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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

THAIS DOS GUIMARÃES ALVIM NUNES

A VOZ DE MILTON NASCIMENTO EM PRESENÇA

MILTON NASCIMENTO’S VOICE IN PRESENCE

CAMPINAS
2015
THAIS DOS GUIMARÃES ALVIM NUNES

A VOZ DE MILTON NASCIMENTO EM PRESENÇA

MILTON NASCIMENTO’S VOICE IN PRESENCE

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Doutora em Música, na área de
concentração: Fundamentos Teóricos.
Thesis presented to the Art Institute of the University of
Campinas in partial fulfillment of the requirements for
the degree of Doctor in the area of Music, in the area of
concentration: Theoretical Foundations.

ORIENTADOR: PROF. DR. ANTÔNIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA
THAIS DOS GUIMARÃES ALVIM NUNES, E ORIENTADA
PELO PROF. DR. ANTÔNIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS.

CAMPINAS
2015
Ao meu marido Pablo
e aos meus filhos Sofia, Pedro e Gabriel.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao meu orientador Prof. Rafael dos Santos, por


acompanhar toda minha trajetória na Unicamp desde os anos de graduação, sempre
com muita tolerância e sabedoria.

Aos professores José Roberto Zan e Hermilton Garcia do Nascimento (Budi), pelos
comentários realizados ao longo dos exames de monografia e qualificação.

À professora Regina Machado, por apresentar os caminhos semióticos para a


observação da voz na performance e por defender, de maneira tão competente, o
ensino de canto popular e, sobretudo, a canção popular brasileira.

Agradeço aos amigos Sérgio Freitas e Áurea Demaria, tão comprometidos com a
qualidade, com o questionamento, com a ética e com o ensino, sempre disponíveis a
ajudar sugerindo leituras, dando força e apoio.

À colega e amiga Ilza Joly que, desde o início, me acolheu em São Carlos e na
UFSCar, nos acontecimentos do cotidiano e nos momentos de sobrecarga.

Agradeço aos meus alunos, com os quais compartilhei escutas e reflexões acerca da
voz.

Agradeço a Milton Nascimento, através de sua Assessoria de Imprensa, na pessoa


de Danilo Nuha, que viabilizou a disponibilização da tese com os fragmentos
musicais destacados, dando acesso ao leitor à variável central da pesquisa: a
performance vocal.

Por fim, agradeço ao meu marido Pablo e aos meus filhos Sofia, Pedro e Gabriel,
que sobreviveram a esta travessia junto a mim, sabendo superar os momentos de
ausência e as dificuldades enfrentadas ao longo do percurso.
RESUMO

A proposta desta pesquisa é percorrer a trajetória vocal construída pelo


cantor/compositor Milton Nascimento no interior da sua produção fonográfica, a fim
de observar, mapear, selecionar e apresentar sua voz em presença (ZUMTHOR,
1993, 1997, 2005, 2007; FINNEGAN, 1997, 2008); uma investigação que tem como
pontos de partida a performance e a escuta. Reconhecido mundialmente pelo timbre
particular, pelas interpretações marcantes e estilo composicional de difícil
categorização, Milton chamou atenção desde o seu surgimento nos anos de 1960 no
Brasil, e construiu uma carreira sólida que continua influenciando gerações. Adentrar
de maneira minuciosa na sua produção vocal é observar as nuances do canto, sua
maneira de pronunciar, de explorar, de transmitir, de fazer emergir os sentidos. A
partir de abordagens analíticas de Barthes (2009), Zumthor (1993, 1997, 2007),
Tagg (2003, 2011), Tatit (2007, 2008) e Machado (2011, 2012), escolhemos a
canção “Clube da Esquina no 2” dos compositores Milton Nascimento, Lô Borges e
Márcio Borges, gravada inicialmente no disco Clube da Esquina, de 1972,
e retomada pelo artista no disco Angelus, lançado em 1993, para apresentar em
detalhes a movência no uso da voz.

PALAVRAS-CHAVE: Milton Nascimento; canto popular; performance vocal.


ABSTRACT

The purpose of this research is to cover the vocal path built by the singer/song-writer
Milton Nascimento through his recording career, with the intent of observing, aligning,
selecting and presenting his voice in presence (ZUMTHOR, 1993, 1997, 2005, 2007;
FINNEGAN 1997, 2008); a search with performance and listening as starting points.
Renowned world-wide for his peculiar timber, his remarkable renditions and a style
which does not fall into a category easily, Milton has always drawn attention, since
his early appearances in the 1960’s in Brazil. He has built a solid career and
continues to influence generations. Meticulously examining his vocal production
implies observing the nuances of his singing, pronunciation, exploring, emerging and
breaking through of the senses. While taking the analytical approach of Barthes
(2009), Zumthor (1993, 1997, 2007), Tagg (2003, 2011), Tatit (2007, 2008) and
Machado (2011, 2012), we have selected the song “Clube da Esquina no
2”, composed by Milton Nascimento, Lô Borges and Márcio Borges, initially recorded
at the album Clube da Esquina, in 1972, and taked over by the artist at the Angelus
album, released in 1993, which was revisited by the artist throughout his career, in
order to present in detail the mobility in the use of the voice.

KEYWORDS: Milton Nascimento, jazz singing, vocal performance.


SUMÁRIO
Introdução
Apresentação

CAPÍTULO 1
DA ESCUTA COMO GUIA PARA ABORDAGEM DA VOZ DE MILTON NASCIMENTO

1.1 Dos diferentes tipos de escuta

CAPÍTULO 2
REVEJO NESTA HORA TUDO QUE OCORREU, MEMÓRIA NÃO MORRERÁ:
A TRAJETÓRIA VOCAL DE MILTON NASCIMENTO AO LONGO DE 50 ANOS
DE CARREIRA
a
2.1 Há canções e há momentos – 1 fase
a
2.2 A voz é um instrumento que eu não posso controlar – 2 fase

2.2.1 A voz amarra todos nós


a
2.3 Um só sentimento na plateia e na voz – 3 fase

2.4 Quadros de resumo das características vocais em cada uma das fases

CAPÍTULO 3
A VOZ VEM DA RAIZ
o
3.1 A canção “Clube da Esquina n 2”

3.2 Das características reunidas na gravação de 1972


o
3.3 Sobre a potencialização da voz na gravação de “Clube da Esquina n 2” presente no disco
Angelus
3.4 Sobre os sentidos trazidos pela respiração

3.5 Das vocalizações realizadas nos quatro últimos compassos da seção A’


o
3.6 Sobre o improviso em “Clube da Esquina n 2” nas duas versões comentadas

3.7 Algumas considerações sobre a Harmonia

Considerações finais

Referências bibliográficas
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 10
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

INTRODUÇÃO
POR UMA ESCUTA DA VOZ NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA

Podemos observar um quadro crescente de pesquisas que tomam a


canção popular brasileira como assunto principal: um fator que reforça a
expressividade de sua produção dentro da cultura musical nacional. Abordada por
uma diversidade de áreas (como a Sociologia, História, Linguística, Literatura,
Comunicação, Antropologia, Filosofia, Teoria e Análise Musical, Etnomusicologia,
Crítica, Fisiologia, Educação, dentre outras), a canção é apresentada nas suas
diversas faces e se mostra como “gênero” complexo de observação. Os estudos
revelam a tentativa dos pesquisadores de promover uma maior interação entre as
variadas disciplinas. Algumas iniciativas confirmam tal abordagem, como descrevem
as organizadoras do III Encontro de Estudos da Palavra Cantada, quando objetivam

promover a oportunidade e as condições para uma ampla reflexão sobre o universo


estético e cultural relacionado à palavra cantada, a partir de uma abordagem
multidisciplinar que permita apreender a interação entre suas dimensões verbal,
musical e vocal, bem como o circuito cultural onde se articulam seus processos de
produção e recepção (PALAVRA CANTADA..., 2014).

Aos poucos, grupos de estudo, eventos, encontros e revistas acadêmicas


vão reservando espaço específico para a reunião, troca e divulgação dos estudos
relacionados à canção. No entanto, a voz – seu principal veículo – tem sido
abordada de maneira tímida, sobretudo do ponto de vista expressivo.1
Ao percorrer uma ampla trajetória da expressão vocal, a filósofa italiana
Adriana Cavarero atesta que a voz emudeceu no percurso do pensamento filosófico,
sendo deixada para segundo plano diante da prevalência do logocentrismo.
Conforme reivindica a autora,

a voz não pode se tornar um tema indiferente para um tipo de saber que se inaugura
na Grécia como autoclarificação do logos e que chega no século XX (poderíamos
dizer XXI), após vários e coerentes desdobramentos que duram alguns milênios, à
tematização obsessiva da linguagem (CAVARERO, 2011, p. 24).

1
Em pesquisa realizada no site do CNPq (<http://lattes.cnpq.br/web/dgp>) é possível constatar a predominância
de grupos de pesquisa registrados que tratam a voz do ponto de vista fonoaudiológico, com foco em distúrbios e
tratamentos. Muitos dos grupos cadastrados estão vinculados, ainda, às áreas de Letras, Linguística e Teatro, e o
número de grupos de estudos sobre a voz na área musical é pouco significativo.
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 11
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Nasce, portanto, no século XX uma disciplina na qual “a soberania da


linguagem se rende à soberania da voz” (CAVARERO, 2011, p. 25): trata-se dos
estudos sobre a oralidade. A tradição oral, que ficou à margem dos discursos
durante muito tempo, oferecerá alternativas para a abordagem da voz em sua
materialidade, enunciação e recepção, e, consequentemente, ferramentas para o
estudo expressivo do canto popular e da voz na canção popular brasileira.
Acompanhando uma tendência recente, os estudos da canção popular
têm buscado suporte teórico nos trabalhos de Paul Zumthor e Roland Barthes, por
considerarem a voz e sua presença fatores relevantes para observação, análise e
compreensão de manifestações artísticas que têm a voz como um de seus
componentes, como o teatro, a poesia oral, a canção erudita e a canção popular, por
exemplo. As reflexões de Zumthor acerca da voz presente, em diálogo com outros
autores (FINNEGAN, 2008, 2006; CAVARERO, 2011; GUMBRECHT, 2010; EL
HAOULI, 2002; TRAVASSOS, 2010 etc.) nos ajudam a observar aquilo que ele
denominou vocalidade2 e movência,3 frutos do estudo aprofundado que faz da
poesia oral. No interior destas variáveis, estão a performance e a recepção.
Buscamos, num artigo de Roland Barthes em específico, intitulado Escuta, auxílio
para orientar e organizar nossa observação da obra de Milton Nascimento ao longo
do tempo.

Algumas palavras sobre a comunicação e seus meios

Antes do surgimento da escrita, o gesto e a voz 4 eram os principais


instrumentos de comunicação entre os homens. Na medida em que a escrita foi
adentrando as civilizações, as formas mais dialógicas marcadas pela
oralidade/presença e pela troca num mesmo espaço/tempo foram cedendo lugar
para comunicações mais indiretas e assíncronas. Este processo foi contínuo, e os

2
Zumthor diz preferir o termo vocalidade à oralidade. Segundo o autor, “vocalidade é a historicidade de uma
voz: seu uso” (ZUMTHOR, 1993, p. 21).
3
De acordo com Zumthor, “movência é criação contínua” (1993, p. 145). Ao contextualizar o termo na
performance o autor menciona: “A performance de uma obra poética encontra, assim, a plenitude de seu sentido
na relação que a liga àquelas que a precederam e àquelas que a seguirão. Sua potência criadora resulta de fato,
em parte, na movência da obra” (1997, p.265).
4
Encontramos este argumento com Jean-Jacques Rousseau, no seu Ensaio sobre a origem das línguas (2008, p.
98-99). Rousseau vincula, ainda, ao longo do ensaio, o surgimento dos gestos às necessidades e o da palavra às
paixões.
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 12
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

indivíduos, ao se depararem com a possibilidade de descoberta de novos mundos


por meio dos textos (cartas, imprensa, livros, revistas, jornais etc.), da comunicação
do telégrafo, telefone, depois rádio, cinema, televisão e internet, foram substituindo
pouco a pouco o estar presente pela informação que pudesse ser acessada de
maneira mais cômoda, individual e isolada.
As novas formas do homem se comunicar e buscar informações
provocaram mudanças na sua maneira de aprender, de pensar, de observar, de
analisar, de produzir, criar e se expressar; a voz emitida no momento da
comunicação foi se tornando um elemento distante. Quadro semelhante pode ser
observado no universo da produção cancional, no qual encontros e trocas ocorridas
em rodas de amigos, bares ou locais de reuniões, que serviam como estímulo para a
composição e prática musical e vocal, foram sendo substituídos pelo modo de
produção mais isolado. A comunicação entre os artistas e dos artistas com o mundo
e/ou com seu público sofreu – e continua sofrendo – alterações numa velocidade
cada vez mais acelerada, sobretudo vinculada às novas tecnologias – estas, por sua
vez, capazes de provocar mudanças substanciais nos processos de produção e
recepção.
A indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1985) e o mundo
globalizado (HALL, 1999; CANCLINI, 2003) vem somando um número cada vez
mais expressivo de produtos estandardizados, dadas a suas capacidades de
registro, reprodução (BENJAMIN, 2013) e circulação, que se estendem aos bens
culturais. Por outro lado, é flagrante, como apontam as reflexões de Canclini (2003)
e Hall (1999), o aparecimento destacado de características culturais locais como
forma de diferenciação dentro de um contexto de supostas homogeneidades. Ainda
que produzindo numa época em que se assistiu ao crescimento desenfreado dos
meios de comunicação, da indústria cultural e do desenvolvimento tecnológico,5 é

5
O argumento que busco defender aqui é o de que Milton Nascimento tem produção ativa ao longo da carreira
com diferentes e expressivos projetos, além de manter foco de observação no ouvinte e receptor,
predominantemente sobre sua produção musical. Walter Benjamin, em A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica (com versões escritas entre 1935-1940), ao observar a literatura, menciona que a
reprodução expandiu o acesso do leitor ao texto a ponto deste “estar a todo o tempo pronto para tornar-se um
escritor” (BENJAMIN, 2013, p. 78). Em nota, o autor menciona que o talento tornou-se um fator raro em épocas
de reprodução, e a consequência disto é de “que a todo tempo e em toda parte a proporção preponderante da
produção artística tenha sido medíocre” (BENJAMIN, 2013, p. 107), o que não se confirma na obra produzida
por Milton. Quanto à indústria cinematográfica, Benjamin (2013, p. 79) fala do seu “interesse em estimular a
participação das massas por meio de representações ilusórias e de especulações ambíguas [...] ela [a indústria]
colocou a carreira e a vida amorosa das estrelas a seu serviço”. A indústria fonográfica adotou estratégia
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 13
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

possível observar, com o cantor e compositor Milton Nascimento, um modo de fazer


que encontra ecos na oralidade por valorizar o contato direto e presente com os
indivíduos com os quais divide sua expressão musical, seja através da voz, das
composições, dos arranjos, das gravações. Esta valorização da presença “física” da
voz nas trocas culturais e nos processos de criação e registro – marcada pelo modo
de vida diaspórico6 de Milton no interior do Brasil e fora dele (HALL, 2013) – lhe
possibilita agregar qualidades e expressões musicais diversas, a seu modo, e se
transforma numa variável que dá destaque ao trabalho do artista. Com base nestes
aspectos é que propomos investigar sua produção a partir de sua voz. Mesmo
submetido à lógica de mercado da produção cancional, Milton atesta a força
expressiva da voz humana, capaz de superar padrões e extrapolar fronteiras ao
exprimir desde os sons mais orgânicos (gemidos, sussurros, gritos etc.), passando
pela fala e o canto em sua plenitude, indo do grave masculino ao agudo feminino,
com ou sem palavras.

Reflexões sobre a escuta na formação musical

Parece natural afirmar que toda atividade musical está conectada


intrinsicamente à escuta. Se existe som, existem ouvidos que irão absorvê-lo. Tanto
que praticamente todos os cursos de música (livres, técnicos, de formação,
aperfeiçoamento etc.), dedicam parte significativa de suas cargas horárias a
disciplinas específicas para o desenvolvimento da audição – tais como percepção e
apreciação musical, com enfoque em diferentes práticas: escuta descritiva, analítica,
ativa, criativa, por exemplo. Nas atividades relacionadas à pratica instrumental ou
vocal, seja em grupo ou de forma individual, a escuta é requisitada como guia para
auxiliar no desenvolvimento técnico-sonoro do instrumento, bem como para
proporcionar melhor entrosamento entre o grupo. Foca-se, na maioria das propostas
de abordagem do desenvolvimento da escuta nestes espaços, a busca por uma
ação consciente, capaz de relacionar som, música, performance e teoria, e

semelhante para arregimentar público massivo para suas produções. Milton, ainda que pertencente a tal sistema –
e cedendo a várias de suas lógicas – conseguiu reserva suficiente à sua vida pessoal e, muitas vezes, liberdade de
criação na sua produção, que lhe garantiram o interesse do público e dos artistas principalmente por sua obra em
comparação à sua figura enquanto artista.
6
Tomamos emprestado o termo diáspora, utilizado por Stuart Hall para abordar a comunidade caribenha, para
caracterizar o indivíduo Milton Nascimento.
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 14
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

desenvolver a habilidade de controle numa prática instrumental ou vocal. A


“construção” da expressão musical é igualmente trabalhada com suporte da
percepção para alcançar uma intenção imaginada, virtualizada entre muitas
possibilidades: atividade que, mais uma vez, perpassa a escuta. Disciplinas como
harmonia, composição, história e sociologia da música e análise, por exemplo,
somam ao conjunto de áreas nas quais a escuta fornece suporte fundamental para a
percepção dos exercícios realizados, das experimentações criativas, do repertório
que complementa a compreensão das trajetórias histórico-sociológico-musicais.
Tais abordagens, tradicionalmente utilizadas, mostram-se fundamentais
para a profissionalização do músico e do educador musical, e auxiliam na
qualificação de outros profissionais que se relacionam com a música de maneira
aproximada, como o musicoterapeuta, o dançarino, o ator, e mesmo o fonoaudiólogo
e o professor de educação física, por exemplo. Percebe-se, porém, que a
especialização da escuta musical veio proporcionado um refinamento técnico e
segmentado que tem dificultado a articulação das diferentes variáveis envolvidas no
fazer musical. Na posição de estudante de música desde a infância, com formação
superior e pós-graduação na área e trabalhando como professora de canto em
diversos níveis (em ambientes públicos e privados), venho observando uma lacuna
entre o desenvolvimento perceptivo e expressivo em contrapartida ao cognitivo e
semântico em música, que oscila entre duas tendências principais: (a) o destaque
sobre a expressividade em relação ao conhecimento técnico e teórico; e (b) o
domínio teórico, técnico e reflexivo em predominância, se comparado à habilidade
expressiva. Há, certamente, uma percentagem de indivíduos com domínio e trânsito
flexível entre os dois pesos desta balança, mas esta representa a menor parte.
Durante dois anos de minha graduação em música popular na Unicamp,
trabalhei como monitora da disciplina percepção musical, onde pude acompanhar de
perto as dificuldades enfrentadas pelos alunos ao ouvir e emitir sons, e ao realizar
leitura de partituras, ambos por meio da voz. Posteriormente, pude constatar certo
distanciamento entre as disciplinas teóricas e a prática de canto entre os alunos da
antiga Universidade Livre de Música Tom Jobim/SP (ULM , atual EMESP – Escola
de Música do estado de São Paulo), na qual fui professora de canto popular do nível
iniciante ao avançado entre os anos de 2003 e 2006. Entre os alunos de canto
popular deste ambiente (configurado como um curso de formação musical nos
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 15
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

moldes de conservatório), era predominante a habilidade de expressão musical


sobre o conhecimento teórico em música. Muitos já atuavam profissionalmente e a
escuta (do acompanhamento e da própria voz) mostrava-se como principal
ferramenta, por meio da qual faziam escolhas e construíam interpretações. Havia
queixas quanto às disciplinas teóricas, cujos conteúdos não conseguiam absorver de
maneira satisfatória por conta de dificuldades elementares relacionadas à escrita
musical, comprometendo a articulação entre prática e teoria.
Encontrei uma situação contrária entre os alunos de Licenciatura em
Música da Universidade Federal de São João del Rei/MG (UFSJ), onde fui docente
das disciplinas de Canto Popular, Percepção Musical e Prática em Conjunto entre
2006 e 2009. Muitos alunos, oriundos de conservatórios e vinculados a cursos de
música erudita, se assustaram na primeira aula de instrumento, quando requisitei
que aprendessem uma música de ouvido, por imitação, devendo repetir uma frase
cantada por mim. Era flagrante a necessidade de presença de uma partitura para a
realização musical. Continuo a constatar a falta de diálogo entre as disciplinas
interpretativas, práticas e teórico-reflexivas no curso de Licenciatura em Música da
Universidade Federal de São Carlos/SP (UFSCar), onde exerço docência desde
2009, principalmente nas disciplinas de Linguagem e Estruturação Musical, e Voz e
Expressão.
Especificamente sobre a aprendizagem de música popular – que desde
seu surgimento existiu independentemente da escola – sua entrada na Universidade
acompanhou uma estrutura de funcionamento do ensino tradicional de música, em
que o material musical é abordado num amplo conjunto de disciplinas individuais.
Ainda recente se comparada a outras áreas, mas com uma trajetória que amplia a
cada ano, esta música que chega ao ambiente dos eruditos (a popular), dispõe cada
vez mais de um conjunto de materiais didáticos para que seja absorvida e
produzida,7 com partituras para o aprendizado de um determinado repertório, livros

7
No Brasil, as editoras que mais produzem materiais didáticos voltados ao ensino/aprendizagem da música
popular são a Lumiar Editora (cujo material é atualmente distribuído pela Irmãos Vitale) e a editora Irmãos
Vitale (<http://www.lumiar.com.br/>, <http://www.vitale.com.br/>). Incluímos, aqui, o amplo conjunto de livros
com transcrições de canções da música popular brasileira realizadas por Almir Chediak e os métodos para estudo
instrumental escritos por músicos profissionais. Temos, ainda, um pequeno conjunto de livros didáticos nas
disciplinas de Harmonia e Arranjo. Nestas áreas, a produção norte-americana ocupa um lugar de destaque,
fornecendo alternativas de estudo voltadas ao gênero. Outra ferramenta de ensino para tais áreas é a utilização de
livros voltados ao estudo da música erudita, sobretudo os relacionados à harmonia, contraponto e composição.
Para o estudo aprofundado de harmonia em música popular, ver a pesquisa de doutorado de Freitas (2010),
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 16
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

específicos para o desenvolvimento de técnicas instrumentais voltadas ao estilo,


livros de percepção e harmonia etc., além das abordagens realizadas por diferentes
áreas acadêmicas, como já mencionado anteriormente. Na mesma direção em que
cresceram os suportes didáticos, aumentou a quantidade de estudantes que
começaram a conhecer esta música por meio de partituras e tocá-la sem nunca a
terem ouvido anteriormente; um processo inverso ao encontrado nas práticas
originárias de música popular. Se, por um lado, esta prática possibilitou o acesso
facilitado para os letrados em música, por outro, pôs em risco a absorção de
idiossincrasias do gênero, que são compartilhadas de maneira significativa nas
práticas e criações coletivas, no aprender por imitação, e no “tirar música de ouvido”,
o que requisita a escuta para a realização da performance. Certamente, não só a
escuta sofre prejuízos, mas também a memória e a expressão musical.
Não é a intenção deste trabalho analisar o processo de entrada da música
popular na universidade e traçar sua trajetória de conquistas territoriais no ambiente
acadêmico dentro de seus corridos 25 anos de existência (com o primeiro curso
criado no Brasil pela Universidade Estadual de Campinas, em 1989).8 Busca-se
apenas mostrar que a música popular, ao entrar na escola, ganhou em
determinados aspectos e perdeu em outros. Uma das perdas que considero
relevante – e que tem sido retomada em formatos de curso mais integrados de
estudo da música popular – é o desenvolvimento da escuta articulada com as
demais variáveis reunidas na performance.9

intitulada Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular,
com generosa abordagem sobre a harmonia tonal, e seu uso no âmbito da música popular.
8
A história de criação do Departamento de Música do Instituto de Artes (IA) da Unicamp está disponível no
seguinte endereço: <http://www.iar.unicamp.br/historia/doc_musica.html>.
9
Para cursos mais integrados, ver Escola Portátil de Música, Rio de Janeiro
(<http://www.escolaportatil.com.br/>), e a abordagem desta nas pesquisas de doutorado de Frydberg (2011; a
autora parte dos processos de aprendizagem da música popular guiada pelos gêneros choro e fado) e Greif (2007;
neste a autora faz uma retrospectiva da história dos conservatórios, criados inicialmente na Itália e depois
difundidos em variados lugares do mundo, e dos modelos de educação e ensino musical). Além disso, várias
iniciativas têm surgido amparadas pelo modelo da escola portátil de música, buscando agregar aprendizagem
coletiva, sociabilidade, e trazendo a educação não formal para espaços formais de educação, como os Projetos de
Extensão Universitária intitulados Roda de Samba: Cultura, Sociabilidade e Educação Não Formal (SOUZA,
2010) e Conhecendo o Choro (GALIZIA et al., 2012), ambos da UFSCar e que podem ser conferidos no
seguinte endereço: <http://www.conhecendoochoro.com.br/>. Temos, ainda, especialmente a área de Canto
Popular da Unicamp, que dedica grande parte de seu currículo à escuta, tanto para a análise crítica, quanto para a
ampliação de recursos interpretativos.
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 17
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Reflexões sobre a escuta na formação vocal

Se antes relacionamos a prática musical à escuta, agora vinculamos a voz


ao primeiro instrumento musical do homem, cujo mecanismo se confunde com o
próprio corpo. O desenvolvimento da voz concilia experimentações diversas, aliadas
à imitação de modelos vocais e sons que, captados pelos ouvidos, são recebidos
ainda no útero materno. Naturalmente, desde o primeiro contato com o mundo após
o nascimento, nos comunicamos e exploramos, por meio da voz, as mais variadas
sonoridades, a partir de diferentes gestos vocais. É possível observar que a criança,
na primeira infância, arrisca muitos tipos de emissão com variada gama de timbres,
inicialmente através de balbucios, depois com as primeiras palavras que pronuncia e
ao estabelecer diálogos com o mundo à sua volta; seja por meio do imaginário das
estórias que inventa, quando dá voz a personagens e à sonorização de ambientes,
seja quando imita animais, máquinas, vozes e um conjunto variado de objetos
sonoros, ou, ainda, quando cria ou reproduz melodias. Predominantemente, sua
expressão vocal vem acompanhada de um gesto corporal integralmente
apresentado. A liberdade de expressão aliada à oferta e ao estímulo de produção
sonora com a voz permitem que a criança amplie, num crescendo, a capacidade de
se expressar vocalmente.
Em sociedades tradicionais (assim como em sociedades modernas), o
desenvolvimento vocal acompanha sua estrutura de organização e a forma com que
estas sociedades se relacionam com o mundo. O predomínio do coletivismo, da
agricultura, do rural, do sagrado, da magia e do mito nas esferas sociais e políticas
da primeira contrapõem-se ao predomínio do individualismo, do urbano, da indústria
e da razão da segunda. Em uma ou em outra, as primeiras referências são
fornecidas pelo núcleo familiar, e ampliam-se na medida em que o convívio social se
expande. A diferença de organização interna entre as sociedades reflete na
exploração e na construção da expressão vocal em cada um dos contextos. Por
estarem mais “protegidas” da comunicação acelerada do mundo moderno, as
sociedades tradicionais têm suas características culturais mais preservadas e
perenes. Há uma hierarquia de aprendizagem do ofício, passado dos mais velhos
aos mais novos e feito de maneira oral, o que põe a escuta, a atenção e a prática
em posições de destaque. A recorrência das práticas culturais permite que elas se
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tornem confortáveis àqueles que as praticam, dando liberdade a novas


experimentações, predominantemente num âmbito coletivo, o que gera movência.
Ao fazermos um exercício de escuta do importante material produzido na
França pelo Museu do Homem, intitulado Les Voix du Monde,10 constatamos a
flexibilidade expressiva inerente à voz, mais do que em qualquer outro instrumento
musical. Além de dar suporte para pesquisas no campo da Antropologia, da
Etnomusicologia e para estudos sobre oralidade, a publicação ajuda a ampliar as
possibilidades de escuta do pesquisador na observação da voz na canção popular,
pela diversidade de timbres, emissões e estéticas encontradas em parte desta, em
ressonância aos registros da cultura popular.
Especificamente sobre Milton Nascimento, o violeiro, professor e
pesquisador Ivan Vilela (2010, p. 22) destacou a presença da “África dos congados e
moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões” na música do
cantor/compositor, aspectos que aparecem misturados ao catolicismo popular.
Podemos encontrar traços da cultura popular não só nas estruturas musicais, mas
também na maneira com que o Milton explora sua voz. Seus contrapontos vocais
não obedecem às regras de escrita tradicional de escola; seus desenhos melódicos
improvisados e dissonantes aproximam-se mais da música de comunidades
tradicionais do que do jazz; a sobreposição de vozes em uníssono ou em oitavas em
defasagem sugere um ambiente coletivo de vozes em eco, por serem emitidas pelo
próprio cantor, numa conexão com o mito e com a magia, tão caros às comunidades
tradicionais, e diferenciam-se do uso do uníssono e dobramento em oitavas da
música coral, cuja sincronia é condição obrigatória. Ao longo da carreira, o cantor
explora o canto a duas, três ou mais vozes, sobrepondo sua própria voz ou
combinando-a com cantores, compositores, crianças, instrumentistas, pessoas
comuns. Diferentes timbres são reunidos de maneira a preservar a unicidade de
cada voz dentro do coletivo; uma atitude diferente daquela tomada pela música
coral, erudita ou popular, ou mesmo pelos grupos vocais, nos quais a timbragem das
vozes, para que soem homogêneas, é uma prática sobre a qual muitos grupos
dedicam grande parte de seus ensaios. Ainda que vivendo em uma sociedade
moderna, Milton revela, por meio de sua música, uma afinidade com o modo de criar

10
Este material – composto de três CDs e um texto de 190 páginas sobre a produção vocal em sociedades
tradicionais – traz um conjunto diverso de expressões vocais ao redor do mundo. A publicação é citada nas
pesquisas de Machado (2012, p. 166) e Pucci (2009, p. 172).
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 19
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

de sociedades mais tradicionais frequentemente mediado pela voz. Do ponto de


vista técnico-interpretativo, encontramos aproximações na exploração timbrística
(uso de diferentes cores na extensão vocal, voz soando como outro instrumento ou
gerando novos timbres ao dobrar a linha melódica de outro instrumento), além das
expressões de fala, gritos, sussurros, registrados em alguns discos de sua carreira,
numa proximidade com um ambiente ritual.
Pensando nas sociedades modernas, a partir do momento em que a
aprendizagem passa a ser centralizada pelas instituições de ensino, a voz cede
espaço à escrita, e a leitura em voz alta cede espaço à leitura silenciosa, individual e
isolada. A escuta da voz já não é o principal meio pelo qual o indivíduo busca
conhecimento e estabelece diálogo. A leitura impõe outro ritmo de aprendizagem,
que impacta sobre o tempo na absorção de conteúdo e na produção. No mundo
industrial e capitalista, não há mais tempo para a demora nas experimentações
inerentes ao processo criativo. A produção em série depende de modelos, cujos
padrões são seguidos e multiplicados. Seguir padrões torna-se uma prática
confortável e comum. Numa direção inversa, cresce a intolerância ao diferente.
Podemos verificar cotidianamente o impacto da padronização sobre a voz em nossa
sociedade. De norte a sul do país, os apresentadores de telejornais considerados
mais importantes são aqueles cuja dicção e entonação vocal se assemelham ao
modelo dominante. Há cursos específicos para o desenvolvimento (formatação)
vocal de atores, cantores, professores, políticos, conferencistas e demais profissões
nas quais a voz seja um objeto de trabalho. Crianças têm sido encaminhadas ao
tratamento fonoaudiológico cada vez mais novas – muitas vezes ainda em processo
de experimentação da fala – pela ausência do diálogo sonoro que naturalmente
devesse ocorrer no âmbito familiar ou com seus cuidadores, ou ainda por
apresentarem sonoridades e emissões vocais diferentes do padrão. Verifica-se que
o comprometimento no desenvolvimento da fala vem associado ao não exercício da
escuta. A fresta sonora que se abre no contato vocal do indivíduo com a família e
com os outros, de forma geral, é preenchida pelos meios de comunicação de massa
acessíveis, como a televisão, o rádio, a internet. Há padronização vocal nos
segmentos musicais veiculados pela indústria cultural massiva. Assim, passamos a
acessar modelos padronizados, veiculados pelos meios massivos, sobre os quais
grande parte dos indivíduos buscam referências.
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 20
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Caminhos metodológicos

Arriscamos afirmar que a voz seja, talvez, o instrumento mais passível de


se desenvolver por meio da oralidade, o que resulta numa série de desafios para
aqueles empenhados no seu estudo e na estruturação de seu ensino.
A pedagogia do canto popular, mesmo que incipiente se comparada a
outras áreas centenárias, vem se ampliando ano a ano, o que tem impulsionado
pesquisas sobre o tema no ambiente acadêmico, bem como publicações lançadas
no mercado, o que colabora para o conjunto de terminologias necessárias à
descrição do evento vocal. Compondo este material, alguns estudiosos e estudiosas
buscam estabelecer padrões de estudo técnico e/ou abordam a fisiologia vocal, tais
como Marsola & Baê (2000), Leite (2001), Piccolo (2005), Goulart & Cooper (2003,
vol. 1, e 2013, vol. 2), Pacheco & Baê (2006) e Rezende Ferraz (2010, no caso da
autora, para o repertório específico de choro cantado). Já outros procuram
compreender o processo de aprendizagem no canto popular e/ou na música
folclórica mapeando possibilidades metodológicas para o ensino, como temos em
Queiroz (2009), Assis (2009), Lima (2010) e Sandroni (2013). Encontramos, ainda,
estudos que focam nos recursos técnicos e interpretativos da voz, com suporte
tecnológico para a análise vocal, como em Piccolo (2006), e aqueles que dão
destaque para aspectos expressivos da voz, como Latorre (2002), a partir da escuta
de épocas; por sua vez, Machado (2007), focaliza as vocalidades da vanguarda
paulista e Machado (2012), enfoca os diferentes gestos vocais a partir de uma
análise semiótica comparativa entre cantores na execução de um mesmo repertório.
Há, também, aqueles que buscam compreender o quadro atual de ensino de canto
no Brasil a partir das terminologias utilizadas por professores eruditos e populares,
como observamos em Mariz (2013).
Conforme expõe Machado (2011, p. 24), o cantor, popular ou erudito,
inicialmente estabelece uma relação intuitiva com sua voz. Se observarmos a
trajetória da canção popular brasileira no século XX, percebemos que as gravações
foram importantes referências para a aprendizagem dos cantores populares. Eles
construíam suas interpretações entre imitações e buscas sonoras guiadas pelo
ouvido. Milton Nascimento compõe este grupo de cantores cuja voz foi se movendo
ao longo da carreira, revelando características daqueles que o precederam e
A voz de Milton Nascimento em presença Introdução I 21
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

agregando outros sons e maneiras de utilizar a voz a partir de experimentações e


criações coletivas.
A escuta, como vimos descrevendo desde o início, é ação relevante no
desenvolvimento musical e igualmente importante no desenvolvimento de pesquisas
sobre música. Conforme alerta Vilela (2014), ouvir a música, as gravações, é
imprescindível para aquele que vai realizar um trabalho musicológico, não se
restringindo apenas àquilo que já foi escrito sobre o tema, para evitar o risco de
chegar a conclusões equivocadas. Em 2003, o historiador Marcos Napolitano já
havia publicado um artigo destacando O fonograma como fonte de pesquisa
histórica sobre música popular e, em 2007, reforça sua proposição, atribuindo ao
fonograma seu grande potencial de pesquisa. O autor chega a “apontar uma
necessidade de teoria do fonograma clássico” (NAPOLITANO, 2007, p. 169). Nessa
perspectiva, a presente pesquisa tem, como principal fonte, a escuta de fonogramas
que, em diálogo com os estudos sobre oralidade e a semiótica da canção, pretende
apresentar a voz de Milton Nascimento em presença.*

__________________________
* Dada a natureza musical da presente Tese, este arquivo (em formato .pdf) é interativo e contêm áudios
musicais. Ao longo dos capítulos, se apresentam botões com o símbolo de play (►). Clicando neles, abrem-se
caixas de diálogo que executam trechos de canções interpretadas por Milton Nascimento, colaborando para o
entendimento do teor textual da Tese, bem como de seu objeto de estudo.
Para um melhor desempenho, recomenda-se manipular o arquivo com exclusividade, ou seja, fechar
navegadores de internet ou quaisquer outros programas que estejam em execução. As caixas de diálogo, uma
vez abertas, devem ser fechadas (clicando no seu pequeno "X" que aparece no canto superior direito da caixa),
para evitar que se sobreponham e sobrecarreguem o arquivo, comprometendo sua funcionalidade.

Atenção: é necessário ter instalado o Adobe Flash Player em seu computador. Para atualizá-lo ou baixá-lo,
acesse https://get.adobe.com/br/flashplayer/ e siga as instruções.
A voz de Milton Nascimento em presença Apresentação I 22
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

APRESENTAÇÃO

A primeira vez que tive contato intenso com a música mineira foi no ano
de 1996, ocasião em que morei na cidade de Viçosa/MG. Tendo acabado de
ingressar no curso de Arquitetura pude ouvir, de maneira recorrente, nos diversos
espaços que frequentava, a música de Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e a
tão conhecida produção musical do Clube da Esquina. Para mim, um novo repertório
se revelava. Apesar de conhecer algumas canções e já cantar um conjunto delas,
não tinha a dimensão da produção destes artistas que, para muitos dos meus
colegas, era absolutamente familiar. Ali tive a oportunidade de assistir a vários
shows destes compositores ao vivo e perceber que, para mim, uma mineira do
Triângulo Mineiro, era diferente ouvir esse repertório noutra região do estado,
rodeada por montanhas. Minas Gerais tem esta aura.
Minhas aulas na universidade eram entremeadas por apresentações que
fazia nos bares da cidade. Por meio da voz e do violão aprendia melodias,
experimentava harmonias, ampliava meu repertório. As apresentações se tornaram
mais interessantes do que as aulas, o que me levou a repensar o caminho
profissional. O estudo musical me acompanhava desde a infância, levando-me a
concluir que tive um acidente de percurso.
Levei este repertório adiante, o que culminou o desenvolvimento, em
1999 (já cursando Música Popular na Unicamp), da pesquisa de Iniciação Científica
intitulada Buscando a essência da música de Lô Borges. Ainda que rodeada por
uma série de conhecimentos acerca da música popular brasileira e do Jazz, a partir
das disciplinas tanto práticas (canto, prática de conjunto, arranjo, por exemplo),
quanto reflexivas (história da música, história do jazz), e de um mundo musical que
se abria cada vez mais, intuía que precisava investigar mais a música mineira.
Tal intuição me levou ao tema de mestrado, no qual objetivei estudar A
sonoridade específica do Clube da Esquina. Apesar do meu instrumento principal na
universidade ser a voz, sempre me interessei pelas áreas de Arranjo e Harmonia,
que foram focos da minha dissertação.
A aquisição de experiência como professora de canto e o estudo do
repertório do Clube da Esquina despertaram meu interesse em estudar, de maneira
ainda mais aprofundada, a voz de Milton Nascimento que, além de um cantor de
A voz de Milton Nascimento em presença Apresentação I 23
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

destaque, é o centralizador da produção do Grupo. Ao mesmo tempo em que o


conhecimento da técnica vocal me dava suporte para observar o uso da voz,
verificava que a exploração vocal de Milton Nascimento ia além do que era possível
descrever e/ou sistematizar a partir de uma abordagem meramente técnica.
Ao buscar pesquisas e publicações sobre o estudo do canto popular e da
música popular brasileira, fui delineando uma possível abordagem para meu tema de
pesquisa, que culminou na estruturação que apresento a seguir.
Dedica-se o primeiro capítulo ao levantamento de questões sobre a escuta a
partir do objeto de análise: a voz de Milton Nascimento em presença. Uma
abordagem mais ampliada faz-se necessária, a fim de fornecer condições de
observação do objeto sonoro que fossem além da decodificação dos eventos
musicais.
No segundo capítulo, traça-se um panorama do uso da voz por Milton
Nascimento ao longo da carreira, a partir da escuta de todos os discos gravados
pelo artista, o que culminou na classificação de três fases mais ou menos definidas.
A exposição da exploração vocal vem acompanhada da disponibilização dos áudios
dos fragmentos musicais destacados, uma vez que complementam a compreensão
dos comentários realizados no corpo do texto.
Por fim, no terceiro e último capítulo, dá-se mergulho na canção “Clube da
Esquina no 2”, escolhida a partir de um mapeamento das canções regravadas
ao longo da carreira, com a finalidade de expor questões referentes à performance
que estiveram subjacentes desde o início da pesquisa, tais como a presença da
voz, o gesto vocal, os sentidos trazidos pela interpretação, a movência
e as intervocalidades.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 1 I 24
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

CAPÍTULO 1
DA ESCUTA COMO GUIA PARA ABORDAGEM DA VOZ
DE MILTON NASCIMENTO

Para construirmos um caminho de escuta mais aproximado do nosso


objeto de estudo – a saber, a voz de Milton Nascimento – valemo-nos das reflexões
da antropóloga inglesa Ruth Finnegan (2006),11 feitas para a literatura oral e
transpostas para a área musical, especificamente da música popular, realizada pelo
cantor/compositor em questão. Finnegan (2006) menciona que se tornou discurso
comum afirmar, ao se fazerem distinções entre sociedades ou entre períodos
históricos variados, que o surgimento da escrita/linguagem, assim como o do
desenvolvimento tecnológico, deu origem a dois tipos diferentes de sociedade,
criando termos como “não letrados” ou “pré-letrados”, em oposição a “letrados”, ou
“primitivo” em oposição a “civilizado”, para diferenciar aqueles que não dominam a
linguagem ou mesmo não a conhecem, e aqueles que a dominam:

Esse tipo de abordagem é reforçado pela aparente associação entre não letramento e
iletramento. Tende-se a associar o último a um indivíduo ou grupo que fracassou na
tentativa de dominar as habilidades da cultura geralmente aceitas, sendo, assim,
excluído da herança cultural de seus contemporâneos, sem ter nada de seu para pôr
no lugar. É fácil deduzir que um tipo de imagem similar se aplica a culturas não
letradas, em que todos ou a maioria da comunidade não possuem modos escritos de
comunicação. Além disso, todos incorremos facilmente em um hábito mental que
postula que aqueles aparentemente muito diferentes de nós necessariamente têm
menos sabedoria, menos sensibilidade para as belezas ou tragédias da vida – e por
isso devem, forçosamente, ser considerados, no mínimo, como se pensassem de
forma diferente. Esse tipo de percepção também nos torna aptos a abraçar uma visão
que coloca as sociedades não letradas e seus habitantes no outro extremo de um
grande abismo, separando-as de culturas mais familiares que se baseiam na palavra
escrita (FINNEGAN, 2006, p. 65-66).

No caso da música popular, hoje podemos comprovar que, em muitos


casos, a ausência ou a falta de domínio sobre a escrita e a leitura musical não
impactaram sobre a qualidade de sua produção. Podemos reconhecer que há um
modo distinto de pensar em relação à cultura alfabetizada em música – e que não
representa a oposição primitivo/civilizado. Se comparada à literatura oral trazida por

11
O capítulo em questão, intitulado O significado da literatura em culturas orais, é parte da obra “A tradição
oral” (ver FINNEGAN, 2006).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 1 I 25
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Finnegan (2006), a música popular circula com maior facilidade em decorrência do


mercado de bens culturais cujas gravações são difundidas pela indústria fonográfica,
rádio, televisão, internet. No caso de Milton Nascimento, encontrarmos em sua obra
uma gama variada de características, que a coloca em equilíbrio com grandes
compositores e intérpretes ao redor do mundo. Conforme atesta o compositor, sua
relação com a música é profunda, construída desde o início pela escuta atenta de
repertório variado, a partir da qual aprendia melodias e harmonias, criava arranjos e
posteriormente composições, num processo de experimentação constante que lhe
acompanhou ao longo de toda a carreira até os dias atuais.12
Refinado dos pontos de vista vocal e composicional (incluindo aí o
arranjo), conquistados pela prática e experimentação guiadas pela escuta, a
abordagem da música de Milton requer um ouvido apurado para questões musicais
específicas; por outro lado, sua obra remete a escutas sociológicas, etnográficas,
filosóficas e psicanalíticas. Esta integração é latente em sua produção, tanto do
ponto de vista textual13 quanto sonoro.

12
Encontramos estas informações no livro A música de Milton Nascimento, de Chico Amaral (2013), nas
entrevistas realizadas com o compositor. Vale a transcrição de um trecho em que é possível compreender a
relação de Milton com a escuta, a partitura e a criação. Ao fazer menção sobre a gravação da música “Berceuse”
de Ravel para um disco feito com os irmãos jazzistas Belmondo, lançado em 2009, e na qual utiliza a sua
sanfona ganha ainda na infância, sem teclas e sem cilindros, e de quatro baixos, Milton fala: “Quando eu fui
fazer aquele disco com os irmãos Belmondo na França, aconteceu o seguinte: no dia do ensaio, eu acordei e a
minha sanfona estava ao lado da minha cama. Fiquei naquele negócio: eu não trouxe, ninguém falou que
trouxe... quer dizer, até hoje eu não sei! Nós fomos para o ensaio, eu resolvi levar a sanfona só de brincadeira.
Tinha uma música do Ravel [“Berceuse”] e eu peguei a partitura; vi que era em sol maior ou mi menor, e
comecei a prestar atenção, e essa foi a primeira vez que cantei lendo partitura. Tinha uma hora em que eu
acabava de cantar e o trompetista começava seu improviso. Eu fiquei prestando atenção naquilo, depois eu
voltaria cantando, e aí eu falei assim: ah, deixa! Peguei a sanfona, coloquei no colo sem ninguém ver e, quando
ele acabou, eu comecei – está lá no CD. Quando acabou o primeiro show, com sinfônica e tudo, eu dei um berro
no palco, coisa que eu nunca fiz na vida – uhu!, tipo assim, né? Aí o maestro olhou pra mim, eu pensei: lá vem
coisa! Só que ele fez a orquestra bater palma, desceu lá daquele negócio, e veio e esticou a mão pra mim. Eu me
levantei, ele me cumprimentou e fez o pessoal bater mais palma. Eu pensei: meu Deus do céu, como é que essa
porcaria vem tocar música de Ravel com a Sinfônica na França? Aí, depois, eu estava lá no camarim e – acho
que o Lionel – ele foi lá me visitar e eu falei pra ele: olha que coisa, não pode estar acontecendo, essa sanfona,
que não tem nem sustenido nem bemol nem o diabo a quatro, tocando a música de Ravel! Ele falou pra mim:
“Você está enganado, essa música de Ravel foi terminada agora, com a sua sanfona!” (AMARAL, 2013, p. 49-
51).
13
Conforme observamos no texto que compõe o encarte do disco Anima, de 1982 (CD adaptado do LP lançado
pela Ariola): “Este disco traz aquilo tudo que acredito. Todas as coisas que gosto. Essa vontade de acreditar,
apesar de tudo que acontece no mundo, contrário a essa esperança. A vontade muito grande de cantar, de dizer as
coisas para as pessoas, de falar coisas que a gente ouviu, o que a gente aprendeu e que a gente segue vivendo,
apesar de tudo. O nome do disco é Anima. Anima que vem do latim e significa: sopro, aragem, brisa, vento, ar,
exalação, cheiro, aroma, hálito, bafo, respiração; o que anima, dá vida, alento, vida, existência. Significa alma.
Ente, indivíduo, pessoa, alma dos mortos, habitantes, moradores, coração, afeto, vontade. E fizemos o disco
nessas condições aí: é Alma. Vida. Como sempre é comunhão. É um disco que não é apenas um cantor cantando
as coisas. São várias pessoas trabalhando para acontecer uma coisa, ou para acontecerem muitas, dentro de tudo
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 1 I 26
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Desta forma, encontramos nos tipos de escuta mencionados por Barthes


(2009) um caminho para auxiliar na percepção de estruturas superficiais e
profundas, inerentes ao canto de Milton Nascimento.

1.1 Dos diferentes tipos de escuta

Roland Barthes e Roland Havas, num artigo redigido em 1976 para a


Enciclopédia Einaudi e publicado no livro O Óbvio e o Obtuso,14 propõem três tipos
de escuta: a primeira, a dos indícios, o alerta; a segunda, a da decodificação; e a
terceira, a da significância. O texto apresenta, ainda, uma ampla reflexão sobre os
campos de interposição provocados pelo sonoro e as maneiras pelas quais a escuta
compõe a vida humana permitindo, através dela, a seleção, o reconhecimento ou
sua perda, decorrente da poluição sonora. O tempo e o espaço são variáveis
destacadas: “construída a partir da audição, a escuta, de um ponto de vista
antropológico, é o próprio sentido do espaço e do tempo, pela captação dos graus
de afastamento e dos regressos regulares da excitação sonora” (BARTHES, 2009, p.
236). Chama-se a atenção para o fato de a apropriação do espaço pelo homem ser,
também, sonora, como os ruídos da casa que marcam cada ambiente e os usos que
fazemos deles, por exemplo. Se a escuta possibilita o reconhecimento e dá
significado ao espaço e tempo, ela é capaz de orientar escolhas (conscientes ou
não), tais como: os retornos de Milton Nascimento ao grupo de músicos com quem
produziu nos anos 1960 e 1970; a recorrência de trabalhos coletivos em diferentes
momentos da carreira; e o uso de expressões vocais com as quais teve contato, por
exemplo. Sua obra pode revelar sua escuta, suas memórias e vice-versa.
De acordo com a classificação dos autores, no primeiro tipo de escuta nos
comportamos de maneira semelhante aos animais, o que nos faz reagir de forma
instintiva. Temos reações espontâneas de defesa, medo, guarda, surpresa, alegria,
de acordo com o estímulo sonoro recebido.
Já no segundo tipo, os indícios que compõem o primeiro tipo são
transformados em signos por meio de um código. A mensagem ocupa o centro das
observações. É neste momento em que o objeto de escuta se transforma em pura

que a gente pode fazer neste mundo. Esse disco é realmente uma comunhão, que me dá um alento, uma forte
esperança” (NASCIMENTO, 1982).
14
BARTHES, Roland. O obvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 236-248.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 1 I 27
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

consciência. Sons, timbres, acordes, instrumentação, arranjos, modo de gravação,


texto e voz ganham significado através da performance: “[...] escutar é pôr-se em
postura de descodificar o que é obscuro, confuso ou mudo, para fazer aparecer na
consciência o <<abaixo>> do sentido (o que é vivido, postulado, intencionalizado
como escondido)” (BARTHES, 2009, p. 239).
O terceiro tipo de escuta caminha no sentido de desvelar quem fala, quem
emite. Nele, as fontes sonoras devem ser recebidas com a mesma importância,
desprovidas de seleções, a fim de provocar maior abertura à percepção. Esta escuta
se dá através da escuta psicanalítica.

A escuta da voz inaugura a relação com o outro: a voz, pela qual se reconhece os
outros (como a letra num envelope), indica-nos a sua maneira de ser, a sua alegria ou
sofrimento, o seu estado; ela veicula uma imagem do corpo e, além disso, toda uma
psicologia (fala-se de voz quente, de voz branca etc.) (BARTHES, 2009, p. 243).

Barthes (2009) fala especificamente da escuta da voz, materializada, em


presença, carregada de expressividades as quais podemos perceber e sentir sem
que seja necessária a construção de um protocolo de observações.15 Mais do que
estar “todos ouvidos” para perceber e sentir os estímulos sonoros disparados pela
voz, devemos reconhecer o talento natural do ouvido “para perceber a unicidade de
uma voz que, por si só, é capaz de atestar a unicidade de cada ser humano” 16
(CAVARERO, 2011, p. 17); uma determinada voz, de uma determinada pessoa,
naquele momento específico: uma abordagem que requer uma “escuta”
multifacetada, que encontra ressonância na obra vocal de Milton. Expondo
argumento semelhante ao falar da performance na canção, Finnegan (2008)
argumenta que, hoje, “mais do que sobre a canção, perguntamo-nos sobre como as
pessoas cantam, compõem e escutam, e sobre suas ações e emoções ao fazê-lo”

15
Janete El Haouli, em seu livro Demetrio Stratos: em busca da voz-música, se apoia nos tipos de escuta
sugeridos por Barthes e chama atenção para o fato de que a abertura a novas percepções sonoras envolve
libertar-se dos gostos pessoais e julgamentos: “Para sermos realmente “todos ouvidos”, mudando nosso gostos
pessoais sedimentados – que nos impedem de fruir o diferente, a voz do outro e de aumentar qualitativamente
nossas emoções e prazeres –, é necessário repensar o que é a escuta, bem como a escuta da voz – algo que, sem
dúvida, Demetrio Stratos nos propõe” (EL HAOULI, 2002, p.33). A autora articula, ainda, o terceiro tipo de
escuta de Barthes à poiética da escuta de Susumo Shono que, na sua leitura “requer uma fruição que atenda às
especificidades dos sons, à materialidade de uma voz que emana de um corpo vivo, não extraindo somente
significação verbal e inteligível, mas atenta ao continuum dos matizes sonoros da voz” (EL HAOULI, 2002, p. 40).
16
Conforme ilustra Adriana Cavarero em seu livro, com um fragmento do escritor italiano Italo Calvino
(inserido em uma coleção dedicada aos cinco sentidos, sendo o do escritor representante da audição), Um rei à
escuta: “Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa
voz diferente de todas as outras vozes” (CAVARERO, 2011, p. 17).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 1 I 28
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

(FINNEGAN, 2008, p. 22). Saímos, então, do plano generalizado para pensar sobre
o processo individual de cada artista.
Ao observar a voz, é preciso que não se perca de vista o fato de que ela
também pode existir independentemente da linguagem, ou mesmo prescindir dela.
Valverde (2012) assim o resume, de maneira esclarecedora, quando diz que:

A escuta da voz que canta ultrapassa a mera compreensão das palavras de uma letra
e é capaz de ouvir a voz que soa, sob a voz que diz; como, na própria fala,
precisamos estar atentos ao dizer, e ao modo de dizer, sem reduzi-los ao conteúdo do
que é dito. Além disso, a palavra cantada frequentemente ultrapassa os limites
geográficos e o enquadramento cultural em que foi gerada, uma vez que logo se
dissemantiza em ouvidos estrangeiros, especialmente nesses tempos de globalização,
questionando ainda mais a relação que geralmente se estabelece entre som e
significado, com a redução do som à mera condição de veículo de algo que
supostamente o ultrapassa. Não devemos nos esquecer de que, entre os ouvintes, é
mais comum associar uma canção a sua melodia (que se “aprende” rápido e pode
facilmente ser assoviada, por exemplo) do que a sua letra (que é mais difícil de
memorizar e precisa ser “decorada” até mesmo pelo intérprete profissional)
(VALVERDE, 2012, p. 48).

Partindo da prerrogativa de que por meio da escuta da voz podemos


chegar à intimidade daquele que a emite, o que se propõe aqui é investigar, a partir
de seus variados tipos, o que é captado, como é percebido, ordenado, decodificado
para se chegar àquele que fala. Chama-se a atenção para a decodificação,
entendida como um processo heterogêneo em concordância ao argumento de Hall
(2013):

É bem possível para um indivíduo ou grupo, em um determinado momento,


decodificar no que chamo de “códigos hegemônicos” e, em outro momento, usar
códigos de oposição ou contestatórios. Isso é simplesmente para explicar melhor a
ideia de que a decodificação não é homogênea, de que se pode ler de formas
diferentes e é isso que é a leitura (HALL, 2013, p. 395).

Assim, nossa leitura sonora visa considerar e articular as diferentes


percepções de escuta em torno da voz de Milton Nascimento. Vale ressaltar que
parte do trabalho do artista escolhido para esta pesquisa já foi objeto de escuta em
diferentes momentos, seja de maneira despretensiosa, seja em razão de pesquisas
anteriormente desenvolvidas.17

17
Menciono aqui a pesquisa de Iniciação Científica sobre a obra de Lô Borges, Buscando a essência da música
de Lô Borges, e a pesquisa de Mestrado sobre “A sonoridade específica do Clube da Esquina”, realizadas por
mim em 2001 e 2005, respectivamente, e que envolveram a escuta analítica de vários discos dos músicos
pertencentes ao Clube da Esquina, produzidos predominantemente nos anos de 1960 e 1970.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 1 I 29
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Ao percorrer novamente o conjunto de fonogramas, esperamos


descobrir elementos vocais e expressivos ainda não percebidos.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 30
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CAPÍTULO 2
REVEJO NESTA HORA TUDO QUE OCORREU, MEMÓRIA NÃO MORRERÁ:
A TRAJETÓRIA VOCAL DE MILTON NASCIMENTO AO LONGO DE
50 ANOS DE CARREIRA

Milton Nascimento é um artista que, desde o início da carreira,


estabeleceu diálogos musicais dentro e fora do Brasil. Tanto que seu segundo LP,
de 1969, intitulado Courage, foi gravado no exterior18 com a participação do pianista
de jazz Herbie Hancock, arranjos de Eumir Deodato e com o experiente produtor
Creed Taylor,19 responsável pela produção anterior de outros artistas brasileiros
como Tom Jobim e João Gilberto: uma realização pouco comum aos artistas
iniciantes até então. Demonstrando habilidade para agregar sonoridades, além de
criatividade para mesclar, transformar e fazer surgir novas combinações melódicas e
harmônicas, Milton vai desvelando, ao longo da carreira, sua expressão musical e
vocal, resultante do trabalho coletivo com músicos e compositores
predominantemente mineiros e outros originários de outros estados, como Rio de
Janeiro, por exemplo.20
Por mais que sua obra venha sendo abordada com maior frequência tanto
na academia quanto fora dela, é latente como os aspectos musicais (e da
performance) aparecem predominantemente diluídos, ou mesmo à deriva, em meio
a abordagens históricas, sociológicas, jornalísticas e de crítica literária,21 conforme
sinaliza Vilela (2010). Neste sentido, nossa pesquisa direciona o olhar para os
aspectos vocais de Milton, procurando colaborar para a mudança deste quadro.

18
A primeira, de outras experiências estrangeiras como Native Dancer, 1975; Milton, 1976 e Journey to down,
1979.
19
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, versão online. Disponível em:
<http://www.dicionariompb.com.br/creed-taylor/biografia>. Acesso em: 11/09/2014.
20
Ver na seção das Referências Bibliográficas trabalhos sobre o Clube da Esquina que explicitam os
compositores, parceiros e músicos com os quais Milton trabalhou. O site do Museu do Clube da Esquina
(disponível em <http://www.museuclubedaesquina.org.br/>) também retoma, desde os anos 60 até a atualidade,
trajetórias de artistas que trabalharam com os precursores do Clube da Esquina. Maria Dolores Pires do Rio
Duarte descreve, em seu livro intitulado Travessia: a vida de Milton Nascimento, a trajetória artística de Milton
relatando com detalhes os encontros que se deram com diversos músicos ao longo da carreira.
21
Dentre alguns trabalhos que se dedicam especificamente à música, temos Rodrigues (2000), Nunes (2005),
Cançado (2010), Vilela (2010) e Amaral (2013). Outros trabalhos trazem exemplos da música de Milton em
conjunto com outros artistas.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 31
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

2.1 Há canções e há momentos – 1a fase22

Ao percorrer a trajetória vocal de Milton Nascimento é possível identificar


três fases mais ou menos distintas. A primeira delas está localizada no início da
carreira (1967-1969); a segunda, na década de 1970 (1970-1979); e a terceira, nos
anos de 1980 e 1990. Ao percorrermos auditivamente disco por disco (Travessia,
1967; Courage, 1969; Milton Nascimento, 1969), percebemos que, na primeira fase,
Milton surge enquanto um cantor que explora o registro modal nas três regiões
(grave, média e aguda), já com ampla tessitura e sonoridade mais homogênea e
contida ►. Ocorre maior projeção em regiões agudas de algumas canções, em
decorrência do desenho melódico da própria composição (“Travessia”, 1967 ►,23
1969; “Canção do Sal”, 1967 ►). A emissão se apresenta mais coberta, resultando
num som arredondado. Com timbre rico em harmônicos graves e ampla ressonância
nas variadas regiões exploradas, a voz é utilizada para expor a melodia das
composições que, nesta fase, trazem predominantemente uma textura de melodia
acompanhada. Encontramos algumas exceções, como na composição “Catavento”
(1967) ►, na qual Milton realiza a introdução, dobrando a linha melódica do
contrabaixo com a voz, (em sílabas dom, tom, teim, dem) e, posteriormente, emite a
melodia da composição instrumental juntamente com a flauta ►. Em “Gira, Girou”
(1967) ►, também podemos ouvir sua voz dobrar uma linha melódica do arranjo
realizada pelo violoncelo (como em “Vera Cruz”, 1969 ►, cantando a melodia
principal em lá, lá, lá, e dobrando a melodia do arranjo no final em sílabas tom, dom
►). A presença de “Catavento” no primeiro disco da carreira já sinaliza a
proximidade do artista com a música instrumental, que será potencializada ao longo
dos anos. “Rio Vermelho” (1969) ►, um samba-jazz de forma irregular – na qual a
voz aparece projetada e frontal em praticamente toda a gravação – é outro exemplo
desta proximidade. A sonoridade jazzística marca o disco Courage (1969), com
graves mais ressaltadas no acompanhamento e improvisações mais livres, cuja
estética ressoa na voz de Milton, conforme percebemos na escolha das sílabas para
vocalizar a melodia na composição “Rio Vermelho”: metade canção, metade

22
Este e os próximos subtítulos deste capítulo são trechos da canção “Canções e Momentos”, de Milton
Nascimento e Fernando Brant, gravada no disco Yauretê, de 1987. A escolha de tais trechos deu-se por
acreditarmos que eles sintetizam a trajetória vocal do cantor/compositor estudado.
23
O ano ao lado das composições está relacionado ao ano do disco em que foram gravadas.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 32
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

instrumental (Figura 2.1). Percebemos que, mais adiante na carreira, Milton vai
privilegiar os sons vocálicos em contrapartida aos ataques consonantais em
melodias vocalizadas.

Figura 2.1 Primeira exposição da parte A de “Rio Vermelho”. ►

O lirismo e a adjacência com a estética vocal do samba-canção são


revelados em “Maria, minha fé” (1967), por meio do uso do vibrato e prolongamentos
vocálicos que ocorrem na região grave (e a vontade de se dar/ ouço a tudo e meu
silêncio/ traz Maria junto a mim ►). Por outro lado, o falsete é apresentado pela
primeira vez, timidamente emitido nas notas mais agudas dos versos (meu trabalho,
tudo feito pra Maria ►). Ainda nesta canção, cuja melodia é predominantemente
descendente, Milton explora a voz contida em regiões agudas sobre um arranjo
orquestral contrapontístico. Em “Outubro” (1967), notamos uma quebra na
expectativa do ouvinte. Construída sobre uma forma pouco usual (ABCCA), a seção
B soa como uma grande preparação para a seção C, realizando acordes maiores
com sétima menor, e acordes maiores com quarta suspensa24 (com exceção do
último acorde, que é resultante de empréstimo modal) dispostos de maneira
ascendente (Asus ➝ A7(13,9) ➝ Csus ➝ C7(9) ➝ Dsus ➝ D7(9) ➝ Dsus ➝ Cm/D).
Este movimento ascendente – que desembocará num acorde de Sol maior (G9) –
também se manifesta na melodia e é seguido pelo acompanhamento e pela voz num
crescendo de dinâmica. A expectativa é a de que se chegue à seção C (composta
em tom maior, em contraste à seção A, em tom menor) com voz projetada e potente.
No entanto, o que ouvimos é uma voz contida e centralizada (Ah, jogar o meu braço
no mundo), seguida por uma emissão mais metalizada (fazer meu outubro de

24
Ver Amaral, p. 366-367.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 33
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

homem), retornando, logo após, a uma posição mais central (matar com amor) ►. A
falta de previsibilidade prende a atenção do ouvinte, que se surpreende ao ter sua
expectativa interrompida. Já na gravação de “Outubro”, do disco Courage, a voz
chega projetada na seção C, mas ocorre um distanciamento do microfone no
momento da gravação e a inserção de reverb, o que faz com que a voz se apresente
num volume menor do que a seção anterior. Percebemos, ainda, que o andamento
das canções fica mais acelerado nas regravações presentes no disco Courage (em
“Travessia” – 1967 e 1969, “Catavento” – 1967 e 1969, e “Canção do Sal” – 1967 e
1969, por exemplo).
Em “Sentinela” (1969) ►, podemos ouvir a clareza na pronúncia das
sílabas, característica que irá acompanhar toda a carreira de Milton. O efeito reverb
é inserido na vocalização ►, trazendo profundidade e efeito de eco, e se
compatibiliza com trechos da letra: “memória não morrerá/ longe ouço esta voz/ que
o tempo não vai levar”. Mais à frente, veremos tal efeito vincular-se não só à
memória, mas também aos sonhos explorados no repertório gravado na década de
1970. Em “Rosa do ventre” (1969), identificamos o uso de ornamentação na melodia
através da bordadura superior realizada rapidamente no trecho das frases: “velhas
avenidas me cercando vou passar ►... corpo se descobre a outro corpo e nada
mais” ►. A voz começa a aparecer mais mesclada à massa sonora do
acompanhamento como na introdução e no final da canção “Tarde” (1969) ►. Ainda
nesta canção, a voz de Milton é contida, homogênea e pouco projetada ►,
remetendo a uma emissão bossa novista sobre um acompanhamento que se
aproxima do samba-canção (samba lento em 2/4), além de trazer uma temática
própria do gênero: “Das sombras quero voltar/ somente aprendi muita dor/ e vi com
tristeza o amor/ morrer devagar, se apagar...”. Fica evidente que Milton traz no seu
cantar e em parte de suas composições estéticas destes dois gêneros musicais.
No disco Milton Nascimento (1969), percebemos o uso privilegiado da
percussão, que sai da posição de acompanhante para dividir o primeiro plano com a
voz nas canções “Pescaria” ►, “Pai Grande” ►, “Quatro luas” ► e “Aqui, ó” ►. Em
“Aqui, ó”, Milton mostra sua liberdade em transitar de uma articulação mais
tematizada para outra mais distendida, como observado no trecho “tem benção de
Deus/ todo aquele que trabalha no escritório” ►. Dentre as poucas aparições do
falsete nesta primeira fase, podemos ouvi-lo em “Pai Grande” (1969), na entrada da
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 34
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

seção B ►. Tal vocalização se dá com uso predominante de vogais (Figura 2.2) e,


mais uma vez, o reverb é utilizado, ambientando a voz no mesmo plano do
acompanhamento.

Figura 2.2 Vocalização em falsete na canção “Pai Grande”. Gravação do disco Milton Nascimento
(1969).

Milton inaugura o uso do falsete como um recurso timbrístico, que é


emitido com leveza, tendo em vista que, no mesmo disco, podemos ouvir em
“Sentinela”, sua voz chegar a notas semelhantes, de maneira projetada e em registro
modal (Figura 2.3).

Figura 2.3 Trecho da canção “Sentinela” (1969) ►.

A primeira fase, marcada por uma entoação predominantemente cantada,


já sinaliza a movência da voz, que veremos ser intensificada nos anos de 1970.

2.2 A voz é um instrumento que eu não posso controlar – 2a fase

Acreditamos que o fato de Milton Nascimento transitar entre vários


instrumentos (como a sanfona, o contrabaixo, o piano e o violão) tenha contribuído
para a exploração timbrística e interpretativa da voz que notamos desde o início da
carreira, e que este aspecto se intensifica na década de 1970. Além disto, o convívio
com um grupo grande de músicos e compositores – incluindo os letristas, altamente
competentes – cria uma ambiência que dá estímulo ao processo criativo e a
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 35
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

experimentações. Aos poucos, fica claro que a variedade interpretativa do seu canto
se harmoniza com a variedade das características intrínsecas da composição, tais
como: as mudanças de andamento e/ou de rítmica (“Vera Cruz”, 1969;
“Três pontas”, 1967; “Gira Girou”, 1967; “Pescaria”, 1969; “Beco do Mota”, 1969;
► "Pai Grande”, 1969 ; “Amigo, Amiga”, 1970 ; “Canto Latino”, 1970;
“Alunar”, 1970; e “Os Escravos de Jó”, 1973, são alguns exemplos); as
misturas modal e tonal da harmonia, o uso concomitante de tonalidade maior e
menor (“Crença”, 1967; “Tarde”, 1969; “Nuvem Cigana”, 1970; “Maria, Maria”, 1978);
o uso de acorde de quinta menor (“Travessia”); os compassos ímpares (“Rosa do
Ventre”, 1969, com mudança de fórmula de compasso de 7/4 para 2/4; “Saídas e
Bandeiras”, 1972; “Cravo e canela”, 1972; “Lílian”, 1972); a junção de estilos
variados de ritmos num mesmo disco (Milton, 1975); ou ainda a imprevisibilidade de
repertório (presença da canção “Felicidade”, de Tom Jobim, no disco Milton, 1970,
gravado com a banda Som Imaginário, por exemplo); as polirritmias (“Sentinela”,
1969; “Pai Grande”, 1969; “Sunset Marquis 333 Los Angeles”, 1969). São estas
algumas das variáveis. Já no período anterior (1967-1969), notamos que
praticamente toda a estrutura formal do arranjo já está definida na própria
composição.
O período que estamos considerando como segunda fase, do ponto de
vista vocal, abarca um conjunto de 10 discos: Milton, 1970; Clube da esquina, 1972;
Milagre dos peixes, 1973; Milagre dos peixes ao vivo, 1974; Minas, 1975; Native
dancer, 1975; Geraes, 1976; Milton, 1976; Clube da esquina 2; e Journal to down,
1979. Escolhemos destacar características vocais que não se manifestaram – ou
que apareceram de maneira tímida – nos discos anteriores.
Em Milton (1970), por exemplo, pela primeira vez ouvimos um som vocal
ruidoso, utilizado como recurso interpretativo, que parece misturar o registro basal25
com o modal na canção “Amigo, amiga”, no trecho “/em terras de beira-mar/” ►.
Milton faz uso localizado de entoação próxima à fala no final do verso “/meu coração
é deserto/” ► (o que ocorrerá também em “Ao que vai nascer” (1972), na frase
“/respostas virão do tempo/” ► e no trecho “/um espelho feria meu olho/...vinhos do
sul”) ►. As ornamentações da melodia começam a ganhar mais espaço. Ouvimos

25
O registro basal ou fry permite alcançar notas extremamente graves. “Em virtude de um índice de crepitação
percebido auditivamente na produção deste tipo de som, ele também recebeu o nome de fry (frito)”
(MACHADO, 2012, p. 50).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 36
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

em “Amigo, amiga” (1970) a inserção de bordadura em nota sustentada (/o rumo de


encontrar/) ► e a inserção de notas de passagem cromáticas como mostrado no
trecho abaixo (Figura 2.4):

Figura 2.4 Exemplos de ornamentação da melodia em “Amigo, amiga” (1970) ►.

Há projeção frontal com impulso sonoro vigoroso em “Maria, três filhos”


(1970) ►. Em “Durango Kid” (1970), ouvimos portamentos descendentes que Milton
utilizará com frequência ao longo da carreira (de terça maior para fundamental do
acorde e por graus conjuntos no trecho “/Durango Kid/” ►; e de quinta para quarta
do acorde em “/eu vim trazer/” ►, no caso da canção citada).
Apresentar a melodia da canção com a voz dobrada por um instrumento é
outra característica que se tornará recorrente, como já havia ocorrido
em “Catavento”, 1967 (voz e flauta); e agora em “Clube da Esquina”, 1970 (voz e
violão) ►; “Nuvem Cigana”, 1972 (voz e guitarra) ►; “Clube da Esquina no 2”, 1972
(voz e violão) ►, e muitas outras canções. Tal dobra é utilizada, ainda, na
construção de contracantos e improvisos como ocorre em “Dos Cruces” (1972) ►,
“Clube da Esquina no 2” (1972) ►, “Me deixa em paz” (1972) ►, e “Ao que vai
nascer” (1972) ►.
Percebemos que, a partir do disco Clube da Esquina (1972), Milton
manipula com mais domínio a região aguda do registro modal de maneira a suavizar
a passagem da voz de cabeça para o falsete. Para isso, ele emite com suavidade e
em posição mediana tais notas agudas do registro modal, o que pode ser observado
nas canções “San Vicente” ►, “Clube da Esquina no 2” ► e “Um gosto de sol” ►.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 37
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Tal procedimento permite agregar mais uma maneira de se chegar a regiões


agudas. Notamos que a emissão vai se tornando mais clara do que no início da
carreira, e o vibrato é utilizado de maneira econômica. O caráter imprevisível da
interpretação de Milton se mantém. Ainda no disco Clube da Esquina (1972), por
exemplo, ouvimos sua voz chegar a agudos de maneira mais homogênea e
suavizada, como mencionado anteriormente, ou projetada frontalmente com alta
pressão subglótica em “Os povos” ►, ou, ainda, projetada inteiramente em falsete
como em “Lílian” ►.
No disco Milagre dos Peixes (1973), a voz é predominantemente
ambientada no interior da massa sonora dos instrumentos, cuja profundidade é
ressaltada com o uso do reverb. Milton mostra o poder de alcance de sua voz ao
atingir notas extremamente agudas (nota sol 4)26 como verificado em “A chamada”
►. O uso da respiração como recurso expressivo pode ser verificado em
“Sacramento” ►.
Milagres dos peixes ao vivo (1974) inaugura o primeiro do amplo conjunto
de discos ao vivo gravados por Milton Nascimento ao longo da carreira.
Naturalmente, a voz é tomada pela carga emotiva de uma apresentação ao vivo e,
principalmente, pelo fato de o disco se remeter ao trabalho anterior (que teve um
grande número de canções censuradas). Milton alterna entoação de fala e canto nas
canções “Outubro” ► e “Sabe Você” ►. Assim como em muitos de seus discos ao
vivo, canções inéditas são apresentadas; no caso deste, a canção “Viola, Violar” ►.
Ouvimos ainda Milton reproduzir o efeito de reverb com voz, ao repetir palavras do
texto da canção, dando a elas mais de um sentido, como na canção
"Bodas" (Chegou no porto um canhão/ dentro de uma canhoneira, neira, neira.../
com o cacau dessa mata, mata, mata...) ►. Tal prática se repetirá vinculada à
estrutura da própria composição, como em “Clube da Esquina no 2” (1993), por
exemplo: “/Nem lembra se olhou pra trás/ ao primeiro passo, aço, aço, aço.../” ►.
Os anos de 1975 e 1976 são marcados por quatro produções em disco,
extremamente refinadas do ponto de vista composicional e interpretativo: Minas
(1975), Native Dancer (1975), Geraes (1976) e Milton (1976). Enquanto intérprete,
Milton confirma sua competência e criatividade para interpretar vocalmente
diferentes ritmos, em andamentos variados, com linhas melódicas contendo

26
Estamos seguindo o padrão de numeração que considera o dó central como 3.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 38
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

diferentes níveis de dissonância e complexidade, a uma ou mais vozes, e utilizando


variadas cores timbrísticas, emissões e maneiras de entoar sua voz.
No disco Minas (1975), as vozes de criança aparecem agora diluídas ao
longo do disco e em coro. “Trastevere” é a canção do disco que apresenta as
características mais diferentes do que já vinha sendo apresentado nos trabalhos
anteriores, e se desenvolve por meio de uma fala cantada ►. Notamos o uso mais
ressaltado de vibrato na emissão, conferindo maior corpo ao timbre. Em Native
Dancer (1975), as canções regravadas são interpretadas em andamento acelerado.
O falsete é utilizado em grande quantidade nas melodias principais, nos
contracantos e em diálogo com o saxofone de Wayne Shorter. Na composição “From
the Lonely Afternoons”, inclusive, Milton aproxima o timbre de sua voz ao do
saxofone do jazzista ►. Em Geraes (1976), há emprego ressaltado do coro formado
pelos músicos participantes. O disco traz o encontro harmonioso das vozes de Milton
e Mercedes Sosa. Com passagem homogênea da voz de cabeça para a voz de
peito, Milton promove uma timbragem equilibrada com a voz da cantora na canção
“Volver a Los 17” ►. Em “Menino”, a voz está a serviço do texto, cujo grito é
expresso através da voz projetada frontalmente no agudo ►. No dueto que realiza
com Chico Buarque em “O que será (à flor da pele)”, mais uma vez as vozes se
equilibram. No momento em que há abertura de vozes, Milton realiza a melodia de
forma mais aguda, enquanto que Chico fica na região mais grave, fator que
compensa a natureza da voz do compositor, aguda e nasal, em comparação à de
Milton Nascimento, rica em harmônicos graves ►. “Carro de Boi” traz glissandos de
maneira ressaltada, além de apresentar a voz de Milton sobreposta em uníssono ►
(assim como em “Viver de amor” ►). Um novo recurso interpretativo que irá ocorrer
em “Viver de amor”, aliás, é o diálogo que Milton realiza entre sua voz em registro
modal e em registro elevado ►. Emitindo timbres bem diferentes, tais sonoridades
sugerem dois instrumentos, revelando “as vozes que ele [Milton] traz no interior” da
própria voz. O mesmo ocorre em “Raça” ►, gravada no disco Milton (1976). Neste, a
voz em presença ganha corpo sem texto nas composições “Francisco” ► e
“Chamada” ►.
Se comparado ao início da década de 1970, o timbre de Milton começa a
trazer uma sonoridade mais metalizada no registro modal, e que pode ser verificada
em “E daí?” ► e “Testamento” ►, presentes em Clube da Esquina 2 (1978). Chama
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 39
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

a atenção, no disco, um conjunto considerável de canções que começam em registro


agudo (“Credo” ►, “Canção amiga” ►, “Mistérios” ►, “Dona Olimpia” ►, “Tanto” ►,
“Léo” ►, “Meu Menino” ► e “Que bom amigo” ►). “Canção da América” surge em
Journal to Down (1979) ►, em inglês e num estilo romântico, próximo à James
Taylor. A maioria do repertório do disco é composta de regravações, com várias
delas cantadas em inglês.

2.2.1 A voz amarra todos nós

A partir do disco Milton (1970), ouvimos a voz ser mais frequentemente


agregada enquanto fonte sonora para a realização de contracantos, vocais, efeitos
incidentais, além de ser usada como solista da melodia principal. Para isso, Milton
agrega a voz do grupo que o acompanha, o que impacta na somatória de timbres,
na variedade de linhas melódicas realizadas pela voz, ora dobrando-se umas às
outras, ora se abrindo em duas ou mais vozes (“Maria, três filhos”, 1970 ►; “Clube
da Esquina”, 1970 ►; “Durango Kid”, 1970 ►; “Pai Grande”, 1970 ►; “Alunar”, 1970
►; “Dos Cruces”, 1972 ►; “Os Escravos de Jó”, 1973 ►; e “Saudade dos Aviões da
Panair”, 1975 ►, são alguns exemplos). No disco Clube da Esquina (1972),
podemos ouvir os timbres de Milton e Beto Guedes mesclados em uníssono na
melodia da canção “Saídas e Bandeiras no 1”, sobre a qual ambos programam a
mudança para o falsete na mesma região, mostrando consciência na construção
interpretativa ►. Tal mistura de vozes ocorre, também, entre Lô Borges e Milton nas
canções “Cravo e canela” ► e “Pelo amor de Deus” ►. A inauguração da presença
da voz infantil se dá no disco Milagre dos peixes (1973), com a canção “Pablo” ►.
Os discos Minas (1975), Geraes (1976) e Clube da Esquina 2 (1978) trazem muitas
canções com a participação vocal dos músicos envolvidos no projeto e de outros
cantores. Além disso, são discos pensados enquanto unidade com presença de
intervocalidades. Milton realiza, ainda, diálogos vocais com sua própria voz a partir
do recurso de sobreposições, como podemos ouvir na canção “E daí?” (1978) ►.
Já no disco Clube da Esquina 2 (1978), ouvimos a presença do grupo
vocal Boca Livre, que traz para a obra de Milton a sonoridade mais homogênea e
timbrada: característica de grupos vocais.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 40
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

2.3 Um só sentimento na plateia e na voz – 3a fase

Dos 17 discos gravados entre 1980 e 1999, sete são ao vivo. Dentre os
registros ao vivo, alguns estão diretamente relacionados à produção anterior, como
no caso do disco Os Tambores de Minas (1998), com seis novos registros para
composições presentes no disco anterior Nascimento (1997) (assim como em
Milagre dos peixes ao vivo (1974), com seis composições presentes no disco
homônimo de estúdio, gravado em 1973). Outros discos trazem um sentido
celebrativo, como Corazón Americano (1984) – que registra o encontro entre
Mercedes Sosa, Leon Gieco e Milton Nascimento, e inclui composições de outros
artistas latino-americanos, como os argentinos Gustavo Santaolalla, Antônio Tarragó
Ros, Ariel Petrocelli, Daniel Toro e Gustavo Santaolalla, a chilena Violeta Parra, o
brasileiro Chico Buarque, os parceiros Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Wagner
Tiso, e ainda o cubano Silvio Rodriguez. A celebração ocorre, ainda, em A barca dos
amantes (1986), que traz novos registros para cinco diferentes canções gravadas
em momentos variados da carreira (“Tarde”, 1969; “Nuvem Cigana”, 1972;
“Maria, Maria”, 1978; “Louvação a Mariama”, 1982; “Lágrima do Sul”, 1985), com a
participação do saxofonista Wayne Shorter, com quem Milton já havia dividido
o disco Native Dancer (1975) e cuja sonoridade podemos ouvir no disco Milton
(1976). O disco Amigo (1995), por sua vez, é uma produção que reúne a Orquestra
Jazz Sinfônica, as vozes das crianças de dois corais (Crianças do programa
Curumim e Rouxinóis, de Dinivópolis/SP), e traz os principais parceiros compositores
(Fernando Brant e Márcio Borges), além de parcerias com Caetano Veloso e Chico
Buarque. Dentre as 12 composições registradas, oito são novas interpretações para
composições gravadas em diferentes momentos da carreira. O disco Milton
Nascimento ao vivo (1983) apresenta, pela primeira vez, a famosa canção “Coração
de estudante”, que aparecerá novamente apenas em discos ao vivo, e as canções
“Nos bailes da vida” (1981), “Um gosto de sol” (1972) e “Para Lennon e McCartney”
(1970). Já O Plante blue na estrada do sol (1981) celebra pessoas queridas, como
Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo/Chico Buarque, além de homenagear a
Agostinho Santos com um de seus grandes sucessos (“Estrada do Sol”, de Tom
Jobim e Vinícius de Moraes), e John Lennon e Paul McCartney com a canção “Hello
Goodbye”. Num projeto mais específico, Missa dos quilombos (1982) surge para
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 41
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

celebrar, nas palavras de Dom Pedro Casaldália, “a morte e a Ressurreição do Povo


Negro, na Morte e Ressurreição do Cristo”.27
O conjunto de discos de estúdio é formado por Sentinela (1980), Caçador
de mim (1981), Anima (1982), Encontros e despedidas (1985), Yauaretê, (1987),
Miltons (1988), Txai (1990), Angelus (1993), Nascimento (1997) e Crooner (1999).
No disco Sentinela, ouvimos uma emissão mais frontal da voz de Milton. Ao coro, é
dado outro caráter, com participação de grupos vocais autônomos, como Boca Livre
(1980) ► e Roupa Nova (1981) ►. Começamos a ouvir uma voz mais solista. Não
há abandono dos contracantos vocais, mas uma redução no experimentalismo
explorado na década de 1970. No disco Caçador de mim (1981), os arranjos soam
mais fechados e delimitados, com presença de convenções rítmicas trazendo a
música pop. Milton começa a colecionar um conjunto de canções cuja interpretação
arregimenta a grande massa (“Canção da América”, 1980 ; “Caçador de mim”, 1981;
“Nos bailes da vida”, 1981 ►; “Certas Canções”, 1982 ►; “Coração de Estudante”,
1983; “Encontros e Despedidas”, 1985 ►). A voz, em sua plenitude, continua a
atestar a força expressiva de Milton, o instrumento diferenciado de grande poder
sonoro e sua flexibilidade em transitar por diferentes estéticas – como por exemplo
suas vocalizações junto à orquestra em “Evocação das Montanhas” ►, do disco
Anima (1982). Esta fase é marcada pelo uso recorrente das sobreposições de voz
em uníssono ou em oitava. Milton canta em parceria com vozes consagradas da
música popular brasileira, como Nana Caymmi (1980), Caetano Veloso e Simone
(1982), e Gal Costa (1983). Há a valorização das frequências agudas na
equalização da voz nos discos. Inaugura-se o uso do falsete com sonoridade mais
tensa, com emissão mais projetada, frontal e incisiva. O momento de maior
demonstração deste falsete pode ser verificado em “Nuvem Cigana”, registrada no
disco ao vivo A barca dos amantes (1986), nas repetições do trecho “/se você deixar
o coração bater/” ►. Yauaretê (1987) traz a participação de Paul Simon, a canção
“Morro velho”, com levada pop, “Mountain” (“Irmão de fé”) em castelhano, e
“Canções e Momentos”. O disco Txai (1990) é um projeto bastante específico, que
resulta de uma viagem de Milton ao Acre. Milton reproduz parte da sonoridade dos
índios com os quais teve contato. Angelus (1993) e Nascimento (1997) são duas
grandes produções. Enquanto o primeiro traz um conjunto de grandes jazzistas –

27
Trecho do encarte do disco Missa dos Quilombos, de 1982.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 42
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

além de músicos e parceiros frequentes como uma grande reunião expandida para o
mundo –, o segundo olha mais para o interior, do artista, dos ritmos de Minas;
apesar de, pela primeira vez, Milton cantar uma composição de Wayne Shorter, “Ana
Maria”.
Os discos lançados entre 2000 e 2013 celebrarão, predominantemente, o
encontro de Milton com Gilberto Gil (2000), com novas cantoras (Pietá, 2002), com
os discípulos da bossa nova (Novas Bossas, 2008), com os irmãos franceses
jazzistas (Milton Nascimento e Belmondo, 2009), com jovens aspirantes à carreira
musical (...E a gente sonhando, 2010) e, por fim, a comemoração dos 50 anos de
carreira do cantor (2013).

2.4 Quadros de resumo das características vocais em cada uma das fases

1a fase
Ex. Disco Ano Canção Trechos Características vocais
“Travessia”
Sonoridade homogênea
Travessia 1967
“Canção do e contida
Sal”

“Travessia”
Travessia 1967 Projeção nos agudos
“Canção do
Sal”

“Crença”
Travessia 1967 Som arredondado
“Irmão de Fé”

“Catavento”
Travessia 1967
Vocalização de melodias
“Gira Girou”
do arranjo
Courage 1969 “Vera Cruz”

Voz mais projetada e frontal se


Courage 1969 “Rio Vermelho” comparada com os exemplos
anteriores
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 43
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Vocalização com ataques


consonantais

Adjacência com a estética vocal


“Maria, Minha do samba-canção
Travessia 1967
Fé”
Falsete timidamente emitido

Quebra na expectativa do
Travessia 1967 “Outubro” ouvinte (crescendo culmina
numa queda de dinâmica)

Clareza na pronúncia
Milton Nascimento 1969 “Sentinela”
Reverb que traz profundidade
e efeito de eco
Ornamentação de melodia –
bordadura superior
“Rosa do
Milton Nascimento 1969 Dilação do tempo na gravação
Ventre”
para melhor percepção da
bordadura superior
Voz contida, homogênea, pouco
projetada, bossa novista
Milton Nascimento 1969 “Tarde”
Voz mais mesclada à massa
sonora do acompanhamento

“Pescaria”

“Pai Grande”
Milton Nascimento 1969 Uso privilegiado da percussão
“Quatro Luas”

“Aqui, ó”

Articulação tematizada
Milton Nascimento 1969 “Aqui, ó”
e articulação distendida

Falsete enquanto
“Pai Grande”
recurso timbrístico
Milton Nascimento 1969 Notas em alturas semelhantes
“Sentinela” ao exemplo anterior, mas
emitidas em registro modal
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 44
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

2a fase
Ex. Disco Ano Canção Trechos Características vocais

Som vocal ruidoso


Milton 1970 “Amigo, amiga”
Uso da entoação de fala

Uso da entoação de fala


“Ao que vai
Clube da Esquina 1972
nascer”
Uso da entoação de fala

Ornamentação pela inserção de


bordadura em nota sustentada
Milton 1970 “Amigo, amiga”
Ornamentação pela inserção de
notas de passagem
“Maria três
Milton 1970 Projeção frontal
filhos”

Portamento descendente no final


da frase e dobra da própria voz
Milton 1970 “Durango kid”
em uníssono, que ouvimos
intensificar nos anos 1980

“Clube da
Milton 1970
esquina”
Dobra de voz com instrumento
Clube da Esquina 1972 “Nuvem cigana” na realização da melodia
principal
“Clube da
Clube da Esquina 1972 o
esquina n 2”

“Dos cruces”

“Clube da
o
esquina n 2”
Clube da Esquina 1972
“Me deixa Dobra de voz com instrumento
em paz” em contracantos e improvisos
“Ao que vai
nascer”

Geraes 1976 “O que será”


A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 45
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

DIFERENTES MANEIRAS
DE EXPLORAR O AGUDO

“San Vicente” Suaviza as passagens entre


a voz de peito, de cabeça
“Um gosto de e o falsete
sol”
Clube da Esquina 1972
Projeta com alta
“Os povos”
pressão subglótica

“Lílian” Inteiramente em falsete

“A chamada” Grande alcance do agudo (sol 4)


Milagre dos Peixes 1973
Respiração como recurso
“Sacramento”
expressivo

“Outubro”
Milagre dos Peixes Alternância entre entoação
1974
– ao vivo de fala e canto
“Sabe você”

Milagre dos Peixes


1974 “Bodas” Efeito de eco pela repetição
– ao vivo de sílabas (novos sentidos às
“Clube da palavras, trazidos pela intenção
Angelus 1993 o do gesto vocal)
esquina n 2”

VOZES DE CRIANÇA
EM CORO
Através da incidental
Minas 1975 “Minas”
“Paula e Bebeto”
“Ponta de
Minas 1975 Vozes de crianças
areia”

Caráter experimental diferente


Minas 1975 “Trastevere”
do que já havia apresentado

“Ponta de
1975
areia” Uso recorrente do falsete
Native Dancer
“Milagre dos
1975
peixes”

“From the Manipulação do timbre e


Native Dancer 1975 lonely exploração dos diferentes
afternoons” registros na construção de
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 46
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Geraes 1976 “Viver de amor” diferentes sonoridades e


texturas. Diálogos sonoros
Milton 1976 “Raça” a partir da mesma fonte (voz)

Clube da Esquina
o 1978 “E daí?”
n 2

Milton 1976 “Chamada”


Voz em presença ganha
corpo sem texto
Milton 1976 “Francisco”

“Fazenda”

“Calix bento”
Emprego ressaltado da voz dos
“Caldera”
Geraes 1976 músicos participantes como
“Promessa do valorização do coletivo
sol”
“Circo
marimbondo”
“Volver a los Equilíbrio timbrístico e
17” cruzamento das vozes
Equilíbrio na textura
Geraes 1976 “O que será” (voz de Milton numa frequência
superior à de Chico)

“Menino” Voz a serviço do texto

“E daí?”
Clube da Esquina Uso de sonoridade
o 1978
n 2 mais metalizada
“Testamento”
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 47
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

3a fase
Ex. Disco Ano Canção Trechos Características vocais
“Canção da Surgem canções que
América” arregimentam público massivo.
Sentinela 1980
(partic. Boca
Livre) Uso ressaltado de glissandos
e portamentos, tessitura
“Caçador de menos ampla.
Caçador de mim 1981
mim”
Voz solista se destaca em
“Nos bailes da relação ao coro.
vida”
Caçador de mim 1981
(partic. Roupa A equalização da voz privilegia
Nova) frequências agudas em
alguns discos.
“Certas
Anima 1982
canções” A emissão é mais aberta
Encontros e “Encontros e em algumas canções.
1985
despedidas despedidas”
A guitarra aparece com
características diferentes,
A barca dos mais distorcida e explorando
1986 “Nuvem cigana”
amantes a estridência.

“Evocação das
Anima 1982
montanhas” Continua a atestar a força
“Seis horas expressiva da voz
Angelus 1993
da tarde”
Com letra e música singelas,
compostas unicamente por Milton
e que, em conjunto com a
Nascimento 1997 “Rouxinol”
interpretação vocal, traduzem um
momento pessoal específico da vida
do cantor/compositor
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 2 I 48
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Intervocalidades
Ex. Disco Ano Canção Trechos Características vocais
“Ponta de
Minas 1975
areia”
Coro de crianças em lá lá lá
“Coração
Caçador de Mim 1981
civil”

Milagre dos Peixes “Nada será


1974
– ao vivo como antes” Realiza a mesma ponte
Clube da Esquina em ambas as canções
o 1978 “Maria, Maria”
n 2

“Clube da
Clube da Esquina 1972 o
Trecho do improviso da primeira
esquina n 2”
versão usado como variação na
“Clube da seção A” da segunda versão
Angelus 1993 o
esquina n 2”

Milton 1976 “Os povos”


Uso semelhante de dissonâncias
“Clube da no improviso, o que ocorre em
Angelus 1993 o muitos contracantos
esquina n 2”
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 49
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

CAPÍTULO 3
A VOZ VEM DA RAIZ

A obra de Milton Nascimento, registrada em 38 discos,28 é formada por


326 composições, dentre instrumentais e canções, sendo estas últimas
predominantes. Com o intuito de observar a movência no uso da voz pelo
cantor/compositor, nos propomos a realizar um processo de descrição e comentário
mais detalhados a partir da observação do repertório retomado pelo artista ao longo
da carreira. Encontramos 74 composições com mais de um registro, como podemos
verificar na Tabela 3.1.

Tabela 3.1 Relação e localização do disco das canções regravadas ao longo da carreira.

Canções Discos

“Travessia”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Três Pontas”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Crença”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Canção
do Sal”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Morro velho”
Milton Nascimento

28
Não incluímos aqui seus registros em DVDs (5), suas trilhas para longas-metragens (13) e suas participações
em projetos específicos e discos de outros compositores.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 50
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Gira, girou”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Outubro”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Vera Cruz”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Sentinela”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Tarde”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Pai grande”
Milton Nascimento

“Para Lennon e
McCartney”
Lô Borges,
Márcio Borges e
Fernando Brant

“Maria, três
filhos”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Clube da
Esquina”
Milton Nascimento
e Fernando Brant
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 51
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Tudo o que
você podia ser”
Lô Borges e
Márcio Borges

“Cais”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Nuvem
Cigana”
Lô Borges e
Ronaldo Bastos

“Cravo e
canela”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“San Vicente”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Clube da
Esquina
o
n 2”
Milton Nascimento,
Lô Borges e
Márcio Borges

“Os povos”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Um gosto
de sol”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Lílian”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 52
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Nada será
como antes”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Milagre dos
peixes”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“A Chamada”
Milton Nascimento
(instrumental)

o
“Pablo n 2”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos
(instrumental)

“Tema dos
Deuses”
Milton Nascimento

“Hoje é dia
del Rei”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“A última seção
de música”
Milton Nascimento
(instrumental)

“Cadê”
Ruy Guerra e
Milton Nascimento

“Sacramento”
Nelson Angelo e
Milton Nascimento
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 53
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Pablo”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Saudade dos
aviões da
Panair”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Ponta de
areia”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Idolatrada”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Paula e
Bebeto”
Milton Nascimento
e Caetano Veloso

“Simples”
Nelson Angelo

“Calix Bento”
Tavinho Moura

“Volver a
Los 17”
Tavinho Moura

“Promessas
do sol”
Milton Nascimento
e Fernando Brant
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 54
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Circo
marimbondo”
Milton Nascimento
e Ronaldo Bastos

“Raça”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“O cio da terra”
Milton Nascimento
e Chico Buarque

“Credo”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Casamiento
de negros”
Violeta Parra

“O que foi feito


deverá/ O que
foi feito de
Vera”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Léo”
Milton Nascimento
e Chico Buarque
de Hollanda

“Maria, Maria”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Que bom
amigo”
Milton Nascimento
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 55
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Canção da
América”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Sueño con
Serpentes”
Silvio Rodriguez

“Amor amigo”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Caçador de
mim”
Sérgio Magrão e
Luiz Carlos Sá

“Nos bailes da
vida”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Comunhão”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Anima”
Milton Nascimento
e José Renato

“Louvação a
Mariama”
Milton Nascimento,
Pedro Casaldáliga
e Pedro Tierra

“Lágrima do
Sul”
Milton Nascimento
e Marco Antonio
Guimarães
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 56
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Coração de
estudante”
Milton Nascimento
e Wagner Tiso

“Amor de índio”
Beto Guedes e
Ronaldo Bastos

“Feito Nós”
Milton Nascimento
e Paulo Ricardo

“O Planeta
blue”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Canções e
Momentos”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Bola de meia,
bola de gude”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“Hello
Goodbye”
John Lennon e
Paul McCartney

“Estrelada”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

“Sofro calado”
Milton Nascimento
e Régis Faria
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 57
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

“Guardanapos
de papel”
Léo Masliah –
versão de Carlos
Sandroni

“O Rouxinol”
Milton Nascimento

“Janela para
o mundo”
Milton Nascimento
e Fernando Brant

“E agora
rapaz”
Dinho Caninana

“Levantados
do chão”
Milton Nascimento
e Chico Buarque

“Os tambores
de Minas”
Milton Nascimento
e Márcio Borges

Por meio da escuta das composições gravadas ao longo destas cinco


décadas, é possível observar o contraste interpretativo que vai ocorrendo a cada
regravação: uns mais sutis e outros mais ressaltados. Alguns contrastes decorrem
predominantemente do distanciamento temporal, com registros realizados em
décadas distintas, deixando em evidência tanto o frescor quanto a maturidade do
artista, além da vontade e escolha de construir uma nova interpretação para
determinadas canções. Outros resultam do contexto de gravação, diretamente
relacionado à escolha e ao diálogo musical estabelecido com os músicos
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 58
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

participantes. Dentre as modificações ouvidas, algumas estão relacionadas mais ao


acompanhamento e menos à performance vocal. Da triagem inicial, é possível
identificar canções que favorecem a observação da movência da voz, por mais que
esteja acompanhada pela movência do acompanhamento. Dentre este conjunto, a
canção “Clube da Esquina no 2” foi a que mostrou reunida a maior quantidade de
variáveis, as quais vamos expor a seguir, a partir de abordagens analíticas de
Zumthor (1993; 2007), Tagg (2003; 2011), Tatit (2007; 2008) e Machado (2011;
2012).

3.1 A canção “Clube da Esquina no 2”

“Clube da Esquina no 2”, composta por Milton Nascimento, Lô Borges e


Márcio Borges, é uma canção emblemática da carreira de Milton Nascimento por
trazer, no título, o nome pelo qual ficou conhecido o grupo de músicos
predominantemente mineiros, do qual Milton fazia parte e era considerado o
centralizador de ideias,29 e por integrar o repertório do disco Clube da Esquina
(1972), que o artista divide com o então novato Lô Borges: uma obra que tem sido
apontada como primeira reunião das características específicas pelas quais o grupo
ficou conhecido posteriormente. A canção é registrada pela primeira vez de forma
instrumental. A voz de Milton aparece vocalizada, realizando a melodia principal
dobrada por ele mesmo ao violão, sobre uma harmonia que soa circular, apesar de
tonal.30 A canção “Clube da Esquina no 2”, com a letra, surge em 1979, ocasião em
que é gravada por Nana Caymmi31 em seu disco homônimo, e por Lô Borges e sua
irmã Solange Borges no disco A Via Láctea (ambos de 1979). Milton Nascimento a
reinterpreta 21 anos depois da primeira versão instrumental (de 1972), no disco
Angelus (lançado em 1993).

29
Por “organizar” a multiplicidade de timbres, criações musicais, composições, arranjos e estilos originários dos
músicos e compositores, cuja produção musical está concentrada na década de 1970 no Brasil. Sobre o Clube da
Esquina, ver Diniz (2012), em que a pesquisadora promove uma ampla reflexão sobre o grupo e sua produção,
além de reunir as pesquisas desenvolvidas anteriormente sobre o grupo.
30
Os fatores que contribuem para esta observação estão relacionados: (a) ao uso do acorde de dominante apenas
no último compasso das seções A’ e B, que é empregado com quarta suspensa, evitando a sensível e assim,
também o trítono (quarta aumentada formada entre a terça e a sétima do acorde de dominante) que naturalmente
induziria a uma resolução harmônica que não irá ocorrer, e (b) ao uso de acordes de subdominante localizados
nos compassos de tempo forte, o que privilegia a sensação de movimento causada pela função subdominante.
Ver a partitura em Nunes (2005, p. 117). Haverá uma exposição mais detalhada da partitura mais adiante.
31
Márcio Borges (1996, p. 336) conta, em seu livro, que escreveu a letra da canção a pedido de Nana Caymmi,
para que a gravasse em seu disco.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 59
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

3.2 Das características reunidas na gravação de 1972

Composta de uma linha melódica que se expande por saltos no amplo


campo de tessitura somando quase duas oitavas (ré2 á dó#4), a voz dobrada ao
violão por Milton na gravação de 1972 apresentará a melodia da primeira parte,
ficando a melodia da parte B reservada às cordas da orquestra.
A primeira parte sugere algo como uma experimentação melódica que se
desenvolve sobre uma base harmônica constante, e imprime à seção B um caráter
de respiro entre as novas exposições da seção A. Desenhando um formato AA’B, a
variação da seção A, identificada como A’, produz um efeito de eco na seção por
repetir a segunda metade da mesma. Há modificação apenas do acorde do último
compasso, que deixa de ser uma tônica de terceiro grau (F#m) para se tornar uma
dominante com quarta suspensa (A7sus4) que aponta em direção à seção B.

Figura 3.2 Melodia da parte A com as duas metades sobrepostas sobre a mesma progressão harmônica
(primeira metade em cinza e segunda metade em preto).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 60
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Todo o campo de tessitura é explorado na parte A, que se inicia com a


nota mais grave da composição (ré 2) e finaliza oitava acima construindo uma
resultante ascendente, que pode ser verificada pela seta pontilhada no diagrama da
Figura 3.2.
A melodia da parte A se divide em duas metades opostas e
complementares que se desenvolvem sobre a mesma progressão harmônica.
Podemos visualizar, na primeira metade (representada no diagrama da Figura 3.2
pelo cinza claro), um movimento melódico resultante ascendente, que será
equilibrado pelo movimento melódico descendente da segunda metade
(representada no diagrama da Figura 3.2 pelo preto), cuja finalização se estabiliza
num ziguezague/alternância das notas ré e dó#, que repousa no ponto médio do
campo da tessitura.
A voz surge inicialmente no registro modal32 médio grave e percorre um
caminho ascendente, que combina saltos e graus conjuntos até atingir as notas mais
agudas da melodia numa emissão que mescla voz de cabeça e falsete (registro
elevado), com transição suave de uma à outra. A dinâmica é pouco variante. A voz
com pouco volume expõe a melodia através de vocalizações que se misturam ao
timbre agudo do violão, sobre um arranjo de base com padrões constantes,
composto de duas guitarras que executam acordes (ora rasgados, ora dedilhados),
um baixo arpejado, uma bateria econômica e um órgão cujas funções são somar
qualidades timbrísticas e realizar acordes sustentados formando um background
harmônico mais estático. A estrutura melódica é composta de uma parte A mais
movimentada e mais extensa, que se contrasta com uma parte B (Figura 3.3), mais
econômica e com metade da duração da parte A.

32
Há muitas divergências sobre a nomenclatura dos registros vocais. Para uma apresentação mais detalhada ver
as pesquisas de Mariz (2013, p. 53-60) e Piccolo (2006, p. 88-93). Para esta pesquisa, a abordagem resumida –
mas esclarecedora – trazida por Machado (2012, p. 50-51) em sua tese é suficiente, na qual os registros são
divididos em três: (1) basal ou fry, em que a voz atinge frequências extremamente graves; (2) modal, em que a
maior parte da voz falada e cantada é produzida. O registro modal se divide em três sub-registros conforme a
sensação corporal causada por estes: baixo/peito, médio/glótico e alto/cabeça. (3) Por fim, o registro elevado
representado pelo falsete (voz aguda comumente airada) e flauta (assovio).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 61
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Figura 3.3 Melodia da parte B.

O momento de maior exploração e exposição vocal vai ocorrer no


desenvolvimento do improviso, construído pela voz dobrada ao violão. Sobre a
harmonia da seção A, a melodia improvisada ganha em densidade, movimento e
expansão no campo da tessitura (de ré2 – dó#4 para ré2 – sol4). O uso de
consoantes combinadas com as vogais se destaca em relação ao uso empregado
na exposição anterior da melodia principal, o que auxilia na emissão e definição das
síncopes presentes no desenho melódico do improviso. Ainda assim, o ataque
consonantal é sutil, explorado com maior ênfase na primeira metade do improviso –
quando ele atinge regiões médio-graves e médias da voz – e na medida em que as
notas mais agudas são atingidas, as vogais (cujas qualidades sonoras são
mescladas umas às outras) conferem à voz um caráter de instrumento. O improviso
é construído inteiramente sobre a escala diatônica de ré maior, na qual Milton
explora motivos rítmicos e melódicos novos e outros apoiados na melodia principal,
transpondo-os em diferentes alturas.

3.3 Sobre a potencialização da voz na gravação de “Clube da Esquina no 2”


presente no disco Angelus

Podemos identificar matizes musicais presentes na gravação de 1972


ressoando na construção interpretativa da canção no disco Angelus, de 1993. A
referência ao samba que, aparentemente, se dissolve ao longo da linha melódica –
tanto principal quanto do improviso na primeira versão –, se inscreve numa mistura
de samba lento e bossa nova em compasso 4/4, realizado pelo acompanhamento na
segunda, principalmente pelos instrumentos contrabaixo e bateria. O improviso vocal
dobrado ao violão vai ocorrer novamente, mas com intenção musical e
desenvolvimento melódico completamente diferentes da primeira versão. Por outro
lado, Milton utiliza o final do improviso da versão de 1972 como melodia vocalizada
na última exposição da seção A’ na versão de 1993. O teclado com timbre de
cordas, remetendo à orquestra na gravação de 1972, se destacará na parte B.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 62
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Dentre os elementos novos, a voz se potencializa ao apresentar o texto


da canção, e lidera o gesto interpretativo que vai se desenvolver e reverberar em
toda a composição do arranjo.

Figura 3.4 Letra de “Clube da Esquina no 2” com a estrutura formal da gravação de 1993 presente em Angelus.

Introdução

1 Porque se chamava moço


a
2
3
4
5
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço, aço...
A 1 estrofe

estrofees
6 Porque se chamavam homens
estrofe
a
7
8
9
10
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogêneos
Ficam calmos, calmos, calmos, calmos...
A’ 2 estrofe
estrofe

11 E lá se vai mais um dia... B 3a estrofe

12 E basta contar compasso


a
13
14
15
16
E basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração na curva de um rio, rio, rio...
A’ 4 estrofe

17 E lá se vai mais um dia... B 5a estrofe

Improviso sobre a seção A’ 6a estrofe

18 E lá se vai mais um dia... B 7a estrofe

19 E o rio de asfalto e gente


a
20
21
22
23
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio fio
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente, gente, gente...
A’ 8 estrofe

24 E lá se vai, vai, vai... coda


A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 63
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Se na primeira versão a voz soa tematizada com algumas nuances de


uma emissão mais distendida, agora atingirá alto grau de liberdade temporal,
permitindo-lhe flutuar sobre a sólida base instrumental guiada por ela. Se antes o
acompanhamento e a dinâmica eram mais homogêneos, agora eles integram o
conjunto de características mais exploradas e definidoras da interpretação. Para
além da compatibilidade entre letra e melodia, ocorre na canção “Clube da Esquina
no 2” do disco Angelus (1993) um elo entre letra e gesto interpretativo. Milton vai
extravasar toda a carga emotiva trazida pela letra – composta ainda num período de
ditadura militar no Brasil e que agora se faz ouvir noutro momento político, com
maior liberdade de expressão, deixando em evidência sua consolidação e
maturidade enquanto artista.
A letra da canção é repleta de metáforas e presentifica o sentimento da
juventude vivida pelos autores na década de 1970 que, apesar de sofrerem com a
repressão e censura, colocam o “pé na estrada”, realizam suas “viagens”, correm
atrás de seus sonhos, reivindicam o amor, a reunião, o coletivo. Ao retomar a
canção em 1993, Milton a interpreta com uma terça maior abaixo (Si bemol maior)
em relação à gravação de 1972 (ré maior), em andamento mais lento (de semínima
= 76 para semínima = 58), sobre o qual manipula seu timbre nas diferentes regiões
da voz, e flexibiliza, de maneira ampla, a rítmica da melodia, conferindo à
interpretação um caráter de passionalização.
O timbre surge cheio no registro modal nas regiões grave e média, com
uso de vibrato na emissão, resultando um som seguro e maduro, que imprime ao
texto da canção um caráter reflexivo de uma época passada. Tal intenção é
complementada pelos prolongamentos vocálicos (trechos circulados na Figura 3.5),
a partir dos quais Milton faz a melodia soar em atraso em relação ao pulso, o que dá
sentido à viagem e aos sonhos trazidos pela letra, e que são intensificados pela
utilização de glissandos. Podemos observar, ainda, nas setas pontilhadas da Figura
3.5, diferentes deslocamentos rítmicos assumidos pela voz na interpretação.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 64
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Figura 3.5 Uso de diferentes prolongamentos vocálicos e articulações rítmicas a cada nova estrofe.

...
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 65
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

A intenção reflexiva é reforçada pelo efeito de eco inserido na gravação


por meio do recurso de reverb em palavras e trechos estratégicos, como em
“ventania” do terceiro verso, em “dia” do décimo primeiro verso, na vogal “a” depois
do décimo primeiro verso, em “lá se vai” logo após o improviso, em “gente, gente,
gente” – e na vocalização realizada em seguida – e, por fim, nas entoações do verbo
“vai” ao final da gravação. O eco se faz presente na estrutura da composição, como
já mencionado, e destaca palavras que se contrastam e resumem a narrativa da
canção: aço/calmos, rio/gente.
Há oscilação tensiva33 a cada nova passagem pelo trecho, localizados
nas seções A e A’, que resulta da compatibilidade entre gesto interpretativo e letra
da canção, e confere à performance um grau de variedade que desperta a atenção
do ouvinte. De maneira mais detalhada: (a) a voz cresce e decresce em projeção
nas repetições da palavra aço da primeira estrofe, criando uma linha curva (Figura
3.6) que se eleva e abaixa a um ponto um pouco inferior à origem. No
ziguezague/alternância das notas sib e lá, tal intenção é complementada pelos
diferentes níveis de tensão assumidos pela emissão vocal, modificando o timbre e
trazendo o ruído como qualidade expressiva, e pela exploração da dinâmica.

Figura 3.6 Curva interpretativa sobre a palavra “aço”.

33
Sobre tensividade, ver citação de Maria L. V. Paiva Diniz trazida por Machado (2012, p. 61). Resumidamente,
“a tensividade é um lugar imaginário de operações onde atuam duas dimensões: a intensidade (o sensível) e a
extensidade (o inteligível)”. Segundo Zilberberg (2011), essa junção indefectível (do sensível e do inteligível)
define um espaço tensivo de recepção e qualificação para as grandezas que têm acesso ao campo de presença:
pelo próprio fato de sua inserção nesse espaço, toda grandeza discursiva vê-se qualificada, primeiramente, em
termos de intensidade e extensidade e, em seguida, em termos de subdimensões controladas por elas”
(ZILBERBERG, 2011, p. 67).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 66
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Esta escolha interpretativa confere à palavra diferentes graus de


intensidade, que transitam entre sentimento de dor, enfrentamento, grito, socorro e
impotência que (b) se acomodarão e aconchegarão temporariamente na calmaria
dos gases lacrimogêneos, sobre a qual a voz diminui de volume, é contida, quase
secreta. O acompanhamento, em total sintonia com a voz, é reduzido ao mínimo
possível, com dinâmica piano e uso de poucas notas. (c) Nas repetições da palavra
“rio” do décimo sexto verso, a dinâmica e a emissão são mais homogêneas em
comparação aos quatro momentos observados. Os portamentos utilizados nas
repetições da palavra “rio”, aliado à predominância – e por isto o realce, do som das
vogais /i/ e /u/ na curta palavra –, põem o enunciador numa condição de
autorreflexão que internaliza suas emoções e as imprime na canção. O gesto vocal
se compatibiliza com a metalinguagem utilizada no décimo quinto verso com a frase
“/de tudo se faz canção/”. No quarto e último momento, (d) ocorre um despertar no
qual a reflexão cede lugar à realidade. O rio já não é aquele da estrofe antecedente,
mais próximo da área rural, do contato com a natureza, voltado para o interior, mas
sim o rio urbano, que atravessa a cidade, que sofre as consequências das grandes
aglomerações, que urge por mudança e , metaforicamente, convoca gente de todas
as esquinas do mundo para uma (re)ação coletiva. Na polaridade Minas/Mundo do
Clube da Esquina, o quarto momento reconfigura o artista para uma relação
Minas/Brasil/Mundo, por meio da exploração no acompanhamento de matrizes do
samba (símbolo da cultura nacional). Localizado na 8 a estrofe, o contrabaixo realiza
pedal harmônico ressaltando os tempos 2 e 4 do compasso em conjunto com o
bumbo da bateria que, somados à entrada dos tamborins, transformam a canção
num autêntico samba lento. Num disco povoado por renomados músicos de jazz,34
pelos cantos de diferentes vozes35 de artistas estrangeiros, os componentes
interpretativos presentes em “Clube da Esquina no 2” – expressos por músicos
brasileiros e pelo uruguaio Hugo Fattoruso – imprimem, na dimensão extensa da
obra, enquanto trajetória construída anteriormente, a consagração do artista em
âmbito nacional e internacional, além de desvelar seu posicionamento perante o

34
Dentre eles, o contrabaixista americano Ron Carter, o baterista Jack Dejohnette, o pianista Herbie Hancock, o
guitarrista Pat Metheny, o saxofonista Wayne Shorter, e o pianista, acordeonista e arranjador Gil Goldstein com
arranjo orquestral e regência em duas canções.
35
Dentre elas, o timbre rouco do cantor inglês de world music, Peter Gabriel, a voz aguda do vocalista Jon
Anderson, também inglês, da conhecida banda de rock progressivo dos anos de 1970 (Yes), e o timbre
ligeiramente nasal e aberto de James Taylor.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 67
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

mundo. A voz cresce projetada e frontal sobre a palavra “gente”, com acentos na
primeira sílaba que são acompanhados pela bateria, emitindo um grito cantado que
modifica a melodia original e insere notas mais agudas.
De maneira resumida, podemos observar na Figura 3.7 a curva
interpretativa resultante da combinação entre dinâmica, timbre e emissão,
explorados nos quatro momentos mencionados, que resultam em diferentes
qualidades emotivas sobre o mesmo desenho melódico; com exceção do último
(palavra “gente”), no qual notas mais agudas são emitidas – em modificação à
melodia original –, reforçando a curva ascendente já desenhada pela dinâmica e
emissão e enfatizando o chamado à uma ação coletiva.

Figura 3.7 Curva interpretativa sobre as palavras “aço”, “calmos”, “rio” e “gente”.

3.4 Sobre os sentidos trazidos pela respiração

Ao observar a flexibilidade rítmica da melodia, é possível perceber que


sua construção está intimamente vinculada à respiração impressa na performance
que, por sua vez, interfere na emissão vocal, no impulso, na duração, na conexão e
na finalização das frases: todos aspectos decorrentes dos sentidos que o cantor faz
emergir da letra da canção.
Ocorre grande mudança nos pontos de “tomada de ar” entre as duas
versões – tanto na localização quanto no número de vezes –, o que pode ser
observado na transcrição da performance vocal de cada estrofe, apresentada
comparativamente na Figura 4.8. A ampliação do número de vezes em que Milton
segmenta as frases através da respiração poderia ser atribuída à queda de
andamento da primeira para a segunda versão, que dilata a duração das frases
requisitando do cantor maior fôlego. No entanto, mais do que vinculado ao fôlego,
podemos identificar que, do aumento dos pontos de segmentação das frases,
emergem novas organizações fraseológicas, resultando modificação dos contornos e
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 68
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

deslocamentos de apoios da melodia, promovendo elo entre melodia e letra, além de


ampliar, destacar e valorizar trechos do texto da canção.
Figura 3.8 Identificação dos pontos de respiração ao longo das estrofes nas duas versões.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 69
Thais dos Guimarães Alvim Nunes
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 70
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Modificações simples e orgânicas vão ocorrer na primeira metade da


seção A, como por exemplo no segundo e terceiro compassos da Figura 3.8 em que,
na versão instrumental, a respiração ocorre após a nota sib,36 separando-a da nota
sol e mi que aparecem em seguida. Já na versão de 1993, as sequências sib-sol e
sib-mi (c. 2 e 3) são emitidas num mesmo fôlego, demarcando a entrada do segundo
e terceiro versos de cada estrofe. Tal junção reforça o sentido de soma trazido pela
palavra “também” e pelo início das frases “e sonhos”, “e basta”, além de garantir a
emissão e fluência das palavras ali localizadas, sem respiração entre as sílabas:
“viagem”, “entorna”, “entope”. Ainda no limite da primeira metade da seção, os outros
momentos de respiração destacados pelos círculos – e que correspondem às vezes
a mais que Milton respira em comparação com a versão de 1972 –, colaboram para
a variedade de articulação rítmica e de dinâmica explorada na interpretação, que
incidirá não apenas na frase como unidade maior, mais de maneira mais detalhada
em palavras e sílabas.
Na segunda metade da seção A (Figura 3.8, c. 5-8) – que na versão de
1972 é emitida em apenas um fôlego –, no disco Angelus a respiração contribuirá
para a ampliação dos sentidos trazidos pelo texto. Nos compassos 5 e 6, ela
demarcará predominantemente a entrada do terceiro e quarto versos de cada
estrofe, com exceção da segunda estrofe, na qual o nono verso da canção, “/em
meio a tantos gases lacrimogêneos/”, sofre segmentação interna. Novamente,
recebe destaque o final de cada estrofe, representado pela repetição das palavras
“/aço, calmos, rio e gente/”, e a respiração ressalta o gesto corporal que agirá em
colaboração com a emissão, a projeção e a dinâmica no conjunto expressivo da
obra.
Mais especificamente na curva desenhada sobre a palavra “aço” (Figura
3.9), podemos localizar dois conjuntos de três respirações que, em colaboração com
os movimentos ascendente e descendente de dinâmica e projeção vocal,
materializam o “esforço físico” produzido pelo cantor e provocam a sensação de um
impulso de aceleração, complementado, em seguida, por um movimento de
frenagem e, portanto, desaceleração do gesto. Desta forma, por meio da respiração,
Milton agrega sentido à dura palavra, transfigurada em conduta, que requer esforço

36
Lembrando que a versão de 1972 aparece, aqui, transposta de ré maior para sib com a finalidade de ser
comparada com a versão de 1993.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 71
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

para que seja vencida, sobre a qual o enunciador investe sua energia, gasta suas
forças, atinge o ápice e, em seguida, precisa se reestabelecer.

Figura 3.9 Pontos de respiração sobre a repetição das palavras “aço”, “calmos”, “rio” e “gente”.

Podemos encontrar compatibilidade semelhante entre respiração e gesto


interpretativo nas demais estrofes. Na curva descendente de “calmos”, as três
primeiras emissões da palavra – já contidas e com pouca projeção –, são separadas
por tomada de ar entre elas mesmas, a partir das quais o enunciador se abastece,
se tranquiliza e segue entoando as três seguintes num só fôlego. Na última estrofe,
na qual a performance atinge o ápice, a respiração se intensifica, impulsionando o
corpo para a produção dos sons mais agudos da interpretação.

3.5 Das vocalizações realizadas nos quatro últimos compassos da seção A’

Ao percorrer a trajetória musical de Milton Nascimento, percebemos que o


artista explora, de maneira recorrente, vocalizações de melodias – sejam elas parte
da melodia principal, de introduções, de pontes, de contracantos ou improvisos. Ao
transformar “Clube da Esquina no 2” em canção, dando a ela uma letra, Márcio
Borges deixou a repetição dos quatro últimos compassos da seção A – que integra a
seção A’ – sem texto. Considerando a habilidade vocal do artista, o uso frequente do
processo criativo desde o início da carreira e as memórias trazidas através da
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 72
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

performance, percebemos, na interpretação do trecho em questão, sutilezas na


escolha e na combinação das vogais e uso estratégico da consoante [r],
responsáveis por trazer clareza, fluência, impulso e equilíbrio, deixando em
evidência o domínio na manipulação do timbre, no direcionamento do som, na
projeção, na ornamentação, na dinâmica e na respiração. Na terceira vez em que
passa pelo trecho (8a estrofe), Milton modifica a melodia principal e vocaliza um
desenho melódico apresentado anteriormente na gravação de 1972, localizado no
final do improviso realizado por voz dobrada ao violão. O material musical é
reutilizado de maneira criativa, promovendo intervocalidade entre a gravação de
1972 e a de 1993. Esse trecho melódico parte do improviso da primeira versão para
compor o arranjo da segunda, promovendo conexão e remetendo à memória de uma
época.

Figura 3.10 Trecho vocalizado nos quatro últimos compassos da seção A’.

Conforme observamos na transcrição apresentada na Figura 3.10, há


predominância no uso das vogais, e a única não explorada no trecho é a vogal [o].
Entre colchetes ([ ]) estão aproximadamente representados os sons individuais e/ou
sequenciais, conforme pudemos constatar pela audição. Já a grafia entre barras foi
utilizada para representar a emissão de duas vogais cujas sonoridades individuais
aprecem misturadas, resultando um som híbrido. Na segunda e quarta estrofes, a
emissão inicia com dinâmica piano, com presença de glissandos descendentes,
garantindo um timbre de difícil distinção entre voz de cabeça e falsete que,
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 73
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

uniformemente, chega à região média da voz, onde haverá crescendo na projeção,


ornamentação de notas e presença do ruído. Já o trecho apresentado na 8 a estrofe
se desenvolve inteiramente no registro elevado, ou seja, no falsete.
Por trás das escolhas interpretativas expressas nas vocalizações
realizadas nas passagens pelo trecho – cuja melodia é emitida imediatamente antes
com letra –, é possível identificar articulações que enfatizam e dão destaque às
notas, criando outro desenho rítmico no interior da rítmica da melodia.

Figura 3.11 Novo ritmo gerado pelas ênfases dada às notas na performance vocal.

Nos segmentos 1 e 2 da Figura 3.11, o novo ritmo resulta da utilização de


ornamentos (que será mostrada mais adiante) e do aumento de dinâmica nas notas
mais agudas, conforme sinalizado. Já no segmento 3, a ênfase recai sobre a nota
mais grave, mas recebe auxílio da consoante [r] que, sutilmente, define o ataque da
nota, destacando-a. Nos três casos, a rítmica resultante é composta de uma
sequência de semínimas pontuadas, valorizando o contratempo e fazendo coexistir
matrizes do samba, pela presença da síncope, e matrizes da bossa nova, pelas
ligaduras resultantes dos novos ritmos gerados. Há semelhança entre o primeiro e o
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 74
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

segundo segmento, ficando a diferença reservada à duração e ao ponto em que a


ênfase se inicia. Já no terceiro caso, há um deslocamento na entrada do padrão
rítmico, do primeiro para o segundo tempo do compasso, se comparado ao
segmento 1. Tais detalhes colaboram para a independência, o suingue e a
flexibilidade da melodia que, localizados nas microestruturas da canção, se
compatibilizam com as características presentes no plano geral de interpretação.
As três passagens pelo trecho são finalizadas com a inserção do reverb
nos dois tempos do último compasso (sinalizados pelos cones horizontais na Figura
3.10) e se projetam em direção à seção B. Por meio da frase “/e lá se vai mais um
dia/”, a seção B demarca o curso natural da vida que, neste disco, ganha a
conotação de mais um encontro de grandes músicos: mais uma vez, falando dos
tempos difíceis dos anos de 1970, mais uma oportunidade de interpretação da
canção, e mais uma estrofe, levando o ouvinte a expandir sua reflexão para um
contexto individual.

3.6 Sobre o improviso em “Clube da Esquina no 2” nas duas versões


comentadas

Localizado no final do arranjo, o improviso presente na gravação de 1972


se desenvolve sobre duas passagens e meia pela seção A, e finaliza num rápido
fade out. O timbre no improviso resulta da junção entre violão e voz, que dobram a
melodia improvisada predominantemente em registro elevado. A dinâmica decorre
da exploração de tessitura. A nova melodia vai finalizar oitava acima em relação à
melodia original da seção. Milton utiliza notas repetidas tocadas sequencialmente e
que transitam de um acorde a outro, construindo um caminho diatônico e, ao mesmo
tempo, movimentado, dada a alternância de acordes sob a mesma nota melódica.
Matrizes da melodia principal estão presentes no desenho melódico do
improviso, principalmente a partir de duas variáveis: (a) o alcance das regiões
agudas é feito por saltos, sinalizado pelas setas na Figura 3.12; (b) há recorrência de
dois desenhos da melodia principal em diferentes momentos, sinalizados pelos
retângulos da Figura 3.12. A experimentação melódica que identificamos na
composição da seção A se expande no improviso por meio da ampliação da
densidade melódica e da tessitura.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 75
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Figura 3.12 Improviso na gravação de 1972.

Se comparado à versão anterior, o improviso da versão de 1993 se


localiza entre duas estrofes cantadas com letra, dentro do limite da seção A’,
funcionando como uma ponte entre elas. Assumindo riscos e provocando os
ouvidos, num pulso mais lento, a rítmica apresenta quiálteras que, aos poucos, vão
sendo acomodadas em síncopes (Figura 3.13).
O efeito de pulso dilatado provocado pelas quiálteras imprime ao trecho
um sentimento nostálgico, remetendo a sonhos, e é reforçado pela voz que soa
contida dentro da cavidade oral em posição mais fechada, emitida com vogal [u] e
com articulação ligada – o que sugere a imagem de um sujeito auto-reflexivo. A
definição do ataque das notas fica reservada ao violão. O caráter introspectivo
trazido pela voz amplia e harmoniza com os sentidos trazidos pelas escolhas das
notas do improviso que, distantes da sonoridade diatônica do improviso da versão
de 1972, provocam e criam contraste ao fazer coexistir sétimas maiores com sétimas
menores, quintas justas com quintas diminutas, terças maiores com terças menores
no mesmo acorde, por exemplo. Este momento de intimidade do artista, expresso
por meio da voz e do violão (seus principais instrumentos de expressão e de
criação), ocorre sobre um acompanhamento reduzido, formado por contrabaixo e
percussão.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 76
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Figura 3.13 Improviso na gravação de 1993.

3.7 Algumas considerações sobre a harmonia

As diferentes interpretações da canção “Clube da Esquina no 2” incidem


sobre a movência da harmonia e despertam no ouvinte novos sentidos. Parte destas
novas sensações parece se conectar aos períodos históricos em que foram
produzidas.
Para observar comparativamente as versões de 1972 e 1993 inserimos,
entre ambas, o registro de Lô Borges, lançado em 1979 no seu disco A Via Láctea,
por apresentar matizes para a expressão harmônica do disco Angelus. É importante
destacar que o disco de 1979 foi produzido e coordenado por Milton Nascimento.37

37
Considerando a grande amizade entre Milton Nascimento e Lô Borges, a parceria na composição da canção e a
produção de Milton para o disco de 1979 do parceiro, imaginamos que as modificações harmônicas ocorridas ali
resultam de um trabalho coletivo, não apenas dos compositores, mas também dos músicos envolvidos. Por outro
lado, para nossa observação aproximada, importa mais interpretar o que tais caminhos harmônicos provocam no
campo auditivo e de significado da canção, do que averiguar a autoria dos mesmos.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 77
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Do ponto de vista teórico, Tiné (2008, p. 155-6) analisa a harmonia da


parte A de “Clube da Esquina no 2” como modal (frígio), ao sinalizar que a seção
explora as duas cadências principais do modo: bII7M – Im7 e bVIIm7 – Im7. Bastos
Filho (2014, p. 148), em recente artigo, endossa tal abordagem e afirma haver
modulação de uma seção à outra: de modo frígio (seção A e sua variante A’) para
tonalidade maior (seção B). A polaridade e mistura modal/tonal estiveram presentes
desde as primeiras canções de Milton Nascimento, como podemos constatar na
pesquisa de mestrado desenvolvida anteriormente por Nunes (2005). No entanto,
com relação à harmonia de “Clube da Esquina no 2”, os termos desfuncional,38 no
sentido de autonomia estética e desembaraçada, enquanto espontânea e ousada,
trazidos por Freitas (2010, p. 696), parecem os mais adequados para sua
abordagem na versão de 1972, e para uma reflexão teórica que dialogue com uma
reflexão sociológica. Freitas (2010), reunindo um conjunto de autores, desenvolve
um extenso argumento na segunda nota do sexto capítulo de sua tese, na qual
expõe as diferenças, os contrastes e as polaridades existentes entre sequências e
progressões, no âmbito da sucessão de acordes, no campo da teoria da harmonia
musical. Apoiado na publicação de Schoenberg (2004), Funções Estruturais da
Harmonia, Freitas esclarece que “a progressão é uma combinação funcional,
ordenada para um fim, se equipara a um todo. A sequência está para o agregado, é
coisa sem objetivo e afuncional” (FREITAS, 2010, p. 695). Mais adiante, na mesma
nota, encontramos a seção A de “Clube da Esquina no 2” dentre um dos exemplos
escolhidos por Freitas para mostrar acordes que sucedem por “sequências sem
objetivo definido”. Tais “harmonias errantes” (SCHOENBERG, 2004 apud FREITAS,
2010, p. 598), que desafiam a lógica do direcionamento tão caro à tonalidade – e
que são cada vez mais frequentes na cultura da música popular –, estão presentes
na canção estudada e em geral, na produção musical da década de 1970. Vale o
longo trecho de Freitas (2010), transcrito abaixo, pela relação direta que
encontramos com a abordagem da canção:

38
Freitas (2010) utiliza o termo desfuncional como uma das variáveis da expressão afuncional, e vincula as
ideias como independência (p. 488) e autonomia (p. 785).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 78
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Contraventoras, anti-progressivas, neomodais, desnaturalizadas, repetitivas etc.,


tais "sequências" podem ser emblematicamente, ou arbitrariamente, empregadas e
percebidas como uma espécie de contracultura tonal: algo que, reagindo de dentro
dos domínios diatônicos, nega leis que regulam as progressões admitidas como
legítimas de uma tonalidade oficial, majoritária, tradicional e correta. Suas
sonoridades – cordais e perfeitas, mas tonalmente imprecisas, indecisas ou
afuncionais – podem ser comparadas aos atos de desobediência civil: alternativas
não violentas que, sem abandonar os recursos da poderosa tradição tonal
(temperamento, instrumentos convencionais, melodias acompanhadas por tríades,
frases de quatro compassos etc.), não se curvam prontamente perante a primazia da
progressão (ou dizendo de outra forma, não se curvam perante a hegemonia da
grande teoria do V → I e seu fiel coadjuvante I → VIm).Tais sequências ou
agregados que negam (desconsideram, não reafirmam) as leis naturais da grande
teoria não possuem necessariamente um superpoder de subversão autossuficiente ou
especial. Mas, em conjunto com outras estratégias de contravenção – ou seja, com
outros recursos e expedientes musicais e extramusicais (tais corno: timbres
diferenciados, ambientação acústica, reverberação e/outros processamentos, acordes
tipo 1-5-8, sem terças ou power chords, acordes tipo 1-5-9, agrupamentos
instrumentais não clássicos e não típicos, ruídos, letras, slogans, visualidades,
comportamentos sociais diferenciados em locais e audiências estigmatizados etc.)
que se somam numa multiplicidade variada de escolhas intencionalmente
combinadas –, essas sequências podem mesmo contribuir para colorir a harmonia de
propostas musicais que querem ser notadas como alternativas (FREITAS, 2010, p.
696-967).

Assim, conforme podemos constatar no quatro comparativo trazido pelas


Figuras 3.14a, 3.14b e 3.14c, esta espécie de contracultura tonal, em conjunto com
outras estratégias de contravenção, manifestam-se na versão de 1972 por meio da
repetição permanente dos graus IV, IIIm e IIm da tonalidade maior, tonalmente
imprecisas e indecisas, na qual o grau I da tonalidade não aparece, e o grau V se
apresenta sutilmente transfigurado em um acorde de quarta suspensa, que dilui o
efeito de tensão-relaxamento legítimo de uma tonalidade oficial. O timbre da voz,
predominantemente em falsete, combinado com um violão rasgado e agudo, convive
pacificamente com o timbre da orquestra de cordas. Compondo o conjunto destas
outras estratégias de contravenção, temos o espaço de autoria do disco e da canção
dividido entre um artista que gravava o seu sexto disco da carreira, já com alguns
prêmios acumulados, e um artista ainda estreante (Lô Borges), com fortes
influências do rock.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 79
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Figura 3.14a Seção A de “Clube da Esquina no 2”, apresentada de maneira comparativa entre
as versões de 1972, 1979 e 1993.

Sobreposto à imprecisão da harmonia errante, é composto um improviso


diatônico que começa e termina enfatizando a tônica da escala de ré maior (Figura
3.12), e se desenvolve apoiando-se predominantemente nas notas ré-fá#-lá-dó#,
que correspondem à tétrade de primeiro grau da mesma tonalidade, omitido nas
sequências acordais.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 80
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Na versão de 1979 cantada pelos irmãos Lô e Solange Borges, o acorde


de V grau é utilizado numa passagem rápida, na sequência IIIm – V – IIm, perdendo
o senso direcional de uma harmonia tonal,39 conforme podemos observar nos
compassos 2 e 3 da Figura 3.14a, na segunda passagem pela seção A’. Ocorrência
semelhante podemos verificar na seção B, por meio da sequência I – V – IV – IIIm,
destacada na Figura 3.14c.

Figura 3.14b Segunda metade da seção A de “Clube da Esquina no 2”, que representa o final da
seção A’ nas versões de 1972, 1979 e 1993.

O acorde de primeiro grau e seu correspondente da relativa menor (VIm),


que foram evitados na gravação de 1972, aparecem ora diluídos nas sequências,
ora enquanto lugares de chegada (ver círculos no conjunto de figuras 3.14). Através
da condução do contrabaixo, o acorde de IIIm7 soa muitas vezes I com terça no
baixo (B/D#), pela presença do grau de tônica da tonalidade em seu desenho

39
Com base na teoria da harmonia funcional, um acorde de função subdominante atrai um acorde de função
dominante que, por sua vez, atrai um acorde de função tônica, realizando a cadência completa e direcional
S – D –T (FREITAS, 1995, p. 30-36; ALMADA, 2009, p. 63; TINÉ, 2011, p. 4-5). No trecho citado da canção, a
combinação dos acordes é invertida e resulta na progressão T – D – S, deixando de realizar a direção própria da
harmonia tonal. Citando outros autores, Freitas (2010, p. 696) traz a expressão “movimento harmônico
regressivo” mostrado por Carter (2009, p. 110) na música pop rock, e os termos “antidireção” ou “involução”,
fazendo referência aos exemplos deste tipo de progressão apresentada nos trabalhos de Schenker (1990, p. 78-
88) e Schoenberg (2001, p. 202).
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 81
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

melódico. A criação contínua que provoca a movência na performance da canção já


em finais da década de 1970, faz conviver imprecisão com pontos de estabilidade
tonal. Sem deixar de ser notada como alternativa, a “nova” harmonia colabora para a
apresentação de um artista mais maduro. O disco A Via Láctea marca um período
em que Lô Borges começa a dar maior atenção à sua carreira individual,40 assim
como os demais membros do Clube da Esquina, e representa o seu segundo disco
solo, distante 7 anos do primeiro, período em que conviveu com as produções
musicais do Clube da Esquina.
As nuances harmônicas apresentadas nas gravações, geram diferentes
percepções. Em Angelus, Milton retoma nostalgicamente a harmonia das seções A e
A’ de 1972, referenciando a origem (da música, do encontro entre compositores, dos
músicos e da época), e localizando o ouvinte. As pequenas alterações realizadas
reverberam das modificações encontradas na versão de 1979 de Lô Borges, o que
as inclui nas memórias criativas do artista. Nas palavras de Ruth Finnegan:

A performance não é apenas um evento isolado, uma explosão pontual de som e


movimento, vivendo apenas “no presente”. Ela pode de fato ser criada na mágica do
momento experiencial – mas está também enraizada em, ou reverbera, algo mais
abstrato, separável do fluxo, imbuído de memórias e conotações para seus
participantes que vão além do momento imediato (FINNEGAN: 2008, p. 36).

A seção B, demarcada pela frase /e lá se vai mais um dia/, representa o


momento de maior afirmação das leis naturais da harmonia tonal. Metaforicamente,
a passagem do tempo parece ter levado à criação de progressões mais objetivas
para a composição.
Conforme podemos observar na Figura 3.14c, os acordes progridem por
intervalos de quartas ascendentes ou quintas descendentes (IIm – V7 – I – IV –
VIIm7(b5)) nos três primeiros compassos da seção, deixando clara a sua trajetória.
Apenas a sequência IV – VIIm7(b5) – IV se apresenta como anti-progressiva, como
algo que vai e volta ao mesmo ponto, reafirmando uma marca inicial impressa na
composição. Para finalizar a canção, Milton prepara o acorde da tônica maior e
repousa sobre tônica menor.
A ousadia fica reservada ao trecho improvisado, que se desenvolve
através de praticamente todas as notas da escala cromática, demarcando ao mesmo
tempo a liberdade de expressão e a transgressão musical. Para um artista inserido
40
Ver Diniz: 2012, p. 146-147.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 82
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

na grande indústria fonográfica, com 27 discos gravados até então, seu improviso
out side provavelmente soa comum para um público habituado a ouvir música
instrumental e jazz; mas para os ouvintes da canção de massa, tais notas
possivelmente impactam na escuta. Nesta perspectiva, a composição do improviso
parece trazer um sentido agregador que permite aproximar diferentes públicos, fazer
conviver harmonias maiores, menores e modais, e pôr lado a lado intervalos
conflitantes num mesmo acorde.

Figura 3.14c Seção B de “Clube da Esquina no 2” nas versões de 1972, 1979 e 1993.

Com a observação destas três gravações, percebemos um continuum


criativo, que vai ocorrendo ao longo do tempo. Entre permanências e diferenças 41 é
possível identificar que, das recorrências que vão sendo identificadas, a canção se
firma enquanto objeto. Por outro lado – das novidades apresentadas – destaca-se o
intérprete. Percebemos, ainda, que a harmonia da canção se conecta aos períodos
socioculturais de cada época e ao momento da carreira artística de cada intérprete.

41
Ver argumento desenvolvido por Nascimento (2005) no artigo Música Popular e continuum criativo.
A voz de Milton Nascimento em presença Capítulo 3 I 83
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

Num momento de dúvidas, incertezas, medos e repressão do início dos anos de


1970, é viável a expressão por um caminho harmônico tonalmente impreciso, que
desorganize, desoriente, proponha o questionamento e a reflexão, que arrisque,
provoque, desnaturalize. Talvez esta tenha sido uma das razões pelas quais a
canção tenha se tornado tão emblemática para o momento. Metaforicamente, tais
imprecisões são mantidas nas demais versões, na medida em que a letra – que
aparece apenas a partir de 1979 – expressa, de modo atemporal o sentimento da
juventude, que põe o pé na estrada e almeja realizar suas viagens pelas esquinas
do mundo.
Nos anos finais da década de 1970, a indústria cultural – mais
estabelecida e exercendo maior controle sobre sua produção – exige, indiretamente,
caminhos sonoros mais objetivos. Se a harmonia sutilmente se objetivou, outros
recursos contraventores foram ressaltados, como o efeito de reverb na gravação de
Lô Borges, remetendo às imagens do sonho e da ilusão. Já na gravação de 1993, a
harmonia se equilibra entre instável e estável. A transgressão fica reservada às
notas do improviso que, sobre a redução do acompanhamento, desenvolvem um
discurso introspectivo que desobedece as leis de ambos sistemas (modal e tonal), e
encontra nas “brechas”42 do sistema mercadológico fortemente estabelecido o
espaço para a livre expressão artística.

42
Em referência ao livro de Gilberto Vasconcellos, intitulado Música Popular: de olho na fresta (1997).
A voz de Milton Nascimento em presença Considerações finais I 84
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percorrer a obra vocal de Milton Nascimento é deixar que o ouvido


acompanhe os mais variados estímulos sonoros que emanam das “várias vozes que
ele traz no interior”. Percebemos que o artista vai construindo suas vocalidades ao
longo da carreira, amparadas pelo diálogo que estabelece com suas próprias
composições, no que diz respeito à variedade melódica, ao amplo preenchimento do
campo da tessitura, aos diferentes caminhos harmônicos, aos ritmos diversificados e
variantes. Milton cria por meio da voz, o que o impulsiona a cantar tanto melodias
subjacentes quanto de superfície. As nuances timbrísticas que explora lhe dão
liberdade para transitar, preencher, provocar e promover diálogo entre sua voz e ela
mesma.
Mas a voz de Milton é endereçada ao outro, aos amigos, aos parceiros,
aos músicos. É nesta relação de parceria e cumplicidade que ele vai compondo
timbres, ajustando emissões, construindo maneiras de dizer, realizando misturas,
arriscando caminhos mais incomuns, incorporando gestos vocais e montando seus
quadros de fotografias sonoros. Sua liberdade para explorar lhe permite encontrar
novos caminhos para a voz, porque do risco ele descobre o diferente. Milton é
saudosista sem deixar de ser transgressor. Sempre que música e letra lhe são
favoráveis, ele se conecta às vozes do passado e localiza suas referências.
Suas memórias transitam através de suas intervocalidades. O improviso
de “Clube da Esquina no 2”, presente no disco Angelus (1993), surge em 1972 e
transita pelas canções “Dos Cruces” (1972), “Me deixa em paz” (1972), e “Ao que vai
nascer” (1972). Tais notas, desenhando uma melodia de tons e semitons
dissonantes, passeiam pelos “Povos”, no disco Milton (1976). Nessas memórias, as
melodias não são idênticas, mas a ideia se repete, ressignifica e conecta, assim
como os passeios de “Ponta de areia” e “Paula e Bebeto” no interior dos discos; ou a
retomada do amigo de “Morro Velho” em “Canção da América”. As memórias são
sonoras e escritas, naturalmente nômades.
A voz de Milton se conecta ao público. Sua capacidade de síntese o leva
a agregar diferentes culturas e estilos. Observar as nuances de seu canto é ampliar
o conhecimento sobre as potencialidades expressivas que se materializam na sua
voz em presença.
A voz de Milton Nascimento em presença Referências bibliográficas I 85
Thais dos Guimarães Alvim Nunes

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Revistas eletrônicas

Especial: Hans Ulrich Gumbrecht. Floema – Caderno de Teoria e História Literária.


Ano I, n. 1 A, out. 2005. ISSN 2177-3629 (versão eletrônica).

Sites
<http://www.miltonnascimento.com.br/>.
<http://www.dicionariompb.com.br/>.
<http://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html>.

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Clube da Esquina. Com Milton Nascimento (solfejo, violão solo e voz); Lô Borges
(guitarra); Luiz Alves (baixo); Robertinho Silva (bateria); Nelson Ângelo (guitarra);
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Remasterizado nos Estúdios ABBEY ROAD. Londres, 1994. (CD 830429 2). LP
original gravado nos Estúdios EMI-ODEON. Rio de Janeiro, 1972.

NASCIMENTO, Milton; BORGES, Lô; BORGES, Márcio. Clube da Esquina no 2. In:


Angelus. Com Milton Nascimento (voz e violão); Hugo Fattoruso (piano); Túlio
Mourão (teclado); João Baptista (baixo fretless); Robertinho Silva (bateria); Ronaldo
e Vanderlei Silva (percussão e efeitos); tamborins (Ronaldo, Vanderlei e Baster). Rio
de Janeiro: Warner Brasil, 1993. (CD M945501-2).

NASCIMENTO, Milton; BORGES, Lô; BORGES, Márcio. Clube da Esquina n o 2. In:


Via Láctea. Wagner Tiso (piano, orquestração e regência); Paulinho Carvalho
(baixo); Lô Borges (viola de 12 cordas); Robertinho Silva (bateria); Toninho Horta
(guitarra); Lô Borges e Solange Borges (voz) e orquestra. Rio de Janeiro: EMI-
ODEON, 1979. LP. Remasterizado na digital Master Solution, Rio de Janeiro, 2003.
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______. Minas. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1975. (CD 830431 2).

______. Milton (participação de Wayne Shorter). A&M Records/PolyGram, 1976. (CD


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______. Geraes. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1976. (CD 830428 2).

______. Clube da Esquina 2. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1978. (CD 791606 2).

______. Journey to dawn. A&M Records, 1979. CD.

______. Sentinela. Ariola/PolyGram, 1980. (CD 813 357-2).

______. Caçador de mim. Ariola/Polygram, 1981. (CD 837 258-2).

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______. Encontros e despedidas. Rio de Janeiro: Barclay/Polygram, 1985. (CD 827


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NASCIMENTO, Milton, SOSA, Mercedes; GIECO, Lion. LP Corazón Americano.


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NASCIMENTO, Milton, CASALDÁLIGA, Pedro; TIERRA, Pedro. Missa dos


Quilombos. Ariola, 1982. (CD 811 500-2).

SHORTE, Wayner; NASCIMENTO, Milton. Native Dancer. Nova Iorque: Columbia


Records/Sony Music, 1975. (CD 49753).

Jornais

NA CABEÇA DE WAYNE. Entrevista realizada por Jotabê de Medeiros ao músico


Wayne Shorter para o jornal O de Estado de São Paulo, na coluna Cultura Música
em 13 de maio de 2011. Versão eletrônica disponível em: <http://cultura.estadao.
com.br/noticias/musica,na-cabeca-de-wayne,718446>. Acesso em: 11/09/2014.

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