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DIREITO E REVOLUÇÃO
A tradição revolucionária como manifestação e fonte do Poder Constituinte e seus
efeitos na ordem constitucional brasileira
CRATO – CE
2021
ERICK SANTANA BATISTA
DIREITO E REVOLUÇÃO
A tradição revolucionária como manifestação e fonte do Poder Constituinte e seus
efeitos na ordem constitucional brasileira
CRATO – CE
2021
TERMO DE RESPONSABILIDADE AUTORAL
Dedico ao meu filho por nascer, Davi Lucas.
AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, agradeço ao Prof. Jaires de Sa por sua urgente e providente orientação desta
monografia.
Agradeço também a Betânia pela sua prontidão e a Ivanna Pequeno pelas sugestões que me
ofereceu e que muito enriqueceram o presente trabalho.
Finalmente, agradeço a minha família que me apoiou nos momentos difíceis e de angustia por
que passei, principalmente minha mulher, Antonilda e pais, José e Maria.
“Acho que a história do Brasil é um romance sem heróis”. Raymundo
Faoro
RESUMO
This work focuses on the influence of the revolution on the Brazilian constitutional legal
system. Your goal is to verify if there is any influence and in what form. To carry out the
work, an interdisciplinary review of the literature of jurists, historians, sociologists and
political scientists was carried out, seeking to achieve a synthesis to verify the influence of the
revolution in the Brazilian legal system. The work is divided into the following chapters. In
chapter 1, we seek some sociological characteristics of the revolutionary process in general
and its main political and philosophical foundations, especially the liberal and socialist
revolutions. In chapter 2, the concrete historical process of three revolutions is examined: the
American, French and Russian; in addition to verifying some influences on the constitutional
debate. In chapter 3, some consequences and conceptions of the revolution in the legal and
constitutional order are analyzed, bringing contributions from the previous chapters. Finally,
it is conclusively stated that in Brazil the liberal revolutions influenced its constitutional order
with values such as freedom, although the socialist revolution did not influence it in the same
way, being even repudiated; while the word revolution is often used to legally describe coups
d'etat; in addition to having been verified that in Brazil the Kelsenian sense of revolution
prevails, in which any change in the legal system is characterized by legal revolution.
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
1 REVOLUÇÃO. ASPECTOS SOCIOLÓGICOS E FUNDAMENTOS DAS
REVOLUÇÕES.......................................................................................................................13
1.1 ASPECTOS SOCIOLÓGICOS DA REVOLUÇÃO..........................................................13
1.1.1 O PROCESSO REVOLUCIONÁRIO.........................................................................13
1.1.2 CONCEITO SOCIOLÓGICO DA REVOLUÇÃO, VIOLÊNCIA
REVOLUCIONÁRIA E UTOPIA REVOLUCIONÁRIA..................................................16
1.2 FUNDAMENTOS POLÍTICOS E FILOSÓFICOS DAS REVOLUÇÕES.......................19
1.2.1 O PENSAMENTO ARISTOTÉLICO SOBRE A REVOLUÇÃO E A
CONCEPÇÃO TOMISTA SOBRE O DIREITO DE RESISTÊNCIA.............................19
1.2.2 OS FUNDAMENTOS CONTRATUALISTAS E LIBERAIS POLÍTICOS DAS
REVOLUÇÕES.......................................................................................................................21
1.2.3 O TERCEIRO ESTADO DE SIEYÈS, O POVO FRANCÊS..................................24
1.2.4 FUNDAMENTOS DA REVOLUÇÃO MARXISTA RUSSA, OS CAMARADAS
MARX E ENGELS.................................................................................................................27
2 PARÂMETROS HISTÓRICOS: REVOLUÇÃO AMERICANA, REVOLUÇÃO
FRANCESA E REVOLUÇÃO RUSSA................................................................................32
2.1 REVOLUÇÃO AMERICANA E OS FEDERALISTAS...................................................32
2.1.1 HISTÓRICO DA REVOLUÇÃO AMERICANA......................................................32
2.1.2 OS FEDERALISTAS E A REVOLUÇÃO, A RESTAURAÇÃO DA SEGURANÇA
...................................................................................................................................................37
2.2 REVOLUÇÃO E CONTRA REVOLUÇÃO FRANCESA................................................40
2.2.1 REVOLUÇÃO FRANCESA E A REVOLUÇÃO CONSTITUINTE.......................40
2.2.2 O DEBATE ENTRE BURKE, DE MAISTRE E PAINE, REVOLUÇÃO E
CONTRARREVOLUÇÃO....................................................................................................42
2.3 REVOLUÇÃO RUSSA, “TODO PODER AOS SOVIETES”..........................................45
2.3.1 PROCESSO HISTÓRICO DAS REVOLUÇÕES RUSSAS......................................45
2.3.2 CRÍTICA E AUTOCRÍTICA, JURÍDICA E CONSTITUCIONAL, SOVIÉTICA
...................................................................................................................................................48
3 EFEITOS JURÍDICOS E CONSTITUCIONAIS DAS REVOLUÇÕES NO BRASIL53
3.1 3.1 REVOLUÇÃO E SEUS EFEITOS JURÍDICOS E CONSTITUCIONAIS.................53
3.1.1 ANTINOMIA, INEFICÁCIA ANÔMICA E A REVOLUÇÃO JURÍDICA...........53
3.1.2 REVOLUÇÃO: CONCEITO JURÍDICO E EFEITOS NA CONSTITUIÇÃO......56
3.2 AS REVOLUÇÕES NO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.
REVOLUÇÃO COMO EXERCÍCIO DO PODER CONSTITUINTE NO BRASIL E FONTE
HISTÓRICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL..................................................................61
3.2.1 DA INDEPENDÊNCIA AO GOLPE CONSTITUCIONAL MONÁRQUICO.......61
3.2.2 O NASCIMENTO DE UM NOVO REGIME, O REPUBLICANO.........................63
3.2.3 OS GOLPES DITATORIAIS MASCARADOS DE REVOLUÇÃO, “A CULPA É
DOS COMUNISTAS”............................................................................................................66
10
INTRODUÇÃO
esse fato pode fornecer ao jurista melhor compreensão do processo constitucional originário e
do comportamento do direito constitucional em face do processo revolucionário que
acompanhou a Idade Moderna e acompanha de alguma forma o mundo contemporâneo.
Identificar, distinguir e explicar a influência da revolução no ordenamento constitucional do
Brasil é uma forma de relembrar aos cidadãos as conquistas alcançadas pelos antepassados,
nos precaver de golpes de estado e atos perigosos de grupos autoritários e fornecer parâmetros
e referenciais para o processo constitucional atual.
Por fim, o terceiro capítulo trará algumas das principais relações do direito com a
revolução e algumas opiniões a respeito dos efeitos da revolução no mundo jurídico; e a
aplicação das observações feitas ao Brasil, de forma a verificar a existência de autênticas
revoluções brasileiras e de que forma as revoluções afetaram o ordenamento constitucional do
Brasil. Serão observadas principalmente a elaboração da Constituição do Império, da
Constituição de 1881, da Constituição de 1934, da Constituição de 1937 e o Ato Institucional
de 1964. Estas decorreram de momentos de intensa convulsão e algumas se proclamaram
revolucionárias, daí se justificar a análise histórica destas. Entre os dois autores mais
importantes da parte histórica nacional, Paulo Bonavides e Paes Andrade foram os mais
importantes.
13
Por ser um movimento por vezes utópico, por buscar a construção de uma sociedade
perfeita ou ao menos melhor, associa-se muitas vezes, a revolução, como um movimento anti-
científico, irracional, sem método. Não é, contudo, a revolução um movimento que nasce do
desconhecimento da realidade ou do desprezo da sociedade, embora não seja possível negar
que por vezes os líderes revolucionários possam extrapolar os limites do bom senso e cometer
atrocidades. Karl Marx e Joseph Sièys não desprezaram o estudo e a disciplina científica e
filosófica, embora tenham participado ativamente da formação da “tradição revolucionária”,
ao mesmo tempo que influenciaram a filosofia e a ciência. Vladimir Lênin e Leon Trotsky
participaram da Revolução Russa não somente no plano político, mas no plano intelectual e
teórico também.
Não é a revolução algo não planejado, sem método, mas antes se trata de um
movimento que conta com líderes e intelectuais que ocuparam-se de desenvolver formas para
se tomar o poder, confrontar a soberania e mudar o estado e sua constituição, apesar, é claro,
de que no calor do momento e no caos social seja impossível se calcular os melhores
movimentos, o que acaba acarretando uma precipitação do uso intenso da violência,
característica muito ressaltada para se criticar as revoluções. Basta observarmos a Revolução
Francesa, Revolução Americana, Revolução Russa, Revolução Cubana etc., que contaram
com líderes e intelectuais que desenvolveram os ideais e aspirações que iriam insuflar os
grupos a se oporem ao regime que os oprimiam, que percebe-se o quanto as revoluções são
14
Freyre (2009, p. 385) afirma que, enquanto ao sociólogo cabe estudar o processo e a
forma da revolução (sendo seu objetivo o estudo dos processos sociais e alterações culturais e
psicossociais violentas), ao estudioso do Direito, assim como ao economista ou ao psicólogo,
cabe o estudo da substância revolucionária que é extra sociológica. E a partir dessa noção de
que a forma ou processo revolucionário é do estudo da sociologia tentou-se identificar as
características processuais da revolução1. Características essas que mudam de estudioso a
estudioso, pois a depender do cientista, por exemplo, em relação ao período revolucionário,
alguns consideram que a Revolução se prolongou ao longo de todo o século XX e outros que
se encerrou no regime de Stálin.
Prado Jr. (2000, p. 26), em plena ditadura militar conceituou a revolução em termos
marxistas de conflito de classes:
“Revolução” em seu sentido real e profundo, significa o processo histórico assinalado por reformas e
modificações econômicas, sociais e políticas sucessivas, que, concentradas em período histórico
relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade e, em especial, das relações
econômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias sociais.
Essa graduação de fases do processo revolucionário não devem ser tomadas como no
16
sentido marxista de maneira dogmática, pois a revolução possui aspecto camaleônico que
dificulta seu enquadramento regular em teorias ou sistemas racionais perfeitos. As tentativas
de assim proceder, no entanto, não são totalmente inúteis, apenas são às vezes incompletas e
outras vezes extrapolam, pelo que delimitar revoluções específicas se mostra mais útil do que
a criação de teorias genéricas que podem excluir fatos históricos relevantes ou incluindo e
assemelhando todo tipo de fato como de igual relevância, como assemelhar a Revolução
Francesa com os golpes de estado praticados no Brasil.
Salienta Bonavides (2000), para quem a revolução tem diversos conceitos para as
várias ciências humanas, que é difícil dissociar o aspecto político da revolução do aspecto
jurídico estando os conceitos interpenetrados, e aponta para a própria natureza da revolução
como causa para essa interpenetração. O cientista político trata de diversos conceitos da
revolução: o histórico-cultural: revolução seria a descontinuidade histórica, presentes, por
exemplo, nas revoluções científicas que geram novos períodos históricos; o sociológico: seria
a revolução uma mudança não de governo apenas, mas principalmente da estrutura social ou
de classes, como na revolução socialista; o jurídico: seria esse conceito relacionado com a
mudança na ordem jurídica decorrente da mudança pelo poder constituinte originário; e
Político: revolução, nesse sentido, seria algo relacionado a uma mudança institucional ou, de
forma semelhante ao conceito jurídico, uma mudança constitucional, daí este se confundir
com o conceito anterior.
Cita Sztompka (2005) três grupos de definições elaboradas por essas tradições
revolucionárias. O primeiro grupo considera como foco a amplitude e profundidade da
mudança, denotando as revoluções como mudanças repentinas, radicais ou extensas. O
segundo grupo enfatiza a violência, a luta e a velocidade da mudança que será pela violência,
pela força ou pela tomada do aparato governamental. E o terceiro grupo mescla os aspectos
anteriores, e por isso são mais úteis suas definições por suprirem-se as limitações das
correntes anteriores tomadas isoladamente. Como conceito do terceiro grupo do qual Giddens
(2008, p. 443) faz parte, por exemplo, revolução é o “acto de derrubar uma ordem política
existente através de um movimento de massas, recorrendo à violência”. Este conceito é
bastante extenso, mas pouco específico, pois golpes de estado que são de grande número na
história podem facilmente se enquadrar nele.
envolvimento de violência e coerção, sendo este o ponto mais crítico, haja vista que não é
ponto pacífico, pois há, por exemplo, o gandhismo, a “revolução pacífica” e a “revolução de
veludo” que não tiveram a violência como parte do processo de mudança, embora a ameaça
de violência estivesse presente. Em relação à violência, há quem despreze-a como essencial
para o conceito de revolução, como Arendt (1988). Já outros como Burke (1982) e De Maistre
(1955) destacam a violência para atacar a legitimidade revolucionária. O Terror, a Guerra
Civil, o Domingo Sangrento são os episódios destacados para deslegitimar o método
revolucionário entre os contra-revolucionários. Mas não se resumem as revoluções à
violência. Não é esta a sua essência, embora seja inegável que a acompanhe. A sua essência é
a mudança ampla e drástica que pode ser considerada como rápida. Dessa rapidez parece vir a
violência que vai de encontro com a inércia daqueles que resistem à mudança.
Todas as revoluções têm liberté, égalité, fraternité e outros slogans nobres inscritos em suas bandeiras.
Todos os revolucionários são entusiastas, ou até fanáticos; todos são utopistas, com sonhos de criar um
novo mundo do qual a injustiça, a corrupção e a apatia do velho mundo sejam banidas para sempre. São
intolerantes com a divergência; incapazes de concessões; fascinados por metas grandiosas e distantes;
violentos, desconfiados e destrutivos. Os revolucionários são irrealistas e inexperientes em governar; suas
instituições e procedimentos são improvisados. Eles têm a inebriante ilusão de personificar a vontade do
povo, o que significa supor que o povo seja monolítico. São maniqueístas, dividindo o mundo em dois
campos: luz e trevas, a revolução e seus inimigos. Desprezam todas as tradições, a sabedoria herdada, os
ícones e as superstições. Acreditam que a sociedade pode ser uma tábua rasa na qual a revolução será
escrita.
Já Ortega y Gasset (1923), para quem a revolução era uma rebeldia contra os costumes
e começava antes nos espíritos que na rua, pensa de maneira menos violenta a revolução,
maneira de pensar usada principalmente para atacar as revoluções. Importava-lhe mais o
aspecto ideológico da revolução. Mas a visão dele também é negativa em relação a seu
utopismo, sendo que a revolução tem como resultado sua irmã, a contrarrevolução, tão
utópica quanto ela. Há uma contínua luta entre os dois movimentos até que as ideias que as
empolgaram se embotam e enfraquecem, até perceberem os participantes dos dois movimento
antagônicos, ciosos de seus objetivos ideais, que não deve a vida ser condicionada e moldada
pelas normas, ideias ou instituições, mas o oposto, a vida humana deve ser o molde para
aquelas. O homem é o fim, não o meio para os ideais.
19
A resistência do povo contra a tirania foi estudada por pensadores antigos e medievos
como Aristóteles, Platão, Tomás de Aquino. Embora não sejam eles precursores da revolução,
no sentido moderno, forneceram material e argumentos pró e contra a revolução para autores
posteriores como Burke, De Maistre, Thomas Paine, Locke e Rousseau, Thomas Hobbes, para
citar alguns. Nota-se que na História Moderna e Contemporânea existem basicamente ao
menos duas tradições revolucionárias que deter-se-á mais atenção: a revolução burguesa (ou
liberal) e a revolução socialista (ou social). A primeira ocorreu na França e nos Estados
Unidos, e por várias vezes é acusada de ter excluído algumas classes de menor poderio
econômico. A segunda seria a socialista, para alguns já ocorrida na Rússia e para outros ainda
em andamento. Na verdade essa distinção pode também causar confusão e fazer crer que
sempre foram inimigos a burguesia e o proletariado, os liberais e os socialistas, mas a história
é mais complexa que isso. Alianças e trapaças se deram entre essas duas tradições.
2 Na verdade, revolução é a tradução para uma mudança de governo ou golpe de estado em sentido
diferente do que hoje se tem, algo mais próximo de uma rebelião ou conspiração, mas que já possui em si um
germe do sentido moderno da revolução. De acordo com Arendt (1988), uma palavra usada inicialmente por
Platão e estudada por Aristóteles em suas divagações sobre a mudança de governo era μετάβολαί.
3 Veja-se o livro de Neemias: Essa terra multiplica suas messes para reis estrangeiros, que no momento
nos tiranizam por causa de nossos pecados e dispõem a seu arbítrio de nossas pessoas e de nossos animais. Sim,
estamos numa grande aflição (BÍBLIA, Neemias, 9, 37).
21
Tomás (1995) consegue conciliar as duas narrativas e apresentar uma justificativa para
legitimar a deposição dos governantes injustos. Mas apesar disso não parece que haja aqui um
fundamento para a atividade revolucionária tal como a que se formou a partir da Idade
Moderna, pois o que há de patente na abordagem tomista é um direito de resistência 4, direito
de resistir a um governo injusto, mas não a busca por uma mudança mais ampla que atingiria
inclusive a forma de pensar e os modelos de governo e produção de uma forma mais rápida e
ampla, este o tipo de mudança mais próximo da revolução no sentido moderno. O máximo
que esse direito de resistência pode representar para o pensamento sobre a revolução moderna
é como um dos elementos necessários ao movimento revolucionário, sendo que para o Santo
da Igreja, aquele direito existe em uma dialética necessária entre a ira de Deus em face do
pecado do povo e em face da injustiça do governante.
Vale ressaltar que essa associação de Deus e revoltas esteve presente na Revolução
Americana, por exemplo, havendo nos discursos revolucionários referências à proteção de
Deus. Essa invocação, é claro, não é obrigatória, pois há revoluções secularizadas e que
inclusive possuem doutrina que recusa a invocação divina como a revolução socialista
científica. Outro ponto importante é que embora as explicações científicas por argumentos
religiosos comecem a ser afastadas no mundo moderno, não são desprezadas no uso político,
inclusive são mantidas as invocações divinas pelos teóricos e políticos. Tal uso ainda se
mantém, basta observar os preâmbulos das Constituições. Os elaboradores de constituições e
os agentes das revoluções, por mais secularizados que sejam não deixam de citar a proteção
divina, seja por demagogia, seja por crença real. Os representantes constituintes do povo no
Brasil costumam estar “sob a proteção de Deus” ou “sob a invocação de Deus”.
4 O direito de resistência, direito controverso para alguns, pode ser visto como algo presente na
Revolução, mas não se confunde com esta.
22
O contratualismo é um grande movimento ideológico-sentimental que não pode ser posto de lado, sem
mais nem menos, como um conjunto desarrazoado de afirmações. Vistas no sistema geral da cultura em
que se desenvolveram e vicejaram, as teorias de Locke e Rousseau alcançam um alto significado,
representando conjuntos admiráveis de idéias-força de grande sucesso no plano da ação política.
Pensador político essencial, Locke (1998), para quem os governados apenas abdicam
da sua liberdade que lhe é natural em seu próprio benefício, considera esse consentimento
dos governados como o fundamento da comunidade. Deve o cidadão então aceitar a
determinação da maioria que são quem devem decidir conforme o pacto original
(contratualismo) estabelecido entre os indivíduos. A conservação da propriedade, da vida e
da liberdade seriam os principais objetivos dessa união. E caso os governantes não estejam
buscando atingir os fins desejados pelo poder supremo que é o povo, então pode este
substituí-los por outros5. Vê-se na Revolução Americana a evocação das ideias de John Locke
relativas ao contrato social e a necessidade de proteção da propriedade e liberdade.
5 Aqui Deus não se apresenta com sua ira em face dos homens como São Tomás tratava. Na verdade, a
legitimidade do governante nem sequer se baseia em Deus, pois é dada pelo povo. A causa da insatisfação
popular é o desvio de finalidade praticado pelos governantes.
23
poder estabelecido pela convenção dos governados, o que dá legitimidade aos governantes; 3)
o despotismo, o poder arbitrário que criou a diferença entre senhores e escravos. Aqui se
observa um processo revolucionário descrito por Rousseau, tendo a desigualdade como sua
causa. Essas desigualdades são também parte da evolução e do progresso da humanidade. No
último estágio desse progresso, o despotismo, a revolução torna-se emergente e legítima ante
a corrupção do governo tirânico e violento que gera um novo estado natural em que todos são
iguais. O que conclui Rousseau é que a desigualdade não é legítima, e somente no estado de
natureza havia autenticidade, liberdade e virtude, diferentemente do que ocorre com o homem
moderno que vive da reputação e dos vícios, na opressão. A revolução então é considerada
pelo autor como “jurídica” e a sua legitimidade baseia-se apenas na força e violência que os
oprimidos possuem para depor quem contra eles foi violento.
Hobbes (2003) acreditava que a guerra dos homens entre si, cada um pensando em si,
era uma condição permanente que exigia o estabelecimento de um governo que imporia pela
força a ordem. O problema é que há uma certa incoerência do pensador ao afirmar que a razão
impunha a todos a busca pela paz e, no fracasso dessa, a preservação própria, inclusive por
meios violentos. Ao não ser que ele se refira a uma dialética entre essas duas leis da razão em
confronto com um instinto de violência, não há como achar coerência nos fundamentos de
Hobbes para a criação do Estado em tal estado permanente de guerra ao mesmo tempo
convivendo com o desejo da paz, pois a guerra é movimento destrutivo que destrói ou
constrói para destruir, o que levaria todos à autodestruição e auto corrosão social. Que
contrato é possível entre estes indivíduos que se atacam e se defendem contínua e
mutuamente? Quem assegurará ao contrato sua validade? Nenhuma constituição
verdadeiramente estável seria possível e o corpo político seria exageradamente mutável ou
inexequível, pois não haveria interesse real de estabilidade e de paz, pois o interesse próprio
individual acabaria por sempre prevalecer.
efetivo, embora seja eficiente para um discurso político contra a tirania ou teocracia ao tirar
Deus e a vontade discricionária individual da legitimidade e colocá-la na mão do povo, é falha
no sentido que as vontades de todos os governantes não é vinculada ao governante como num
contrato entre particulares, e os termos deste contrato podem ser injusto para aqueles que não
decidiram escolher os seus termos, o que nos leva a crer que essa analogia não explica a
legitimidade de forma suficiente, embora louvável ou tolerável ante o contexto histórico de
Locke.
Rousseau (1991) inicia seus argumentos acerca do contrato social a partir de uma
constatação não provada, a do “bom homem selvagem”. Para a ciência da época este até
poderia ser plausível, mas não mais se sustenta nos dias atuais. Diante disso, percebe-se que o
princípio de que parte Rousseau vicia na fonte todo seu argumento posterior ao criar uma
novela de formação do contrato social a partir de um arquétipo inexistente, assim como
Hobbes ao afirmar a existência de um estado de guerra constante. A analogia do contrato leva
a crer que as partes estão em situação de igualdade e que há um meio de garantir sua eficácia,
mas nem sempre isso se dá. Tal argumento até pode ser louvável e ter seus méritos retóricos
quando utilizado para justificar que o poder não é uma concessão divina a um homem ou
grupo de homem e atacar a tirania. Mas Hobbes também usou desse argumento para defender
a monarquia e sua arbitrariedade, bem como não descartou a possibilidade de um
representante de Deus entregar o poder a um homem. Então não é o contratualismo um
argumento sempre contrário a monarquias e tiranias. A constituição como contrato ainda hoje
tem força persuasiva, talvez por ser uma forma simples de explicar algo complexo por meio
de um conceito vulgarmente conhecido. Mas esse raciocínio contratualista por seu próprio
método de simplificação da realidade é o seu vício.
Sieyès (2001), precursor dos estudos sobre o poder constituinte, propôs a resolver três
perguntas: primeiro, o que seria o Terceiro Estado; por segundo, o que era na ordem política
antes da Revolução Francesa; e por último, o que ele, o Terceiro Estado, pedia. Às perguntas
responde que o Terceiro Estado é tudo, antes era nada e pedia para ser algo. Em seguida,
25
examina se essas são as respostas certas, algumas questões importantes para que o Terceiro
Estado seja algo e outras questões importantes no período que antecipa o ápice revolucionário
francês. À pergunta do que é necessário para a subsistência e prosperidade da nação responde,
os trabalhos particulares (a agricultura, a indústria, o comércio e os serviços liberais,
científicos, entre outros) e as funções públicas (compostas pela Igreja, os militares, a
Administração estatal e a classe jurídica).
Criticou, Sieyès (2001), a classe privilegiada, ocupada pela nobreza, que afastava o
Terceiro Estado das funções públicas, privando-a da livre concorrência, sob o fundamento de
que era útil o privilégio de ordens. Indagava-se o que seria o Terceiro Estado sem as ordens
de privilégios, e a resposta dada foi: tudo, pois seria aquele indispensável para a sociedade e
sem os privilegiados a sociedade seria melhor. Apresentava a nobreza, a ordem dos
privilegiados, como uma casta de ociosos que consumia o que o povo produzia, um povo à
parte da nação, cujos direitos políticos eram exercidos também à parte da nação, com
procuradores que em nada satisfaziam o interesse geral, mas tão somente o interesse
particular. Em conclusão, para Sieyès (2001, p. 4-5), que exclui a nobreza do conceito de
nação, este como um “corpo de associados que vivem sob uma lei comum e representados
pela mesma legislatura”, o “Terceiro Estado abrange, pois, tudo o que pertence à nação. E
tudo o que não é Terceiro Estado não pode ser olhado como pertencente à nação. Quem é o
Terceiro Estado? Tudo”. Logicamente, o conceito de nação é injustificável, pois exclui a
nobreza do Terceiro Estado ao mesmo momento que considera este como tudo, mas a
argumentação é artifício estilístico e político para deslegitimar a nobreza.
Sieyès (2001) afirma a impossibilidade de a nação ser livre sem que o Terceiro Estado
também o seja. E não seria por privilégios, mas por direitos pertencentes a todos os cidadãos
que haveria liberdade. Ataca, o abade, a aristocracia, que se via como de sangue nobre e era
privilegiada por certas leis, exceções da lei comum aplicada aos não privilegiados, a qual para
ele implica na necessidade pela classe desprivilegiada de suportar vários infortúnios por não
terem privilégios. E exclui aqueles que obtêm o título de nobreza 6 ou cuja nobreza seria
recente, favorecidos pelos mesmos privilégios dos nobres de sangue, da ordem comum, do
interesse geral, do povo. Os privilégios se opõem ao direito comum.
Sieyès (2001) não via, tanto no Poder Legislativo como no Executivo, qualquer
representação do Terceiro Estado. No legislativo, como no executivo, a usurpação do poder
6 A nobreza podia ser adquirida mesmo sem que houvesse um passado ou sangue nobre. Muitos
burgueses ricos adquiriam esse tipo de nobreza.
26
pela Igreja, os militares e juízes gera uma “aristocracia” que reina. Além disso, o regime não
era, na verdade, monárquico, pois quem reinava verdadeiramente e quem exercia a função
pública eram os membros da corte que compunham a aristocracia francesa. Via Sieyès (2001,
p. 12) “A aristocracia, sozinha, combatendo ao mesmo tempo, a razão,a justiça, o povo, o
ministro e o rei (...)”. E concluiu que os direitos políticos do Terceiro Estado eram nulos, pois
não haviam representantes para o povo.
Três pedidos são feitos por Sieyès (2001, p. 16-25) em nome do Terceiro Estado, o
primeiro é “Que os representantes do Terceiro Estado sejam escolhidos apenas entre os
cidadãos que realmente pertençam ao Terceiro Estado”. O segundo pedido é que “seus
deputados sejam em número igual ao da nobreza e do clero”. Pede por último em favor do
Terceiro Estado a emissão de votos “não por ordem mas por cabeças”, pelo que desejava
assim que o povo tivesse semelhante influência que possuem os privilegiados, mas reconhece
que estes não estão interessados nessa igualdade política. Para Sieyès (2001, p. 45),
insatisfeito com o esquema político francês em que os privilegiados apenas defendiam seus
próprios interesses, também era contrário às tentativas de imitação da constituição inglesa
defendida por alguns como adequada. Clamava ele para que os franceses tomassem uma
constituição que servisse de modelo para as nações e assim interrogava:
Em toda nação livre — e toda nação deve ser livre — só há uma forma de acabar com as diferenças, que
se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria nação. Se
precisamos de Constituição, devemos fazê-la. Só a nação tem direito de fazê-la. Se temos uma
Constituição, como alguns se obstinam em afirmar, e que por ela a assembléia geral é dividida, de acordo
com o que pretendem, em três câmaras de três ordens de cidadãos, não podemos, por isso deixar de ver
que existe da parte de uma dessas ordens uma reclamação tão forte, que é impossível avançar sem julgá-
la. E quem é que deve resolver tais divergências?
7 Havia na época uma visão pelos intelectuais em ver o mundo como uma máquina, o mecanicismo, pelo
que Sieyès também usa essa analogia para explicar a sociedade.
27
Afirma Garaudy (1967, p. 53-54), biógrafo de Marx, três fontes da qual o filósofo
alemão se serviu para o seu pensamento: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o
socialismo francês. E a chave do pensamento de Marx é “a noção de alienação do trabalho à
qual convergem as três fontes”. Mas pode-se ainda discernir quatro fontes do conceito de
alienação, “o problema da relação entre a atividade humana e os objetos e instituições que ela
criou”: 1) a fonte econômica, proveniente dos economista e que considera alienação “a
transmissão a outra pessoa de uma propriedade”, como a venda; 2) a fonte jurídica que trata
da alienação como “a perda da liberdade originária, sua transferência à sociedade pelo
contrato social”, no sentido dos contratualistas; 3) a fonte filosófica, advinda de Fichte, para
28
quem a “alienação é o ato pelo qual o sujeito estabelece o objeto”; e 4) a fonte teológica que
trata a criação do mundo por Deus como alienação8.
Marx e Engels (2005, p. 42-45) acusam a burguesia como responsável por destruir as
“relações feudais, patriarcais e idílicas” e fazer “da dignidade pessoal um simples valor de
troca”. Remete, os pensadores socialistas, a um passado em que havia liberdades diversas,
antes da revolução burguesa, mas que foram substituídas pela liberdade comercial tão
somente. Acusam aos burgueses de diversos males: “Fez do médico, do jurista, do sacerdote,
do poeta, do sábio seus servidores assalariados”; “rasgou o véu do sentimentalismo que
envolvia as relações de família e reduziu-as a meras relações monetárias”. Trata-a como
classe exploradora que busca enraizar-se em todo o planeta e que criou por isso a
interdependência comercial, cultural e industrial entre as nações, cada vez mais dependentes
do capitalismo burguês. “A burguesia submeteu o campo à cidade”, suprimiu “a dispersão dos
meios de produção, da propriedade e da população”, “criou forças produtivas mais numerosas
e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto”. Mas em seu tempo, os
socialistas acusam o sistema burguês em crise, com o objetivo de se recuperar das crises, de
destruir violentamente a própria força produtiva, os operários, bem como de conquistar mais
mercados explorando mais intensamente os antigos mercados.
Marx e Engels (2005, p. 46-51) alertavam que a própria burguesia produziu os seus
coveiros, os proletários, estes brutalizados pela burguesia industrial da época. Primeiro
vitimados pelos fabricantes, depois explorados por “outros membros da burguesia: o senhorio,
o varejista, o penhorista etc.”. Passavam os explorados por diferentes etapas: primeiro
lutavam isoladamente, depois uniam-se os operários de uma fábrica contra o patrão, após isso
formavam associações em defesa do salário, contra a depreciação causada pelas instabilidades
do capital e o uso mais comum das máquinas. Os motins e insurreições alastraram-se então. E
a união dos revoltosos era o verdadeiro triunfo proletário que avançava graças aos próprios
avanços da indústria humana, a ferrovia e o telégrafo. Também aproveitavam-se os operários
da cisão e luta constante da burguesia contra a aristocracia, dos burgueses de nações
diferentes e com burgueses não-industriais contra industriais. A própria burguesia e o lúmpen-
proletariado perdiam membros para a classe revolucionária, a classe proletária 9. Classe esta
que considerava o direito, a moral e a religião (superestrutura) como “meros preconceitos
burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses”; cuja missão para
conseguir o poder seria “destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada”, o
que confrontaria diretamente o liberalismo econômico; e que em cada nação deveria liquidar a
burguesia nacional.
Marx e Engels (2005, p. 51-59), acerca dos comunistas, destacam que seus interesses
são os mesmos do operariado, distinguindo-se apenas porque sempre defendem os interesses
operários independentemente de nacionalidade e fase revolucionária. Defendem-nos, também,
das acusações de abolição da pátria, da religião, da família, do direito e dos costumes.
Prevêem a espoliação de todo o capital burguês pelos proletários. E é da revolução proletária,
segundo os marxistas, a única forma de acabar com a opressão capitalista, que surgirá a nova
sociedade, uma sociedade sem classes, portanto, sem opressão. Esse sentido da revolução irá
superar a visão liberal anterior e irá demarcar uma nova forma de enxergar a revolução. De
Karl Marx e Friedrich Engels provém a forma de pensar predominantemente o processo
revolucionário socialista na Rússia, onde se operou uma revolução socialista, mas que não
seguiu uma ordem propugnada por Marx.
Trotsky (1980, p. 36-37) adverte que o regime soviético de sua época não era sequer
“socialista, mas transitório entre o capitalismo e o socialismo, ou preparatório para o
socialismo”. Pois socialista é o regime anterior ao comunista, este o estágio final em que não
haveria mais lutas de classes, pois cessadas a desigualdades. Cabe à constituição socialista ser
uma norma com o fim último de alcançar aquele estado de coisas em que Karl Marx
acreditava, a humanidade há de alcançar necessariamente, pois decorre de uma necessidade
histórica.
Outro ponto importante para o marxismo foi a do parceiro intelectual de Karl Marx,
Engels (1984, p. 191) que tinha a seguinte concepção do estado que em muito influenciou o
regime soviético:
O Estado não é, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é "a
realidade da idéia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um
produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de
que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por
antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes
com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril,
faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o
choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima
dela se distanciando cada vez mais, é o Estado.
Com tal concepção é que Lênin (1970, p. 9) se insurgiu asperamente contra aqueles
que considerou terem desviado o marxismo, como o socialista Kautsky. Ele acusava estes de
terem tomado o estado como “órgão de conciliação das classes”, o que para o líder socialista
era inconciliável com a doutrina marxista que, tomando a concepção engelsiana, não pode
aceitar o estado como capaz de conciliar os interesses de classes distintas, mas apenas atenuar
o conflito que não pode ser resolvido senão pela revolução proletária. O líder soviético buscou
seguir os ensinamentos marxistas, defendendo o socialismo em âmbito político e intelectual.
Em sua defesa do regime socialista implantou uma ditadura, acreditando, assim, estar
realizando a ditadura do proletariado, o que em sentido marxista seria uma democracia, o
governo da massa de trabalhadores. No entanto, essa ditadura acabou se revelando mais uma
das atrocidades históricas que a humanidade foi capaz de realizar.
31
32
Wood (2013, p. 24-34) narra que em 1763 o “Tratado de Paris selou a supremacia
britânica sobre a metade oriental da América do Norte” e pôs fim à Guerra dos Sete Anos;
entre a metade e meados do século XVIII, o crescimento e os movimentos populacionais cada
vez mais rápidos tornaram-se a base da mudança de postura com que a Grã-Bretanha via as
suas colônias, além disso, a faixa de solo usada no Leste das colônias americanas inglesas
começou a dar sinais de exaustão, o que fez aumentar o número de colonos em todas as
classes a buscarem terras ao Oeste. As consequências disso foram a falta de controle do
estado sobre os colonos migrantes, o que ocasionou o predomínio de ilegalidades, e a
“fragmentação de lares, igrejas e comunidades”.
Foi a chegada em 1760 de Jaime III ao trono inglês, para Wood (2013, p. 41-63), que
marcou o fim do delicado equilíbrio anglo-americano. O novo rei ao realizar decisões
políticas erradas, embora bem intencionadas de “limpeza política”, teria causado um
rompimento com as convenções políticas assumidas pelos seus antecessores. Contribuíram
também, para o desequilíbrio, o aumento do caos político inglês entre whigs10 e tories11,
principalmente com a desconfiança contra ministros que fossem apoiados pelo Parlamento, e
sobretudo os whigs, assim como a escolha de líderes, constantemente trocados, que se
mostraram desastrosos, como lorde Chatham. Soma-se a tudo isso o aumento de revoltas
internas na Grã-Bretanha e na Irlanda com reivindicações contra o sistema político vigente.
Tornou-se imperioso algumas medidas do governo em relação às colônias, como a criação de
novos governos na América e da reserva indígena nos Apalaches com o objetivo de aproximar
os colonos do sistema mercantil e proteger a região de invasores, o que não ocorreu. A forma
apressada de reforma fez terras ocupadas por colonos, por exemplo, tornarem-se reservas; e
aumentou a sede de especuladores que negociavam para estender para mais ao Oeste a linha
de divisão das reservas. Além disso, protestantes temiam que o rei pretendesse criar uma
província católica na região. Houve ainda um aumento drástico de leis comerciais
burocráticas, aumento de taxas de alfândega e acréscimo do poder de fiscalização
alfandegário que aumentaram ainda mais as queixas dos colonos. A extensão do imposto
sobre selos sobre papéis como jornais, documentos legais, anuários, entre outros foi o último
golpe ao qual os colonos responderam com mais força.
ministro Grenville do governo inglês, a baixa no preço do tabaco, seguida de uma crise de
crédito foram incentivos ao descontentamento do povo americano em face da monarquia. A
primeira rebelião organizada ocorreu nesse período em que houve a instituição da Lei da
Moeda (1764)12, Lei do Açúcar (1764)13, a Lei do Selo (1765)14, leis que foram instituídas sem
que fosse dado ao povo americano o direito de opinar, o que tentaram fazer por meio de uma
petição enviada sem qualquer resposta ou consideração pela monarquia. Associações secretas,
como Os Filhos da Liberdade que promoviam encontros para estudar as obras políticas,
protestar por mais direitos, promover campanhas anti-britânicas etc., realizaram protestos e
atos de descumprimento da lei apoiados pelo próprio poder legislativo instalado nas colônias.
Havia questionamentos acerca da relação constitucional entre metrópole e colônia.
Como reação dos ingleses houve a revogação da Lei do Selo e a criação de três
tribunais superiores na colônia, uma secretaria de Estado para os assuntos norte-americanos, o
Conselho Aduaneiro Americano subordinado ao Tesouro e houve a transferência da
concentração do Exército do oeste para a área costeira, sendo os colonos responsáveis por
sustentá-lo. Essa última medida foi infeliz, pois contribuiu para o estado caótico no oeste. No
final da década de 1960 o governo e os colonos atritam-se e ocorrem na colônia atividades
panfletárias15, boicotes, manifestações declarando a inconstitucionalidade das taxações sem
representatividade, conflitos entre tropas e civis16, denúncias diárias contra as autoridades. O
ambiente respirava pólvora. Medidas do ministro Lorde North evitaram a explosão por um
curtíssimo período de dois anos. Contudo, não impediu episódios de resistência a medidas do
governo, declarações de afronta a direitos dos americanos e discussões sobre a independência
das colônias. A promulgação da Lei do Chá que tentava impedir a falência da Companhia das
Índias Ocidentais piorou ainda mais a situação ocasionando a Festa do Chá, a destruição da
carga de chá por patriotas americanos em 1773. Como retaliação da metrópole foram
elaboradas leis limitando o poder político da colônia, exigindo reparos à destruição do chá,
permitindo confisco de propriedades para alojar tropas, eram as chamadas Leis Coercitivas.
12 Que proibia as colônias de emitir papel-moeda com a intenção de controlar a crise financeira.
13 Impunha adicionais à taxa sobre os impostos sobre o açúcar.
14 Lei que taxou papéis impressos, como cartas, jornais, revistas, livros.
15 Entre os panfletos mais conhecidos ficou Cartas de um seareiro da Pensilvânia, de John Dickinson;
Considerações sobre a capacidade de lançar impostos, de Daniel Dulany.
16 O “massacre de Boston” foi o ponto crucial da presença de tropas inglesas na colônia.
35
regime vigente acreditavam que a representação por cada representante se estendia para toda a
nação e não apenas para a região da qual provinha o representante. Outro aspecto do debate é
sobre a soberania do Parlamento sobre a colônia. Os colonos aceitavam a soberania do
Parlamento, mas não aceitavam impostos sem a participação de sua representação. Uma vez
que os norte-americanos aceitavam a soberania do Parlamento, não haveria, para a metrópole,
sentido em dividir a autoridade imperial sobre alguns assuntos, ou os colonos eram parte da
Grã-Bretanha, sujeitos a sua autoridade ou não, pois não havia como serem sujeitos apenas no
que escolhessem ser, pois estariam se tornando a sua própria autoridade ao escolher em quais
assuntos deveriam ser governados17. Além disso era incompreensível à época a soberania de
dois parlamentos, não sendo possível haver um parlamento americano e outro na metrópole.
Sendo assim, somente a independência poderia garantir uma coerência constitucional, pois se
não era possível dois parlamentos para uma mesma nação, haveria um parlamento para uma
nova nação.
Thomas Jefferson e John Adams em 1774, segue Wood (2013, p. 72), argumentavam
que somente as assembleias legislativas das colônias tinham soberania na América e a única
ligação com a Inglaterra era por intermédio do rei. Nesse mesmo ano, as Leis Coercitivas
tiveram início ao mesmo tempo que surgiram vários entes de governo informais, como
comitês municipais e congressos provinciais, competindo com os governadores reais. Os
colonos organizaram um congresso entre as 12 das 13 colônias (a Geórgia não participou)
chamado Congresso Continental da Filadélfia (Congresso Continental Constitucional) do
qual teve como resultado uma petição de protesto contra o rei Jorge como o destinatário, o
qual embora concedeu alguns privilégios ao colonos, também aumentou o número de
soldados na América. Os colonos e os soldados começaram a entrar constantemente em atrito,
o que resultou em um Segundo Congresso da Filadélfia, de que até a Geórgia participou, e
apenas reiterou a petição anterior ao rei que decretou estado de rebeldia das colônias. Thomas
Paine panfletava seu incendiário Senso Comum que era lido pelos colonos cada vez mais
ávidos por mudanças, separação entre a colônia e o império.
17 Era a teoria política inglesa da época crente na ideia de que somente havia uma autoridade
incontestável, indivisível, suprema e final dentro do estado, não sendo possível outra. A Lei Declaratória de 1766
deixa isso bem explícito. Além disso, era inconcebível que o Parlamento se sujeitasse à Colônia, pois era um
ente reverenciado pelos ingleses que o tratavam como um órgão que limitava os excessos da realeza. O que os
norte-americanos não aceitavam era a ideia de que o Parlamento era ilimitado em poderes, apesar de aceitar que
era soberano.
36
pensar dos norte-americanos que não viam mais no monarca um ser legitimado por Deus,
sendo o protestantismo e o deísmo, ao lado do iluminismo, importantes movimentos no
processo de deslegitimação da monarquia e transferência da titularidade do poder constituinte
para o povo.
uma vez que tirava do Congresso o direito de instituir taxas e impostos, o que tornava
impossível a manutenção e pagamentos de dívidas da União. Além disso, não haveria
Suprema Corte ou Poder Executivo Federal e então foram feitas reuniões para realizar
emendas.
O federalista Hamilton (1993, p. 93) acreditava que o povo americano foi destinado a
decidir de forma correta, sob pena de desgraça de toda a humanidade, se “são as sociedades
dos homens realmente capazes de instituir um bom governo a partir da reflexão e da escolha,
ou estão fadadas a depender para sempre do acaso e da força em suas organizações
políticas?”. Jay (1993, p. 98) ao defender a união das colônias lembra ao seus interlocutores
remetendo-os à revolução:
Até hoje prevaleceram sentimentos similares entre homens de todas as ordens e seitas. Para os nossos
propósitos gerais, temos sido uniformemente um só povo, cada cidadão individual gozando em toda parte
dos mesmos direitos, privilégios e proteção nacionais. Como uma nação, fizemos paz e guerra; como uma
nação, formamos alianças, firmamos tratados e participamos de vários pactos e convenções com Estados
estrangeiros.
Jay (1993) também coloca a garantia da segurança, tanto contra contra perigos
externos como internos, como um dos principais fatores que o povo deve dirigir a atenção e
39
argumenta que a união das colônias em um governo nacional torna mais resistente aos perigos
da guerra justa ou injusta e dissidências entre estados vizinhos da América motivadas por
disputas comerciais, pretensões políticas ou pessoais. Toma, o federalista, como exemplo, em
relação à segurança contra guerras externas, a Grã-Bretanha que se não fosse unida não teria a
segurança militar e o poderio bélico que à época possuía, pois as ordens seriam destoantes e
os recursos escassos. Rivalidades internas também são indicadas como perigos contra o povo
ao qual a união da América em um governo uno seria um forte fator da paz e segurança.
Outros pontos importantes levantados são sobre a possível dissidência dos estados por causa
da divisão das terras a Oeste obtidas após a Revolução Americana e revertidas para a
propriedade da União que teriam, com a separação dos estados, que serem redistribuídas; e a
questão do rateio da dívida pública da União entre os estados que provavelmente seria
conflituosa com uns suportando encargos mais pesados que outros. Observa-se uma forte
apreensão quanto à possibilidade de guerras e revoltas deflagradas pela separação dos Estados
Unidos.
A União para os federalistas era vantajosa ao povo americano e deveria ela ser
preservada pela constituição, sendo que conforme Hamilton (1993, p. 201):
Os principais objetivos a serem atendidos pela união são: a defesa comum dos membros, a preservação da
paz pública, seja contra convulsões internas ou ataques externos, a regulação do comércio com outras
nações e entre os Estados, a superintendência de nosso intercurso político e comercial com países
estrangeiros.
We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure
domestic Tranquility, provide for the common defense, promote the general Welfare, and secure the
Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the
United States of America.
Na França do século XVI ao XVIII acreditava-se em leis divinas que os próprios reis
não podiam sobrepor. Mas, como pergunta Gilissen (1995, p. 304-305), “o que fazer se o rei
violasse as leis divinas?”. Uma das soluções para os monarcômacos19 era matar o rei, o que foi
executado algumas vezes20. No século XVIII, tentou-se uma revolução. A Revolução Francesa
teve resultados que tiveram reflexo na experiência constitucional mundial e brasileira, assim
como em muitos movimentos de insurreição. De forma sintética, a Revolução Constituinte
Francesa21 seguiu a seguinte linha temporal:
No século XVIII, conta Vovelle (1994) a França ainda era uma nação camponesa,
feudal, e atravessava um período de carestia e de crise dos meios de subsistência com imensa
população de miseráveis; além disso havia a opressão do imposto senhorial sobre a terra que
incluíam o foro, o champart22, taxas etc.. A sociedade era composta basicamente das
seguintes ordens: o clero, a nobreza23 e o Terceiro Estado (a burguesia 24). O absolutismo,
sistema político em que o Estado representado pelo rei possui autoridade máxima, era
mantido por uma monarquia justificada divinamente e que juntamente com o feudalismo e o
equilíbrio das ordens acima compunham o ancien régime. O monarca também não se
mostrava uma pessoa adequada ao posto que ocupa por suas características: timidez, tibieza,
ausência de carisma. Na década de 1780 houve uma estagnação do preço do trigo e
superprodução vitícola que prejudicaram a economia, assim como um acordo da França com a
Inglaterra que prejudicaram os tecelões franceses.
Entre 1787 e 1789 ocorreu algo chamado por alguns de ‘pré-revolução’, uma
revolução aristocrática, em que nobres e parlamentares buscaram reformas, mas mais para
manterem seus privilégios do que para manterem a monarquia; nesse período ocorreram
reformas buscando amenizar a situação de crise com entrada e saída de ministros; em Agosto
de 1788 foram convocados os Estados Gerais para maio de 1789. Em março de 1789 foram
realizadas as eleições para os Estados Gerais; em maio foi inaugurada a sessão dos Estados
Gerais. O Terceiro Estado passou por vários nomes: Comunas, Assembleia Nacional e
Assembleia Nacional Constituinte. Em junho de 1789, o Estado ainda tentou restabelecer o
poder sem sucesso, ante a oposição do Terceiro Estado que comprometido em estabelecer a
Constituição lançou as bases de um novo poder.
(1995, p. 244-249) são aspectos do direito da época moderna que se iniciam no século XIV e
seguem até à Revolução Francesa, ponto de ruptura brutal entre os “tempos modernos e a
época contemporânea”. As consequências mais abrangentes disso são a formação de um
direito baseado na lei, no predomínio da escrita no direito e na unidade do direito dentro de
um estado soberano contemporâneo, algo que pode-se observar muito bem no direito
brasileiro. No Brasil predomina a lei escrita nacional sobre as outras fontes jurídicas.
pregavam supostos princípios constitucionais e democráticos ingleses, mas que não foram
verdadeiramente recepcionados ou legitimados pela Inglaterra. Tais seriam os princípios de
escolher e depor os próprios governantes, bem como o de estabelecer um governo próprio. Na
verdade o que realmente legitimava o poder do monarca era um direito divino, que inscrito na
constituição, legitimava a transmissão do poder por sucessão hereditária e não por escolha
democrática ou eleitoral do monarca, defende o autor. Exaltava-se Burke com o fato de que
não eram verdadeiramente válidos os princípios constitucionais do ministro Price para a
Inglaterra. Também negava qualquer influência da Revolução Inglesa para a Revolução
Francesa.
Las circunstancias del mundo cambian constantemente, y también cambian las opiniones de los hombres;
y como a quien se gobierna es a los vivos, y no a los muertos, son los vivos los únicos que tienen algún
derecho en él. Lo que puede considerarse adecuado y juzgarse inoportuno en una época, puede
considerarse erróneo juzgarse inoportuno en otra. En esos casos, ¿quienes han de decidir, los vivos o los
muertos?
Ao argumento de Burke de que Luís XVI era um rei moderado, Paine (1984) defende
45
que em nada isso alterava o fato de que o despotismo hereditário da monarquia poderia
ressuscitar em um sucessor. Para este, Burke confundia a revolução como um ataque não ao
despotismo, assim como aos princípios despóticos, mas ao rei que ocupava o poder, a pessoa
titular do poder.
Em janeiro de 1904 eclode a guerra contra o Japão por razões expansionistas da Rússia
que avançava seu território para o Extremo Oriente. Durante o ano de 1904 houveram ataques
terroristas, manifestações estudantis e greves operárias, e no fim do ano os liberais russos
realizaram encontros para apoiar reformas constitucionais, as ‘campanhas dos banquetes’. Em
1905, a desordem chegou ao auge com o Domingo Sangrento em 9 de janeiro. Os liberais
unidos aos zemstva31, sindicatos, grupos provenientes de greve, movimentos estudantis e
camponeses acuaram a autocracia que não conseguia mais manter a ordem, o que levou ao
Tratado de Portsmouth, o acordo de paz com o Japão. O ápice da revolução liberal foi o
Manifesto de Outubro (1905) de Nicolau II, o reconhecimento de proposta constitucional e a
31 Órgãos separados da burocracia autocrata que viviam em conflito com aquela e que eram eleitos.
Empregavam no início do século XX, cerca de 70 mil profissionais com simpatias radicais contra o regime.
47
Com a Lei Fundamental de 1906 ficou estabelecida ainda a autocracia, com duas
Dumas que apesar de serem órgãos de consulta do autocrata, possuíam poderes limitados e
foram logo dissolvidas. O que houve de benéfico foi o fato de as Dumas terem servido de
plataforma política, preparando e criando a classe política. A economia russa em foi reforçada
por com um grande empréstimo e a expansão industrial que acarretou aumento da população
operária, mas não com aumento da agitação trabalhista. Entre a revolução e 1917, o regime
político manteve-se, uma classe política liberal desenvolveu-se, os revolucionários
continuavam sendo perseguidos, Piotr Stolípin promovia uma reforma agrária para amenizar
os ânimos (semelhante a tentativa de arrefecimento da ebulição social de Nicker na Revolução
Francesa). Em 1917 a autocracia estava em estado precário, o que se verifica com a
fragilidade da estrutura burocrática e política, assim como a demonstração de tibieza da
própria família real e do autocrata Nicolau, assim como pela pressão da Grande Guerra; com a
queda da autocracia, duas revoluções correm, a da elite e a popular, representadas pelo ‘poder
dual’, o Governo Provisório e o Soviete de Petrogrado, um arranjo provisório à espera da
convocação de uma Assembleia Constituinte.
características do direito russo desde a Idade Média são o caráter sobretudo administrativo do
direito, sua erudição e a aplicação dos costumes locais em relação ao direito privado. Estas
características explicam em parte o sistema jurídico soviético mesmo ele sendo um sistema
contrário ao regime político que o antecede. As primeiras medidas tomadas pelos
revolucionários que assumiram o poder foram a “nacionalização das terras e das indústrias, a
supressão do direito de sucessão, supressão global do antigo direito e dos antigos tribunais”.
32 O próprio autor cita como exemplo a preconização de Tolstoi para o desaparecimento do direito e o
surgimento de uma sociedade baseada na caridade cristã e no amor.
49
Gilissen (p. 227-228), acerca do direito socialista, aponta como suas características: 1)
a concepção instrumental do direito com a função de edificação do comunismo 33, pois o
socialismo é um mero estágio para o comunismo; 2) o monopólio político do partido
marxista-lenilista34, sendo o Partido Comunista da União Soviética o partido exclusivo da
nação socialista; 3) a indissociabilidade do estado e do direito, que ao alcançarem o seu
objetivo que é a construção de uma sociedade comunista, desaparecerão; 4) e a exclusividade
da lei como fonte do direito, sendo a lei a vontade do povo35.
Pasukanis (1989, p. 16), apesar de crítico dos conceitos abstratos e genéricos do direito
ocidental, assume que para o direito soviético eles são importantes e inclusive faz
questionamentos fundamentais acerca da teoria geral do direito e seus conceitos. Acerca da
teoria da norma jurídica de Kelsen, ele é ferino:
Uma tal teoria geral do direito, que não explica nada, que a priori dá as costas às realidades de fato, quer
dizer, à vida social, e que se preocupa com as normas, sem se preocupar com as suas origens (o que é uma
questão metajurídica!), ou de suas relações com quaisquer interesses materiais, não pode pretender o
título de teoria, senão o de teoria do jogo de xadrez. Uma tal teoria nada tem a ver com a ciência. Esta
"teoria" não pretende analisar o direito, a forma jurídica enquanto forma histórica, pois não visa a estudar
a realidade. É, por isso, para empregar uma expressão vulgar, que não há muito que se possa tirar dela.
Pasukanis (1989, p. 26-29) prescreve que deve o jurista socialista criticar o direito
33 Não há outro valor dado ao direito pelos líderes comunistas que não seja o de executar o plano maior
que é construir a sociedade comunista, sendo pressupostos ao seu advento a extinção das classes sociais, a
abundância material e cultural que satisfaça as necessidades de todos e a elevação da consciência dos indivíduos
para contribuírem espontaneamente com o bem-estar geral. Há uma função ideológica e pedagógica do direito,
assim como uma função organizativa no domínio econômico e social ao estabelecer diretrizes econômicas que
edificam a base técnica e material do comunismo.
34 A Constituição Soviética de 1977 é clara ao estabelecer o Partido Comunista, armado com a ideologia
marxista-lenilista, dirigente da sociedade soviética, existindo e servindo para o povo.
35 Aqui a doutrina rousseauniana da vontade geral soberana, embora seu viés liberal, torna-se um
fundamento plausível para tal posição soviética.
36 Segundo esse método de origem aristotélica, as definições se dão com a identificação do gênero e a
distinção da espécie, da semelhança que o objeto conceituado apresenta com outros e a diferença que o
distingue; como o homem, cujo conceito de animal racional é alcançado tomando o homem como parte do
gênero animal, seu semelhante, e a espécie racional, o que o distingue do animal. O autor citado despreza tal
método conceitual de científico.
50
burguês da mesma maneira pela qual Marx realizou a crítica à economia política burguesa,
sem descartar as generalizações e abstrações, porém descobrindo os seus condicionamentos
históricos. Ele defende que o “desaparecimento das categorias do direito burguês significará
nestas condições o desaparecimento do direito em geral, isto é, o desaparecimento do
momento jurídico das relações humanas”. Ele expõe assim, em linguagem jurídica, o fim da
história, fim da luta de classes e o surgimento do comunismo como o único objetivo
verdadeiramente aceitável para um direito marxista, que deve ser transitório. Essa visão se
estende, no socialismo, para a constituição que não deve ser um fim, mas um meio ao
comunismo.
A busca por uma nova ordem política, instrumentalizada pela Constituição, que
dessem melhores condições às classes emergentes foi importante fator de deflagração
revolucionária e de conflitos sociais e políticos. Mas não quer dizer que o processo
revolucionário se encerra com a convocação da Assembleia Constituinte e promulgação de
uma nova Constituição. Trotsky (1980, p. 188) quando critica a Constituição Soviética de
1936, expressa bem a importância da Constituição para a manutenção da própria revolução:
Fazendo um enorme recuo, recuando dos princípios socialistas para os burgueses, a nova constituição,
cortada e cosida por medida para a casta dirigente, situa-se na linha histórica da renúncia à revolução
mundial em proveito da Sociedade das Nações, da restauração da família pequeno-burguesa, da
substituição das milícias por um exército permanente, do restabelecimento dos postos e das
condecorações do aumento das desigualdades. Consagrando o absolutismo “fora das classes”, a nova
Constituição cria as condições políticas do renascimento de uma nova classe possuidora.
Percebe-se que para Trotsky (1980), a Constituição não era uma verdadeira
Constituição Socialista, resultado legítimo da revolução, mas fermento para a “classe
possuidora”, com sua defesa da propriedade privada e manutenção do sistema trabalhista em
que prevalecia a noção de proporcionalidade do salário com o quantum trabalhado e não com
a necessidade dos trabalhadores contra o qual a revolução insurgiu-se inicialmente. Além das
características já apontadas pela Revolução Francesa, também observa-se aqui que a
dissidência interna é fator importantíssimo que aponta para o nível caótico em que se dá a
revolução, com discussões sobre os caminhos da revolução e acusações de traição
revolucionária entre os participantes. Trotsky, embora agente revolucionário não se contentou
com o regime implantado e realizou severas críticas ao mesmo.
igualdade formal nela exposta é uma camuflagem para a tirania do partido único. Pode-se
afirmar que ela é igualitária em relação às eleições, ao prever:
Artigo 135 — As eleições para os deputados serão universais: todos os cidadãos da URSS que tenham
atingido a idade de dezoito anos, sem restrição quanto à raça, nacionalidade, religião ou qualificações de
educação, residência, origem social, propriedade ou passada atividade, têm o direito de participar das
eleições e de serem eleitos, com exceção das pessoas que estejam sofrendo de insanidade mental e de
pessoas condenadas pela Corte à privação dos direitos eleitorais.
Artigo 136 — As eleições para deputados serão equitativas: cada cidadão terá um voto, todos tomando
parte na eleição em bases iguais.
Artigo 137 — As mulheres têm o direito de elegerem e serem eleitas em condições iguais aos homens.
A Revolução Russa, em sua promessa e conclamação de “Paz, Terra e Pão: todo poder
aos sovietes”, também teve seu conjunto de fundamentos político-ideológicos que declaravam
serem o proletário, o campesinato, os revolucionários aqueles que deveriam ocupar o poder,
de maneira a se oporem aos excessos do capitalismo, e que tornaram a luta de classes a seta da
história, com o fim último de se chegar ao fim deste alvo que seria o fim da divisão de classes
e, por conseguinte, o fim da história. Mas não é unicamente a troca de quem ocupa o poder a
nota essencial da revolução, mas são, antes, as respostas às perguntas de “como?”, “para
quem?” e “por quê?” se governa. Essas perguntas exigem a resposta final ao qual o embate
revolucionário chega. Na revolução americana foi por meio do povo, em vista do povo e por
ser ele o poder originário que a emancipação ocorreu, e, por consequência, ela instaurou o
governo “do povo, pelo povo e para o povo”, uma democracia, com suas vantagens e
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Telles Júnior (2001) formula que quando há contradição entre dois regimes: um velho
e um novo, há então revolução. E explica que essa contradição, uma luta permanente de
tendências contrárias, é um fato normal do processo de desenvolvimento social e uma
negação do que envelheceu, o regime antigo. Essa negação é dialética, pois é a negação não
de tudo, mas do que acabou, e assim o desenvolvimento social se dá pela negação do que
acabou, bem como pela recepção do que é hígido, válido e viável naquilo que é velho. E o
novo regime leva consigo o patrimônio herdado do antigo regime que ainda lhe é bom, ou
seja, recepciona o que é conveniente.
ordenamento jurídico anterior, o problema é que com isto estão assumindo uma postura
aparentemente condescendente com o regime anterior, haja vista que o Estado possui como
parte de sua identidade o ordenamento jurídico e assim, por óbvio, não renová-lo é continuar
sob o mesmo regime formal. Mas como Bobbio (1995) ensina, a norma não advém de apenas
uma fonte, diante da complexidade da vida social e da história humana. Assim, dessa
possibilidade de mais de uma fonte normativa (pluralismo jurídico), pode haver um choque
entre as normas do ordenamento novo e do antigo. Daí a recepção de certas normas pelos
revolucionários vitoriosos não ser de todo descabida, pois não há impossibilidade de nos
ordenamento jurídicos dois regimes serem concordes em alguns pontos menos fundamentais.
O outro expediente que, conforme o jurista, é usado pelo poder supremo para preencher o
ordenamento jurídico e satisfazer a necessidade de normas da sociedade, ao lado da recepção,
é a delegação. Esta é uma das formas de implementação das normas que parece mais
adequada e fundamental a um governo que se pretende revolucionário, pois é por delegação
que o poder que se instaura irá promover a criação normativa, algo que ocorreu na Revolução
Russa.
para o jurista, seria aquele que tem o Estado como o centro de determinação do direito, aquele
com poder sancionador e capacidade de mando. Pode haver então mais de um centro de
determinação jurídica que pode entrar em conflito um com o outro ou se permitir entre eles.
Del Vecchio (2005, p. 32-33) sustenta:
Daí a possibilidade de vários tipos ou esquemas de soluções. Pode a ordem jurídica estadual afirmar a sua
supremacia sobre a outra, que chamaremos corporativa, de forma a destruí-la, a dissolver os seus
elementos (nesse tipo, pode classificar-se, por exemplo, a obra da Revolução Francesa 37, tendo, é claro,
presentes as diferenças entre o fenômeno corporativo do século XVIII e o da idade imediata [entre o
século XIX e XX]). Pode, pelo contrário, a ordem corporativa sobrepor-se ao Estado, paralisando-lhe ou
transformando-lhe o sistema, de forma a tornar-se Estado ela própria (tal é, em substância, o significado
da recente Revolução Russa38). E pode, por fim, verificar-se um terceiro tipo de solução, que consiste não
na dissolução, mas na absorção das organizações corporativas, de forma a trazê-las para a órbita do
Estado e sujeitá-las ao seu real poder, conseguindo, assim, harmonizar-se a atividade normativa exercida
antes em forma espontânea ou autárquica por aquelas organizações, com as expressões diretas da
soberania estadual. Uma semelhante modificação que toca as fibras íntimas e os centros vitais de todo o
sistema regulador não pode, porém, dar-se ex abrupto, mas só por um processo mais ou menos lento,
sempre gradual. Nem é preciso que a modificação se faça ser na maior parte quase invisível tratando-se
não de uma variação superficial, mas do deslocamento (se nos é lícito dizer assim) do centro de
gravidade de um sistema de normas em conjunto. Fora de qualquer metáfora, trata-se de vontades que
tendem a encontrar-se, antes de mais nada, nos ânimos. O sentimento de Estado deve predominar, na
consciência das próprias organizações particulares, sobre o sentimento de classe ou corporativo.
37 Na Revolução Francesa, logo no início, foi sancionada a Lei de Le Chapelier que sufocava os
sindicatos e greves trabalhistas. Diante disso, a burguesia sobrepunha-se aos trabalhadores, interditados seus
sindicatos, e aos artesãos, com seus grêmios e corporações abolidos.
38 As classes trabalhadoras, os sindicatos, ao contrário do que ocorreu na revolução burguesa na França,
subiram ao poder e tornaram os sovietes o grupo de dominação do Estado.
39 Anomia, fenômeno estudado pela sociologia jurídica e teoria geral do direito, é a falta de normas de
referência em determinado contexto ou, no caso da norma jurídica, um conflito com a norma por convicções:
entre a norma de um grupo e a norma estatal.
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que cria uma situação de ineficácia anômica do direito. Ineficácia anômica, conforme
Sabadell (2002, p. 88), é o “descumprimento de norma que o indivíduo considera inadequada
ou injusta”, e esse tipo de descumprimento se dá com a convicção do indivíduo ou grupo.
Como exemplo há o próprio caso de grupos que buscam por meio da revolução a mudança do
Estado, da Constituição e do seu ordenamento jurídico, o que ocorreu na Revolução
Americana que tornou os Estados Unidos uma nação autônoma diante das medidas injustas
que a metrópole impunha aos cidadãos americanos. Quando há uma ineficácia anômica da
norma, podem surgir as seguintes respostas pelo Estado, segundo Sabadell (2002, p. 89): o
Estado mantém a norma e tolera sua eficácia, como, por exemplo, o aborto no Brasil em
que as mulheres consideram o aborto, em regra proibido, como um direito; realiza-se uma
reforma legislativa que concilie a norma com os valores da sociedade, o que ocorre
quando, por exemplo, exime-se algumas pessoas por convicções filosóficas, políticas ou
religiosas do serviço militar; fazem-se propagandas que incentivem o respeito à norma,
como nas campanhas anti-drogas; reprime-se mais intensamente a tendência anômica,
como no combate à criminalidade organizada.
Estado, uma ordem jurídica centralizada, é legítimo, confundido este conceito com validade,
se houver eficácia na aplicação normativa. Em relação a um conflito interno de um Estado
contra um grupo insurgente (revolucionário), conforme Kelsen (1982), a sobreposição deste
sobre aquele, com a consequente tomada do território e controle do povo, acarreta na
formação de uma nova entidade que configura algo parecido com um estado. Dois estados não
podem ocupar o mesmo território e possuírem a mesma população, portanto, mantidos esses
dois e modificado, no tempo, o governo por um grupo revolucionário que impõem a sua
ordem, há a formação de um novo estado, desde que haja obediência à nova ordem do
governo. Sendo que a ordem jurídica centralizada, para Kelsen (1982), é o estado. A nova
ordem jurídica, o novo estado, será válida se for eficaz, caso contrário será inválida (princípio
de eficácia). Diante disso, a revolução é sempre uma mudança de ordem jurídica. E como ela
é uma mudança que não se apóia no ordenamento anteriormente vigente, a validade do seu ato
somente se apóia no direito internacional que a reconhece ou não. Mas é a eficácia da nova
ordem jurídica que dá legitimidade ao estado, portanto, um regime que não consegue tornar
eficaz o novo ordenamento jurídico, não é capaz de se fundamentar como um novo estado e
ser assim legítimo.
A última corrente tem a necessidade como o fato que legitima a revolução. Diante
de uma situação insuportável de opressão e miséria, a revolução é inoponível e inadiável,
portanto decorre de um ato necessário. Na tradição revolucionária burguesa, a revolução
decorre de uma vontade do verdadeiro poder soberano que é o povo, portanto o seu
fundamento é mais próximo de um ato de vontade, o que se contrapõe a algo necessário, pois
há na tradição burguesa, uma escolha. Na teoria socialista, principalmente a partir de Karl
Marx e Friedrich Engels, a revolução é historicamente necessária, pois decorreria da luta de
classes, uma constante na história humana, segundo a visão materialista da história.
método comparativo, pelo qual buscou localizar a Constituição comparando-a a coisas que
com ela se assemelhavam. Para Lassale (2006), a Constituição não era lei, pois aquela
apresenta-se ao povo como algo que deve manter-se mais estático do que o ordenamento legal
comum; e a Constituição, lei fundamental da nação, também não pode ser criada ao capricho
do legislador; na verdade, os fatores da Constituição são a força coativa disponível do
governo, a influência econômica dos proprietários de terra da nobreza, dos banqueiros, dos
grandes industriais e o povo em estado de opressão e apoiada pela pequena burguesia. Essa
soma tem como resultado a Constituição. Mas a forma com que isso será escrito e convertido
em Constituição escrita é sutil e escamoteada de forma que o poder da classe mais forte acaba
preponderando sempre sobre as outras, o que se trata então, a Constituição, é de uma
constatação de quem tem o poder.
Sentido político. Para Schmitt (1996), não se confundem leis constitucionais com
Constituição, sendo esta um produto de uma decisão consciente do poder constituinte que
adota para si mesma a sua forma, direitos e garantias fundamentais, estrutura e organização, e
da qual depende sua existência política concreta, não sendo a Constituição dependente da
unidade política, que desfeita põe em xeque a Carta política. Já a lei constitucional, assim
como uma lei comum, depende da existência prévia de uma decisão política da autoridade
anterior, não passando de algo contingente e facilmente revogável, ao contrário da
Constituição que é intangível e só pode perder validade completa por uma total mudança da
unidade política. Conflitos constitucionais e o juramento da constituição (declaração
preambular, por exemplo) somente tem relevância para a Constituição, não para as leis
constitucionais que inclusive podem ser incoerentes com o juramento e permanecerem no
ordenamento jurídico apesar de um abalo na Constituição. Para o autor, a formação dos
Estados Unidos da América e da França revolucionária demonstram esse processo de uma
decisão consciente e compromissada do titular do poder que declara na Constituição a forma
como decidiu sua organização e estrutura, aquela decidindo a favor da República na
Constituição de 1775 e a outra pela Monarquia constitucional na sua Constituição de 1791.
O sentido sociológico. Os fatores reais de poder devem ser favoráveis ao grupo que
promove a revolução, assim como favorável ao povo que legitima a revolução, o que exige de
certa forma, mudança profunda na balança do poder. É o que houve, por exemplo, na
Revolução Russa, quando surgiram grupos como os zemstva, os sovietes, e uma nova classe
política liberal que pendiam mais a balança para o lado contrário à autocracia, ainda
sustentada pelo exército, que cada vez mais se enfraquecia, e logo depois os liberais eram
suplantados pelas forças dos socialistas, os operários, camponeses e líderes sindicais; também
ocorreu na Revolução Francesa, quando a burguesia suplantou a força do monarca e por seu
poder econômico manteve a balança favorável ao seu lado.
No sentido político, a decisão política fundamental deve ser alterada, o que houve, por
exemplo, na Revolução Francesa em que a decisão consciente dos parlamentares para decidir
os rumos da França através da Declaração dos Direitos dos Homens e de sua nova
Constituição foi uma decisão que não mais era uma decisão unívoca e monocrática do Rei ou
a aceitação tácita da tradição vigente, mas de um grupo de homens representando o povo (ou a
burguesia), e que reunidos em Assembleia Constituinte lançaram os novos rumos do regime
político e jurídico francês a partir de um plano inspirado em ideias anteriormente
desenvolvidas; situação assemelhada houve na Revolução Americana que realizou algumas
assembleias que decidiram que rumo a colônia deveria seguir.
61
Por fim, em sentido jurídico: a norma fundamental deve ser modificada, o que no
caso, por exemplo, da Revolução Americana foi a introdução de uma Constituição, após a
conquista da emancipação colonial, ou seja, a substituição desta em lugar das leis
constitucionais inglesas, decorrente de uma luta em que o poder das armas deu vitória aos
colonos emancipados a cidadãos. A revolução política e jurídica ou institucional muda a
norma fundamental que no caso americano é a Constituição que permanece vigente até os dias
atuais. A norma que havia perdido eficácia por não mais se adequar ao espírito do povo é
substituída por uma mais adequada, podendo o sistema jurídico passar por diversas mudanças
até chegar a uma situação de estabilidade.
40 Foi tomada como fonte histórica: “todos os elementos que contribuíram, ao longo dos séculos, para a
formação do direito positivo atualmente em vigor num país dado” GILISSEN, John. Introdução Histórica ao
Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995 p. 25.
62
No vocabulário da época, o emprego do termo “insurreição” designava uma população em cólera e com
objetivos concretos e imediatos, à qual por vezes se uniam escravos. “Sedição” era a palavra utilizada
para definir um ajuntamento de dez ou mais colonos armados que tinham a intenção deliberada de
perturbar a ordem pública. Quando esse agrupamento chegava a mobilizar 30 mil pessoas, a coisa mudava
de figura: estava instaurada a “rebelião”, um tipo perigosíssimo de evento em que havia ameaça de
anarquia ou de guerra civil. Uma “assuada” significava uma espécie particular de ajuntamento de colonos
com o propósito de atingir a ordem pública e promover uma ofensa específica a uma autoridade. Um
“motim” congregava muita gente com motivação política e toda sorte de insatisfação. “Tumulto”
caracterizava a revolta do povo — e se usava o termo “povo” tanto para identificar o conjunto da
população de um território quanto para classificar os estratos que formavam a base da pirâmide social da
colônia: o povo miúdo, a plebe, a chusma. A nomenclatura podia variar, mas a natureza dos ajuntamentos
era sempre política.
alguns intelectuais e políticos brasileiros, era tão terrível como ser comunista no século XX.
Mas apesar disso foi convocada uma Assembleia Luso-Brasileira em 3 de junho de 1822, por
decreto. A assembleia era tanto constituinte quanto legislativa. Contudo seus trabalhos foram
interrompidos pelo golpe de Estado do Imperador do Brasil em novembro de 1823.
41 Filho de um senhor de família rica de Portugal com uma negra liberta que repudiava o cristianismo,
após ser escravo, livre tornou-se advogado, poeta e jornalista em São Paulo.
42 Proprietário da Gazeta da Tarde e filho de um padre fazendeiro dono de escravos com uma negra
vendedora de frutas.
43 Engenheiro negro que defendia a distribuição de terras entre escravos e a subdvisão dos latifúndios.
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Conta Fausto (2006, p. 227-229) que haviam dois ramos do movimento republicano,
sendo um liderado por Lopes Trovão e Silva Jardim, defensores de uma revolução popular
como método para se atingir um regime republicano, e outro ramo, o de Quintino Bocaiúva,
defensor de uma transição pacífica para a república. O movimento republicano estava
presente entre profissionais liberais, jornalistas, militares e até conservadores, principalmente
do Partido Republicano Paulista. Os paulistas republicanos preocupavam-se mais com os
aspectos da federação do que com os direitos, preocupação mais presente entre os cariocas. O
dinheiro explica em parte essa preocupação federativa, pois os paulistas em expansão
econômica contribuíam tributariamente mais e recebiam menos do Império, daí a autonomia
federativa ser tão interessante. Na relação entre a Igreja e o Estado começa com as diretrizes
do Vaticano de 1848 que condena as liberdades modernas e em 1870 a infalibilidade papal foi
proclamada dogma da Igreja. Como a Constituição Imperial reservou ao Estado o direito de
avaliar juridicamente os decretos eclesiásticos, houve um cisma entre Estado e Igreja.
Fausto (2006, p. 230-251) narra que os militares após a abdicação de Dom Pedro I
foram perdendo forças, apesar do prestígio nunca ter sido de todo extinto, havendo os liberais
diminuído seus efetivos por receio de surgirem líderes militares que golpeassem o regime. A
doutrina positivista em muito influenciou os militares atraídos pelas ideias de que uma
ditadura republicana era o melhor dos regimes para a época, pelo laicismo do estado e pela
preferência do desenvolvimento técnico, científico e industrial, conforme o pensamento
comtiano. Com a Proclamação da República foi banida a monarquia para a Europa e o Brasil
inaugurou a república de inspiração positivista. A assembleia constituinte foi prontamente
convocada para “garantir o reconhecimento da República e a obtenção de créditos no
exterior”. Em 24 de fevereiro de 1891 foi promulgada a nova constituição, de molde norte-
americano, liberal, republicana e federativa. Os poderes foram divididos no Executivo,
Judiciário e Legislativo. Os estados ganharam maior autonomia. O sistema de governo foi o
presidencialista. O sistema de voto era o direto e universal, sem censo econômico. O Estado
foi separado da Igreja. O monarca foi banido junto com sua família e seu poder de moderar.
propriedade viu-se também com a ordem republicana erguido a sua plenitude máxima”.
Houve a recepção de vários direitos do império: inviolabilidade do domicílio, isonomia,
instituição do júri. O instituto da intervenção federal serviu de meio para o presidente atuar de
maneira discricionária e arbitrária. O presidente era um rei eleito para ser o monarca do Brasil
pelo prazo de quatro anos. Os presidentes não respeitavam a Constituição de 1891, pois com
suas armas, do que valiam papéis? Eles demonstram bem a realidade que Lassale tão bem
apontou sobre a natureza da constituição. Mas na lição de Kelsen, a Constituição de 1891 é
produto de uma revolução jurídica.
Mas não teve tempo suficiente para maturar, tão breve foi sua vigência. Após um
breve período que aparentava uma democracia, em um ambiente ideologicamente carregado,
vem o golpe do Estado Novo, justificado em boatos falsos dos integralistas de um plano
comunista, o plano Cohen. A ameaça forjada de uma revolução comunista foi suficiente para
uma reação do estado e a instauração de um regime autoritário, o que já vinha acontecendo na
Europa. A Constituição de 1937, influenciada profundamente na Constituição da Polônia, foi
flagrantemente ilegítima, haja vista não ter sido o trabalho de representação do poder
constituinte originário. Ela foi outorgada e segundo Bonavides e Andrade (1991, p. 338) “o
fantasma do comunismo foi fonte alimentadora do golpe e, portanto, da Carta de 37”. “A
primeira fraude constitucional estava precisamente no dispositivo que condiciona a
manutenção da lei maior à manifestação plebiscitária da Nação”. Como nunca houve o
decreto que regulariza o plebiscito, a Constituição vingou. Outra fraude foi em relação à
reforma constitucional que era legitimada ao Presidente da República ou Câmara dos
Deputados, este fechado com o golpe. Tamanho conjunto de vigarices se repetiu na ditadura
dos militares que prometeram proteger a Nação e se perpetuaram no poder.
outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um
grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”. A vontade da Nação venceu as tentativas de
bolchevização do país pelo governo, segundo os representantes da revolução vitoriosa. A
legitimidade da revolução, declaram, não decorria do Congresso, mas a legitimidade do
Congresso era dada pelo Ato Institucional, alavancado este a status de norma superior. E os
revolucionários não “radicalizaram”! Prova disso é que mantiveram a Constituição e
mudaram apenas a parte que se referia aos Poderes do Presidente da República. E isso não é
nem um pouco radical?!
(...) Se um golpe de Estado é descrito como ‘revolução’, isso não acontece por acaso. Em primeiro lugar,
há uma intenção: a de simular que a revolução democrática não teria sido interrompida. Portanto, os
agentes do golpe de Estado estariam servindo à Nação como um todo (e não privando a Nação de uma
ordem política legítima com fins estritamente egoístas e antinacionais). Em segundo lugar, há uma
intimidação: uma revolução dita as suas leis, os seus limites e o que ela extingue ou não tolera (em suma,
golpe de Estado criou uma ordem ilegítima que se inculcava redentora; mas, na realidade, o ‘império da
lei’ abolia o direito e implantava a ‘força das baionetas’: não há mais aparências de anarquia, porque a
própria sociedade deixava de secretar suas energias democráticas). No conjunto, o golpe de Estado extraía
a sua vitalidade e a sua autojustificação de argumentos que nada tinham a ver com ‘o consentimento’ ou
com ‘as necessidades’ da Nação como um todo. Ele se voltava contra ela porque uma parte precisava
anular e submeter a outra à sua vontade e discrição pela força bruta (ainda que mediada por certas
instituições). Nessa conjuntura, confundir os espíritos quanto ao significado de determinadas palavras-
chave vinha a ser fundamental. É por aí que começa a inversão das relações normais de dominação. Fica
mais difícil para o dominado entender o que está acontecendo e mais fácil defender os abusos e as
violações cometidas pelos donos do poder.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As revoluções têm várias facetas, assim como ocorre com o direito. Assim como este
tem mais de uma dimensão, a social, histórica, ética, normativa etc., a revolução também é
analisável pelo ponto de vista sociológico, histórico, ético, jurídico, entre outros. Para
compreender a influência da revolução no direito, uma compreensão dessa natureza e o estudo
desses diferentes aspectos é essencial, sob pena de haver incompletude na compreensão do
fenômeno revolucionário no plano jurídico. O fenômeno jurídico tem seus fundamentos na
dinâmica social, assim como ocorre com o fenômeno revolucionário. Os dois têm como ponto
de encontro a mudança do ordenamento jurídico. A revolução é uma das causas sociais para a
mudança do ordenamento jurídico, principalmente no regime constitucional, onde a revolução
atua preferencialmente.
democrática. A utopia dos revolucionários pode ser observada como uma visão de mundo
irreal, quimérica e disforme da realidade. A revolução seria vista pelos seus detratores como
um movimento que, baseado em falsos princípios, por serem ineficazes ou inexistentes,
levaria à consagração de constituições também ineficazes, sem efetividade real. O que estaria
escrito no papel não seria a constituição de um povo daí não haver por vezes conformidade
dos projetos revolucionários com a realidade. A liberdade inscrita na constituição não a
garantiria por si só, por exemplo.
Campanhas eleitorais sempre exploraram essa possibilidade de o “Brasil virar uma Cuba”.
Pode-se dizer que a elite abomina o regime socialista, provavelmente mais pela dispersão e
mudança do poder do que pelos males reais que um regime comunista possa trazer; e o povo
acredita nas acusações por superstições ou ideologias impensadas.
As revoluções brasileiras foram legítimas 44? Essa é uma pergunta relevante que é
respondida predominantemente com uma negativa. Em relação ao poder constituinte, a
revolução é tratada pela doutrina como manifestação ou exercício legítimo do poder
constitucional. A questão da legitimidade como visto nos contratualistas, por exemplo, é
resolvida no contrato social, com o povo, como parte do grande contrato em que a vontade de
todos é considerada, colocada como o detentor do poder político e jurídico. No Brasil, no
entanto, a legitimidade é difícil de aceitar em revoluções que mais afastaram o povo do
processo político do que o aproximaram, o que não é aceito convencional, afetiva ou
racionalmente pelo povo, restando ao povo aceitar a ordem política e jurídica imposta por
meio revolucionário tão somente por que a força legal nova a impõe. A legitimidade
revolucionária se deu pelo poder de armas, nunca pelo dos argumentos e aspirações do povo,
mais pelo das ameaças, nunca pela assembleia popular.
Quando os “revolucionários de 1964” tomaram o poder foi para sufocar uma temida
revolução socialista, ainda hoje temida e usada em campanha política, não foi para dar ao
povo o poder que lhe era de direito. Na verdade, foi um golpe contra a democracia que se
desenvolvia. O titular inconteste do poder constituinte ainda é o povo, mas a história brasileira
demonstra que ataques ao regime democrático são sempre possíveis. A Revolução Francesa
colocou a burguesia no poder em oposição ao regime antigo, a Revolução Americana deu aos
cidadãos americanos, ainda que o possam ter sido restritos a classes específicas, o direito de
se governarem. Mas no Brasil, a revolução nunca deu ao povo o seu título, apenas foram
formas violentas ou ameaçadoras de usurparem o poder de uns poucos para outros poucos.
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