanto, desta perspectiva é que
a salvação, agora, passa a estar diretamente relacionada ao conceito de
pecado. A expiação ou propiciação tem como objetivo o afastamento do
pecado, que seria o causador de danos à pessoa e ao povo, dos quais ela
espera ser salva, praticando, para isto, algum ato específico de oferta ou
de sacrifício. Em suma, ao fazer a expiação pelo pecado a pessoa torna-
se propícia a Deus, faz as pazes com ele, escapa da sua ira castigadora e
pode voltar a desfrutar de suas bênçãos.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 99


3.1.5. Salvação como justificação
Um dos elementos mais importantes no desenvolvimento da fé do Antigo
Testamento é a aliança com Deus a partir da Lei Mosaica. O corpo de leis,
registrado na chamada Torá, engloba todos os aspectos daquilo que Deus
pretendia como padrão para uma vida comunitária, modelada pela vivência do
povo de Israel, servindo como exemplo para todas as nações circunvizinhas.
Considerando, portanto, uma compreensão mais jurídica na relação com o
povo, Deus acaba sendo caracterizado como um juiz que constantemente
julga as ações e comportamentos do povo perante o cumprimento ou
não da Lei. Pensando assim, uma vez que o cumprimento cabal da Lei é
algo impossível ao ser humano e dadas as consequências previstas na
quebra de seus mandamentos, surge a necessidade de caminhos que
possibilitem um acerto de contas, ou seja, a aplicação de sentenças, para
o alcance do perdão. A maioria das sentenças apresentadas no próprio
código legal passa pela oferta de um sacrifício mediante o qual é possível
adquirir a expiação do pecado, mas o de justiça aparece mais aplicado no
contexto monárquico e profético. O mesmo se dá com a ideia da pessoa
justa, também muito presente nos Salmos e livros sapienciais. Isso
significa dizer que a Lei tanto foi utilizada como referência para uma vida
justa, talvez concentrada nos mandamentos mais antigos apresentados
pelos primeiros livros do Pentateuco, como foi usada para um tipo de
relação mais religiosa e sacramental conforme requerida na tradição
sacerdotal posterior registrada no livro de Levítico.
A terminologia hebraica para esse tema inclui as palavras tsaddiq (justo),
tsedaqah (justiça) e mishpat (julgamento, fazer justiça, juízo). Abaixo
vemos algumas aplicações dos termos em contextos bíblicos diversos:
• Gênesis 6:9 - “Esta é a história da família de Noé: Noé era homem justo
[tsaddiq], íntegro entre o povo da sua época; ele andava com Deus”;
• Gênesis 15:6 - “Abrão creu no Senhor, e isso lhe foi creditado como
justiça [tsedaqah]”.
• Gênesis 18:19 - “Pois eu o escolhi, para que ordene aos seus filhos
100 | Teologia Sistemática III | FTSA
e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor,
fazendo o que é justo [tsedaqah] e direito [mishpat], para que o
Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu”;
• Gênesis 18:25 - “Longe de ti fazer tal coisa: matar o justo [tsaddiq]
com o ímpio, tratando o justo [tsaddiq] e o ímpio da mesma maneira.
Longe de ti! Não agirá com justiça [mishpat] o Juiz de toda a terra?”.

Já nos textos que compõem o corpo legal, encontramos as seguintes


referências:

• Êxodo 23:6 – “Não perverta o direito [mishpat] dos pobres em seus


processos”;
• Deuteronômio 4:8 – “Ou, que grande nação tem decretos e preceitos
[mishpatim] tão justos [tsaddiqim] como esta lei que estou
apresentando a vocês hoje”;
• Deuteronômio 24:13 – “Devolva-lhe o manto ao pôr do sol, para que
ele possa usá-lo para dormir, e lhe seja grato. Isso será considerado
um ato de justiça [tsedaqah] pelo Senhor, o seu Deus”.

A justificação, então, significaria tornar-se justo perante a Lei e perante


o juiz. Seria como alcançar o veredito do juiz que declara que o réu está
quite com a Lei. Nesse sentido, uma vez que as consequências da quebra
da Lei são sempre prejudiciais ao ser humano, chegando a incluir a morte,
a justificação acaba constituindo-se num processo de salvação.

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo, formado na teologia judaica,


será aquele que irá reinterpretar a doutrina da justificação à luz da morte
sacrificial e ressurreição de Cristo. Paulo, no entanto, faz a transição
entre a tradição da Lei e a novidade da Graça. Ele interpreta este processo
representativo a partir de uma leitura mais ampla, conforme encontramos
em Romanos 5, mas voltaremos a este tema quando estudarmos a
teologia da salvação no Novo Testamento.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 101


Exercício de aplicação - 12
Que relação podemos estabelecer entre o conceito de justificação
e o de expiação na teologia de salvação desenvolvida no Antigo
Testamento?
a) Os conceitos são independentes e não possuem relação entre si;
b) A relação pode ser estabelecida pensando que o sacrifício de
expiação do pecado é o que torna a pessoa justificada perante a Lei;
c) A relação ocorre quando a justiça é expiada nos rituais do código legal;
d) A relação é que tanto a justificação quanto a expiação foram
estabelecidas por Moisés;
e) A relação entre a justificação e expiação é concretizada no sacrifício
de Jesus.

3.1.6. Salvação como conversão


Até aqui, poderíamos dizer que os conceitos apresentados possuem uma
conotação, de certa forma, negativa. Eles focam uma postura mais reativa
por parte do ser humano, na tentativa de escapar de alguma situação
difícil, de risco de vida e também das consequências relacionadas à
quebra da Lei.

Pensando em uma perspectiva mais proativa do ser humano, a ideia de


conversão contribui para a teologia da salvação como sendo uma decisão
ou atitude de mudança de rumo, mudança de direção, pensamento
ou vontade, no curso da vida. Esta atitude que acontece no nível da
consciência extrapola o âmbito do cumprimento das regras religiosas
sacrificiais. O que se pretende aqui é o arrependimento, uma mudança
de mente, mudança de postura frente à realidade.

A expressão usada em Isaías 6:10, traduzida como converter, refere-se ao


verbo shuv que significa voltar ou retornar: “Torne insensível o coração
deste povo; torne surdos os seus ouvidos e feche os seus olhos. Que eles
102 | Teologia Sistemática III | FTSA
não vejam com os olhos, não ouçam com os ouvidos e não entendam
com o coração, para que não se convertam e sejam curados”. No caso em
questão, esta conversão, ou retorno, seria ao estado de relacionamento
com Deus, em obediência aos seus estatutos. O mesmo texto associa
a conversão ao entendimento do coração, ou seja, a um processo de
autoanálise e decisão de voltar atrás ou de mudar de atitude.

Também o profeta Jeremias apresenta a mesma ideia em seu vaticínio


contra o povo de Judá. Aliás, é nos escritos de Jeremias onde temos o
maior número de ocorrências dessa palavra motivado pela compreensão
do exílio babilônico como um castigo divino que exigia do povo a sua
conversão:
Assim diz o Senhor: Coloque-se no pátio do templo
do Senhor e fale a todo o povo das cidades de Judá
que vem adorar no templo do Senhor. Diga-lhes tudo
o que eu ordenar a você; não omita uma só palavra.
Talvez eles escutem e cada um se converta de sua má
conduta. Então eu me arrependerei e não trarei sobre
eles a desgraça que estou planejando por causa do mal
que eles têm praticado (Jeremias 26:2-3).

O termo em hebraico traduzido como “se converta” provém da mesma


raiz que aparece no texto de Isaías, shuv, contudo, a expressão “me
arrependerei”, cuja raiz é nacham, aplicada para a ação de Deus, poderia
ser entendida como voltar atrás, mas o sentido é deixar de fazer algo
movido por compaixão.
Variações da mesma raiz shuv também são traduzidas como ações de
arrependimento:
• Isaías 1:27 – “Sião será redimida com justiça, com retidão os que se
arrependerem”;

• Isaías 30:15 – “Diz o Soberano, o Senhor, o Santo de Israel: ‘No


arrependimento e no descanso está a salvação de vocês, na quietude
e na confiança está o seu vigor, mas vocês não quiseram’”;
| Teologia Sistemática III | FTSA | 103
• Jeremias 5:3 – “Senhor, não é fidelidade que os teus olhos procuram?
Tu os feriste, mas eles nada sentiram; tu os deixaste esgotados, mas
eles recusaram a correção. Endureceram o rosto mais que a rocha, e
recusaram arrepender-se”;

• Ezequiel 18:30 – “Portanto, ó nação de Israel, eu os julgarei, a cada


um de acordo com os seus caminhos. Palavra do Soberano, o Senhor.
Arrependam-se! Desviem-se de todos os seus males, para que o
pecado não cause a queda de vocês”;

• Joel 2:13 – “Rasguem o coração e não as vestes. Voltem-se para o


Senhor, o seu Deus, pois ele é misericordioso e compassivo, muito
paciente e cheio de amor; arrepende-se e não envia a desgraça”.

Em alguns textos é clara a imediata relação com a temática da salvação,


mas é importante entender que o conceito de arrependimento não é
algo passivo, esperando que Deus faça algo sem que haja um desejo de
mudança por parte do ser humano. A raiz indica uma ação de retorno,
ou seja, não é um simples pedido de desculpa, nem a demonstração
de fidelidade (Jeremias 5:3), mas uma intenção de retornar ao caminho
proposto por Deus. Daí a direta relação com o pecado, entendido como
errar o alvo ou o caminho. A imagem que podemos construir é a de uma
jornada. Há um caminho de vida a ser seguido, porém, quando erramos
esse caminho, tomando outro, o que se espera não é apenas que se pare
e se admita o erro. É claro que a consciência do erro é fundamental, mas
o que se espera é que voltemos ao caminho proposto e continuemos a
caminhada. O arrependimento, ou a conversão, não se limita à tomada de
consciência, ele requer a retomada do caminho apontado por Deus e isso
se torna salvação.

3.2. A salvação no Novo Testamento


O conceito de salvação no Novo Testamento se desenvolve baseado
naquilo que o Antigo Testamento estabeleceu para a teologia judaica,
como uma continuidade, mas também trazendo novos entendimentos

104 | Teologia Sistemática III | FTSA


considerando toda a representatividade que Jesus Cristo traz. A
impressão que temos é que o Novo Testamento parece se dedicar
mais intensamente ao tema da salvação do que o Antigo. Contudo, não
podemos deixar de observar, de antemão, que o tratamento do assunto
possui tratamentos diferentes, por exemplo, quando comparamos o
conteúdo dos evangelhos e o dos outros textos, em especial os textos
paulinos. Também é importante ter em mente que, assim como acontece
com todas as outras áreas da teologia, a influência da apocalíptica é
bastante presente na elaboração do pensamento neotestamentário.

Como continuidade teológica do Antigo Testamento, o Novo apresenta


alguns temas já explorados adicionando novas compreensões a eles.
Mas por causa da vida e ministério de Jesus Cristo, novas temáticas
surgem baseadas em seus ensinamentos e, obviamente, sua morte
e ressurreição. Pensando assim, antes de lidarmos com aquilo que
poderia ser entendido como novidade para a teologia da salvação, vamos
analisar alguns termos e expressões em grego, seguindo um raciocínio
semelhante ao que tivemos ao apresentar teologia da salvação no Antigo
Testamento.

3.2.1. Salvação como arrependimento


Como estudamos na teologia do Antigo Testamento, o tema do
arrependimento, elaborado desde a perspectiva da conversão, foi uma
tônica bastante presente na mensagem dos profetas, com grande
concentração nos livros de Isaías e Jeremias. Não à toa, esta mesma
tônica é logo percebida nos discursos de João Batista, visto como um
profeta pelo povo judeu. Jesus, de igual forma, assumindo a mesma
prerrogativa profética, também se apropria deste tipo de mensagem
em seus discursos estabelecendo uma ponte com a teologia de seus
antepassados:

• Mateus 3:1-2 – “Naqueles dias, surgiu João Batista, pregando no


deserto da Judeia. Ele dizia: ‘Arrependam-se, pois o Reino dos céus
está próximo’”;
| Teologia Sistemática III | FTSA | 105
• Mateus 4:17 – “Daí em diante Jesus começou a pregar: ‘Arrependam-
se, pois o Reino dos céus está próximo’”.

A expressão em grego mais utilizada pelos autores do Novo Testamento,


traduzida como variações do verbo arrepender-se ou do substantivo
arrependimento, foi metanoia. Esta palavra traduz uma ideia semelhante
à da conversão, sendo composta por dois termos, meta e nous, que
ajuntados podem ser entendidos como mudança de mente ou mudança
de pensamento. Assim como explicado anteriormente, aqui também
não é uma simples questão de ter consciência do pecado, que é um
passo inicial fundamental, mas pressupõe-se também uma mudança de
caminho, de atitudes, de ações.
Seguindo o pensamento desenvolvido no Antigo Testamento sobre a
conversão, o termo grego utilizado, em suas diversas variações, foi
epistrepho. Isto fica claro ao lermos o texto de Mateus 13: 15, quando
cita Isaías 6:10, e opta por traduzir shuv por uma variante de epistrepho.
Assim, o que entendemos por conversão, tanto no grego como no
hebraico, será traduzido como voltar-se e retornar, como vemos:

• Atos 11:21 – “A mão do Senhor estava com eles, e muitos creram e se


converteram ao Senhor”;
• Atos 15:3 – “A igreja os enviou e, ao passarem pela Fenícia e por
Samaria, contaram como os gentios tinham se convertido; essas
notícias alegravam muito a todos os irmãos”;
• 2 Coríntios 3:16 – “Mas, quando alguém se converte ao Senhor, o véu
é retirado”;
• 1 Tessalonicenses 1:9 – “pois eles mesmos relatam de que maneira
vocês nos receberam e como se voltaram para Deus, deixando os
ídolos a fim de servir ao Deus vivo e verdadeiro”;
• Tiago 5:19 – “Meus irmãos, se algum de vocês se desviar da verdade
e alguém o trouxer de volta, lembrem-se disto: Quem converte um
pecador do erro do seu caminho salvará a vida dessa pessoa e fará
que muitíssimos pecados sejam perdoados”.

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Converter-se ou arrepender-se dos pecados ou dos atos e comportamentos
que conduzem ao pecado é, portanto, entendido como tomar o caminho
de salvação e de um novo rumo de vida.

3.2.2. Salvação como justificação


Retomando o entendimento da salvação como justificação, iniciado
no estudo feito no Antigo Testamento, agora olhamos para a teologia
paulina que é a que mais se dedica a este tipo de abordagem no Novo
Testamento. O livro de Romanos, que é o documento mais doutrinário do
apóstolo Paulo, é o que apresenta o maior uso dos termos referentes à
justificação, ou seja, de variações do termo grego dikaioo. Esta palavra
tem direta relação com dikaiosune, traduzida como retidão ou justiça.
Neste sentido, dikaioo pode ser entendido como um veredito de retidão,
uma declaração de que alguém deve ser considerado justo, em dia com
a lei. Vejamos algumas aplicações escriturísticas:

• Lucas 18:14 – “Eu digo que este homem, e não o outro, foi para casa
justificado diante de Deus. Pois quem se exalta será humilhado, e
quem se humilha será exaltado”;

• Atos 13:39 – “Por meio dele, todo aquele que crê é justificado de
todas as coisas das quais não podiam ser justificados pela Lei de
Moisés”;

O entendimento do apóstolo Paulo, apesar de calcar-se na teologia


do Antigo Testamento, oferece uma reinterpretação, afirmando a
incapacidade de alguém se tornar justo perante a Lei Mosaica. Ele
desenvolve essa ideia no livro de Romanos, de onde extraio a seguinte
passagem:
Sabemos que tudo o que a Lei diz, o diz àqueles que
estão debaixo dela, para que toda boca se cale e o
mundo todo esteja sob o juízo de Deus. Portanto,
ninguém será declarado justo diante dele baseando-
se na obediência à Lei, pois é mediante a Lei que nos
| Teologia Sistemática III | FTSA | 107
tornamos plenamente conscientes do pecado. Mas
agora se manifestou uma justiça que provém de Deus,
independente da Lei, da qual testemunham a Lei e os
Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo
para todos os que creem. Não há distinção, pois todos
pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente por sua graça, por meio da
redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu
como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu
sangue, demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância,
havia deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos; mas, no presente, demonstrou a sua justiça,
a fim de ser justo e justificador daquele que tem fé
em Jesus. Onde está, então, o motivo de vanglória? É
excluído. Baseado em que princípio? No da obediência
à Lei? Não, mas no princípio da fé. Pois sustentamos
que o homem é justificado pela fé, independente da
obediência à Lei (Romanos 3:18-29).

Certamente estamos diante de uma complexa elaboração teológica.


Paulo procura reunir a maioria dos conceitos soteriológicos em sua
argumentação centrada na pessoa de Cristo. Seu raciocínio é de que a Lei
serve como uma referência e um espelho que mostram a incapacidade
humana de cumprir o projeto divino de justiça para a sua criação caída.
Diante desta incapacidade surge, automaticamente, a impossibilidade da
justificação, ou seja, a inevitável permanência do ser humano no pecado.
A consequência disto é a aplicação do castigo de morte. Para Paulo,
Jesus não é apenas o único capaz de cumprir a Lei, como ele mesmo
assume voluntariamente o castigo punitivo que deveria recair sobre os
seres humanos, realizando, simbolicamente, o sacrifício de propiciação
que promove a nossa redenção. Conclusivamente, Paulo afirma que o
único caminho para a salvação, ou seja, para a justificação perante Deus,
é a fé em Jesus. A pergunta, pois, que se levanta é como a fé é capaz de
108 | Teologia Sistemática III | FTSA
aplicar a justificação, processo assumido exclusivamente por Cristo, aos
seres humanos. A resposta nos mergulha no mistério do evangelho.

Ainda assim, podemos tentar entender melhor a teologia paulina que


afirma que “ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na
obediência [ergon] à Lei” (Rm 3:20). A melhor tradução do termo ergon
não é obediência, mas obras ou trabalhos da Lei. Paulo está dizendo que
não é a simples prática de cumprimento dos mandamentos que torna a
pessoa justa, mas a fé — o mesmo pensamento é exposto em Efésios
2:8-9. Sua argumentação é, no fundo, um contraponto à teologia judaica
farisaica, também combatida por Jesus, que ignora o princípio maior por
trás da Lei que é uma vida de fidelidade a Deus. Os fariseus fiavam-se em
uma religiosidade baseada em regras e aparências. Eles se consideravam
justos e justificados, no entanto, rejeitaram o Messias e sua mensagem
a ponto de o matarem. O argumento paulino, portanto, é de que mesmo
alegando o cumprimento da Lei, sabemos que é impossível ao ser
humano cumpri-la cabalmente. Se este é um fato, a única maneira de
o ser humano conseguir ser justificado é pela relação de dependência
de Deus, confiando em sua misericórdia e graça. Mais especificamente,
não é estabelecendo uma relação de obediência à Lei, que parece ser
motivada pelo medo, que ele alcança a justificação, mas pela relação
de obediência à Cristo, motivada pelo amor. A obediência à Cristo, no
entanto, inclui a obediência a seus mandamentos e, por isso, Tiago retoma
o assunto das obras ao dizer que a fé é demonstrada ou comprovada por
meio delas (Tg 2:14-26), no entanto, sob outra motivação.

Exercício de reflexão - 13
A partir do que foi dito sobre os textos paulinos, elabore uma pequena
reflexão de como a compreensão de arrependimento, conversão e
justificação se aproximam e se diferenciam da compreensão do AT.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 109


3.2.3. Salvação como regeneração
Um conceito bastante interessante que surge no Novo Testamento sobre
a teologia da salvação é o de regeneração. Esse é um conceito amplo
que possui uma perspectiva mais escatológica e inovadora, além de
certo apelo para a contemporaneidade.

A ideia de regeneração entende a salvação como uma nova geração, ou


seja, uma ação de gerar novamente, de recriar. A compreensão é de que
só é possível resolver totalmente o problema do pecado na vida humana
por meio de um processo de mudança radical do atual estado de vida
e criação de uma nova. Uma vez que o ser humano é afetado desde o
nascimento, sem a possibilidade de opor-se ou resistir a este processo
que perpetua o pecado, ele tem como resultado final para este estado de
vida o seu término pela morte. A possibilidade, então, de continuidade
da vida torna-se possível apenas por uma nova vida após a morte. A
elaboração teológica deste conceito é um pouco mais complexa que a
dos outros. De certa forma, ele é desenvolvido pelo Novo Testamento,
mas podemos pensar que já havia algum indício, mesmo que pequeno,
no Antigo Testamento:

• Gênesis 2:16-17 – “E o Senhor Deus ordenou ao homem: “Coma


livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do
conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer,
certamente você morrerá”.

• Gênesis 6:3-7 – “Então disse o Senhor: ‘Por causa da perversidade


do homem meu Espírito não contenderá com ele para sempre; ele
só viverá cento e vinte anos’ [...] O Senhor viu que a perversidade
do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos
pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. Então
o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso
cortou-lhe o coração. Disse o SENHOR: “Farei desaparecer da face da
terra o homem que criei, os homens e também os animais, grandes e
pequenos, e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito”.

110 | Teologia Sistemática III | FTSA


O profeta Ezequiel também contribui com um outro tipo de raciocínio que
nos leva a entender que a morte poderia ser revertida para uma nova
vida com a intervenção do Espírito de Deus: “Ele me perguntou: ‘Filho do
homem, estes ossos poderão tornar a viver?’. Eu respondi: ‘Ó Soberano
Senhor, só tu o sabes’. Então ele me disse: ‘Profetize a estes ossos e diga-
lhes: Ossos secos, ouçam a palavra do Senhor! Assim diz o Soberano, o
Senhor, a estes ossos: Farei um espírito entrar em vocês, e vocês terão
vida’” (Ez 37:3-5).

A teologia do Novo Testamento constrói a ideia de que a passagem da


morte para uma nova vida se dá pela ressurreição, prevista para o final
dos tempos. No entanto, a condição para que esta ressurreição seja
aplicada às pessoas se dá durante esta vida ainda sob o domínio do
pecado. Esta novidade pregada por Jesus e ensinada pelos apóstolos
fala de um novo nascimento, espiritual, antes da passagem pela
regeneração ou recriação do ser humano por ocasião da ressurreição. O
novo nascimento ocorre na atual forma de vida e desenvolve-se nela até
o juízo final. Ele funciona como uma potencialidade que alcança o seu
ápice na realização escatológica.

Nas palavras de Jesus, é necessário nascer de novo, do Espírito, de


maneira semelhante à descrita na criação do Gênesis (Gn 2:7), por meio
de um novo sopro, para que possamos experimentar esta regeneração.
• João 3:3,5 - “Em resposta, Jesus declarou: ‘Digo a verdade: Ninguém
pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo’ [...] Respondeu
Jesus: ‘Digo a verdade: Ninguém pode entrar no Reino de Deus se não
nascer da água e do Espírito’”;
• Mateus 19:28 - “Jesus lhes disse: ‘Digo a vocês a verdade: Por ocasião
da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do homem se
assentar em seu trono glorioso, vocês que me seguiram também se
assentarão em doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel’”.
• 2 Coríntios 5:17 - “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação.
As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!”.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 111


Aqui não nos preocupamos com uma terminologia específica e sim com
a ideia geral. Fica óbvia a associação do conceito de regeneração com a
salvação já que ele indica a reversão do principal castigo que está sobre
o ser humano em pecado, que é a morte. A regeneração é a possibilidade
de vida após o castigo da morte. O que torna este conceito diferente e
interessante é a argumentação de que, de certa forma, o processo se
inicia e pode ser experimentado ainda no atual estado humano.

3.2.4. Salvação como adoção


Até aqui vimos vários temas que informam o conceito bíblico de
salvação observado por diferentes ângulos e perspectivas sem que um
tenha, necessariamente, prioridade sobre outro. Pensando na queda e
no pecado, parece natural que tenhamos uma percepção mais negativa
ou mais positiva em relação a um ou outro conceito. A sensação de
livramento, libertação e redenção é certamente boa, mas se focarmos
o estado anterior, do qual somos salvos, logo vem uma sensação ruim,
principalmente se considerarmos que sempre estamos diante do pecado.
A salvação entendida como expiação, justificação e arrependimento
trazem o mesmo peso daquilo que significa um sacrifício ou esforço para
nos vermos livres de uma vida que está longe de sua plenitude. Por isso,
muitas vezes, a mensagem cristã parece partir de um ponto de partida
ruim ou parece apresentar-se com um peso negativo que pode se tornar
um embaraço para alguns ouvintes, dependendo, é claro, da maneira
como a comunicamos.

Tendo isso em mente, apresento este tema e o que virá a seguir, tendo
como ponto de partida o aspecto do relacionamento. Suas ênfases se
mostram menos negativas, menos centradas no problema do pecado, e
mais comunicadoras do caráter amoroso de Deus.

A presença de Jesus, o Deus encarnado, entre os seres humanos, cria


um ambiente muito diferente para a compreensão da condição humana
frente ao pecado e seu estado de condenação à morte. Se por um lado
a teologia da salvação informada pelo Antigo Testamento traz uma

112 | Teologia Sistemática III | FTSA


conotação mais negativa da situação entre a criatura e o criador, na
pessoa de Jesus recebemos uma ênfase diferente se considerarmos a
relação de amor quebrada. Esta perspectiva também é vista na teologia
veterotestamentária, mas acabou sendo pouco explorada pelos autores,
com exceção de alguns:

• Jeremias 2:20 – “Há muito tempo eu quebrei o seu jugo e despedacei


as correias que a prendiam. Mas você disse: ‘Eu não servirei!’. Ao
contrário, em todo monte elevado e debaixo de toda árvore verdejante,
você se deitava como uma prostituta”;
• Ezequiel 16:7-8 – “E eu a fiz crescer como uma planta no campo.
Você cresceu e se desenvolveu e se tornou a mais linda das joias.
Seus seios se formaram e seu cabelo cresceu, mas você ainda estava
totalmente nua. Mais tarde, quando passei de novo por perto, olhei
para você e vi que já tinha idade suficiente para amar; então estendi
a minha capa sobre você e cobri a sua nudez. Fiz um juramento e
estabeleci uma aliança com você, palavra do Soberano, o Senhor, e
você se tornou minha”;
• Oséias 2:2 – “Repreendam sua mãe, repreendam-na, pois ela não é
minha mulher, e eu não sou seu marido. Que ela retire do rosto o sinal
de adúltera e do meio dos seios a infidelidade”.

Ainda assim, é em Jesus que vemos um novo colorido e algumas


expressões que ampliam este entendimento. Desmistificando a ideia de
um juiz distante ou de um de um Deus apático, Jesus desenvolve a ideia
do Deus Javé como um Pai que ama profundamente os seus filhos, que
sofre por eles e que sempre os recebe de braços abertos para estarem
junto de si, em família.

• Mateus 6:9 – “Vocês, orem assim: ‘Pai nosso, que estás nos céus!
Santificado seja o teu nome’”;

• Marcos 14:36 – “E dizia: ‘Aba, Pai, tudo te é possível. Afasta de mim


este cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas sim o que tu
quereres’”;
| Teologia Sistemática III | FTSA | 113
• Lucas 15:11ss – “Jesus continuou: ‘Um homem tinha dois filhos. O
mais novo disse ao seu pai: ‘Pai, quero a minha parte da herança’.
Assim, ele repartiu sua propriedade entre eles [...]’”.

É baseado nesta concepção que o apóstolo Paulo desenvolve o tema


da adoção. Vale esclarecer que a ideia de adoção surge por causa da
referência a Jesus como o único filho gerado — unigênito — por Deus.
Partindo-se deste princípio, todos os outros filhos são inseridos em sua
família pela adoção. A salvação, assim, consiste em Deus trazer para a
sua família, e seu convívio, todos os seres humanos, alvos do seu amor.
• Romanos 8:15,23 – “Pois vocês não receberam um espírito que os
escravize para novamente temerem, mas receberam o Espírito que
os torna filhos por adoção, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai’
[...] E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos
do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa
adoção como filhos, a redenção do nosso corpo”;

• Gálatas 4:5-6 – “[...] a fim de redimir os que estavam sob a Lei, para


que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vocês são filhos,
Deus enviou o Espírito de seu Filho ao coração de vocês, e ele clama:
“Aba, Pai’”;

• Efésios 1:5 – “[...] Em amor nos predestinou para sermos adotados


como filhos, por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da
sua vontade”.

Devemos lembrar que a adoção traz alguns benefícios implícitos que


são a legitimidade da filiação, não sendo, aos olhos da lei, permitida
a distinção entre filhos naturais e adotados no que diz respeito aos
direitos e à herança. Desta forma, somos beneficiados com tudo o que
é destinado a Jesus, incluindo a ressurreição e a vida eterna, ou seja, a
nossa salvação.

114 | Teologia Sistemática III | FTSA


Exercício de aplicação - 14
Pensando na salvação como adoção, qual das situações abaixo
parece colaborar para um entendimento e prática desta doutrina
na igreja?
a) Convidar pessoas para cultos evangelísticos para que
entreguem suas vidas a Cristo;
b. Indicar às pessoas a necessidade de se submeterem a sessões
de libertação de maldições hereditárias, para que deixem os
problemas de familiares antigos e ingressem na família de Deus;
c) Aproximar-se das pessoas buscando estabelecer
relacionamentos saudáveis, de amizade e cuidado e, assim,
demonstrar o amor de Cristo presente em nossas vidas;
d) Adotar legalmente todas as pessoas que evangelizarmos;
e. Estabelecer orfanatos como parte dos ministérios das igrejas
para atender as crianças sem famílias.

3.2.5. Salvação como reconciliação


Muito próximo do conceito anterior, a ideia de reconciliação, embora tendo
algum componente relativo à propiciação — fazer as pazes —, não carrega
os aspectos negativos referentes aos sacrifícios. Uma vez realizado o
sacrifício vicário final por Jesus Cristo, a propiciação recebe a ênfase
apenas da reconciliação, ou seja, da restauração da relação com Deus.

Novamente, é o apóstolo Paulo quem elabora este conceito relacionando-o


com a missão da igreja ao afirmar que esta é a tarefa que Deus nos
confia. A mensagem da igreja consiste em fazer conhecido ao mundo
que Deus quer ser nosso amigo, quer se relacionar conosco, bastando
que façamos as pazes com ele pela mediação de um ato que já ocorreu
em Jesus Cristo, cabendo a nós apenas o ato de fé.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 115
A expressão em grego katallasso é a mesma que dá origem a ideia de um
catalizador, algo ou alguém que tem a função de colocar vários elementos
distintos trabalhando para uma mesma finalidade.
• Romanos 5:10 – “Se quando éramos inimigos de Deus fomos
reconciliados com ele mediante a morte de seu Filho, quanto mais
agora, tendo sido reconciliados, seremos salvos por sua vida!”;
• 2 Coríntios 5:18-19 – “Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou
consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da
reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava reconciliando
consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos homens, e
nos confiou a mensagem da reconciliação”;
• Efésios 2:14-16 – “Pois ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um
e destruiu a barreira, o muro de inimizade, anulando em seu corpo
a Lei dos mandamentos expressa em ordenanças. O objetivo dele
era criar em si mesmo, dos dois, um novo homem, fazendo a paz, e
reconciliar com Deus os dois em um corpo, por meio da cruz, pela
qual ele destruiu a inimizade”.

Estar reconciliado com Deus, ou seja, em relacionamento de amizade


com ele pode ser visto como a reversão da queda, em que as relações
são cortadas ou afetadas, e, portanto, é entendido como salvação. A
diferença mais significativa é a perspectiva atrativa desta mensagem que
prioriza o aspecto positivo, focado no relacionamento.

Exercício de fixação - 15
Qual das afirmações abaixo melhor representa a proximidade entre
os conceitos de adoção e reconciliação na teologia da salvação
apresentada no Novo Testamento?
a) Ambas são construídas a partir do mesmo conceito
veterotestamentário de redenção;
b) Ambas se referem a Jesus por meio do seu sacrifício expiatório;
c) Ambas enfatizam, desde uma perspectiva mais positiva, a

116 | Teologia Sistemática III | FTSA


questão do relacionamento com Deus;
d) Ambas substituem o conceito de redenção do Antigo
testamento;
e) Elas não possuem qualquer proximidade.

Vimos nesta unidade como o conceito de salvação é construído por


diversos temas desenvolvidos ao longo das Escrituras. A salvação não
é, especificamente, nenhum deles. Ao contrário, é apenas na união
das ideias apresentadas que podemos ter alguma noção daquilo que
representa o efeito da queda no ser humano desde a sua criação. A
salvação ou resgate para um relacionamento pleno com Deus é o objetivo
da revelação divina a nós. É porque Deus é o primeiro interessado em nos
resgatar que ele se revela e procura nos mostrar tudo o que envolve este
complexo caminho de volta.

Pensando em uma perspectiva mais missiológica, devemos refletir como


igreja como podemos transmitir este profundo conceito de salvação, de
forma a englobar todos os temas estudados, sem priorizar nem omitir
qualquer deles, visando as pessoas que nos cercam, na sociedade e no
contexto presente.

Referências bibliográficas
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WRIGHT, Christopher J. H. Old Testament ethics for the people of God.
Downers Groove, IL: InterVarsity, 2004.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 117


UNIDADE 4 – Temas e estruturas da salvação
Até aqui, nossa atenção esteve voltada para estabelecer uma
fundamentação bíblica da teologia da salvação perpassando os vários
temas que atravessaram a história do povo de Israel, no Antigo Testamento,
e alguns outros que encontramos no Novo. Contudo, o centro da mensagem
cristã sobre a salvação, talvez por causa do peso da teologia paulina,
está na pessoa de Jesus Cristo, mais especificamente, na sua morte e
ressurreição. Talvez até mesmo o aspecto da sua vida, a maneira com
viveu e que serve de modelo para humanidade, fique em segundo plano, na
forma como a igreja elabora a teologia da salvação. Via de regra, a salvação
é percebida mais como uma consequência da morte de Cristo do que de
sua vida. Em minha análise, entendo que esta abordagem é restritiva, pois,
ao estudarmos a construção histórica da soteriologia vemos que ela é
muito mais ampla, envolvendo outros elementos da vida cotidiana que não
apenas aqueles que se concentram na perspectiva da expiação e redenção
expressas na morte vicária de Cristo.

Independente disso, é inevitável que abordemos o tema da morte de Cristo.


De maneira genérica, nos referimos à cruz como símbolo e conteúdo do
significado de sua morte para o estudo da salvação. Será em torno dela
que tentaremos relacionar os outros conceitos já estudados bem como
novas percepções particulares do contexto em que ela aparece.

4.1. A cruz de cristo


Como introdução ao desenvolvimento do tema, gostaria de fazer
uma breve recordação, em forma de síntese, analisando o percurso
da criação e queda, procurando inserir a cruz em meio a este pano de
fundo teológico. Primeiro, pensemos na criação como um projeto de
amor divino que convida o ser humano para um relacionamento livre
com o criador, envolvendo-o em um ambiente de harmonia, plenitude e
realização existencial. No exercício desta liberdade responsável, vemos
o ser humano optando por uma tentativa de vida autônoma, como que
tentando ocupar uma posição que não lhe pertence e nem lhe é possível:
118 | Teologia Sistemática III | FTSA
o lugar de Deus. Como consequência, o que ele encontra é uma existência
inferiorizada, confusa e conflitiva, que lhe causa dor, sofrimento e morte.
A morte, tida como consequência da queda e como o conjunto de efeitos
negativos que afetam todas as relações, tem a sua máxima expressão
no fim da vida, ou seja, a morte física. Ela representa também o
apodrecimento, a progressiva deterioração da presente criação humana,
cujo fim é certo. Sendo assim, a morte significa o resultado ou a solução
para a existência que se desenvolve no pecado e que caminha para longe
do alvo divino. Diante deste quadro, a cruz surge como uma grande
surpresa que possibilita a reversão da até então inevitável e inescapável
condição humana, destinada à morte, e todos os seus efeitos nefastos
para a presente existência. Este é o mistério que passamos a investigar.

4.1.1. A cruz como instrumento de morte


A abordagem que quero dar a este tema é principalmente simbólica. Me
interessa apontar quais as possíveis representações que a cruz pode nos
trazer para a construção da soteriologia neotestamentária. Para isto, creio
ser importante esclarecer alguns aspectos históricos sobre a cruz ou sobre
a crucificação no contexto em que ela ocorre na vida de Jesus Cristo.

A palavra grega para cruz é stauros e significa, originalmente, estaca,


um pedaço de madeira vertical semelhante aos usados para construir
uma cerca. Em seu primeiro uso as pessoas eram empaladas por
essa estaca e apenas mais tarde na história ela passou a ter uma
travessa perpendicular onde os executados eram presos por grandes
pregos metálicos. Johannes Schneider explica a origem da cruz como
instrumento de morte e sua utilização por diversos povos:

Parece que os persas inventaram ou primeiro usaram


esse modo de execução. Provavelmente, eles fizeram
isso para não macular a terra, que era consagrada
a Ormuzd, pelo corpo da pessoa executada. Mais
tarde a cruz foi usada por Alexandre, o Grande, os
príncipes Diadochoi e especialmente os cartagenos,
| Teologia Sistemática III | FTSA | 119
Polyb., 1, 24. Desses, veio para os romanos, que
chamavam o instrumento usado de crux. Na Grécia
essa punição era restrita aos escravos [...] ela jamais
era considerada para os gregos livres [...] apenas os
bárbaros crucificavam homens livres [...] Em Roma já
era um modo de execução de escravos mesmo nos
dias da república. No período imperial, era vista como
servile suppliciumm, mas era também usada com
estrangeiros que não eram cidadãos romanos [...] Nas
províncias romanas a penalidade da crucificação era
um dos meios mais fortes de se manter a ordem e a
segurança. Governadores impunham essa punição servil
especialmente sobre os lutadores pela liberdade que
tentavam quebrar o domínio romano [...] A crucificação
era vista como uma das piores formas de execução.
Cícero a chama de pena capital suprema, a mais
dolorosa, assustadora e feia [...] A pessoa condenada
era exposta à zombaria. Às vezes, era despida e suas
roupas divididas entre os executores, mas não era uma
regra comum. A crucificação acontecia publicamente,
nas ruas ou em lugares elevados. Usualmente, o corpo
era deixado apodrecer na cruz. Mas, ele podia ser
entregue para sepultamento. Os sofrimentos físicos e
mentais que essa morte lenta na cruz envolvia eram
inimagináveis (1971, pp. 573-574).

Com a explicação de Schneider entendemos que a crucificação, como


um meio cruel de aplicação da sentença de morte, era um instrumento
usado pelo estado romano para demonstrar a sua força e controle sobre
a população que estava sob o seu domínio imperial. O historiador judeu
Flávio Josefo registra uma revolta ocorrida na Judéia após a morte de
Herodes o Grande, no ano 4 d.C., que foi debelada por Varus, o presidente
da Síria, com a crucificação de milhares de pessoas: “Diante disso,
Varus enviou parte de seu exército para o campo, para procurar aqueles

120 | Teologia Sistemática III | FTSA


que haviam sido os autores da revolta; e quando foram descobertos,
ele puniu alguns que eram mais culpados, e deixou ir alguns: agora, o
número daqueles que foram crucificados nessa investida foram dois
mil” (1987, p. 471). Não podemos precisar a informação nem saber se
há exagero na mesma, mas impressiona a ação de força exercida pelo
governo romano na crucificação de um enorme número de pessoas. Este
fato histórico se passa muito próximo da data estimada do nascimento
de Jesus, provavelmente no ano 3 d.C., o que, certamente, deixou marcas
no povo judeu e contribuiu para a percepção da execução de Cristo quase
trinta anos depois.

Esse tipo de pena de morte era aplicado a escravos, traidores do império e


criminosos comuns que não fossem romanos. Lembremos que Jesus foi
crucificado entre dois ladrões (Mateus 27:38). A crucificação era também
um espetáculo público de horror que atestava a maldade humana com
requintes de tortura e escárnio.

4.1.2. A cruz como a morte de Deus


Quem foi executado na cruz? Esta pergunta pode parecer estranho para
um cristão, mas ela é bastante debatida na teologia. Jesus Cristo é o
Deus-encarnado e embora esvaziado de sua divindade — kenosis —, ou
seja, totalmente humano, continua sendo a expressão exata de Deus
(Hebreus 1:3), seu filho unigênito e principal representante sobre a
terra. O reconhecimento de Jesus como o Messias judaico era de suma
importância para entender a sua vida, ministério e mensagem. Por isso,
a sua pergunta aos discípulos: “Quem o povo diz que eu sou?” (Marcos
8:27). Também é em torno desse reconhecimento que giram os conteúdos
das primeiras mensagens de seus discípulos e apóstolos registradas no
livro de Atos (2:36; 3:20; 7:52; 8:5; 9:20, etc.).

Poucos foram os que reconheceram em Jesus a pessoa do Filho de


Deus. Mesmo os discípulos que andaram perto dele por alguns anos
tiveram dúvidas. E por que isso ocorreu? Podemos arriscar dizer que
esta dificuldade em reconhecer Jesus como o Cristo é uma deficiência
| Teologia Sistemática III | FTSA | 121
geral da humanidade. Várias são as razões para que isto ocorra. Para
muitos a questão é a incapacidade em conseguir associar os conceitos
que temos de Deus à pessoa de Jesus. Para outros, é a frustração de
uma expectativa criada, também em função de um entendimento prévio
de quem ou como Deus é. Há ainda aqueles que simplesmente não se
importam com a iniciativa divina de aproximação do ser humano por
meio da encarnação e identificação com ele. De certa forma, a rejeição
a Jesus é a mesma rejeição a Deus que se encontra no pecado de Adão,
vista como uma afirmação da autonomia humana e uma tentativa de
existência independente do criador.

Pensando assim, a cruz pode ser vista como um símbolo da rejeição


humana a Deus, uma tentativa de matá-lo ou de afastá-lo de qualquer
possibilidade de relacionamento. Ao lermos os relatos da crucificação
podemos interpretar as ações dos envolvidos como expressões desta
tentativa. Uma primeira perspectiva que temos é exatamente a do estado
romano, responsável último pela aplicação da sentença de morte.
Simbolicamente, podemos dizer que as estruturas políticas humanas têm
a forte tendência de procurar matar a Deus. Isto porque elas representam
a maior expressão de domínio e poder entre os seres humanos. Elas até
mesmo, se assim podemos pensar, tentam substituir o papel de Deus
no sustento da vida ao criarem sistemas políticos, sociais e econômicos
com este fim. Como repetições históricas da Torre de Babel, os poderes
políticos procuram usurpar o lugar de Deus, e na busca por permanecerem
neste posto, quando têm a chance, tentam matá-lo. O diálogo de Jesus
com Pôncio Pilatos é bastante interessante para percebermos este
mecanismo de arrogância humana tipificado pelos governos: “‘Você se
nega a falar comigo?’, disse Pilatos. ‘Não sabe que eu tenho autoridade
para libertá-lo e para crucificá-lo?’. Jesus respondeu: ‘Não terias nenhuma
autoridade sobre mim se esta não te fosse dada de cima. Por isso, aquele
que me entregou a ti é culpado de um pecado maior’” (João 19:10-11).

Outro grande representante do poder é a religião que, muitas vezes,


aparece atrelada ao poder político. Ambos tentam usurpar o lugar
122 | Teologia Sistemática III | FTSA
de Deus na dominação sobre as pessoas. É curioso notar que tanto o
poder político quanto o poder religioso existem como potestades, ou
seja, como se fossem entidades vivas e independentes do próprio ser
humano, embora ele seja o responsável por cria-los. Uma vez que as
estruturas são criadas elas parecem ganhar vida própria e perpetuam-
se nas sociedades na alternância e sucessão de líderes que ocupam
os lugares mais altos. Nos eventos da crucificação de Cristo o poder
religioso aparenta ter o mais relevante papel. A crucificação de Jesus é
apenas o ápice da perseguição empreendida pelos líderes religiosos —
fariseus, escribas, saduceus, membros do sinédrio e sumo-sacerdotes
— ao longo de seu ministério. Após submetê-lo a várias armadilhas
teológicas e religiosas com a intenção de acusá-lo de alguma falta e
poderem condená-lo segundo as leis religiosas, sem sucesso, finalmente
conseguem elaborar um plano que funciona. O teatro estabelecido para
legitimar essa ação conta com a colaboração de muitos fatores: um
traidor, testemunhas falsas, julgamento falso, manipulação da opinião
popular e conivência do poder político. O resultado é a religião que, em
nome de Deus, mata o próprio Deus.

Também o povo participa na crucificação de Cristo. Ele pode ser


interpretado como a grande massa humana, sempre volúvel e suscetível
às muitas vozes que facilmente conseguem arrastá-la para um lado
ou para outro por falta de fundamentos e convicções. O mesmo povo
que aclama Jesus nas ruas dizendo “Bendito é o que vem em nome do
Senhor!” (Mateus 21:9), diante dos poderosos prefere “Barrabás” e pede
a sua morte: “Crucifica-o!” (Mateus 27:21-22). Essa é a humanidade que
mesmo desejando a morte Deus, continua sendo alvo da sua misericórdia:
“Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo” (Lucas 23:34).

Talvez o pior desejo de morte direcionado a Deus seja aquele que


venha dos mais próximos. Na pessoa de Judas, alguém que era parte
do pequeno círculo dos doze, vemos a representação do absurdo da
rejeição vinda daqueles que são companheiros de caminhada. Este ato
nos faz relembrar da narrativa sobre Adão e Eva. Judas contribui para
a morte de Deus, traindo de uma maneira surpreendente, incluindo até
| Teologia Sistemática III | FTSA | 123
mesmo o gesto de um beijo. No entanto, não muito diferente, Pedro também
nega qualquer associação com Jesus quando confrontado e, na sua omissão,
empurra ainda mais Jesus para a cruz. Não apenas Pedro, mas todos os
outros discípulos desaparecem do cenário da crucificação, com exceção de
João, da mãe de Jesus e algumas outras mulheres. Na ausência de qualquer
manifestação mais incisiva de tentativa de impedimento da execução de
Cristo, podemos interpretar que todos consentem com a morte Deus na cruz.

Exercício de fixação - 16
Baseado na discussão apresentada na disciplina, responda: em
que sentido a cruz pode significar a morte de Deus?
a) Como simbologia do que o ser humano faz ao rejeitar a Deus.
b) Como prova histórica da morte do Deus encarnado.
c) Como representação da mordida da serpente no calcanhar do
descendente da mulher, de acordo com o texto de Gênesis;
d) Como a real morte de Deus, afinal Jesus é Deus e morreu na
cruz;
e) Deus não pode morrer, então, a cruz não pode significar a
morte de Deus.

4.1.3. A cruz como a morte do ser humano


Podemos enxergar a cruz como uma moeda em que de um lado temos
a morte de Deus e de outro a morte do ser humano. Ambos os lados
compõem este complexo mistério, contudo, considero ser mais fácil
apreender a interpretação da cruz como a morte de Deus do que entendê-
la como a morte do ser humano. Como vimos, a cruz pode significar a
rejeição humana à condição de criatura e sua tentativa de usurpar o
lugar divino. Por outro lado, Jesus ao morrer, também morre como um
representante de toda a humanidade.
124 | Teologia Sistemática III | FTSA
É claro que conhecemos todos os textos que falam da morte redentora,
vicária, substitutiva de Cristo, mas eles aparecem como elaborações
teológicas sem grandes paralelos bíblicos além da formulação paulina.
Mesmo os evangelhos não indicam como se dá essa associação entre
a morte de Cristo e a morte destinada aos seres humanos a menos de
algumas referências à teologia do Antigo Testamento. Quer dizer, elas não
esclarecem como é possível que a morte de Cristo possa ser aplicada,
transferida ou absorvida pelos seres humanos como meio de salvação.
Quanto da cruz é transferido de forma transcendente? Como se dá essa
transferência? Quanto da cruz é mágico? Como repetimos o processo?
Quanto da cruz é simbólico? Como aplicamos essa simbologia à nossa
existência? Quanto da cruz carrega os outros conceitos de salvação
revelados nas Escrituras?

Mesmo não conseguindo responder estas perguntas de imediato, creio


que podemos concordar com o princípio bíblico de que a morte de Cristo
se aplica ao ser humano por meio da fé. A fé, por sua vez, é a convicção
sobre o que não se vê, mas se espera, e é ação prática resultante desta
esperança. Emil Brunner faz um esforço para explicar a associação da
cruz a cinco concepções veterotestamentárias (1952, pp. 283-286), que
apresento de forma resumida:

a) Culto sacrificial – o sacrifício era visto como um meio de expiação


da injúria praticada pelo ser humano contra a santidade divina. Ele
continha a mensagem de que o pecado é uma realidade que só pode
ser removida por um evento real, de que algo tem que acontecer para
restabelecer a comunhão quebrada pelo pecado. Como o sangue
derramado nos sacrifícios era de animais, a igreja percebeu que a
verdadeira expiação humana deveria se dar pelo sangue de Cristo
(Hebreus 9:26);

b) Punição penal – Baseado no texto de Isaías 53, percebe-se que


a punição não acontece no âmbito do culto e sim no âmbito da lei
pública. O pecado é a quebra da lei, sendo passível de punição, cuja
| Teologia Sistemática III | FTSA | 125
expressão máxima é a morte. De forma substitutiva, o Servo Sofredor
voluntariamente resolve tomar sobre si essa punição e morte. Ele
recebe o castigo e a maldição resultante da pena pelo pecado;

c) Dívida contratual – Ainda relacionada à lei, porém não sob o


aspecto penal, mas civil, que se refere a uma dívida que precisa ser
paga ou resgatada. A punição penal parece ser aplicada ao todo do
pecado, enquanto a perspectiva da dívida parece se referir às práticas
de iniquidade, às expressões cotidianas do pecado, aos pequenos
pecados provenientes do grande pecado. Mais uma vez, o custo desta
dívida é pago com a vida; de uma vez por todas;

d) Redenção potencial – A ideia é a da disputa entre poderes, entre


Deus e os poderes hostis da escuridão, que escravizam o ser humano.
Deus, por meio de Jesus, liberta o ser humano das trevas e os
transporta para a luz, para “o reino do Filho do seu amor”.

e) Novo sacrifício pascal – O tema explorado aqui é o de uma


nova aliança no sangue de Cristo, o verdadeiro cordeiro pascal. Ele
estabelece uma nova comunhão com Deus.

Brunner segue seu raciocínio dizendo:

Todas essas concepções, bem diferentes entre si, estão


extensamente inter-relacionadas no Novo Testamento;
elas se tornaram misturadas e, portanto, a despeito de
sua grande variedade e diferença de conteúdo, formam
um todo concreto; elas estão tão inter-relacionadas em
nosso pensamento cristão que achamos difícil separa-
las de suas origens e distingui-las umas das outras [...]
Antes de tudo, porém, devemos notar que todas essas
concepções estão tentando expressar uma verdade.
Elas são todas ideias a posteriori [construídas depois
dos eventos]; seu único objetivo é esclarecer, à luz da fé,
o fato histórico da Cruz de Jesus Cristo, que, à primeira

126 | Teologia Sistemática III | FTSA


vista, parece ser algo completamente irracional e
obscuro. Em seus diferentes modos, elas todas querem
dizer duas coisas: devedores do Pecado, a situação
humana em relação a Deus é perigosa, sinistra e
desastrosa. Mas o ser humano não pode alterar essa
situação. Apenas Deus pode fazer isso; e Ele fez isso
em Jesus Cristo, pela Sua morte na Cruz (1952, p. 286)

Esta breve síntese de Brunner nos auxilia a juntar os conceitos do Antigo


Testamento ao evento da cruz, no entanto, permanece a questão de
como a obra de Cristo é aplicada ao ser humano, além da confissão de
fé. Mas, o próprio Brunner nos indica uma possibilidade de interpretação
de como nos apropriamos da morte de Cristo:

Porque o ser humano é rebelde — com um sentimento


de orgulho ferido — contra o desejo amoroso de Deus
de trazê-lo para casa com Ele, Jesus sabia que Sua
vida deveria terminar em catástrofe. Ele sabia que Sua
vida, que era uma via “descendente” desde o início,
terminaria num abismo final de desolação, e nesse
mesmo ato encontraria seu cumprimento completo.
Ele sabia — e disse isso a Seus discípulos, como um
segredo — que o caminho de Deus, que Ele deveria
seguir, é o Caminho da Cruz [Mateus 16:21-28]. E às
vésperas da morte, Ele interpretou o significado de
Sua morte a Seus discípulos; Ele disse a eles que esse
evento que, do ponto de vista humano, era uma tragédia
desesperadora, era o real significado e conclusão de
Sua vida-obra, o estabelecimento de uma Nova Aliança
[Marcos 14:24]. Aqueles que querem eliminar a profecia
da Paixão, e o estabelecimento da Aliança na Ceia do
Senhor, como não-histórico, da vida de Jesus, destroem
toda a sua unidade interna. Toda a vida histórica de
Jesus é o Caminho para a Cruz (1952, p. 282)

| Teologia Sistemática III | FTSA | 127


A cruz de Cristo não é uma questão de fé passiva e, sim, de fé ativa. É
crer que ela é o único caminho para a salvação humana deste estado
pecaminoso em que se encontra. Como um caminho, Jesus demonstra
como ele deve ser seguido e nos convida: “Se alguém quiser acompanhar-
me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser
salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa,
a encontrará” (Mt 16:24-25). O paradoxo existencial do convite de Jesus é
que o atual modo de vida humano é impossível de ser mantido. Ninguém
pode ser salvo sem que haja uma intencional rejeição deste modo de vida
e um ato voluntário de morte. O horroroso espetáculo da cruz demonstra
a profundidade com que penetrou o pecado na vida humana. É com
aquela violência que o ser humano rejeita a Deus e deseja colocar-se no
seu lugar. A única maneira de reverter este quadro se dá pelo exemplo
de amor, em que o próprio Deus assume sobre si a morte humana e
indica um caminho para a salvação. A aplicação da salvação, pela cruz
de Cristo, se dá crendo que este é o único caminho, mas principalmente,
assumindo existencialmente este caminho no dia a dia.

A garantia da salvação, contudo, não está na cruz com o seu crucificado.


Ela está na cruz vazia. É a ressureição para uma nova vida, para uma nova
aliança, para uma nova criação que nos garante a vitória sobre o pecado
e a morte. Mas a ressurreição só pode ocorrer se, primeiro, formos
crucificados, como Cristo e com Cristo. Como disse o apóstolo Paulo:

Se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo


ressuscitou; e, se Cristo não ressuscitou, é inútil a nossa
pregação, como também é inútil a fé que vocês têm [...]
Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo
ele as primícias entre aqueles que dormiram. Visto que
a morte veio por meio de um só homem, também a
ressurreição dos mortos veio por meio de um só homem.
Pois, da mesma forma que em Adão todos morrem, em
Cristo todos serão vivificados (1 Cr 15:13-22).

A cruz de Cristo não pode ser ignorada na formulação da teologia da


salvação, contudo, ela carrega uma série de significados que parece nos
128 | Teologia Sistemática III | FTSA
deixar atônitos. A complexidade da existência humana, a situação em
que nos encontramos sob o pecado, a fragilidade dos relacionamentos
que nos definem, e tantas outras coisas que perpassam a nossa mente,
são fatores que informam este conteúdo. Apropriar-se, portanto, pela fé,
requer a mesma profundidade de envolvimento e entendimento.

4.2. Sistemas soteriológicos


Como já havia alertado nas primeiras discussões sobre a área de Teologia
Sistemática, minha opção não era a de seguir pelo caminho clássico da
dogmática, perpassando os diversos sistemas doutrinários, defendidos
por uma ou outra tradição. Optei por construir um conteúdo a partir da
Teologia Bíblica para que ele pudesse ser refletido, por cada um, com
a devida aplicação particular, em função das diversas experiências de
tradição ou denominação. No entanto, a Soteriologia talvez seja a área
com mais proliferação de sistemas e com maior influência na teologia
prática das igrejas. Por esta razão, resolvi fazer uma breve apresentação,
com intuito informativo, dos sistemas clássicos mais importantes e
influentes na história da teologia.

Deixo claro que ao apresentar os sistemas, não pretendo advogar em


favor de nenhum deles. Ao contrário, penso que os sistemas, em geral,
são falhos por tentarem resolver todos os mistérios, produzindo todas
as respostas, partindo do pressuposto da objetividade moderna. Não
por isso, os sistemas são de todo desprezíveis. Eles foram produzidos
por teólogos sérios que pretendiam dar respostas sinceras às nossas
perguntas teológicas. Sendo assim, todos os sistemas, de alguma
forma, comunicam conceitos que encontram fundamentação bíblica
e certa lógica argumentativa. Contudo, eles não me parecem capazes
de conseguir dar conta, cabalmente, daquilo que pretendem investigar.
Resta-nos, portanto, apreender o que é interessante e temperar o nosso
conhecimento com a revelação bíblica, visando construir uma teologia
saudável para as nossas realidades ministeriais.
| Teologia Sistemática III | FTSA | 129
4.2.1. O sistema do triunfo de Cristo
O sistema do triunfo de Cristo, conhecido como Christus victor, foi de
grande importância no início da igreja cristã, defendido por alguns pais
da igreja, sendo o principal deles Irineu. Sua ênfase está na ideia da vitória
de Cristo, conquistada na cruz, sobre o pecado, a morte e Satanás.

Na interpretação dos autores desta corrente, o ser humano estaria


corrompido, infectado pelo pecado e dominado pelas forças do mal. Para
resgatá-lo desta situação seria necessário o pagamento de um resgate,
que na opinião de Orígenes, não poderia ser pago a Deus, pois não é
ele quem o aprisiona, então, ele seria pago a Satanás. Esta ideia foi um
pouco mais desenvolvida por Gregório o Grande que usou a ilustração de
Cristo como uma isca utilizada em um anzol para pegar, de surpresa, a
grande serpente do mar, o diabo.

A concepção do Cristo vitorioso foi difundida durante a Idade Média,


com bastante apelo popular, como alguém que combatia os tormentos
do inferno, baseada no texto de 1 Pedro 3:19. Após o iluminismo, esta
corrente perdeu força sendo retomada pelo teólogo sueco Gustaf Aulén
no século XX. Fortemente dualista, a abordagem de Aulén, no entanto,
enfatizava a questão moral na disputa entre o bem e o mal. Seus críticos
questionam uma interpretação equivocada da expiação. Mais que isto,
eles questionam a necessidade da morte e ressureição de Cristo para
alcançar esta finalidade, perguntando por que Deus não utilizou outro
meio. Se a questão defendida era o aprisionamento do ser humano
por Satanás, qual seria a necessidade da morte Cristo para promover
a liberdade. Outra discussão girava em torno da origem dos direitos
adquiridos pelo diabo sobre as criaturas. Quando e onde haveria surgido
esta condição atribuída a Satanás? Quais os fundamentos bíblicos para
esta afirmação? Para Aulén, a resposta seria vê-lo não como alguém
que tem direitos sobre as criaturas, mas como alguém que executa o
juízo aplicando a morte como castigo do pecado. Ainda assim, também
não encontramos base bíblica para esta alternativa. Não havendo uma
resposta satisfatória, consideramos que este é um sistema falho.
130 | Teologia Sistemática III | FTSA
Gerhard Forde faz a seguinte análise do sistema proposto por Gustaf Aulén:
[...] temos que avaliar a importância do motivo da vitória
para a dogmática. Ele deve ser visto no contexto. Surgiu
e ganhou crédito numa era em que antigos otimismos
e estruturas estavam sendo destruídos por sombrias
forças tirânicas. Seu revivescimento na época da
Reforma e em nossos dias também pode ser visto
como protesto contra qualquer racionalização legalista
que simplifica demasiadamente o problema humano
e termina com um Deus que é ou um guarda-livros
vingativo ou um amante excessivamente indulgente.
As imagens dramáticas interpõem uma nota de conflito
desesperado que é mais fiel à experiência real. Há
perigo e escuridão, e Deus está envolvido na escuridão
e não deixa de ser atingido por ela (1995, p. 59).

Exercício de fixação - 17
Sobre o sistema soteriológico do triunfo de Cristo é correto afirmar que:
a) A salvação é entendida como a morte de Cristo funcionando
como um resgate pago a Deus para a libertação dos seres humanos;
b) A salvação é entendida como a morte de Cristo funcionando
como um resgate pago para a libertação dos seres humanos das
garras do Diabo;
c) A salvação é entendida como a ressurreição de Cristo funcionando
como uma prova de sua vitória sobre o pecado humano;
d) A salvação é entendida como a morte de Cristo funcionando
como a vitória sobre os poderes políticos, já que foi Pôncio Pilatos
quem tentou matá-lo, mas ele ressuscitou;
e) A salvação é entendida como a ressurreição funcionando como
a vitória sobre a morte do corpo físico.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 131


4.2.2. O sistema da satisfação vicária
Este sistema foi inicialmente proposto por Anselmo de Cantuária no
século XI e se tornou o mais conhecido desde a escolástica até os dias
de hoje por causa de sua adoção pelas principais correntes reformadas
e católicas. As várias opções da soteriologia até Anselmo não davam
conta do sacrifício de Cristo. Partindo da pergunta sobre a necessidade
histórica da encarnação de Jesus e sua morte — Cur deus homo, por que
o Deus-homem? — Anselmo seguiu atrás das respostas. Recorremos
mais uma vez a Forde para explicar o sistema de Anselmo:

A criatura racional deve a Deus, o Criador, uma resposta


total. O pecado é uma recusa a dar essa resposta e,
assim, uma desonra de Deus, uma ruptura da ordem
da criação. Além disso, visto que se deve obediência
total, um simples retorno à obediência não será capaz
de pagar pelos pecados passados. Só se pode efetuar
a restituição à honra divina devolvendo mais do que a
obediência total devida. A situação parece irremediável.

Mas e Deus? Não pode simplesmente perdoar? Se


assim, fosse, não haveria a necessidade do Deus-
homem. Em consequência, Anselmo insiste que não
é possível ou apropriado que Deus simplesmente
perdoe. Tal misericórdia cancelaria a justiça e a ordem
por causa de sua arbitrariedade; o pecado e a justiça
estariam no mesmo nível, e o resultado seria o caos.
Para proteger a honra divina e a ordem criada, precisa-
se achar alguma outra saída.

Desta maneira, Anselmo chega a sua grande alternativa:


aut poena aut satisfactio (ou punição ou satisfação).
É claro que Deus poderia punir o pecador. A punição,
porém, significaria destruição, frustrando, assim, a
esperança de Deus para a criação — não restaria
132 | Teologia Sistemática III | FTSA
ninguém para substituir os anjos caídos no paraíso.
Assim, para que a criatura não seja punida, deve ser
prestada satisfação à honra divina. A criatura deve fazer
isto, mas não pode; Deus poderia fazê-lo, mas não deve;
em consequência, a única solução é o Deus-homem. Só
alguém que é sem pecado pode prestar uma satisfação
que seja mais do que o pecador é obrigado a dar. É uma
necessidade (1995, pp. 36-37).

O sistema de Anselmo é baseado no processual judiciário fazendo


com que a relação entre Deus e o ser humano seja uma questão legal
e não pessoal. Por isso mesmo é criticada, pois, se a morte de Cristo
é necessária ela não pode ser voluntária (João 10:17-18). Também não
há como comprovar a equivalência entre a morte de Cristo e a exigência
da honra de Deus manchada pelos pecados humanos. Isto sem contar
a dificuldade de sustentar a argumentação de que o valor da satisfação
pela morte de Cristo é maior que o necessário, por isto, Jesus e os
seres humanos são premiados com a ressurreição, com uma nova vida.
Todavia, a maior crítica recai sobre a consideração entre a justiça e a
misericórdia divina. No sistema de Anselmo, a misericórdia só pode
entrar em cena após a justiça ser satisfeita, ou seja, a graça e o amor de
Deus estão limitados por uma justiça penal — vale lembrar da parábola do
Filho Pródigo (Lc 15:11-32). Como alternativa e resposta ao sistema de
Anselmo, Aberlardo, seu contemporâneo, irá apresentar outro sistema.

4.2.3. O sistema da influência moral


Temos em Abelardo a primeira organização de pensamentos para este
sistema, que recebe influência de Agostinho, mas que é desenvolvido em
maior profundidade por teólogos do século XIX, principalmente Friedrich
Schleiermacher e Albrecht Ritschl. Para Abelardo, Cristo deveria ser visto
“como aquele que perseverou até a morte na instrução do caminho do
amor, vinculando-nos a si no caminho do amor de modo que também nós
nada temêssemos no exercício do amor” (Forde, 1995, p. 43). A vida de
| Teologia Sistemática III | FTSA | 133
Cristo torna-se um exemplo de vida moral que estabelece um caminho
a ser seguido sem o medo da morte. Desta forma, os méritos de Cristo
são transferidos a todos os que o seguem. Esta proposta de Abelardo
falha em não conseguir explicar como a morte de Cristo pode ser vista
como um ato de amor. Mais ainda, ela não dá conta do sacrifício vicário,
ou seja, esvazia a necessidade da morte. Se a questão é o seguimento
do modelo moral como caminho de salvação, a morte de Cristo fica sem
significado.

Schleiermacher, considerado precursor da teologia liberal, fruto do iluminismo


moderno, amplia este sistema ao introduzir a ideia do “estabelecimento de
uma nova comunidade histórica em que a influência redentora de Cristo
podia ser experimentada, elevando-nos acima do destino da vida meramente
natural e empírica” (idem ibidem). Para ele, a vida de Cristo não é um simples
exemplo, mas o estabelecimento de uma nova comunidade na história
humana. Assim, a redenção é vista como uma sociedade perfeita concreta,
esvaziando-se qualquer perspectiva escatológica de uma real ressurreição
ou de vida eterna. Por isto a crítica de que

A despeito da paixão de Schleiermacher por um Cristo


que se comunica a nós de maneira histórica, humana e
não-docética, é difícil não suspeitar da presença de pelo
menos um toque de docetismo. Jesus sofre uma morte
protegida. Ele manifesta o poder e a constância de sua
consciência de Deus até o fim, mantendo sua dignidade
divina. O grito de abandono na cruz não pode ser real.
A morte não estabelece nada novo; meramente ilustra
a verdade do sistema [...] Jesus “oferece” seu sacrifício
conhecendo o “sistema”. Ele morre sabendo por que, e
não precisa perguntar. O sistema o protege do terror e
desastre de sua própria morte. A cruz está coberta com
rosas (Forde, 1995, pp. 44-45).

134 | Teologia Sistemática III | FTSA


Embora o sistema ressalte importantes temas ele não consegue
explicar a cruz como alvo da ira divina direcionada ao pecado humano e
execução de sua justiça. Em nome do amor, talvez percebido de maneira
inconsequente, ignora-se o horror da cruz e o drama humano da constante
batalha contra a tentação e o pecado.

Diante dos vários sistemas estudados podemos perceber que todos


possuem pontos interessantes, com suas respectivas fundamentações
bíblicas. Todavia, também percebemos que todos os sistemas são
parciais ou incompletos na tarefa de conseguirem dar conta da teologia
da salvação. O possível desconforto que possamos vir a ter com a
inexistência de um sistema perfeito deve ser resolvido com a reflexão
sobre os paradigmas e as expectativas que rondam a nossa forma de
pensamento. A prioridade é que mantenhamos o foco na revelação
bíblica e a humildade para nos contentarmos com as nossas limitações.

Exercício de aplicação - 18
Considerando os apontamentos sobre os sistemas soteriológicos,
qual seria uma possível postura saudável para nossa leitura
teológica no século XXI?
a) Priorizar o sistema de Anselmo porque foi o apóstolo Paulo
nos ensinou
b) Retomar os sistemas que foram esquecidos ou deixados de
lado;
c) Enfatizar somente o sistema da satisfação vicária, porque é o
mais conhecido na tradição cristã;
d) Fazer uma análise crítica dos sistemas buscando sua
contextualização;
e) Desconsiderar todos os sistemas porque estão ultrapassados.

| Teologia Sistemática III | FTSA | 135


4.3. A amplitude da salvação
Ao concluirmos o estudo da teologia da salvação, é possível que muitas
questões ainda permaneçam abertas, inexploradas ou até mesmo
não respondidas. Esta situação ocorre porque priorizamos a Teologia
Bíblica em detrimento da Sistemática. Se para alguns isto pode causar
insegurança, para outros pode significar a possibilidade de mergulharmos
neste mistério descobrindo novas perspectivas, caminhos e ferramentas
que nos auxiliem na jornada cristã. Um interessante texto do livro de
Hebreus diz:
Por isso é preciso que prestemos maior atenção ao que
temos ouvido, para que jamais nos desviemos. Porque,
se a mensagem transmitida por anjos provou a sua
firmeza e toda transgressão e desobediência recebeu a
devida punição, como escaparemos, se negligenciarmos
tão grande salvação? Essa salvação, primeiramente
anunciada pelo Senhor, foi-nos confirmada pelos que
a ouviram. Deus também deu testemunho dela por
meio de sinais, maravilhas, diversos milagres e dons
do Espírito Santo distribuídos de acordo com a sua
vontade (Hb 2:1-4).

O texto nos ajuda a entender que estamos tratando de uma grande


salvação, algo maior que a nossa capacidade de entendimento.
Ainda assim, não podemos ignorá-la ou negligenciá-la, por isso, como
provocação final, gostaria de levantar outras discussões que surgem
como desdobramentos da teologia da salvação e que, talvez, tenham
sido pouco exploradas.

4.3.1. Salvação dos efeitos da queda


Quando tratamos do tema da queda mostramos um quadro dramático
resultante da má decisão tomada pelo ser humano. As consequências da
queda, conforme discutido, afetam a vida humana como um todo, desde
o seu aspecto mais interior até a relação com o ambiente em que ela

136 | Teologia Sistemática III | FTSA


acontece. Usando uma abordagem mais clássica, comentamos que a
queda afeta o relacionamento do ser humano com Deus, consigo mesmo,
com o próximo e com a natureza. Mais especificamente, vimos como
consequência o conflito interno que o ser humano passa a experimentar,
representado pelos sentimentos de vergonha e medo, fugindo e evitando
a relação com o Deus que lhe dá a vida. Também vimos como se rompe
a relação de companheirismo e cumplicidade com o próximo, surgindo
a dor, o sofrimento, a subjugação, a diminuição e a exploração do outro.
A maneira como o ser humano se relaciona com o ambiente, do qual
depende sua sobrevivência, também muda, estabelecendo-se uma
situação de resistência e esforço. Contudo, o pior elemento desse
cenário é a falência humana, a morte. Vemos, assim, um forte contraste
entre a harmonia e plenitude da criação e a confusão e fatalidade de uma
existência humana caída.

Embora a morte pareça ser a maior preocupação doutrinária na teologia da


salvação na igreja evangélica, associada a uma expectativa escatológica
de vida eterna, no dia a dia nossa preocupação está mais voltada para os
outros aspectos da queda. No dia a dia parece que a questão deste tipo
de perspectiva da salvação fica em segundo plano e a nossa atenção
fica concentrada nos livramentos e no socorro divino para as situações
de dificuldade concreta da vida. Enxergamos estas intervenções divinas
como favores ou benefícios da relação que estabelecemos com ele sem
que façamos uma associação delas com a teologia da salvação.

Levando em consideração tudo o que estudamos até aqui, que envolve


todas as perspectivas do Antigo e Novo Testamento sobre a salvação,
somos obrigados a percebê-la como uma ação bastante abrangente de
Deus na restauração humana. O Deus criador se preocupa com cada
pequeno detalhe da vida humana. Neste sentido, sua ação é sempre
salvífica, porque quer interferir em qualquer rumo que nos leve a um estado
aquém daquele que ele planejou. A salvação, portanto, não está restrita a
um evento de conversão momentânea de aceitação, pela fé, do sacrifício
vicário de Cristo. Também não se limita a uma questão de vida futura no
| Teologia Sistemática III | FTSA | 137
céu. A salvação bíblica é aquela promovida por Deus que visa restaurar
todos os relacionamentos quebrados e todas as mazelas da queda que
nos atingem hoje. Basta lembrar que se a soteriologia estivesse restrita
apenas a uma perspectiva futurista ou de expiação de pecado, não haveria
salvação para os que viveram no passado, antes de Jesus Cristo. Se a vida
futura é importante como um alvo, a vida cotidiana é tão importante quanto,
para conseguirmos dar significado à nossa existência. Se a perspectiva
escatológica apocalíptica do Novo Testamento nos ensina sobre um futuro
sem dor, a perspectiva concreta e relacional do Antigo nos ensina sobre
um Deus presente e interessado em nossas dores.

Há quem defenda o que se conhece como universalismo na teologia


da salvação, que seria a aplicação da salvação final, escatológica,
indistintamente, a todas as criaturas. A teologia evangélica, de maneira
geral, rejeita este ponto de vista. Temos que concordar que existem
muitos textos bíblicos que, explicitamente, falam sobre a separação entre
bons e maus, céu e inferno, salvação e perdição. Independente disso,
concordando ou não, a perspectiva do universalismo ressalta mais o amor
de Deus do que a sua ira. Quer dizer, a ira divina seria inexistente, no sentido
condenatório final. Podemos pensar que mesmo não concordando com
a sua argumentação bíblico-teológica, a proposta universalista deveria
nos levar a refletir sobre a nossa postura frente à salvação. Uma coisa
é não concordarmos com a argumentação, outra é, ainda assim, achá-la
interessante como sugestiva de um grande ato de amor divino.

O que quero alertar com esta provocação é que parece que muitas vezes
somos tomados por uma motivação negativa da salvação, enfatizando
mais os castigos, os esforços para alcançá-la e os riscos de perdê-la, do
que a iniciativa de Deus que enfatiza o amor: “Porque Deus tanto amou o
mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não
pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16). As melhores ilustrações
deste risco que corremos estão em algumas parábolas de Jesus (Mateus
20:1-6; 22:1-14; Lucas 15:11-32).
138 | Teologia Sistemática III | FTSA
Exercício de aplicação - 19
No texto da aula, fiz a seguinte proposição: “A salvação, portanto,
não está restrita a um evento de conversão momentânea de
aceitação, pela fé, do sacrifício vicário de Cristo. Também não se
limita a uma questão de vida futura no céu.”
Quais implicações esta proposição pode trazer à nossa vida?
Verifique as afirmativas abaixo e depois assinale a alternativa
correta.
I – Ao falarmos de salvação dos efeitos da queda, consideramos os
aspectos psicológicos e financeiros também.
II – Além de focarmos no futuro, também precisamos focar no
presente.
III – A salvação dos efeitos da queda é algo contínuo, ou seja, não
se restringe somente a um momento.
a) Apenas a afirmativa I está correta;
b) Apenas a afirmativa II está correta;
c) Apenas as afirmativas I e III estão corretas;
d) Apenas as afirmativas II e III estão corretas;
e) Todas as afirmativas estão corretas.

4.3.2. Salvação pessoal e coletiva


Um segundo aspecto pouco discutido na teologia da salvação é a questão
coletiva. Nossa cultura ocidental tem uma tendência de tratar a salvação
apenas como uma questão individual. Outras culturas têm uma percepção
diferente e que nos causa algum embaraço teológico. Por exemplo, não é
incomum ouvirmos histórias de missionários, que trabalham com povos
que vivem em sociedades tribais, sobre a conversão de uma tribo, como
um todo. Estrategicamente sabe-se que na comunicação do evangelho
| Teologia Sistemática III | FTSA | 139
naqueles tipos de contexto um dos principais alvos é alcançar o chefe
da tribo ou o líder religioso. A conversão de um deles pode significar a
conversão de toda a tribo. Isso soa bastante estranho para a maioria de
nós, no entanto, não está muito distante de alguns contextos bíblicos.
No tempo dos patriarcas, dada a sua configuração como um clã ou
tribo, o Deus do líder era o Deus da tribo. Esse fato ocorria sem qualquer
problema ou discussão. Não à toa, Deus foi conhecido como o Deus de
Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó. Ou ainda, “o Deus de Abraão,
o Deus de Naor, o Deus do pai deles” (Gênesis 31:53).

O que pode parecer estranho à nossa cultura aparece na cosmovisão


específica da cultura hebraica. Russell Shedd explora este tema falando
da solidariedade da raça humana:

Qualquer investigação dos fenômenos culturais que


constituem a história religiosa e sociológica do povo
de Israel assentará um marcante contraste entre o
pensamento semítico antigo e a mentalidade moderna.
Em oposição ao individualismo fragmentário do
Ocidente desde a Renascença, o pensamento do Israel
antigo pode ser caracterizado como sintético. Foi bem
descrito com a expressão “captar uma totalidade”. Os
fenômenos eram entendidos como parte de algum
relacionamento total. Essa perspectiva semítica é fácil
de ver na língua, nas leis, na adoração e no conceito de
homem. O indivíduo era visto como parte de um todo
psíquico como a nação ou outro grupo menor.

A expressão “personalidade coletiva” foi cunhada e


popularizada por H. W. Robinson para descrever esse
conceito de solidariedade humana [...] Desse modo,
a aplicação do termo a um grupo significa que uma
nação ou família, incluindo-se os membros passados,
presentes e futuros, pode operar como um único
indivíduo por intermédio de qualquer um dos membros

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julgado seu representante. Portanto, a comunidade era
vista como um elo interminável (1995, p. 16).

O estudo de Shedd é profundo. Na verdade, ele foi apresentado como


tese de doutorado na Universidade de Edimburgo e acabou sendo editado
como livro. Apenas como uma pista daquilo que ele investiga, e traz
como contribuição para a nossa reflexão, é o que vemos no conhecido
caso de Acã:
O caso de Acã, narrado no sétimo capítulo de Josué, é
o exemplo clássico da inclusão das crianças no castigo
do pai [...] As consequências diretas de seu ato foram a
derrota do exército israelita em Ai (7.5), o apedrejamento
de Acã, de sua família e de todos os seus bens, que
foram depois queimados. Uma vez mais, a severidade
das consequências dessa ação está inseparavelmente
ligada ao princípio da solidariedade. Ao longo de toda a
passagem, usam-se termos mais sérios, para indicar o
caráter sagrado do mandamento violado. Isso fornece
mais provas a favor da afirmação já feita de que a morte
de Acã apenas não corresponderia ao crime que ele
havia cometido e que, portanto, o restante dele, isto é, a
família e os bens, foi também destruído. Aqui não está
em questão a culpa do restante da família, embora não
se possa afirmar nem negar coisa alguma. A inclusão
deles no castigo do pai faz com que compartilhem do
mesmo caráter, como acontece com os membros do
corpo na morte do indivíduo. Trata-se de anexos que
lhe pertencem de modo tão íntimo que não podem ser
excluídos (Shedd, 1995, p. 26).

Outras referências utilizadas por Shedd são o conceito orgânico do povo


de Israel — depois aproveitado pela igreja como Corpo de Cristo—, a
representatividade dos nomes, a aplicação da bênção e da aliança, e, mais
especialmente para nós, a expiação do pecado coletivo e a apropriação do

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pecado em Adão e da salvação em Cristo (1 Co 15:21-22). Não podemos
ignorar que há um tratamento teológico na bíblia com a coletividade. Não
apenas relativo à humanidade, mas também com o povo de Israel e com
a igreja. Há várias referências bíblicas que tratam da salvação como algo
que afeta a coletividade. É claro que podemos entender essa coletividade
como uma soma de indivíduos, no entanto, se a mensagem e a doutrina
tivessem esta perspectiva apenas individualista, certamente ela seria
mais clara e não teríamos tanta elaboração em função da solidariedade
humana. Mais uma vez podemos recorrer ao famoso texto de João 3:16,
que aponta para um amor divino direcionado à coletividade, à criação, ao
mundo (kosmos).

4.3.3. A tarefa da evangelização


Por fim, gostaria de tratar de algo muito importante na igreja evangélica,
que tem relação direta com a teologia da salvação, que é a evangelização.
Para este breve comentário utilizarei como base dois artigos de minha
autoria publicados na revista teológica Práxis Evangélica (2012, 2013).

Falar de evangelização no meio evangélico parece ser algo que não precisa
de definição. A isto chamo de senso comum, ou seja, um entendimento
tácito que paira sobre as nossas mentes. Ainda que este entendimento
possa ter algumas variações, elas são sutis e, por isto, não encontramos
discussões sobre o seu significado ou mesmo sobre qualquer fundamento
bíblico e teológico para o atual entendimento. Exemplificando o que estou
argumentando, quando penso em evangelização a primeira ideia que me
vem à cabeça é a fórmula que herdamos dos movimentos de avivamento
do século XIX e das cruzadas evangelísticas do século XX.

Resumindo de forma rápida e simplista, evangelizar seria apresentar


às pessoas uma fórmula de salvação da alma, por meio da aceitação
verbal da obra salvífica de Jesus Cristo. Elaborando um pouco mais esta
ideia básica, enxergo ainda três facetas deste senso comum. A primeira
faceta é a da evangelização como pregação ou proclamação. Ela é a
mais percebida e surge de um entendimento literal e parcial de alguns

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textos bíblicos tais como Romanos 10:13-17. A pregação se baseia na
comunicação verbal de um conteúdo de salvação, de forma falada ou
escrita, em conversas, em praças públicas, em sermões em igrejas, em
mensagens em folhetos, livros, rádio, televisão, internet, etc. O problema
maior que encontramos quando a teologia da salvação é restringida
apenas a este processo é que a mensagem bíblica do evangelho parece
se tornar um tipo de promoção de entrega de passaportes para o céu.
Se o roteiro ou a fórmula de aceitação funciona, consideramos que tudo
está bem e o principal alvo foi alcançado, mesmo que não venhamos a
dar importância ao que acontece às pessoas depois da aceitação. Como
vimos, a salvação é algo muito mais amplo, atingindo todas as esferas da
vida humana, não podendo ficar reduzida a esta única faceta, ainda que
ela tenha a sua relevância.

A segunda faceta do senso comum sobre a evangelização é uma ação


que fazemos muito semelhante ao proselitismo judaico criticado por
Jesus (Mateus 23:15). Ela se expressa, às vezes, de maneira sutil, aliada
ou não à pregação, fazendo da evangelização uma atração de adeptos ou
captação de membros para a nossa igreja, célula, grupo, denominação, etc.
Por causa disto, a conversão acaba sendo percebida como a frequência
na participação das atividades da igreja, como a repetição dos mesmos
comportamentos, linguagem e atitudes. Chegamos ao absurdo de assistir
a uma competição entre as igrejas por adeptos como se eles fossem
clientes ou consumidores de um produto. Talvez motivados pela busca
irracional do crescimento numérico da igreja, tenhamos perdido de vista
o que é a salvação e qual a sua importância existencial para as pessoas.
Por último, a terceira faceta da evangelização aparece na forma de uma
cruzada. Esse termo é originário da Idade Média quando a igreja cristã
empreendeu esforços militares para reconquistar a Terra Santa das mãos
dos muçulmanos, principalmente, entre os séculos XI e XIII. Ali vemos as
mesmas concepções antigas das guerras santas. Estas ações militares
patrocinadas pela igreja carregavam a noção de superioridade religiosa —
sagrado contra profano, santos contra pagãos, Deus contra o Diabo. O termo
cruzada surgiu por causa da cruz que os soldados carregavam em suas
roupas e armaduras. Em nome de Jesus e da cruz de Cristo eles lutaram

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e mataram milhares de árabes. Este mesmo pressuposto parece permear
algumas ações evangelísticas em que se entende que estamos tratando
da conquista de territórios, principalmente aqueles em que o percentual de
cristãos evangélicos é menor do que o de pessoas que professam outra
crença. Alguns chegam a pressupor elementos de batalha espiritual, ainda
que estejam tratando com pessoas de carne e osso. Nesea compreensão
as outras religiões são demonizadas e a igreja é vista como a responsável
pela ação evangelística libertadora. Confundimos a mensagem de vida do
evangelho, que deveria ser sal, luz e salvação, com aquilo que, visto desde
uma interpretação bélica, caberia a Deus e seus anjos.

Enfim, embora chamando a atenção para facetas negativas da


evangelização, esta tarefa deve ser entendida como nobre e como parte
da nossa vocação. Temos sobre nós a responsabilidade do ministério de
reconciliação da humanidade com Deus. Esta é a grande e boa notícia.
Isto é evangelizar. Temos que levar esta mensagem de maneira a não
restringi-la a apelos verbais, a tentativas de conquista de adeptos ou a
promoção de batalhas religiosas. Nossa missão deve se dar por meios
que demonstrem amor, envolvimento e promoção de relacionamentos,
capazes de apontar o caminho capaz de superar o drama humano diante
da queda e do pecado.

Exercício de reflexão - 20
Faça uma breve reflexão de como os conteúdos apresentados
podem trazer implicações sobre a nossa compreensão da tarefa
de evangelização.

Concluo esta unidade e a seção sobre a teologia da salvação citando um


trecho presente em meu artigo:
O que sugiro como proposta de evangelização no
seguimento de Jesus é tentarmos sintetizar em
propostas simples o que observamos nos relatos
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dos evangelhos sobre seus atos, palavras, ensinos
e mandamentos. É bom mantermos em nossa
consciência que nem sempre as coisas simples são
simplistas. Nem sempre as coisas simples são de
absorção imediata, porém, certamente, nesse caso,
são melhores do que as complexas.

Considerando o seguimento de Jesus comecemos


com a noção infantil da imitação. Seguir é também
imitar. Querendo seguir a Jesus podemos tentar imitá-
lo. Diferente de tentarmos mimetizar comportamentos
religiosos de qualquer grupo ou tentarmos imitar todo
e qualquer ato de Jesus, podemos tentar observar
posturas e princípios comportamentais de Cristo
durante o seu ministério conforme registrado nos
evangelhos.

Impressiona-me que Jesus sempre mantenha uma


postura de respeito, aproximação, empatia, compaixão,
cordialidade, inclusão e aceitação de pessoas. Talvez isso
não se aplique tanto aos religiosos profissionais da época
(fariseus, escribas e saduceus) e alguns políticos. Contudo,
no que se refere às pessoas em geral, com quem Jesus
incidentalmente se encontrou, independente de sua idade,
sexo, classe social, econômica, religiosa, de seu credo,
preferência política, etc., a todos tratou dessa maneira
[...] O tipo de ensino que Jesus praticava era participativo
e libertador. Era em muitos momentos revolucionário
se comparado ao entulho teológico, legitimado pela
classe de fariseus e escribas, sistematicamente forçado
goela abaixo do povo. O conteúdo de Jesus extrapolava
as fórmulas religiosas de controle da fé e apresentava
novidade no entendimento de um Deus de amor
interessado em se relacionar com o seu povo como Pai-
filhos (Almeida, 2012, pp.50-51)
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Referências bibliográficas
ALMEIDA, Marcos Orison N. Rostos da evangelização no caminho do
seguimento de Jesus. In: PRÁXIS EVANGÉLICA. Novembro de 2012, nº
20. Londrina: FTSA, 2012. p. 47-53.

______. Uma crítica ao senso comum sobre evangelização a partir da


teologia sistemática e bíblica. In: PRÁXIS EVANGÉLICA. Outubro de 2013,
nº 22. Londrina: FTSA, 2013. p. 49-70.

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Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR
86055-670 Tel.: (43) 3371.0200

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