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Organizadores: Roberto Cezar Maia de Souza

Iara Falleiros Braga


Gustavo Artur Monzeli
Mónica Franch
Dedicamos esse livro à memória de Fernanda Benevenutty e de
Luciano Bezerra, que tanto lutaram   para a implantação de  políti-
cas públicas LGBTQIA+ no município de João Pessoa. Que possamos
seguir o legado deixado pelos nossos companheiros de resistência
na luta pelos direitos da nossa população. 
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos os funcionários e funcionárias do Centro de Cidadania
LGBT pelo empenho e a dedicação ao trabalho executado, são eles: Diego Rodrigues
de Sousa, Josenilda da Silva Oliveira, Julhanalia de Lima Fernandes, Louise de Assis
da Silva Dias, Selma Souza Cabral, Priscila Souza de Lima, José João do Nascimento,
Geraldo de Souza Leite Filho, Márcia Cristiane Marinho e Symone Alves da Silva.

Agradecemos a todo o movimento LGBTQIA+ da Paraíba por nos pro-


vocar e nos impulsionar a realizar as políticas públicas em nosso município,
entre eles o Grupo de Mulheres Maria Quitéria, Movimento do Espirito Lilás,
ASTRAPA –Associação transfeminista da Paraíba, MOVBI – Movimento dos
Bissexuais da Paraíba, Coletivo de Homens Trans – PETRIS, Grupo Diversidade,
ONG Cordel Vida, ONG Iguais e Coletivo LGBTQIA+.

Agradecemos a todos os projetos de extensão e parcerias de estágio da


Universidade Federal da Paraíba, Faculdade Mauricio de Nassau, FPB e UNIPÊ
bem como todas as empresas privadas parceiras que conseguiram inserir no
seu quadro funcional as pessoas LGBTQIA+.

Agradecemos a todas as usuárias, usuários e usuáries do Centro de Cida-


dania LGBT por nos ensinar que o cuidado acontece de forma coletiva e pelos
ensinamentos que adquirimos com vocês no decorrer desses quase cinco anos.

Agradecemos pela parceria intersetorial de todas as secretarias e gesto-


res da prefeitura municipal de João Pessoa bem como o prefeito Luciano Car-
taxo Pires de Sá que endossou e reafirmou desde o início a importância das
políticas públicas para a população LGBTQIA+ fazendo com que essa gestão
fosse referência para outros municípios em nosso país.
COLABORARAM NESTE LIVRO

Anderson Klisnmann Costa Janaina da Silva Goes. Estudan-


Dantas. Psicólogo pelo UNIFIP- Centro te do Curso de Terapia Ocupacional
Universitário, Especialista em Terapia da Universidade Federal da Paraíba.
cognitivo Comportamental e Psicólo- E-mail: janainagoes.rn@gmail.com
go Residente em Saúde da Família e
Comunidade. E-mail: anderson_klis- José Alves de Oliveira. Graduan-
nmann@hotmail.com do em Letras Inglês na Universidade
Federal da Paraíba. E-mail: josealves-
André Luís Mota. Cientista So- sarmento@hotmail.com
cial com especialização em Psicolo-
gia Organizacional < Unifcas Laure- José João do Nascimento. Ensi-
art. Diretor de Recursos Humanos no Médio completo. Educador Social.
da LIQ. E-mail: andremota.aha@hot- Assessor da Coordenadoria Munici-
mail.com pal de Promoção à Cidadania LGBT
e Igualdade Racial de João Pessoa.
Diego Rodrigues de Sousa. Gra- E-mail: ninoracial@gmail.com
duando em Psicologia. Assessor Téc-
nico da Coordenadoria Municipal de Julia Daltin Regginato. Gradu-
Promoção à Cidadania LGBT de João ada em Psicologia pela Universidade
Pessoa. E-mail: dhiegowrodrigues@ Estadual Paulista - UNESP/Assis; Resi-
gmail.com dente em saúde da Família e Comuni-
dade - FCM e UFPB em João Pessoa.
Everson de Pádua Oliveira Araú- E-mail: julia.daltinrgg@outlook.com
jo. Graduação em Administração com
especificidade em Gestão de Pesso- Júlia Fernandes de Souza - estu-
as. MBA em Gerenciamento Estraté- dante do Curso de Terapia Ocupacio-
gico de Pessoas. Coordenador de RH nal da Universidade Federal da Para-
da Regional Liq João Pessoa. E-mail: íba. E-mail: juliafeernandes.souza@
eversondepadua@gmail.com gmail.com

Fábio Gomes dos Santos. Pro- Kátia Cristina Silva da Costa.


fessor Assistente do Curso de Bacha- Psicóloga Clínica pela Faculdade
relado em Odontologia do UNIPÊ. UNINASSAU/PB, de abordagem Psi-
Cirurgião-Dentista, Especialista em canalítica. Pós-graduanda em Neu-
Periodontia e Mestre em Odontologia. ropsicologia pelo Centro Universitá-
E-mail: fabio.gomes@unipe.edu.br rio de João Pessoa - UNIPÊ. E-mail:
katiac15@yahoo.com.br
Gustavo Artur Monzeli. Doutor
em Terapia Ocupacional. Docente do Lívia Karoline Morais da Silva.
Departamento de Terapia Ocupacio- Enfermeira especialista em Saúde
nal da Universidade Federal da Paraíba. da Família e Comunidade, Residente
E-mail: gustavo.monzeli@gmail.com em Saúde Coletiva- SES/PB. E-mail:
karolinnemorais@outlook.com
Iara Falleiros Braga. Doutora em
Ciências. Docente do Curso de Tera- Louise de Assis da Silva Dias.
pia Ocupacional da Universidade Graduada em Comunicação Social
Federal da Paraíba. E-mail: iarafallei- com habilitação em Relações Pú-
ros@gmail.com blicas pela Universidade Federal da
COLABORARAM NESTE LIVRO

Paraíba. Assessora Técnica LGBT+ da Renata Gonçalves Gomes. Dou-


Prefeitura Municipal de João Pessoa. tora em Literaturas de Língua Inglesa,
E-mail: loudassis@gmail.com Docente da Universidade Federal da
Paraíba. E-mail: gomex10@hotmail.com
Marcos Aurélio Vasconcelos
Lima Júnior. Professor Adjunto do Ricardo Ramos de Azevedo
Curso de Bacharelado em Odonto- Lima Filho. Estudante do Curso de
logia do UNIPÊ. Cirurgião-Dentista. Terapia Ocupacional da Universida-
Especialista em Educação e Mestre de Federal da Paraíba. E-mail: ricar-
em Odontologia. E-mail: marcos.vas- doraamosf@gmail.com
concelos@unipe.edu.br
Roberto Cezar Maia de Souza.
Matheus Oliveira Lacerda. Fisio- Psicólogo. Coordenador do Centro
terapeuta especialista na Modalidade de Cidadania LGBT. E-mail: roberto-
Residência Multiprofissional em Saú- maiapb@hotmail.com
de da Família e Comunidade. E-mail:
matheuslacerd@hotmail.com Selma Souza Cabral. Graduanda
em Ciências Sociais UFPB. Assessora
Mónica Franch. Professora técnica na Coordenadoria de promo-
do Departamento Social da UFPB, ção à cidadania LGBT e igualdade
membro dos Programas de Pós-gra- racial de João Pessoa. E-mail: selmi-
duação em Antropologia e em Socio- nhacabral@hotmail.com
logia. Doutora em Antropologia pelo
PPGSA/UFRJ. E-mail: monicafran-
chg@gmail.com

Priscila Souza de Lima. Gradu-


anda em Ciências das Religiões. As-
sessora técnica da Coordenadoria de
Promoção à Cidadania LGBT e Igual-
dade Racial de João Pessoa. E-mail:
cyllalima@gmail.com

EQUIPE GRÁFICA

Ana Angela - Direção de arte e diagramação

Arlan Carlos - Diagramação

Lucas Campos - Direção de arte e

diagramação

Marília Gabriella - Organização

Paulo Barroso - Revisão final

Poliana Melo - Capista


SUMÁRIO
07......... APRESENTAÇÃO

10......... CAPÍTULO 1
O Centro de Cidadania LGBT de João Pessoa: um panorama histórico
Gustavo Artur Monzeli, Iara Falleiros Braga, Roberto Cezar Maia de Souza e Mónica Franch

19.......... CAPÍTULO 2
O Programa Transcidadania JP e a inclusão de travestis e transexuais nas
políticas públicas
Roberto Cezar Maia de Souza

36.......... Perspectivas sobre o Programa Transcidadania: a experiência exitosa da LIQ


André Mota e Everson de Pádua Oliveira Araújo

44.......... O Programa Transcidadania JP e a representação dos homens trans: um olhar de dentro


Diego Rodrigues de Sousa

51......... O Programa Transcidadania JP e a representação de travestis e mulheres


trans: um olhar de dentro
Louise de Assis

58.......... CAPÍTULO 3
A Terapia Ocupacional e seu lugar de resistência: projeto Resisto UFPB
Iara Falleiros Braga, Gustavo Artur Monzeli, Janaina da Silva Goes, Júlia Fernandes de Souza e
Ricardo Ramos de Azevedo Lima Filho

73.......... CAPÍTULO 4
Cine Contracultura: o cinema como janela para a reflexão sobre diversidade
sexual e de gênero
Renata Gonçalves Gomes e José Alves de Oliveira

87......... CAPÍTULO 5
Lugar de fala e enfrentamento das violências: o bate-papo nas escolas
Priscila Souza de Lima, Selma de Souza Cabral, José João do Nascimento e Iara Falleiros Braga

99......... CAPÍTULO 6
A psicologia como lugar de escuta: uma retrospectiva
Roberto Cezar e Maia de Souza

104........ O modus operandi do cuidado na clínica psicoterápica: percepção do


atendimento clínico no campo de estágio
Kátia Cristina Silva da Costa

109....... CAPÍTULO 7
Projeto Riso Trans
Marcos Aurélio Vasconcelos Lima Júnior e Fábio Gomes dos Santos
SUMÁRIO
118......... CAPÍTULO 8
Projeto da Unidade Amiga da Saúde LGBT
Anderson Klisnmann C. Dantas, Julia Daltin Regginato e Lívia Karolina Moraes da Silva

134......... CAPÍTULO 9
Residentes multiprofissionais
Matheus Oliveira Lacerda

144....... CAPÍTULO 10
Experiências de usuárias e usuários do Centro de Cidadania LGBT
Marcos Aurélio Vasconcelos Lima Júnior e Fábio Gomes dos Santos

161.......... NOTA FINAL


Links de reportagens e vídeos sobre o Centro da Cidadania LGBT
APRESENTAÇÃO
Roberto Cezar Maia de Souza e Kátia Cristina Silva da Costa

Este livro nasceu de um so- a nos questionar se não seria essa


nho de vários atores e atrizes que a hora de nos debruçarmos na es-
lutam por direitos humanos LGB- crita e concretizarmos o sonho do
TQIA+1 na cidade de João Pes- livro sobre as políticas LGBTQIA+.
soa - PB. Durante muito tempo Dessa forma, dialogan-
as políticas para essa população do com a equipe do CCLGBT e
aconteciam unicamente de forma principalmente com os nossos
transversal em nossa capital. Foi a parceiros dos vários projetos de
partir da criação da Coordenadoria extensão, resolvemos imergir
de Promoção à Cidadania LGBT e na escrita deste livro que tem o
Igualdade Racial no ano de 2012, li- intuito de deixar um legado: tor-
gada diretamente ao gabinete do nar disponível ao público geral
prefeito, que se deu início ao pro- como se deu a política LGBT em
cesso de políticas públicas de for- João Pessoa; marcar as ações
ma efetiva em nossa capital. efetivadas com a colaboração
Sempre tivemos a intenção dos parceiros institucionais, o
de escrever sobre as experiên- que possibilitou, por meio da in-
cias vivenciadas no Centro de Ci- tersetorialidade, a realização de
dadania LGBT - CCLGBT, porém, ações extramuros em várias co-
por estarmos produzindo ações munidades; servir como modelo
para a nossa população, conti- para outros municípios do nosso
nuadamente, não havia tempo país, aguçando a manutenção da
hábil para transformar as vivên- equidade e do cuidado.
cias da nossa prática em me- Registra-se aqui a experiên-
mória literária. Foi no início da cia de implementação da política
pandemia da covid-19[ Doença pública municipal voltada para a
infecto-contagiosa causada pelo população LGBTQIA+ em João Pes-
novo coronavírus Sars-Cov-2.], soa, nos anos 2015 a 2020. Nesse
que, por força do isolamento período, diversas iniciativas foram
social, passamos a refletir so- desenvolvidas no Centro, dando
bre a produção do livro com os um caráter multidisciplinar e cola-
nossos parceiros e começamos borativo a essa política pública.
Dividimos o livro em capí-
tulos nos quais o leitor poderá
1. Sigla que abrange pessoas que são Lés-
bicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, acompanhar os diversos projetos
Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero de extensão e ações intersetoriais
e mais.
desenvolvidas pelas equipes que população LGBTQIA+, a exemplo
dão um formato à política implan- do suicídio, da masculinidade, da
tada no CCLGBT e suas demais travestilidade, da saúde das mu-
ações em vários equipamentos lheres lésbicas, entre outros.
públicos da gestão municipal. O quarto capítulo traz uma
Iniciamos o primeiro capítulo mostra da parceria com o Cine
apresentando um breve histórico Contracultura da UFPB, em que,
das políticas LGBTQIA+ do nosso com eventos mensais, se promove
país que servirá como parâmetro debate de filme de curta duração
para a amostra do que foi implan- objetivando que os usuários do
tado em nosso município, ressal- Centro possam não somente se
tando a importância do papel dos inteirar, como também trazer seus
movimentos LGBTQIA+ no estado conceitos e discutir sobre temas
da Paraíba, para a provocação na relacionados à população LGBT-
efetivação dessas políticas. QIA+ e suas interseccionalidades.
O segundo capítulo retrata A tônica do quinto capítulo é
o Programa Transcidadania em a importância do trabalho das ofi-
João Pessoa que teve como base cinas nas escolas com temáticas
o programa homônimo implan- sobre gênero, diversidade sexual,
tado na cidade de São Paulo – SP, racismo e intolerância religiosa e
e do qual resultaram várias par- de como essas temáticas disparam
cerias institucionais entre empre- processos de violação de direitos
sas privadas e diversas secretarias desses jovens. Assuntos que preci-
da gestão municipal. Importante sam ser discutidos com a comuni-
ressaltar que a partir dessa ini- dade escolar e seus familiares.
ciativa foi possível inserir pessoas O sexto capítulo traz um
travestis e transexuais no quadro apanhado histórico dos primei-
de funcionários das organizações, ros atendimentos de psicotera-
realização do sonho da casa pró- pia no CCLGBT, como também a
pria, acesso a benefícios sociais e formação do campo de estágio e
a cursos profissionalizantes, apoio a prática clínica do cuidado, que
psicológico e garantia da retifica- teve uma grande importância no
ção de prenome e de gênero em atendimento à demanda de usu-
seus documentos. ários que viviam em situação de
A parceria com a Terapia Ocu- sofrimento psíquico por conta
pacional da Universidade Federal da conjuntura política nacional
da Paraíba - UFPB denominada em que a legitimação da violên-
de Projeto ResisTO, faz parte do cia contra as pessoas LGBTQIA+
terceiro capítulo. O trabalho foi de- tomou conta do país em conso-
senvolvido, desde o início, com ofi- nância com o aumento do funda-
cinas para a população do CCLGBT mentalismo religioso e da violên-
com o intuito de fortalecer o víncu- cia por parte dos seus familiares.
lo entre os usuários e a equipe do O Centro Universitário de
Centro. Isso possibilitou encontros João Pessoa – UNIPÊ foi mais
mensais para discussão sobre te- uma instituição que integrou o
mas que eram a pauta da vez da rol de parceiros. Com serviços
de atendimentos odontológicos grandecendo inclusive as feiras
para a comunidade de traves- de saúde que são realizadas pe-
tis e transexuais, o projeto RISO riodicamente no CCLGBT.
TRANS inseriu essa população no O décimo capítulo traz al-
cuidado da saúde bucal. Os den- guns relatos da subjetividade dos
tistas que compõem o projeto fa- usuários atendidos na institui-
zem parte do coletivo LGBTQIA+ ção, a percepção sobre o trabalho
da própria universidade. ofertado e o impacto positivo que
O Projeto Unidade Amiga isso proporcionou às suas vidas. O
LGBTQIA+ integra o oitavo capí- último capítulo elenca algumas
tulo. Baseado no projeto do muni- reportagens e vídeos realizados
cípio de Salvador (BA), dedica-se ao longo desses quatro anos de
à formação dos funcionários de funcionamento do CCLGBT.
determinada Unidade de Saúde Em suma, esta coletânea
do município com as equipes de ocupa-se em mostrar, de fato,
residentes multiprofissionais de como essa política pública se efeti-
saúde e equipe do CCLGBT para vou no município de João Pessoa,
um atendimento personalizado. especificar as potencialidades e os
Somente passando por esse pro- entraves das ações desenvolvidas,
cesso a Unidade estará apta para bem como incorporar a perspec-
receber o Selo de Certificação de tiva das pessoas para as quais as
Unidade Amiga LGBTQIA+. políticas se destinam. Entende-
No nono capítulo registram- mos que registrar e refletir sobre a
-se os relatos dos residentes mul- trajetória do Centro de Cidadania
tiprofissionais de saúde de João LGBT, torna-se especialmente re-
Pessoa, onde narram suas prá- levante no contexto atual, marca-
ticas de cuidado integral à saú- do por fortes ataques às conquis-
de da população, desde práticas tas das últimas duas décadas em
integrativas complementares à matéria de direitos humanos para
saúde até o cuidado nutricional as pessoas LGBTQIA+.
e serviços de enfermagem, en-

Freepik / pikisuperstar
História do
Centro de
Cidadania LGBT
de João Pessoa:
construção
de caminhos
coletivos

Gustavo Artur Monzeli, Iara Falleiros Braga,


Roberto Cezar Maia de Souza
e Mónica Franch
Foto: Inauguração do Centro de
Cidadania LGBT
Fonte: Arquivo pessoal

INTRODUÇÃO

Para que se possa compreender o processo de criação do Centro


de Cidadania LGBT de João Pessoa (CCLGBT), é importante apresentar
parte dos caminhos trilhados que possibilitaram essa política pública
municipal desde o contexto nacional até o local.
Nesse sentido, iniciaremos apresentando, de forma reduzida, par-
te do histórico dos movimentos sociais que colocam a pauta da diversi-
dade sexual como centro de suas lutas, começando pelo contexto na-
cional e chegando ao estado da Paraíba.
Posteriormente apresentaremos alguns aspectos importantes
para a criação da Coordenadoria Municipal de Promoção da Cidadania
LGBT e da Igualdade Racial e do CCLGBT.

MOVIMENTOS SOCIAIS E DIVERSIDADE SEXUAL NO BRASIL

O movimento social brasileiro ligado às questões de sexualidade tem


sua gênese por volta do fim da década de 1970, tendo como destaque uma
forte influência da cultura e do movimento gay estadunidense (GOMES,
2016). Naquele momento, em meio à ditadura no Brasil, mas já no proces-

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so de afrouxamento do autoritaris- cipalmente como reflexo imedia-
mo e de crescente abertura social to da epidemia de HIV/Aids, que
e política, um grupo formado por influenciou a desmobilização das
jornalistas, escritores e intelectu- propostas de liberação sexual,
ais brasileiros criaram o jornal “O inclusive afetando diretamente
Lampião da Esquina” em 1978, na parte das representações destes
cidade do Rio de Janeiro (GOMES; movimentos (FACCHINI, 2005).
ZENAIDE, 2019). A proposta desse Se por um lado, a epidemia
jornal era ser um veículo pluralista, ocasionou a fragilização direta dos
aberto a diferentes pontos de vista movimentos sociais, por outro insti-
abordando diversas problemáti- gou a reorganização destes movi-
cas, inclusive combater visões pe- mentos em torno das ações de pre-
jorativas sobre a homossexuali- venção e de cuidado como resposta
dade (SIMÕES, FACCHINI, 2009). da sociedade civil às demandas
Além da criação desse im- advindas desta epidemia (FACCHI-
portante jornal, também foi cri- NI, 2005; GOMES; ZENAIDE, 2019).
ado o Núcleo de Ação pelos Di- Neste sentido, foi possível a
reitos dos Homossexuais, no ano aproximação destes movimentos
de 1978, que seria futuramente sociais com o aparato estatal, por
nomeado de “Somos – Grupo de meio de financiamento das ações
Afirmação Homossexual”. Poste- de prevenção e de cuidado ao en-
rior à fundação do “Somos”, ocor- frentamento da epidemia. Esta
reu a criação de alguns outros relação oferecia ao Estado uma
coletivos e grupos organizados, possibilidade de organização das
como o Grupo Gay da Bahia – ações, bem como proporciona-
GGB (1980), o Grupo de Atuação va à sociedade civil organizada a
Homossexual de Recife/Olinda – possibilidade de financiamento,
GATHO (1981), o Grupo Dialogay, o que acabou por fortalecer a luta
de Sergipe (1981), o Grupo Triân- pelos direitos da população, hoje
gulo Rosa (1985) e o Grupo Atobá intitulada, LGBTQIA+ (GOMES;
(1986), ambos do Rio de Janeiro ZENAIDE, 2019).
(GOMES; ZENAIDE, 2019). Na década de 1990 tivemos
A ampliação dos movimen- uma nova proliferação de grupos
tos sociais que tinham o tema da ativistas, a formação de redes e a
diversidade sexual como pauta criação de alguns eventos espe-
central esteve em diálogo com o cíficos, como a fundação da Asso-
movimento de redemocratização ciação Brasileira de Lésbicas, Gays,
da sociedade brasileira, o que pro- Bissexuais, Travestis e Transexuais
porcionava o diálogo desses gru- (ABGLT), os Encontros Brasileiros
pos com outros movimentos so- de Gays e Lésbicas, Encontro Na-
ciais e, inclusive, partidos políticos cional de Travestis e Transexuais
(GOMES, 2016). que Atuam na Luta contra a Aids
Essa expressiva expansão (ENTLAIDS) e o Seminário Nacio-
dos movimentos sociais teve uma nal de Lésbicas (SENALE), dentre
drástica redução na segunda outros (SIMÕES; FACCHINI, 2009;
metade da década de 1980, prin- GOMES; ZENAIDE, 2019).

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MOVIMENTOS SOCIAIS E IVEIRA, 2018).
Já na década de 1990, com
DIVERSIDADE SEXUAL NA
a criação do “Movimento do Es-
PARAÍBA pírito Lilás (MEL)”, em 1992, é que
se intensificaram as ações dos
O primeiro grupo da Paraí- movimentos sociais na Paraí-
ba a ter como foco as questões ba (GOMES; ZENAIDE, 2019). De
das sexualidades, especifica- acordo com Oliveira (2018), o MEL
mente sobre a homossexuali- tinha por característica um dup-
dade, foi o chamado “Nós Tam- lo investimento, de um lado, jun-
bém”. De acordo com Oliveira to ao público universitário e de
(2014), o surgimento desse gru- outro, fortalecendo as comu-
po, em 1981, está vinculado às ex- nidades de base. Ademais, de-
periências de jovens universitá- staca-se neste momento de sua
rios e professores da Universidade fundação, e ao longo de mais de
Federal da Paraíba. Para Gomes uma década, o caráter misto do
e Zenaide (2019) este grupo te- grupo, que incluía gays, lés-
ria criado ações entre os anos de bicas e travestis. Para Gomes
1981 e 1983 (GOMES; ZENAIDE, (2016), a atuação do MEL foi
2019). Entretanto, é bom lembrar bastante importante em nível
que mesmo antes da institucio- nacional. O grupo esteve presente
nalização desse primeiro grupo, no processo de fundação da AB-
já havia uma movimentação em GLT em 1995, além de ter sido o
diversos setores que mostravam, primeiro grupo homossexual a se
de maneira pública, seu descon- filiar ao Movimento Nacional de Di-
forto em relação à moralidade reitos Humanos (MNDH) em 1997
sexual dominante à época, tanto e a participar, efetivamente, da
em espaços de lazer como a par- fundação e construção da Cen-
tir de veículos e fanzines, entre os tral dos Movimentos Populares
que destaca o Jornal Gaia, tam- (CMP) (GOMES, 2016). Além disso,
bém produzido por jovens uni- a partir de 1995, o MEL começa a
versitários (OLIVEIRA, 2018). organizar seminários e encontros
Além do Nós Também, o estaduais na Paraíba, levando a
“Grupo Beira da Esquina” foi um discussão a outros municípios da
dos primeiros na Paraíba, sendo Paraíba (VIEIRA, 2015).
criado fora da UFPB em 1984, Posterior à criação do MEL,
em diálogo com o movimen- coletivos de mulheres e de travestis
to estudantil, o movimento ne- começaram a se organizar de for-
gro, o movimento de mulheres, ma independente, uma vez que
o dos artistas e o dos líderes co- o MEL acabava tendo um recorte
munitários (GOMES; ZENAIDE, mais específico para o público de
2019). Durante os anos 1986 a homens gays. Desta forma foram
1988, as ações vinculadas ao en- criados, em 2002, a Associação
tão chamado Movimento Ho- das Travestis da Paraíba (ASTRA-
mossexual Brasileiro (MHB) se ar- PA), o Grupo de Mulheres Ma-
ticulavam localmente a partir do ria Quitéria (GOMES; ZENAIDE,
Grupo Especial da Paraíba (OL- 2019) e, em 2013 o Movimento de

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Bissexuais da Paraíba (MOVBI). ismo pode ser encontrada na
Posteriormente, posteriormente proliferação de paradas da diver-
o Coletivo PETRIS (Coletivo de sidade por todo o território parai-
Homens Trans da Paraíba) foi bano, sobretudo na última déca-
criado, em 2015. da.
É importante destacar, igual- Por fim, vale salientar que
mente, a presença crescente de o momento atual também se
movimento social organizado caracteriza por uma renovação
em torno da temática da diversi- do movimento em novos forma-
dade sexual fora da capital João tos, ligados sobretudo ao ativismo
Pessoa. De acordo com Olivei- digital, o que traz novos desafios
ra (2019) e Nascimento (2019), a em termos de articulação política,
expansão do movimento para mas também possibilita a entrada
o interior do estado tem diver- de outros sujeitos, principalmente
sos graus de organicidade e é dos mais jovens, num momento
decorrência, sobretudo, de uma em que as fontes de financiamen-
articulação nacional ocorrida nos to para a sociedade civil se tornam
anos 2000, com o nome “Juntos cada vez mais escassas.
SOMOS mais fortes”. Visando à
formação de lideranças por todo A CRIAÇÃO DO CENTRO DE
o território nacional e com uma CIDADANIA LGBT DE JOÃO
forte interface com o combate ao PESSOA (CCLGBT)
HIV/Aids, sobretudo entre HSH
(homens que fazem sexo com
A Coordenadoria Municipal
homens), essa iniciativa estimu-
de Promoção da Cidadania LGBT
lou a criação de grupos militantes
e da Igualdade Racial foi cria-
em Cabedelo (o Movimento Ho-
da pela Lei Municipal nº 12.400
mossexual de Cabedelo – MO-
de 05 de julho de 2012, vincu-
HOCA), Iatabaiana (Gayrreiros
lada ao gabinete da Prefeitura
do Vale do Paraíba), Cajazeiras
Municipal, na gestão de Lucia-
(Associação do Orgulho LGBT),
no Cartaxo. Essa lei foi aprovada
Catolé do Rocha (Fórum LGBT
pela Câmara dos Vereadores de
de Catolé) e Campina Grande
João Pessoa, por demanda dos
(Associação dos Homossexu-
movimentos sociais da época,
ais de Campina Grande), todos
o que segundo Roberto Cezar
fundados nos primeiros anos da
Maia de Souza, atual gestor da
década de 2000, ademais de ter
Coordenadoria, foi um feito bas-
fortalecido militâncias menos for-
tante importante uma vez que
malizadas em diversas outras ci-
esta lei não se configurou como
dades de médio e pequeno porte
um decreto do Prefeito, foi vota-
como Mari, Sapé, Araçagi, Guara-
da e teve a aprovação da maioria
bira, Santa Rita, Caaporã, Dona
dos vereadores, o que acaba pro-
Inês, Bayeaux, Mamanguape,
porcionando uma segurança e
Rio Tinto, Baía da Traição, Mon-
importância legislativa.
teiro, entre outras. A expressão
De acordo com Roberto,
mais visível desse tipo de ativ-
antes da criação dessa Coorde-

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nadoria, existiu um núcleo vin- a sociedade sobre estes temas.
culado à Secretaria Municipal de Além desse contexto político, os
Desenvolvimento Social, por volta movimentos sociais paraibanos
de 2007, que desenvolvia algumas tiveram grande relevância para
ações para a população LGBTI de pensar e criar esta primeira inicia-
João Pessoa. Esse núcleo produ- tiva de uma Coordenadoria Munic-
zia formações e capacitações de ipal. A primeira coordenadora re-
profissionais de saúde e de edu- sponsável por esse serviço foi Maria
cação, também em parceria com do Socorro Pimentel. No final de
a Coordenadoria de DST/Aids. 2013 Roberto assume o cargo de
Além dessas formações, o núcleo coordenador e dá seguimento às
também produzia alguns even- ações desta coordenadoria.
tos, como o Seminário Municipal De acordo com Diego Ro-
sobre o tema do uso de nome so- drigues de Sousa, atual coorde-
cial no município, em 2008. nador do CCLGBT, as primeiras
Dessa forma, esses movimen- ações dessa Coordenadoria eram
tos anteriores foram de grande bastante focadas no território, em
importância para o município de especial nas escolas e unidades
João Pessoa, uma vez que conse- de saúde, nas quais eram real-
guiram colocar em evidência al- izadas palestras e oficinas para
gumas pautas importantes para debate e formação de profission-
os movimentos sociais daquela ais sobre os temas de gênero,
época, ao mesmo tempo em que sexualidade, questões étnico-ra-
possibilitaram o terreno fértil para ciais e de diversidade religiosa.
a criação da Coordenadoria Mu- No início, o espaço para a
nicipal de Promoção da Cidadania Coordenadoria era uma sala no
LGBT e da Igualdade Racial. Paço Municipal, e com o passar
Um fator importante destaca- do tempo foi necessário buscar
do por Roberto foi o programa um outro espaço para que se
Brasil sem Homofobia, criado no pudesse dar conta de todas as
governo do ex-presidente Luiz ações realizadas e de parte do
Inácio Lula da Silva, que funcio- público que já era acompanhado,
nava como uma diretriz para além de que seria interessante
as políticas sobre diversidade que fosse um local onde as pes-
sexual, contudo ficava a cargo soas pudessem reconhecer um
de cada estado e município im- espaço para atendimento ao pú-
plementar, ou não, uma política blico e que proporcionasse uma
para a população LGBT. Outro visibilidade interessante. Nesse
fator relevante é que o contexto sentido, Roberto destaca que a
político, tanto do estado da Paraí- mudança para a “Casa Amare-
ba1 e do município de João Pes- la”, como é conhecida a sede da
soa, contribuiu bastante para a Coordenadoria Municipal até
implementação dessas políticas hoje, localizada na região cen-
públicas e do amplo debate com tral de João Pessoa, proporcio-
nou essa visibilidade bem como
1. No ano de 2014 é criada a Secretaria Es-
tadual da Mulher e da Diversidade Huma- possibilitou que outras ações pu-
na da Paraíba (SEMDH).

15
dessem ser iniciadas. quista de algumas casas próprias
Contando com alguns para travestis e pessoas trans
apoios, a Coordenadoria Munici- do município de João Pessoa.
pal inaugura o Centro de Cidada- A Secretaria Municipal de Desen-
nia LGBT de João Pessoa em 17 volvimento Social entrou com
de maio de 2016, sendo reinau- a oferta do cadastro de pes-
gurado no mesmo dia de 2017, já soas LGBTs em situação de
neste momento com uma estru- vulnerabilidade no Programa Bol-
tura física mais adequada às suas sa Família, além das propostas de
funcões e contando com uma ações dos Consultórios na Rua. Das
equipe profissional composta inúmeras parcerias ressaltamos
por psicólogos, assistente social, a Terapia Ocupacional da UFPB
advogado e assessores técnic- (através do Projeto de extensão
os. A Coordenadoria Municipal é ResisTO), os residentes multi-
um órgão regulamentado pela profissionais de saúde (práticas
Prefeitura Municipal e o CCLGBT complementares de saúde e uni-
surge como um serviço vincula- dade amiga LGBT+), o curso de
do a essa Coordenadoria. odontologia da UNIPÊ (Projeto
Existiram algumas resistên- Riso Trans), a Faculdade Maurício
cias neste processo de imple- de Nassau e a Faculdade Interna-
mentação dos serviços, princi- cional da Paraíba (que contribuem
palmente por parte de alguns com estagiários de psicologia), o
setores mais conservadores na curso de Direito da UEPB (por meio
Câmara Municipal que tenta- do GAJU - Grupo de Apoio Jurídi-
vam gerar alguns incômodos nas co e Universitário de Santa Rita,
ações realizadas pelo CCLGBT, que trabalha na questão de criação
contudo como existia um apoio de banco de dados da população
amplo da prefeitura, as ações e LGBTQIA+).
os serviços continuavam a existir No decorrer desses anos
e foram sendo ampliados duran- foram várias ações e pro-
te esses anos. gramas importantes produzidos
Desde o início, as ações da pelo CCLGBT e seus parceiros.
Coordenadoria funcionavam Diego aponta que a maioria dos
de forma articulada com out- serviços se mantém ativos e mui-
ros setores, como por exemplo tos foram criados em acordo com
com a Secretaria Municipal de as novas parcerias produzidas.
Educação que autorizava as ofi- Como exemplo, temos o
cinas nas escolas municipais, a Programa Transcidadania, que
Secretaria Municipal de Saúde existe até hoje e oferece uma
que cedia equipe técnica, princi- política de empregabilidade
palmente psicólogos para desen- e habitação para a população
volverem ações e atendimentos trans, com quase 80 pessoas que
ao público. Além disso, teve in- já conseguiram emprego formal,
ício a parceria com a Secretaria via parcerias, além do avanço na
Municipal de Desenvolvimento formação de equipes técnicas
Social, para assessoria jurídica e nas Unidades de Saúde capazes
com a Secretaria Municipal de de oferecer serviços inclusivos.
Habitação que viabilizou a con- As oficinas nas escolas mu-

16
nicipais, que acontecem hoje ar- disponibilizados.
ticuladas com o Projeto ResisTO Roberto e Diego destacam
do Laboratório Metuia de Terapia que um dos principais desafios do
Ocupacional da UFPB possibili- CCLGBT é a relação das pessoas
tam a discussão de temas como trans com o sistema de educação,
gênero, sexualidade, questões ét- que ainda aparece no discurso de
nico-raciais e diversidade religio- muitas delas como um espaço
sa com professores e estudantes de exclusão, visto que grande
das escolas municipais. parte das pessoas trans atendi-
Outro exemplo é o RisoTrans, das pelo centro não concluíram o
projeto novo em parceria com Ensino Fundamental. Além disso,
o Centro Universitário de João algumas ampliações referentes
Pessoa (UNIPÊ) para cuidar da ao espaço físico e à estrutura da
saúde bucal das pessoas trans no CCLGBT são necessárias, bem
gabinete odontológico. como ampliação da equipe técni-
Além desses, continuam os ca e dos recursos para a efetivação
atendimentos da Psicologia no das propostas.
CCLGBT, que antes aconteciam Diego destaca que para o
pela parceria com a Secretaria início das ações foi bastante im-
Municipal de Saúde, que cedia portante realizar a articulação en-
alguns profissionais para realiza- tre a implementação da política
rem acompanhamentos em um púbica e se colocar aberto à escu-
período da semana, e hoje con- ta das necessidades da população
ta com dois psicólogos e 20 es- LGBTQIA+ do município, que são
tagiários que acompanham por muitas e, por isso, ser possível
volta de 100 pessoas LGBTQIA+ ofertar uma gama interessante
por semana, que sofreram al- de serviços, desde a empregabili-
gum tipo de violência e buscam dade, assessoria jurídica, ações de
o processo de psicoterapia. psicoterapia, entre outras.
Já no contexto da pandemia Diante do atual cenário políti-
da covid-19, surgiu a necessidade co com a relação ao desmonte das
de articulação com a Secretaria políticas de direitos humanos, edu-
Municipal de Desenvolvimento So- cação e o próprio sistema único da
cial para a entrega de cestas bási- saúde, consideramos importante
cas e marmitas para a população atuar na resistência e em parceria
LGBTQIA+ em situação de extrema com os movimentos sociais LGB-
vulnerabilidade. Hoje, são cerca TQIA+ para que possamos reafir-
de 1.400 pessoas LGBTQIA+ ca- mar a continuidade dessa política
dastradas no CCLGBT e que são em uma sociedade tão excludente
atendidas em algum dos serviços

17
que viola os direitos dessa população cotidianamente.

REFERÊNCIAS

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ção de identidades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond,
2005.

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das Ações do Programa Brasil Sem Homofobia em João Pessoa/
PB. 2016. 145 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba,
João Pessoa, 2016.

GOMES, J. C.; ZENAIDE, M. N. T. A trajetória do movimento social pelo


reconhecimento da cidadania LGBT. Tear: Revista de Educação, Ci-
ência e Tecnologia, v. 8, p. 1-20, 2019.

OLIVEIRA, T.de L. Levantar Bandeira e dar Pinta: elementos para uma


historiografia do movimento LGBTT na Paraíba. João Pessoa, 2014.

OLIVEIRA, T.de L. Da política como partição e resistência: esboço de his-


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ticas LGBTs na Paraíba. Salvador: Editora Devires, 2019, p. 29-52.

NASCIMENTO, S. A vanguarda da diversidade sexual no interior parai-


bano: do sertão à serra da Borborema. In: NASCIMENTO, S.; FRANCH, M.
(Org.). Entre o sertão e o mar: políticas e poéticas LGBTs na Paraíba.
Salvador: Editora Devires, 2019, p. 53-72.

SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Do movimento homossexual ao LGBT. São


Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.

VIEIRA, Luciano Bezerra. Movimento do Espírito Lilás – Mel (1992 –


2015): um breve histórico. João Pessoa, 2015

18
O Programa
Transcidadania
JP e a inclusão
de travestis
e transexuais
nas políticas
públicas

Roberto Cezar Maia de Souza


Este capítulo tem como objetivo mostrar a importância do Pro-
grama Transcidadania JP na implantação de políticas públicas para a
população de travestis e transexuais residentes na grande de João Pes-
soa. Ele busca também dialogar sobre como a inserção nas políticas de
habitação, direitos sociais, empregabilidade e educação são de funda-
mental importância para que essa população possa viver com digni-
dade em um país que em que pessoas trans têm uma expectativa de
35 anos de vida1 . Para isso, iniciamos com um breve histórico sobre o
Programa Transcidadania de João Pessoa. Em seguida, discutimos te-
oricamente e com alguns dados empíricos o que se entende por iden-
tidade de gênero e, desse modo, repassamos algumas compreensões
sobre transexualidade e travestilidade. Depois, discutimos as diretrizes,
serviços e parcerias do Programa, seus resultados e desafios. Por fim,
incluímos três relatos que trazem pontos de vista complementares so-
bre o Programa Transcidadania: um relato escrito por André Mota e
Everson de Pádua Oliveira Araújo, respectivamente diretor e gerente
de Recursos Humanos da empresa LIQ, e os depoimentos de Diego Ro-
drigues e Louise de Assis, assessores técnicos do Programa.

Fotos: Pessoas travestis e transexuais na primeira Feira de


Serviços em janeiro de 2016, no paço municipal de João Pessoa.
Fonte: Arquivo pessoal

1. Dados da União Nacional LGBT apontam que o tempo médio de vida de uma pessoas trans
no Brasil é de 35 anos , enquanto na população em geral é de 75,5, de acordo com infor-
mações divulgadas em dezembro de 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).

20
INTRODUÇÃO

O Programa Transcidadania JP teve inicio em março de 2015 e


tem como objetivo a promoção dos direitos humanos e da cidadania
de pessoas travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade so-
cial, além de oferecer condições e novas trajetórias de oportunidades
de vida para elas. A inspiração inicial veio do Programa Transcidadania
desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo, desde 2015. Por isso, é im-
portante recordar como entramos em contato com o Programa em São
Paulo pela primeira vez.
No início do ano de 2015, fomos convidados para compor a mesa
de abertura do I Encontro Nacional de Homens Trans na Universidade
de São Paulo – USP. O convite foi motivado porque três anos antes, em
agosto de 2012, havíamos promovido o I Encontro de Homens Trans do
Nordeste em João Pessoa. Além de participar da mesa, resolvemos apre-
sentar no evento uma exposição sobre o Calendário LGBT, que havía-
mos realizado em parceria com o movimento social da Paraíba. Repre-
sentando a Coordenadoria LGBT e Igualdade Racial, fomos eu (Roberto
Maia) e Diego Rodrigues para o encontro. Quando chegamos à USP,
avistamos nossos companheiros de ativismo da Paraíba, como Fernan-
da Benevenutty, e vários amigos do movimento nacional de homens
trans, como João W. Nery1 e Luciano Palhano2 . O evento iniciou e du-
rante a abertura ouvimos uma fala que nos chamou a atenção; era Ales-
sandro Melchior informando sobre como eles estavam implantando o
Programa Transcidadania no município de São Paulo. Logo que Ales-
sandro terminou sua fala, pedi para ter um diálogo com ele e solicitei
ir conhecer a sede do Programa em São Paulo. No dia seguinte fomos
até o centro da cidade, onde fica a sede do Transcidadania, e conheci
várias pessoas trans que faziam parte do Programa, dentre elas Simmy
Larrat, atual presidenta da ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lés-
bicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos. Ficamos tão mara-
vilhados com o que nos foi apresentado que decidimos convidar Ales-
sandro para ir a João Pessoa apresentar o Programa Transcidadania de
São Paulo, de modo a servir de base para nós, gestores, implantarmos o
Programa Transcidadania de João Pessoa.
Na primeira etapa resolvemos, então, trazer o coordenador do Pro-
grama Transcidadania de São Paulo para nos explicar os principais tópi-
cos de como estava sendo implantando o Programa na capital paulista.
Também buscávamos sensibilizar os gestores de várias secretarias e o
movimento social sobre a importância de haver um programa específ-
ico para esse público. Por fim, nesse primeiro momento, deveríamos
fazer a pactuação necessária com os gestores para que estes percebes-
sem a importância de cada pasta na inclusão das travestis e transexuais
2. João W. Nery foi um psicólogo e escritor brasileiro. Foi o primeiro homem trans a realizar a
cirurgia de redesignação sexual no Brasil, em 1977, e foi ativista pelos direitos LGBT.
3. Luciano Palhano foi coordenador do IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades,
ativista pelos direitos das pessoas trans e não binárias.

21
nas políticas públicas. Esse amp- houvesse vários serviços aten-
lo diálogo foi realizado no dia 25 dendo simultaneamente. Enfim,
de março de 2015, às nove horas foi um dia de muito impacto para
da manhã, no auditório da FUN- nós, gestores, que estávamos na
JOPE. mesa e ouvimos com atenção
Na sequência, ouvindo a as grandes queixas dessa po-
população de travestis e transex- pulação, que falava sobre a falta
uais sobre todas as dificuldades de um olhar na saúde que res-
que têm de acessar as políticas peitasse o nome social, sobre os
públicas, resolvemos concen- programas sociais como o Bolsa
trar num único espaço as feiras Família, que não chegavam até a
de serviços, de modo que inici- maioria, sobre a grande quanti-
amos, no Paço Municipal, no dia dade de mortes e violência sofri-
29 de janeiro de 2016, a oferta de das pelas pessoas trans nas ruas,
serviços de saúde, educação e a falta de empregabilidade e de
habitação num embrião do que programas habitacionais para
mais tarde seriam nossas feiras essa população.
de serviços. Na ocasião, tam- Foi a partir dessa escuta
bém apresentamos a exposição que iniciamos a Feira de Serviço
TransLuz 3 e abrimos, na parte e Empregabilidade, que passou a
da tarde, um espaço de diálogo ser realizada a partir de 2016 no
com as pessoas presentes. Tive- Centro de Cidadania LGBT. Por
mos, em média, cem pessoas um lado, procuramos e conse-
travestis e transexuais discutindo guimos estabelecer parceria com
políticas públicas e é claro que todas as secretarias e políticas
recebemos dezenas de críticas, do município, como Habitação,
pois o Estado esteve omisso du- Educação, Desenvolvimento So-
rante todos esses anos para com cial, Saúde, Mulher, Secretaria
essa população. Escutamos as do Trabalho, Sine Municipal e o
críticas e decidimos, dali por di- CELEST – Escola de Línguas do
ante, estarmos mais próximos. município. Além disso, inicia-
No mesmo dia, dialogamos com mos uma parceria com empre-
as secretarias presentes - Habi- sas privadas de João Pessoa que
tação, Saúde e Educação – para foi de fundamental importância
viabilizar a criação de espaços para o êxito do Programa Trans-
permanentes de encontro para cidadania, pois desde o início do
essa população acessar. Deste Programa temos 82 pessoas que
modo, a ideia de uma feira de conseguiram sua carteira de tra-
serviços surgiu a partir da neces- balho no mercado formal.
sidade da população de travestis Outra questão importante
e transexuais expressa naquele foram as parcerias com as uni-
seminário, que apontou a urgên- versidades e seus programas
cia de se ter um espaço onde como o Riso Trans do curso de
odontologia da UNIPÊ, o Cine
4. TransLuz – Outras Expressões do Femini- Contracultura do Departamento
no é uma exposição do fotógrafo Wagner
Pina que revela diversas identidades femi- de Comunicação da UFPB, o pro-
ninas de travestis e transexuais.

22
jeto Resisto do Departamento de quanto que as pessoas trans-
Terapia Ocupacional, também da gêneras (que podem ser as tra-
UFPB, o projeto do Grupo de Apo- vestis, homem trans, mulheres
io Jurídico Universitário - GAJU trans, pessoas não binárias entre
do Curso de Direito de Santa Rita, outras definições) geralmente
e os estudantes de psicologia da têm um sexo biológico não con-
Faculdade Maurício de Nassau, dizente ao gênero de pertenci-
UFPB e FPB – Faculdade Interna- mento. Para não encerrarmos a
cional da Paraíba. questão na genitália, podemos
Assim percebe-se que o Pro- dizer que as pessoas cisgêneras
grama Trancidadania alcançou se identificam com o sexo social-
um público expressivo na Grande mente atribuído a elas ao nascer,
João Pessoa, com 335 pessoas ou até mesmo antes disso, e as
trans cadastradas, sendo que pessoas transgêneras, não. Tam-
parte delas conseguiu se inserir bém é importante destacar que
tanto no mercado de trabalho a forma como as pessoas se auto-
como nas políticas públicas. Con- definem vai além dessa diferen-
sidero importante ressaltar a ciação acima, pois as identidades
contribuição de cada secretaria e são, também, políticas e históri-
empresa para que se possa visu- cas, além de nos falar da ordem
alizar melhor o que cada organi- da subjetividade.
zação contribuiu para a inserção Segundo Joan Scott (1995),
social dessa população. gênero é o primeiro campo onde
damos significado às relações de
DIALOGANDO SOBRE IDEN- poder, percebemos que o pod-
TIDADE DE GÊNERO E SUAS er existe nas categoriais iden-
IMPLICAÇÕES titárias e no significado da rep-
resentação do gênero masculino
em domínio ao gênero feminino
O Programa Transcidada-
e muitas vezes endossado por
nia alinha-se às teorias que per-
uma moral social e familiar. A
cebem as identidades de gênero
própria educação familiar ao
como múltiplas e que prezam
gênero feminino não lhe permite
pela defesa dessa diversidade.
nem mesmo ter desejos, imprim-
Nesse sentido, partindo de uma
indo uma educação que reprime
terminologia das identidades de
a liberdade desses corpos e tolhe
gênero, há as pessoas cisgêneras,
a autonomia do gênero feminino
ou seja, aquelas pessoas que se
por suas escolhas, sua expressão
identificam com a genitália de
e sua própria sexualidade.
nascimento, seu gênero é con-
Importante perceber que
cordante com seu sexo biológi-
as identidades sociais sobre o
co, a pessoa se percebe homem
corpo, sua fluidez, a autonomia
ou mulher e o gênero com o
dos sujeitos sobre seus corpos e
qual se identifica é o mesmo da
a própria questão de gênero de-
sua genitália, resumindo, a sua
vem ser deslocadas da questão
psique em relação ao gênero é
meramente biológica, pois fazem
igual ao seu sexo biológico; en-
parte de uma construção social.

23
Percebemos assim a afirmação Em relação às travestis não
de Judith Butler (2008 p.45) so- se sabe ainda quando se deu o
bre essas questões: aparecimento dessa categoria
identitária em nosso país, acredi-
[...] o corpo é uma constru-
ção social e que, portanto, a pos-
ta-se que se iniciou nos anos 1960
sibilidade de mudar, interferir e 1970 em algumas atividades
no corpo por meio de cirurgias relacionadas às artes cênicas.
é a afirmação da necessidade Nessa mesma década, no Brasil,
de questionar o próprio corpo, algumas pessoas começam a se
demonstrando assim o caráter
mutável, não natural e construído
denominar como mulheres tran-
das categorias sexo, gênero e het- sexuais devido a essa nomencla-
erossexualidade. tura ser utilizada nos países do
continente europeu. Nos anos
Quando falamos em identi- 1980 tivemos uma grande mi-
dade de gênero, é importante re- gração dessa população para
fletir que o Brasil é o país onde há Paris e para outras cidades eu-
maior número de homicídios de ropeias, onde muitas trabalham
travestis e transexuais no mundo, com a prostituição como parte
de acordo com a ONG Transgen- de seus processos de transição
der Europe (TGEU), rede europeia de gênero. Vale ressaltar que foi
de organizações que apoiam os di- em Paris que muitas travestis e
reitos da população transgênero. transexuais tiveram seu primeiro
Entre os meses de janeiro de 2008 contato com o uso do silicone
a março de 2014, foram registradas industrial, até hoje desaconsel-
604 mortes dessa população no hável em pessoas, porém ainda
país. De acordo com a transexual uma prática rotineira na popu-
Rafaela Damasceno, “infelizmente, lação das travestis e mulheres
são pouquíssimas as travestis e transexuais (BRASIL, 2015).
transexuais que conseguem pas- Importante salientar ain-
sar dos 35 anos de idade e envel- da que, no Brasil, a identidade
hecer. Quando não são assassina- trans foi considerada doença até
das, geralmente acontece alguma recentemente, de acordo com
outra fatalidade”4 . Ainda segundo a 10ª edição do Código Estatísti-
dados da ANTRA – Associação Na- co Internacional de Doenças e
cional de Travestis e Transexuais, Situações de Saúde - CID 10. So-
apenas nos dois primeiros meses mente no ano de 2109 tivemos
do ano de 2020 o Brasil apresentou um avanço no CID 11 que retir-
aumento de 90% no número de ou, após 28 anos, a transexuali-
casos de assassinatos em relação dade da categoria de transtor-
ao mesmo período de 2019. Em nos mentais para integrar o de
2019 foram 20 casos no mesmo “condições relacionadas à saúde
período, enquanto que em 2020 sexual”. Mesmo assim, consta
foram 38 assassinatos. no CID 11 sua classificação como
¨incongruência de gênero¨. Isso
5. https://agenciabrasil.ebc.com.br/dire- me faz questionar: se as pessoas
itos-humanos/noticia/2015-11/com-600-
mortes-em-seis-anos-brasil-e-o-que-mais- cisgêneras não estão em nen-
mata-travestis-e

24
huma categoria do CID 11 em preenchidas por ela, elencamos
relação à identidade de gênero, alguns princípios do programa
por que as pessoas transexuais que seriam nosso eixo norteador
ainda precisam constar como e nossa finalidade:
incongruência de gênero? Isso a) preparação e inserção da po-
não seria uma forma ainda de pulação trans de João Pessoa
manter a patologização dessas no mercado do trabalho for-
pessoas trans no Código Interna- mal;
cional de Doenças? Considera-
mos necessário falar sobre esse b) elevação da escolaridade bá-
assunto pois ainda temos uma sica;
sociedade que coloca essas pes- c) formação profissional;
soas rotineiramente no lugar de
objeto e de coisificação, seja nos d) transferência de renda;
equipamentos públicos, privados e) inserção nos programas habi-
e nas relações familiares enxer- tacionais existentes;
gando essa população de forma
f) articulação da gestão para in-
patologizante.
serir essa população nos pro-
Refletindo sobre a patologi-
gramas sociais;
zação das identidades transexu-
ais, Baldiz (2010) diz que, se algo é g) inserção na atenção básica no
considerado como doença, impli- SUS.
cará inclusive numa “desrespons- Ainda em relação à per-
abilização” desses sujeitos com cepção das pessoas, trazemos al-
relação ao que se passa com eles gumas vulnerabilidades das pes-
e em suas vidas pessoais, levan- soas travestis e transexuais que
do uma parte dessa responsabili- foram constatadas por meio da
zação ao saber e poder da figura fala das mesmas em nossos aten-
do médico. Assim, a importância dimentos, bem como no preen-
da “despatologização” e conse- chimento da ficha de cadastro
quentemente da responsabili- do programa, tais como: não in-
zação na vida desses sujeitos, le- serção no mercado de trabalho
varia a um maior entendimento formal; não reconhecimento so-
de seus desejos e traumas, fazen- cial, jurídico de travestis e tran-
do com que cada um reflita so- sexuais; transfobia social; evasão
bre aquilo que está envolvido ou precoce da escola; expulsão de
mesmo implicado sobre vivên- casa e falta de apoio da família;
cias de prazer e sofrimento. condições precárias de moradia
ou situação de rua; prostituição
DIRETRIZES DO PROGRA- como única forma de trabalho
MA TRANSCIDADANIA e renda; violência pública; mi-
gração para a rede de exploração
Depois de muito diálogo sexual; atendimento discrimina-
com a população trans e tam- do nas políticas públicas; proces-
bém fazendo uma leitura das pri- so transexualizador clandestino e
meiras fichas sócio-econômicas inseguro; dificuldade de acesso
às políticas de educação, saúde e
desenvolvimento social.

25
COMO FALAR DE CIDA- se tornava uma rotina para elas
usufruírem daquilo que era seu
DANIA PARA AS PESSOAS
de direito e lhes foi negado du-
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS rante anos. Hoje temos em média
SEM FALAR DA PROSTITUI- de 340 travestis e transexuais ca-
ÇÃO dastradas no Programa Transci-
Importante ressaltar que foi dadania.
a partir de nossa ida até os pon- Uma questão que observa-
tos de prostituição que consegui- mos na abordagem de rua é que
mos inserir essa população no grande parte dessas pessoas es-
Centro de Cidadania LGBT e di- tavam com fome, pois era mui-
vulgar o Programa Transcidada- to difícil sobreviver na rua com a
nia nesses espaços. A ida até es- prostituição, porém era o único
ses espaços se deu por meio da meio de elas conseguirem algum
então assessora técnica do Cen- dinheiro. Por isso sempre frisáva-
tro, Josy Silva que, junto comi- mos a importância de elas partici-
go, foi dialogar com as pessoas parem das feiras e irem conhecer
trans dos pontos de prostituição, de perto o trabalho do Centro de
avisando com antecedência que Cidadania LGBT. Outra questão
iríamos fazer uma visita em um é que sempre que se aproxima-
determinado dia. Há uma rede va um carro para falar com elas
de apoio entre a própria popu- nos afastávamos daquele espaço
lação e há lideranças nesses pon- para que elas pudessem nego-
tos, que abrigam e protegem as ciar seu programa com o seu cli-
pessoas travestis e transexuais ente, pois a nossa intenção não
que trabalham em determinado era higienizar aquele território da
território. Essas lideranças foram prostituição, ao contrário sabía-
avisadas e fomos para os pontos mos como aquele lugar havia
de prostituição de Mangabeira, uma representação de trabalho
Centro, Epitácio Pessoa e praia. e até mesmo de família com ou-
Geralmente quando chegáva- tra pessoa trans. Lá elas tinham
mos nos identificávamos e tam- seus códigos próprios, seu jeito
bém levávamos muitos insumos de conseguir seu dinheiro e nós é
de prevenção em IST/HIV/Aids que éramos os intrusos naquele
para podermos iniciar um diálo- lugar. É preciso esclarecer que
go. Nas visitas, falávamos um nossa intenção era dialogar sobre
pouco sobre como funciona o outras oportunidades para além
Programa Transcidadania e de da prostituição sem qualquer
qual horário elas precisariam es- cunho moralizador da nossa par-
tar nos diversos serviços, como te. Nós acreditamos que a pros-
na Feira de Serviços e Emprega- tituição possa ser uma escolha
bilidade. Foi assim que elas aos e um direito de cada uma delas,
poucos chegavam ao Centro de porém nunca uma escolha de
Cidadania, primeiramente bem forma compulsória, que é o que
desconfiadas, porém quando termina acontecendo em nosso
viam que havia todo um ambi- país por falta de outra fonte de
ente preparado para recebê-las, renda e de trabalho que venha
acolher essa população.

26
Foto: Feira de empregabilidade e
serviços com os nossos parceiros
Fonte: Arquivo pessoal

O PROGRAMA TRANSCIDA- Escola de Jovens e Adultos


- EJA Municipal e Estadual: para
DANIA E SUAS PARCERIAS
inserir a população de Travestis
e Transexuais de João Pessoa no
No Centro de Cidadania
Ensino fundamental I e II, conta-
LGBT cada pessoa preenche
mos com a participação do EJA
uma ficha sobre o perfil
municipal para o ensino funda-
sócio-econômico e psicossocial
mental e também com o EJA Es-
de forma individualizada pois,
tadual para o ensino médio.
além de termos dados sobre a
Banco Cidadão: com o ob-
população, isso serve para sa-
jetivo de inserir a população de
ber as necessidades individuais
travestis e transexuais nas linhas
de cada sujeito. É também por
de micro crédito por meio da
meio dessa ficha que fazemos
secretaria do Trabalho de João
as chamadas para as feiras de
Pessoa, além de possibilitar-lhes
serviços e realizamos os convites
o acesso aos cursos de micro em-
para a participação nelas.
preendedorismo para as pessoas
O Programa Transcidadania
que possuíssem o perfil em-
de João Pessoa possui parceiros
preendedor, fizemos uma parce-
fundamentais para que ele acon-
ria com a Secretaria da Mulher,
teça, desde as secretarias muni-
conseguindo desse modo inserir
cipais de João Pessoa até empre-
muitas mulheres trans e travestis
sas privadas. Listamos, a seguir,
na linha do empreender Mulher.
essas parcerias bem como as
Ruartes: conta com uma
atribuições de cada organização.

27
equipe ligada à Secretaria de ciou uma demanda espontânea
Desenvolvimento Social e reali- na busca da realização de teste
zam o acolhimento da população rápido no Centro de Cidadania
de travestis e transexuais viven- LGBT. É bom ressaltar que du-
do em situação de rua no diálo- rante muito tempo a questão das
go sistemático com essa popu- IST, HIV e Aids era a única política
lação, inclusive em alguns pontos pública voltada para a população
de prostituição, para informação trans neste país. Isso foi impor-
sobre os benefícios sociais bem tante principalmente no início da
como para fazer a ponte entre a pandemia da Aids, porém che-
rua e as casas de acolhida. Vale gamos num momento que não
ressaltar que nessa parceria a dava para associar a população
própria equipe entra em contato trans a uma determinada política
conosco; as pessoas são encamin- de saúde sem enxergar a neces-
hadas para o Centro de Cidada- sidade de outros determinantes
nia LGBT, depois para o Centro de sociais e a inserção de outras
Acolhimento à População de Rua políticas públicas.
- CENTRO POP e posteriormente Cartão do SUS: realizamos
para as casas de acolhida. uma parceria com o Lactário
Consultório na rua: con- da Torre, onde é confeccionado
ta com quatro equipes ligadas o cartão do SUS em João Pes-
à Secretaria de Saúde do mu- soa. Nessa pactuação todos os
nicípio, que se revezam em deze- cartões confeccionados só de-
nas de comunidades em João vem sair com o nome social das
Pessoa e realizam o acolhimen- pessoas trans e travestis. Isso foi
to da população de travestis e muito importante pois, a partir
transexuais vivendo em situação de 2015, com o cartão do SUS,
de rua para o encaminhamen- elas foram mais respeitadas nos
to aos serviços de saúde dessa equipamentos de saúde bem
população à rede do SUS. De- como na maioria das vezes era o
pendendo do caso, essas pessoas único documento que poderiam
também passam pelo Centro de mostrar antes de realizar a mo-
Cidadania LGBT para fazer seu dificação de seu prenome e sexo
cadastro e verificamos a neces- civil no cartório.
sidade de atendimento jurídico, SINE Municipal: encamin-
psicológico, empregabilidade e har as travestis e pessoas tran-
encaminhamento para as casas sexuais usuárias do Centro de
de acolhida. Cidadania LGBT semanalmente
CTA - Centro de Testagem para o SINE Municipal e ser en-
e Aconselhamento em IST-AIDS: caminhado para as empresas
No início do Programa, o CTA re- parceiras do SINE faz parte dos
alizava testes rápidos em HIV, sí- procedimentos adotados no
filis e hepatites virais nas feiras de Transcidadania. Vale ressaltar
serviços, além de disponibilizar que realizamos várias oficinas so-
insumos de prevenção para tra- bre identidade de gênero e sex-
vestis e transexuais. Com o passar ualidade com os funcionários do
do tempo, a equipe foi capacitada SINE Municipal para acolher essa
para realizar os testes, o que ini- população. Nas feiras de empre-

28
gabilidade, o SINE sempre se faz Estrangeiras de João Pessoa
presente recebendo currículo – CELEST: o Centro de Línguas
dos nossos usuários e encamin- do Município de João Pessoa
hando ao mercado de trabalho começa a inserir a população de
formal. travestis e transexuais em 2018
Secretaria Municipal de com vagas especificas. Em média
Habitação – SEMHAB: pactua- são disponibilizadas 25 vagas por
mos com a SEMHAB que a habi- semestre nos cursos de libras,
tação seria uma prioridade para inglês, francês, espanhol, portu-
a população de travestis e tran- guês e alemão. As vagas rema-
sexuais. Desde 2016 conseguim- nescentes que não são preenchi-
os realizar a inscrição da grande das abrimos para a população de
parte da população no Programa lésbicas, gays e bissexuais. Vale
Minha Casa Minha Vida e assim ressaltar que essas vagas são
conseguimos concretizar o sonho apenas para o Programa Transci-
da casa própria de muitas pes- dadania JP, porém o site é aberto
soas inscritas no Programa Trans- também para qualquer pessoa
cidadania. Essa foi uma grande LGBT que queira se inscrever pelo
contribuição para mudar a vida site da prefeitura de João Pessoa.
dessas pessoas e para garantia Como a população de travestis e
de qualidade de vida, com uma transexuais tem dificuldade de
média de 30 casas conseguidas e ter acesso a essas informações
mais de 100 inscrições realizadas resolvemos realizar essa inscrição
no Programa Minha Casa Minha mais de perto durante as feiras
Vida no decorrer desses anos. Es- de serviço e empregabilidade.
peramos que as demais pessoas Selo da Unidade Amiga
inscritas no Programa Minha LGBT+: depois de realizar mui-
Casa Minha Vida possam em tas oficinas em unidades de
breve ter sua residência própria. saúde da família e perceber que
Cadastro Único e o Bol- a população de travestis e tran-
sa Família: outro dos objetivos sexuais não acessava a atenção
perseguidos pelo Programa básica, tivemos uma reunião so-
Transcidadania foi o de inserir bre a pactuação de unidades de
essa população nos eventuais referência em abril de 2017, na
benefícios sociais, pois grande qual tentamos pactuar 05 uni-
parte das travestis e transexuais dades de referência, sendo uma
de João Pessoa não tinham o co- unidade por distrito sanitário.
nhecimento sobre o CAD Único e Porém devido à alta demanda do
o Programa Bolsa Família como Centro de Cidadania não conse-
um direito delas. As políticas guimos realizar todas as oficinas
públicas não chegavam até elas. conforme pactuado.
Nas feiras de serviços e empre- Foi somente em 2019, quan-
gabilidade o CAD Único era um do os residentes multiprofissio-
dos locais mais acessados, reve- nais chegaram até o Centro de
lando que havia sempre muita Cidadania LGBT e perceberam a
demanda de novos usuários sem importância da referência para
ter acesso a esse benefício. a população LGBT, que surgiu a
Curso no Centro de Línguas ideia, trazida por eles, de fazer um

29
projeto de selo Unidade Amiga acolhidas por outros moradores
LGBT, como o que estava ocor- das casas. Com essa política para
rendo em Salvador e dando certo. as pessoas trans percebemos
As equipes se inspiraram nesse que teve iní cio uma migração de
projeto e foi iniciado o processo outros estados e municípios para
de pactuação desse selo, o plane- João Pessoa, por conta de que
jamento para as oficinas e a for- muitas eram expulsas de casa ou
ma da metodologia desenhada estavam em situação de rua em
pelos residentes multiprofission- outras cidades. Há um aspecto
ais de saúde com os demais pro- positivo nessa migração no sen-
fissionais do Centro de Cidadania tido dessa população acessar as
LGBT. No capítulo 8 deste livre, políticas públicas de João Pessoa
essa iniciativa é descrita com porém percebemos uma grande
maior riqueza de detalhes. dificuldade de outros municípios
Casas de acolhida: foi por não terem nenhuma política
meio das casas de acolhida que específica, o que nos traz uma
conseguimos inserir a população grande preocupação sobre até
de pessoas travestis e transexu- quando iremos dar conta do au-
ais vindas de outros municípios mento da população de traves-
para ter um lugar provisório para tis e transexuais vinda de outros
ficarem. Depois de muita recla- municípios.
mação de que passavam por Gabinete odontológico em
preconceito e violência verbal parceria com o consultório na
por parte de outros usuários das rua: Foi por meio da demanda de
duas casas de acolhida, resolve- pessoas travestis e transexuais
mos fazer uma pactuação para a que viviam em situação de rua
destinação de quartos específi- que abrimos o primeiro diálogo
cos para a população LGBT+. Isso para cuidar da saúde bucal des-
aconteceu dialogando com os sa população. Assim, pactuamos
coordenadores das casas e per- que mensalmente o gabinete vo-
cebemos que elas foram melhor lante ligado à secretaria de saúde

Foto: Gabinete odontológico no Centro de Cidadania LGBT


no atendimento à população de travestis e transexuais.
Fonte: Arquivo pessoal

30
pudesse estar no Centro de Ci- nização. Esse momento terminou
dadania LGBT para que de fato acontecendo e chegaram até
a saúde bucal dessa população nós inúmeros relatos de pessoas
fosse cuidada, já que havia uma que gostavam mais de ficar nas
grande resistência de elas irem empresas do que na casa delas
até uma unidade de saúde para convivendo com seus pais. A mu-
realizar tal procedimento. Depois dança da cultura da organização
fizemos uma outra parceria com perpassa desde a questão da mu-
o projeto Riso Trans da UNIPÊ, dança do nome social no crachá
o que fez com que a população até a questão do uso do banheiro
trans e travesti se deslocasse até de acordo com sua identidade
essa universidade para realizar de gênero. Nas primeiras empre-
outros tratamentos mais com- sas, tivemos até um embate em
plexos em relação a sua saúde relação à obrigação de mulheres
bucal. Mais informações sobre trans e travestis apresentarem o
esse serviço podem ser encon- documento de certificação mi-
tradas no capítulo sobre o Proje- litar como requisito para serem
to Riso Trans, neste livro. inseridas nas organizações. Foi aí
Parceria com as empresas que fomos dialogar com a equi-
privadas: no início das parcerias pe do exército para que elas pu-
dialogamos com a empresa LIQ dessem ter acesso a um docu-
(antiga CONTAX) e, como era mento de dispensação da junta
uma empresa de terceirização militar. Ou seja, outras demandas
de telemarketing, fomos mostrar também foram geradas a partir
o nosso portfólio e apresentar ao do ingresso delas no mercado de
setor de Recursos Humanos da trabalho formal.
organização a nossa proposta de Num segundo momento,
como inserir a população de tra- ocorreu a inserção de outras em-
vesti e transexuais dentro da em- presas além do mercado de tele-
presa. Mais adiante vamos relatar marketing. Até então tínhamos
como se deu essa intervenção. empresas que só lidavam com a
Depois da inserção da pri- voz das pessoas trans para seus
meira organização privada no clientes e ficávamos questionan-
Programa, vieram outras em- do quando essas pessoas ficari-
presas como a AeC, empresa de am de frente com seus clientes.
telemarketing, o que foi um novo Aos poucos conseguimos inserir
desafio, pois cada empresa só outras empresas que foram che-
poderia aderir à nossa propos- gando para participar do Pro-
ta se a equipe de Recursos Hu- grama por meio de agendamen-
manos, lideranças e técnicos das tos que fazíamos para levar nosso
empresas passassem por um portfólio e dialogar sobre o pro-
processo de capacitação sobre grama e as feiras de empregabili-
identidade de gênero e sexuali- dade. Foi deste modo que chega-
dade. Algumas empresas passa- ram as empresas Churrasquinho
mos meses até que de fato fosse do Gaúcho, um restaurante que
mudada a cultura organizacional contratou pessoas trans para tra-
para que as pessoas trans pudes- balharem no atendimento ao cli-
sem se sentir à vontade na orga- ente, e o Café Empório, um bar

31
LGBT+ conhecido na cidade, que sas parceiras são a PB Projetados,
fez contratação de pessoas trans. que começa a contratar pessoas
O Carrefour, que já tinha uma trans com perfil ligado à mão
política em prol da diversidade de obra técnica como eletricista,
e que consegue inserir pessoas encanador, auxiliar de serviços
trans em seu quadro de pessoal, gerais entre outros, a empresa
também contratou uma pessoa Chilli Beans, que tem um per-
gay para seu quadro em uma das fil mais jovem em alguns shop-
feiras de empregabilidade. Mais pings de João Pessoa, e a Villa
adiante essa pessoa se tornou do Porto, uma casa de show que
referência e passou a trabalhar também acolheu pessoas trans
no setor de recursos humanos em seu quadro de pessoal.
da empresa e começou a par- Vale ressaltar que iniciamos
ticipar das nossas feiras, agora uma parceria com o shopping
como pessoa responsável pelas Tambiá por meio de uma de-
contratações. A empresa O Boti- manda vinda do movimento so-
cário iniciou o processo de con- cial de João Pessoa, que nos con-
tratação de pessoas trans na feira vidou para participar de algumas
de empregabilidade. A empre- reuniões com o superintendente
sa Ferreira Costa abriu as portas em parceria com a Secretaria das
para levarmos os currículos até Mulheres e o movimento de mu-
a empresa e também para con- lheres Maria Quitéria. Essa par-
tratar uma pessoa trans em seu ceria resultou em alguns totens
quadro de pessoal. A fábrica São de madeira com frases contra o
Braz, igualmente, iniciou o pro- machismo e sobre a inserção de
cesso de seleção de pessoal com travestis e transexuais no merca-
pessoas trans em uma feira de do de trabalho, a frase dizia: vai
empregabilidade. Outras empre- ter travesti trabalhando na sua

Foto: A Empresa LIQ realizando o dia da Visibilidade Trans


na própria organização
Fonte: Arquivo pessoal

32
empresa, sim! O que me chamou a atenção
nessa visita foi a grande varie-
O PROGRAMA TRANSCIDA- dade de organizações que fazem
DANIA CRIA ASAS E VOA o trabalho em Montreal, desde or-
PARA OUTROS PAÍSES ganizações que trabalham com
acervo histórico da população
LGBT no mundo até outras que
O ano de 2018 foi o ano do
trabalham com educação nas es-
reconhecimento do nosso tra-
colas, organizações de homens e
balho. Foi nesse ano que recebe-
mulheres negras LGBTs, organi-
mos da Consulta Pública de Mon-
zação sobre a política de redução
treal, Canadá, órgão vinculado à
de danos, organizações de traves-
Prefeitura daquela cidade, o con-
tis e transexuais e organizações
vite para dialogarmos sobre nossa
que trabalham em prol da saúde
experiência do Transcidadania e
e dos direitos de nossa população.
também do Centro de Cidadania
Foram dias intensos, em média
LGBT para gestores de Montreal,
de três visitas diárias a locais di-
Canadá. Foram dez dias intensos
versos da cidade de Montreal e
em agosto de 2018. Nesse perío-
que me trouxeram o desejo e a
do pude dialogar com gestores
vontade de fazer muito mais pela
da Secretaria de Desenvolvimen-
população trans do nosso país. No
to Social e de Educação, bem
final da visita acabei sendo convi-
como com a gestora da própria
dado pela própria Consulta Públi-
Consulta Pública, sobre como
ca para apresentar nosso trabalho
funciona o nosso Programa e
em Barcelona em novembro de
também conhecer mais 18 orga-
2018, pois haveria um grande en-
nizações ligadas ao terceiro setor
contro mundial de pessoas que
de Montreal e ver como eles reali-
trabalham com consulta pública
zam um trabalho espetacular em
em diversos continentes e o tema
relação às pessoas LGBTs. Lá, di-
daquele ano era a inclusão social.
ferentemente do Brasil, os recur-
Recebi o convite com muito entu-
sos são disponibilizados para as
siasmo e acabei passando cinco
ONGs anualmente para que elas
dias naquela cidade. Eu fui o úni-
possam realizar a política públi-
co brasileiro convidado em painel
ca a essa população. Ou seja, não
para apresentar o que estávamos
é o órgão da prefeitura que rea-
fazendo na área de inclusão so-
liza as ações, por isso eles queri-
cial com a população de travesti e
am conhecer gestores que reali-
transexuais.
zam ações para o público LGBT
Em 2019 recebemos a visi-
em prefeitura e foi assim que
ta dos gestores e sociedade civil
Luc Doray, assessor da Consul-
de Natal para conhecer o Centro
ta Pública, conheceu nosso tra-
de Cidadania LGBT e o programa
balho nas redes sociais, veio até
Transcidadania. Em média, 15
João Pessoa conhecer de perto o
pessoas vieram ao Centro e ficar-
Centro de Cidadania LGBT e fez
am impressionados com o nosso
o convite para essa troca de ex-
trabalho. Em junho de 2020 re-
periências.
cebemos a notícia que a Prefei-

33
tura de Natal já alugou o imóvel tegrais à população das travestis
para o funcionamento do Centro e transexuais para aplicação da
de Cidadania e estão comprando hormonioterapia e os cuidados
os móveis para iniciar o trabalho integrais a sua saúde. Podemos
pós pandemia. refletir que temos ainda alguns
desafios, principalmente em
RESULTADOS E DESAFIOS relação à inserção das travestis e
transexuais na educação formal
Com o Programa Transci- já que grande parte fala sobre o
dadania implantado em João trauma e sobre a dificuldade de
Pessoa temos grandes conquis- voltar principalmente por con-
tas e avanços nas políticas e ta da representação de exclusão
públicas da população das trav- que está inserida no imaginário
estis e transexuais, tais como dessa população. O maior desa-
emprego formal no mercado de fio que continuamos enfrentan-
trabalho, incentivo ao empreend- do é em relação à diminuição do
edorismo individual, inserção assassinato de pessoas trans em
nos programas sociais, inserção nosso país, tanto em relação ao
na educação por meio da edu- homicídio como em relação ao
cação de jovens e adultos (EJA), suicídio. É preciso continuar so-
garantia de casa própria para a mando esforços e permanecer
população das travestis e tran- atentos na luta pela cidadania
sexuais inscritas no Programa das pessoas travestis e transex-
Minha Casa Minha Vida, inserção uais, fortalecendo políticas espe-
da população que vive em situ- cíficas e ampliando as parecerias.
ação de rua nas casas de aco-
lhida adulta e, recentemente, a REFERÊNCIAS
pactuação de unidades de saúde
da família para atendimento in-

BALDIZ, M. El psicoanálisis contemporâneo frente a las transexualida-


des. In: MISSÉ, M.; COLL-PLANAS, G. (Org). El género desordenado –
críticas em torno a la patologización de la transexualidad. Barcelona
– Madrid: EGALES, 2010, p 173-193.

BENTO, M. B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experi-


ência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identida-


de; Trad. Renato Aguiar. – 2º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2008.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Parti-
cipativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexua-

34
lidade e travestilidade na saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2015.

Portal Brasil. Cirurgias de mudança de sexo são realizadas pelo SUS


desde 2008. http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/
cirurgias-de-mudanca-de-sexo-sao-realizadas-pelo-sus-desde-2008,
acesso em 25/05/2016.

SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Edu-


cação e Realidade, 20(2), jul./dez 1995, p.71-99.

35
Perspectivas sobre o Progra-
ma Transcidadania: a experi-
ência exitosa da empresa LIQ
André Mota e Everson de Pádua Oliveira Araújo

HISTÓRIA – DA PROVOCAÇÃO PELO NÚCLEO LGBT DA PRE-


FEITURA

(Nesse capítulo falaremos da nossa primeira reunião com o núcleo, desde


o momento da sua chegada à empresa até a desconstrução do nosso olhar que
se sucedeu àquele encontro essencial para tudo o que se seguiu depois)

Trabalhava como Gerente de RH na Contax (atual LIQ) em setem-


bro 2015 quando recebemos em nossa sede na Rua dos Escoteiros,
200 três pessoas que se apresentavam como integrantes do núcleo
LGBTQIA+ da Prefeitura de João Pessoa. Já era uma orientação da em-
presa receber órgãos de Estado e Governo de maneira transparente,
atenciosa e respeitosa. O setor de Call Center vinha de muitas críticas
em redes sociais, programas de humor e também era alvo de muitas
fiscalizações. Nossa postura era imprescindível para mostrar o quanto
éramos preocupados em atender todas as normativas legais, mas para
o site de João Pessoa, essa orientação ia além da realização de uma
tarefa. Construímos em João Pessoa um DNA de excelência em nossas
relações com as instituições, sociedade, bairro e todas as pessoas que lá
trabalhavam. Obviamente enfrentávamos problemas, como qualquer
empresa do porte da Contax/LIQ, mas estava em cada um de nós da
área de apoio e lideranças o objetivo pessoal do bem fazer para todos.
Foi nesse clima de atender sempre bem as pessoas e instituições
que recebemos o núcleo da Prefeitura, mesmo que para isso precisás-
semos interromper alguma atividade. Foi anunciado que Roberto Maia,
Diego e Josi, do núcleo LGBT da Prefeitura estavam na empresa e pre-
cisavam falar com o responsável pelo RH. Solicitei apoio na abertura de
uma sala de reunião e desci um tanto curioso. Por qual razão o núcleo
estava nos procurando? Considerávamo-nos a empresa mais inclusiva
que havia no mercado. Tínhamos preocupação com ambiente para as
pessoas, não havia nenhum tipo de discriminação por cor, religião, defi-
ciências, gênero ou por qualquer outra característica para quem qui-
sesse trabalhar conosco. O que poderia ter ocorrido para que o núcleo
nos procurasse naquele dia? Qual seria a demanda? Éramos alvo de al-
gum levantamento sobre discriminação ou algo parecido? O questiona-
mento era grande!

36
Na recepção, recebi o núcleo ra Josi e eu, posto numa posição
com o mesmo sorriso de sempre, de antagonista à sua vivência,
mas confesso que nossos amigos mesmo sem desejar esse pa-
não sorriam de volta na inten- pel. Um elefante branco havia se
sidade que sugerisse uma con- materializado na sala sem con-
versa amena. Eles se apresen- vite e era difícil de ser retirado.
taram, mostraram o objetivo de Não havia como eu gerir aquela
estar ali conosco, e fomos para a relação de forma assertiva. Por
sala de reunião onde iniciamos essa razão pedi a Everson que
uma conversa inquietante. abandonasse temporariamente
Na sala de reunião o nú- a atividade à qual estava dedica-
cleo detalhou seu objetivo de dar do, para que pudesse me apoiar
acesso às pessoas enquadradas naquele diálogo, em que cada
no grupo LGBT às nossas vagas vez mais eu assumia a posição
de trabalho. Tivemos uma es- de minoria acuada. Homem, cis,
clarecedora conversa sobre to- hétero e bem colocado na com-
dos os grupos que estavam en- panhia, cujas noções a respeito
quadrados sobre essa legenda e do próprio conhecimento sobre
de como para um grupo que so- a matéria, foram caindo por ter-
fria muita discriminação poderia ra gradativamente sem salvação
ter no call center um ambiente seja pela sociologia, antropologia
favorável ao trabalho, dado que ou psicologia de grupos. Matérias
não trabalhávamos com atendi- sobre as quais me apoiei.
mento presencial. Confesso que Everson era gestor de desen-
meu posicionamento sempre foi volvimento da companhia no site
inclusivo. Isso não é uma orien- de João Pessoa e responsável
tação administrativa. Sempre foi pela ambientação de novos co-
a minha forma de ver as coisas. laboradores, além do desenvolvi-
Acreditava com isso que conhe- mento e acompanhamento da
cia essas realidades, pelo menos qualidade das entregas realiza-
em tese, e que minha posição e das a cada operação de atendi-
influência por si só já seriam su- mento. Possuía também mais
ficientes se encontrassem na afinidade com o tema e o lugar
companhia solo fértil à inclusão. de fala que eu não possuía. Sua
Era nisso que acreditava. Era nis- presença na reunião tornara-se
so que nossos líderes e times de imprescindível para qualquer
apoio acreditavam. Ledo engano! avanço no diálogo.
Creio que não se passaram A chegada de Everson em
30 minutos de conversa e me nossa sala minimizou os ânimos,
senti acuado, arguido e pressio- certamente por sua positiva pre-
nado pela Senhora Josi. Roberto sença. Respiramos. Recomeça-
mantinha uma postura didáti- mos e dissemos muitas coisas
ca e Diego, muito sereno, apoia- novamente de outra forma. Ever-
va com mais esclarecimentos o son conduziu a reunião por nos-
discurso dos seus colegas. Havia sa parte de maneira assertiva
muita emoção na fala da Senho- na medida do que era possível,

37
pois ainda havia muita emoção dio visual a que tivemos acesso
na mesa. Lembro-me de a certa não davam conta de tanta tris-
altura da reunião, enquanto falá- teza e dificuldade enfrentadas
vamos sobre aspectos da identi- por essas pessoas. Figurantes na
dade social e de gênero, dentre sua própria história, mas em sua
os muitos assuntos aos quais eu maioria invisíveis ao Estado, à in-
ignorava, Diego deu o seu exem- ciativa privada, à sociedade de
plo como homem trans que, maneira geral e enfrentando um
embora fisicamente não apa- mundo de absurdos dentro das
rentasse nenhuma característi- suas próprias famílias.
ca feminina, precisa passar pelo Toda nossa reunião começa-
constrangimento de entregar va a fazer algum sentido, mas se-
uma identidade feminina. Diego ria preciso tempo para maturar-
relatou toda a dificuldade para a mos, embora tempo, fosse um
realização da troca do nome de recurso finito para o desafio que
forma oficial enquanto Roberto o núcleo nos colocou: incentivar
alertava que a falta de uma iden- a nossa seleção e contratação e
tidade oficial não era razão para nos colocar efetivamente como
expormos nos crachás, nomes uma companhia inclusiva para
que não condiziam com o gênero esse público, além dos demais.
das pessoas. Toda essa revelação, Não havia como fechar os
desde os assuntos até a apresen- olhos para essa realidade, nem
tação de Diego foi uma surpresa para mim nem para Everson,
para mim e acho que em parte nem para a Contax/LIQ.
também para Everson. Caminhamos pela empre-
O núcleo nos fez ver que sa apresentando os ambientes
havia questões que passavam ao e amenizando coisas que havía-
largo das nossas ações e preocu- mos dito em nossa reunião. Em
pações e que, sem responder minha cabeça estava um claro
pragmaticamente a elas, efetiva- divisor de águas e um desafio
mente não estávamos fazendo o enorme que viria pela frente, e
que dizíamos fazer. Um sofisma que não poderíamos de forma al-
enorme começava a aparecer ao guma abandonar.
se contrastar o que se acha que
sabe, com a realidade dos fatos ENTENDENDO NOSSO PA-
e a nossa inércia imoral diante PEL SOCIAL
dessa adversidade. Uma triste
constatação para nós que, nos
achando inseridos no objetivo de (Nesse trecho falamos so-
bre nosso encontro com nossa
transformar o mundo que nos
responsabilidade)
rodeava, achávamos que era pos-
sível intervir de forma positiva na Em setembro de 2015 quan-
sociedade sem imergir concre- do recebemos na Liq o represen-
tamente em sua dura realidade. tante da Prefeitura Municipal,
A verdade é que os artigos, revis- coordenador do programa de Pro-
tas e toda comunicação por áu- moção à Cidadania LGBT e Igual-
dade Racial, Roberto Maia, fomos

38
apresentados a estatísticas assus- polêmico, não prioritário ou ina-
tadoras de mortalidade da popu- ceitável)
lação trans na cidade de João Pes- Para os primeiros passos de
soa. Na época a expectativa de vida setembro a dezembro, o coorde-
dessa população era de 35 anos. nador de RH - Desenvolvimen-
Impulsionados a contribuir com a to, Everson de Pádua, conduziu
redução dos dados apresentados, mesas de trabalhos e estudos
fomos aderentes à proposta de mais detalhados sobre os temas,
empregabilidade sugerida no pro- fóruns de discussões no RH so-
grama Transcidadania. bre dúvidas e legislação. Nesse
O desafio proposto pelo período, foi concebido um mate-
grupo incentivou uma série de rial de sensibilização, que provo-
leituras e aprofundamento de- ca a reflexão sobre direitos hu-
talhado sobre o tema. Fizemos manos, consciência e práticas de
uma auto-observação como pes- empatia, responsabilidade social.
soas e como companhia e nesse Esse trabalho acima de tudo dis-
processo percebemos que havia seminou e incorporou a política
uma distância grande entre o do respeito na cultura organiza-
que gostaríamos de ser e o que cional. O portfólio foi construído
realmente éramos. A questão da pelo grupo de estudos e trabalho
transcidadania ficou mais evi- da área de desenvolvimento com
dente ao perceber que, nas nos- base em estudos aprofundados
sas diversas unidades, havia pes- sobre o tema e foi validado pela
soas trans e que não recebiam o gerência de RH.
tratamento assertivo por parte Com base nos estudos re-
da organização e dos seus fun- alizados e das reflexões geradas
cionários. Precisávamos abraçar no grupo interdisciplinar de tra-
a questão, discutindo claramente balho, iniciamos o processo de
seus aspectos sociais, políticos discussão em alçadas maiores da
e organizacionais. Isso foi feito companhia, como o setor jurídi-
e resultou num trabalho efetivo co, setor médico, engenharia
e prático que serve de exemplo dos ambientes e outros, todos
para qualquer outra organização. assistidos pela diretoria de RH
da companhia em São Paulo e
MESA PEDAGÓGICA DE ES-
com nossa constante defesa do
TUDOS: COMO IMPLANTAR projeto. Dessa forma colocamos
UM PROJETO SOCIAL em prática as ações de transfor-
mação conforme atos que de-
screvemos a seguir.
(Nesse momento falaremos
Após longas discussões com
das reuniões que se seguiram, as
objeções recebidas e dificuldades essas áreas, eliminamos mitos es-
verificadas para a implantação do truturantes do pensamento dis-
projeto, inclusive reuniões com criminatório, como o uso do ban-
alta gestão onde precisamos con- heiro, identidade social e possíveis
vencer os mesmos e tocar um
conflitos entre funcionários de re-
projeto que parte das pessoas
em cargos de direção via como ligiões menos tolerantes. De fato,

39
uma das discussões mais tensas lançamento do Programa para
no grupo de alta gestão estava na sociedade. Estavam presentes
questão do uso do banheiro. As a sociedade civil de maneira ir-
preocupações iam desde a possi- restrita, mas sobretudo o grupo
bilidade de homens cis usassem de interesse que desejavam tra-
da prerrogativa de travestir-se em balho. Na ocasião, explicamos
menina para adentrar esse ambi- como funcionava o processo se-
ente. A sugestão na época era cri- letivo da companhia e o trabalho
ar um banheiro separado o que se realizado para humanização e
traduziria em discriminação e por sociabilização no ambiente cor-
isso essa sugestão fora abando- porativo. Também prospectamos
nada por completo. As definições possíveis talentos para nosso
que se seguiram àquela rodada banco de dados.
de discussões foram: Não haverá Nos meses de fevereiro e
banheiro com 3ª designação pois março do mesmo ano, iniciamos
consideramos a existência de dois o trabalho de formação/sensi-
gêneros, não importando se nasci- bilização nas diferentes áreas
dos ou não sob essa designação. RH – Recursos Humanos, SMO –
Um ponto valioso para o Serviço Médico Ocupacional, SE-
sucesso dessa construção e que TRA – Segurança do Trabalho, Se-
vale ressaltar, é que, no Programa gurança Patrimonial, Recepção,
de Integração (PI), momento em Infraestrutura, TI – Tecnologia da
que a pessoa tem seu primeiro Informação, Lideranças de Oper-
contato com a companhia, já real- ações. No mesmo mês, recebe-
izamos a sensibilização e human- mos a demanda para contração
ização a fim de contribuir com as de consultores de atendimento.
ações de inclusão e respeito às O processo seletivo que passou
diferenças, tendo como premis- por readequação para atender a
sa “respeito é inegociável”. Após nova realidade dos diferentes pú-
o Processo de Integração, todos blicos, garantindo o acolhimento
participaram 30 dias de trein- imediato, livre de qualquer cons-
amento do técnico para atuar na trangimento que ocasionasse
função, carga horária da época. o sentimento de descuido que
comprometesse o rendimento
O PLANO EM ANDAMENTO dos candidatos nos resultados fi-
nais para a contratação. Contrat-
amos 11 pessoas Trans.
(Aqui falaremos de forma
cronológica sobre a os passos
Em abril de 2016, funcionári-
que se seguiram. treinamentos, os treinados entregues a opera-
reuniões de sensibilização, prepa- ções. Destacamos nessa entrega
ração de identidade visual para os crachás com os nomes sociais,
esclarecimento e sensibilização, disponibilizados no mês de maio,
definição de modelo de comuni-
cação, definição de identidade)
momento de muita emoção,
pois, a maioria estava com seu
Em janeiro de 2016 fomos primeiro emprego de carteira as-
convidados para participar do sinada e com sua identificação

40
de gênero respeitada. Esse era dade presente que a Liq trabalha
um dos pontos de preocupação com a premissa de que respeito
da área de Segurança Patrimo- é inegociável e isso faz parte do
nial, em razão de haver até então nosso DNA.
um controle sobre acessos, ba- Em agosto do mesmo ano,
seado no modelo nominal, o fa- a Liq foi convidada para partici-
moso cara e crachá. Entretanto, par de uma matéria veiculada
o desafio nos fez perceber que no portal G1.com sobre as dificul-
existem outras formas de con- dades que as transexuais enfren-
trole. Dessa forma, conseguimos tam para conseguir aceitação
o sonhado crachá com nome so- no mercado de trabalho. Res-
cial e sem nenhum tipo de mar- saltamos que entre os maiores
cação discriminatória. benefícios trazidos pela inclusão
Na oportunidade, foi realiza- é a implementação da cultura
do um canal aberto sobre a per- do respeito, do sentimento de
cepção destes funcionários sobre pertencimento a sociedade com
a empresa, gestores e colegas de dignidade e a possibilidade de
trabalho. Lágrimas de gratidão ampliar horizontes, como a pos-
externadas através de abraços e sibilidade de ter uma formação
agradecimentos pela acolhida e acadêmica. Nessa reportagem,
carinho de todos. Nos bastidores, temos o depoimento de Mateus,
para que esse momento fosse homem trans, que revela o seu
possível tivemos uma força tarefa, sonho de fazer um curso superi-
que contou com o apoio jurídico e or para que possa continuar cres-
adequação dos sistemas internos. cendo na Liq.
Em maio de 2016, realiza- Em outubro de 2017, a TV
mos uma ação em parceria com o Cabo Branco, rede filiada da Glo-
Centro de Cidadania LGBT, Dia da bo, aciona a Liq para que possa
Visibilidade Trans, com exposição veicular uma matéria sobre visibi-
de banners e divulgação da pro- lidade Trans nos jornais de maior
gramação das ações do referido circulação do Estado. Na ocasião,
centro. Ponto de destaque foi o Mateus participou da matéria na
trabalho educativo tirando dúvi- qual pode mostrar a dinâmica de
das sobre identidade e expressão trabalho e falar sobre seus sonhos
de gênero, sexo biológico e orien- e projetos profissionais. Ainda em
tação sexual. outubro do mesmo ano, o Centro
Em junho de 2017, A Liq foi de Cidadania LGBT realizou na
convidada para participar do Liq uma oficina sobre visibilidade
lançamento do Programa Em- e inclusão das pessoas trans.
presa Amiga da Diversidade, re- Entre os anos 2016 até 2020
alizado pela Prefeitura Municipal contratamos mais de 30 pessoas
de João Pessoa, o evento contou trans. Atualmente, estamos com
com a participação de Secretários 10 pessoas no quadro de fun-
Municipais. Na ocasião, recebe- cionários, 01 supervisor e 09 con-
mos o selo de empresa pioneira. sultores de atendimento. Desde
No discurso de agradecimento, 2018, a Liq João Pessoa figura no
representado pelo Everson de cenário entre as 10 melhores em-
Pádua, reforçamos para socie- presas para se trabalhar. Certifi-

41
cação concedida pela instituição mente que os primeiros impac-
Internacional GPTW (Great Place tados e transformados com essa
To Work) que classifica as empre- experiência fomos nós, os exec-
sas com as melhores práticas de utores e viventes do projeto no
cultura organizacional. âmbito da empresa. Havia cerca
Todos os anos, no calendário de 2 mil pessoas na Liq na épo-
do mês de janeiro reforçamos no ca e seguramente influenciamos
movimento “TransVisão” nosso parte dessas pessoas além de
compromisso trazendo para a nós mesmos. Como precursora
data alusiva relacionada ao Dia de desse movimento vimos como
Visibilidade Trans, promovemos os comentários ofensivos quanto
internamente ações de educação a gênero diminuíam gradativa-
e conscientização com palestras mente, como pessoas com uma
no site, distribuição de panfle- mentalidade formada no seio de
tos informativos sobre a cidada- tanta discriminação tiveram sua
nia e direitos LGBT; a presença forma de pensar e atuar modifi-
em eventos (Feira de Serviços e cadas.
Empregabilidade), exposição de O programa de inclusão
vídeos sobre a visibilidade Trans, transcidadã que implementa-
pinturas no rosto com as cores mos reverbera em outros setores
azul e rosa, realização de um da produtividade e isso é de uma
movimento coletivo no qual os importância básica fundamen-
funcionários aderiram ao uso da tal. Mas existem outros avanços
camisa branca para simbolizar o a fazermos e esperamos sincera-
respeito às diferenças. mente que estejamos caminhan-
do nessa direção, qual seja, a de
UMA AÇÃO INFLUENCIA A tolerância e respeito às formas
OUTRA variadas de sermos quem so-
mos, nossas opiniões, nosso jeito
de vestir, andar falar ou nossas
(De como o projeto inicial relações. A única coisa impossível
na Liq influencia pessoas e orga-
de se tolerar é a ofensa e a própria
nizações)
intolerância.
Realizar a contratação de
pessoas trans na nossa organi- AGRADECIMENTOS
zação ampliou o leque de dis-
cussões sobre o tema em João (Onde exercitamos nossa
Pessoa e contribuiu para disse- memória com base no que vive-
minação e desmitificação do mos e agradecemos às pessoas
tema no ambiente corporativo. A que estiveram conosco)
Liq foi a precursora desse movi-
mento de inclusão social, que re- Passados quase cinco anos,
verberou em outras contratações rescrever essa história e observar
desse público em segmentos dis- o legado dessa transformado-
tintos (shopping, lojas de eletro- ra experiência em nossas vidas
domésticos, vestuário). (âmbito pessoal e profissional) e
Podemos dizer segura- na vida de todos na equipe de RH
que construiu e sedimentou essa

42
caminhada de sucesso, é uma oportunidade ímpar. O único sentimen-
to que justifica e chancela é o amor.
Agradecemos ao André Mota que permitiu com muita generosi-
dade todo o processo de desenvolvimento e implementação desse pro-
grama que rompeu a carapaça do medo, do desconhecido e do ódio,
permitindo a ressignificação de valores na vida de todos que foram im-
pactados com o programa. Ratifico que somos frutos dessa permissão
que um concede ao outro, possibilitando que tenhamos desempenho
de alta execução e completude. Que os leitores se inspirem e que mais
pessoas no mundo tenham a coragem fazendo o uso empoderado de
seus micros poderes, protagonizando o pioneirismo traduzindo em
práticas transformadoras para o bem da humanidade.
Agradecemos ao Roberto Maia coordenador do programa de Pro-
moção à Cidadania LGBT e Igualdade Racial, da Prefeitura de João
Pessoa. Agradecemos sua visita e seu desafio, que nos proporcionou
adentrar esse universo, refletir sobre ele e com base na nossa sensibili-
zação, implantar pragmaticamente um programa que faz diferença na
vida das pessoas.
Agradecemos a Everson Pádua por toda dedicação incansável e
resiliência em fazer rodar um programa, muitas vezes a contragosto de
áreas e colegas próximos. É dele também o mérito de reunir em torno
do projeto pessoas com competência e desejo irretocável de fazer a di-
ferença. Sem ele e seu time, nenhum desafio e nenhum incentivo ou
permissão colocariam sozinhos de pé um programa de tal importância.
A todos os profissionais e colegas de RH que trabalharam nesse
projeto e todas as áreas e funcionários que abraçaram com carinho a
possibilidade de olhar o outro de forma diferente.
Para as minorias é preciso dizer que a única coisa que as diferencia dos
demais grupos sociais são as oportunidades que a elas são dadas. Não existe
diferença intelectual nem de compromisso ou comportamento, o que as em-
presas precisam é de bons profissionais. Competência não tem gênero. Hoje
como Head de RH da empresa, nosso compromisso com a cidadania está incor-
porado na rotina e convivência da unidade.

43
O Programa Transcidadania
JP e a representação dos ho-
mens trans: um olhar de den-
tro1
Diego Rodrigues de Sousa

ORIGENS

Eu chego na Coordenadoria inicialmente por indicação do mo-


vimento social LGBT de João Pessoa, como uma representatividade
trans. Nesse primeiro momento, estávamos sob a supervisão de So-
corro Pimentel, posteriormente Roberto Maia assumiria a pasta como
coordenador. Entre os eventos em que participamos, em fevereiro de
2015, teve o primeiro ENAHT - Encontro Nacional de Homens Trans, pre-
sidido pelo IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, na USP
de São Paulo, onde tivemos contato pela primeira vez com o Programa
Transcidadania de São Paulo. Fomos participar de uma mesa, tanto eu
quanto Roberto, para pontuar os avanços que tínhamos alcançado en-
quanto políticas públicas para a população LGBT, em especial para a
população T na nossa cidade. Nessa ocasião tivemos esse contato e pu-
demos entender como o programa Transcidadania de São Paulo fun-
cionava. Ao término do evento, Roberto fez uma visita presencial à sede
do programa para a gente ver a viabilidade de implementação aqui.
No retorno a João Pessoa, Roberto comunica para toda a equipe
seu interesse e em seguida damos início aos trabalhos. Em primeiro lu-
gar, elaboramos uma ficha de cadastro sócio-econômico, entendendo
que a realidade da população trans de João Pessoa poderia ser total-
mente diferente da realidade encontrada em São Paulo. Esse primeiro
mapeamento nos dá informações preciosas de como a população trans
vivia e dos serviços que elas demandariam ao órgão. Naquele momento
enfrentamos a primeira dificuldade, pois o público TT de João Pessoa
não nos tinha como referência, por se tratar de um serviço até então
muito burocrático, ligado diretamente à implementação da política
pública, o qual funcionava em uma sala no Paço Municipal. Ou seja,
não tínhamos uma ligação direta com o público, que nos referendasse
enquanto serviço.

1. Texto editado por Mónica Franch, a partir de entrevista realizada no dia 17 de agosto de
2020.

44
Começamos esse trabalho da população TT contratada após
de preenchimento de fichas e seleção.
coleta de dados com o auxílio dos Inicialmente as empresas
movimentos sociais. Na época, que se apresentaram mais re-
tínhamos uma colega na equipe ceptivas foram as da área de call
que possibilitou que essas en- center, que deram início a um
trevistas fossem feitas também processo de absorção significa-
nos pontos de prostituição, para tiva de usuários e usuárias. Mas
que tivéssemos um panorama entendíamos que não podíamos
mais amplo. Com mais ou menos nos fechar dentro desse nicho de
três meses de início, consegui- mercado, haja vista que a reali-
mos um retorno significativo dade de João Pessoa era a pros-
de fichas, e então recebemos tituição como única fonte de
um representante do Programa trabalho para essa população, e
Transcidadania de São Paulo pra assim estaríamos, de alguma for-
implementar aqui o Programa ma, dizendo que as únicas alter-
Transcidadania-JP. nativas ao seu alcance seriam a
No questionário aplicado prostituição ou o call center. Com
levantamos indicadores de em- o passar do tempo, fomos procu-
pregabilidade, qualificação e rando outras áreas do comércio,
educação, entre outros. Quando outros nichos, e sensibilizando
começamos a implementar o outros gestores para ofertar um
Programa, nosso foco inicial foi leque maior de oportunidades.
direcionado para a questão das Foi um processo de formiguinha.
empresas. Pois mesmo que a po- Houve, entretanto, outras em-
pulação trans tivesse um currícu- presas que ficaram sabendo do
lo bom, isso não necessariamente programa e nos procuraram e,
significaria que iria ser emprega- nesses casos, já não precisamos
da, uma vez que a problemática ir até a empresa. Começou um
não estava na qualificação, mas movimento inverso, a empresa
na falta de oportunidades oferta- ver essa publicidade das nossas
das. Então começamos um tra- ações e querer somar junto co-
balho pelo outro lado, sensibili- nosco nesse projeto.
zando os gestores das empresas.
Nesse sentido, o projeto visa que PONDO O TRANSCIDADA-
a população trans tenha assegu- NIA PARA FUNCIONAR
rado o direito a participar do pro-
cesso seletivo e que possa con- Quanto à minha função
correr em iguais condições com dentro do projeto, eu estou pre-
os demais. Para isso, a articulação sente desde a criação desse for-
com as empresas tem como fina- mulário, entrando em contato
lidade desmistificar, sensibilizar com a população para preenchi-
e assegurar essa fase do processo mento do mesmo; e por possuir
seletivo, assim como implemen- uma maior proximidade com os
tar mecanismos coorporativos homens trans. Na época tinham-
que assegurem a permanência os o PeTris – Coletivo de Homens

45
Trans da Paraíba funcionando dimentos remotos para quem
em João Pessoa, então um diálo- procura. Já para a questão de
go com eles foi feito para poder- alimentos, nós, da gestão, conse-
mos conseguir dados mais fide- guimos distribuir cestas básicas
dignos possíveis. Depois começo e quentinhas. A população TT de
com a equipe a fazer uma linka- João Pessoa e arredores conse-
gem de quais seriam as primei- guiu ser assistida também nesse
ras empresas que iríamos procu- momento tão difícil pelos movi-
rar, e aí surgiu o convite de uma mentos sociais locais, através da
empresa em particular. Eu estava ASTRAPA e do PeTris.
com a equipe em todo esse pro-
cesso – confecção da ficha, visita ENTENDENDO MELHOR A
à empresa, treinamento do RH. POPULAÇÃO ATENDIDA –
Tinha empresa que era pequena OS HOMENS TRANS
e que com dois treinamentos a
gente conseguia treinar toda a
Quando estruturamos a fi-
equipe do local de trabalho, em
cha do Programa Transcidada-
outras empresas, já era preciso
nia, percebemos que os homens
ter mais encontros.
trans têm, no mínimo, ensino
Antes do isolamento social,
médio e muitos já conseguem se
estávamos num processo de ex-
encaminhar para o ensino supe-
pansão, com um portfólio pronto
rior, o que não ocorre com as mul-
para ampliarmos essas parcerias.
heres trans, e em especial com as
Inclusive fizemos uma parceria
que se autodeclaram travestis,
com uma faculdade para que
que muitas vezes não têm nem o
o pessoal de psicologia organi-
ensino fundamental básico com-
zacional nos auxiliasse nesse pro-
pleto. Então para o mercado de
cesso, visando sair de uma ação
trabalho já vemos uma diferença
um tanto quanto improvisada
em relação à colocação. Por isso,
para ter uma atuação mais estru-
quando começamos esse proces-
turada, com planejamentos e es-
so com as empresas, já entendía-
tratégias de longo prazo.
mos que a questão da colocação
Em relação à covid,
para os homens trans, não se-
soubemos que ela não afetou os
ria uma dificuldade. Para eles, a
meninos que estavam empre-
procura pelo Centro de Cidada-
gados nas empresas parceiras.
nia LGBT está mais diretamente
Nossa preocupação maior foi a
ligada à busca por oferta de em-
questão da alimentação e da bus-
prego nas feiras de serviços, o
ca por psicoterapia. Isso porque
que promove um sentimento
devido ao isolamento os nossos
de pertencimento, de sentir que
estagiários de psicologia tiveram
se pode posteriormente buscar
que retornar às faculdades de
essa empresa e órgãos parceiros,
origem e aí ficou um quantita-
pois suas identidades não serão
tivo significativo para só uma
vistas com estranhamento.
profissional da casa dar vazão.
Eu percebo que os meni-
Ela continua fazendo os aten-
nos vieram inicialmente ao

46
serviço pelo acesso ao mercado das fichas, logo percebemos essa
de trabalho, embora também lacuna existente entre a popu-
busquem a questão do cuidado, lação LGBT de João Pessoa e o
mas não é um público que fre- serviço. Naquele momento, nós
quente assiduamente o serviço. entendemos que não bastava
É um público muito grande nas oferecer apenas os serviços que
feiras e que procuram um serviço já tínhamos – um treinamento,
pontual de ofertas de emprego e uma capacitação - porque aqui-
programas assistenciais. Nas fei- lo não era algo que agregava na
ras conseguimos juntar em um vida dessas pessoas de maneira
único espaço uma oferta maior tangível, e assim começamos a
de empregos e serviços. Realiza- pensar na oferta de serviços, que
mos em média quatro feiras por inicialmente foram três: assistên-
ano, quase sempre em alusão cia psicoterapêutica, assessoria
às datas comemorativas. A pri- jurídica e assistência social.
meira feira surgiu num dia de Nesse movimento de es-
visibilidade trans, quando ainda truturar o serviço, Roberto Maia
funcionávamos no Paço Muni- consegue o espaço do térreo de
cipal. A ideia não era trazer em- uma casa onde funcionava um
presas, mas a oferta de serviços, outro serviço da prefeitura, que
até porque não tínhamos fecha- era a Casa Amarela. Inicialmente,
do parcerias ainda. Na ocasião a gente contava com o espaço
ofertamos vacinação, cadastros pequeno externo, uma única
em programas habitacionais, sala de recepção e uma sala para
educação, cursos profissionali- atendimento, que era revezada
zantes. As ofertas eram resulta- entre os profissionais, basica-
do das parcerias intersetoriais da mente voluntários. Logo em se-
gestão. Com o passar do tempo, guida Roberto entendeu que a
as empresas foram chegando e gente precisava contar com uma
somando. seguridade mínima em relação
a esses profissionais e começou
SOBRE A CASA AMARELA um processo de pactuação com
os distritos, para conseguir, no
De início, funcionávamos mínimo, um psicólogo e um as-
somente como Coordenadoria. sistente social que pudessem dar
Nossas funções visavam à im- plantão no Centro de Cidadania.
plementação da política públi- Conseguimos fazer isso durante
ca, treinamento, capacitação dos um tempo significativo, sendo
órgãos e gestores da gestão. Sen- que a demanda de psicotera-
do um trabalho mais burocrático, pia era, e ainda é, a demanda
oscilando entre interno e exter- que mais aumenta. Ao longo do
no, ficávamos localizados numa tempo fomos percebendo que,
sala no Paço Municipal. Com a mesmo com esses profissionais
implementação do Transcidada- inseridos pelos distritos, não dá-
nia-JP, e nesse processo de bus- vamos conta da demanda e,
ca ativa para o preenchimento como a gente nunca gostou de

47
trabalhar com lista de espera, relatas. Sempre estive ativo den-
começamos a pactuação com tro desses espaços. Já a parte de
estagiários de psicologia do nono execução dependia da demanda
e décimo períodos. Foi só nesse do solicitante. Se fosse algo es-
momento que conseguimos ter pecífico para o público trans, eu
um fôlego maior. Logo em segui- estava ali fazendo aquela oficina
da, os profissionais de psicologia junto com Louise ou Roberto. Às
dos distritos foram chamados vezes era uma demanda sobre
para serem gerentes de unidade, as outras letrinhas LGB, então
não podendo manter mais esse sempre iam as referências relati-
vínculo com o Centro, mas graças vas a elas e o restante da equipe
aos estagiários, conseguimos atuava nos bastidores. É nesse
dar continuidade ao processo. processo de estar ali planejando,
Hoje contamos ainda com uma construindo, e executando, tudo
psicóloga fixa no quadro. de forma muito colaborativa, que
o serviço é realizado.
DO TRABALHO EM EQUIPE
DESAFIOS, LIMITES E CON-
A minha função no Cen- QUISTAS
tro é assessorar Roberto na par-
te das políticas trans, mas con- No tocante ao Programa,
cretamente, como temos duas nunca conseguimos grandes
referências TT, assessorar Roberto avanços na parte da educação,
na referência dos homens trans. diferentemente de São Paulo. O
Inicialmente quando o Centro carro chefe do Programa deles é
surge, fazemos uma divisão bási- a educação, eles oferecem bol-
ca, que seria uma parte atuando sas para que a população TT per-
no planejamento, e uma outra na maneça em sala de aula. Aqui em
execução, incluindo o acolhimen- João Pessoa entendíamos que
to, a parte da recepção. Enquan- seria difícil fazer com que a popu-
to assessor, sempre estive mais lação TT que se evadiu da sala de
diretamente ligado à parte de aula retornasse aos estudos sem
planejamento, que para o Centro a seguridade de que teriam seus
de Cidadania é verificar a ficha nomes e identidades respeita-
cadastral, realizar as alterações das pela escola, então começa-
e melhorias apontadas pelo pes- mos uma pactuação com o EJA
soal do acolhimento, fazer levan- – Educação de Jovens e Adultos,
tamentos sobre o fluxo de aten- para que uma unidade deles fun-
dimentos psicológicos, planejar cionasse no Centro de Cidadania.
o aumento da oferta de psico- Foi pactuado um horário mais
terapia, recepcionar e treinar os flexível, que desse para conciliar
novos estagiários sobre as espe- com o trabalho das meninas na
cificidades e nomenclaturas ade- prostituição, que não interferisse
quadas, estruturar possíveis par- nem no trabalho delas nem no
cerias com instituições de ensino, horário de sono, que é diurno.
empresas e outras atividades cor- Mas mesmo assim não tivemos

48
uma adesão significativa por portarias e decretos mas, mesmo
parte do público. Entendemos assim, essa população, quando é
que essa resistência ao retor- inserida no ensino superior, ain-
no à sala de aula é totalmente da enfrenta um desrespeito em
compreensível, até porque há relação ao nome social.
usuárias que estão fora da sala Uma das dificuldades que a
de aula há muitos anos. Mesmo gente ainda enfrenta é a questão
o retorno de um aluno cisgênero do preconceito, a falta de opor-
que está há muito tempo fora da tunidade, a falta de abertura que
sala de aula já é delicado, quanto algumas empresas ainda têm
mais uma pessoa que possivel- em relação a ter esse público ati-
mente sofreu inúmeras violações vo, trabalhando e produzindo.
de direito em sala de aula no pas- Mas entendo que isso é um pro-
sado. cesso e que cada novo usuário
Então, diferentemente do nosso TT que é inserido no mer-
Transcidadania de São Paulo, cado de trabalho já é um sinaliza-
aqui em João Pessoa consegui- dor para uma mudança de men-
mos dar uma vazão maior para talidade. Para nós, não se trata
a empregabilidade que para a apenas de inserir a pessoa, mas
educação. Uma diferença básica de garantir a permanência dela
que consigo pontuar entre o pro- na vaga de emprego. Por isso o
grama daqui e o de lá é a questão processo sempre é com o RH, for-
das bolsas, que nós não consegui- talecendo esse elo para que se,
mos ofertar aqui até o presente por ventura, esse nosso usuário
momento. Querendo ou não, se precisar, ele saiba a quem contar
eu ofereço uma bolsa, eu conce- diretamente. Além disso, perma-
do uma seguridade para aquela necemos à disposição da empre-
pessoa, um incentivo para que sa para qualquer eventual dúvida
ela retorne à sala de aula. Tanto que possa vir a surgir.
que lá em São Paulo as mulheres Nesses anos de Transcidada-
trans conseguiram que ofereces- nia, temos recebido um bom re-
sem cursinhos pré-vestibulares torno tanto dos usuários como
especificamente para a popu- das empresas. Tivemos relatos
lação TT. Aqui, penso que a gente de empresários que perceberam
precisa ainda investir em cursos que o público frequentador
de qualificação, conseguir mais mudou, tendo ficado mais diver-
parceiros para ampliar a ofer- sificado. Um aspecto interessan-
ta, e pensar em novas estraté- te nesse processo é que as em-
gias para esse retorno à sala de presas começaram a pensar em
aula, porque essas também são soluções. Teve uma empresa que
premissas do Programa. Afora contratou duas mulheres trans
isso, é preciso perceber que ain- para ficar no atendimento ao pú-
da existe uma lacuna imensa, em blico e o gestor percebeu que os
especial nos cursos superiores, clientes não sabiam como se diri-
para a garantia de direitos da gir àquelas mulheres, como iriam
população TT, principalmente na chamar, como iriam tratar. Então,
questão do nome social. Ainda ele resolveu colocando crachás
temos instituições que possuem em toda a sua equipe, e o delas

49
com seu nome social. É a gente perceber que a partir do momento que
ele contrata, o gestor não fica preso a “nós” enquanto detentores do sa-
ber, ele começa a pensar, ele começa a planejar. Para mim, isso já é ver
que a cultura da empresa está mudando.
O momento mais importante nesse processo todo, enquanto
assessor, foi quando empresas que trabalham com atendimento ao
público nos procuraram. Essa mudança pode parecer sutil, mas ela é
uma forte mensagem aos clientes, e a toda a sociedade, não apenas de
como essa empresa pensa, mas da simbologia de trazer a pessoa trans
para este espaço, contribuindo assim com seu papel social, pois aquela
pessoa trans está agora na porta de entrada, não mais nos bastidores.
É nesse tipo de mudança que eu acredito, é para isto que eu trabalho
diariamente. Para mim, como assessor da política trans de João Pes-
soa, fazer destas pessoas protagonistas de suas vidas é a minha maior
missão.

50
O Programa Transcidadania JP
e a representação de travestis
e mulheres trans: um olhar de
dentro 1
Louise de Assis

Meu nome é Louise de Assis, tenho 28 anos, sou comunicóloga


formada pela UFPB, com habilitação em relações públicas. Hoje me en-
contro na Prefeitura Municipal de João Pessoa, como assessora técnica
LGBT do Centro de Cidadania de João Pessoa, que é vinculado à Coor-
denadoria Municipal de Combate à Discriminação Racial e à LGBTfobia.
Eu estou nesse lugar há pouco mais de um ano, por indicação da AS-
TRAPA Associação de Travestis e Transexuais da Paraíba, na pessoa de
Fernanda Benvenutty, ativista LGBT, que sugeriu meu nome a Roberto
Maia, devido ao meu currículo, ao fato de eu participar do movimento
social e por me encaixar na vaga.
Eu acho que a Coordenadoria é um marco na cidade de João
Pessoa. Com a Coordenadoria vem o Centro de Cidadania, que é um
espaço físico onde recebemos usuários, oferecendo a eles assistência
psicológica e assistência social, além do encaminhamento para outros
órgãos. Eu costumo dizer que, no Centro de Cidadania, a gente não tem
pernas para conquistar tudo, mas fazemos o trabalho de elo dentro da
gestão, encaminhando nossos usuários para tudo aquilo a que podem
ter acesso dentro da Prefeitura de João Pessoa. Nesse sentido, o Centro
é o ponto centralizador do usuário LGBT dentro do município de João
Pessoa, e até em relação a outras prefeituras e parcerias. Um aspecto
importante do nosso trabalho é que nós fazemos os contatos com es-
ses serviços previamente, por isso eu digo que o Centro é o elo com o
usuário.
Já o Programa Transcidadania é fundamental não apenas para a
inclusão da pessoa trans no mercado de trabalho formal, que é o pon-
to alto do Programa, como principalmente para dar qualidade de vida
a essa pessoa. É dizer à pessoa trans que ela não precisa viver numa
marginalidade social, que ela pode ser incluída na sociedade, que ela
tem direitos e pode ingressar no mercado de trabalho formal. Mesmo
quando não conseguimos incluir essa pessoa trans no mercado formal
de trabalho, mostramos a ela que pode almejar mais do que aquilo que
a sociedade tenta lhe impor. Eu falo isso como pessoa trans, que tenho
1. Texto editado por Mónica Franch, a partir de entrevista realizada no dia 20 de agosto de
2020.

51
formação, que consegui alcançar que já passaram. A gente per-
espaços que a maioria da nossa gunta: “por que você não vai para
população não consegue alcan- o EJA?” e elas respondem: “Lou-
çar, mas que, até entrar na Co- ise, eu não consigo entrar, par-
ordenadoria, não estava incluída ticipar de uma sala de aula, você
no mercado de trabalho formal, pode me pagar o dinheiro que
mesmo depois de dois anos de for, que eu não consigo”. Muitas
formada. vezes não são os alunos que dis-
criminam você, mas é a direção
DAS DIFICULDADES DA PO- da escola, é o professor que se
PULAÇÃO TRANS nega a chamar você pelo nome
social porque você ainda não fez
Quando eu falo em popu- a retificação de nome.
lação trans, eu incluo homem E aqui abro um parêntese
trans, transhomem, outgen- para contar uma situação que
der, queer, travestis, transexu- aconteceu comigo. No Brasil, a
ais numa categoria só, porque, retificação do nome é muito re-
apesar das diferenças, há mui- cente. Nos primeiros anos da
tas situações comuns. Eu acho minha graduação na Universi-
que o primeiro grande calo da dade Federal da Paraíba, eu ain-
população trans é o convívio fa- da não havia conseguido retificar
miliar, porque isso desencadeia meu nome, e não tinha nenhu-
inúmeros outros problemas. A ma regulamentação sobre nome
família é a base de tudo, é ela que social na instituição. Então, no
dá a formação à criança, ensina o começo de cada disciplina, eu
que é correto e o que é errado, conversava com o professor ou
porque a criança não tem noção. com a professora daquela cadeira
Pode ser pai e mãe, só o pai, só e a maioria aceitava me chamar
a mãe ou outro familiar. Mas no pelo nome social. Mas teve uma
caso das pessoas trans muitas professora, uma grande jornalista
vezes esse convívio na família daqui da cidade, nacionalmente
lhes é negado. E a partir do mo- reconhecida, que me disse: “não
mento em que você é oprimida vou te chamar por esse nome
no seio familiar, que você é ex- porque você não é mulher”. Ou-
pulsa desse seio familiar, ou que vir aquilo dentro de uma uni-
você passa pelo ostracismo, sof- versidade federal foi um grande
re discriminação e violência psi- marco para mim. Eu sempre con-
cológica dentro de casa, você to esse episódio porque às vezes
deixa de acessar direitos básicos as pessoas pensam que a falta de
como educação e saúde. Pode respeito ao nome social é provo-
ser que você não entre na esco- cada porque a pessoa foi “agres-
la, ou pode ocorrer de você entrar siva”, como se isso justificasse.
na escola e sofrer uma violência. Mas o que esse exemplo mostra é
Tem relatos de meninas que não que, se isso aconteceu numa uni-
conseguem estar dentro de uma versidade federal, com toda uma
sala de aula devido às agressões abordagem cuidadosa da minha

52
parte, a quantas violências que ensino fundamental, que é semi-
essa população não é submeti- analfabeta. Pessoas que chegam
da cotidianamente, nas escolas e no Transcidadania: “eu não sei
em outras instituições? escrever, você pode preencher
Voltando à minha argu- a ficha pra mim?” Logo que eu
mentação inicial, o grande prob- comecei a trabalhar no Centro,
lema da pessoa trans começa chegou uma menina ao atendi-
com a exclusão do seio familiar. mento, ela usava óculos, tirou os
Mesmo quando ela não é excluí- óculos e disse “estou com muita
da, quando ela vivencia de fato dor de cabeça”. E aí cabe à minha
uma inclusão familiar, ela termi- sensibilidade enquanto gestora
na se privando de muitas coisas pública de entender que aque-
com medo de afetar a família. la pessoa não sabe escrever, que
Por exemplo, uma pessoa trans aquela pessoa não sabe ler. Isso
que consegue passar pelo ensi- me choca demais.
no médio, que consegue chegar Por isso eu reafirmo: o
até uma universidade federal, ela grande problema começa no seio
sempre fica com medo: como a familiar e vai para a educação.
minha transição vai afetar meu Quando você tem negados esses
pai, minha mãe? A pessoa trans dois direitos, isso gera inúmer-
começa a mostrar quem ela é na os empecilhos na sua vida. Isso
primeira infância, e geralmente coloca as pessoas trans na mar-
ela começa a transicionar na ginalidade social, gera uma vul-
adolescência, mas a família não nerabilidade e afeta também a
quer enxergar isso. Eu me lem- saúde delas, porque se você não
bro quando eu era criança de tem consciência de quem você é,
eu colocar fraldinha na minha nem de qual é a especificidade
cabeça e dizer que era o meu do teu corpo, porque não teve
cabelo grande. Minha mãe não uma família e uma educação in-
queria enxergar aquilo, porque é clusiva, você termina desconhe-
uma atitude que sai da caixinha, cendo também quais são os teus
era muito complicado para ela. direitos.
Por isso eu digo que o grande fa-
tor, que às vezes serve para agre- UMA PORTA CHAMADA
gar e às vezes serve para com- TRANSCIDADANIA
plicar a cabeça da pessoa trans,
vem do seio familiar, e isso oca- Nesse panorama, o Pro-
siona inúmeras consequências, a grama Transcidadania tem con-
começar pela educação básica. tribuído, em primeiro lugar, em
Dentro do Programa Trans- dar visibilidade a essa população
cidadania, um problema que te- que a sociedade quer tanto es-
mos é o dos usuários que não quecer. Acho que foi a socióloga
terminaram o ensino médio Bernice Bento que falou na “sín-
– meninas, meninos e pessoas drome do bacurau”: a população
que não têm gênero. Me choca transexual só sai à noite, como
enormemente ver uma pessoa da o pássaro bacurau, porque tem
minha idade que não tem nem o medo do olhar. Então a partir do

53
momento em que se dá visibi- da para a empresa.
lidade a essa população já é um Por isso, penso que o Pro-
ganho. grama Transcidadania é uma
A segunda contribuição é porta aberta para essa população.
conseguir colocar essa pessoa No espaço de sete anos que a
trans no mercado de trabalho Coordenadoria existe, nós conse-
formal. Eu conheço pós-doutoras guimos colocar muitas pessoas
que continuam vivendo do cor- trans no mercado de trabalho
po na Europa. Será que falta ca- formal, o que não ocorria na ci-
pacidade? Será que falta intelec- dade de João Pessoa, com muito
tualidade? E eu também digo raras exceções. E depois que eu
por mim, que passei sete anos entrei, a gente conquistou novas
dentro de uma universidade e empresas porque, como sou for-
muitas vezes me questiono: será mada na área de comunicação,
que me falta capacidade de estar eu trouxe um olhar mais técnico
lá na frente, coordenando uma ao Programa. Há empresas quer-
equipe de funcionários? Será que endo participar, até porque essa
eu não tenho a sensibilidade de incorporação da população trans
lidar com o outro? Onde foi que é benéfica para elas. Uma vez eu
eu errei? E aí eu vejo que não fui escutei de um empresário que,
eu que errei, a sociedade errou. a partir do momento em que
Sabendo disso, um cuidado você dá uma oportunidade para
que temos no Programa Transci- uma pessoa trans, ela consegue
dadania é que nós não pedimos ser superior aos demais. Aquela
para a pessoa trans se apresen- pessoa teve todos seus direitos
tar sozinha na empresa. Primeiro, negados ao longo da vida, então
nós vamos até a empresa, conver- ela quer demostrar toda a ca-
samos com o gestor dessa em- pacidade que ela tem, ela vai dar
presa, explicamos a ele a multidi- o máximo de si.
versidade da população que ele E aqui eu não estou me
se propõe a acolher, as inúmeras referindo apenas ao trabalho
especificidades que só nossa feito no Transcidadania mas a
população tem, tudo isso antes todo o esforço da Coordenadoria
do primeiro contato da empresa aproximando a população LGBT
com os nossos usuários. Infeliz- do mercado formal de trabalho.
mente, não temos um banco de Foi numa feira de serviços que
dados digitalizado, que a gente conseguimos incluir um usuário
possa fazer uma busca e chegar nosso no Carrefour. Hoje ele é ge-
àquela candidata ou candidato, rente da empresa e aí você fala:
então a gente faz esse trabalho “tem meu dedinho lá, melhora-
de formiguinha, ficha por ficha, mos a qualidade de vida dessa
muitas vezes desatualizadas, en- pessoa”. E hoje essa pessoa faz
tramos em contato com a pessoa questão de vir ao Centro de Ci-
e falamos: “olha, surgiu uma vaga dadania para recolher currículos
tal, o que é que você acha?” Só para novos usuários entrarem.
então essa pessoa é encaminha- São pequenas conquistas, mas

54
que fazem a diferença. A gente me falou: “infelizmente você não
consegue mudar uma cultura faz o perfil da empresa”. Eu saí da
organizacional dentro de uma empresa, sentei na areia da praia
empresa, porque a empresa se e chorei muito, porque foi nesse
propõe a pensar ações de in- momento que eu tive consciên-
clusão, tanto para o público LGBT cia do que é ser pessoa trans den-
quanto, especificamente, para o tro da universidade e no mercado
público trans. Eu acho que se a do trabalho. Eu nunca consegui
sociedade olhasse bem, a gente estagiar dentro da faculdade.
não ia ter tanta pessoa trans pas- Fiz algumas seleções, mas a par-
sando necessidade, porque ca- tir dessa eu decidi não procurar
pacidade não nos falta, é a opor- mais, para poupar minha sani-
tunidade que nos é negada. dade mental. Pois essa mesma
pessoa me ligou depois à noite e
NO CONTATO COM AS EM- me disse: “eu queria sair contigo”.
PRESAS Ou seja, eu não sirvo para ficar na
empresa, mas eu sirvo para ele
Enquanto profissional da sair comigo e pagar quatro, cinco,
área, eu penso que não é fácil dez vezes mais do que ele me pa-
para uma organização mudar. É garia se eu estivesse no mercado
algo que é orgânico, algo que é de trabalho formal. Então quan-
construído, mas que precisa de do a pessoa trans vai sozinha na
um disparo. Quando a gente vai empresa, ela está sujeita a esse
até uma empresa com a propos- tipo de abuso, daí a necessidade
ta de contratar pessoas trans, de preparar muito bem o terreno.
geralmente é um choque para a Quando fazemos contato
empresa, porque essa população com uma empresa, nós não nos
não é apenas socialmente invisi- apresentamos, num primeiro
bilizada, ela é enquadrada sob a momento, como Centro de Ci-
ótica da prostituição. Quando a dadania LGBT ou Programa Tran-
pessoa trans vai numa empresa scidadania. Vamos logo anun-
sem a mediação do Programa ciando: “somos da Prefeitura de
Transcidadania, primeiro, a em- João Pessoa, vinculada ao gabi-
presa nega essa vaga porque ela nete do Prefeito”. Tem que usar
é transfóbica; segundo, a empre- essa estratégia, porque senão eles
sa não sabe onde colocar essa nem nos recebem, já passamos
pessoa; terceiro, o empresário por isso. Nesse primeiro contato,
vai querer fazer sexo com essa mostramos o que é o Programa,
pessoa. São os relatos que a gen- temos um caderninho, que eu
te escuta e foi isso que também digo que é um press kit, porque
aconteceu comigo. descreve todas as ações da Coor-
Teve uma vez que eu fui denadoria, do Programa Transci-
fazer uma seleção para estágio dadania, tudo que é importante.
numa empresa que ficava perto Deixamos esse livro na mão do
da praia. No final do processo, a gestor, e tiramos uma foto com
pessoa que conduziu a seleção ele para registrar esse encontro,

55
mostrar que estivemos lá. E a posso porque é Carnaval e eu in-
relação com a empresa vai sendo vesti em Olinda. Se quiser contra-
construída aos poucos. Quando tar outra pessoa, pode contratar”.
conseguimos captar uma em- E a gente fica triste porque às
presa, é hora de captar os nossos vezes fecha a porta naquela em-
usuários. É um trabalho de mão presa. Mas a esmagadora maio-
dupla porque a gente também ria dos nossos feedbacks, tanto
escuta do usuário o que ele está de usuário como de empresa, é
passando na empresa. positivo, porque o usuário tem
Resumidamente é isso: va- aquela gana de querer trabalhar,
mos até uma empresa, mostra- de querer se incluir no mercado
mos a ela o Programa Trans- formal de trabalho.
cidadania e na sequência a
convidamos a participar das A CIDADE, O BRASIL, O
nossas feiras. Para o usuário, as MUNDO
feiras têm a praticidade de con-
centrar todos os serviços e em- Para entender os desafios
presas num único dia e num só atuais do Transcidadania, em pri-
lugar. São muitas empresas em meiro lugar precisamos pensar
bairros diferentes da cidade. Por nosso contexto. Vou exemplifi-
exemplo, a Ferreira Costa fica na car de uma forma bem didáti-
BR, o Café Empório fica na frente ca: existe o mundo e dentro dele
do Hotel Tambaú, já a LIQ fica tem uma bolinha chamada Bra-
na estrada de Mangabeira. Se sil, que já não é fácil; nesse Brasil,
o usuário for até cada empresa existe o Nordeste; dentro do Nor-
parceira para entregar um currí- deste tem João Pessoa. Eu acho
culo, vai precisar de tempo e de que a bolha João Pessoa, com-
dinheiro, e muitas vezes não tem parada com Recife, Natal ou For-
nem um nem outro. Por isso, a taleza, é muito arcaica, a cabeça
gente propõe à empresa que vá do paraibano é muito interiora-
até a Casa Amarela participar das na. Aqui não tem uma cultura
nossas feiras, para receber os cur- de grandes eventos, não tem um
rículos e fazer a seleção dos can- grande fluxo turístico, não tem
didatos. Se o usuário vai entrar grande polo comercial, as redes
ou não, se ele vai permanecer ou atacadistas chegaram há apenas
não, aí são outros quinhentos. dez anos, isso tudo faz com que
No geral, o feedback que o paraibano seja o extremo do
recebemos tem sido bastante machismo. O paraibano é muito
positivo. É claro que existem pes- machista, misógino, transfóbico
soas que não estão dispostas a e LGBTfóbico.
acordar cedo para cumprir aquele Por outro lado, João Pessoa
horário, então infelizmente essas é uma das cidades brasileiras
pessoas não ficam na empresa. que tem mais mecanismos de
Teve uma usuária que passou proteção aos direitos da popu-
numa seleção e quando a em- lação LGBT. Tem a Delegacia de
presa foi contratá-la, ela pergun- Crimes Homofóbicos, Racismo e
tou: “mas é pra começar quan- Intolerância Religiosa, temos o
do?” “Amanhã.” E ela: “eu não

56
Centro de Cidadania LGBT, tem o Espaço LGBT, do Governo do Estado,
tem o Ambulatório Trans no Complexo Hospitalar Clementino Fraga,
mas mesmo com esses mecanismos de defesa, o machismo é muito
enraizado na nossa população.
Além disso, João Pessoa é a cidade dos aposentados, pessoas que
vêm de outras regiões, de outras gerações, de outras culturas, que che-
gam em busca de uma maior qualidade de vida. Escolhem João Pessoa
por ser uma cidade pequena, barata, por ser uma cidade onde tudo é
muito perto. Por essas razões que eu digo que a gente é muito interi-
orano, porque mesmo as pessoas que vêm de fora para se instalar aqui,
reforçam esse caráter de cidade de interior.
Por não participar do circuito da prostituição, a gente tem uma
população trans um pouco menor que em outras cidades vizinhas. No
eixo Nordeste, as cidades que têm um fluxo de prostituição elevada são
Natal, Recife, Fortaleza e Salvador. João Pessoa não está inserida nesse
ciclo e isso influencia a questão de lidar com as pessoas trans, porque
não é uma população tão comum como nessas outras cidades. É tudo
muito novo, não que essa população seja nova, mas em termos de vi-
sibilidade e convivência é tudo muito embrionário ainda. Então às ve-
zes você acha que João Pessoa é uma cidade incrível, maravilhosa, e às
vezes você passa por situações bem complicadas. Não existe situação
pior para uma pessoa trans do que passar pela rua e perceber que está
todo mundo olhando para ela, como se fosse um bicho no zoológico.
Ou então um carro parar e perguntar quanto é o programa porque ela
está com um mínimo de decote. Para mim, o problema todo é educa-
cional. João Pessoa pode ser uma cidade com uma boa qualidade de
vida, mas ela tem baixíssimo desenvolvimento humano. Parece que as
pessoas não têm medo de expor seus preconceitos, até porque sabem
que, mesmo denunciando, não vai dar em nada.
E aí é preciso relacionar essas questões com o momento atual no
Brasil, em que a extrema direita está no poder. As pessoas não têm mais
receio de atacarem as minorias nem de serem transfóbicas. O próprio
presidente é! A gente tem travestis e mulheres trans que passam situ-
ações vexatórias a todo momento aqui em João Pessoa. Eu não sei como
era antes, porque estou no Centro há um ano, mas segundo Roberto
Maia, houve um aumento da violência psicológica, verbal e até sexual e
física desde que a gente tem esse governo de extrema direita fascista
no país. Não tem como não ser política neste momento. Tem vereado-
ra querendo impedir as mulheres trans de usarem o banheiro femini-
no, fundamentalistas religiosos fazendo manifestação na frente de um
hospital para impedir que uma menina de 10 anos, estuprada desde os
6, faça um aborto legal, querem barrar o ensino de sexualidade nas es-
colas e deixar as crianças à mercê de suas famílias, sendo que a maioria
dos abusos ocorrem dentro da própria casa. Neste momento da história
do Brasil, trabalhar na defesa dos direitos LGBTs é um ato de resistência.

57
A Terapia
Ocupacional
e seu lugar de
resistência:
Projeto ResisTO
UFPB

Iara Falleiros Braga, Gustavo Artur Monzeli,


Janaina da Silva Goes, Júlia Fernandes de
Souza e Ricardo Ramos de Azevedo Lima Filho
Atividade do Projeto ResisTO no
Centro de Cidadania LGBT
Fonte: Arquivo pessoal

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresentamos algumas experiências do projeto de


extensão ResisTO do Departamento de Terapia Ocupacional da Univer-
sidade Federal da Paraíba (UFPB) em parceria com o Centro de Cidada-
nia LGBT (CCLGBT) de João Pessoa.
Para isso, apresentaremos uma breve discussão teórica sobre gê-
neros e sexualidades, com o intuito de localizar conceitualmente esse
debate e destacar a relevância desses temas para a Terapia Ocupacio-
nal, especialmente para a perspectiva teórico-metodológica da Terapia
Ocupacional Social. Posteriormente, apresentaremos de forma resumi-
da algumas ações que temos desenvolvido por meio da articulação do
projeto ResisTO e do CCLGBT.

GÊNEROS E SEXUALIDADES ENQUANTO MARCADORES


SOCIAIS DAS DIFERENÇAS

Gêneros e sexualidades são categorias sociais, marcadores sociais


da diferença. Os marcadores sociais podem compreender uma série de
categorias, como gênero, sexualidade, raça/etnia, geração e classe so-
cial. Estas categorias se combinam, estabelecendo diferentes lugares

59
sociais para os indivíduos. Os lu- modelo da heterossexualidade,
gares sociais, por sua vez, se dão mantendo a linearidade de seu
num jogo complexo de hierar- sexo e gênero (MISKOLCI, 2009).
quias que acabam por (re)produ- Em relação às discussões
zir diferentes formas de desigual- de gênero, pode-se analisar este
dade (VENCATO, 2014). marcador como uma sofisticada
A sexualidade é compreen- tecnologia social heteronormati-
dida como um dispositivo histó- va, operacionalizada pelas institui-
rico de poder (FOUCAULT, 2005). ções médicas, linguísticas, domés-
Segundo Miskolci (2009), “dispo- ticas, escolares e que produzem
sitivo” é um conceito que se re- constantemente corpos-homens
fere a um conjunto de diferentes e corpos-mulheres (BENTO, 2006).
discursos e práticas sociais, uma As categorias homem versus
rede que pode se estabelecer en- mulher, estão vinculadas histori-
tre elementos diversos como a li- camente e culturalmente a uma
teratura, enunciados científicos, desigualdade de poder, no qual
instituições e proposições morais. a masculinidade é representada
por imagens de força, virilidade
Não à realidade subterrâ-
nea que se apreende com difi-
e heterossexualidade, e a femini-
culdade, mas à grande rede em lidade é associada à delicadeza,
que a estimulação dos corpos, a vaidade, maternidade (BUTLER,
intensificação dos prazeres, a in- 2003). Dessa forma, as instituições
citação ao discurso, a formação e as práticas sociais são ao mes-
dos conhecimentos, o reforço
dos controles e das resistências,
mo tempo constituintes e consti-
encadeiam-se uns aos outros, tuídas pelos gêneros e moldam e
segundo algumas grandes es- produzem sujeitos a partir dessas
tratégias de saber e de poder relações (LOURO, 2014).
(FOUCAULT, 2005, p.100). Gênero e sexualidade são
dimensões que englobam coti-
Ela é o lugar em que nossa
dianos que podem ser marcados
verdade é lida, não apenas como
pela negligência e violação dos
reprodutora, fonte de prazer, ela
direitos humanos, civis, políticos e
dita o que está dentro da norma-
sociais como vivenciam as popu-
lidade e o que desvia, marca os lações dissidentes de gêneros e
corpos. Esse dispositivo de poder sexualidades, ou seja, corpos que
determina, controla e transforma produzem experiências para além
os corpos (FOUCAULT, 2005). da inteligibilidade que circunscre-
Assim, compreende-se que ve as normas binárias e hetero-
a organização cultural da nossa normativas (BUTLER, 2003).
sociedade é heteronormativa e É importante destacar que
binária, ou seja, com prescrições gêneros e sexualidades tem ga-
sociais que vão fundamentar os nhado destaque na terapia ocu-
processos de regulação e con- pacional brasileira nos últimos
trole da manifestação da sexu- anos, no que se refere ao ensino,
alidade, de modo que todas as à pesquisa e à extensão univer-
pessoas, heterossexuais ou não, sitária (MONZELI; LOPES, 2013;
pautem suas vidas conforme o MONZELI, 2013; MONZELI; FER-

60
REIRA; LOPES, 2015; MELO, 2016; elas físicas, sensoriais, mentais,
MONZELI, 2016; LEITE JR; LOPES, psicológicas e/ou sociais, apre-
2017; MELO; MONZELI; LEITE JR, sentam temporariamente ou
2018, BRAGA et al., 2020). definitivamente, dificuldade da
Este debate ainda é recente inserção e participação da vida
e pouco expandido para a Terapia social (WFOT, 2003, p. 70).
Ocupacional, contudo percebe- Os vieses e as narrativas da
mos a necessidade de se pautar Terapia Ocupacional nos impul-
esses temas, uma vez que gêne- sionam a enxergar a individua-
ros e sexualidades têm sido temas lidade e a subjetividade do su-
emergidos, com frequência, na jeito, de modo a compreendê-lo
sociedade brasileira contempo- em sua forma de ser e atuar no
rânea, no que se refere principal- mundo. Entretanto, também
mente à negligência de direitos nos fazem questionar e lutar
humanos e à violação de direitos pelo coletivo diante do mosaico
sociais de pessoas e coletivos LGB- de injustiças vivenciadas pelas
TQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, populações, estas que a Terapia
Travestis, Transexuais, Queers, In- Ocupacional lida cotidianamen-
tersexuais e outras identidades). te em suas atuações.
Dessa forma, gêneros e se- No campo social, a Terapia
xualidades começam a se tornar Ocupacional compreende e com-
importantes problemáticas para partilha as formas como as rela-
a Terapia Ocupacional brasilei- ções nos espaços se processam,
ra, para além de uma leitura que como as pessoas vivem, pensam,
vincula gênero às relações esta- sonham, trabalham, organizam
belecidas na divisão sexual do seu cotidiano, por onde circulam
trabalho ou para a ampliação da e como acessam os bens públicos,
noção de sexualidade na prática quais são suas atribuições de valo-
profissional, que se vincula à ha- res, como as redes se articulam e
bilitação/reabilitação da sexuali- como as potências se manifestam
dade para as pessoas com defici- e se calam (BARROS et al., 2007).
ência (MONZELI; LOPES, 2013). No contexto da Terapia Ocu-
pacional é importante analisar
TERAPIA OCUPACIONAL E TE- como as atividades humanas e o
RAPIA OCUPACIONAL SOCIAL cotidiano de pessoas e grupos são
atravessados pelas expressões de
De acordo com definição gênero e sexualidade. Além disso,
produzida pela Universidade de é necessário compreender como a
São Paulo (USP), a Terapia Ocu- participação social e os direitos so-
pacional é um campo de conhe- ciais destes sujeitos são limitados
cimento e de intervenção em e violados por não se enquadra-
saúde, educação e na esfera rem na lógica da divisão binária
social, que reúne tecnologias dos gêneros e das sexualidades.
orientadas para a emancipação A Terapia Ocupacional Social
e autonomia de pessoas que, tem produzido tecnologias so-
por razões ligadas à alguma ciais capazes de abrir novas possi-
problemática específica, sejam bilidades de atuação, integrando

61
e articulando ações que tenham de ações realizadas desde o plano
abrangência macro e microsso- individual, passando por grupos,
cial. Assim, destacamos as Ofici- coletivos, até os níveis da política
nas de Atividades, Dinâmicas e e da gestão. Essa estratégia está
Projetos; os Acompanhamentos baseada no manejo de práticas
Singulares e Territoriais; a Articu- de diferentes níveis de atenção
lação de Recursos no Campo So- em torno de objetivos comuns e
cial; e a Dinamização da Rede de utilizando os recursos possíveis
Atenção (LOPES et al., 2014). (financeiros, materiais, relacio-
As Oficinas de Atividades, Di- nais, afetivos), sejam eles micro
nâmicas e Projetos são utilizadas ou macrossociais, para compor as
como recurso mediador do traba- intervenções (LOPES et al., 2014).
lho de aproximação, acompanha- A Dinamização da Rede de
mento, apreensão das demandas Atenção visa mapear, divulgar e
e fortalecimento dos sujeitos in- consolidar todos os programas,
dividuais e coletivos, para os quais projetos e ações voltados para
o terapeuta direciona sua ação. A esse grupo populacional e/ ou sua
atividade é nosso instrumento de comunidade, fomentando a in-
trabalho, é através dela que co- teração e a integração entre eles,
nhecemos o universo de cada su- articulando os diferentes setores e
jeito, criando vínculos e gerando níveis de intervenção, facilitando
oportunidades para uma atuação a efetividade e o direcionamento
profissional que contribua para a das estratégias. (LOPES et al., 2014).
construção conjunta de planos e
projetos (LOPES et al., 2011). EXPERIÊNCIAS DO PROJETO
Os Acompanhamentos Sin- RESISTO
gulares e Territoriais são utilizados
como estratégias de intervenção O projeto ResisTO é uma
que possibilitam uma percepção e atividade de extensão do Depar-
interação mais real do cotidiano e tamento de Terapia Ocupacional
contexto de vida de cada um dos da UFPB e também faz parte das
indivíduos, interconectando suas ações do núcleo Metuia UFPB/
histórias e percursos, sua situação Uncisal1. Pauta-se nos pressupos-
atual e sua rede de relações. A es- tos da Terapia Ocupacional Social
cuta atenta possibilita ao profis- e nos teóricos que se debruçam
sional reconhecer as demandas sobre os marcadores sociais da
das pessoas, grupos ou coletivos, diferença. Portanto, para o de-
na maioria das vezes determina-
das pela situação de vulnerabili- 1. Atualmente, a Rede Metuia – Terapia Ocupacio-
nal Social conta com seis núcleos em atividade no
dade, desigualdade social e fal- Brasil (quatro na região Sudeste, um na Centro-O-
ta de acesso a serviços sociais e este e um na Nordeste), sendo eles: o da Univer-
sidade de São Paulo (USP), o da Universidade
bens essenciais (LOPES; BORBA; Federal de São Carlos (UFSCar), o da Universidade
CAPPELLARO, 2011; MALFITANO; Federal de São Paulo (UNIFESP), o da Universida-
de Federal do Espírito Santo (UFES), o da Universi-
ADORNO; LOPES, 2011). dade de Brasília (UnB) e o único núcleo na região
A Articulação de Recursos Nordeste é composto por meio de uma articu-
lação entre a Universidade Federal da Paraíba
no Campo Social é um conjunto (UFPB) e a Universidade Estadual de Ciências da
Saúde de Alagoas (Uncisal)..

62
senvolvimento de nossas ações, Estudos bibliográficos fo-
utilizamos alguns recursos e tec- ram constantes ao longo do pro-
nologias produzidos pela Terapia jeto, focando no que se refere aos
Ocupacional Social (LOPES et al., pressupostos teórico-metodo-
2014), tomando a dimensão ter- lógicos da Terapia Ocupacional
ritorial e comunitária, auxiliando Social e às questões subjacentes
a construção de ações técnicas à discussão sobre os estudos de
para o enfrentamento das de- gênero, sexualidade e intersec-
mandas postas no campo social. cionalidade. Foram realizados
Neste contexto, os recursos encontros semanais, nos quais
têm como um dos seus princí- eram alinhavadas as questões
pios a garantia e o fortalecimento advindas da prática, associando-
dos espaços democráticos para -se aos estudos teóricos, planeja-
a convivência com respeito mú- mento e preparação das ativida-
tuo, reconhecendo a população des a serem realizadas.
LGBTQIA+ como sujeitos de direi- Dentre as Oficinas desen-
tos, capazes e necessários para a volvidas, na primeira foi realizado
construção política da sociedade. um “Bate Papo na Lagoa: diver-
Neste sentido, apresentare- sidade sexual e identidade de
mos, de forma resumida, algumas gênero”. A oficina foi realizada no
das propostas de atuação da Tera- Parque Sólon de Lucena (Lagoa),
pia Ocupacional junto ao CCLGBT. em frente ao CCLGBT, e tinha
como objetivo se aproximar da
OFICINA DE ATIVIDADES, DI- população que circula nos espa-
NÂMICAS E PROJETOS ços do centro da cidade.
Utilizamos uma dinâmica
Todas as Oficinas e Dinâmi- para disparar a conversa sobre di-
cas foram previamente articula- versidade sexual e identidade de
das, planejadas e preparadas pelos gênero. Participaram 25 pessoas,
integrantes do Projeto ResisTO em duas em situação de rua, uma mu-
conjunto com a equipe do CCLGBT. lher e um homem transexual, uma
Durante o ano de 2018 foram estudante de terapia ocupacional,
realizadas oito Oficinas de Ativida- uma terapeuta ocupacional re-
des e Dinâmicas com a população cém-formada, alunos da rede pú-
usuária do CCLGBT e foi promovi- blica de ensino e alunos de outras
do um seminário sobre os direitos instituições ou outros cursos da
da população LGBTQIA+ na UFPB. UFPB, além desses, cinco extensio-
Inicialmente foi feito um ma- nistas, a professora coordenadora e
peamento dos serviços e ações duas terapeutas ocupacionais que
que compõem a rede de atendi- são colaboradoras do projeto.
mento à população LGBTQIA+ no A abordagem da dinâmi-
município de João Pessoa, além ca permitiu ao grupo o conheci-
disso, foram visitadas as casas de mento dos participantes, o levan-
acolhida deste município e pude- tamento de demandas a partir
mos conhecer os projetos realiza- dos inúmeros questionamentos,
dos pelo CCLGBT. principalmente sobre identidade

63
de gênero e orientação sexual, xual relatou o quanto o CCLGBT
disparando a roda de conversa. a ajudou na conquista pelos seus
A segunda oficina foi nome- direitos. Houve relatos do proces-
ada “Você no centro: diálogo so- so de transexualização, suas bar-
bre o protagonismo de pessoas reiras, a luta constante, o adoeci-
travestis e transexuais”, compre- mento físico e mental pelo não
endendo a questão de identida- reconhecimento desses corpos.
de de gênero e sexualidade como A terceira oficina foi “Roda de
ponto crucial nas interseccionali- conversa sobre masculinidades
dades que fazem parte da vida de e saúde dos homens trans, gays
um indivíduo, como forma de po- e bissexuais”. A oficina teve por
tencializar as vozes muitas vezes objetivo provocar a reflexão sobre
silenciadas de uma população masculinidade. Nesta atividade ti-
historicamente excluída, como a nha três homens transexuais, dois
população LGBTQIA+. homens gays, um homem bis-
Dessa forma, surgiu a ne- sexual, três membros do Projeto
cessidade de um debate acerca ResisTO e o coordenador do CCL-
das especificidades das pessoas GBT. Os participantes foram sepa-
trans e das travestis, consideran- rados em dois grupos para realizar
do a luta histórica da travestilida- a construção de dois cartazes,um
de, a travessia da identidade de para a reflexão acerca do que eles
gênero e o reconhecimento des- entendem por masculinidades e
sa transição. A oficina teve como outro, com o que a sociedade im-
objetivo o fortalecimento do pro- põe como padrão de masculini-
tagonismo de pessoas travestis e dade. Todos os homens presentes
transexuais e do local de fala que no encontro reconheceram que é
essas pessoas ocupam, além de necessário continuar pensando e
buscar acolher as vulnerabilida- produzindo suas próprias masculi-
des sofridas, refletindo sobre es- nidades, desconectadas da expec-
tratégias para o enfrentamento tativa da sociedade.
das mesmas e para a ampliação A partir dessa atividade dis-
do acesso aos direitos sociais. paradora, problematizamos tam-
Participaram da roda cerca bém o quanto é cultural os ho-
de 25 pessoas, somando os mem- mens não cuidarem de sua saúde,
bros do ResisTO, os profissionais do buscando ajuda somente em ca-
CCLGBT, quatro mulheres transe- sos graves. Discutimos a questão
xuais, quatro homens transexuais da saúde dos homens trans, e o
e um homem gay, sendo a maioria quanto a saúde mental dessa po-
formada por usuários do serviço. pulação não é cuidada, o que se
O primeiro momento per- reflete em altos índices de suicídio.
mitiu aos usuários apresentarem Falamos também acerca da saúde
suas experiências de vida e sub- dos homens bissexuais e o quanto
jetividades. Posteriormente, o a própria categoria é discrimina-
compartilhamento das experiên- da, até mesmo pelo próprio mo-
cias de vida apresentou pessoas vimento LGBTQIA+. Por fim, dis-
com vidas marcadas pela luta di- cutimos os encaminhamentos da
ária para existir em uma socieda- oficina. E diante das discussões, foi
de normativa. A mulher transe- proposto que déssemos continui-

64
dade ao diálogo sobre saúde, cha- A partir de uma visita realiza-
mando os profissionais para com- da a uma dessas unidades de aco-
por essa roda. lhimento, a equipe de coordenação
Em acordo com o encami- apresentou a demanda de discus-
nhamento da oficina anterior, são com os moradores daquele es-
promovemos um encontro com paço, sobre o tema da diversidade.
os profissionais da rede de saúde Tendo em vista importân-
voltada à população LGBTQIA+ do cia dos saberes e conhecimen-
município de João Pessoa. Nesse tos produzidos na Universidade
encontro foi possível discutir cole- serem acessíveis à comunida-
tivamente acerca da conduta dos de, essa oficina teve como ob-
profissionais de saúde no aten- jetivo proporcionar um debate
dimento à população LGBTQIA+, acerca do respeito às diferenças,
a importância da notificação de ofertando espaços para a convi-
violências nos serviços da rede, vência e promovendo o diálogo
esclarecimentos das dúvidas no e a reflexão na direção da defe-
atendimento aos casais trans e sa dos direitos dessa população.
homoafetivos, além do respeito Essa oficina foi realizada em uma
ao nome social. das unidades de acolhimento de
Como encaminhamento João Pessoa, em que residem
dessa atividade, debateu-se a ne- cerca de 30 pessoas.
cessidade da criação de um fó- Nesse espaço foram realiza-
rum de discussão permanente e das duas dinâmicas, a primeira
a promoção de capacitação pro- consistiu em uma caixa com al-
fissional em relação à saúde da gumas palavras (vida, rua, família,
população LGBTQIA+. Assim, esse violência, discriminação, amigos,
encontro possibilitou o diálogo e liberdade, paz, casa, amor, den-
sensibilização dos profissionais tre outras), cada morador retirava
dos serviços do Ambulatório de um papel contendo uma dessas
Saúde Integral para Travestis palavras e dizia o que cada pala-
Transexuais, da Vigilância Epide- vra poderia representar em sua
miológica em Saúde, do Consul- vida. Através das palavras, dos
tório na Rua, docentes do curso significados, falas e representa-
de Medicina da UFPB, discentes ções, foi possível conhecer um
do curso de Psicologia e articu- pouco da vida de cada sujeito e
lação dos profissionais dos ser- o que marcou sua trajetória. Al-
viços de saúde com os usuários gumas palavras foram mais for-
do CCLGBT, contribuindo para a tes do que outras, causando o
visibilidade desta população e a silêncio emocionado (como por
promoção dos seus direitos. exemplo “família”) e outras foi
A quinta oficina foi planejada possível perceber que tinham
a partir do mapeamento da rede significados diferentes para eles
de serviços voltada à população e para os integrantes do Projeto
LGBTQIA+, em que o Serviço de (como por exemplo “rua”).
Acolhimento Institucional para Adultos Após esse momento, foi reali-
faz parte da rede, no qual é ofertado zada outra proposta, “A Dinâmica
um quarto à população LGBTQIA+ que das Placas” que permitiu perce-
está em situação de rua. ber aos integrantes do Projeto e

65
aos próprios moradores da Casa da das pessoas que estavam pre-
Acolhida como eles se enxergam, sentes, e percebemos o anseio
seus gostos, preferências e subje- de alguns para terem suas casas
tividades. Esta dinâmica permitiu e saírem da Casa de Acolhimen-
dialogar sobre questões de identi- to, da importância que a rua teve
dade de gênero e orientação sexual. para seu conhecimento sobre a
A sexta oficina aconteceu no vida, sendo também uma forma
CCLGBT, nomeada como “Visibi- de aprendizagem, assim como
lidade Lésbica- interseccionali- seus planos para o futuro.
dade mulheres negras e lésbi- Num segundo momento re-
cas” foi articulada com o CCLGBT alizamos uma atividade sobre gê-
em alusão ao dia da visibilidade nero, identidade de gênero e se-
lésbica. Assim, iniciamos com al- xualidade. Foram discutidas várias
gumas atividades que serviram questões a partir da oficina, tais
como disparadoras do tema, sen- como o quanto a desigualdade
do a primeira uma exposição de de gênero é ainda acentuada em
fotos e as histórias de assassina- nosso país, no qual há pouca repre-
tos de algumas mulheres lésbi- sentação de mulheres na política e
cas e negras no Brasil, logo em em outros cenários, onde os salá-
seguida, uma das extensionistas rios são desiguais e o racismo se faz
apresentou um poema sobre presente. Sobre a necessidade de
mulheres negras, e também exi- conhecer as leis e direitos sociais,
bimos um vídeo que abordava a assim como termos consciência
temática em questão. crítica para lidar com as questões
Nesta oficina discutimos as que abrangem essa temática. So-
temáticas de violências, a invisibi- bre o tema da sexualidade, foi dito
lidade, a própria divisão dentro do pelos usuários que o amor não de-
movimento de mulheres, sobre os veria ter barreiras, que deveríamos
espaços de fala e de desconstrução respeitar as diversas formas de afe-
da hipersexualização dos corpos tividade e sexualidade.
negros, também a desconstrução A última oficina do ano de
da heteronormatividade dentro 2018 foi nomeada ‘Oficina Saúde
dos movimentos feministas, já Mental da população LGBT: preci-
que é conhecido que mesmo den- samos falar sobre suicídio’ e foi re-
tro do movimento feminista, algu- alizada no CCLGBT. Participaram
mas mulheres ainda reproduzem da oficina usuários(as) do CCLGBT
o pensamento heteronormativo. e do Centro de Atenção Psicosso-
A sétima oficina realizada cial (CAPS), assim como os profis-
foi sobre gênero e sexualidade no sionais que atuam na área.
CCLGBT e teve como público mo- Apresentamos alguns ví-
radores da Casa de Acolhimen- deos para disparar a discussão e
to de Jaguaribe e a do Progra- uma das participantes da oficina,
ma Chega Junto. Iniciamos com que trabalha na seção de doen-
uma roda de apresentações e em ças e agravos não transmissíveis
seguida realizamos a “Dinâmica do município, trouxe informações
da Caixinha de Significados”. sobre casos de suicídio em João
O momento foi muito proveito- Pessoa, além de apontar que os
so para conhecermos um pouco dados são subnotificados, prin-

66
cipalmente pela falta de capaci- traordinária de Políticas Públicas
tação dos profissionais ao preen- para as Mulheres (SEPPM), Secre-
cherem a ficha de notificação. taria Municipal de Saúde (SMS) e
Por fim, foram pensadas com a Secretaria de Educação e
estratégias para o enfrentamen- Cultura (SEDEC) de João Pessoa
to ao suicídio. Foram apontadas para colaborar com o desenvolvi-
algumas dificuldades encontra- mento de oficinas com estudan-
das no município, como pensar tes e professores com o objetivo
estratégias para a saúde mental de promover a discussão acerca
da população LGBTQIA+. Proble- das diferenças, buscando contri-
matizou-se a falta de capacitação buir no enfrentamento às violên-
dos profissionais de saúde para li- cias, na escola e fora dela.
dar com o suicídio. No decorrer da Ressalta-se que as oficinas
oficina, uma usuária lésbica deu são realizadas pelo CCLGBT des-
um depoimento, relatando sua de 2015 e visam acabar com o
ideação e tentativa de suicídio e o preconceito e violência nos am-
quanto o CCLGBT foi um serviço bientes educacionais. Elas são re-
essencial nesse momento. alizadas anualmente nas escolas
Por fim, realizou-se o I Se- municipais de João Pessoa, sobre
minário Direitos para popula- temas relacionados à identidade
ção LGBTQIA+: uma questão de gênero, orientação sexual, gê-
de luta e resistência. Este even- nero, questões étnico-raciais e di-
to teve como objetivo promover versidade religiosa.
um debate, de atores sociais e O público-alvo, em 2019, fo-
representantes dos serviços pú- ram adolescentes e jovens estu-
blicos com a universidade, acer- dantes do 9º ano do Ensino Fun-
ca do acesso aos direitos sociais damental II de uma escola de um
desta população. Dessa forma, o bairro popular do município de
seminário trouxe para o debate João Pessoa. Cada oficina tinha
questões advindas da prática vi- duração de 45 minutos a uma
venciada no desenvolvimento do hora e meia, a depender da dispo-
projeto de extensão. Os debates nibilidade da escola. As escolhas
das mesas foram importantes das temáticas foram construídas
para a formação dos estudantes coletivamente com os adoles-
da UFPB, mas também para a centes e jovens, e foram discuti-
universidade como um todo, pois das questões que perpassam as
vários atores, de movimentos so- problemáticas e potencialidades
ciais e de outras instituições, fa- da escola e os marcadores sociais
laram sobre o acesso aos direi- da diferença, construindo as prá-
tos da população LGBTQIA+, das ticas para e com eles.
ameaças colocadas nos tempos Foram realizadas 17 oficinas
atuais e das estratégias de luta ao longo do ano, a saber: 1) “linha
para garantia e manutenção dos do tempo” - abordando as ques-
direitos já conquistados. tões étnico/raciais e o racismo,
De 2019 até atualmente, o através de uma linha do tempo;
Projeto ResisTO, a partir da de- 2) “mural da diversidade” - para
manda do CCLGBT, estabeleceu abordar a identidade racial; 3) “teia
parcerias com a Secretaria Ex- de lã, vídeo e música” - para dialo-

67
gar sobre a diversidade religiosa; reflexão acerca dos marcadores
4)“etiquete-me” - para discutir so- sociais da diferença junto à profes-
bre construções corporais gene- sores e gestores de escolas muni-
rificadas; 5) “complete a coluna” cipais de João Pessoa. Pretende-se
- para problematizar as diferentes realizar Oficinas em pelo menos
performances de gêneros e sexua- uma escola de cada um dos nove
lidades; 6) “corrida dos privilégios” polos de ensino de João Pessoa,
- para discutir sobre os marcado- cujos objetivos estão parametri-
res sociais das diferenças; 7) “dis- zados pelas noções de cidadania,
puta dos desenhos” - atividade de direitos/deveres e da participa-
disparadora para discussão acerca ção democrática. A proposta é que
da desigualdade social; 8) com- possamos sensibilizá-los para a re-
preensões sobre famílias e suas flexão a respeito de como as dife-
diversas formas de composição; 9) renças estão sendo vivenciadas no
“facebook®”- dinâmica para discu- cotidiano escolar e na tarefa que
tir a violência de gênero; 10) jogos eles têm de se tornarem multipli-
teatrais/corporais para disparar cadores na desconstrução de hie-
a discussão de opressão; 11) “vio- rarquias e desigualdades.
lência na escola” - dinâmica com
uso de placas para discussão das ARTICULAÇÃO DE RECUR-
diferenças na escola e as violências SOS NO CAMPO SOCIAL
delas decorrentes; 12) construção de
fanzines; 13) batalha de rap – evento Nesta dimensão, foram rea-
que envolveu a escola toda; 14) “mú- lizadas ações que visam articular
sica que me representa”; 15) “o que recursos para o desenvolvimento
é ser negro no Brasil?”; 16) evento de diferentes atividades. Articula-
cultural: “a coisa tá preta: a cultura ções que envolveram grupos de
negra como forma de resistência” Rap de João Pessoa, artistas lo-
e 17) finalização das oficinas com cais para se apresentar nas ativi-
construção de um mural das ativi- dades culturais, além de articula-
dades desenvolvidas e reflexão so- ções com os movimentos sociais
bre os encontros. LGBT+ e setores de diferentes ca-
As vivências nas Oficinas tegorias profissionais da socieda-
possibilitaram um processo re- de que movimentam as pautas
flexivo coletivo sobre os temas da população LGBTQIA+.
abordados, além de promover Foi possível, também, pro-
maior contato e convivência en- por a articulação com algumas
tre os próprios estudantes, em Secretarias municipais que pos-
um espaço de sociabilidade e suem propostas de ações e pro-
trocas. Ao discutir essas temáti- jetos de combate às violências,
cas, buscou-se contribuir com a além da articulação com a UFPB,
função da escola em formar su- por meio do Departamento de
jeitos críticos e reflexivos, diante Terapia Ocupacional (UFPB), com
de um mundo de diferenças e de a disponibilização de docentes e
grande desigualdade. discentes e materiais para reali-
Em 2020, o foco do proje- zação das Oficinas.
to em articulação com seus par- Essa tecnologia social é de
ceiros, é de promover o debate e extrema importância e foi utiliza-

68
da com o foco na articulação dos do reproduzidas de forma hie-
diversos níveis de gestão e da po- rárquica, gerando desigualdades
lítica municipal para a população sociais, desrespeitos e preconcei-
LGBTQIA+, formando espaços tos que perpetuam a intolerância
de diálogo capazes de produzir e a injustiça, impossibilitando o
ações efetivas em diferentes di- convívio harmonioso com essas
mensões do município. diferenças, o que dificulta a efe-
tivação da cidadania e gera desi-
A DINAMIZAÇÃO DA REDE gualdades no acesso aos direitos
DE SERVIÇOS por parte da população.
Estabelecer a parceria com o
A dinamização da rede de CCLGBT foi umas das formas que
serviços tem por objetivo mape- o projeto ResisTO encontrou de se
ar, divulgar, consolidar e produzir aproximar dessa população que se
projetos, políticas e ações voltados encontra em processo de vulnera-
para a população LGBTQIA+. Nes- bilidade social e de desfiliação.
te sentido, destaca-se a impor- O CCLGBT foi criado a partir
tância de educar e exigir o devido dos princípios da dignidade da
retorno às pessoas que se encon- pessoa humana, da cidadania, da
tram em situação de vulnerabili- igualdade, da valorização e res-
dade, articulando diferentes seto- peito à diversidade, da equidade,
res para se pensar em diferentes da universalidade das políticas
estratégias (LOPES et al., 2014). públicas e da justiça social, e es-
Essa tecnologia social foi uti- ses princípios se relacionam dire-
lizada na construção de parceria tamente com a Terapia Ocupa-
entre a Secretaria Extraordinária cional, tornando possível ao nosso
de Políticas Públicas para as Mu- projeto utilizar tecnologias sociais
lheres (SEPPM), Secretaria Muni- e recursos da Terapia Ocupacio-
cipal de Saúde (SMS) e a Secreta- nal Social dentro desse espaço,
ria de Educação e Cultura (SEDEC) auxiliando essa população na
do município de João Pessoa. ampliação do acesso aos direitos
Pudemos traçar estratégias e no pleno exercício da cidadania
coletivas com o objetivo de pen- como forma de cultivar sua auto-
sarmos as ações na escola junto nomia e participação social.
aos jovens, na busca da promo-
Quando iniciamos as ati-
ção de cidadania, prevenção de
vidades no CCLGBT no ano de
violência e sustentação da esco-
2018, nós, extensionistas do pro-
la como um lugar que garanta o
jeto ResisTO, tínhamos uma vaga
respeito às diferenças.
ideia do que nos aguardaria, pois
CONSIDERAÇÕES FINAIS estávamos no início do curso de
Terapia Ocupacional, alguns no
primeiro período e outros no se-
O Brasil se caracteriza pelas
gundo, e até aquele momento
diferenças, sejam elas culturais,
tínhamos pouco contato prático
sociais, raciais, étnicas, religiosas, com a atuação da Terapia Ocu-
de gênero ou de sexualidade. In- pacional. Contudo, após estudos
felizmente, essas diferenças, no teóricos e reuniões com a equipe
contexto brasileiro, acabam sen- do CCLGBT, fomos construindo

69
as ações em conjunto, levando levando em consideração a sin-
sempre em consideração a de- gularidade existente dentro de
manda dos usuários(as) que en- cada um. Lutando para cumprir
contrávamos no Centro. a função da Universidade Pública,
A escuta ativa e sensível foi que é utilizar o conhecimento ad-
essencial para construir uma re- quirido dentro desse espaço para
lação aberta e horizontal com as contribuir com o desenvolvimen-
pessoas que fazem parte do CCL- to e transformação da sociedade,
GBT - equipe e usuários(as), ten- de forma ética e democrática.
do em vista que o nosso papel é
de participação ativa no processo AGRADECIMENTOS
de transformação da realidade.
Neste sentido, a nossa fun- Agradecemos a todos(as)
ção dentro desse espaço de re- extensionistas, professores, cola-
sistência sempre foi moldada a boradores e terapeutas ocupacio-
partir das demandas que surgi- nais que fizeram parte desta his-
ram nos ambientes de troca e tória. Um agradecimento especial
discussão com os usuários e com à equipe do Centro de Cidadania
equipe do Centro. Todas as pes- LGBT, a todos(as) usuários(as),
soas que passaram pelo projeto aos moradores(as) e trabalhado-
ResisTO - alunos(as), professores, res(as) das casas de acolhida que
colaboradores e profissionais da estiveram conosco e por último,
Terapia Ocupacional, se esforça- gostaríamos de agradecer a co-
ram e continuam se esforçando munidade escolar e aos estudan-
na luta pela efetivação de diretos tes das escolas que tem nos re-
e cidadania de todas as pessoas, cebido para as ações do Projeto
no sentido mais plural da palavra, ResisTO nos últimos anos.

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WORLD FEDERATION OF OCCUPATIONAL THERAPISTS (WFOT).

72
Cine
Contracultura:
O audiovisual
brasileiro como
linguagem para
a reflexão sobre
diversidade
sexual, racial e
de gênero
Renata Gonçalves Gomes e
José Alves de Oliveira
Foto: Atividade do Cine
Contracultura no Centro de
Cidadania LGBT

INTRODUÇÃO

É comum vermos na crítica cinematográfica questionamentos sobre


a existência – ou não – da categoria LGBTQIA+ no cinema brasileiro. Por isso,
podemos nos perguntar: o cinema brasileiro contemporâneo tem traba-
lhado para a construção dessa categoria? É possível afirmar que existe
um Cinema Queer, para utilizar o termo de Ruby Rich (1992), no Brasil? O
cinema LGBTQIA+ pode servir como ferramenta de empoderamento de
sujeitos de grupos discriminados e vitimizados? Esse é um tema caro ao
cinema brasileiro, justamente porque é uma reflexão relativamente recen-
te. Isto porque não é apenas a ausência de representação LGBTQIA+ nos
filmes brasileiros que nos preocupa, mas a representatividade de tão di-
versa comunidade em audiovisuais nacionais.
A representatividade aqui refere-se ao grupo LGBTQIA+ não enquan-
to investigados, ou seja, representados na tela, mas principalmente en-
quanto agentes produtores da indústria cinematográfica nacional. Sendo
assim, a partir desses questionamentos, esse capítulo propõe uma refle-
xão sobre a representatividade LGBTQIA+ no cinema brasileiro a fim de
analisar a relevância das ações do projeto de extensão Cine Contracultura
(UFPB) no Centro de Cidadania LGBT de João Pessoa no ano de 2019.
Para fins de organização, esse capítulo se dividirá em mais duas

74
seções. Na primeira seção que grande parte, a história do cinema
segue, faremos uma brevíssima brasileiro visibilizou personagens
revisão da representatividade cuíers com perspectiva exotizan-
LGBTQIA+ no cinema brasileiro a te, preconceituosa ou com humor
fim de levantar dados para res- LGBTQIfóbico. Com isso, lançamos
ponder as questões acima levan- a reflexão: de que forma o cinema
tadas. Para tanto, o conceito de brasileiro representou e represen-
“Cinema Queer” (RICH, 1992) será ta sujeitos LGBTQIA+ em audiovi-
discutido a fim de refletir sobre a suais? Nessa seção, tentaremos tra-
interseccionalidade de questões çar uma linha histórica do cinema
relacionadas a gênero, sexuali- brasileiro, a partir das referências
dade e raça no cinema nacional, comentadas no curta-metragem
propondo uma concepção do ci- Cinema em 7 Cores2 (2008), dirigi-
nema cuír brasileiro. E na segun- do por Felipe Tostes e Rafaela Dias
da seção, iremos dissertar sobre – que foi exibido pelo Cine Contra-
as ações do Cine Contracultura cultura no Centro de Cidadania
no Centro de Cidadania LGBT, LGBT de João Pessoa – e das refle-
de João Pessoa, no ano de 2019, xões que surgiram após discussão
e analisar a relevância das ações fomentada pelos participantes, no
que tinham como objetivo articu- dia 17 de outubro de 2019.
lar discussões sobre representati- O conceito de cinema que-
vidade e o empoderamento dos er foi cunhado por Ruby Rich em
sujeitos LGBTQIA+ da cidade a 1992. À época, Rich percebeu que
partir de exibições de curtas-me- as rebeliões de frequentadores/as
tragens sobre o tema. do bar nova-iorquino Stonewall
Inn, motivadas pela invasão bru-
ta policial no local, na manhã de
CINEMA QUEER/CUÍR NO 28 de junho de 1969, não apenas
BRASIL: REALIDADE OU corroboraram o movimento LGBT
FICÇÃO? estadunidense em razão da liber-
tação social e política, como tam-
bém, indiretamente, em busca
O cinema brasileiro tem uma
de um cinema queer. Com isso,
longa história com a representa-
no início da década de 1990, Rich
ção de personagens LGBTQIA+ em
percebe, na cena cinematográfi-
suas telonas. É importante frisar,
ca independente, uma tendência
porém, que isso não necessaria-
à temática queer em filmes exi-
mente equivale a uma cinemato-
bidos nos grandes festivais dos
grafia queer, ou como os estudos
Estados Unidos. Rich menciona
decoloniais definem, cuír – o queer
que no mesmo dia em que houve
do sul do mundo1 . Isso porque, em
a primeira rebelião de Stonewall,
acontecia o funeral de Judy Gar-
1. Para um aprofundamento da questão cuír,
recomendamos a leitura da 39a edição da land, um grande ícone do cine-
Revista Uniletras (UEPG), v.2, sob o título
de “Gêneros e Sexualidades Dissidentes ou
Queer/Cuír/Quir nas Américas: artes, políticas 2. Disponível no website Porta Curtas em: <
e escrituras – contextualização e apresen- http://portacurtas.org.br/filme/?name=cin-
tação”, organizada por Marcelo Spitzner (2017). ema_em_7_cores>.

75
ma Hollywoodiano do início do tação sexual mas também por
século XX – e também uma es- outras identidades discriminadas
trela conhecida por ser ídolo do na estrutura da pirâmide social
público gay. Com esses dois gran- a respeito de raça, classe, idade,
des eventos concomitantes em deficiência, entre outras.
Nova Iorque, Rich afirma que Mas e no Brasil? É possível
não apenas uma nova era estava pensarmos sobre a representa-
começando para os sujeitos que- tividade queer na indústria cine-
er, como também para esse cine- matográfica brasileira, quer in-
ma. A morte de Garland, como um dependente ou hegemônica? O
símbolo de um recomeço cine- curta-metragem Cinema em 7
matográfico, atrelada à resistên- cores (2008), exibido pelo projeto
cia queer, demonstra para Rich Cine Contracultura no Centro de
que as décadas seguintes seriam Cidadania LGBT3, faz um pano-
diferentes nos Estados Unidos. E rama histórico sobre os sujeitos
foram. Cada vez mais o cinema LGBT no cinema nacional. O filme
queer estadunidense se fortalece, documentário de 34 minutos é
hoje não mais apenas atrelado a resultado parcial do trabalho para
um cinema independente, mas já a conclusão do curso de Comuni-
cooptado pela grande indústria. cação Social (Universidade Federal
Filmes como Before Stonewall do Rio de Janeiro) para a obtenção
(1984), dirigido por Greta Shiller do título de bacharel em radialis-
e Robert Rosenberg, Paris is bur- mo de Felipe Tostes e Rafaela Dias.
ning (1990), por Jennie Livingston, No relatório técnico intitulado Ci-
O Segredo de Brokeback Moun- nema em sete cores: A homosse-
tain (2005), de Ang Lee, e Moon- xualidade no cinema brasileiro
light: Sob a luz do luar (2016), por (2008), ambos cineastas relatam
Barry Jenkis, são exemplos des- a originalidade do tema devido à
sa mudança progressiva a cada escassez de trabalhos na área. Con-
reinício de década após os eventos tudo, partem da dissertação de
históricos de 1969. Isso não quer Antônio Moreno, A Personagem
dizer que estejamos em um mo- Homossexual no Cinema Brasi-
mento da história em que o cine- leiro (1995), posteriormente publi-
ma queer esteja consolidado nos cada em livro, para configurar o
Estados Unidos enquanto parte documentário, já que Moreno faz
da hegemonia de sua indústria um levantamento de 125 filmes
cinematográfica. Até porque mui- em que há personagens homos-
tas vezes filmes queer cooptados sexuais no cinema nacional, se-
por Hollywood tendem a visibili- jam elas protagonistas ou não.
zar sujeitos queer cis, brancos, jo- No Brasil, o cinema moder-
vens, de classe média e sem defi- no é conhecido por ter iniciado
ciência. Sendo assim, a subversão nos anos 1950, sob a luz do Cine-
do cinema queer deve também ma Novo, com cineastas hoje con-
ser com viés interseccional, visan-
do sujeitos de grupos vitimizados,
3. Utilizamos aqui a sigla LGBT em detri-
que são oprimidos por sua orien- mento do que o curta-metragem utiliza na
maior parte dos depoimentos.

76
sagrados no panteão da cinema- único beijo – uma relação homo-
tografia brasileira como Nelson afetiva. Com a censura instaurada
Pereira dos Santos. Mais adiante, no país durante o golpe militar, e
nos anos 1960, Glauber Rocha tam- a relação homoafetiva sendo en-
bém entrou para o célebre lugar tão considerada uma transgressão
de imortal do cinema nacional ao ou rebeldia que deveria ser conti-
lançar longas como Deus e o dia- da pelos militares, poucos filmes
bo na terra do sol (1964) e Terra em conseguiram efetivamente desen-
transe (1967). Ainda no fim da dé- volver personagens cuíers4. A sa-
cada de 1960, o cinema marginal ída, muitas vezes, era caricaturar
manifestou através de sua estética as personagens cuíers em estere-
questões do subdesenvolvimento ótipos, que pouco ou nada empo-
do país através da crítica à burgue- deravam os sujeitos LGBTQIA+. O
sia ou à pobreza, em filmes como filme Os dois ladrões (1960), diri-
Sem essa aranha (1970) e O bandi- gido por Carlos Manga, e estrela-
do da luz vermelha (1968), ambos do por Oscarito e Eva Todor, é um
de Rogério Sganzerla. Portanto, exemplo de como era preciso cari-
o marco histórico do cinema mo- caturar o sujeito cuír para que tal
derno, de acordo com Ismail Xa- pudesse ser visto pelo grande pú-
vier (2001), é o período entre 1964 blico no cinema. É relevante ressal-
e 1985, ou seja, do golpe militar à tar a questão do lugar de fala pois
abertura, quando o cinema novo e era, e ainda é, recorrente o fato de
o cinema marginal surgiram com sujeitos cis heterossexuais atua-
uma estética e crítica pertinente rem como personagens cuíers no
aos modelos hegemônicos de ci- cinema ou na televisão. No caso
nema Hollywoodiano e comercial de Os dois ladrões, Oscarito – um
e ao regime militar. Não queremos, dos atores mais populares à época
porém, equivaler as rebeliões de – atua enquanto um sujeito que se
Stonewall Inn ou a morte de Judy traveste de mulher no filme e, por-
Garland ao período ditatorial no tanto, em um lugar de fala que não
Brasil, porém é relevante que se é o seu. Por sua popularidade, Os-
destaque que tal período no Bra- carito veicula mais amplamente a
sil também foi de perseguição e perspectiva cuír, mas de forma es-
censura aos grupos discriminados tereotipada, e que, portanto, não
e vitimizados no país, tais quais su- chega a ser uma representativida-
jeitos LGBTQIA+ e afro-brasileiros. de real para o público LGBTQIA+ da
Mas cabe a pergunta: o cine- época, mas um reforço às imagens
ma novo e o cinema marginal con- de controle.
tribuíram para um cinema cuír no Por outro lado, o cinema na-
país? Muito pouco. Não é possível cional possui em sua história al-
afirmar que haja em ambos os mo- gumas travestis – que não fizeram
vimentos uma construção dessa o sucesso de Oscarito –, mas que
perspectiva, ainda que em muitos representaram suas identidades
filmes haja personagens homosse- nos cinemas do país. É o caso de
xuais e/ou que abordam – mesmo
4. É importante lembrar que até 1990 a ho-
que brevemente, através de um mossexualidade fazia parte da lista da OMS,
sendo considerada uma doença.

77
Darwins, conhecida como a pri- último que havia se distanciado
meira travesti do cinema nacio- das propostas do Cinema Novo.
nal pela atuação no filme Augusto Ainda segundo Filho, a porno-
Aníbal quer casar (1923), filme em chanchada foi um gênero profí-
pantomima de difícil acesso hoje, cuo, já que contava com cineas-
dirigido por Luiz de Barros. Ivaná, tas que aproveitaram a brecha do
que era portuguesa mas radicada governo autoritário nacionalista
no Brasil, também ficou conheci- que instaurou medidas como a
da como uma das primeiras tra- obrigatoriedade de exibições de
vestis do país a atuar no cinema filmes nacionais e o cerceamen-
nos anos 1950. Ivaná também foi to da distribuição e exibição de
considerada a primeira atriz do filmes internacionais. Com isso,
teatro de revista, e estreou no ci- junto a uma censura aos filmes
nema com uma pequena parti- do Cinema Novo e a outras pro-
cipação no filme Mulher de ver- duções nacionais, além da dimi-
dade (1954), dirigido por Alberto nuição de produções estrangei-
Cavalcanti. Infelizmente, pouco ras no país, a pornochanchada se
arquivo se tem e poucas pesqui- instaurou nas salas de cinema do
sas foram feitas para perpetuar a Brasil afora, corroborando a fama
memória de sujeitos tão relevan- de que teria servido como massa
tes para o cinema nacional e para de manobra, para distrair o povo
a construção da epistemologia do durante a ditadura. Enquanto
cinema cuír brasileiro5 . O dado gênero, a pornochanchada apre-
que nos resta é de que a história senta conteúdo erótico, sem uma
do cinema nacional é pouco culti- estética definida, e com produ-
vada e que os sujeitos cuíers des- ções que não custavam muito.
sa história são ainda mais invisi- Por isso, o gênero rapidamente foi
bilizados, tendo em vista a pouca ganhando popularidade e, conse-
notoriedade que Darwins e Ivaná quentemente, mais produções. O
têm na historiografia da área. gênero também ficou conhecido
Se voltarmos à década de por explorar os corpos das mulhe-
1970, outra importante fase no ci- res e, repetidas vezes, a partir de
nema nacional foi a pornochan- uma perspectiva falocrática.
chada. Segundo Valter Vicente A lesbianidade e a bissexu-
Sales Filho (1995), a pornochan- alidade da mulher é comumente
chada foi o gênero que conseguiu retratada pelos filmes da porno-
reatar a relação entre o cinema chanchada de forma estereoti-
brasileiro e o grande público, esse pada e falocentrada. A título de
5. Para uma maior pesquisa a respeito dos exemplo, o longa-metragem Gi-
sujeitos travestis no cinema brasileiro, selle (1980), dirigido por Victor di
sugerimos a monografia intitulada A Repre- Mello, retrata a personagem que
sentação de Transexuais e Travestis no Cin-
ema Brasileiro (2014), de Anna Caroline de dá nome ao filme como uma ga-
Moraes Pinheiro, defendida na Universidade rota promíscua, que se relaciona
de Brasília (UnB). Disponível em: <https:// sexualmente com mulheres tais
bdm.unb.br/bitstream/10483/9454/1/2014_
AnnaCarolinedeMoraesPinheiro.pdf> Aces- quais sua madrasta e uma ami-
so em: 09 de maio de 2020.

78
ga. A bissexualidade de Giselle é da sociedade patriarcal brasileira.
apresentada de forma superfi- Como podemos ver nesse
cial, já que ela é apresentada para brevíssimo panorama sobre o ci-
quem assiste ao filme como uma nema brasileiro moderno e suas
mulher que se relaciona sexual- representações de sujeitos cuíers,
mente de forma indiscriminada. até o fim a década de 1990 não era
Vale lembrar que a bissexualida- possível pensar a produção cine-
de no cinema brasileiro é pou- matográfica brasileira como meio
co retratada, sendo ainda uma de empoderamento aos sujeitos
das identidades LGBTQIA+ mais cuíers, ou pensar em um cinema
invisibilizadas. Não por acaso, a cuír nacional. Ainda que haja re-
primeira exibição feita pelo Cine presentações desses sujeitos em
Contracultura no Centro de Cida- filmes, poucos deles apresentam a
dania LGBT de João Pessoa teve sexualidade interseccionada com
como objetivo celebrar o Dia do outras identidades oprimidas no
Orgulho e da Visibilidade Bissexu- país. Todos os personagens até aqui
al, que acontece anualmente em citados são brancos, por exemplo.
23 de setembro. Porém, mesmo Como pensar em um cinema cuír
com uma vasta pesquisa, a equi- nacional com sujeitos LGBTQIA+
pe teve uma grande dificuldade brancos, quando a maioria da po-
de encontrar curtas-metragens pulação brasileira é negra ou parda
que trabalhassem com sujeitos e vivencia uma realidade muitas
bissexuais como protagonistas e vezes ligada aos espaços margina-
que tivessem um tom empode- lizados, como as favelas?
rador, a fim de gerar debate. Por É por isso que filmes como
isso, optamos pela exibição de Madame Satã (2002), de Karim
Cinema em 7 Cores, para elencar Aïnouz, são tão importantes para
essa invisibilidade, que está pre- a história do cinema brasileiro.
sente inclusive no panorama his- Aïnouz, aliás, dirigiu outros filmes
tórico do curta de Tostes e Dias. em que há representatividade
Já na década de 1990, As cuír, como é o caso de Praia do
feras (1995), dirigida por Walter futuro (2014), que retrata um sal-
Hugo Khouri, apresenta um per- va-vidas fortalezense que se rela-
sonagem principal apaixonado ciona com um alemão.
por sua prima Sônia, que é lésbica O grito emancipatório de
e mantém um relacionamento. Madame Satã – “Eu sou bicha
Assim como mostra o documen- porque eu quero, e não deixo de
tário Cinema em 7 Cores (2008), ser homem por isso não!” (2002),
as cenas de sexo em As feras en- figura lendária da cena guei ca-
tre as personagens lésbicas são rioca de um século XX em seu
fetichizadas, sendo veiculadas ocaso, continua preso na gargan-
com voyeurismo a serviço do ta de muitos do século XXI, um
personagem masculino. No caso tempo presente que ainda insiste
da pornochanchada, as cenas em não amanhecer. Sendo assim,
de sexo entre mulheres servem é compreensível o efeito catártico
principalmente ao público mas- gerado por Lázaro Ramos ecoan-
culino, reiterando o caráter ma- do tal grito ao ser vítima de ata-
chista, lesbofóbico e/ou bifóbico que homofóbico, no filme que re-

79
trata a vida de João Francisco dos do personagem Waremme em O
Santos, a Madame Satã. A figura Caso Maurizius (Tv Tupi: 1960), que
marginal de um homem negro flerta sutilmente com o jovem
transformista que ousa enfrentar Etzel, de apenas 16 anos. As tramas
a sociedade carioca em plena di- violentas aos poucos deram lugar
tadura, surge para o público LGB- ao cômico, com homens carica-
TQIA+ – até então acostumado tos e femininos e mulheres per-
com representações caricatas de formando a masculinidade vista
rodapé ou abjetas – quase como como grosseira, servindo ao me-
um herói. O filme é encarado por nosprezo e ao deboche do olhar
muitos como o primeiro longa- heteronormativo. Foi no cômico,
-metragem de grande circulação sobretudo, que o homem guei
a representar de forma positiva encontrou seu lugar na ficção.
um homem guei no cinema bra- Everaldo, o mordomo guei carica-
sileiro. Contudo, o fascínio brasilei- to de Dancin’ Days (Rede Globo:
ro por Madame Satã já havia ren- 1978-79), tornou-se uma espécie
dido um filme anterior, A Rainha de arquétipo guei no imaginário
Diaba, longa de 1974, que trazia brasileiro, perpetuado e reforçado
Milton Gonçalves interpretando o em telenovelas e no cinema.
papel principal. De qualquer for- Foi nas telenovelas, similar-
ma, é inegável a importância da mente, que nasceu o persona-
obra que rendeu fama a Lázaro gem Crô, interpretado por Mar-
Ramos, ainda mais no contexto de celo Serrado em Fina Estampa
escassez de representatividade no (Rede Globo: 2011-2012), assumin-
cinema brasileiro moderno, como do a representação de tal arquéti-
anteriormente mencionado. po no século XXI herdado de Eve-
Sujeitos cuíers são constan- raldo. Escrito por Aguinaldo Silva,
tes também na televisão desde o personagem foi um sucesso gi-
os anos 1960. Não é difícil encon- gantesco, rendendo duas adapta-
trarmos registros acerca de tais ções para o cinema: Crô – O Filme
personagens, principalmente, (2013), dirigido por Bruno Barreto,
na teledramaturgia brasileira. No e Crô em Família (2018), dirigido
início, essas personagens eram por Cininha De Paula, ambos com
representadas como seres peri- ótimas bilheterias apesar de fortes
gosos ou traiçoeiros, sempre em críticas negativas, especialmente
busca de seduzir pobres “vítimas” ao segundo. O grande sucesso do
heterossexuais. Como Henri de O personagem deve-se, para além
Astro (Rede Globo: 1977-1978) que do apelo cômico, ao fato de que
participa do assassinato de Salo- o personagem é uma represen-
mão Hayalla, por quem apresen- tação “confortável” ao grande pú-
tava um leve interesse romântico. blico: Crô não desafia a audiência
Já um dos exemplos femininos heterossexual, pois não aponta os
é o da Inês, que corteja Florence, preconceitos ou desvios morais
esposa de seu primo em Entre desse público. O personagem ser-
Quatro Paredes (Tv Tupi: 1963). No ve quase como uma versão cari-
caso dos homens, eram frequen- cata e inofensiva de um Clodovil.
tes as tendências implícitas ou ex- Um homem guei que “não milita”,
plícitas à pedofilia, como no caso que “sabe seu lugar”. Portanto, se

80
Madame Satã (2002) entregou ao heterossexuais.
público uma representação posi- Mas o fato de que quem es-
tiva de uma figura guei histórica creve, dirige e produz um audiovi-
no século XXI, o mesmo não pode sual no Brasil nem sempre ocupa
ser dito do fictício mordomo e o mesmo lugar de fala das perso-
sua subserviência caricata. Talvez nagens principais não constitui
por terem públicos distintos (a ve- um problema óbvio. O grande
lha discussão da indústria cultural exemplo de representação posi-
acerca da obra de massa)? tiva citado anteriormente, Mada-
João Silvério Trevisan em De- me Satã (2002), foi dirigido por
vassos no Paraíso – A Homossexu- um homem branco. Guei, mas
alidade no Brasil, da Colônia à Mo- branco. Karim Aïnouz possui uma
dernidade (2018) discorre acerca do filmografia reconhecida critica-
que chama de “consumo mórbido mente e parece entender seu “lu-
da homossexualidade”, onde há gar de fala”: o cineasta percebe-se
espaço para sujeitos cuíers desde como sujeito limitado, mas não
que sejam representados de for- compreende tal limitação como
ma palatável. O desejo pelo proibi- uma proibição, até porque seus
do é então saciado sob uma ótica filmes lidam muitas vezes com o
deturpada da realidade, as lésbicas, seu próprio lugar. Ao compreen-
as travestis, bissexuais e os gueis der a importância da pluralidade
representados são todos perso- em sua equipe técnica e criativa
nagens de si mesmos, impedidos e da sensibilidade necessária para
de alcançar a verossimilhança tão contar histórias que não são as
comum ao ficcional. Quanto mais suas, o artista acerta em contri-
distante de uma pessoa de carne buir para um imaginário guei plu-
e osso, melhor. Pois do contrário, ral. Do contrário, estaria condena-
a representação causaria revolta do a reproduzir uma visão única
pela indecência e apologia ao que da realidade. Da mesma forma,
deveria ser constantemente ata- seria problemático se tivéssemos
cado. De certa forma, os sujeitos atrizes e atores LGBTQIA+ sen-
cuíers são desumanizados, trata- do escalados apenas para papéis
dos como uma única versão de si que correspondessem com suas
mesmos, e portanto passíveis de identidades e orientações. A luta
LGBTQfobia, pois são entendidos por um lugar de fala LGBTQIA+
como menos humanos. Isso nos pode ser interpretada, portanto,
leva a uma crise de representações muito mais como uma luta pelo
positivas, humanas, especialmen- protagonismo e não pelo silencia-
te em audiovisuais mais populares mento do outro.
como as telenovelas. As represen- Ao mesmo tempo em que o
tações de personagens verossímeis lugar de fala não precisa ser uma
—capazes de gerar empatia na au- barreira para se ater a uma políti-
diência e compreensão ao invés de ca de filmes diversos com repre-
repulsa ou risadas—, continuam sentatividade LGBTQIA+, é impor-
sendo a exceção, o que pode ser tante que esses sujeitos estejam
explicado pelo fato de que os gran- ocupando espaços em todos os
des produtores de conteúdo conti- âmbitos no cinema nacional.
nuam sendo homens cis brancos e Bacurau (2019), filme de Kléber

81
Mendonça Filho e Juliano Dornel- 2018 e em 2019 no edital FLUEX/
les, apresenta como integrante UFPB, estando lotado no Depar-
do pequeno povoado a persona- tamento de Letras Estrangeiras
gem trans Darlene, além de Lun- Modernas, do Centro de Ciên-
ga, personagem-herói andrógino. cias Humanas, Letras e Artes, da
Danny Barbosa, atriz que inter- Universidade Federal da Paraíba,
preta Darlene, foi a primeira mu- campus I. Nos dois anos, o pro-
lher trans paraibana a pisar no jeto contou com a participação
tapete vermelho em Cannes. O do bolsista José Alves de Oliveira,
ator Silvero Pereira, que fez Lun- graduando do curso de Letras In-
ga em Bacurau, comumente glês da mesma instituição.
aparece em eventos artísticos — Ao longo de dois anos de
inclusive em Cannes — montado execução, foram exibidos 17 au-
de drag queen. diovisuais, dentre os quais todos
Por fim, não poderíamos abordaram pelo menos uma das
deixar de destacar a relevância temáticas de gênero, sexualidade
das universidades brasileiras ao e raça, que serviram como cate-
formar cineastas em seus cursos gorias de análise para a seleção,
de cinema, audiovisual e jornalis- exibição e discussão de filmes
mo, proporcionando infraestrutu- nacionais e estadunidenses. Com
ra, material de trabalho, teoria e média de 15 pessoas por exibição,
orientação para a elaboração de algumas vezes até mesmo alcan-
curtas-metragens como produto çado um público maior, consi-
final para a obtenção dos títulos deramos que as exibições foram
de bacharéis. Com isso, o cinema bem-sucedidas, não apenas pela
brasileiro hoje se destaca como quantidade de público, mas prin-
produtor de curtas-metragens cipalmente pela qualidade do de-
premiados, como é o caso de Cine- bate, sobretudo quando aborda-
ma em 7 Cores (2008) e Bicha Pre- das questões raciais, sexuais e de
ta (2017), ambos produzidos em gênero interseccionadas.
universidades públicas brasileiras. Em 2019 tivemos a honra de
fazer parte da história do Centro
de Cidadania LGBT de João Pes-
O CINE CONTRACULTURA soa, uma das grandes satisfações
EM PARCERIA COM O CEN- do segundo ano dos participan-
TRO DE CIDADANIA LGBT tes do projeto extensionista. Atra-
vés de uma parceria com o Cen-
tro, realizamos duas exibições. A
O projeto de extensão Cine
primeira aconteceu no dia de 17
Contracultura foi criado em 2018
de outubro com o curta Cinema
com o objetivo de viabilizar exibi-
em 7 Cores (2008), em celebração
ções e discussões acerca da diver-
ao Dia da Bissexualidade, onde
sidade sexual, racial e de gênero
discutimos as representações
no cinema brasileiro e estadu-
LGBTQIA+ no cinema brasileiro e
nidense. O projeto, coordenado
a formação de um imaginário cuír
pela professora doutora Renata
através da sétima arte. A segunda
Gonçalves Gomes, foi aprova-
exibição foi realizada no dia 12 de
do no edital PROBEX/UFPB em
novembro com o curta Bicha Pre-

82
ta (2017), como parte da progra- questão cuír e racial em parceria
mação do evento Novembro Ne- com o Centro de Cidadania LGBT
gro, organizado pelo Centro em de João Pessoa ou as questões de
comemoração ao Mês da Consci- raça, gênero e sexualidade discuti-
ência Negra. Ambas as exibições das dentro do Campus Universitá-
proporcionaram debates relevan- rio, a ênfase manteve-se no debate
tes a respeito da representativi- e na transformação. Pois um dos
dade cuír nos audiovisuais brasi- efeitos mais nefastos da populari-
leiros, ao refletirmos em conjunto zação de imagens de controle, seja
sobre as possíveis intersecções de através do cinema ou de outras
gênero, raça, classe e sexualidade mídias, é que elas passam a fazer
no cinema nacional e também sentido. Dessa forma, sujeitos de
na Paraíba. Nas duas ocasiões, o grupos discriminados e vitimiza-
debate foi mediado pelos mem- dos passam então a enfrentar difi-
bros do projeto, buscando o pro- culdades ao tentar construir uma
tagonismo e falas do público do autoimagem positiva.
Centro. Os debates percorreram Ao longo da trajetória do Cine
diversos caminhos, mas um pon- Contracultura, foi apresentado à
to sempre se fazia presente: a re- comunidade acadêmica e externa
presentatividade. espaços de resistência ao audiovi-
O Cine Contracultura em sual hegemônico. Em nossas exibi-
seus dois anos de atividade bus- ções, a comunidade LGBTQIA+ não
cou proporcionar espaço para de- era apenas um tema a ser repre-
bater representações mais justas, sentado, era protagonista. Como
visando um debate democrático ponto de partida, consideráva-
e transformador. Seja ao discutir a mos as categorias de análise de

Foto: Debate após a exibição do curta Cinema em 7 Cores


Fonte: Instagram @cinecontracultura

83
gênero, raça, sexualidade e classe tão não se trata do fato de que
nos audiovisuais brasileiros e es- não há mulheres dirigindo filmes
tadunidenses para a escolha de relevantes e interessantes, mas
filmes a serem exibidos. Além dis- de que essas mulheres raramen-
so, as escolhas dos filmes a serem te são tão prestigiadas quanto
exibidos eram feitas a partir de os homens do cinema. Durante
determinados contextos de públi- a existência do projeto respeita-
co alvo e tempo de exibição, o que mos os diversos locais de fala e
interferia, por exemplo, na escolha exaltamos a necessidade de um
de um curta ou longa-metragem, olhar diverso. Principalmente no
em um filme nacional em língua segundo ano, buscamos exibir fil-
portuguesa ou estadunidense le- mes dirigido por mulheres ou em
gendado, um filme ficcional ou coautoria com diretoras.
documentário. Essas decisões Com público bastante diver-
norteavam também os debates, so e representativo da comunida-
que ora tinham caráter teórico, de, o debate gerado pela primeira
ora político-social, ora confessio- exibição no Centro teve como pro-
nal — e muitas vezes os três. tagonistas as vozes de indivíduos
Em nosso segundo ano, por LGBTQIA+ e as suas experiências
exemplo, através da iniciativa Mu- tanto com telenovelas quanto
lheres na Direção, foram divulga- com filmes que os ajudaram nesse
das cineastas nacionais e interna- caminho de autodescoberta e de
cionais em nossas redes sociais. construção de uma autoimagem
Essa foi uma ação relevante para positiva. Pois ao mesmo tempo
armar o debate sobre a escassez em que reproduzem imagem, o
de mulheres no topo da pirâmi- cinema e a televisão também re-
de do cinema mundial. A ques- forçam ou desconstroem estere-

Foto: Debate após a exibição do curta Bicha Preta


Fonte: Arquivo pessoal

84
ótipos. Por isso, entendemos que de docentes da UFPB não vincu-
a exibição foi um sucesso. Poste- lados ao projeto para mediar as
riormente, fomos convidados a discussões geradas por determi-
retornar, dessa vez para participar nadas exibições. Outras vezes, as
da programação do evento No- exibições eram mediadas pela
vembro Negro, o que prontamen- equipe do projeto, em locais di-
te aceitamos. O dia 12 de novem- versos dentro e fora do campus
bro do mesmo ano marcou nosso universitário. Em nossa jornada
retorno com a exibição do curta como pequenos divulgadores da
Bicha Preta (2017), de Thiago Ro- sétima arte contracultural, so-
cha, também no Centro de Cida- bretudo a brasileira e a estadu-
dania LGBT. O curta-metragem nidense, tivemos a oportunidade
aborda os aspectos socioculturais de debater cinema e debater po-
que evidenciam a marginalização líticas, certos de que celebramos
da negritude e especificamente as narrativas marginais, as figu-
em relação aos indivíduos gueis ras políticas e artísticas de movi-
e travestis. Premiado, o curta par- mentos contraculturais e de gru-
te de uma perspectiva intersec- pos discriminados.
cional do movimento LGBTQIA+ Sendo assim, entendemos
para pensar o lugar das pessoas que é de extrema relevância pen-
LGBTQIA+ no Brasil, dando ênfa- sarmos espaços públicos como
se para a sujeitos cuíers negros as universidades públicas como
do sudeste do país. O filme gerou divulgadoras e produtoras de
um debate bastante interessante, arte. O Cine Contracultura cons-
principalmente pela relevância truiu apenas um pequeno retra-
da interseccionalidade para pen- to daqueles que fizeram e fazem
sarmos os sujeitos cuíers também o cinema: as mulheres, as bichas,
em João Pessoa, na Paraíba. os negros, as travestis, cineastas,
Com o sucesso das duas diretores e diretoras de fotogra-
exibições especiais, o Cine Con- fia, roteiristas, maquiadores e
tracultura findou suas atividades maquiadoras, figurinistas, assis-
de 2019. O projeto, de cunho te- tentes de câmera, produtores e
órico-prático, ao longo de seus produtoras, atores e atrizes e as-
dois primeiros anos consistiu em sim por diante. O cinema brasi-
uma série de leituras e reflexões leiro é guei, é feminino, é negro,
acerca de cinema e de movimen- é cuír, é arte e, portanto, assim
tos sociais que embasaram nos- como os espaços públicos no
sas exibições e debates. Algumas Brasil — as universidades e os
vezes contou com a participação centros de cidadania LGBT —, é

85
REFERÊNCIAS

BICHA preta. Direção de Thiago Rocha. Rio de Janeiro: UBM, 2017. Di-
gital (22 min.).

CINEMA em 7 cores. Direção de Felipe Tostes; Rafaela Dias. Rio de Ja-


neiro: UFRJ, 2008. 1 Mini-DV (34 min.).

FILHO, V.V.S. Pornochanchada: Doce sabor da transgressão. Comuni-


cação e Educação, v.3, maio/ago, 1995, p.67-70.

RICH, Ruby B. New Queer Cinema: The Director’s Cut. Indie Wire, 20
junho 2013. Disponível em: <https://www.indiewire.com/2013/06/rea-
d-the-first-chapter-of-b-ruby-richs-new-queer-cinema-the-directors-
-cut-a-must-read-for-anyone-even-remotely-interested-in-lgbt-cine-
ma-37457/>. Acesso em 07 de maio de 2020.

TREVISAN, J.S. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil,


da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

XAVIER, I. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

86
Lugar de fala e
enfrentamento
das violências: o
bate-papo nas
escolas

Priscila Souza de Lima,


Selma de Souza Cabral,
José João do Nascimento e Iara Falleiros Braga
Foto: Oficina na escola Ruy
Carneiro

ESCOLA: VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE E O ENFRENTA-


MENTO DAS VIOLÊNCIAS

O projeto de ação nas escolas municipais de João Pessoa com as


temáticas gênero, sexualidade, étnica/racial e diversas religiosidades vem
sendo realizado pela Coordenadoria de Promoção à Cidadania LGBT e
Igualdade Racial – PMJP, em parceria com a Secretaria Extraordinária de
Políticas Públicas para as Mulheres (SEPPM), com a Secretaria Municipal
de Saúde (SMS), com a Secretaria de Educação e Cultura (SEDEC) e com o
projeto de extensão ResisTO1 , do curso de Terapia Ocupacional da UFPB.
A proposta foi iniciada em 2014, com a articulação entre a Coorde-
nadoria de Promoção à Cidadania LGBT e Igualdade Racial e a Secreta-
ria Municipal de Educação (SEDEC), através da Diretoria de Gestão Cur-
ricular (DGC), e tinha como objetivo combater o racismo, a intolerância
religiosa, a violência contra as mulheres e a LGBTfobia nas escolas mu

1. O Projeto ResisTO é uma atividade de extensão do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade


Federal da Paraíba (UFPB), faz parte das ações do núcleo Metuia UFPB/Uncisal e vem sendo realizada em
parceria com a Coordenadoria LGBT e de Igualdade Racial da UFPB, desde 2018. Ver Capítulo 3 neste livro.

88
nicipais de João Pessoa por meio da A partir de 2015 observou-se a ne-
criação de uma rede articulada, for- cessidade de inserir também a te-
mada pelos nove Polos Educacionais. mática de violência contra as mu-
O projeto surgiu com a pre- lheres e a ampliação das oficinas
tensão de trabalhar a História e a para outros serviços que lidavam
Cultura Afro-brasileira e Africa- com jovens e adolescentes e a fa-
na, com embasamento das Leis mília de uma forma geral.
nº 10.639/2003, 11.645/2008, as Dessa forma, foram realiza-
Portarias 384/2010, 1.612/2011, o dos seminários anuais para ca-
Decreto 32.159/2011, como tam- pacitação do corpo docente das
bém o Programa Brasil sem Ho- escolas, servidores da educação,
mofobia, assim como o I Plano da saúde e da secretaria do de-
Nacional de Desenvolvimento senvolvimento social com temas
Sustentável dos Povos e Comu- específicos. Em 2015 o tema do
nidades Tradicionais de Matriz seminário foi LGBT no espaço
Africana (BRASIL, 2003; BRASIL, escolar; em 2016 e 2017 as ações
2013; BRASIL, 2009). foram focadas nas oficinas com
Destaca-se que a Lei nº os estudantes e o seminário foi
10.639/2003 estabeleceu a obriga- destinado para os profissionais e
toriedade do ensino de história e equipe técnica das escolas com
cultura afro-brasileira e africana o tema Dialogando sobre Gêne-
nas escolas do país (BRASIL, 2003). ro, Sexualidade e igualdade Ra-
No entanto, persiste ainda a into- cial nas Escolas; no ano de 2018,
lerância religiosa, principalmente além do seminário, foram realiza-
contra as religiões de matrizes afri- das oficinas com os técnicos da
canas, que são as mais discrimina- rede de cuidados com a intenção
das. Nos anos de 2012 a 2015, as de apresentar-lhes a importância
denúncias pelo Disque 100 contra dos encaminhamentos da rede
religiões afro-brasileiras represen- como também a importância da
taram 71,15% do total de denúncias notificações das violências ob-
desse cunho, fato que indica este servadas, o tema foi Dialogando
segmento como o mais vulnerável sobre a Rede de Cuidados e Di-
e consequentemente aquele com versidades nas escolas.
maior índice de vitimização (SAN- No ano de 2019, com o tema
TOS et al., 2016). Feminicídio, LGBTfobia, Racis-
Desde seu início o projeto mo e Intolerância Religiosa, o
visa reverter um quadro de racis- foco do seminário foi nas ações
mo, intolerância religiosa e LGB- de enfrentamento às diversas
Tfobia nas escolas municipais de violências nas escolas, resultado
João Pessoa. Em 2014 a ação foi dos levantamentos das mesmas
dirigida apenas a estudantes ma- através das oficinas realizadas no
triculados/as nas escolas dos nove contexto escolar em anos ante-
polos, do Ensino Fundamental, riores. Para o ano de 2020, a con-
nas escolas municipais, e ao cor- tinuidade das ações do projeto
po docente, servidores em geral é a formação para professores e
e familiares das referidas escolas. equipe técnica das escolas, como

89
também as oficinas para os estu- dissidente de gêneros e sexuali-
dantes, inserindo as atividades ao dades sofre em seu cotidiano, in-
planejamento da escola através clusive no ambiente escolar, se faz
do Plano Político Pedagógico. necessário, já que este é um espa-
A relevância das ações com ço de sociabilidade importante
essas temáticas é evidenciada para os adolescentes e jovens.
quando trazem relatos e vivên- Frente a isso, este projeto é
cias dos professores, estudantes calcado em uma ação preventiva
e equipe técnica sobre o cotidia- aos comportamentos preconcei-
no escolar com suas problemati- tuosos e discriminadores institu-
zações e várias formas de violên- cionalizados pela educação bra-
cia, enfatizando que a valorização sileira, tomando como base os
e o respeito à diversidade são es- princípios da Constituição Fede-
senciais para o enfrentamento ral de 1988, das Leis 10.639/2003 e
das violências, discriminações e 11.645/2008 (que correspondem
exclusões no espaço escolar. à história e à cultura afro-brasilei-
As discriminações de gêne- ra e africana e indígena, nos cur-
ro, de classe social, étnico-racial e rículos do Ensino Fundamental e
por orientação sexual, como tam- Médio), as Portarias 384/2010 e
bém a violência LGBTfóbica, são 1.612/2011, o Decreto nº 32.159/2011
produzidas e reproduzidas em to- (Dispõe sobre o direito ao uso e
dos os espaços da vida social bra- tratamento pelo nome social a
sileira. A escola é um desses (BAR- travestis e transexuais na rede de
RETO; ARAÚJO; PEREIRA, 2009). ensino, saúde e assistência so-
Os resultados dessa problemática cial), o Estatuto da Igualdade Ra-
expressam-se de forma contun- cial – seção II, arts. 11 ao 16 e Cap.
dente no acesso, permanência, III e a Lei Maria da Penha - Lei Fe-
evasão e retenção de crianças e deral nº 11.340/2016, norteadores
jovens negros, LGBTs e mulheres. de uma educação livre de racis-
Assim, a escola tem produ- mo e promotora da igualdade de
zido silenciamentos cotidianos direitos com respeito às diferen-
frente às diferenças, reprodu- ças humanas e aplicação do Pro-
zindo as normas sociais, ora san- grama Brasil sem Homofobia.
cionando comportamentos de Buscamos, com este Projeto,
gêneros e de sexualidades, ora in- a desconstrução do “Mito da De-
visibilizando aqueles que são dis- mocracia Racial” – que embasa a
sidentes destas normas. “Há um crença de não haver uma divisão
projeto social, uma engenharia de raças tão forte no Brasil, boa
de produção de corpos normais, parte por conta da miscigenação
que extrapola os muros da es- ocorrida, acreditando que todos
cola, mas que encontrará nesse têm direitos iguais. Esse discur-
espaço um terreno fértil de disse- so dificulta o reconhecimento da
minação” (BENTO, 2011, p.556). discriminação racial, no entanto
Sendo assim, discutir as pos- o racismo persiste ainda hoje de
sibilidades de expressões de gê- maneira velada e estrutural, fruto
neros e sexualidades, e as violên- do nosso passado escravocrata e
cias e exclusões que a população da inserção desigual do negro no

90
sistema capitalista. As desigualda- nero” ou “orientação sexual” no
des sociais decorrentes da discri- contexto escolar, com a alteração
minação racial são evidentes no da Lei 9.394/96 - Lei de Diretrizes
acesso desigual aos direitos eco- e Bases da Educação (LDB). Mas
nômicos, educacionais e sociais as pesquisas sobre juventudes,
no Brasil por parte da população gênero e sexualidades nas esco-
negra. Deste modo, trabalhamos las (CASTRO; ABRAMOVAY, 2018)
uma abordagem relacionada à mostram as violências relaciona-
memória, à ancestralidade e ao das ao gênero e à sexualidade na
pertencimento étnico e negri- escola e a importância do debate
tude, bem como abordamos as com a perspectiva de gênero no
questões de gênero e sexualida- combate a LGBTfobia e as violên-
de desconstruindo estereótipos, cias contra as mulheres.
preconceito contra orientação Castro (2017) recorre a Edgar
sexual e de gênero, binarismos e Morin e suas ideias sobre o para-
desigualdades de gênero, colabo- digma da complexidade versus o
rando assim para o respeito à di- da simplicidade. A discussão em
versidade sexual, à identidade de torno da “ideologia de gênero”,
gênero e para o combate à violên- como exemplo do paradigma da
cia contra as mulheres. simplicidade, se baseia na defesa
Destaca-se que as oficinas já de uma única norma, a heterosse-
foram realizadas em 54 escolas do xualidade, e é portanto contrária
município de João Pessoa e são ao debate crítico do estereótipo
realizadas por várias equipes, en- binário de ser mulher e ser ho-
volvendo profissionais de todos os mem, sem questionar as desi-
setores, parceiros e extensionistas gualdades sociais e sexuais; já a
do curso de Terapia Ocupacional. perspectiva de gênero é própria
do paradigma da complexidade,
com ênfase nos direitos sexuais
A DISPUTA DO DEBATE E A e reprodutivos, no respeito e no
IMPORTÂNCIA DA DIVERSI- combate às violências, compre-
DADE FRENTE ÀS VÁRIAS endendo a ampla, complexa e di-
versa vivência das juventudes em
FORMAS DE VIOLÊNCIA relação ao gênero e sexualidade,
como também seu contexto eco-
O debate de gênero e sexu- nômico, político e sociológico. Nas
alidade na escola é alvo de ame- experiências do projeto de ação
aça por parte de um grupo de nas escolas municipais, durante
conservadores que o identificam todos esses anos, ficou evidente
como “ideologia de gênero” – ou a disputa de poderes, foi possí-
seja, a tentativa de “modificar a vel perceber durante uma ofici-
natureza heterossexual” em ho- na com os estudantes, em que
mossexual, organizando projetos uma vereadora do município, de
de leis e campanhas para a proi- partido de direita conservado-
bição da discussão dessas temáti- ra, compareceu à atividade com
cas na escola. Em suas propostas, o objetivo de intimidar as ações.
seriam vedados os termos “gê- Por outro lado, percebemos um

91
acolhimento e atenção da maio- promover um debate crítico em
ria das escolas e de seus diretores, relação aos processos de natura-
equipe técnica, professores e es- lização e essencialização da di-
tudantes, no tocante a importân- ferença, embora saibamos que
cia das atividades e das temáticas desigualdades sociais e políticas
para o contexto escolar. são inscritas nos corpos dos su-
Fica clara a existência de jeitos. No entanto, é necessário
uma disputa entre os discursos reconhecer as diferenças, sua
dentro do espaço escolar, de um construção histórica e cultural,
lado, aqueles que reproduzem a fim de transformar o espaço
os valores hegemônicos, que são escolar em um local democráti-
legitimados pela da sociedade e co, que promova a cidadania de
por diversas instituições - religio- todos/as que ali estão. A realiza-
sas, médicas, midiáticas, dentre ção das oficinas possibilitou a
outras. “A eficácia desse discur- vinculação com os estudantes, o
so está em produzir nos sujeitos que implica, de forma direta, no
a incômoda e terrível certeza de envolvimento desses nas ativida-
que ele não é normal e de que, des, nas trocas que acontecem
se ele se sente fora do lugar, é entre eles, no processo de apren-
porque não existe lugar para ele” dizagem, na capacidade do de-
(BENTO, 2011, p. 558). E por outro, senvolvimento crítico, compre-
o discurso contra-hegemônico ensão e conscientização destes
que busca legitimar a existên- acerca das discriminações exis-
cia de todas as pessoas, proble- tentes dentro e fora do ambiente
matizando a essencialização das escolar (LOPES et al., 2011).
identidades e das normas sociais. Para a dinamização e amplia-
A importância do reconheci- ção da oferta das oficinas nas es-
mento e respeito às diferenças se colas, nos dividimos em duas equi-
faz necessária no enfrentamen- pes. Uma com os/as profissionais
to às violências nas escolas. Para da Coordenadoria Municipal LGBT
Castro (2017), na pesquisa sobre e de Igualdade Racial e outra com
juventude, gênero e sexualidade os membros do Projeto de exten-
nas escolas, os movimentos de são ResisTO, da UFPB. No entan-
jovens destacam a escola como to, foram feitos encontros para o
ambiente de reprodução da compartilhamento das experiên-
LGBTfobia e de violências, como cias e das estratégias de ação.
formas de discriminação àqueles A equipe do Projeto ResisTO
que fogem da heteronormativi- – que era composta por 16 exten-
dade social validada nas escolas. sionistas estudantes do curso de
Terapia Ocupacional, uma cola-
boradora, que era residente em
OFICINAS NAS ESCOLAS Saúde Mental pela UFPB, e a pro-
PÚBLICAS fessora coordenadora – durante o
ano de 2019 realizou as Oficinas
A partir das oficinas rea- com duas turmas do 9º ano do
lizadas nas escolas, buscou-se Ensino Fundamental II de uma

92
escola de um bairro periférico do cussão acerca da desigualda-
município de João Pessoa. As ofici- de social;
nas foram realizadas semanalmen- h) compreensões sobre famí-
te e tinham duração de 45 minutos lias e suas diversas formas de
a uma hora e meia, a depender da composição;
disponibilidade da escola.
Para abarcar as duas turmas e i) “facebook®” - dinâmica para
realizar oficinas simultâneas, os in- discutir a violência de gênero;
tegrantes do Projeto ResisTO se di- j) jogos teatrais/corporais para
vidiam, de acordo com a temática disparar a discussão de opres-
e os vínculos criados com os estu- são;
dantes. As escolhas das temáticas
foram construídas coletivamente, k) “violência na escola” - dinâ-
e foram discutidas questões que mica com uso de placas para
perpassam as problemáticas e po- discussão das diferenças na
tencialidades da escola e as ques- escola e as violências delas
tões de gênero, sexualidade, étni- decorrentes;
co-raciais e a diversidade religiosa, l) construção de fanzines;
levando sempre em consideração
m) batalha de rap – evento que
as demandas dos adolescentes
envolveu a escola toda;
e jovens, construindo as práticas
para e com eles. n) “música que me representa”;
Foram realizadas 17 oficinas o) “o que é ser negro no Brasil?”;
ao longo do ano, a saber:
p) evento cultural: “a coisa tá
a) “linha do tempo” - abordando preta: a cultura negra como
as questões étnico-raciais e o forma de resistência”
racismo, através de uma linha
do tempo; q) finalização das oficinas com
construção de um mural das
b) “mural da diversidade” - para atividades desenvolvidas e re-
abordar a identidade racial; flexão sobre os encontros.
c) “teia de lã, vídeo e música” -
para dialogar sobre a diversi- Além destas oficinas, foram
dade religiosa; realizadas duas oficinas em outras
duas escolas municipais de João
d) “etiquete-me” - para debater
Pessoa, uma com três turmas do
sobre as construções corpo-
9º ano para discutir sexualidade e
rais generificadas;
gravidez na adolescência e outra
e) “complete a coluna” - para com duas turmas de 8º ano para
problematizar as diferentes discutir gênero e sexualidade.
performances de gêneros e O projeto de extensão bus-
sexualidades; cou, por meio das oficinas, pro-
f) “corrida dos privilégios” - para piciar um diálogo e reflexão com
discutir os marcadores sociais os adolescentes e jovens do Ensi-
das diferenças; no Fundamental, na construção
de espaços de experimentação
g) “disputa dos desenhos” - ati- e aprendizagem, concebendo
vidade disparadora para dis-

93
cada aluno e aluna como ser ati- tavam a reorganizar as tarjetas, a
vo no processo de construção de partir desse momento surgiam
subjetividade, um ser das práxis, as perguntas e dúvidas sobre
da ação e da reflexão. Os encon- as categorias das tarjetas e suas
tros e os processos ali construí- classificações aos termos. Depois
dos foram se constituindo como era realizada uma roda de diálo-
uma tecnologia social de aproxi- go com os participantes, em que
mação com foco nos temas gê- eles relatavam sobre suas experi-
nero, sexualidade, relações étni- ências e vivências na escola e fora
co-raciais e diversidade religiosa. dela, na família, na rua e outros
As vivências nas oficinas possibi- espaços, finalizando com exibi-
litaram um processo reflexivo co- ção de vídeos de sensibilização
letivo na direção de proporcionar ao enfrentamento da LGBTfobia.
sensibilização para uma maior Nas Oficinas de Igualda-
conscientização em relação aos de Racial e Intolerância Religio-
temas tratados. Além de promo- sa, realizávamos a exibição de
ver um maior contato e convi- vídeos para sensibilização sobre
vência entre os próprios alunos e o racismo, com a dinâmica em
alunas, em um espaço prazeroso grupo sobre “o que você enten-
de sociabilidade e trocas. Ao dis- de por racismo, discriminação
cutir tais questões com os e as racial e intolerância religiosa”. Os
estudantes, buscou-se contribuir grupos discutiam e socializavam
com a missão da escola em for- com os demais grupos, logo após
mar sujeitos críticos e reflexivos, exibíamos slides explicando so-
diante de um mundo de diferen- bre o tema e relacionando com
ças e de imensa desigualdade. suas falas, em seguida fazíamos
Pessoas que possam refletir so- uma roda de diálogo com dú-
bre o acesso de todos/as à cida- vidas e relatos de vivências dos
dania e compreender que as di- participantes. Nestes sete anos
ferenças devem ser respeitadas acumulados de experiências com
e promovidas e não utilizadas as crianças, adolescentes, jovens,
como critérios de exclusão social. professores e gestores das esco-
As oficinas realizadas pela las, muitas histórias foram escu-
equipe da Coordenadoria de Pro- tadas por nossas equipes e enca-
moção à Cidadania LGBT e Igual- minhadas para a rede de cuidado.
dade Racial utilizou as seguintes Dentre elas, muitos relatos do
metodologias: nas Oficinas de quanto a violência relacionada ao
Gênero e Sexualidade foi realiza- gênero, sexualidade, etnia/raça e
da a dinâmica de tarjetas, slides religião está presente no cotidia-
e roda de diálogo, com a partici- no escolar. Essas temáticas estão
pação dos estudantes e profes- por toda parte, nos corredores,
sores. As tarjetas relacionadas ao nos banheiros, nos intervalos, nas
gênero, relação sexual, identida- vivências e comportamentos dos
de de gênero, sexo, sexualidade estudantes e de toda comunida-
e sexo eram distribuídas, depois de escolar. Alguns relatos, falas e
era realizada uma apresentação posicionamentos de estudantes
dos slides e explicação sobre es- nas oficinas:
ses termos, os participantes vol-

94
Quando disse a meus pais religião e discriminava os cultos
que estava namorando outra me- que ele participava.
nina levei uma surra, pois bem,
sai de casa e fui morar na casa
Os professores e equi-
dela, perdi amizades de algumas pe técnica das escolas, em sua
colegas na escola (estudante 1) maioria, foram receptivos às ati-
vidades, que consideraram im-
Eu me casei ou fui morar portantes e positivas para o espa-
com 16 anos, hoje tenho 17 e já fui ço escolar, e revelaram que não
agredida por meu marido, minha possuíam conhecimento ou ti-
mãe me disse que casamento é nham dificuldade de trabalhar
assim. (estudante 2)
com essas temáticas. Algumas
escolas, a partir das oficinas, re-
Eu já senti o preconceito alizaram atividades relacionadas
por ser gay e negro, fiquei mal, ao tema, tais como a “semana da
mas não baixei a cabeça. (estu-
dante 3) diversidade”, com oficinas e pa-
lestras sobre diversidade sexual,
Relatamos, a seguir, alguns violência de gênero, racismo e in-
acontecimentos que ocorreram tolerância religiosa, culminando
em nossas atividades nas escolas. com uma parada da diversidade
Em uma certa escola, após uma na escola. No dia da Consciência
oficina, uma pré-adolescente nos Negra, no ano de 2014, tivemos
procurou no corredor para per- um momento de culminância,
guntar se seria “normal” os adul- envolvendo todas as escolas que
tos tocarem nas crianças, orien- participaram do projeto. Os vários
tamos ela explicando que não momentos de bate-papo nas es-
deixasse ninguém tocá-la, princi- colas abriram espaços também
palmente se isso lhe causasse al- para a nossa participação em vá-
gum incômodo. E imediatamen- rias atividades culturais nas mes-
te fomos à direção e dialogamos mas, a exemplo dos dias alusivos
com a equipe pedagógica e com à Consciência Negra, Dia da Mu-
a própria direção sobre o acon- lher Negra, Americana, Latina e
tecido. Eles disseram que nunca Caribenha, Dia Internacional ela
tinham notado nada estranho Eliminação da Discriminação Ra-
com a estudante, mas que iriam cial, dentre outras datas.
investigar. Nós ficamos acompa- Em 2018 com o tema do se-
nhando e após algumas semanas minário Dialogando sobre a rede
recebemos a devolutiva que a es- de cuidados e diversidade na
tudante estava sofrendo abuso escola, as atividades se estende-
sexual em casa e que o caso tinha ram para além da escola e reali-
sido encaminhado para o conse- zamos Oficinas nos CRAS (Centro
lho tutelar. Em outro momento, de Referência da Assistência So-
em outra escola, um jovem após cial) e CRC (Centro de Referência
a oficina veio nos contar que era da Cidadania), do município de
de religião de matriz africana e João Pessoa, com os grupos de
que se sentia constrangido na convivência e fortalecimento de
escola por usar os símbolos de vínculo de crianças, adolescen-
sua religião, tendo em vista que tes e idosos. Nessa experiência
a maioria da escola era de outra também ouvimos muitos relatos,

95
um dos que mais nos chamou em que as escolas necessitavam
a atenção foi de um jovem, ho- debater e aprofundar determina-
mem trans, que estava voltando dos temas trabalhados.
para o grupo depois de um perí- Consideramos assim, que
odo afastado. E ele disse: as oficinas nas escolas são rele-
vantes para a valorização das di-
Minha família nunca me
aceitou quando eu me reconhe-
ferenças, respeito à diversidade e
cia como lésbica, quando eu falei combate às violências, possibili-
que era homem trans nem mi- tando um espaço para a escuta,
nha família nem minha namo- acolhimento e encaminhamento
rada me aceitaram e por isso eu das demandas, bem como para
tentei mais uma vez suicídio e
acabei interno no hospital psiqui-
suscitar o debate que muitas ve-
átrico pela minha família. zes a escola não dá conta.
Acreditamos em uma edu-
É importante ressaltar que cação libertadora, que coloca o/a
as diversas atividades realizadas estudante como protagonista no
nas escolas serviram de estímu- processo de aprendizagem, incenti-
lo para despertar sobretudo nos/ vando a construção do pensamen-
as alunos/as a vontade de parti- to crítico através de problematiza-
cipar de iniciativas de grupos e ções e diálogos que fomentam a
projetos que visam lutar contra autonomia do sujeito. Entendemos
a discriminação racial, religiosa, também que o papel da escola pú-
sexual e outras. Exemplo disso é blica brasileira é ser agente poten-
que em uma das escolas em que cializador da formação de indivídu-
passamos, uma adolescente ne- os críticos e reflexivos, e espaço de
gra pediu a informação de onde encontro e valorização das diferen-
encontrar pessoas que faziam ças como multiplicidade referencial.
parte de algum movimento ne- Assim, as oficinas foram utilizadas
gro, pois tinha interesse de parti- como recursos-meios para gênero,
cipar, no intuito de contribuir na sexualidade, raça/etnia e religião e
luta contra o racismo. como estas questões impactam
Outra questão interessan- em seus cotidianos e no acesso aos
te é que a partir das oficinas nas direitos, buscando contribuir com
escolas, nos tornamos referên- o combate às violências, na escola
cia, ao ponto das diversas esco- e fora dela, construindo uma rela-
las, através dos/as diretores/as e ção que coloca o jovem aluno como
equipes pedagógicas, nos con- protagonista do processo.
vidarem para outros momentos

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98
A psicologia
como lugar de
escuta: uma
retrospectiva

Roberto Cezar
Maia de Souza
Foto: Psicólogos e psicólogas do
Centro de Cidadania LGBT
Fonte: Arquivo pessoal

Dedicamos este capítulo à memória de Iva Izabel Cavalcanti da Silva


Barros Conselheira do CRP/13 - Conselho Regional de Psicologia do estado da
Paraíba, que tanto contribuiu na organização dos primeiros atendimentos no
Centro de Cidadania LGBT (CCLGBT).

O CCLGBT foi inaugurado em 17 de maio de 2016. Escolhemos esse


dia por se tratar de uma data simbólica alusiva ao Dia Internacional de
Luta contra a LGBTfobia, na qual a homossexualidade deixa de ser con-
siderada doença pela Organização Mundial de Saúde no ano de 1990.
Nesse início tínhamos muitas ideias em relação ao atendimento psico-
terapêutico. Como nos primeiros meses o espaço físico era pequeno,
pois ainda não tínhamos o segundo andar do prédio à disposição, ha-
vendo só uma sala para escuta e outra para receber as pessoas LGBT+1,
resolvemos então fazer uma parceria com os distritos sanitários para
que pudéssemos ter profissionais de psicologia para atendermos as de-
mandas e assim foi realizado. Tínhamos cinco distritos sanitários que
compunham a rede municipal de saúde; conseguimos, de início, a co-
laboração de três profissionais de psicologia cedidas por esses distritos,
uma profissional cedida pelo Centro de Referência da Mulher e uma
cedida pelo CRP-PB. Nesse momento ainda não havíamos realizado as
1. Sigla utilizada para representar lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transsexuais, Transgêner-
os, Intersex, assexual, pansexual, queer.

100
pactuações com as universida- a receptividade foi muito boa, o
des para que os estagiários pu- que oportunizou, aguçando meu
dessem atender no CCLGBT. processo de escuta, perceber o
Dessa forma, realizamos as pri- que de fato elas estavam preci-
meiras escutas e demos início ao sando de mais urgente. À priori,
trabalho psicoterápico com os algumas relataram necessidades
usuários do Centro. como alimentação em suas ca-
Percebemos, nesse ínterim, sas, outras que idealizavam ter
que as pessoas chegavam mais uma casa própria, um emprego
tímidas para as consultas com os fixo. Essas falas me trouxeram a
profissionais de psicologia, vis- questão dos direitos básicos, os
to que ainda não tinham conhe- quais, em sua maioria, foram ne-
cimento sobre o significado do gados desde sempre.
processo terapêutico. Algumas Expuseram ainda o medo
pessoas, como as travestis e tran- de permanecer na rua, constan-
sexuais, precisavam dos serviços temente falavam sobre as amigas
do psicólogo para ter acesso à re- que foram assassinadas naquele
tificação do prenome e do sexo ju- mês como se dissessem para si
ridicamente, em que, como parte mesmas “a próxima pode ser eu”.
do processo, era exigido pelo juiz Desta maneira, fomos nos
um parecer psicológico para efe- aproximando dessa população,
tuar as retificações. Vale lembrar que para nós era uma prioridade,
que nesse ano, a transexualidade e a partir das escutas nos pon-
ainda constava como uma doen- tos de prostituição conseguimos
ça, disforia de gênero, no CID 10 perceber o real sentido do nosso
(Classificação Estatística Interna- trabalho, realizando assim o en-
cional de Doenças e Problemas contro entre o CCLGBT e o lugar
Relacionados com a Saúde). onde elas estavam trabalhando.
Como chegaram muitas Segundo Lancetti (2008)
pessoas trans e travestis para es- para criarmos uma clínica de vín-
ses primeiros atendimentos e já culos é necessário pensar numa
tínhamos o Programa Transci- clínica territorial e pautada na pro-
dadania sendo efetuado com as dução das subjetividades desses
contratações das empresas, re- usuários, pois é nesse momento
solvemos fazer uma escuta em de verdade, no lugar onde esse su-
seus territórios. Assim, eu e Josy jeito está, que podemos criar um
Silva, mulher trans que me asses- setting2 terapêutico na produção
sorava à época, fomos ao encon- do cuidado, onde essas pessoas
tro dessa população. Com o intui- irão trazer elementos do seu coti-
to de que a notícia chegasse até diano para que a escuta ocorra e
elas antes da nossa ida, antecipa- ganhe sentido, fortalecendo assim
damente informamos às traves- o vínculo entre as pessoas tran-
tis e pessoas trans que estavam sexuais, travestis e a instituição.
nos pontos de prostituição, da Assim, a partir dessa escuta nas
nossa intenção de promovermos ruas, as pessoas travestis e transe-
um diálogo. Para minha surpresa 2. Espaço no qual a relação entre paciente e
terapeuta acontece.

101
xuais foram chegando até o servi- sonhos, aflições e tristezas. Esse
ço, confiando em nosso trabalho era um momento em que os pro-
e acreditando que ali se firmava o fissionais de psicologia acolhiam
início de uma política pública vol- essas demandas subjetivas, além
tada para as suas necessidades. de terem autonomia para reali-
Na medida em que esse trabalho zar os encaminhamentos con-
passou a ser divulgado nas redes forme a demanda dos usuários
sociais, nas entrevistas veiculadas exigisse naquele momento, fosse
pela televisão, pelo rádio, entre a questão de empregabilidade,
outros canais de comunicação, encaminhamento para o Centro
percebemos a chegada da popu- de Apoio Psicossocial - CAPS, in-
lação de mulheres lésbicas, pesso- serção nos programas habitacio-
as bissexuais, homem gays, como nais, dentre outras.
também outras identidades de Percebemos que no diálogo
gênero, a exemplo da não binária. com os usuários em processo te-
A maioria dessas pessoas que pro- rapêutico havia a necessidade de
curavam o CCLGBT traziam muito realizar os atendimentos com os
sofrimento, de toda ordem: psíqui- familiares da população LGBT+,
co, estavam passando por violên- assim aos poucos conseguimos
cia física, violência psicológica, e trazer esses familiares para o pro-
algumas precisando também de cesso terapêutico e foi importan-
uma casa de acolhida por estarem te ouvir alguns relatos exitosos de
vivendo em situação de rua. pessoas LGBT+ após seus familia-
As pessoas que estavam em res iniciarem seus processos.
situação de maior vulnerabili- Recordo-me, em uma roda
dade recebiam um atendimen- de conversa que realizamos no
to com a psicóloga de plantão e CCLGBT, a fala de um casal de
com a assistente social e depois mulheres lésbicas agradecendo
eram encaminhadas ao Centro quando uma das mães conse-
de Acolhimento a População em guiu aceitar, pela primeira vez, o
Situação de Rua - Centro POP fato de elas serem um casal. Nes-
para serem acolhidas em uma se momento, a fala de uma delas
das duas casas disponibilizadas me chamou a atenção: “Foi a pri-
no município de João Pessoa meira vez que a minha mãe con-
para este fim. Vale ressaltar que vidou a minha companheira e eu
foi nesse momento que pactu- para irmos à sua casa tomar um
amos quartos específicos para café em sua companhia”. Esse
essa população, com o objetivo relato pode parecer simples, po-
de resguardá-la de sofrer pre- rém tem um significado muito
conceito por outros usuários da importante em relação à aceita-
casa. Dentro desses encaminha- ção da sexualidade da filha e da
mentos, procurávamos combinar sua companheira.
com os usuários a frequência ao Uma outra questão que per-
CCLGBT, uma vez por semana, cebemos nos atendimentos no
para participarem do processo CCLGBT, é que grande parte des-
psicoterápico individual, no qual sas pessoas tinha ideação suici-
poderiam falar de seus desejos, da e muitas foram para o ato em

102
si (cerca de 35% das pessoas em pelos participantes, fazendo com
processo terapêutico). Essas pes- que cada um elabore sua dor e
soas relatam que já passaram por perceba que não está sozinho
muito sofrimento psíquico, desta- naquele momento. Assim, aos
cando como principal causa a rejei- poucos, conseguimos construir
ção da própria família. Isso me faz redes de solidariedade e de afeto.
refletir sobre a grande dificuldade O CCLGBT atualmente é for-
do vínculo em relação aos laços fa- mado por três psicólogos perma-
miliares que acabam sendo rompi- nentes. Duas psicólogas que fazem
dos, uma vez que fica insuportável os atendimentos clínicos (Josenilda
a relação dessas pessoas em casa. da Silva Oliveira e Symone Alves da
Um dos casos nos chamou Silva) e um psicólogo ( Roberto Ce-
a atenção. Um rapaz de 18 anos zar Maia de Souza) que faz a pre-
chegou ao CCLGBT com muitas ceptoria de estágio. Realizamos
dores e com dificuldade de subir parceria de campo de estágio ini-
as escadas da instituição, pois ha- cialmente com a Faculdade Maurí-
via acabado de deixar o hospital cio de Nassau, depois com a Univer-
por ingerir uma grande quantida- sidade Federal da Paraíba - UFPB
de de veneno para dar cabo à sua e recentemente com a Faculda-
vida, o que, segundo ele, se refe- de Internacional da Paraíba - FPB.
ria ao fato de o irmão e o pai não Atualmente temos, em média, 20
aceitarem sua orientação sexual, o estudantes de psicologia por se-
que fazia com que ele se sentisse mestre, estagiando no CCLGBT.
constantemente ameaçado pelos Por se tratar de um campo
dois. Neste caso, a única pessoa relativamente novo no que diz
que foi visitá-lo no hospital foi um respeito à diversidade, vimos a
tio que soube da situação delica- necessidade dos estagiários, ao
da que estava e o trouxe para o ingressarem, conhecerem no-
CCLGBT. Após a acolhida, o jovem ções básicas sobre sexualidade,
iniciou os processos terapêutico e identidade de gênero e diver-
psiquiátrico e conseguiu continu- sidade sexual. Nesse sentido,
ar sua vida, superando a violência sempre abrimos os primeiros
familiar. Saiu de casa e deu anda- encontros com um momento
mento à vida profissional, indo formativo sobre os temas, assim
trabalhar por conta própria. como informações sobre o pre-
Uma questão que tem aju- enchimento de formulários para
dado muitas pessoas a supera- que possam se instrumentalizar
rem seus traumas e violências durante o processo terapêutico.
são as rodas de diálogos que re- Outro evento que se tornou uma
alizamos constantemente sobre prática foi termos um dia mensal
diversos temas: ideação suicida, para realizarmos estudo de
transexualidade, violência institi- caso em grupo. Nesse momento
tucional e familiar, bissexualida- usamos a técnica de role-play3
de, machismo e masculinidades, 3. Encenação de uma situação na área das
dentre outros. Esses espaços são relações humanas, onde duas ou mais pes-
importantes, pois geram iden- soas simulam uma circunstância de forma
mais real possível. Tem por objetivo, a síntese
tificação nas histórias contadas que se faz do desempenho desses papéis.

103
dos casos atendidos, com a fina- ção é informado sobre a impor-
lidade de refletirmos sobre o ma- tância da ficha de cadastro pois
nejo clínico, bem como fomen- ali ficam os dados do seu perfil
tarmos discussões sobre os casos social e econômico que repassa-
complexos da clínica. mos para a equipe de psicologia,
Importante destacar que há caso o usuário resolva realizar o
sempre um psicólogo de plantão atendimento psicoterapêutico.
nos dois turnos para darem supor- As marcações das consultas são
te aos estagiários quando tiverem previamente agendadas de ma-
dúvidas sobre os atendimentos neira presencial ou por telefone.
cotidianos, para que os questio- Há uma ressalva no caso de escu-
namentos sejam sanados de ime- tas emergenciais que são feitas
diato, pois sabemos que nesse pelos psicólogos de plantão.
momento, além de serem acolhi-
dos por todos os profissionais, eles
precisam se sentir seguros para O MODUS OPERANDI DO
exercerem sua função de forma CUIDADO NA CLÍNICA PSI-
efetiva. No primeiro contato com COTERÁPICA: PERCEPÇÃO
as turmas avisamos sobre a im-
portância de cada estagiário estar DO ATENDIMENTO CLÍNICO
em processo terapêutico para que NO CAMPO DE ESTÁGIO
eles possam trabalhar suas ques-
tões de contratransferência no seu Kátia Cristina Silva da Costa
processo psicoterapêutico.
Muitas pessoas que procu- Ao ser convidada para
ram o CCLGBT o buscam tam- cooperar com a escrita deste livro,
bém para usufruir do espaço de meus pensamentos foram per-
convivência. Assim considera- meados por cenas que exibiam
mos que esse espaço de bate-pa- minha trajetória acadêmica. E
po com a recepcionista, quando enquanto o rolo do filme girava
do preenchimento da ficha e o me dei conta de que sempre es-
diálogo acolhedor nesse primei- tive ocupada em cuidar. O desejo
ro contato com o Centro fazem de ser uma profissional da saúde
toda a diferença para que possam me seguiu desde que comecei
se expressar e refletir sobre a ne- a conhecer as primeiras letras.
cessidade ou não do processo te- Mais adiante entendi que o meu
rapêutico. O setting terapêutico cuidado, o meu desejo, estava, de
acontece muito antes do contato fato, voltado para a saúde men-
com o psicólogo e, sempre que tal, o emaranhado da psique me
podemos, dialogamos para per- era um atrativo à parte. E assim,
ceber as impressões dos usuários fui cursar psicologia.
no tocante ao cuidado. Afinal, Ao aproximar-se o período
nós existimos para acolher todas do estágio e tendo conhecimento
as pessoas que por ali passam. dos campos parceiros da Faculda-
No primeiro contato dos usuá- de, me pus a pensar não só na ba-
rios com as pessoas da recep- gagem experiencial que o campo

104
me daria, mas, principalmente, a estamos diante de uma popu-
qual população queria prestar os lação que tem espaço na mídia
meus serviços, tendo como fator como estatística de estudo sobre
primordial a clínica do cuidado. a violência, porém, tem sido emu-
No percurso acadêmico, via decida no tocante às suas dores e
a necessidade de mudança, ainda fragilidades mais íntimas.
mais expressiva, na expansão do Ter um campo de acolhi-
atendimento clínico psicoterápi- mento que proporcione uma
co às populações que tinham di- saúde mental possível, que auxi-
fícil acessibilidade, seja por condi- lie na concretização da existên-
ções econômico-financeiras, seja cia, dar a oportunidade de escuta
pela ausência da oferta do serviço. do seu padecimento e contribuir
No entanto, a possibilidade com a compreensão psicopato-
de trabalhar com uma população lógica relativa aos laços sociais e
estigmatizada pela sociedade, familiares, implicam, sim, na sua
me oportunizando o exercício do inserção na sociedade.
cuidar, agora profissionalmente, O CCLGBT do município de
preencheu os requisitos do meu João Pessoa/PB, na minha ótica,
fazer clínico. Dessa forma, não ocupa esse lugar de relevância
havia dúvida quanto ao campo na vida dessas pessoas, por ser
que queria atuar, o Centro de Ci- uma referência de serviços pres-
dadania LGBT - CCLGBT. tados, mas, também, um marco
O campo de estágio não foi de identificação. Segundo Freud
para mim apenas um cumprimen- (2011), o processo identificatório é
to de uma disciplina na grade cur- adquirido pelo comportamento
ricular. Predominava a responsabi- e pelas representações do outro,
lidade de ter sob meus cuidados a que forma uma rede de signifi-
angústia, a dor, as descobertas da cantes e passa a desenvolver no
vida do outro, o manejo clínico que indivíduo características de per-
pudesse trazer alento e elaboração tença ao seu lugar, à sua história.
dos traumas que, de certa forma, O Eu surge de uma nova identi-
regiam os comportamentos e as ficação, se amarra à função sim-
emoções do indivíduo, provocan- bólica para formar laços afetivos
do sofrimento psíquico. com o outro e isso ocorre basea-
Há de se esperar que em do em uma corporação.
meio a uma avalanche de bandei- Ao se deparar com um ser-
ras alçadas em prol da destitui- viço de escuta ativa e a possibi-
ção da desigualdade, ao menos lidade de um acompanhamen-
na área da saúde, se reconheça to psicoterápico oferecido pelo
o lugar de respeito que é direito Centro LGBT, essa população vis-
de todo cidadão, no entanto, é lumbra uma porta aberta que dá
sabido que mesmo desse lugar, vez à sua voz, ajudando-a a sair
a população LGBT+4 sofre com do anonimato. Um lugar que se
a invisibilidade. Paradoxalmente, apoia na desconstrução da clíni-
4. Sigla utilizada para representar lésbicas, ca tradicional, onde o processo
gays, bissexuais, travestis, transsexuais, trans- identificatório é a premissa para
gêneros, intersex, assexual, pansexual, queer. a certificação do bem-estar do
sujeito. O indivíduo passa a ver-se

105
num novo contexto de esperança. de modus operandi é a maneira
Esperança como expressa Zeferi- ou o rito peculiar do criminoso
no Rocha (2007), não de esperar, agir, o que encaminha ao modo
mas de caminhar. Uma esperan- distorcido, de marginalização,
ça que impulsiona a ir sempre com que essa população é vis-
adiante, a buscar o lugar antes ta. Marginalizada simplesmente
perdido pela descrença no devir. pela ocupação de um espaço na
É importante destacar que, atmosfera. Nesse sentido, a pro-
apesar de ser um espaço voltado posta de acolhimento do CCL-
exclusivamente para determinada GBT, dá perceptibilidade a uma
população, o intuito não é de des- população que por vezes prefere
membrar o sujeito da sociedade se esconder, tamanha a segrega-
ou de engendrar uma nova pátria ção imposta não somente pela
de seres com idealismos mesmís- sociedade, como também e prin-
simos. Pelo contrário, o caráter do cipalmente pela sua entidade fa-
atendimento se deve à necessida- miliar. Às vezes por si mesmo, por
de de fortalecimento e inclusão do não acreditar ser capaz de se re-
ser humano em uma sociedade fazer a cada embate.
que assim se denomina – humana. Uso perceptibilidade, por
Compartilho da importân- se tratar não apenas do olhar
cia dessa população ser atendi- externo, mas, no sentido de ser
da por uma clínica especificada. perceptível a si mesmo. Daí a
Voltada para uma linha de cuida- importância de um lugar para o
do onde lhes seja oferecida uma acompanhamento psicoterápico,
escuta dedicada e sensível, sem ofertado por um serviço público.
deixar, portanto, que isso seja to- Partindo do princípio de que
mado como um espaço de pri- a escuta constitui um espaço de
vilégio, uma vez que esses estão aproximação de si mesmo e do
usufruindo de um atendimento outro, vejo o ambiente terapêu-
distinto dos demais cidadãos, o tico como um lugar de cuidado,
que, para mim, seria separá-los da que se alterna em um trabalho
sociedade da mesma forma que entre pares, não se ocupando so-
os atos discriminatórios o fazem. mente de propiciar a percepção
O atendimento psicoterapêutico do ser, como também, em ajudar
nesses moldes implica no auxílio na busca daquilo que denomino
ao permanente trabalho de auto- de AA da psicologia – Autenticida-
afirmação desse indivíduo, diante de e Autonomia. Conforme afirma
de uma sociedade tipicamente Figueiredo (2012), não existimos
heterossexual. Tipicamente por- se não nos sentimos existir.
que, apesar da legitimidade da O ser humano precisa an-
união estável entre pessoas do corar-se em algo que respalde
mesmo sexo, e da liberdade de o processo de continuidade que
expressão sexual no nosso país, a foi uma vez instituído ou mesmo
sociedade, em sua maioria, é regi- que valide a intencionalidade
da por uma cultura heterossexual. desse existir. O encontro com a
Diante dessas colocações autenticidade somente aconte-
remeto-me ao título deste arti- ce quando se consegue percor-
go. A tradução mais conhecida rer um caminho para dentro de

106
si mesmo, na busca da liga per- estilhaço que o dilacerou.
dida entre o que somos, o que Estar nesse lugar de cuida-
desejamos ser e o que a socieda- do é emprestar-se ao outro, como
de e a cultura exigem que seja- cordas vocais para que ele possa
mos. Interessante notar que em- verbalizar o sofrimento causado
bora tenha um resultado para o por suas angústias e ao mesmo
mundo externo, a autenticidade tempo se pôr como um ambiente
é indissociável dos conteúdos in- acústico que reverbere a própria
ternos do indivíduo. voz para dentro de si mesmo.
Dessa forma, a legitimida- Implicada como agente cui-
de do ser o leva diretamente à dador, prazerosamente, alcei da
autonomia, visto que, uma vez psicologia e da psicanálise como
apropriado de si mesmo, ele re- parceiras e me envolvi na tessi-
conhece o seu lugar. O apoio tura de notas tão delicadas, para
psicológico, portanto, se mos- ajudar a compor a sinfonia da-
tra essencial para o amadureci- quelas vidas que ali se apresen-
mento emocional e para o for- tavam. Por vezes ou, por que não
talecimento e a consolidação da dizer, na maioria das vezes, notas
autenticidade e da autonomia. em sucessivas desarmonias, em
Clarividente, esse processo deve instrumentos desafinados que
ser um contínuo, obedecendo ao não tinham mais esperança de
movimento de mutação inerente encontrar o tom. Concerto difícil
ao ser humano. de orquestrar.
O cuidado no setting5 te- Porém, na pauta estava a psi-
rapêutico diz da liberdade que cologia como um lugar de escuta,
o profissional dá ao paciente de regida pelo cuidado, que no mo-
estar consigo mesmo, de ser ele dus operandi terapêutico cumpre
mesmo, de deixá-lo trilhar o ca- a função de evocar o sujeito para
minho de volta entre seus trau- fora de si mesmo e se ver como
mas e prazeres e ampará-lo para um ser possível de existir.
que consiga constituir um novo Registro aqui, minha gratidão
caminho de significados e signifi- à Coordenadoria do Centro LGBT
cantes quando desse retorno. Ora na pessoa de Roberto Maia e à sua
passando uma resina para colar equipe, por propiciar essa passa-
as fissuras, as cisões, ora pondo a gem que resultou em conheci-
mão no ferimento para extrair o mento e crescimento profissional.
5. Espaço criado para a relação terapêutica,
em que os procedimentos possibilitam o
processo psicanalítico.

REFERÊNCIAS

FIGUEIREDO, L. C. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psica-


nálise contemporânea. São Paulo: Escuta, 2012.

FREUD, S. Psicologia das Massas e análise do Eu e outros textos. Tradução de


Paulo César de Souza. Obras completas, v. 15. São Paulo: companhia das Letras, 2011.

107
LANCETTI, Antonio. Clinica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2008

ROCHA, Z. Esperança não é esperar, é caminhar. Reflexões filosóficas


sobre a esperança e suas ressonâncias na teoria e clínica psicanalíti-
cas. Rev. latinoam. psicopatol. Fundam., São Paulo , v. 10, n. 2, p. 255-
273, Junho 2007 . Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S1415-47142007000200255&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 09 maio 2020.

108
Projeto
Riso Trans:
promovendo
a inclusão
e o acesso
aos serviços
odontológicos

Marcos Aurélio Vasconcelos Lima Júnior


Fábio Gomes dos Santos
Equipes Riso Trans e Centro de
Cidadania LGBT durante a Feira da
Empregabilidade (Janeiro de 2020)
Fonte: Arquivo pessoal

APRESENTAÇÃO

O projeto Riso Trans surgiu a partir da iniciativa de um grupo de es-


tudantes e professores de Odontologia do Centro Universitário de João
Pessoa (UNIPÊ), que fazem parte de uma Fraternidade LGBT (Lésbi-
cas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) denominada
Triângulo Rosa. Após se depararem com as dificuldades que permeiam a
vida das pessoas trans, sobretudo no tocante à inclu-
são, o grupo decidiu fazer algo para colaborar com
o empoderamento dessas pessoas.
A Fraternidade é um espaço de apoio e
estudo para as questões de gênero e diversi-
dade sexual. Tem como objetivo empoderar
os jovens LGBTQIA+, minimizando o risco
de depressão, suicídio e evasão escolar, en-
tre os estudantes do Curso de Odontologia.
É um apoio para quem enfrenta a dificul-
dade da inclusão e respeito social. O grupo
reúne-se quizenalmente para discutir temas
de interesse e, em meio a esses encontros, sur-
giu a ideia de engajar-se com a população trans.
Logotipo do Triângulo Rosa -
Fraternidade Universitária LGBT
Fonte: acervo pessoal.
110
A população trans já vem FUNDAMENTOS DO PROJE-
sendo assistida na Clínica Escola
TO RISO TRANS
de Odontologia do UNIPÊ, atra-
vés de uma parceria estabelecida
Considerando que o sorriso
com o Centro de Cidadania LGBT,
e uma boa qualidade de saúde
que encaminha seus usuários
bucal são condições importantes
para realização de tratamento
para conseguir e permanecer em
odontológico desde 2018, através
um bom emprego, pois favore-
de cooperação institucional.
cem uma melhor produtividade,
O Projeto de Extensão Apo-
o Projeto Riso Trans busca con-
lônias da Paraíba, que trata mu-
tribuir com esta inclusão, promo-
lheres vítimas de violência, foi a
vendo assistência odontológica
primeira iniciativa a abrir as por-
aos candidatos a oportunidades
tas para o público trans, através
de emprego, como preparatório
do encaminhamento do Cen-
para o processo de seleção às va-
tro de Cidadania LGTB, em João
gas ofertadas.
Pessoa. Com o tempo, o serviço
Um estudo realizado em
da clínica escola começou a ser
2018, denominado “Percepções
procurado para outras deman-
latino-americanas sobre perda de
das, dentre as quais, a necessida-
dentes e autoconfiança”, entre-
de do tratamento odontológico
vistou 600 pessoas entre 45 e 70
em preparação às entrevistas de
anos, em quatro países da Améri-
emprego viabilizadas pelo pro-
ca Latina, incluindo o Brasil, cons-
grama Transcidadania.
tatando que as relações sociais, a
Com o aumento da procura
autopercepção, a autoestima e a
e relato de dificuldades encon-
qualidade de vida são muito im-
tradas no acesso à rede de saúde,
pactadas pela perda de dentes.
tanto pela alta demanda das uni-
52% afirmaram que a perda de
dades, como pela possibilidade de
dentes compromete a sua apa-
discriminação por parte de profis-
rência e 37% relataram ter menos
sionais e até mesmo de usuários
confiança em sua aparência para
destes serviços, ficou evidente a
ir a uma entrevista de emprego.
necessidade da criação de um
Entre os brasileiros, os resultados
canal de direcionamento e viabi-
mostram que 42% dos entrevista-
lização de uma assistência mais
dos não vivem a vida ao máximo
especializada e humanizada.
após a perda de dentes e 66% con-
Sendo assim, os integran-
sideram que seu sorriso ficou pior,
tes da Fraternidade acadêmica
enquanto 54% se sentem menos
decidiram criar o projeto com o
confiantes para sorrir e gargalhar
objetivo de reabilitar o sorriso de
em público (GSK, 2018).
pessoas trans, favorecendo a sua
A American Academy of
inserção no mercado de trabalho,
Cosmetic Dentistry (AACD), em
como ferramenta de suporte ao
2016, verificou que pessoas que
programa municipal Transcidada-
sorriem mais têm mais chances de
nia, que tem inserido essas pesso-
alcançar realizações em todos os
as no mercado de trabalho formal.
âmbitos, inclusive no profissional.

111
200 pessoas entrevistadas admiti- um motivo de ansiedade.  Como
ram que dão mais valor a pessoas componente essencial da ima-
com um sorriso mais bonito, com gem corpórea, os dentes podem
dentes bem cuidados e brancos, originar sentimentos que variam
reafirmando a importância dos desde constrangimentos até pro-
cuidados com a higiene oral. funda ansiedade  (GOLDSTEIN,
Um outro estudo publicado 1980, p.7 in ELIAS et al., 2001).
na revista especializada American A saúde bucal, entretanto,
Journal of Orthodontics and Den- extrapola o conceito de manter
tofacial Orthopedics  apresentou os dentes saudáveis, sendo um
a profissionais de Recursos Hu- ponto essencial para garantir o
manos fotos de candidatos com bem-estar do indivíduo, pois está
sorrisos desarmonizados e, poste- inserida no contexto de saúde
riormente, fotografias com o sor- geral interferindo na qualidade
riso dessas mesmas pessoas cor- de vida. Para a manutenção de
rigido e harmônico. Em todos os uma saúde bucal equilibrada,
casos, os recrutadores avaliaram é extremamente importante o
melhor as imagens que passaram acesso regular aos serviços odon-
por alterações, ou seja, candidatos tológicos. A literatura comprova
com um sorriso bonito, sugerindo que, quanto maior o acesso, me-
que apresentar dentes bem cui- lhor é a qualidade de saúde oral
dados facilita a aceitação social e das pessoas. Entretanto, o uso de
abre portas para o sucesso profis- serviços odontológicos está rela-
sional (GLOBAL, S/A). cionado a fatores socioeconômi-
cos, individuais, disponibilidade,
O desejo de possuir uma
boa aparência não é mais encara-
cobertura assistencial, autoper-
do como sinal de vaidade, sendo cepção de saúde bucal, questões
necessário no mundo do traba- culturais, características dos sis-
lho, que é bastante competitivo. temas de saúde e pelas políticas
As evidências de que um sorriso de saúde vigentes (RODRIGUES
harmônico é importante para
ocupar vagas de trabalho consi-
et al., 2014).
deradas de prestígio são datadas Um dos princípios funda-
dos anos de 1980, e continuam a mentais do Sistema Único de
ser corroboradas pelos estudos Saúde (SUS) é a Universalidade,
de mercado, onde a “boa aparên- que garante acesso ao sistema a
cia física” figura como um impor-
tante requisito nas entrevistas de
todos os cidadãos brasileiros, in-
emprego (JENNY & PROSHEK, dependentemente de raça, reli-
1986 apud ELIAS et al., 2001). gião, condição social, orientação
sexual e identidade de gênero.
Acontece que, na prática, o que
Os dentes muitas vezes se se percebe é que algumas popu-
tornam a característica mais de- lações em processo de vulnerabi-
cisiva na formulação de nossos lidade ainda enfrentam barreiras
julgamentos.  Através da face, para acessar o sistema público
uma região sempre exposta do de saúde, em virtude do precon-
corpo humano, a estética bucal ceito diante do seu estereótipo.
comprometida pode se tornar Dentre o público com maior difi-

112
culdade de acesso, estão as pes- O medo e as experiências de dis-
soas transexuais. criminação ou maus-tratos são,
Estudos apontam inúmeras significativamente, associados ao
dificuldades no acesso e perma- nível de medo dentário (HEIMA et
nência das pessoas trans nos ser- al., 2017).
viços oferecidos no Sistema Único Apesar de não existir evi-
de Saúde, evidenciando o desres- dências de que os agravos odon-
peito ao nome social, a trans/tra- tológicos se comportem de for-
vestifobia como obstáculo à busca ma diferente na população trans,
de serviços de saúde e causas dos a equipe odontológica precisa
abandonos de tratamentos em an- estar devidamente capacitada,
damento (ROCON, 2016). em função de algumas especi-
Dentre a população LGBT, ficidades que podem impactar
as pessoas travestis e transexu- na saúde oral destas pessoas. As
ais são as que mais enfrentam jovens transexuais, por exemplo,
dificuldades ao buscarem aten- podem apresentar maior com-
dimentos nos serviços públicos prometimento da saúde mental
de saúde – não só quando rei- e física em função de uma maior
vindicam serviços especializa- exposição a diferentes tipos de
dos, como o processo transexu- violência, com menores taxas de
alizador, mas em diversas outras cuidados preventivos, quando
ocasiões nas quais buscam aten- comparados aos pares cisgêne-
dimento – pela enérgica trans/ ros. Estes, enfrentam ainda, um
travestifobia que sofrem atrelada maior risco de sofrer abuso físico
à discriminação por outros mar- e emocional em casa, na esco-
cadores sociais – como pobreza, la e na comunidade (CONARD;
raça/cor, aparência física – e pela SCHWARTZ, 2019).
escassez de serviços de saúde es- Os transtornos alimenta-
pecíficos (MELLO et al., 2011). res também são relatados entre
Além das dificuldades de jovens transexuais, em função da
acesso, o medo da assistência busca pela adequação corporal,
odontológica pode ser mais uma devendo a equipe odontológica
barreira a ser vencida. Estudos já estar atenta à possibilidade de
comprovaram que pessoas que erosão ácida nos dentes, como
sofreram maus-tratos ou trauma indicativo de vômito recorrente,
psicológico apresentam maior ligado ao distúrbio alimentar. O
nível de medo dentário e dificul- abuso de álcool, tabaco e drogas
dade de receber atendimento ilícitas são preocupações para
odontológico. O medo dentário todos os públicos, inclusive para
também se relaciona com outros a população trans, o que pode
problemas psicológicos e psiqui- favorecer a ocorrência de lesões
átricos, como depressão e trans- orais. O uso de analgésicos e
torno de estresse pós-traumáti- opioides, sem prescrição médi-
co, os quais são frequentemente ca, também é descrito como um
relatados entre indivíduos que se comportamento de risco. Dentre
identificam como  transgêneros. as ISTs, existe uma prevalência

113
significativa de lesões por HPV contribuir com ações de melho-
em boca, o papiloma. ria das condições de saúde bucal,
Sendo assim, considerando que através de atividades educativas
a universidade é o ambiente pro- que estimulem o autocuidado, e
pício para o estudo e desenvolvi- curativas, que tratem as patolo-
mento de técnicas e métodos de gias bucais, favorecem a estética
tratamentos mais específicos, e e reabilitem a função, com uso de
que é centro formador de profis- próteses dentárias, por exemplo.
sionais que irão ocupar as vagas As necessidades de atendimen-
da assistência em saúde no mun- to odontológico são demandadas
do trabalho, precisa incorporar pelo Centro de Cidadania LGBT,
a atenção especializada a este diante da identificação dos agra-
público, realizar as pesquisas ne- vos observados. Para tanto, é pro-
cessárias para conhecer o com- posta do Projeto realizar um le-
portamento dos agravos odon- vantamento inicial das condições
tológicos e criar estratégias para de saúde bucal dos usuários do
combater o medo odontológico, Programa Transcidadania, públi-
desencadeado tanto por uma ex- co estimado em 310 pessoas.
periência negativa quanto pela Este levantamento é reali-
possibilidade se sofrer discrimi- zado na sede do centro, através
nação. de exames simples, com o obje-
tivo de registrar a prevalência de
FUNCIONAMENTO DO PRO- cárie dentária, doença periodon-
JETO DE EXTENSÃO tal, perda dental e necessidade
de próteses e lesões dos tecidos
orais. Com estas informações, é
possível traçar um perfil de saú-
de bucal desta população para
planejar ações mais assertivas e
com priorização.
A abordagem é feita através
dos eventos realizados pela en-
tidade, sobretudo nas feiras de
empregabilidade, onde há uma
demanda de usuários em busca
de oportunidades de trabalho.
Além da assistência odonto-
lógica especializada, constituem
ações a serem desenvolvidas pe-
Logotipo do Projeto Riso Trans los integrantes do projeto:
Fonte: acervo pessoal.
a) levantamento das condições de
O projeto Riso Trans quer fa- saúde bucal da população trans
vorecer a empregabilidade, que (indicador epidemiológico);
é a capacidade da pessoa ocu- b) busca ativa de lesões pré-can-
par uma vaga no mercado de cerígenas e aconselhamento;
trabalho. Para tanto, pretende

114
c) atividades educativas de pro- autoexame da boca, e trabalha-
moção para o autocuidado; das as questões relacionadas aos
d) treinamento e sensibilização riscos das doenças periodontais.
de equipes de saúde bucal Exames clínicos foram re-
para abordagem da popula- alizados para identificação de
ção trans; lesões dentárias em tecidos
moles, tendo os usuários sido
e) realização de pesquisas para o agendados para atendimen-
desenvolvimento de novas for- to na Clínica Escola do UNIPÊ,
mas de tratar e diagnosticar onde são realizados procedi-
os agravos no público trans; mentos restauradores e cirúr-
f) acompanhamento dos im- gicos, de forma gratuita e vo-
pactos da hormonioterapia luntariosa. Dos 32 examinados,
nas questões orais; e 23 foram direcionados para o
atendimento na instituição.
g) elaboração e atualização de Os atendimentos clínicos e cirúr-
um manual de boas práticas gicos vêm sendo realizados pelos
odontológicas com pessoas alunos extensionistas, nas clíni-
transexuais. cas integradas, sob a supervisão
dos professores, como parte de
As atividades do Projeto ini- suas atividades acadêmicas.
ciaram em janeiro de 2020, com Novas admissões ao pro-
a participação da equipe na Feira grama de assistência deverão ser
da Empregabilidade, promovida feitas por ocasião das novas ações
pelo Centro de Cidadania LGBT. de triagem, promovidas durante
Na ocasião, foram realizadas ati- as atividades coletivas realizadas
vidades educativas de promoção pelo Centro, onde os usuários que
ao autocuidado com a saúde bu- desejarem poderão participar dos
cal, como técnicas de escovação, exames clínicos e, em caso de ne-
cessidades de tratamento obser-
vadas, serem agendados para os
tratamentos no UNIPÊ.
Paralelamente às ações
que envolvem, diretamente, as
usuárias trans, atividades de ca-
pacitação foram iniciadas, com
apoio da equipe do Centro. O ob-
jetivo é empoderar os extension-
istas e professores envolvidos no
projeto acerca da temática da
transexualidade, para que estes
possam replicar os conhecimen-
tos através de ações junto a toda
a comunidade de Odontologia
do UNIPÊ. Dessa forma, pre-
tende-se transformar a Clínica
Exames de diagnóstico situacional,
realizados durante a Feira da de Odontologia em uma uni-
Empregabilidade (Janeiro de 2020) dade preparada para atender à
Fonte: acervo pessoal.

115
população LGBT, sobretudo as Bacharelado em Odontologia, onde
pessoas transexuais, para que pesquisas clínicas deverão estudar
essas possam ter seu acesso e a saúde oral desta população, so-
direitos garantidos. bretudo no tocante ao impacto da
A cartilha “Convivendo com hormonioterapia no agravamento
pessoas transexuais nos ambien- ou predisposição às patologias de
tes odontológicos” está sendo interesse odontológico.
elaborada, com o apoio do Nú- O Riso Trans é um Projeto de
cleo de Publicações Institucio- Extensão inovador, que permite
nais do UNIPÊ, e será utilizada a inclusão e o empoderamento
como instrumento sensibilizador tanto das usuárias trans benefi-
na unidade de aprendizagem. ciadas, como dos próprios alunos
O inquérito que revelará as extensionista, que são gays e que
condições de saúde bucal da po- têm histórias de vida marcadas
pulação trans assistida pelo Cen- pelo preconceito e pela dificul-
tro de Cidadania LGBT de João dade de acesso às oportunidades.
Pessoa, examinará 180 pessoas Permite que esses estudantes se
trans, e poderá nortear as políti- fortaleçam e auxiliem no esclare-
cas de assistência à saúde bucal. cimento da realidade trans, mini-
Por fim, fora instituída uma mizando o preconceito e abrindo
linha de pesquisa voltada à saúde oportunidades para uma assistên-
bucal e qualidade de vida de pes- cia odontológica universal.
soas transexuais no Curso de

REFERÊNCIAS

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and Gender-Expansive Individuals in the Dental Practice. Journal of
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MELLO, L.; PERILO, M.; BRAZ, C.A.; PEDROSA, C. Políticas de saúde para
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v.19, n.10, p.4247-56, Oct, 2014.

117
Unidade amiga
LGBT+:
Avanços e
desafios no
acesso à saúde

Anderson Klisnmann C. Dantas


Julia Daltin Regginato
Lívia Karolina Moraes da Silva
Entrega do Selo da Unidade Amiga
LGBT+ na USF Vila Saúde
Fonte: Arquivo pessoal

INTRODUÇÃO

Trazemos neste capítulo um relato sobre o Projeto Unidade Amiga da


população LBGT+, idealizado e realizado no ano de 2019 no município de
João Pessoa, a partir da parceria do Centro de Cidadania LGBT da Prefeitura
Municipal de João Pessoa com a Residência Multiprofissional em Saúde da
Família e Comunidade da Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba.
Considerando a constante violação de direitos do segmento LGBT+ 1
por apresentarem orientação sexual e identidades de gênero tidas como
desviantes da normalização da orientação heterossexual (heteronormativi-
dade) hegemônica na sociedade, faz-se necessário debate sobre gênero e
saúde ampliado, no sentido de destacar a multiplicidade de construções de
identidades de gênero e orientações sexuais que constituem a diversidade
humana, para além da classificação dos sujeitos em homens e mulheres
unicamente a partir de seu sexo biológico (FERRAZ; KRAICZYK, 2010).

1. De acordo com Bortoletto (2019), a partir das constantes mudanças e evoluções da sociedade de modo
geral, novas pautas são sempre adicionadas a questões relativas que envolvam as homoafetividades no âm-
bito político ou social. Em 2015 na I Conferência Nacional GLBT (Gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transex-
uais e transgêneros), a sigla LGBT se tornaria a denominação oficial aprovada pela comissão desse evento.
Apesar de uma decisão “recente”, a sigla segue em constante mudança a medida em que surgem novas
letras para representar novas identidades, atualmente a sigla preferencialmente utilizada é a LGBTQIA+,
que inclui outras categorias identitárias. Aguiar (2016), afirma que a sigla é produto das relações sociais que
perpassam políticas de governo, movimentos sociais, a produção acadêmica científica sobre o tema e os
seus idiomas específicos como o dos direitos humanos.

119
A partir dos movimentos sociais produzem qualidade de vida,
LGBT+e a luta para o reconheci- como educação, emprego, saú-
mento da necessidades de saúde de, alimentação digna, moradia,
dessa população, que ganharam cultura e lazer. Para travestis e
visibilidade e respostas gover- transexuais, principalmente pe-
namentais, surgiram no âmbito riféricas, a prostituição surge
do setor saúde respostas ao en- como meio de trabalho e sobre-
frentamento das discriminações, vivência, prática que as expôs e
como as Conferências Nacionais ainda expõe às doenças sexual-
de Saúde (CNS), que a partir da mente transmissíveis e às violên-
sua 12ª edição (BRASIL, 2004) in- cias, acarretando um problema
seriu os direitos LGBT em sua de saúde pública (BRASIL, 2013).
pauta; e a 13ª CNS incluiu a orien- Dentre as medidas trans-
tação sexual e a identidade de gê- versais apontadas para a pro-
nero como determinantes sociais moção da saúde integral da
de saúde (DSS)2 (BRASIL, 2008). população LGBT destacam-se
Inserida no contexto da vi- aquelas relativas à eliminação
gência do Programa Brasil sem da discriminação e preconceito,
Homofobia (BRASIL, 2004), lan- tais como a inclusão da temática
çado em 2004 pela Secretaria da atenção integral à população
Especial de Direitos Humanos LGBT nos processos de Educação
da Presidência da República, a Permanente dos trabalhadores
Política Nacional de Saúde Inte- do SUS, a inclusão de quesitos
gral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, orientação sexual, identidade de
Travestis e Transexuais foi lança- gênero e étnico-racial nos docu-
da pelo Ministério da Saúde em mentos de notificação de violên-
2008, passando a ser mais uma cia da Secretaria de Vigilância em
abertura para promover o en- Saúde (SVS), inclusão e uso oral
frentamento a iniquidades e dis- do nome social de pessoas tra-
criminações, ampliando o acesso vestis e transsexuais nos serviços
a ações e serviços de qualidade. de saúde em consonância com
Esta política busca reconhecer os o terceiro princípio da Carta dos
efeitos da discriminação e de ex- Direitos dos Usuários da Saúde:
clusão como geradores de sofri- “Todo cidadão tem direito ao aten-
mento e limitantes do acesso aos dimento humanizado, acolhedor
cuidados à saúde, visando a sua e livre de qualquer discriminação”
superação para, assim, promover (BRASIL, 2007), e a sensibilização
a equidade. Ela, ainda, traz à luz a dos profissionais de saúde acerca
exclusão da população LGBT que das especificidades de saúde da
historicamente ficou à margem, população LGBT, visando o aco-
excluída e dificultada do aces- lhimento e atendimento equita-
so de bens sociais comuns que tivo (FERRAZ; KRAICZYK, 2010).
As ações previstas nessa
2. Os Determinantes Sociais de Saúde (DSS) são os
política objetivam eliminar a dis-
fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, criminação e o preconceito insti-
psicológicos e comportamentais que influenciam a
ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de
tucional, contribuindo para a re-
risco na população (BUSS; FILHO, 2007). dução das desigualdades e para

120
consolidação do SUS como siste- Transcidadania, que visa inserir
ma universal, integral e equitati- pessoas transgêneros no mercado
vo, sendo que ainda temos uma formal de trabalho, entre outros
caminhada repleta de desafios no serviços que promovem a dimi-
combate à discriminação e pre- nuição da LGBTfobia e a garantia
conceitos no SUS em todo territó- dos direitos dessa população.
rio brasileiro (SÃO PAULO, 2014). O Centro de Cidadania LGBT
O caminho da construção possui parceria com o Programa
da cidadania LGBT é longo e apre- de Pós-graduação em Residência
senta diversos desafios. O primei- Multiprofissional em Saúde da Fa-
ro passo é garantir que lésbicas, mília e Comunidade da Prefeitura
gays, bissexuais, travestis e transe- de João Pessoa por meio da Facul-
xuais tenham acesso a seus direi- dade de Ciências Médicas da Pa-
tos básicos e sejam respeitados/ raíba, e a partir de 2019 tornou-se
as, independentemente de sua um cenário de atuação prática dos
orientação sexual e identidade de profissionais que atuam no pro-
gênero (SÃO PAULO, 2014, p.6). grama (Enfermagem, Fisioterapia,
Nutrição, Farmácia e Psicologia).
O SURGIMENTO DO PROJETO A aproximação desses pro-
fissionais da residência no cená-
Em busca da diminuição da rio do Centro de Cidadania LGBT,
discriminação contra a popula- junto aos trabalhadores do cen-
ção LGBT no Estado da Paraíba, o tro e à população que procura
Governo Estadual sanciona a Lei os serviços oferecidos, facilitou
Estadual N° 10.909/2017 e Decreto discussões pertinentes sobre o
Estadual n° 27.604/2006, que coí- acesso da população LGBT+ aos
bem toda forma de discriminação serviços da Atenção Primária à
por orientação sexual e identidade Saúde (APS), como por exemplo,
de gênero em estabelecimentos o fato de afastamento dessa po-
públicos e privados, e a Lei Esta- pulação a serviços básicos das
dual nº 10.908/2017 que trata sobre USFs gerar sofrimento e agrava-
a obrigatoriedade do tratamen- mento de doenças, bem como o
to nominal e o uso e inclusão do aumento da exclusão e alto nível
nome social de travestis e transe- de mortalidade dessa população.
xuais no âmbito da Administração Diante disso, e baseando-
Pública. E conta, ainda, com dois -se na experiência de Unidades
Centros Estaduais de Referência Básica Amigas da Saúde LGBT
dos Direitos de LGBT e Enfren- (BRASIL, 2018) no município de
tamento à Homofobia da Paraí- Salvador-Bahia, surge o Projeto
ba (Espaço LGBT), localizados em Piloto para implantação do Selo
João Pessoa e Campina Grande. Unidade Amiga LGBT+ no muni-
A prefeitura de João Pes- cípio de João Pessoa.
soa também conta com o Centro Algumas justificativas para
de Cidadania LGBT, que dispõe a realização do projeto foram
de serviços de assessoria jurídica, observadas pelos residentes nas
apoio psicológico, feiras de em- unidades de Saúde da Família
pregabilidade e saúde, Programa que atuam no município, junto

121
aos profissionais do Centro de Ci- novembro azul, outubro rosa,
dadania LGBT, embasado nos de- novembro negro etc.; identida-
poimentos e relatos dos seus usu- de visual da unidade de saúde
ários: preenchimento incorreto não contemplando a população
dos campos de orientação sexual LGBT; atenção secundária e/ou
e identidade de gênero nas fi- terciária como principal porta de
chas do E-SUS por parte dos ACS entrada da população LGBT no
e demais profissionais de saúde; sistema de saúde; serviços para
subnotificação nas fichas de No- a população LGBT isolados da
tificação Compulsória por preen- Rede de Atenção à Saúde; aten-
chimento incorreto ou ausente ção não integral, restrita a HIV/
dos campos de identidade de gê- AIDS e violências; dificuldades de
nero e orientação sexual (quando acompanhamento de hormoni-
existentes na ficha); atenção não zação/hormonioterapia de pes-
qualificada às vulnerabilidades soas transgênero; patologização
da população LGBT; invisibilida- das identidades gêneros trans e
de das questões relacionadas à orientações não heterossexuais.
saúde LGBT nas campanhas do

Justificativa
Fonte: Os autores, 2019

Como foi citado acima, este com o Campo Temático- Saúde da


projeto baseou-se na exitosa expe- População LGBT da Secretaria Mu-
riência do Projeto “Unidade Básica nicipal de Saúde do município de
Amiga da Saúde LGBT” (BRASIL, Salvador-Bahia. O projeto envol-
2018) desenvolvida pela Atenção veu 15 Unidades Básicas de Saú-
Primária à Saúde em conjunto de (UBS), de 12 Distritos Sanitários

122
(DS), com a participação de todos da Família na fase inicial. As UBS
os trabalhadores, desde o portei- (Unidades Básicas de Saúde) esco-
ro ao médico, e visa garantir um lhidas para a fase Piloto foram: DSI
atendimento qualificado e sem – Saúde Para Todos; DSII – Vila Saú-
discriminação na Atenção Primá- de; DSIII – Nova Esperança; DSIV –
ria à Saúde, utilizando a Educação Viver Bem; DSV – Torre Integrada.
Permanente como estratégia. O projeto visa, inicialmente,
Para a realização do proje- matriciar uma Unidade de Saú-
to foi proposto que fossem feitas de da Família por distrito, tor-
oficinas em formato de rodas de nando esta unidade referência
conversa horizontais a partir de para atendimento da população
metodologias ativas, utilizando LGBT+ para o território ao que Dis-
do turno semanal reservado para trito pertence, fazendo assim um
Educação Permanente na Aten- polo de referência para usuárias e
ção Básica no município de João usuários do território em questão,
Pessoa, a partir de disparadores que não estejam sendo acolhidos
para pensar e criar estratégias, em suas unidades de referência.
baseado na efetivação da Políti- Após a fase inicial, há pretensão
ca Nacional de Atenção Integral de cobertura do projeto para to-
à população LGBT+ e no funcio- das as Unidades Básicas de Saú-
namento do trabalho das USFs de do município de João Pessoa,
(Unidades de Saúde da Família). matriciando todas as equipes de
No município de João Pessoa saúde da Atenção Básica.
existem cinco Distritos Sanitários
(DS), divididos a partir da divisão PLANEJAMENTO DAS OFI-
territorial do município, contando CINAS: DISCUSSÕES E PRE-
com 200 equipes de Saúde da Fa- PARAÇÃO
mília, que atuam em Unidades de
Saúde da Família isoladas e uni-
dades integradas (2, 3 ou 4 equi- Após esse momento com
pes por unidades). A escolha de os Distritos Sanitários e a viabi-
Unidades Pilotos, ou seja, as uni- lização prática da execução das
dades pioneiras para cada um dos oficinas, houve um segundo
cinco Distritos, para a realização momento de planejamento das
do projeto foi realizada por parte oficinas, com os profissionais da
dos representantes de cada Distri- Residência Multiprofissional em
to Sanitário, após uma Oficina de Saúde da Família e Comunidade
Sensibilização sobre o projeto. A es- e os trabalhadores do Centro de
colha foi feita considerando as USFs cidadania LGBT+.
reconhecidas como Unidades Es- O planejamento das oficinas
cola, que contam com a presença foi pensado a partir dos objetivos
de residentes em Saúde da Famí- do projeto, considerando a realida-
lia e estagiários das universidades, de local das Unidades Básicas de
e ainda, sendo estas Unidades In- Saúde, partindo a todo momento
tegradas com quatro equipes de da necessidade da afirmação e
saúde, viabilizando assim o matri- garantia do cumprimento da Po-
ciamento de 20 equipes de Saúde lítica Nacional de Saúde Integral

123
LGBT+ para a capacitação adequa- sentes todos os profissionais de
da dos profissionais de saúde atu- saúde da unidade - Enfermagem,
antes na Atenção Básica. Técnica de Enfermagem, Medicina,
Para isso, foram considera- Auxiliar de limpeza, Administrati-
dos entraves ligados a fatores de vos da recepção, Dentistas, Técni-
crenças e estigmatizações pre- cos de Saúde Bucal, ACS (Agente
conceituosas reforçadas pelo Comunitário de Saúde), Gerência e
imaginário social, e assim, as dis- Equipe NASF de referência da USF,
cussões foram organizadas acer- e vale ressaltar a obrigatoriedade
ca dos conceitos de identidade de da presença reforçada pela coor-
gênero e orientação sexual com denação dos Distritos Sanitários.
as equipes, identificações de po- Foram consideradas as pe-
tencialidades e fragilidades apre- culiaridades e singularidades de
sentadas pelos profissionais no cada Unidade de Saúde para o
atendimento à população LGBT+ planejamento e operacionaliza-
do território em que estão inseri- ção das oficinas, sendo facilita-
dos, e a proposição para reflexão das essas considerações a par-
e rearranjo da postura de atendi- tir da atuação dos residentes na
mento diante do público LGBT+. unidade escolhida.
E ainda, possibilidades es-
tratégicas para a ampliação da A REALIZAÇÃO DAS OFICI-
participação da população LGBT+ NAS: UNIDADE I
na unidade de saúde, a garantia
do direito ao uso do nome social A primeira unidade a ser
de pessoas travestis e transexuais matriciada foi a USF- Vila Saúde,
nos serviços de saúde e viabiliza-
localizada no bairro Cristo Reden-
ção de estratégias para qualificar
tor, João Pessoa/Paraíba, unida-
o atendimento para as especifici-
de integrada com quatro equipes
dades dessa população. Fazendo
de saúde (Jardim Itabaiana I e II,
assim com que essas mudança
Pedra Branca I e II), pertencente
sejam inseridas de forma trans-
versal no processo de trabalho ao Distrito Sanitário II. Esta uni-
das equipes, como o acolhimen- dade conta com Residentes de
to, programas e políticas no coti- Medicina com ênfase em Família
diano do funcionamento da saú- e Comunidade da UFPB, Internos
de da família, Programa Saúde do curso de Medicina da UFPB,
na Escola (PSE), preenchimento além de estagiários do curso de
adequado das ficas E-SUS e Vi- nutrição da UFPB e Residentes
gilância em Saúde, promovendo Multiprofissionais de Saúde da
ações de promoção e prevenção Família e Comunidade, o que a
de saúde da população. define como Unidade Escola.
As oficinas foram divididas Contamos com o suporte
inicialmente em três encontros técnico, como caixa de som, pro-
semanais na unidade piloto sele- jetor e microfone, pertencentes
cionada, passando posteriormente à unidade de saúde, sendo ne-
para quatro encontros. No espaço cessário utilizar o computador de
das oficinas, solicitamos estar pre- uma das residentes participantes.

124
Oficina 1 de de separação entre crenças
A primeira oficina foi realiza- pessoais e a atuação profissional
da no dia 22 de novembro de 2019. dentro do serviço de saúde. Cada
Foi feita uma apresentação do questão foi aprofundada a par-
projeto aos profissionais de saú- tir de tarjetas, trabalhando cada
de da unidade, através de uma tema em particular.
dinâmica grupal onde os mes- Ainda nesse encontro, foi
mos foram separados por equi- apresentado um instrumento
pe, para uma discussão coletiva de mapeamento (figura abaixo)
sobre os temas identidade de gê- desenvolvido durante o plane-
nero, orientação sexual e sexo, re- jamento das oficinas, para que
lação sexual e sexualidades. Logo fosse possível cada equipe ma-
após foi feita uma apresentação pear, ou seja, localizar os usuários
sobre o que foi discutido. As refle- pertencentes à população LGBT+
xões surgiram a partir das dúvi- no território. Sendo fundamental,
das trazidas pelos trabalhadores, neste primeiro momento o traba-
como por exemplo: o que seria lho do ACS (Agente Comunitário
uma pessoa transsexual? Qual a de Saúde), ao realizar uma busca
diferença de sexualidade e iden- ativa no território e passar para a
tidade de gênero? Como eu devo equipe posteriormente. Foi pac-
me referir a uma travesti? Traves- tuado que esses dados fossem
ti é mulher? Questões que tocam trazidos durante as oficinas para
diretamente no imaginário social que pudéssemos partir das infor-
e nas dificuldades de superação mações do território para discutir
de preconceitos enraizados. Foi o planejamento do fluxo de traba-
colocado com vigor a necessida- lho específico daquela unidade.

125
Oficina 2 usuária, em voz alta, se o núme-
A segunda oficina foi realiza- ro do prontuário está correto, a
da no dia 26 de novembro de 2019. mulher trans afirma e questio-
Nesse encontro, foi apresentada a na por que seu nome social não
Política Nacional de Atenção Inte- foi inserido no prontuário pelo
gral à população LGBT+, os marcos ACS. A recepção estava lotada e
legais e históricos da luta LGBT+, as pessoas que estavam ali pa-
a partir de vídeos e apresentação ram para observar a cena, cons-
em Power Point. Sendo assim, trangendo assim a usuária.
houve uma divisão por equipes e 2) Discussão dos tipos de família,
por meio de uma dramatização preenchimento correto das fi-
foram discutidas diversas situa- chas de notificação e cadastro:
ções vivenciadas pela população Em uma manhã de quarta-fei-
LGBT+ no tocante ao acesso à saú- ra a ACS Carla sai para realizar
de. As temáticas discutidas estão o cadastro de novas famílias de
descritas abaixo, as tramas foram sua microárea. Ao chegar na
montadas a partir de situações rua onde constava novo ende-
corriqueiras de preconceito en- reço, após remapeamento do
frentadas pela população LGBT+ distrito, Carla chamou no por-
nos serviços de saúde, em particu- tão e uma criança a atendeu.
lar, na Atenção Básica. A ACS se identifica e solicita
Diante do exposto, as equi- que a criança chame os pais. A
pes puderam perceber e viven- criança retorna para dentro da
ciar os preconceitos existentes casa e logo após aparecem dois
com essa população, entendendo homens junto à criança. A ACS
que apesar de existirem políticas por sua vez, pergunta quem é
públicas municipais, estaduais e o responsável da casa, eles se
até federais, a forma pejorativa e apresentam e convidam-na
excludente ainda é evidente den- para entrar. Durante o preen-
tro do próprio serviço de saúde. chimento da ficha E-SUS a ACS
Os enredos das dramatiza- sentiu dificuldade em preen-
ções seguem abaixo: cher as fichas de cadastro, omi-
1) Discussão sobre acolhimento, tindo algumas perguntas por
acesso e uso do nome social: se sentir constrangida, uma de-
Mulher transexual chega à re- las foi a da criança, no campo
cepção da Unidade Básica de de identificação da mãe e pai,
Saúde numa segunda-feira às bem como o campo de orien-
7:10 para retirada do seu prontu- tação sexual do casal.
ário para uma consulta previa- 3) Discussão sobre oferta do ser-
mente agendada com o médi- viço e violência da realização
co. Na recepção, a recepcionista dos procedimentos: Quinta-
solicita a ficha de agendamen- -feira pela manhã a usuária
to, cujo nome da usuária consta Marcela chega ao serviço para
Anne Raquel e ao buscar o pron- realizar o exame citológico. Na
tuário encontra apenas o nome sala de citológico a enfermeira
Fernando Araújo e questiona a preenche as fichas de rotina e

126
esquece de perguntar à usu- integral à saúde: Travesti, Suza-
ária sobre sua vida sexual. A na Rafaela chega ao consultório
enfermeira encaminha a usu- médico queixando-se de perda
ária para maca onde será rea- de peso, falta de apetite e dor
lizado o exame e no momento abdominal. O médico questio-
da coleta a profissional perce- na de imediato sobre sua vida
be a presença do hímen e, só sexual e pergunta a usuária se
assim, pergunta se a usuária realizou os testes rápidos recen-
tem relações sexuais. A mes- temente. Suzana relata não ter
ma relata que só tem relação realizado os testes recentemen-
sexual com mulheres e sem te e o médico a encaminha para
penetração. A enfermeira ex- o serviço Clementino Fraga,
plica à mulher que não terá sem questionar e avaliar outros
como realizar a coleta. sinais e sintomas. Ela tenta falar,
4) Discussão acerca da restrição mas o médico é bastante enfáti-
do adoecimento da população co na necessidade de ela realizar
LBGT+ ligado apenas a questões os testes rápidos antes de deci-
de sexualidade e IST – cuidado dir qual será sua conduta.

Oficina 2 na USF Vila Saúde.


Fonte: Os autores, 2019

Oficina 3 demandaram ser remanejadas.


A terceira oficina foi reali- Nesse encontro foi realizada a di-
zada no dia 06 de dezembro de nâmica da caminhada dos privi-
2019. Foi um momento desa- légios, nela os participantes são
fiador, no qual algumas ações posicionados lado a lado e cada

127
um deve dar um passo a frente formação, sendo que nessa ter-
ou para trás, de acordo com as ceira oficina foi apresentada uma
afirmações referentes a vanta- preocupação sobre uma possível
gens ou desvantagens sociais. sobrecarga da demanda sobre
Ao término, ficou evidente que os profissionais, o que foi ampla-
no percurso da vida as linhas de mente discutido, e após a reapre-
largada são bem diferentes umas sentação do funcionamento do
das outras, isso fez com que os projeto, essa preocupação foi re-
profissionais percebessem a for- solvida. Foi ressaltado pela equi-
ma como muitas das vezes a po- pe médica e de enfermagem do
pulação LGBT+ é invisibilizada. serviço de saúde a necessidade
Nesse mesmo momento, de se realizar um matriciamento
foi elaborado o fluxo de atendi- técnico, voltado a assuntos rela-
mento, conforme pretendido, cionados a exames citológicos,
junto aos profissionais. Dúvidas e aplicação de hormônios e outras
questionamentos foram levanta- situações específicas que tan-
das sobre o projeto e as temáti- gem ao atendimento do usuário
cas que já haviam sido discutidas LGBT+ na UBS, acordando-se as-
anteriormente. Foi apresentada sim a quarta oficina estritamente
uma discussão sobre configura- para o matriciamento técnico.
ções familiares, determinantes Por fim, ficou acertado a fi-
sociais de saúde e preconceitos nalização com entrega do Selo
dos usuários, a partir da realidade Unidade Amiga LGBT+, a ser ex-
de cada categoria profissional. posto na unidade em local visível,
Notamos durante o decorrer trazendo esse dia como um mar-
das oficinas, uma dificuldade de co comemorativo e festivo para
os médicos residentes estarem toda a equipe e comunidade.
presentes durante o processo de

Oficina 3 na USF Vila Saúde.


Fonte: Os autores, 2019

128
Oficina 4 citológico para mulheres lésbi-
A quarta oficina foi reali- cas e homens trans. Nesse mes-
zada no dia 28 de fevereiro de mo encontro, torna-se relevante
2020, contando com a presença mencionarmos a importância
do enfermeiro Rogério Wagner, das falas proferidas por Diego e
do Ambulatório LGBT+ do hospi- Louise, um homem trans e uma
tal Clementino Fraga, do Estado mulher trans, que relataram aos
da Paraíba. Percebeu-se que tal profissionais os seus desafios no
encontro foi relevante no tocan- tocante a questões referentes
te às questões discutidas até o as suas transições hormonais e
presente momento e que mais o processo de transgenerização.
uma vez os profissionais pude- Foi um momento ímpar, a partir
ram tirar suas dúvidas. A partir desses relatos como disparado-
do relato de Rogério no ambula- res, foi discutido sobre estigmas
tório do hospital, os profissionais e preconceitos de uma socieda-
trocaram experiência sobre os de com valores heteronormati-
procedimentos técnicos, como vos profundamente enraizados.
o processo de hormonoterapia,

Oficina 4 na USF Vila Saúde.


Fonte: Os autores, 2020

ENTREGA DO SELO NA USF Unidade Amiga LGBT+, encontro


onde estiveram presentes a Co-
VILA SAÚDE ordenação do Distrito Sanitário
II, a Coordenação do Centro de
A culminância do projeto Cidadania LGBT+, Clarice Pires de
se deu após todas as oficinas re- Sá coordenadora de IST/Aids do
alizadas, com a entrega do Selo município de João Pessoa, repre-

129
sentando a figura do Secretário Foi um momento bem singular
Municipal de Saúde, Residentes e bastante relevante a todos os
de Saúde da Família e Comuni- presentes.
dade (RMSFC), alguns usuários De acordo com a enfermeira
do serviço, e uma emissora de te- Jamayana, da equipe de saúde Jar-
levisão (Cabo Branco), realizando dim Itabaiana II, da USF Vila Saúde:
algumas entrevistas pertinentes
Para mim como enfermei-
com colaboradores do projeto, ra, profissional de saúde, produto-
como forma de divulgar para a ra do cuidado, foi uma satisfação
população a dimensão do pro- grande receber a qualificação
jeto, como foi executado e quais técnica para o atendimento hu-
pretensões de resultados tería- manizado, livre de preconceitos a
população LGBT+, já fazíamos na
mos com o mesmo. unidade os atendimentos, porém
No momento da entrega, re- após a qualificação enxergamos
alizaram-se algumas falas perti- como podemos melhorar nos-
nentes, como Adriano Rodrigues so cuidado, nosso olhar, nosso
representante do Movbi- Movi- acolhimento, nossa escuta. No
dia que recebemos o selo de uni-
mento de Bissexuais, morador dade amiga da população LGBT+
do território do Cristo Redentor, foi uma explosão de alegria em
que fez questão de frisar a im- saber que estava fazendo par-
portância do projeto para a ga- te dessa equipe que iria mudar
rantia e acesso mais qualificado o cuidado dessa população que
ainda é discriminada.
à saúde para a população LGBT+.

Entrega do Selo da Unidade Amiga LGBT+ na USF Vila Saúde .


Fonte: Os autores, 2020

130
A REALIZAÇÃO DAS OFICI- No entanto, as oficinas fo-
ram interrompidas nessa unida-
NAS: UNIDADE II
de por conta da pandemia cau-
sada pela covid-19, até o atual
A segunda unidade a ser ma-
momento desta publicação.
triciada foi a USF Nova Esperança,
localizada no bairro Mangabeira IV,
João Pessoa/PB, pertencente ao O QUE SE ESPERA DESSE
DS III. Esta unidade também con- PROJETO?
tava com a presença de Residen-
tes Multiprofissional em Saúde Ao finalizarmos os encon-
da Família e Comunidade, o que tros, esperamos que possa ser
facilitou dialogar sobre o projeto garantido o atendimento huma-
anteriormente com as equipes. E nizado e de qualidade ao público
também conta com Residentes LGBT+, exercendo os princípios
de Medicina com ênfase em Saú- do SUS, integralidade e equidade,
de da Família e Comunidade. superando as questões de saúde
É uma unidade integrada para além das infecções sexual-
com quatro equipes, (Nova Espe- mente transmissíveis e de sua se-
rança, Ambulantes, Colégio Invadi- xualidade. Esperamos ainda que
do e Tijolão). Contamos com o su- os profissionais se sintam mais
porte técnico vindo do DS III, como preparados para entender e aten-
projetor, microfone e computador. der esse público, compreenden-
do e respeitando a singularidade
Oficina 1 na USF Nova Esperança de cada usuária e usuário do SUS.
Foi feita a apresentação A seguir, alguns resultados
da equipe e do projeto para as a serem almejados:
equipes. Como na USF Vila Saú- • Aumento do acesso da popu-
de, essa primeira oficina deu-se lação LGBT+ nos diversos ser-
a partir das discussões sobre os viços, atendimentos e grupos
temas Identidade de gênero, da UBS;
Orientação sexual e Sexo, relação
sexual e sexualidades, no formato • Aumento no preenchimen-
de roda de conversa. Os profissio- to correto do campo sobre
nais se mostraram interessados e Orientação Sexual e Identida-
receptivos com o projeto, e nota- de de Gênero na ficha E-SUS
mos que já no primeiro encon- de cadastro individual e fi-
tro surgiram dúvidas e relatos chas de notificação.
de famílias acompanhadas pelas • Acolhimento adequado, livre
equipes pertencentes à comuni- de preconceito e discrimina-
dade LGBT+ no território. ção à população LGBT+;
Foi apresentado e distri-
buído o instrumento de mape- • Respeito ao nome social e inclu-
amento dos usuários LGBT+ no são nos prontuários/formulários;
território para todas as enfermei- • Livre utilização de banheiros
ras e ACS. para travestis e pessoas trans-

131
gênero no ambiente das UBS; esse projeto.
• Inclusão dos temas diversi-
dade sexual e identidade de ÀS COLABORADORAS E CO-
gênero nas atividades do Pro-
LABORADORES:
grama Saúde na Escola – PSE
e demais atividades educati-
Rogério Wagner Borges Va-
vas realizadas pela UBS;
rela – Enfermeiro Hospital Cle-
• Atendimentos livres de dis- mentino Fraga
criminação, reconhecendo as Cândida Isabel de Figueire-
vulnerabilidades e as especifi- do- Nutricionista residente em
cidades de saúde da popula- saúde da família – RMSFC
ção LGBT+; Rosália Ribeiro Estrela Ma-
• Apresentar referências visuais da rinho - Enfermeira residente em
população LGBT+ na unidade. saúde da família – RMSFC
Nayana da Rocha Oliveira –
AGRADECIMENTOS Farmacêutica residente em saú-
de da família – RMSFC
Agradecemos ao Centro de Eric Bernard Pereira de Lima
Cidadania LGBT+ do município – Nutricionista residente em saú-
de João Pessoa, pelo trabalho va- de da família – RMSFC
lioso e fundamental que desem- Mariana Nunes Montenegro
penham com a população LGBT+ - Residente em saúde da família
em todo território de João Pes- – RMSFC
soa. Em especial agradecemos Jamayana Lima de Souza
à Louise e Diego pelo cuidado Amaral – Preceptora RMSFC/Vila
com o trabalho, no planejamento Saúde
e execução das oficinas. E a Ro- Lucineide Alves Braga – Co-
berto por dispor e acreditar no ordenadora da residência em
trabalho das (os) Residentes Mul- saúde da família – RMSFC
tiprofissionais em Saúde da Fa- Distritos Sanitários de João
mília e Comunidade para realizar Pessoa (I, II, III, IV e V).

REFERÊNCIAS

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Saúde Coletiva, p. 77-93. Rio de Janeiro , 2007.

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132
de, Organização PanAmericana da Saúde/ Organização Mundial Saú-
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rência Nacional de Saúde: conferência Sergio Arouca: relatório final.
Brasília, 2004.

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taria da Justiça e da Defesa a Cidadania, São Paulo, 2014.

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truindo respostas para o enfrentamento das desigualdades no âmbito
do SUS. Revista de Psicologia da UNESP, v. 9, n.1, p.70-82, 2010.

133
Construindo
Intersetorialidade
com a Residência
Multiprofissional
em Saúde
da Família e
Comunidade

Matheus Oliveira Lacerda


Formação dos residentes
multiprofissionais de saúde no
Centro de Cidadania LGBT
Fonte: Arquivo pessoal

POTENCIALIDADES NA APROXIMAÇÃO ENTRE UMA RE-


SIDÊNCIA EM SAÚDE E O CENTRO DE CIDADANIA LGBT

Dentre as parcerias estabelecidas pelo Centro de Cidadania LGBT


ao longo desses cinco anos, renderam bons frutos a articulação feita
com a Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comuni-
dade (RMSFC), vinculada à instituição formadora Faculdade de Ciên-
cias Médicas da Paraíba, à instituição executora Secretaria Municipal de
Saúde do Município de João Pessoa e à instituição apoiadora Universi-
dade Federal da Paraíba.

135
As Residências Multipro- contextos de produção de vida das
fissionais em Saúde definem-se pessoas. É nessa perspectiva que o
como pós-graduações na moda- Centro de Cidadania LGBT torna-
lidade lato sensu voltadas para -se um cenário tão rico para trocas
a educação em serviço, onde o com o setor saúde, especialmente
profissional de saúde residente, quando se refere a profissionais já
durante dois anos, desempenha graduados em processo de educa-
atividades práticas e teórico-prá- ção permanente.
ticas em serviços do Sistema Úni- Apesar de a Residência apre-
co de Saúde (SUS). A criação das sentar diversos cenários de atua-
Residências Multiprofissional e ção para os profissionais residen-
em Área Profissional da Saúde tes, pouco é explorada a vivência
consolidou-se com a Lei 11.129 de de setores diferentes da área da
2005, que amplia a possibilidade saúde ou sem vinculação com a
de inserção de diversas categorias estrutura da Secretaria Municipal
profissionais nos Programas de de Saúde de João Pessoa. Por isso,
Residência em Saúde e estabele- a aproximação com o Centro de
ce seu papel de cooperação inter- Cidadania LGBT ocorre no senti-
setorial e inserção qualificada de do de trazer práticas intersetoriais
profissionais de saúde em áreas na formação desses profissionais.
prioritárias do SUS (BRASIL, 2005). Essa articulação estabelece, por-
Nesse contexto, a RMSFC tanto, uma prática inovadora e es-
de João Pessoa apresenta, desde sencial para a qualificação de uma
2015, entrada anual de 25 profis- atuação na área da saúde contex-
sionais da saúde: 9 enfermeirxs, 4 tualizada com as necessidades da
fisioterapeutas, 4 farmacêuticxs, população LGBT+.
4 psicólogxs e 4 nutricionistas. Também é fundamental ob-
Devido a sua característica de Re- servar o quanto essas aproxima-
sidência em Saúde da Família e ções relacionam-se com deman-
Comunidade, tod@s esses profis- das reais no âmbito do controle
sionais exercem 75% de sua carga social do SUS. O tema dos direitos
horária nos serviços em Unidades LGBT já vinha sendo pautado no
Básicas de Saúde do município SUS desde 2003 (BRASIL, 2004). O
de João Pessoa/PB. Portanto, ela desenvolvimento de ações interse-
se apresenta como um progra- toriais de educação em direitos hu-
ma fundamental de formação de manos e a inclusão dos direitos da
profissionais para a Atenção Pri- população LGBT na política de edu-
mária em Saúde de todo o estado cação permanente do SUS para a
da Paraíba. sensibilização dos profissionais de
Nesse sentido, a articulação saúde sobre essa temática foram
com outros setores – tais como cul- algumas das ações recomendadas
tura, lazer, assistência e cidadania – no relatório final da 13ª Conferência
mostra-se fundamental para a for- Nacional de Saúde realizada em
mação de profissionais de saúde 2007 (BRASIL, 2008).
dispostos a desenvolver uma atua- Além das demandas diretas
ção voltada para um sentido amplo advindas das Conferências, o de-
de saúde, considerando os diversos senvolvimento de atividades in-

136
tersetoriais a partir da articulação Centro em trazer os profissionais
institucional entre esses diferen- de saúde como forma de poten-
tes atores contribui para a efeti- cializar tanto as atividades desse
vação de objetivos específicos da serviço de cidadania para popu-
Política Nacional de Saúde Inte- lação LGBT+ quanto a própria for-
gral de Lésbicas, Gays, Bissexu- mação daqueles profissionais. As
ais, Travestis e Transexuais (2012), principais conversas a respeito da
como a qualificação da rede de abertura desse novo campo de
serviços do SUS para a atenção e prática para os residentes ocorre-
o cuidado integral à saúde da po- ram por volta dos primeiros me-
pulação LGBT (BRASIL, 2012). ses do ano de 2019.
Os papeis de elaboração e O envolvimento por par-
articulação das políticas públicas te das Coordenações da RMSFC
são fundamentais, mas também o e do Centro de Cidadania LGBT
desenvolvimento de ações em es- promoveu uma possibilidade
paços de mediação entre a gestão de diálogo aberto sobre o papel
e os serviços são essenciais para
destes profissionais de saúde na-
a implantação efetiva de políticas
quele novo serviço desde o iní-
públicas em saúde. A potenciali-
cio. Essa conversa franca baseou
dade das construções mútuas en-
uma atuação voltada para o de-
tre o Centro de Cidadania LGBT e
uma Residência em Saúde reside, senvolvimento de oficinas, pro-
fundamentalmente, nesse lugar blematização da Política Nacio-
de intersecção que o residente nal de Atenção Integral à Saúde
ocupa entre a academia, a gestão de LGBT’s, acolhimento e escuta
e os serviços de saúde. da população LGBT+, diálogos so-
Assim, ao longo desse capítu- bre as demandas desse público
lo, será apresentado como ocorreu nos serviços da Rede de Atenção
esse processo de aproximação ins- à Saúde do município, reconhe-
titucional, serão relatadas algumas cimento da rotina e participação
experiências desenvolvidas a partir das atividades do Centro, diálo-
dessa articulação e exposto o relato go com os profissionais do servi-
de alguns residentes que passaram ço sobre suas demandas, dentre
pelo Centro de Cidadania LGBT de outras atividades que não passa-
João Pessoa e construíram ativa- vam pelo simples atendimento
mente diversas iniciativas. clínico das pessoas que frequen-
tavam o Centro.
ARTICULAÇÃO E DESENVOL- Este trabalho inicial de de-
VIMENTO DE ATIVIDADES A senvolvimento de uma proposta
de inserção foi fundamental para
PARTIR DESSA PARCERIA
vincular os residentes ao Centro
de maneira ampliada, entenden-
O início da articulação, que
do a potencialidade das trocas en-
mais tarde resultaria no Centro
tre esses atores sociais (residentes,
de Cidadania LGBT como um dos
profissionais do Centro e popula-
serviços rodiziados pelos residen-
ção atendida). Dessa forma, é ra-
tes, ocorreu a partir de um dese-
zoável especular que a ausência
jo por parte da Coordenação do
de uma elaboração inicial como

137
essa poderia ter acarretado numa semana no Centro em grupos de
inserção meramente centrada em dois ou três residentes de núcleo
procedimentos ou atendimentos profissional distinto. Quando se
clínicos multiprofissionais. verificava a necessidade de retor-
Antes do início das ativida- no daqueles residentes para efe-
des no serviço, a coordenação do tuar atividades que haviam sido
Centro de Cidadania LGBT reali- planejadas durante a sua semana
zou uma reunião para apresenta- de rodízio ou foram articuladas
ção aos residentes dessa propos- previamente entre as coorde-
ta de inserção construída com a nações, pactuava-se a participa-
coordenação da RMSFC, apre- ção daquele(s) residente(s) em
sentando o serviço e discutindo outros momentos para além da
sobre a temática das orientações sua semana de rodízio. Também
sexuais e identidades de gênero. ocorreu de alguns residentes que
Essa conversa prévia foi funda- ainda não haviam passado pelo
mental, pois permitiu que os re- Centro se interessarem por algum
sidentes refletissem criticamen- projeto ou atividade que estava
te sobre a sua atuação naquele sendo desenvolvida naquele local
campo e (re)construíssem uma e por convite de outros residentes
possibilidade de inserção que ou por interesse próprio se apro-
trouxesse sentido para sua for- ximaram mesmo antes do perío-
mação e contribuição para aque- do programado da sua passagem
le espaço. A partir disso, uma por lá. Essa metodologia resultou
série de atividades, iniciativas e em diferentes formas de atuação
produções foram realizadas. Esse e vivência no Centro a partir da
capítulo tem como objetivo apre- demanda institucional, identifi-
sentá-las, demarcando aspectos cação pessoal e proatividade de
de potencialidades, limitações e cada residente, ao mesmo tempo
inovações que essas práticas per- que impôs o mínimo de uma se-
mitiram alcançar. mana de vivência naquele espa-
Essencialmente, a atuação ço.
da Residência Multiprofissional Dentre as atividades que ga-
resultou na potencialização de ati- nharam novos contornos, desta-
vidades já realizadas, sugestões a cam-se as Feiras de Saúde LGBT.
respeito da inserção de novas prá- Junto aos residentes, foi possível
ticas ou retomada de atividades inserir a oferta de Práticas Inte-
realizadas em outros momentos grativas e Complementares em
no Centro, mas que por diferentes Saúde (PICS) – nesse caso, es-
fatores haviam sido suspensas. pecialmente a auriculoterapia
Essas atividades em parce- – além de orientações em saú-
ria ocorreram ao longo do ano de sobre o processo de hormo-
de 2019 até meados de março de nização para homens e mulhe-
2020, sendo interrompidas devido res transexuais, diálogo sobre o
o fechamento do Centro por con- uso de métodos contraceptivos,
sequência da pandemia do coro- orientações quanto à prevenção
navírus. Cada residente do segun- e o controle de doenças crônicas
do ano passava pelo menos uma (hipertensão, diabetes e outras),

138
aferição de pressão arterial, as- metodologias ativas, empoderan-
sim como outras orientações es- do os residentes para o desen-
pecíficas das áreas da Nutrição, volvimento de atividades sobre
Enfermagem, Farmácia, Fisiote- gênero e diversidade sexual no
rapia e Psicologia. contexto da educação popular
Outra PICS (Práticas Inte- em saúde.
grativas Complementares à saú- Também foram desenvol-
de) que também foi ofertada foi vidas atividades que se relacio-
o yoga. Já havia uma experiên- navam com as demandas dos
cia prévia com essa atividade no profissionais do Centro e a vincu-
Centro e, por isso, considerou-se lação dos residentes a esse ser-
importante retomá-la. Dessa for- viço. Nesse sentido, destacou-se
ma, fisioterapeutas residentes a inciativa de realização de um
ofereceram essa prática de cui- “Cuidando do Cuidador”, que
dado semanalmente entre os consistia no desenvolvimento
meses de outubro e dezembro de práticas de cuidado para os
de 2019 com a participação do técnicos e outros profissionais
público em geral e dos profissio- do Centro que atuavam na linha
nais do próprio Centro de Cida- de frente das atividades daquele
dania. Apesar do curto período, serviço. As orientações em saúde
foi uma experiência bastante in- e a auriculoterapia foram as prin-
teressante, pois contribuiu para cipais práticas ofertadas. Essa ex-
a reflexão sobre as limitações de periência permitiu uma melhora
continuidade das atividades de- relatada no bem-estar dos profis-
senvolvidas pelos residentes, ao sionais, assim como uma maior
mesmo tempo que apresentou vinculação dos residentes com
uma possibilidade de pensar de o próprio Centro, sendo um “fio
forma integral e holística a saúde condutor” importante da inser-
da população LGBT+. ção da Residência nesse espaço.
No aspecto de formação Ainda que avanços fossem
profissional dos residentes, des- apresentados às demandas re-
tacaram-se as atividades de ofi- ais que eram trazidas pelo Cen-
cina sobre gênero e diversidade tro, nos deparamos com o fato
sexual desenvolvidas em escolas, de que pouco se avançava numa
empresas e instituições públicas necessidade concreta da popu-
junto aos profissionais do Centro. lação LGBT+: o acolhimento e o
O acompanhamento dessas ofici- atendimento de suas demandas
nas foi uma experiência bastante nos serviços da Rede de Aten-
rica de aprendizagem sobre dife- ção à Saúde do município. Nesse
rentes conceitos que abrangem ponto, é importante colocar que
a pluralidade das identidades de a atuação dos residentes nesse
gênero, orientações sexuais e for- espaço nunca objetivou tornar
mas de se relacionar afetiva e se- o Centro uma espécie de “Clíni-
xualmente do ser humano. Tam- ca para LGBT’s” ou “Unidade de
bém possibilitaram a experiência Saúde para as LGBT’s”. Para que
com a construção desse tipo de o papel deste serviço enquanto
atividade por meio do uso de agente promotor de cidadania ti-

139
vesse coerência, essa aproximação não tenha havido “pernas” para
precisaria resultar numa proble- construir tudo aquilo que foi pen-
matização do acesso da popula-
ção LGBT+ a outros serviços de sado. Ainda assim, consideramos
atenção à saúde de João Pessoa. importante o relato de uma ideia
Os diálogos construídos por que surgiu a partir de conversas
essas experiências nos possibili- com mulheres transexuais e tra-
taram ousar na tentativa de levar vestis profissionais do sexo. Os re-
a discussão sobre a temática da latos de auto-medicalização, apli-
Saúde LGBT para outros espaços. cação de silicone industrial e uso
A partir dessas inquietações, foi de drogas psicoativas na situação
elaborado um projeto ambicioso de vulnerabilidade na qual se en-
para levar essas pautas à Atenção contravam, despertou a atenção
Primária em Saúde do municí- de alguns residentes acerca dos
pio. Assim, surgiu o que tem sido riscos à saúde daquelas mulheres.
talvez o projeto mais importante Dessa forma, articulou-se
dessa parceria, a Unidade de Saú- um grupo de trabalho multipro-
de Amiga da População LGBT. fissional para elaborar uma ati-
Devido à complexidade e vidade de diálogo com as mu-
centralidade que demos a esse lheres travestis e transexuais na
projeto, ele foi melhor descrito temática de redução de danos.
e problematizado no capítulo 8, Devido às diferentes atividades
mas é importante abordá-lo aqui que os residentes estavam envol-
para nortear o leitor sobre qual vidos e à dificuldade na centra-
foi o contexto que permitiu o seu lização de algumas tarefas, esse
planejamento, articulação e exe- projeto acabou não caminhan-
cução. Pois a interseccionalidade do. De qualquer forma, experiên-
do ator social residente multipro- cias como essa, ainda que ape-
fissional foi fundamental para nas de diálogo e elaboração, são
processos como a articulação fundamentais para problemati-
com a gestão, a apresentação da zar, identificar as limitações e as
proposta às gestoras dos Distri- possibilidades de novos avanços
tos Sanitários1, a identificação das em um outro momento, espe-
Unidades Básicas de Saúde com cialmente em questões tão fun-
perfil adequado para o projeto e damentais para a saúde da po-
a execução de outras diferentes pulação de pessoas travestis e
etapas desse projeto. mulheres transexuais.
Nesse processo, também Embora tenha sido muito
ocorrereu o planejamento de al- significativo os disparadores oca-
gumas atividades que não foram sionados pela aproximação entre
executadas. O cenário de contato a RMSFC e o Centro, é necessário
com a população LGBT+ foi bas- refletir sobre as limitações nesse
tante rico para o desenvolvimento modelo de inserção dos residen-
de inúmeras propostas, ainda que tes para que seja possível avançar
1. Distrito Sanitário corresponde a uma área
geográfica com características epidemiológicas
no futuro. Pensando o aspecto
e sociais específicas, formada por vários bairros, da reflexão das práticas que o re-
com uma gestão própria vinculada a estrutura
organizacional da Secretaria Municipal de Saúde.
sidente provoca, especialmente,

140
nos seus principais cenários de campo de atuação obrigatório
atuação, foi sugerido pelos resi- numa Residência Multiprofissio-
dentes que a vivência no Centro nal em Saúde. Dessa forma, es-
ocorresse logo no primeiro ano peramos que esse relato possa
da residência. Assim, tanto have- servir de estímulo para a multi-
ria mais tempo para o desenvolvi- plicação de outras empreitadas
mento de atividades com maior ambiciosas como essa.
prazo de duração, como também
seria possível levar a discussão so- RELATO DE ALGUNS RE-
bre gênero, diversidade sexual e SIDENTES SOBRE A VI-
saúde da população LGBT+ para VÊNCIA NO CENTRO DE
a Atenção Primária do município
com mais qualidade ao longo de
CIDADANIA LGBT
todo o período de atuação nas
Unidades Básicas de Saúde de Pensando nas limitações
João Pessoa, principalmente no que um relato elaborado apenas
segundo ano da residência. por um dos residentes possa apre-
Tal reivindicação foi conside- sentar, será transcrito, do decorrer
rada pela Coordenação da RMSFC das próximas páginas, o relato de
na medida em que também foi outr@s residentes que vivencia-
endossada pela Coordenação do ram o Centro de Cidadania LGBT
Centro. Essa movimentação, so- de João Pessoa e participaram
mada a uma discussão similar dos ativamente de alguns dos proces-
residentes em relação a outros sos mencionados anteriormente.
cenários de rodízio, gerou uma Assim, esperamos que o lei-
série de diálogos e reuniões para tor possa acessar, ainda que mi-
reconstrução do cronograma da nimamente, o quanto essa expe-
RMSFC, mostrando também o riência significou para aqueles e
papel desse cenário na reconfigu- aquelas que tiveram o prazer de
ração de processos de formação vivenciá-la ao longo do seu pro-
de profissionais da saúde. cesso formativo. A fim de evitar
Certamente, o cenário de di- a identificação desses profissio-
álogos, produções e vivências no nais, utilizaremos pseudônimos
Centro de Cidadania LGBT provo- para nos referir aos residentes
cou muitas reflexões, processos que compartilharam o seu relato.
de ressignificação e mudanças na O breve tempo que passei
atuação profissional dos residen- no Centro de Cidadania LGBT foi
tes. Portanto, essa inserção de- uma oportunidade de enxergar
monstrou-se tão inovadora quan- e, por em prática, outras possi-
bilidades de cuidado para além
to necessária para uma formação do serviço de saúde tradicional.
de profissionais para o SUS numa O Centro representa um local
perspectiva de efetivação dos de amparo e proteção aos direit-
objetivos da Política Nacional de os e necessidades da população
Saúde Integral de LGBT’s. LGBT, e nos trouxe a demanda
crescente em relação à saúde
Não é conhecida uma ou- metal e a busca por formas de
tra experiência de inserção em resgatar alguns cuidados que já
um serviço como esse enquanto

141
haviam sido ofertados lá. A yoga nais, interferem negativamente
foi um dos caminhos que pensa- em sua alimentação e condição
mos abrir portas novamente para de saúde.
esse olhar. As práticas integra- Outro ponto marcante foi
tivas trazem essa possibilidade o processo de construção de ofi-
de acolhimento, cuidado e olhar cinas sobre diversidade sexual
ampliado sobre as questões que para Distritos Sanitários e Atenção
impactam na saúde, num espaço Básica em Saúde. Nele sonhamos,
que recebe tantas dores cau- planejamos e construímos juntos
sadas pela violência, opressão um projeto cujo objetivo é permitir
e retirada de direitos básicos. maior visibilidade à luta LGBT e
Para mim, pessoalmente, foi in- maior e melhor acesso ao serviço
crível pois era um momento de básico de saúde. O projeto foi con-
partilha também, onde além da struído tendo como atores princi-
prática física, dividíamos nossas pais o Centro de Cidadania LGBT,
dificuldades de cuidado e auto- a Residência Multiprofissional em
cuidado, dúvidas e olhares sobre Saúde da Família e Comunidade,
a necessidade de acolher o que a extensão universitária da Uni-
sentíamos. versidade Federal da Paraíba (nú-
cleo de Terapia Ocupacional) e os
- Residente Maria distritos sanitários do município
de João Pessoa, com o objetivo
O centro de Cidadania de oferecer educação perma-
LGBT permite ao profissional de nente e posteriormente eleger as
saúde um olhar além da técni- Unidades Amigas da População
ca aprendida e apreendida na LGBT, que seriam aqueles que
faculdade e também um apro- atingissem os critérios propostos
fundamento nas questões que pelo projeto.
estão intimamente ligadas aos A experiência enquanto
processos de humanização, re- residente e profissional de saúde
speito, equidade e empatia, tão foi algo desafiador e igualmente
necessários aos profissionais de enriquecedor e estimulante. A
saúde. Como nutricionista me vi receptividade do Centro LGBT
na necessidade de ultrapassar as permitiu desde o início aos res-
questões puramente nutriciona- identes um trabalho integrado
is. e motivado, proporcionando a
Em alguns momentos convivência em um espaço tão
participei de ações e feiras de rico, com atores (profissionais do
saúde promovidas pelo Centro centro e usuários) que tanto tem
de Cidadania LGBT junto a outros a ensinar ao serviço de saúde so-
profissionais da Residência Multi- bre o que é saúde na sua forma
profissional em Saúde da Família ampla, com trabalho em equipe,
e Comunidade, como enfermei- relações de diálogo, troca de sa-
ras, farmacêuticos e psicólogos. beres, escuta e planejamento in-
Nessas oportunidades, realizáva- tegrado de ações.
mos sempre ações multiprofis-
sionais, com interconsultas e - Residente Gilene
cuidados conjuntos. Muito mais
do que apenas verificação do Participar do projeto (Uni-
Índice de Massa Corporal, por ex-
dade Amiga da População LGBT),
emplo, os usuários do Centro de
inicialmente, foi uma realização
Cidadania LGBT pareciam buscar
apoio e escuta para alívio de seus pessoal, enquanto homem gay
sofrimentos, sofrimentos estes que se identifica com a causa e
que muitas vezes, sendo emocio- que, de certa forma, sempre teve

142
uma aproximação muito grande e trazer garantias para outras
desde a época da faculdade, no pessoas é fundamental nos dias
que se refere às políticas públi- que a gente vive atualmente –
cas para a população LGBT. Sem- Residente Joaquim
pre foi um tema que me des- Sendo residente em saúde
pertou muito interesse. Então, da família e ter contato com o
inicialmente foi uma realização Centro de Cidadania LGBT+ em
pessoal, que depois passou a João Pessoa foi uma possibili-
ser uma realização profissional. dade de transformação sem ig-
Como já era um assunto que me ual, tanto profissional quanto
interessava: a garantia de direit- pessoalmente. Conhecer as pes-
os, o acesso qualificado a saúde soas que trabalham no centro e
de nós enquanto homens gays, trabalhar junto com elas, tran-
mulheres lésbicas, homens trans, scende a relação prática de tra-
mulheres trans… Enfim, a gente balho, são relações permeadas
tem que se colocar sempre nesse de afeto e acolhimento. E acredi-
lugar de fala, tem que se apro- to que isso facilita que o trabalho
priar desse lugar porque se não se desenvolva de uma maneira
formos nós, quem poderia falar orgânica e muito potente, tanto
por nós? Então eu acho que nós é que em pouco tempo fizemos
devemos nos apropriar desse lu- muita coisa juntos. E o melhor
gar de fala, se empoderar desse disso tudo, é saber que são ações
espaço. Participar do projeto foi transformadoras e realmente
muito bom, sou muito feliz por efetivas para a mudança da real-
ter contribuído de alguma forma idade social das pessoas LGBT+ e
com o projeto. Acho que desmis- além.
tificar toda essa visão que a so-
ciedade tem é super importante - Residente Stephanie

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005. Cria a Residência em


Área Profissional da Saúde. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11129.htm. Acesso em: 05 maio
2020.
_______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. 12ª
Conferência Nacional de Saúde: conferência Sergio Arouca: relatório
final. Brasília, 2004.
_______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. 13ª
Conferência Nacional de Saúde: relatório final. Brasília, 2008.
_______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF:

143
Experiências
de usuários
e usuárias
do centro de
cidadania LGBT

Marcos Aurélio Vasconcelos Lima Júnior


Fábio Gomes dos Santos
Feira de empregabilidade e de
serviços para as (os) usuárias (os)
no Centro de Cidadania LGBT
Fonte: Arquivo pessoal

Desde o momento em que surgiu a ideia de escrevermos um livro


registrando a trajetória do Centro de Cidadania LGBT de João Pessoa,
soubemos que precisaríamos abrir espaço para as narrativas das pes-
soas que cotidianamente circulam pelo Centro, acessam os serviços e
possuem, portanto, um ponto de vista privilegiado sobre a instituição.
Mais do que isso, são a razão de ser do Centro. Neste último capítu-
lo, trazemos algumas dessas experiências, narradas para a equipe do
ResisTO e posteriormente editadas por nós. A dinâmica da produção
do capítulo foi a seguinte. Inicialmente Iara Falleiros e Gustavo Monzeli
preparam um roteiro de questões abertas para conduzir a conversa. Em
seguida, Roberto Maia repassou os contatos de usuários e usuárias com
os que poderíamos fazer o contato, e que haviam sido previamente avi-
sados a respeito desse contato. Devido à situação excepcional provoca-
da pela covid-19, especificamente pelas medidas de isolamento social,
não foi possível fazermos as entrevistas presencialmente, de modo que
quatro estudantes de Terapia Ocupacional da UFPB entrevistaram as
pessoas pelo WhatsApp, enviando as perguntas em áudio, e receben-
do as respostas também por áudio. A equipe que fez as entrevistas foi
formada por Shermilla Leite Lucas, Adryellen Vitória Freire Matoso, Lua
Zayra Mendonça Marques e Julia Fernandes de Souza. Os áudios foram
transcritos e em seguida editados por Mónica Franch em forma de um

145
texto corrido. A última fase foi a lá por um psicólogo. E foi ela que
devolução dos textos às pessoas me aconselhou a ir lá, me expli-
entrevistadas, para ajustes finais. cou que o Centro poderia me aju-
O resultado, nas próximas pági- dar, até na questão de advocacia,
nas, é um conjunto de relatos em que eu estava precisando. Aí eu
primeira pessoa, mantendo ao comecei a conhecer, o pessoal
máximo a fidelidade com o que foi gostando da gente, onde co-
nos foi dito, apenas com adequa- meçamos a fazer amizades. Foi
ção para a linguagem escrita. Va- assim que a gente conheceu o
mos aos relatos! Centro de Cidadania LGBT, Ro-
berto Maia, Julha e Josy, que não
LÁ, PRA NÓS, É UMA FAMÍLIA! está mais trabalhando lá, mas
a gente continua visitando, são
Ana Dantas de Albuquerque pessoas maravilhosas. Eles pra
Germano nós, são uma família! Até hoje a
55 anos, mulher cisgênero, lésbi- gente tem convívio com todos
ca, parda, aposentada eles através do zap, mesmo com
essa pandemia, trancafiadas em
Eu conheci o Centro de Ci-
casa, o que não está sendo muito
dadania LGBT no início de outu-
bro de 2017, através da Rosemary, bom. A gente está precisando de
com quem eu sou casada, (entre um abraço.
aspas,) porque não é nada legali- Conhecer o Centro LGBT
zado ainda no papel, mas mora- e as outras pessoas para quem
mos há três anos juntas aqui em nós fomos encaminhadas para
João Pessoa. Nós nos conhece- ter apoio foi muito prazeroso, foi
mos por um aplicativo chamado maravilhoso e continua sendo
Badoo. Ela veio de Florianópolis até hoje. Lá no Centro eu conse-
em 2017, mas a gente acabou se gui psicólogo, orientações sobre
separando. Então eu pesquisei na advocacia, consegui encami-
internet um lugar onde ela pu- nhamento para o PASM (Pronto
desse ficar e achei o Centro POP. Atendimento em Saúde Mental)
Através de lá, ela foi encaminha- Mangabeira, consegui encami-
da para a Casa de Acolhida de Ja- nhamento para o CAPS (Cen-
guaribe, onde ficou seis meses. tro de Atenção Psicossocial) dos
Após isso, eu comecei a sentir Bancários, para o psiquiatra. Por-
falta dela e passamos quase um que o PSF (Programa Saúde da
ano nos vendo. Eu saía, passava Família) daqui do nosso bairro,
o dia com Mery, nós nos encon- o Valentina, é muito devagar, é
trávamos no centro, na praça da muito complicado. Eles atrasam
Lagoa, Parque Sólon de Lucena, muito as coisas da gente e não
passávamos o dia lá, quando era dão tanta importância, então o
à noite, eu vinha pra casa. Centro LGBT nos deu total segu-
Nessa época, a Rosemary já rança, total apoio.
estava indo no Centro; por conta Lá nós também fomos assis-
de ela estar na Casa de Acolhida, tidos na Feira da Cidadania, teve
ela estava sendo acompanhada vacinação, vagas de emprego, fi-

146
zemos acupuntura, corte de cabe- por conta que Rosemary teve
lo, o que a gente achou necessá- que fazer uma cirurgia, mas eu
rio, a gente teve direito. Entramos continuo estudando on-line, fiz
no projeto do “Minha Casa, Minha as apostilas e a gente conversa
Vida”, apesar de que ainda não saiu pela língua de sinais, que é a se-
a casa, mas o Roberto Maia está nos gunda língua oficial do Brasil.
ajudando bastante. Teve também Hoje eu sou aposentada, já
um advogado e uma advogada, tem dez anos que sou aposenta-
que nos orientaram muito sobre a da por invalidez, só que eu tenho
questão de casamento, porque eu várias profissões: eu sou costurei-
ainda sou casada com um homem ra, aprendi agora na pandemia a
e estou num processo de divórcio. pintar em telas, eu sou artesã, eu
Um apoio importante que trabalho com floricultura, artesa-
eu encontrei no Centro foi com a nato em papelão, PETs recicláveis.
psicologia, que mudou muita coi- O que você me der pra eu fazer,
sa na nossa relação, na minha e eu faço! Eu desenhava e já fui es-
da Rosemary. Nós passamos por tilista. Por conta disso eu comecei
várias psicólogas, porque lá tem a ver uns vídeos no Youtube e co-
pessoas que ficam um ano, três mecei a pintar telas, inclusive eu
meses, seis meses, mas os assun- tenho várias e estou esperando
tos eram sempre os mesmos: a o Centro LGBT voltar a funcionar
nossa relação, entre nós e minha normalmente pra fazer uma ex-
irmã, a questão era mais essa. posição. Estou trabalhando com
Na questão do estudo, o plantas, que está sendo uma tera-
Centro também foi bom, nos pia pra meu problema psicológi-
ofereceram o curso de libras no co, minha casa está um jardim.
Celest, que aprendemos muito. O Centro nos ajuda total-
Eu não tive oportunidade de es- mente e outras pessoas que a
tudar nem na infância e nem na gente encaminhou pra lá, cole-
adolescência. Parei meus estu- gas nossas que são lésbicas, ho-
dos na quinta série, quando tinha mossexuais, transgêneros, onde
10 anos de idade. Aos 26 anos, também foram assistidas lá. Eu
quando meus filhos já estavam só tenho coisas boas pra falar do
estudando, juntamente com eles grupo LGBT, não tenho mágoa,
eu voltei ao Ensino Fundamental, não tenho o que falar de errado
na quinta série e terminei. Daí dei nem de ruim deles. Neste mo-
uma outra parada, voltei normal- mento de pandemia. Inclusive sin-
mente pra um supletivo e aos 41 to muita falta do Centro porque lá
anos eu fiz o Ensino Fundamen- nós tínhamos muitas atividades
tal e o Médio. Também tenho di- e tínhamos muito convívio com
ploma pelo SENAE de São Paulo. eles. Às vezes a gente ia lá só pra
Lá no Centro tivemos o curso de trocar ideia, porque sentíamos fal-
Libras do Celest (Centro de Lín- ta deles. Lá é um local bem har-
guas Estrangeiras) que, por sinal, monioso, todos os funcionários, a
é uma instituição muito bem or- direção, a secretaria, a recepção,
ganizada. A gente resolveu não o vigilante são acolhedores, o am-
ir para o segundo nível de Libras biente é aconchegante. Quando

147
a gente está tendo atendimento, de questões, e eu não conhecia
a psicóloga deixa a gente muito à ninguém em João Pessoa, eu es-
vontade. Os profissionais são mui- tava sozinha, só eu e Deus. Imagi-
to prestativos conosco, somos os na como estava a minha cabeça!
prioritários lá para eles. Tem sem- Aí fui pra Casa de Acolhida, em
pre aquele abraço. Inclusive, até a Jaguaribe, e foi uma experiência
auxiliar de limpeza, a gente senta- que eu posso dizer que foi triste,
va pra conversar, com o vigilante passei momentos horríveis, mas
também, a gente tinha intimidade também foi uma experiência boa
com todos. Roberto liga pra gen- porque eu conheci pessoas boas lá
te, a gente conversa e estamos dentro. Todos me apoiaram, tanto
aguardando a reabertura do LGBT o coordenador, como os educado-
para reiniciar as atividades, esta- res. Eu já estou em João Pessoa há
mos com saudades uns do outros, três anos, eu saí da Casa de Aco-
porque ali não é só aquela coisa lhida faz dois anos e pouco, mas a
carrasca, onde eles são funcioná- gente se fala todos os dias. Se eu
rios e nós somos os pacientes e precisar de alguma coisa, eu pos-
clientes. Nós também temos di- so contar com eles. Estão sempre
reito de ter uma boa conversação, falando comigo, para saber se eu
uma boa amizade. Somos gratas estou bem, se a Ana está bem. É
ao Centro de Cidadania LGBT de uma outra família que eu tenho.
João pessoa, Paraíba. Lá na Casa de Acolhida, por
eu ser lésbica, fui encaminhada
ORGULHO DE SER DO CEN- pela psicóloga para fazer um ca-
TRO DE CIDADANIA LGBT dastro no Centro de Cidadania
LGBT, e eu fui muito bem aten-
Rosemary Gonzaga dida. Minha vida mudou com-
pletamente. Eu sempre fui uma
51 anos, “eu sou mulher mas me
pessoa de caráter, nunca tive
identifico como homem”, lésbica,
problema de nada, nunca mexi
pardo, aposentado
em nada de ninguém, nunca tive
Eu conheci o Centro de Cida- esses problemas, sempre tive ca-
dania depois que entrei na Casa ráter e educação. E quando eu
de Acolhida. É uma longa histó- mudei para uma casa de acolhida
ria. Eu vim da ponta do país, lá com outras pessoas, eu me tornei
de Florianópolis, Santa Catarina, uma pessoa revoltada, magoada.
depois que conheci a Ana numa O Centro de Cidadania me resga-
rede social chamada Badoo. A tou, resgatou aquela pessoa ale-
minha família não queria que eu gre que eu era lá em Floripa, res-
viesse, meus irmãos foram con- gatou a minha alegria, o conviver
tra mim: “Você vai pra um lugar de novo com as pessoas, o parar
onde não conhece ninguém. Se de ter medo, isso tudo eles fize-
tu for, a gente não vai te ajudar ram por mim. Sabe quando você
em nada!” Eu disse: “Eu vou com se sente na tua segunda casa? Eu
a cara e a coragem”. Só que logo só tenho que agradecer e muito!
que eu cheguei aqui, eu não po- Ao Roberto Maia, que é um exce-
dia ficar com a Ana por uma série lente coordenador, à Julha que

148
também trabalha lá, à psicóloga ótimo, tivemos professores mui-
Jô que é ótima, excelente. Não to bons, só que a gente não pode
tenho o que falar. Só digo coisas ter o certificado porque eu ainda
boas de lá, de coração mesmo. não tenho o segundo grau. Por
Meu coração se emociona ao falar isso, Ana e eu decidimos parar
deles. o segundo ano de Libras, pra eu
Eu digo sempre que o Cen- poder completar o meu segundo
tro de Cidadania foi a melhor coi- grau no EJA (Educação de Jovens
sa que me aconteceu depois que e Adultos), que também conse-
eu vim pra João Pessoa, porque lá gui pelo Centro de Cidadania. Eu
eu tive assistência com as psicó- estava fazendo o EJA, só que eu
logas. Elas fazem estágio no Cen- tive que parar por causa da epi-
tro, então a gente sempre passa demia, porque as escolas para-
por várias psicólogas, mas muitas ram. Quando tudo isso acabar,
delas me marcaram, sobretudo a eu quero voltar ao normal, quero
Jô, que me ajudou muito. As es- fazer o último ano para ter o meu
cutas que tive com as psicólogas segundo grau completo. Eu ado-
foram muito importantes porque ro ler, adoro escrever, então isso
eu estava com a cabeça em órbi- para mim é fundamental.
ta, eu não sabia o que fazer da Outra coisa que fizeram
minha vida, cheguei a ficar com por mim lá no Centro, que me
depressão. Eu tive até uma crise ajudou muito, é que hoje eu sou
na sala da psicóloga. Ela conver- aposentada. Eles me deram a
sou com Roberto Maia, que me oportunidade de eu ir pessoal-
deu uma declaração de urgência mente falar com a Secretária de
e me encaminhou para o PASM Saúde do município. Lá fui mui-
(Pronto Atendimento em Saúde to bem atendida, falei pra ela do
Mental), para me atender com meu caso e eles me deram assis-
um psiquiatra, porque lá no Cen- tência. No outro dia ela me ligou
tro de Cidadania nós não temos falando que tinha marcado uma
psiquiatras, só psicólogas. Eu fiz consulta no Hospital do Trauma.
tratamento por dois meses e de- Então pude fazer minha cirurgia
pois continuei só com a psicólo- e por conta disso tive que parar
ga no Centro de Cidadania LGBT. de fazer a aula de Libras por cau-
Foi graças ao Centro, tam- sa da recuperação, porque eu
bém, que hoje eu sei o básico de não podia mexer os braços, mas
Libras e vou continuar estudando eu precisava fazer essa cirurgia
depois que completar o segundo de qualquer jeito.
grau. Em outros momentos da Lá no Centro de Cidadania, às
minha vida, até tentei entrar em vezes acontece um mutirão onde
alguns cursos, mas sem o ensino os empreendedores, empresas e
completo não conseguia. Com o lojas, tipo o Carrefour, vão lá para
Centro de Cidadania, a gente fez dar suporte para as pessoas LGBTs
a inscrição no Celest (Centro de e para pessoas trans, para vaga de
Línguas Estrangeiras) da Prefei- emprego e a gente consegue fazer
tura e estudamos Libras, tanto eu isso tudo. Eu conheço pessoas que
como minha companheira. Lá é já conseguiram emprego através

149
de lá, e também estudos, como o UMA PORTA ABERTA PARA
que eu que consegui no EJA.
AS TRANS
Eles são ótimos, vão atrás das
coisas, não deixam as pessoas do
Malu Braga Tertuliano
Centro de Cidadania LGBT passa-
43 anos, mulher trans, heterosse-
rem necessidades. Por exemplo,
xual, branca, cabelereira e profis-
aqueles que estão com dificulda-
sional do sexo
des, que estão sem trabalho por
causa da epidemia, o Centro está Eu não lembro o ano, mas
fazendo doações. Foram as pró- eu conheci o Centro LGBT assim
prias pessoas que estão pegando que lançou. Ele é um espaço que
essas doações que me falaram. ajuda muito as trans, é um espa-
Eu e Ana não pegamos doação ço aberto pra trans, lésbicas, gays
porque a gente está bem, porque e tudo. Eu só tenho que falar que
graças a Deus a gente tem a nos- depois que abriu esse espaço,
sa aposentadoria, então a gente abriu muitas portas para gente
não precisa. Mas se a gente pre- em geral e em tudo.
cisasse, eu tenho certeza de que O Centro ajuda porque tem
poderia contar com eles. os psicólogos, tem advogado,
Em relação a isso, o Centro tem as portas abertas pra quem
de Cidadania é um dos órgãos da quer trabalhar, tem inscrição pra
Prefeitura que está sendo mui- emprego. A gente faz troca de
to benfeitor, está fazendo coisas nome, trocamos o nome pelo
muito boas, eu espero que con- nome social. Eu só tenho a dizer
tinue, que outros prefeitos não que o Centro LGBT é uma porta
acabem com isso, porque eles es- aberta muito boa para as trans, e
tão fazendo o possível e o impos- depois que surgiu esse espaço o
sível. Eu só tenho a agradecer! Lá preconceito diminuiu muito!
em Floripa era Centro POP, não O Centro já me ajudou mui-
era LGBT, e o daqui dá exemplo to. Eu já tive um acidente de car-
pra qualquer outro centro de ci- ro, eu já tive ajuda com cesta bá-
dadania de todo o Brasil. Eu te- sica, já precisei de advogado, de
nho muito orgulho deles. Eu vou médico, já precisei deles para a
ter que falar: eu tenho orgulho de troca de nome. Quando a gen-
ser do Centro de Cidadania LGBT te chega lá, o que eles puderem
da Paraíba, eu tenho orgulho de fazer pela gente, eles fazem, eu
dizer! Eu falo em cada lugar que dou nota dez pra eles. Eu só te-
eu vou, quando eles perguntam nho a agradecer que depois do
se eu faço parte de algum movi- Centro, tudo melhorou pra gen-
mento, eu falo: eu sou do movi- te, tudo mudou para as pessoas
mento LGBT da Paraíba, do Cen- trans, lésbicas e gays. Foi tudo
tro LGBT e eu falo isso com muito esse espaço pra nossa vida, de-
orgulho! Eu digo com orgulho: pois que abriram, foi muito bom
eu sou uma usuária muito feliz pra nossa vida!
do Centro de Cidadania LGBT. Eu sempre frequento o Cen-
tro LGBT. Quando tem reunião so-
bre o “Minha Casa, Minha Vida”, que

150
a gente fez a inscrição, eu estou lá. ESSAS REPERCUSSÕES EU
Eu vou lá no Centro pra pegar pre-
VOU LEVAR PRO RESTO DA
servativo e gel. Sempre que eu pre-
ciso de alguma coisa eu vou até lá, MINHA VIDA!
quando eu preciso de um psicólo-
go eu sempre corro lá. Eu sou de Elena Valéria da Nóbrega Freire
dentro do Centro LGBT. Antes da 30 anos, mulher trans, pansexu-
pandemia eu só vivia lá, agora não, al, branca, multiplicadora
porque fechou esses dias.
Conheci o Centro de Cida-
A gente também conse-
dania LGBT por meio de uma ex-
gue fazer o tratamento com
-funcionária deles, a Josi. Já tinha
hormônio. A gente faz a inscri-
começado o meu atendimento
ção, encaminham a gente para
no Ambulatório TT, no Hospi-
um postinho no Clemetino Fra-
tal Clementino Fraga, conheci a
ga (Ambulatório TT) e a gente
Josi e ela me levou até o Centro
é atendida lá. Só que, com esse
e foi quando comecei a ter aten-
perigo agora da pandemia, está
dimento psicoterapêutico por lá.
tudo fechado e a gente não está
Isso faz três anos.
fazendo tratamento hormonal.
No Centro de Cidadania
Este período, que está ruim
LGBT consigo tratamento psico-
pra gente ganhar dinheiro, o
terapêutico, tenho atendimento
Centro de Cidadania arranjou
com a psicóloga até hoje por lá.
pela prefeitura comida e feira
O fato de eu ter um tratamento
para gente. Ninguém está conse-
psicoterápico continuado ajuda
guindo trabalhar, então a gente
muito na hora da minha tomada
se falou pelo telefone, eu e Ro-
de decisões, me ajuda a enten-
berto Maia, e ele conseguiu esse
der questões sobre a minha vida.
apoio. Todo dia vem uma van dei-
Também tive acesso a orien-
xar quentinha pra gente da pre-
tação legal a respeito da troca de
feitura, através do Centro LGBT.
nome e gênero. Apesar de eu não
Eu sinto muita falta do Cen-
ter aberto o processo com eles
tro. Eu moro com oito travestis
para fazer a alteração de nome,
aqui em casa, eu hospedo umas
já que fiz diretamente no cartó-
meninas que vem de fora. Elas
rio, eles me informaram de todo
precisam conhecer o Centro mas
o passo a passo do processo. Tal-
está fechado agora. A gente não
vez eu não teria conseguido tão
está se sentindo bem e eu acho
rápido se não fosse por eles, por-
que é todo mundo, ninguém
que realmente a minha troca de
está se sentindo bem, por causa
nome foi um processo bem rá-
dessa quarentena, tudo fechado.
pido. Claro que teve a mudança
Mas a gente vai levando a vida.
na legislação na época em que
eu fiz a minha troca e isso ace-
lerou bastante o processo, mas
com certeza toda orientação que
eu recebi lá me ajudou bastante
a resolver todas essas questões

151
de forma mais tranquila possível. nhum escape com essa família
Então, essas repercussões eu vou preconceituosa.
levar pro resto da minha vida! Foi E quanto aos serviços que
algo muito positivo que ainda es- eu estou tendo contato agora
tou vivenciando com o tratamen- é com a psicóloga do Centro de
to psicoterápico continuado. Cidadania LGBT. Ela está me aju-
Em relação a esse momento dando bastante, fazendo consul-
de pandemia, eu não estou cem tas por telefone, é o que eu estou
por cento isolada, porque traba- tendo acesso no momento.
lho no call center, e é considerado
serviço essencial, então eu conti- MEU PAPEL COMO LGBT É
nuo indo trabalhar e isso significa DAR VISIBILIDADE AO NOS-
que eu não estou em isolamento SO POVO
social, embora tenha momentos
em que estou sozinha. Eu sem-
José Renan Lima da Silva
pre morei com os meus pais, e
27 anos, gay, negro, gerente no
depois que meu pai faleceu, só
Carrefour
com a minha mãe. Só que, com
a pandemia, tive que mandar mi- A primeira vez que visitei o
nha mãe para longe porque ela é Centro de Cidadania foi há uns
grupo de risco e eu estou saindo cinco anos, fui com uns amigos,
de casa todos os dias. Ela está na que fizeram uso dos serviços, mas
casa do meu irmão, que trabalha eu fui só pra acompanhar. Então,
em home office, e esse é o impac- eu conheço a Casa da Cidadania
to que o isolamento está tendo há muitos anos, sabia como fun-
na minha vida. Estou experimen- cionava, inclusive tem um ami-
tando pela primeira vez morar só. go meu, Diego, que trabalha lá,
Mas eu tenho certeza que a ques- tem Selminha e a esposa dela
tão do isolamento em si é compli- que também são minhas ami-
cada para muita gente. Eu, como gas. Eu sempre via publicações
LGBT, não estou tendo problemas dos eventos, porém, eu não parti-
em casa com familiares, ques- cipava, nunca tinha utilizado ne-
tões de transfobia e essas coisas nhum serviço. O primeiro e único
que eu tinha antes do isolamento serviço que eu utilizei foi a feira
porque tenho um relacionamen- de empregabilidade em 2018.
to bom com a minha mãe, e tias Foi o que eu estava precisando
e tios eu não estou vendo mais, naquele momento e foi muito,
não estou tendo mais contato. No muito importante mesmo. Eu te-
meu caso, tem o fato de ficar sozi- nho muita fé, acredito que tudo
nha, a questão dos pensamentos na vida acontece quando tem
que tenho, pois sofro de ansieda- que realmente acontecer, então
de e isso é pesado pra mim. Mas aquilo foi algo muito inesperado
eu imagino que para uma pessoa para mim. Eu não tinha nem me
LGBT que está com uma família preparado pra ir à feira, mas eu
preconceituosa, a situação é bem tinha visto meus amigos publica-
pior porque eles estão tendo que rem sobre o evento e de última
conviver o tempo todo e sem ne- hora eu resolvi ir. Fui e já era pra

152
ser meu, a vaga de trabalho que zes a gente sente o preconceito
eu consegui era pra ser minha e ainda, porque ele é muito intenso,
o Centro de Cidadania foi um ca- mas depois de ter buscado mui-
nal importantíssimo para que eu tos conhecimentos e de ter me
conseguisse essa vaga. aproximado de algumas pessoas
Eu digo que o Centro de Ci- do meio LGBT, eu aprendi muita
dadania foi um caminho, foi uma coisa. Eu tenho muito a aprender
porta aberta, uma porta de aces- ainda, mas o que eu aprendi foi
so para minha entrada no Carre- o suficiente para me manter fir-
four. Porque o Carrefour é uma me na minha condição. Graças
empresa muito cautelosa na hora a Deus, eu trabalho numa em-
de contratar, são muitas pessoas presa maravilhosa que me apoia,
que desejam entrar no Carrefour, que me aceita e tenho uma famí-
então a concorrência é enorme. lia maravilhosa também que me
Naquele momento, a empresa apoia, que me aceita, meu pai,
queria abraçar a causa e a Casa da minha avó, meus irmãos, então
Cidadania foi importantíssima. Eu sou muito feliz.
acredito que se não fosse através No momento, eu não estou
do Centro o meu acesso à empre- utilizando os serviços da Casa da
sa teria sido muito mais difícil. Cidadania, porém eu estou in-
Atualmente eu não conti- terligado de outra forma. Como
nuo acessando o Centro, porém eu conversei com Roberto, com
nós não perdemos a parceria. Diego, com parceiros e amigos
Eu tenho que fazer algo em tro- que eu tenho lá dentro, enten-
ca, porque eu sei da necessidade do que meu papel como LGBT
que a Casa da Cidadania tem de é dar visibilidade ao nosso povo,
ser ouvida, ser vista e ser respei- dar oportunidade. Então, mesmo
tada, principalmente. Então eu não utilizando os serviços que são
uso a oportunidade que eu tive oferecidos por eles, eu contribuo
no Carrefour justamente para e quero contribuir mais. Essa con-
falar o quanto é importante con- versa que a gente está tendo ago-
tratar LGBT e o quanto é impor- ra, por exemplo, é uma forma de
tante a ação do Centro de Cida- contribuição, é eu falar, é eu me
dania em João Pessoa. O último expor, é eu mostrar o quão impor-
contato que a gente teve foi na tante é e o quão importante são
última feira de empregabilidade essas pessoas que estão à frente
que eu fui participar, desta vez da Casa da Cidadania. Vou con-
como recrutante, representante tinuar fazendo sempre o que eu
do Carrefour para a seleção dos puder. Todas as ações que tem no
currículos. Eu achei maravilhoso! Carrefour eu faço questão de fa-
Em relação a como eu me lar, faço questão de relembrar so-
sinto, eu sou uma pessoa muito bre o Centro de Cidadania. Então
feliz e realizada. Já fui vítima de é isso: eu faço parte da Casa de Ci-
preconceito, já sofri bastante na dadania LGBT de João Pessoa.
minha adolescência quando eu
era mais jovem. Hoje eu continuo
passando por problemas, às ve-

153
CONHECI O CENTRO DE CI- MINHA VIDA ERA DE CAN-
DADANIA POR INDICAÇÃO TO EM CANTO

Anderson Pimentel Luciano Araújo Leite


28 anos, homem cisgênero, gay, 45 anos, gay, pardo, auxiliar de
branco, operador de telemarketing cozinha

Eu conheci o Centro de Ci- O meu conhecimento do


dadania acho que há mais ou me- Centro de Cidadania LGBT foi
nos um ano, por indicação de uns porque eu sou amigo de Rober-
conhecidos. Eu já tinha ouvido fa- to Maia e fiquei sabendo que ele
lar de lá mas nunca tinha ido, aí tinha aberto esse movimento, faz
foi mais ou menos nesse período, uns três ou quatro anos. Foi pelo
junho ou julho do ano passado, Centro que eu consegui Minha
que eu fui pela primeira vez. Tive Casa Minha Vida. Eu estava ins-
acesso à feira de empregabilida- crito na SEMAHAB – Secretaria
de e também eu faço terapia lá. Municipal de Habitação da Pre-
Foi graças à feira que eu consegui feitura e na CEHAP – Companhia
o emprego que estou agora. E a Estadual de Habitação Popular
terapia foi muito importante tam- do Estado desde 2004. E nesse
bém por conta do impacto que momento minha vida era assim,
eu tive depois que eu me mudei de canto em canto. Eu vivia muito
pra João Pessoa. Foi muito impor- endividado, estava desemprega-
tante nessa mudança de cidade. do e ao mesmo tempo pagando
Neste momento de pan- aluguel e fazendo uns bicos. Não
demia, não estou acessando ne- passava muito tempo morando
nhum serviço do Centro. A tera- no centro em João Pessoa e já
pia teve uma parada por causa tinha que ir embora. Aí já morei
de tudo que está acontecendo, em Bayeux de aluguel, morei em
mas eles falaram que quando Oitizeiro, era muita dificuldade,
voltar ao normal, eles irão avisar. eu me aperreava muito.
Não sei se está tendo para algu- Fazia muitos anos que eu
mas pessoas, para casos onde há estava inscrito no setor de habi-
mais necessidade. Por enquanto, tação tanto do estado como do
eu estou tentando levar minha município, e eu já tinha partici-
vida da melhor forma possível. pado de várias ONGs e era só pro-
Eu não sinto tanto a questão do messas e mais promessas que eu
isolamento social porque eu não ia receber. Via os outros usuários
tenho esse hábito de sair, de fazer receberem primeiro do que eu,
muitas coisas fora de casa, então tendo inscrição mais nova do que
para mim está mais tranquilo. As- a minha. E chegou um certo mo-
sim que começou a ter essa pan- mento que eu pensei que eu não
demia lá no Centro disseram que estava levando fé, que eu nunca
iriam entrar em contato quando ia ter minha casa. Aí meu com-
tivessem alguma resposta sobre panheiro falou pra mim que eu
quando voltaria, mas até agora, fosse me inscrever no Centro de
não falaram nada. Cidadania LGBT, que tinha uma

154
parceira junto com a prefeitura Neste momento de epide-
sobre o negócio da habitação. Fui mia, eu me sinto seguro dentro
lá, falei com Roberto Maia, fiz a da minha casa. O serviço que está
inscrição, acho que com um mês sendo oferecido à gente é a ali-
e quinze dias eu fui chamado pra mentação diária, que é o almoço
entrevista pela assistente social e janta, de domingo a domingo,
da prefeitura. Nesse tempo eu através do Centro LGBT em par-
morava no centro e ela fez a en- ceria com a Prefeitura. Mas ou-
trevista e mandou eu aguardar, tro tipo de serviços eu não estou
que eu ia ser chamado pra en- acessando por causa dessa epi-
tregar a documentação. E assim, demia, eu nem sei se está funcio-
enfim, fui passando de etapa em nando. Em termos pessoais, eu
etapa, e chegou o dia de eu rece- não me sinto tão só porque meu
ber a minha casa. Eu fiquei muito companheiro está comigo todos
feliz, primeiramente agradeço a os dias. Esperando essa epidemia
Deus e o movimento, às pessoas passar pra poder voltar ao Centro,
que me ajudaram a ter a minha frequentar de novo. E também,
casa hoje, estou muito feliz nela. tem que ficar em casa, posso fa-
Foi uma mudança de vida mui- zer o quê? Além disso, eu não es-
to grande! Se não fosse o Centro tou podendo sair nem é só por
de Cidadania LGBT eu não estava causa da epidemia, mas porque
mais com muita fé e esperança de eu sofri um acidente de moto e
ter minha casa. Não fui só eu que estou cirurgiado, estou de cama.
foi contemplado, mas muitas pes- Mas estou bem, graças a Deus, e
soas LGBT que são vizinhos meus com esperança da epidemia pas-
aqui também fazem parte do mo- sar pra poder frequentar de novo
vimento e todos receberam. o Centro, acessar os programas,
No Centro, também fiz cursos ver se eles me ajudam a arrumar
e fui encaminhado para um em- um emprego.
prego de telemarketing. Os cursos
me ajudaram profissionalmente
em certas coisas, melhoras, sem- UM CENTRO QUE GARANTE
pre foi pra melhor. É uma chance A CIDADANIA DOS LGBTs
de arrumar emprego. Essas coisas
foram muito importantes e são Ricardo Alecsander de Queiroz
importantes para mim até hoje, Oliveira
tanto que eu ainda frequento o 26 anos, homem trans, pansexu-
Centro de Cidadania. Agora estou al, branco, psicólogo, operador
desempregado, mas quando eu de telemarketing e palestrante
estava trabalhando e tinha tempo,
eu sempre passava por lá. Agora, Eu conheci o Centro de Ci-
por causa dessa epidemia é que eu dadania LGBT há três anos, mais
não estou indo muito, e também ou menos na metade do ano de
estou de cama, cirurgiado, estou 2017, quando eu decidi dar os pri-
sem tempo. Mas quando voltar meiros passos da minha transi-
ao normal eu vou frequentar, sim, ção social de gênero e daí eu co-
como eu sempre frequentei. mecei a buscar de que maneira

155
faria isso. Primeiro busquei alte- que na época não era como hoje;
rar meu nome social na Univer- depois da resolução do Conselho
sidade, no cartão SUS, essa bus- Nacional de Justiça, a retificação
ca dos direitos. Eu fui buscando de gênero se faz direto no cartório,
sozinho mesmo e com intermé- mas naquela época precisava de
dio de alguns professores meus, um laudo psicológico. A questão
de alguns parceiros. Eu não me das documentações civis, eu dei
lembro muito bem como eu che- entrada no jurídico, assinei uma
guei ao Centro de Cidadania, eu procuração, o advogado entrou
sei que eu fui buscando, buscan- com minha ação de retificação
do, até chegar lá. Já tinha ouvido jurídica de nome e gênero e eu
falar de Roberto Maia, não sabia fui acompanhando. Peguei meu
bem o trabalho, mas adicionei número do processo e, como até
ele no facebook e falei para ele hoje eu sou um cara muito chato,
que no momento eu estava de- fiquei pegando no pé do advoga-
sempregado, estava começando do. Eu aperreava direto o pesso-
a fazer minha transição de gêne- al lá do cartório, lá do fórum. Dei
ro, precisava de um apoio e não entrada no processo civil de reti-
sabia a quem recorrer, não sabia ficação de gênero em dezembro
como fazer. Aí ele perguntou se de 2017, quando foi em janeiro o
eu conhecia o Centro de Cidada- juiz intimou o Ministério Público
nia LGBT e eu disse que não. Ele e o Ministério Público disse que
disse para eu ir lá na Casa Ama- era para marcar a audiência. A
rela da Lagoa, que é como todo audiência foi em abril de 2018, e
mundo conhece, e eu fui. Eu já a juíza que estava substituindo o
estava bem determinado a co- Dr. Romero deferiu o pedido ini-
meçar o processo de hormoniza- cial e eu já saí com meu nome e
ção e também queria muito um meu gênero retificado.
emprego, porque eu não ia ter Ainda passei uns quatro,
(nem tenho) o apoio da minha cinco meses para sair a docu-
família em relação a essas ques- mentação do registro civil; só
tões. Então eu precisava de um saiu mais rápido porque eu já ti-
emprego para eu fazer tudo so- nha estagiado em fórum e sabia
zinho do meu jeito. Aí eu cheguei mais ou menos como era o rito
lá, na época era Josy, muito legal, processual, aí eu fiquei em cima
e também Júlia, fui me aproche- e deu tudo certo. Por isso foi bas-
gando, levei os documentos que tante rápido. Conheci uma meni-
eles pedem, eu fiz tudo lá. Na ver- na lá que levou quase dois anos,
dade, minha história foi toda lá para conseguir. Antigamente de-
no Centro LGBT, eu fiz várias ami- morava bastante também, eles
zades lá, gosto muito do pessoal. pediam duas testemunhas para
Primeiro eu pedi pra colo- acompanhar você. O meu caso
car meu nome no Transcidada- ainda teve isso, tive que dar o
nia para conseguir um emprego, nome da minha na época ex-na-
dei meu currículo, esperei alguns morada e de uma amiga minha,
meses. Dei meu nome também que depois se afirmou como pes-
para começar a psicoterapia, por- soa não binária. Mas nem preci-

156
sou delas porque a juíza enten- levar as coisas e não brigar com
deu que, pela resolução do CNJ ninguém. Às vezes até estourava,
– Conselho Nacional de Justiça, chorava, ficava com raiva, mas
não precisava, que essas exigên- isso tudo comigo, eu sozinho,
cias só burocratizam a questão quando era na hora, eu resolvia
da retificação, que é um direito na calma, aí deu certo. Saiu a sen-
da gente. A sentença dela foi jus- tença, fui lá, fiz meu registro de
tamente falando sobre esse di- nascimento, depois tirei meu RG
reito à autodeterminação que a e fui ajeitando minhas documen-
pessoa tem, a questão do nome tações. Foi um ano inteiro para
é um direito personalíssimo. tirar todas as documentações,
Depois que eu consegui a CPF, RG, certidão de nascimento,
sentença foi mais outro moído reservista, a carteira de trabalho,
para tirar a certidão de nascimen- que deu problema...
to. Só consegui tirar a certidão to- Eu consegui um emprego
talmente gratuita em Guarabira, também pelo Centro de Cidada-
minha cidade. Para isso, voltei nia LGBT. Primeiro consegui as
ao Centro de Cidadania e pedi documentações, isso foi metade
um parecer de vulnerabilidade do ano de 2017, preenchi a do-
social, eles me deram esse pare- cumentação em 2017, em outu-
cer e a juíza corroborou dizendo bro me chamaram da LIQ, que é
que o cartório deveria isentar as uma empresa telecomunicação,
custas. O cartório isentou, não fiz admissional, me chamaram e
paguei nada, só as passagens de me contrataram o dia 13 de De-
ir mesmo e voltar, foi ótimo, ma- zembro de 2017, uma semana de-
ravilhoso. Só que erraram a do- pois de eu começar minha hor-
cumentação lá e tive que voltar. monioterapia, que foi outra coisa
Gastaram foi dinheiro porque e que também comecei graças
tirei dia 13 de junho, aí no dia 20 ao serviço do Centro de Cidada-
tive que voltar lá para corrigir, nia LGBT. Eu não conhecia nada
porque eles tinham colocado re- disso, fiquei conhecendo tudo
tificação de nome e sexo, sendo pelo Centro de Cidadania LGBT.
que na decisão judicial dizia que Cheguei lá no Centro e disse que
isso é segredo de justiça e não queria começar a hormoniotera-
deveria constar essa informação pia, botaram meu nome social,
porque é preconceituoso. Então aí me encaminharam para um
eu voltei para corrigirem isso e só ambulatório, acho que foi no co-
colocarem que a certidão de nas- meço de agosto de 2017, na reu-
cimento foi alterada por decisão nião que eles fazem lá que apre-
judicial. Eu sempre fui um cara sentam todos os profissionais. Eu
que resolvo minhas coisas na cal- comecei esse acompanhamento
ma, então teve vários impasses, no ambulatório TT do Clemen-
barreiras, todo mundo passa por tino Fraga, com Andreina, que
isso, o povo querendo enrolar, é atendente, Lucas Bernardino,
não entendendo, sendo precon- que é o assistente social, Geize,
ceituoso, mas graças a Deus eu Serginho Araújo, que é o geren-
sempre tive paciência para saber te, a Soraia Patriota, que é a psi-

157
cóloga, já fiz amizade com todo comecei em 13 de dezembro de
mundo! Comecei em agosto, 2017 e estou lá até hoje. Já passei
só que demora, tinha umas 300 por vários setores na empresa, já
pessoas ao todo sendo atendidas fiz alguns processos internos pra
no ambulatório TT. Marcaram os outros cargos, isso até agora não
atendimentos, primeiro a psi- deu certo, mas continuo traba-
cóloga, tem que começar pelo lhando na empresa até hoje.
atendimento psicológico porque Voltando à questão da reti-
é um processo muito duro, mui- ficação do nome e gênero. Como
to difícil, então você tem que ter eu comentei, antes de dar entra-
firmeza, tem que ter clareza. Às da no processo jurídico antiga-
vezes quem está começando o mente a gente tinha que passar
processo de transição fantasia por umas sete sessões com a
muito, então tem que ter as ex- psicóloga para ela redigir um re-
pectativas correspondentes com latório psicológico dizendo que
a realidade, então foi justamente estava em condições para pros-
esse meu processo terapêutico lá seguir com a mudança de nome
que me possibilitou isso. Fui fa- e documentos civis. Hoje, com a
zendo esses atendimentos e em resolução do Conselho Nacional
6 de dezembro comecei a hor- de Justiça parece que é faculta-
monioterapia. Foi ótimo porque tivo colocar lá o laudo psicológi-
eu era muito inseguro em ques- co, mas na época era obrigató-
tões de voz, da aparência física rio. Isso demorou alguns meses
que a gente chama de “passabi- porque sempre tem muita gen-
lidade”, que a gente busca muito te pra atender lá no Centro. Eu
até para não sofrer preconceito. acho até que deveriam colocar
Por sinal, eu não gosto do termo mais profissionais de psicologia.
“passabilidade cis”, acho que a Sendo bem sincero, o problema
gente poderia arrumar outro ter- que eu vejo no Centro de Cida-
mo para isso porque dá a ideia de dania é que eles colocam mui-
que é “se passar”, como se fosse tos estagiários e os estagiários
falso, e em nenhum momento eu têm aquele tempo pra cumprir
tenho a pretensão de me passar como experiência, então há uma
por quem eu não sou, por isso eu rotatividade muito grande. Eu
não gosto desse termo. entendo que o Centro quer aju-
Em dezembro fui admitido dar esses estagiários, porque é
lá na empresa porque o pessoal importante na formação você já
do Centro de Cidadania mandou ter experiência com essas outras
meu currículo para lá. Foi feita uma nuances de sexualidade e gêne-
seleção, fui eu e mais alguns me- ro, mas eles também têm que se
ninos trans para fazer a entrevista atentar que essa alta rotatividade
mas, que eu me lembre, só eu fui prejudica um pouco a qualidade
contratado. Tinha uma dinâmica do atendimento. Mas foi ótimo
e eles eram muito nervosos, mui- mesmo assim. Com relação à psi-
to tímidos, e tem que ter uma boa cóloga que eu peguei, na época
comunicação, aí eles não se deram era estagiária, ficamos amigos,
bem e não foram contratados. Aí ela é ótima. Os profissionais são

158
ótimos lá, mesmo sendo estagi- mento dos direitos trans. Eu pos-
ários são ótimos, só poderia me- so falar com certeza que mudou
lhorar a questão da rotatividade, completamente minha vida. Não
tem que contratar outro psicólo- teria conseguido sem o Centro de
go, um realmente pra ficar lá, pra Cidadania LGBT porque foi lá que
trabalhar no Centro, aquele psi- eu consegui encaminhamento
cólogo de referência ou ter um para o ambulatório, para o meu
planejamento pra que não tenha emprego, para o atendimento ju-
essa alta rotatividade. Os serviços rídico, atendimento psicológico
psicológicos são muito elitizados quando não tinha um centavo
e a população LGBT tem mui- pra pagar. A Universidade Fede-
tas vulnerabilidades sociais, tem ral também fornece atendimen-
um padrão baixo de renda, então to, mas eu era estudante de lá e
tem uma alta demanda por esse isso torna difícil o acesso. Eu só
serviço. O acesso aos serviços psi- tenho a agradecer. Lá se pode
cológicos tem que ser democrati- dizer que realmente é um Cen-
zado, então a Prefeitura tem que tro que garante a cidadania dos
se atentar a isso, contratar mais LGBTs porque é múltiplo e eu
psicólogos efetivos pra trabalhar sou muito feliz por esse serviço
no Centro de Cidadania ter sido disponibilizado pela pre-
O Centro de Cidadania mu- feitura de João Pessoa.
dou minha vida completamente.
Digo a você que mudou minha VAI FAZER TRÊS ANOS QUE
vida da água, do deserto que ESTOU NA MINHA CASA
nem existe água, pro vinho, pro
whisky, pra cachaça, pro Nescau Kelly Cristina da Silva Andrade
que eu gosto de beber, para tudo! 58 anos, mulher trans, heterosse-
Isso me garantiu de fato acesso xual, parda
à cidadania, me tornei cidadão
através dos serviços do Centro de Eu conheci o Centro de Ci-
Cidadania LGBT porque pude ti- dadania LGBT em 2016. Eu tinha
rar meus documentos; sem eles uma amiga que conheci na Eu-
a gente se torna ninguém na so- ropa, a Josy, e ela trabalhava lá.
ciedade e não tem acesso a nada. Quando cheguei aqui em João
Saí da marginalidade, que ainda é Pessoa eu dei de cara com ela e
uma realidade das pessoas trans ela me chamou pra ir conhecer o
porque muitas não têm acesso a Centro. Eu fui através dela e lá eu
informação, não sabem que são conheci Roberto Maia.
sujeitos titulares de direitos, en- Para mim o Centro foi ma-
tão essa informação precisa ser ravilhoso! Eu só tive coisas boas,
compartilhada e eu só pude ter consegui cirurgia, apartamento,
acesso a isso pelo espaço do Cen- Bolsa Família, através de lá. Fiz
tro de Cidadania LGBT. Foi atra- meu documento de mulher, tudo
vés desse acesso que eu fui bus- lá no Centro. Fiz terapia com uma
cando informações, fiz meu TCC, psicóloga na época de tirar o do-
um interlink entre psicologia e cumento. E para mim tudo isso
direito na defesa e reconheci- foi maravilhoso, porque eu nasci

159
na Paraíba, mas fui criada no Rio Roberto Maia chama a gente.
de Janeiro e nunca esperava que, Só não estou indo agora porque
com mais de 50 anos, eu chega- tem três meses que está fecha-
ria de volta aqui e ganharia um do, mas sempre que tem even-
apartamento. Minha moradia era to lá, ele manda convite e eu
uma preocupação, porque eu vou. Nesta pandemia, eu estou
morava com a minha mãe. E na me sentindo uma mulher dona
minha cabeça eu só voltaria pra de casa. Preencho meu dia fa-
João Pessoa se eu tivesse um lu- zendo comida, arrumando casa,
gar para morar, porque não que- sou muito cuidadosa, sou enjo-
ria ficar na casa da minha mãe. E ada com isso de limpeza, minha
graças a Deus e através do Cen- doença é isso, limpeza, o tempo
tro LGBT que eu consegui. Eu todo com uma vassoura na mão
gosto da minha liberdade, gos- limpando uma coisa, limpando
to de morar sozinha, para mim o outra. Mas emocionalmente me
melhor presente que ganhei foi sinto ansiosa. Esses dias eu esta-
minha casa. Vai fazer três anos va já entrando em depressão no-
agora que estou na minha casa. vamente, sem querer fazer nada,
Ganhei no dia 13 de novembro só ficar na cama, não estava fa-
de 2017. Não demorou nem um zendo comida, e como o Centro
ano. Sou muito grata a Josy, a manda quentinha pra gente, não
Roberto Maia, eles dois me aju- queria saber de nada. Mas de-
daram. O Centro só me deu coi- pois eu me orientei, disse: não!
sas boas, não posso dizer nada ao E voltei ao normal. Moro sozi-
contrário. Para mim foi nota 10! nha, estava querendo ver minha
mãe, mas nesse período não dá.
Até hoje eu sempre vou ao
Centro quando tem reuniões e

160
NOTA FINAL
Links de reportagens e vídeos sobre o Centro da Cidadania LGBT

Link de reportagens sobre o https://www.paraibaradioblog.


Centro de Cidadania LGBT e a com/2018/08/07/pmjp-apresentara-
Coordenadoria de Promoção a em-montreal-politicas-voltadas-
Cidadania LGBT e Igualdade Racial para-populacao-lgbt/

https://www.jornaldaparaiba.com.br/ http://portalvalentina.com.br/site/
vida_urbana/centro-de-cidadania- coordenadoria-lgbt-faz-oficina-
lgbt-e-inaugurado-em-joao-pessoa- sobre-intolerancia-religiosa-e-
nesta-terca.html racismo-em-escola-do-valentina/

https://www.maispb.com.br/267847/ https://portalcorreio.com.br/centro-
oficina-comemora-dia-do-orgulho- de-cidadania-lgbt-recebe-projeto-
lgbt.html cine-contracultura-e-debate-sobre-
visibilidade-bissexual/
http://www.politicasenegocios.
com.br/noticias/joao-pessoa/ https://observatoriog.bol.uol.com.
coordenadoria-lgbt-de-joao-pessoa- br/noticias/coordenadoria-lgbt-
realiza-oficina-na-escola-municipal- realiza-oficina-de-notificacao-
ruy-carneiro-a11711.html de-violencia-para-profissionais-
e-estagiarios-de-psicologia-do-
https://observatoriog.bol.uol.com. centro-de-cidadania-lgbt
br/noticias/coordenadoria-lgbt-
de-joao-pessoa-realiza-oficina-de- https://www.jornaldaparaiba.com.
diversidade-de-genero-para-alunos- br/vida_urbana/coordenadoria-lgbt-
de-pedagogia realiza-feira-de-empregabilidade-
nesta-quarta-feira.html
https://paraiba.com.
br/2018/11/15/342018/ http://www.ufpb.br/antigo/content/
projeto-resisto-da-ufpb-trabalha-
com-popula%C3%A7%C3%A3o-lgbt-
de-jo%C3%A3o-pessoa

161
https://paraiba.com. https://www.youtube.com/
br/2019/05/24/355927/ watch?v=Sfd37d8_QnU

https://www.tanaarea.com.br/ http://g1.globo.com/pb/paraiba/
cotidiano/coordenadoria-lgbt- videos/t/todos-os-videos/v/novo-
destaca-o-dia-internacional-de-luta- centro-de-cidadania-lgbt-fica-
contra-homofobia-e-ressalta-que- no-parque-solon-de-lucena-na-
atendimento-continua-por-telefone/ capital/5029149/

http://www.paraibanoticia.net. https://www.youtube.com/
br/cidadania-prefeitura-de-joao- watch?v=B3uMI4u2wR0
pessoa-promove-debate-sobre-
atendimento-publico-de-saude-da- https://globoplay.globo.
populacao-lgbt/ com/v/7725885/

http://www.blogdoninja.com. Link de reportagens do Programa


br/2020/08/08/centro-de-cidadania- Transcidadania
lgbt-realiza-mais-de-100-mil-
atendimentos-e-muda-vida-dos- https://cristinamonte.com.br/
usuarios-da-capital/ pessoas-trans-vencem-preconceito-
e-assumem-mercado-de-trabalho-
https://www.cbtu.gov.br/index.php/ na-pb-invisivel-para-o-mundo/
pt/joao-pessoa/7836-combate-a-
lgbtfobia-cbtu-realiza-oficina-de- https://www.brasildefatopb.
respeito-coletivo-nesta-quinta-23 com.br/2020/01/31/semana-
da-visibilidade-trans-tem-
http://abc.habitacao.org.br/ encerramento-neste-domingo-02
coordenadoria-de-cidadania-lgbt-
insere-populacao-em-programa- https://www.jornaldaparaiba.com.
habitacional-da-capital/ br/vida_urbana/60-da-populacao-
lgbt-de-joao-pessoa-esta-
https://wscom.com.br/ desempregada-aponta-estudo.html
coordenadoria-lgbt-firma-parceria-
com-unipe-para-atendimento- https://www.jornaldaparaiba.com.
odontologico/ br/vida_urbana/doze-travestis-e-
transexuais-conseguem-emprego-
Link sobre vídeos sobre o Centro de atraves-de-programa-de-apoio.html
Cidadania LGBT e a Coordenadoria
de Promoção a Cidadania LGBT e https://g1.globo.com/pb/paraiba/
Igualdade Racial noticia/2020/01/28/semana-da-
visibilidade-trans-em-joao-pessoa-
https://www.portalt5.com.br/noticias/ comeca-nesta-terca-feira-27.ghtm
paraiba/2019/5/216832-conheca-os-
servicos-oferecidos-pelo-centro-de- http://www.maisjr.com.br/programa-
cidadania-lgbt-em-joao-pessoa transcidadania-em-joao-pessoa-e-
destaque-na-midia/

162
https://www.maispb.com.br/390525/ Links de Vídeos sobre Programa
joao-pessoa-tem-de-feira-de- Transcidadania JP
servicos-para-lgbt.html
https://globoplay.globo.
https://gay.blog.br/noticias/joao- com/v/7337489/
pessoa-cursos-de-idiomas/
https://globoplay.globo.
https://www.tanaarea.com.br/ com/v/5245022/
cotidiano/coordenadoria-de-
promocao-a-cidadania-realiza- https://www.clickpb.com.br/paraiba/
semana-da-visibilidade-trans/ dia-da-visibilidade-trans-emprego-
e-cidadania-sao-os-maiores-
https://g1.globo.com/pb/paraiba/ desafios-276827.html
noticia/2020/01/29/feira-de-
empregos-e-servicos-para- https://www.maispb.com.br/443332/
populacao-lgbt-acontece-em-joao- feira-ja-inseriu-70-pessoas-trans-no-
pessoa-nesta-quarta-feira.ghtml mercado-de-trabalho-em-jp.html

http://g1.globo.com/pb/paraiba/bom-
dia-pb/videos/t/edicoes/v/projeto-
encaminha-pessoas-trans-para-o-
mercado-de-trabalho/6225498/

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