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Pró-Reitoria de Pós-Graduação
Especialização EaD em
Gênero e Diversidade na Escola
Livro IV – Módulo IV
Tubarão-SC, 2015
© Copyright 2015. Universidade Federal de Santa Catarina / Instituto de Estudos de
Gênero. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada,
por qualquer meio eletrônico, fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito,
das/os autoras/es.
Projeto gráfico e diagramação: Rita Motta, sob coord. da Gráfica e Editora Copiart
Eleonora Menicucci
MINISTRA DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS
PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SPM/PR
Roselane Neckel
REITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DE SANTA CATARINA – UFSC
Revisão de Conteúdo
Pedro Rosas Magrini, Miriam Pillar Grossi e Olga Regina Zigelli Garcia
Nota/Gênero e Diversidade na Escola (GDE)
Gênero e Diversidade na Escola é um projeto destinado à formação de profissionais da
área de educação que também permite a participação de representantes de Organizações
Não Governamentais (ONGs) e de movimentos populares, buscando a transversalidade
nas temáticas de gênero, de sexualidade e de orientação sexual e relações étnico-raciais.
A concepção do projeto é da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/
PR) e do British Council, em parceria com a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI/PR), Secretaria de Ensino a Distância
(SEED-MEC), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR) e
o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ).
Concórdia
Prefeito – João Girardi
Coordenadora do Polo – Leonita Cousseau
Endereço – Travessa Irmã Leopoldina, n. 136, Centro, Concórdia – SC
CEP: 89700-000
Tel.: (49) 3482-6029
Florianópolis
Prefeito – Cesar Souza Júnior
Coordenadora do Polo – Fabiana Gonçalves
Endereço – Rua Ferreira Lima, n. 82, Centro, Florianópolis – SC
CEP: 88015-420
Tel.: (48) 2106-5910/2106-5900
Itapema
Prefeito – Rodrigo Costa
Coordenadora do Polo – Soeli Uga Pacheco
Endereço – Rua 402-B, Morretes, Prédio Escola Bento Elóis Garcia, Itapema – SC
CEP: 88220-000
Tel.: (47) 3368-2267/3267-1450
Laguna
Prefeito – Everaldo dos Santos
Coordenadora do Polo – Maria de Lourdes Correia
Endereço – Rua Vereador Rui Medeiros, Portinho, Laguna – SC
CEP: 88790-000.
Tel.: (48) 3647-2808
Praia Grande
Prefeito – Valcir Daros
Coordenadora do Polo – Sílvia Regina Teixeira Christovão
Endereço – Rua Alberto Santos,n. 652, Centro, Praia Grande – SC
CEP: 88990-970
Tel.: (48) 3532-1011
Sumário
Apresentação............................................................................................................. 11
Miriam Pillar Grossi
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini
Disciplina 8
NOÇÕES DE RAÇA, RACISMO,
ETNICIDADE E DESIGUALDADES RACIAIS
Pela Igualdade........................................................................................................... 21
Yvonne Maggie
1
Link da revista: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref
2
Link da revista: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reveducacao
3
Link da revista: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus
11
A utilização destas terminologias de trabalhos acadêmicos científicos, movi-
mentos sociais, e até mesmo na linguagem coloquial está disseminada e cober-
ta de dúvidas e conflitos sobre o que representam e significam. Se o uso de raça
como conceito para falar das diferenças ligadas à cor e identidades culturais
havia sido abandonado no século XX em prol do uso do conceito de etnicida-
de, como melhor operador das diferentes formas de discriminação ligadas à
grupos étnicos, foram os movimentos negros que o recolocaram na ordem do
dia como bem aponta o antropólogo Kabengele Munanga, para quem atual-
mente, na academia
a maioria dos pesquisadores brasileiros que atuam na área das relações ra-
ciais e interétnicas recorre com frequência ao conceito de raça. Eles em-
pregam ainda este conceito, não mais para afirmar sua realidade biológica,
mas sim para explicar o racismo, na medida em que este fenômeno con-
tinua a se basear em crença na existência das raças hierarquizadas, raças
fictícias ainda resistentes nas representações mentais e no imaginário co-
letivo de todos os povos e sociedades contemporâneas. Alguns fogem do
conceito de raça e o substituem pelo conceito de etnia considerado como
um lexical mais cômodo que o de raça, em termos de ‘fala politicamente
correta’ (2003, p. 12).
Apresentação 13
pessoa é discriminada por seu fenótipo e não por sua ancestralidade, o que ele
classifica como de marca. Assim, em uma mesma família, alguns filhos podem
ser discriminados por serem “mais escuros” do que outros, revelando como as
características físicas são um forte fator de discriminação racial.
Ao resgatar sucintamente a narrativa histórica do conceito de raça, Kaben-
guele Munanga (2003) nos fornece diversos indícios sobre os porquês, onde e
como surge o racismo e a utilização deste conceito no passado e na atualidade,
entendendo que, como todo conceito, raça tem seu campo semântico, uma di-
mensão temporal e espacial própria.
Para outro autor clássico, Antonio Sérgio Guimarães (2003), a palavra
“raça” tem pelo menos três sentidos, dois analíticos e um nativo. Dos conceitos
analíticos, um é reivindicado pela biologia genética e o outro pela sociologia, am-
bos tendo corpo teórico próprio para compreender tal fenômeno. “Raça” como
conceito nativo refere-se a uma categoria que tem sentido no mundo prático,
efetivo, possuindo um sentido histórico para um determinado grupo humano
num determinado período. Como já mostramos, é por isto que os movimentos
negros preferem usá-la.
Para Munanga (2003) a etimologia da palavra raça vem do latim ratio, que
significa sorte, categoria, espécie. Utilizando-se do segundo e terceiro significa-
do, as ciências naturais, mais especificamente a Zoologia e a Botânica, emprega-
ram raça para classificar espécies animais e vegetais, designando descendência e
linhagem de grupos com características físicas semelhantes e um mesmo ances-
tral. Até o fim do século XVII, a explicação das diferenças humanas passava pela
teologia, que inclusive, justificou diversos modos de dominação e escravidão,
mas que logo foi suplantada por explicações evolucionistas. A partir do século
XVII a ciência moderna emplacou grandes esforços para classificar a diversida-
de e variabilidade humana.
Inicialmente, a cor da pele foi a principal variável de distinção de raças, di-
vidindo a espécie em três raças que resistem até hoje como modelo de classifica-
ção: a raça branca, a raça negra e a raça amarela. Sendo a cor da pele um critério
genérico demais, outros critérios morfológicos foram acrescentados no decorrer
do século XIX, como a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do formato do
crânio, do quadril, dos órgãos genitais, etc. Com o advento da genética humana,
apesar das diferenças e especificidades, o conceito de raça foi perdendo sua vali-
dação científica, pois as diferenças, como os traços fisionômicos, o fenótipo e o
Apresentação 15
Uma vez feita esta breve revisão sobre o conceito de raça, passamos a apre-
sentar os textos do Módulo IV, cujo conteúdo está dividido em duas disciplinas:
a primeira, denominada Noções de raça, racismo, etnicidade e desigualdade racial
e a segunda Gênero, Raça e diversidade no cotidiano escolar.
A disciplina Noções de raça, racismo, etnicidade e desigualdade racial é com-
posta por quatro textos. O primeiro, Pela Igualdade, escrito por Yvonne Maggie,
faz uma reflexão sobre a política de identidade proposta no início do século XXI
no Brasil com o fim de combater o racismo. Nele a autora busca refletir sobre
o significado da racialização das políticas públicas, a partir de mitos de origem
tanto do racismo quanto do combate ao racismo.
O segundo texto, Ações Afirmativas no Brasil: Desafios e Perspectivas, de
Flávia Piovesan, faz um balanço das ações afirmativas na experiência brasilei-
ra, buscando compreender as primeiras iniciativas de adoção de marcos legais
instituidores das ações afirmativas e o impacto da agenda global na ordem
doméstica brasileira.
No terceiro artigo, Notas para a interpretação das desigualdades raciais na edu-
cação, Danielle Oliveira Valverde e Lauro Stocco discutem os dados educacionais
compilados na 3a edição do Retrato das desigualdades de gênero e raça, enfatizando a
importância da compreensão de como as diferentes situações e os processos sociais
vivenciados pelas crianças e pelos jovens brancos e negros no interior do sistema
educacional afetam sua permanência, progressão e desempenho escolar.
Por fim, o texto de Daniela Novelli nos traz outra perspectiva sobre a te-
mática raça/etnia/cor pois a autora debruça-se sobre a “branquitude”, cor que
não é considerada enquanto tal nas sociedades contemporâneas por ser a cor
majoritária nos países da Europa que estiveram à frente dos processos coloniais
dos séculos XIV e XIX. Analisando as representações da moda, presentes na
Revista Vogue, a autora mostra como a branquitude é construida imagética e
ideologicamente como “não cor”, posição que hoje é contestada fortemente por
movimentos sociais de outros grupos raciais. O campo da mídia, como perpe-
tuadora dos valores estéticos brancos é um dos espaços de luta de diferentes
grupos racial e etnicamente diferenciados, no Brasil e no mundo.
A segunda disciplina, Gênero, raça e diversidade sexual é também com-
posta por quatro artigos. No primeiro, O enigma das interseções: classe, ”raça”,
Apresentação 17
Sabemos que o debate proposto nesta unidade envolve diretamente todas/
os nós, professoras/es em nossa prática cotidiana em sala de aula, seja no ensino
básico seja no ensino universitário. Muitas são as questões aqui envolvidas e
desejamos que o conteúdo por nós selecionado proporcione a você uma ótima
leitura que fundamente as discussões sobre raça e etnia.
Boa Leitura!
Miriam Pillar Grossi
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini
Referências
REIS, Marilise dos. Diáspora como movimento social: implicações para a análi-
se dos movimentos sociais de combate ao racismo. Ciências Sociais Unisinos, São
Leopoldo, Vol. 46, N. 1, p. 37-46, jan/abr., 2010.
Yvonne Maggie
21
O recém-eleito presidente dos EUA, Barack Obama, parece um brasilei-
ro, como ele mesmo disse ao nosso cônsul em Washington, quando ainda em
campanha pela indicação à presidência pelo Partido Democrata. Sua vitória traz
esperança, a esperança de um mundo mais unido pela crença na igualdade. Ele
se parece com um brasileiro porque não escolheu um de seus ascendentes como
limite de sua identidade. Escolheu o caminho mais universal de ser americano e
de representar todos os americanos de todos os credos e cores e classes e ser hu-
mano com muitas identidades possíveis. Um presidente eleito com uma vitória
inigualável na história americana fez uma campanha em que disse, claramente,
que era preciso se livrar de “raças” e, com esse nome africano e árabe na Améri-
ca, representa para o mundo a esperança de um futuro cosmopolita, universal.
Obama leva o sonho de Martin Luther King nos seus olhos que brilham para
dizer que os homens e as mulheres devem ser julgados não pela cor de sua pele,
mas por seu caráter.
Enquanto isso, para nossa tristeza e certamente espanto do recém-eleito
presidente americano, o Brasil parece querer caminhar para o lado oposto com
propostas de políticas com base na “raça”. Como explicar a postura que propõe
uma mudança tão radical do estatuto jurídico da Nação brasileira? O que fez
com que desde 2001 tenham avançado no País as idéias de um grupo ávido para
dividir legalmente os cidadãos brasileiros em negros e brancos para fins de direi-
to? O ensaio que se segue buscará discutir essa política de identidade que se está
tentando impor ao País e pretende refletir sobre o significado da racialização das
políticas públicas e também dos nossos costumes.
A arqueologia de um mito
No dia em que o Brasil para se mascarar de branco de neve como nas his-
tórias da carochinha, para se fantasiar de nórdico, para se caiar de ariano,
renegasse suas origens mestiças ou a composição mestiça do grosso, do
forte, do substancial de sua população e de sua cultura, o Brasil deixaria de
Gilberto Freyre não viveu para ver o discurso de Obama em Chicago, cida-
de que, naquele ano de 1950, contrapôs à nação brasileira e à de São Paulo.
Felizes os que viveram para ver o discurso da vitória do novo presidente
americano naquela cidade que cresceu cheia de ódio racial e de divisões
raciais. Chicago comemorou com orgulho a vitória do presidente que uniu
a América produzindo o sentimento de um sincretismo avassalador, um
sujeito parecido com um brasileiro, mulato, misturado, vira-lata, como ele
mesmo disse, e que fala para a comunidade das nações e não para “a co-
munidade”.
Mito fundador
Os mitos têm muitas versões, como sabemos, e não seria diferente com
esse. Outra versão da história foi narrada por Donald Pierson (1971) um soció-
logo americano que viveu 15 anos no Brasil como professor da Escola de So-
ciologia e Política de São Paulo e, antes disso, escrevera o livro Brancos e pretos
na Bahia, resultado de sua pesquisa. A pesquisa de Pierson, realizada de 1935
2
Ver Yvonne MAGGIE, 2007.
[...] dentro das tensões raciais existentes e em agravamento neste País, não
será surpreendente se conduzir à situação que caracteriza as relações de
raças nas cidades setentrionais dos Estados Unidos e que se pode resumir
na fórmula separate but equal. De fato, até então, no Brasil, na legislação
republicana, o negro vinha comparecendo como o liberto de 1888, como
cidadão, em abstrato, juridicamente igual a todos os cidadãos; estava na lei
por exclusão – todos são iguais perante a lei, independentemente de cor,
sexo, religião etc. Agora, pela primeira vez, salvo engano, regulamenta-se
em lei o comportamento de brancos em relação a negros, e atribui-se a
estes, como negros, o direito específico de não terem praticamente nega-
dos alguns direitos mais gerais que a lei já atribuía a todos os cidadãos,
independentemente da condição étnica. [...] a declarar que são puníveis
os que violarem determinados princípios já solenemente presentes em leis
anteriores e mais gerais. Ora, uma tal atitude da lei [...] pode vir a ser [...]
o prelúdio de uma outra legislação substitutiva desta e até inspirada no
desejo de remediar sua inoperância prática, visando assegurar a negros e
brancos o direito de terem educação, recreação, distritos residenciais, obras
de assistência e outros setores institucionalizados da vida social iguais, mas
separados. Para isto, tecnicamente, uma das pré-condições já existe: a enti-
dade jurídica negro, presente no espírito e no texto da legislação ordinária
(PINTO, 1998, p. 292-293).
3
Ver Yvonne MAGGIE, 2008.
Luiz Aguiar Costa Pinto foi representante do Brasil na Unesco e propôs to-
mar o Brasil como exemplo ou como laboratório de uma experiência bem-suce-
dida de relações raciais. Contudo, o projeto da Unesco, ao desenvolver pesquisas
baseadas na “raça” como critério de divisão da sociedade, ironicamente acabou
lançando as bases para uma visão bipolar de nossa sociedade. Foi nessa época
que alguns integrantes do referido projeto construíram o modelo que muitos,
com 50 de atraso, erigem hoje à condição de verdade inquestionável.
O modelo de nossa sociedade, que até então se expressava tanto pela pa-
lavra de nossos pesquisadores quanto pelos olhares estrangeiros, era o de uma
mistura – de um país “mesclado”. E foi pelas mãos dos sociólogos paulistas que a
versão bipolar de negros e brancos se impôs. Apesar de descreverem a comple-
xidade do nosso sistema classificatório, representando-o, no mínimo, como um
triângulo, pouco a pouco foram adotando gráficos descritivos de duas colunas
– os brancos e os de cor. O próprio Costa Pinto, que alertou para os perigos da
racialização da nossa legislação, foi quem primeiro usou esses gráficos.
Em seguida, esse modo de imaginar o Brasil se tornou praxe entre os so-
ciólogos brasileiros, atingindo sua forma mais sofisticada na tese de doutorado
de Carlos Hasenbalg, defendida na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e
publicada em 1979, no Brasil, sob o título Discriminação e desigualdades raciais
no Brasil (HASENBALG, 1979). Mais tarde, Hasenbalg justificaria a construção
de um Brasil birracial: “[D]esigna-se como não-brancos a soma do que os cen-
sos e a Pnad categorizam como pretos e pardos, excluindo-se a categoria ‘amare-
los’” (HASENBALG, 1988, p. 97).
No entanto, a visão bipolar da sociedade brasileira permaneceu restrita,
e ainda permanece, no âmbito da sociologia, de certa militância e de parte da
elite. Fora desses círculos, os brasileiros, naqueles anos como até hoje, preferem
O caminho da racialização
4
Ver MAGGIE, 2008.
5
Ver Ricardo HENRIQUES, 2001.
6
Este foi um famoso discurso que teria sido proferido por Rui Barbosa, em pessoa, mas que por motivo
de doença não pôde fazê-lo, em 1921, diante da turma de formandos de 1920 da Faculdade de Direito
de São Paulo.
7
Esta lei foi sendo modificada ao longo do tempo, e, hoje, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e as outras universidades do Estado reservam 20% de vagas para “negros” e egressos de escolas públicas
cujas famílias tenham renda inferior a R$ 700,00 reais.
O Governo Lula
A herança da escravidão
8
Ver Demétrio MAGNOLI, 2007.
9
Para uma descrição recentíssima da questão, ver Mônica GRIN, 2008.
O resto dessa história relatada acima é bem conhecido, mas nunca é de-
mais relembrar. Enquanto o governo brasileiro seguia firme na trajetória de in-
troduzir a “raça” nas políticas públicas, tramitavam no Congresso Nacional dois
projetos de lei que ainda estão para serem votados. O PL73/1999,10 apoiado pelo
Governo Federal e pelo Ministério da Educação, e o projeto de um chamado
Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000),11 formulado pelo senador Paulo
Paim, propõem que o Brasil abandone de vez sua longa tradição de legislação
arracial para adotar uma legislação com base na “raça”. Ambos os projetos esta-
belecem cotas para negros.12
Em 2006 o debate se ampliou: um grupo de intelectuais, artistas e lideran-
ças de movimentos negros decidiu escrever uma Carta Pública ao Congresso
Nacional e nela reafirmar os princípios universalistas que devem reger a vida em
sociedade. Os proponentes das cotas reagiram com um manifesto e levaram-no
aos presidentes do Senado e da Câmara.
Dois anos depois da Carta Pública, mais uma comissão de intelectuais, ar-
tistas, estudantes e lideranças de movimentos sociais entregou ao Supremo Tri-
bunal Federal “STF nova carta, 113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais,
alertando sobre os perigos da racialização do País. A reação não tardou a apare-
cer na forma de outro manifesto a favor das cotas.
O STF discutirá em breve duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade –
Adins impetradas pela Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino
– Cofenen contra cotas raciais nas universidades do Estado do Rio de Janeiro e
contra o Programa Universidade para Todos “ Prouni. Essas Adins obrigarão o
STF a julgar se as leis baseadas em “raça” são constitucionais.
Será mesmo possível ainda existir gente acreditando que, para diminuir
a desigualdade, tenhamos que criar a “raça”? A racialização da sociedade já se
10
O PL73/1999 recebeu um substitutivo da Comissão de Educação e Cultura da Câmara, sendo aprovado
pela Casa e remetido ao Senado para deliberação (BRASIL, 1999).
11
O PL 3.198/2000 está tramitando na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2000).
12
Sobre esse tema, ver a interpretação de José Carlos MIRANDA, 2007.
O leitor deve estar se perguntando: mas por que o Brasil se afastou tanto
daqueles ideais de 1950? Por que está adotando essas políticas que acabam refor-
çando a idéia de “raça” e não o combate ao racismo? Penso em muitos motivos
15
Renato Janine RIBEIRO, 2008, p 11. Comunicação feita no âmbito do seminário promovido pela Capes
e pela British Academy com o apoio do British Consul, no dia 5 de outubro de 2008, no IFCS/UFRJ.
Referências
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui
Barbosa, 1999. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/
artigos/rui_barbosa/ FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.pdf. Acesso em:
set. 2008.
FRY, Peter. “Politics, Nationality and the Meanings of Race in Brazil”. Daedalus,
Cambridge, EUA, v. 129, p. 83-118, 2000.
HANCHARD, Michael. Orfeu e poder. Movimento negro no Rio e São Paulo. Rio
de Janeiro: UERJ; UCAM-Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
KAMEL, Ali. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar
numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
_______. “Anti-racismo contra leis raciais”. Revista Interesse Nacional, São Pau-
lo: Associação Interesse Nacional e Ateliê Editorial, 2008.
MIRANDA, José Carlos. “Um estatuto para dividir e cotas para iludir”. In: FRY,
Peter et al. (Orgs.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial. 2. ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.
PINTO, Luiz Aguiar Costa. O negro no Rio de Janeiro: relações de “raça” numa
sociedade em mudança. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
SEN, Amartya K. Identity and Violence: The Illusion of Destiny. Nova York e
Londres: W. W. Norton & Company, Inc., 2007.
45
Ações Afirmativas no Brasil:
desafios e perspectivas1
Flávia Piovesan
1
Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 16; v. 3; setembro-dezembro de 2008.
47
era visibilizada para conceber o “outro” como um ser menor em dignidade e di-
reitos, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade,
um ser descartável, objeto de compra e venda (vide a escravidão) ou de campos
de extermínio (vide o nazismo). Nesse sentido, merecem destaque as violações
da escravidão, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia
e outras práticas de intolerância.
É nesse contexto que se afirma a chamada igualdade formal, a igualdade
geral, genérica e abstrata, sob o lema de que “todos são iguais perante a lei”. A
título de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração Universal
de 1948, bem como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repres-
são ao Crime de Genocídio, também de 1948, que pune a lógica da intolerância
pautada na destruição do “outro”, em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou
religião. Como leciona Amartya Sen (2006, p. 4), “a identidade pode ser tanto
uma fonte de riqueza e conforto como de violência e terror”.2
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, ge-
ral e abstrata. Faz-se necessária a especificaçåo do sujeito de direito, que passa
a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Nessa ótica, determina-
dos sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma res-
posta específica e diferenciada. Isto é, na esfera internacional, se uma primeira
vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar
uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença
(que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e a destruição), percebe-se,
posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção
especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isso significa
que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao
revés, para a promoção de direitos.
Nesse cenário, por exemplo, a população afrodescendente, as mulheres, as
crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e peculiaridades
de sua condiçåo social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também, como
2
Tradução da editoria (“identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and
terror”). O autor ainda tece aguda crítica ao que denomina “a séria miniaturização dos seres humanos”
(“serious miniaturization of human beings”), quando é negado o reconhecimento da pluralidade de
identidades humanas, na medida em que as pessoas são “diferentes diversidades” (“diversily different”)
(SEN, 2006, p. XIII e XIV).
3
Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na
sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro
afro-americano de Wall Street que não pode conseguir um taxi. Nesse caso, a injustiça da falta de
reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. [...] Reciprocamente, a distribuição não pode
se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de
status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desempregado em
virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa.
Nesse caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. [...] Proponho
desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Essa concepção trata da redistribuição e
do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca
ambas em um marco mais amplo” (FRASER, 2001, p. 55- 56).
4
A respeito, ver SOUZA SANTOS, 2003a e 2003b.
5
Ver Nancy FRASER, 1997; Axel HONNETH, 1996; Nancy FRASER e Axel HONNETH, 2003; Charles
TAYLOR, 1994; Iris YOUNG, 1990; e Amy GUTMANN, 1994.
6
Ver SOUZA SANTOS, 2003a e 2003b.
7
A Convenção foi adotada pela Resolução n. 2106 A(XX) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em
21 de dezembro de 1965.
8
A respeito da importância das ações afirmativas, destaca a Recomendação Geral n. 5 do Comitê: “O
Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher [...] recomenda que os Estados-partes
façam maior uso de medidas especiais de caráter temporário como a ação afirmativa, o tratamento
preferencial ou sistema de quotas para que a mulher se integre na educação, na economia, na política e
no emprego”.
9
Nos termos da Recomendação Geral n. 25 do Comitê: “Os Estados-partes deverão incluir em suas
Constituições ou em sua legislação nacional disposições que permitam a adoção de medidas especiais
de caráter temporário”.
Além das ações afirmativas contarem com o sólido amparo jurídico das
Convenções sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e
contra a Mulher, ambas ratificadas pelo Brasil, a ordem jurídica nacional, grada-
tivamente, passa a introduzir marcos legais com o objetivo de instituir políticas
de ações afirmativas.
A Constituição Federal de 1988, marco jurídico da transição democrática
e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, estabelece importantes
dispositivos que traduzem a busca da igualdade material. Como princípio fun-
damental, consagra, entre os objetivos do Brasil, construir uma sociedade livre,
justa e solidária, mediante a redução das desigualdades sociais e a promoção do
bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação (artigo 3º, I, III e IV).
Prevê expressamente para as mulheres e para as pessoas com deficiência a pos-
sibilidade de adoção de ações afirmativas. Nesse sentido, destaca- se o artigo 7º,
inciso XX, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos, bem como o artigo 37, VII, que determina que a lei reser-
vará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência.
10
Decreto Federal 4.228/02.
11
Lei 10.558/02.
12
Lei 10.678/03. No site da Presidência da República é possível acessar estudos e pesquisas que abordam
essa temática, além de notícias e outras informações: www.planalto.gov.br/seppir/.
13
Ver: www.al.ba.gov.br/infserv/legislacao/constituicao2005.pdf.
14
Lei 10.183/92: www.pr.gov.br/casacivil/legislacao.shtml.
15
Lei 10.064/96: www.alesc.sc.gov.br.
16
Decreto 48.328/06: www.legislacao.sp.gov.br/legislacao/index.htm.
O debate público a respeito das ações afirmativas no Brasil tem sido mar-
cado por cinco dilemas e tensões.19
O primeiro dilema atém-se à discussão acerca da “igualdade formal ver-
sus igualdade material”. Argumentam os opositores das ações afirmativas que
seriam elas atentatórias ao princípio da igualdade formal, reduzido à fórmula
“todos são iguais perante a lei”, na medida em que instituiriam medidas dis-
criminatórias. Como já exposto, as ações afirmativas orientam-se pelo valor da
igualdade material, substantiva.
17
Decreto 50.782/06: www.legislacao.sp.gov.br/legislacao/index.htm.
18
Em janeiro de 2007, o Estatuto encontrava-se tramitando na Câmara dos Deputados como PL-
6264/2005, e pode ser encontrado diretamente pelo link: www.camara.gov.br-sileg-integras-359794.pdf.
A proposta tem gerado acirrada polêmica no Brasil, como ilustram os artigos “Todos têm direitos iguais
na República”, de Adel Daher Filho e outros, Folha de S. Paulo, p. A3, 29 jun. 2006; “Intelectuais assinam
manifesto contra o Estatuto da Igualdade Racial”, O Estado de S. Paulo, p. A12, 30 jun. 2006; e “Estatuto
da Igualdade Racial: Lula revê apoio”, O Estado de S. Paulo, p. A8, 7 jul. 2006.
19
Como exemplo, há dezenas de ações judiciais propostas contra cotas para afrodescendentes em
universidades (ver, a título ilustrativo, TRF1 – AC 2006.33.00.002978-0/BA e AMS 2003.33.00.007199-
9/BA, TRF4 – AC 2005.70.00.013067-9), bem como a ação direta de inconstitucionalidade n. 2.858,
ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal pela Confederação dos Estabelecimentos de Ensino
(CONFENEN) contra leis estaduais que instituíram cotas no Estado do Rio de Janeiro. A mídia tem
explorado muito esse tema, com diversos artigos publicados (ver clipping da SEPPIR, www.planalto.
gov.br/seppir/, para artigos da mídia privada, e o site da Radiobrás para a cobertura oficial: www.
agenciabrasil.gov.br/assunto_view?titulo=igualdade%20racial).
20
Ver: “Ipea afirma que racismo só será combatido com política específica”, Folha de S. Paulo, p. A6, 8
jul. 2001.
21
Ver: Marcelo PAIXÃO, 2000.
Referências
Um especial agradecimento é feito ao Paulo Dallari, pela preciosa pesquisa a este texto.
22
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61
Notas para a Interpretação das
Desigualdades Raciais na Educação1
Introdução
As ideias expressas neste texto não representam a posição do Fundo de Desenvolvimento das Nações
2
63
brancos e negros à universidade nos últimos anos, ainda é pequena a presença
de negros/as nas universidades brasileiras, o que corrobora com a relevância da
discussão sobre ações que mitiguem esse problema.
Diferentemente do que ocorria até o ano de 2001, a análise dos dados das
últimas edições disponíveis da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) mostra uma diminuição na diferença entre a média de anos de estudo
de brancos e negros.3 Luciana Jaccoud e Natalie Beghin (2002) e também Ri-
cardo Henriques (2001) apontam que até 2001, a despeito dos avanços obtidos
pelo Brasil em educação na década de 1990, a diferença entre a média de anos de
estudo de brancos e negros permaneceu aproximadamente constante, em torno
de dois anos. Para Henriques (2001), o mais impressionante na desigualdade
educacional entre brancos e negros é sua estabilidade ao longo do século XX,
uma vez que a diferença na escolaridade média entre os adultos brancos e ne-
gros nascidos em 1974 é idêntica entre os nascidos em 1929 – mostrando que o
padrão de discriminação racial na educação manteve-se estável entre gerações.
Essa situação, entretanto, parece ter encontrado seu ponto de inflexão em
2002. Nesse ano, a diferença entre a média de anos de estudo de brancos e negros
foi, pela primeira vez desde que a PNAD passou a coletar o quesito cor/raça,
menor que dois anos, ficando em 1,9. Essa queda, que poderia ser interpretada
pelos mais céticos como anômala em uma séria história na qual a diferença de
escolaridade entre brancos e negros estaria cristalizada em torno de dois anos,
acabou se mostrando, nos anos seguintes, como a nova tendência desse indica-
dor (conforme pode ser visto na Tabela 1).
Considerando-se as questões metodológicas centrais ao processo de repro-
dução das desigualdades sociais e as transformações pelas quais o sistema edu-
cacional brasileiro tem passado desde meados dos anos 1990, não gera espanto a
verificação desse recuo das desigualdades raciais na educação. As desigualdades
3
Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros órgãos oficiais do governo
brasileiro, a categoria “negro” é composta de pardos e pretos.
Tabela 1 – Média de anos de estudo1 das pessoas de 15 anos ou mais de idade por cor/raça, Brasil e
Grandes Regiões – 1993-2007
Cor/Raça Total
1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Total 5,30 5,48 5,65 5,74 5,92 6,05 6,36 6,54 6,72 6,83 6,96 7,16 7,27
Branca 6,20 6,37 6,50 6,66 6,83 6,96 7,26 7,40 7,61 7,69 7,83 8,04 8,15
Negra 4,10 4,28 4,48 4,52 4,71 4,86 5,22 5,46 5,65 5,82 6,01 6,20 6,35
Branca- negra 2,10 2,10 2,02 2,14 2,12 2,09 2,03 1,94 1,96 1,86 1,82 1,84 1,80
Tabela 2 – Proporção de crianças de 7 a 14 anos que frequentam escola, segundo sexo e cor/raça, Brasil
– 1993-2007
Sexo e Cor/Raça 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Total 88,6 90,2 91,2 93,0 94,7 95,7 96,5 96,9 97,2 97,1 97,3 97,6 97,6
Branca 92,1 93,3 94,1 95,5 96,5 97,0 97,5 97,7 98,1 98,1 98,0 98,4 98,2
Negra 85,0 87,1 88,3 90,6 93,1 94,4 95,4 96,2 96,4 96,2 96,8 97,1 97,1
Masculino 87,7 89,3 90,6 92,4 94,4 95,3 96,3 96,6 96,9 96,8 97,1 97,5 97,4
Branca 91,8 92,8 94,0 95,4 96,5 96,8 97,5 97,6 97,9 98,2 97,8 98,3 98,1
Negra 83,7 85,9 87,3 89,6 92,5 93,9 95,0 95,7 96,1 95,6 96,4 96,9 96,9
Feminino 89,5 91,1 91,8 93,6 95,0 96,1 96,7 97,3 97,5 97,4 97,6 97,8 97,8
Branca 92,5 93,9 94,3 95,5 96,4 97,2 97,5 97,8 98,3 98,0 98,2 98,5 98,4
Negra 86,4 88,4 89,2 91,6 93,6 95,0 95,8 96,8 96,7 96,8 97,1 97,3 97,3
4
Neste texto são empregados os termos “raça”, “inscrição racial” e “variável raça”. A diferença entre eles
não é meramente semântica, mas sim fruto de suas diferentes origens disciplinares e metodológicas.
Todos eles, entretanto, possuem em comum o reconhecimento de que as relações sociais no Brasil
possuem um importante componente racial, ou seja, são informadas por ideias e categorias baseadas no
conceito (histórica e socialmente construído) de raça. Ver Antônio Sérgio Alfredo GUIMARÃES, 2003
e 2004; e Kabengele MUNANGA, 2004.
5
Mesmo que, em um primeiro momento, essa expansão tenha acontecido em detrimento da qualidade
do ensino e sem uma rediscussão acerca dos conteúdos abordados em um sistema escolar que foi
construído, ao longo de décadas, para atender a um público de classe média, branco e masculino.
6
Mais informações sobre o desempenho desigual de estudantes brancos e negros avaliados pelo
Ministério da Educação por meio do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) podem ser vistas
em Alicia Maria Catalano de BONAMINO, Francisco Creso Junqueira FRANCO e Fátima ALVES, 2005;
e José Francisco SOARES e Maria Teresa Gonzaga ALVES, 2003.
Total
Cor/Raça 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Branca
7 a 14 anos 2,57 2,68 2,75 2,79 2,87 2,98 3,27 3,29 3,33 3,32 3,32 3,36 3,11
15 a 17 anos 5,93 6,18 6,36 6,52 6,66 6,90 7,25 7,33 7,54 7,58 7,69 7,71 7,78
Negra
7 a 14 anos 1,70 1,82 1,96 1,98 2,15 2,31 2,84 2,93 2,97 2,98 3,02 3,07 2,76
15 a 17 anos 4,24 4,50 4,68 4,83 5,12 5,41 5,72 6,00 6,28 6,43 6,57 6,66 6,77
Branca - negra
7 a 14 anos 0,87 0,85 0,79 0,81 0,72 0,67 0,43 0,36 0,35 0,34 0,30 0,29 0,34
Branca - negra
15 a 17 anos 1,69 1,68 1,68 1,69 1,53 1,49 1,53 1,33 1,26 1,15 1,12 1,05 1,01
7
Nilma Lino GOMES (1996) destaca que o silenciamento e o discurso da igualdade são recursos
utilizados como estratégia para invisibilizar alunos/as negros/as no ambiente escolar e se furtar à
discussão sobre as relações raciais no Brasil.
Tabela 4 – Taxa de distorção idade–série1 no ensino fundamental, segundo cor/raça, Brasil – 1993-2007
1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Total 46,3 44,8 44,3 44,0 42,1 39,8 35,3 33,1 31,2 28,9 28,5 26,9 25,1
Branca 34,8 33,2 33,2 32,3 30,8 28,3 24,6 23,1 21,9 20,0 19,9 18,6 17,4
Negra 58,4 56,8 55,8 55,4 52,6 50,3 44,6 41,8 38,9 36,2 35,1 33,1 30,8
O ensino superior
8
Segundo Kaisô Iwakami BELTRÃO e José Eustáquio Diniz ALVES (2009), essa inversão se iniciou na
segunda metade do século XX, em função da pressão exercida pelo movimento feminista no Brasil e
também das políticas públicas adotadas a partir da Revolução de 1930.
9
A taxa de crescimento foi obtida da seguinte maneira: [(proporção em T1/proporção em T0) -1] x 100.
10
A razão de representação de brancos e negros foi obtida pela divisão da porcentagem de brancos no
ensino superior pela porcentagem de negros, num dado ano.
11
As especificidades da luta da mulher negra nem sempre estiveram representadas nos movimentos
feministas e nos movimentos negros. O reconhecimento das diferenças intragênero e intrarracial
foi pautado pelas mulheres negras à medida que não se viam representadas nas demandas e ações
empreendidas por esses movimentos sociais (Sueli CARNEIRO, 2003).
12
Vale destacar que o problema do retorno desigual aos esforços desenvolvidos por homens e mulheres,
que no caso do acesso ao ensino superior tem sido um problema específico para a mulher negra, expande-
se para toda a população feminina brasileira quando se trata da relação entre educação e mercado de
trabalho. As conquistas das mulheres na área da educação não têm se revertido em ascensão profissional
semelhante à obtida pelos homens, seja em termos de melhores cargos ou salários. No mundo do
trabalho, em iguais condições de escolaridade, as mulheres continuam recebendo salários mais baixos.
Considerações finais
Referências
Daniela Novelli
79
geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciati-
va” (FOUCAULT, 1987, p. 136).
• Naturalização: atribuição de qualidades essenciais (biologizantes) aos in-
divíduos para justificar determinadas práticas humanas consolidadas no
senso comum por meio de padrões específicos de comportamento, que
na realidade são construídas socialmente (nas relações interpessoais e hie-
rarquizadas). Ex.: competição, força e intelecto são “naturais” do homem;
fragilidade e delicadeza são “naturais” da mulher (FÁVERO, 2010).
• Violência simbólica: se institui por intermédio da adesão que o domina-
do não pode discordar do dominante (e então da dominação) quando ele
dispõe, para pensá-lo, se pensar ou pensar sua própria relação com ele,
apenas de instrumentos de conhecimento em comum com o dominante
e que, sendo apenas a forma incorporada da relação de dominação, fazem
aparecer essa relação como natural (BOURDIEU, 1998, tradução nossa).
• Interseccionalidade: ferramenta teórica que permite pensar na articula-
ção de várias categorias (gênero, sexualidade, raça/etnia, classe, geração
etc.) para entender um fenômeno discriminatório.
Segundo Ruth Frankenberg (1993), a raça molda a vida das mulheres bran-
cas, da mesma forma que as vidas de homens e mulheres são moldadas por seu
gênero. Em um contexto social no qual “pessoas brancas têm muitas vezes visto
a si mesmas como não-raciais ou racialmente neutras, torna-se crucial olhar a
‘racialidade’ [racialness] da experiência branca” (FRANKENBERG, 1993, p. 1,
tradução nossa). Assim, evitar focalizar o branco é evitar “discutir as diferentes
1
NOVELLI, Daniela. A branquidade em Vogue (Paris e Brasil): imagens da violência simbólica no
século XXI. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas.
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, 2014. 345 p.
2
Segmento da “moda de luxo” vendida em Vogue, marcada historicamente pela invenção da Alta
Costura [Haute Couture] na França e mais recentemente pela produção em série e relativamente restrita
de coleções sazonais; abrange ainda importantes setores como o de acessórios e o de perfumes.
Referências
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2006.
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de verdade acadêmica. Contemporânea, Vol. 3, n. 2. Julho/Dezembro 2005,
p. 159-180.
Verena Stolke
Dois mundos Deus colocou nas mãos de nosso soberano católico, e o Novo
não se assemelha ao Velho, nem em seu clima, nem em seus hábitos, nem
em seus habitantes; ele tem um outro corpo legislativo, outro modo de go-
verno, sempre porém com o fim de torná-los semelhantes. Na Velha Espa-
nha apenas uma casta de homens é reconhecida; na Nova, muitas e diferen-
tes (Arcebispo Francisco A. Lorenzana do México, de 1766 a 1772, citad o
em Ilona KATZEW, 1996, p. 8).
Abertura
89
mistura de negro e indígena com negro2], uma coyota [descendente de ín-
dio e mestiça3] ou a filha de um carrasco, um açougueiro, um curtumeiro)...
Neste caso, ele não deverá se casar com ela porque a injúria para ele e para
toda sua linhagem seria maior do que aquela em que a donzela incorreria
ao permanecer sem salvação, e deve-se sempre escolher o mal menor [...]
pois o último caso é uma ofensa individual e não causa danos para a Repú-
blica , enquanto o primeiro é uma ofensa de tal gravidade que irá denegrir
uma família inteira, desonrar uma pessoa proeminente, difamar e manchar
toda uma linhagem de nobres e destruir algo que oferece esplendor e honra
à República. Mas se a donzela seduzida é de status apenas levemente infe-
rior, de diferença não muito marcante, de forma que sua inferioridade não
cause uma desonra marcante para a família, então, se o sedutor não desejar
e compensá-la, ou se ela simplesmente rejeitar a compensação na forma
de doação, ele deve ser forçado a se casar com ela; porque nesse caso sua
injúria pode prevalecer sobre a ofensa infligida à família do sedutor, já que
eles não sofreriam um dano grave com o casamento, enquanto ela sofreria
se não se casasse (Citado por STOLCKE, 1974, p. 101).
Esta é uma das mais eloquentes ilustrações das interseções que se desen-
volveram no império colonial espanhol entre relações de gênero, concepções
de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. Na sociedad e
colonial o corpo sexuado tornou-se fundamental na estruturação do tecido só-
cio-cultural e ético engendrado pela conquista portuguesa e espanhola e pela
subsequente colonização do Novo Mundo. Até recentemente, porém, as/os pes-
quisadoras/es em geral deram pouca atenção para o papel crucial que o controle
da sexualidade das mulheres, por parte do Estado, da Igreja e o domínio dos
homens, teve na construção da sociedade colonial. Neste artigo, vou enfocar
minha atenção na forma como as múltiplas normas morais, sociais, jurídicas
e religiosas relativas à sexualidade e às relaç ões entre mulheres e homens inte-
ragiram dialeticamente com desigualdades só cio- política s, na época em que
a sociedade colonial estava se estruturando política e simbolicamente. A expe-
riência colonial Ibérica permite assim transcender as justaposições e a literações
convencionais dos critérios de identificaçã o de classe, raça e gênero. O gênero
não trata de mulheres como tais. Refere-se a os conceitos que prevalecem em
uma sociedade sobre o que são as mulheres em relação aos homens enquanto
2
Nota da autora.
3
Nota da autora.
O sexo da conquista
4
É inadequado o uso do termo miscigenação para a relação sexual entre colonos europeus e a população
indígena nos dois primeiros séculos após a conquista porque, como mostro mais abaixo, a categoria
moderna de “raça”, e portanto a idéia da mistura “racial” a que a miscigenação se refere, só apareceram
no início do século XVIII.
Antecedentes metropolitanos
5
Kamen sugere igualmente para a Península Ibérica que aquilo que começou como discriminação
religiosa e cultural se transformou, em meados do século XVI, em “uma doutrina racista do pecado
original da mais repulsiva espécie” (KAMEN, 1985, p. 158).
6
Susan SOCOLOW, 1978; Silvia ARROM, 1985; SOCOLOW, 1987; Irene SILVERBLATT, 1987; Patricia
SEED, 1988; Asunción LAVRIN, 1989; Guiomar DUEÑAS VARGAS, 1996; e María Imelda RAMIREZ,
2000.
7
Ao contrário da legislação que regulava direitos e deveres dos africanos, que até o século XVIII foi
extraordinariamente repetitiva e escassa, as leis referentes aos índios eram abundantes. Por exemplo,
a Coroa insistia sempre, como em 1734, que “todas as distinções e honrarias (sejam elas eclesiásticas
ou seculares) atribuídas a castelhanos nobres serão oferecidas a todos os caciques e seus descendentes;
e a todos os índios menos ilustres e a seus descendentes que sejam limpios de sangre, sem mistura ou
[infecção] de um grupo condenado [...] e por essas determinações reais eles passam a ser qualificados
por Sua Graça para qualquer emprego honorífico” (KONETZKE, 1962, III, 1, p. 217).
8
A palavra casta, hoje associada ao sistema de castas indiano, foi introduzida no sul da Ásia como um
conceito ibérico referente a pessoas definidas pelo “sangue”. Na América espanhola, “casta” primeiro
indicava o contorno natural das desigualdades de poder e de status entre os colonizadores espanhóis, os
índios e os escravos africanos. Mas com o tempo, a “casta” se transformou num termo genérico referente
à ampla coorte das pessoas “misturadas” (SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p. 444).
9
Katzew cita o seguinte trecho da Idea compendiosa del Reyno de Nueva España (1774), de Pedro
Alonso O’Crouley: “[...] las calidades y linajes de que estas castas se originan; son español, indio y negro,
sabido es que de estas dos últimas ninguna disputa al español la dignidad y estimación, ni alguna de las
demás quiere ceder a la del negro, que es la más abatida y despreciada [...] Si el compuesto es nacido de
español e indio sale la mancha al tercer grado, porque se regula que de español e indio sale mestizo, de
éste y español castizo, y de éste y español sale ya español [...] porque se encuentra que de español y negro
nace el mulato, de éste y español morisco, de éste y español ornatrás, de éste y español tenteenelaire, que
es lo mismo que mulato, y por esto se dice y con razón que el mulato no sale del mixto, y antes bien como
que se pierde la porción de español y se liquida en carácter de negro, o poco menos que es mulato. Por
lo que respecta a la confección de negro e indio sucede lo mismo; de negro e indio, lobo: de éste e indio
chino, de éste e indio albarazado, y todos tiran a mulato” (KATZEW, 1996, p. 109).
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119
Mulatas Profissionais:
raça, gênero e ocupação1
1
Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 14; v. 1; janeiro-abril de 2006.
2
Autora agradece mais uma vez o apoio da Fundação Carlos Chagas, sem o qual a pesquisa que deu
origem a este artigo não teria sido possível.
3
Esse tema foi amplamente explorado em GIACOMINI, 1992.
121
Certamente não se pretende, com este trabalho, responder de maneira
exaustiva a todas essas perguntas, mas, mais modestamente, explorar parte do
material recolhido em entrevistas com as alunas do II Curso de Formação Pro-
fissional de Mulatas, ministrado pelo SENAC no Rio de Janeiro no final dos anos
1980 e início de 1990, e na observação realizada em diferentes shows de mulatas
em cartaz na cidade no mesmo período, o que permitiu fazer etnografias dos
espetáculos e captar alguns elementos recorrentes.
Durante três meses, três vezes por semana, freqüentei a Casa de Show onde
era ministrado o Curso. Como me introduzi naquele universo através do proprie-
tário da casa de espetáculo em que eram realizadas as aulas e da coordenadora do
Curso, passou-se bastante tempo até que as alunas entendessem o motivo de mi-
nha presença. Fui muitas vezes confundida com jornalista, e acredito que muitas
participantes, sobretudo no início, imaginavam que eu podia ser uma empresária
ou olheira de algum produtor, algo bastante comum nesse universo. Com o decor-
rer das aulas, porém, minha assiduidade e muitas explicações contribuíram para
que ficasse mais clara minha identidade de antropóloga/pesquisadora.
Dessa forma, observando o Curso, entrevistando as alunas candidatas a
mulata profissional e observando as interações entre os diferentes agentes envol-
vidos na realização das aulas e, em particular, analisando o show de encerramen-
to do Curso apresentado na cerimônia de formatura, consegui recolher um rico
material para a pretendida reflexão sobre a identidade da mulata profissional.
Dividido em três partes, este artigo inicia-se com uma análise da
auto-representação das candidatas no que concerne à identificação de atribu-
tos e características considerados fundamentais para ser uma mulata profissio-
nal. A segunda parte apresenta a estrutura dos shows de mulata e investiga a
composição de seus diferentes quadros, os quais, como se verá mais adiante, se
apresentam como que condensados no show apresentado pelas alunas durante
a cerimônia de formatura do Curso. Através da análise do show de formatura,
procura-se identificar a maneira pela qual os atributos considerados típicos da
mulata são acionados e configuram, como que ‘naturalmente’, uma forma de in-
teração recorrente e tipificada que constitui o núcleo da narrativa de brasilidade
atualizada pelo show.
Na última parte, alinham-se alguns comentários sobre as especificidades
da ocupação de mulata, em particular sobre a maneira como são vivenciadas
Pedir o corpo violão é válido, mas não se pode valorizar muito a altura,
porque afinal o brasileiro é conhecido como de estatura mediana. É a nossa
estrutura mesmo física. Eles tinham que visar uma coisa assim, nessa altu-
ra, as pessoas com esse tamanho... isto é, entre um metro e sessenta e cinco
e um metro e setenta.
Você pode notar que uma mulher assim muito alta não sabe dançar direi-
to, assim... mexer o corpo muito bem... Já num tamanho não tanto, pode
observar como ela dança melhor, samba melhor, leva mais jeito.
4
Por “acidentes de trabalho” entendem-se situações, embora eventuais mas nem por isso totalmente
inesperadas, em que um turista se excede sobre o palco ou fora dele, tornando-se inconveniente ou
mesmo agressivo.
5
Presente no imaginário brasileiro de forma crescente, principalmente a partir do século XIX, a mulata
é construída, em verso e prosa, como um tipo feminino peculiar. Para uma análise da mulata na literatura
brasileira, verTeófilo QUEIROZ JUNIOR, 1975; eAffonso Romano de SANT’ANNA, 1975. Sobre
representações damulata no pensamento social brasileiro, em particular em Gilberto Freyre, Raymundo
Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Florestan Fernandes, ver GIACOMINI, 1992.
6
Dos seis números apresentados no show de formatura, dois constituem solos de mulata e um se encerra
com um solo desse tipo, ficando nesse show mantida a mesma proporção existente no show regular:
metade dosquadros do espetáculo é especialmente dedicada a exibições solo de mulata. Quanto aos outros
quadros, no espetáculo das formandas houve a supressão de três regularmente protagonizados por outros
tipos de profissionais: Balé Africano, executado exclusivamente por bailarinos negros; Capoeira, exibição
de capoeiristas; e, finalmente, o número em que Ataulfo Alves Filho canta em homenagem ao pai. Foi
também suprimido o quadro Iemanjá, provavelmente por se julgar que a nudez de uma mulata envolta em
diáfanos véus azulados não seria apropriada a um show de formatura apresentado a familiares das alunas.
Baianão – a mulata-baianinha
Tem muito homem que pensa assim, eles logo vem: ´Está com aquela bun-
da de fora é prostituta, é prostituta da noite, é piranha’. Eu posso trabalhar
no show, fazer o meu show, pegar as minhas coisas e ir embora, fico se eu
quiser na prostituição.
No fundo, no fundo, a gente tem que mostrar que não é nada daquilo que
as pessoas pensam [...] dizem logo que é prostituta, mas não é nada disso.
Ser mulata é como uma profissão qualquer, estou levando a minha vida
normalmente, é como um emprego qualquer.
Prostituta você pode ser em qualquer lugar, não precisa ser mulata, você
pode trabalhar num escritório e ser uma prostituta, trabalhar num banco
e ser uma prostituta.
O que pode ser lido no conjunto dos depoimentos é que as mulatas são tão
dadas à prostituição quanto as mulheres em geral – o que pode ser, ainda, lido
no sentido inverso: as mulheres em geral se prostituem tanto quanto as mulatas.
Tal postura, ressalte-se, não implica um julgamento moral da prostituição, ou
das mulheres que se prostituem, como fica claro no depoimento seguinte:
Cada um com seu trabalho, cada um com a sua profissão, e quem quer se
prostituir se prostitui, quem quer trabalhar, trabalha.
Já ouvi falar muito que as mulatas são muito... discriminadas, são prosti-
tutas a bem dizer, né? Então eu vi que não é nada disso, vai pela cabeça de
cada um [...] Gostei da carreira e vou continuar.
Eu faço show de mulata, mas é uma coisa, assim, que eu não gosto. Não
desfaço, mas eu sempre liguei mais pro meu mundo profissional da dança.
Não quero ser mulata, quer dizer, isso faz parte também da dança, mas eu
quero continuar sendo uma dançarina profissional. Tudo bem que faz par-
te da profissão, mas o que eu mais me amarro mesmo é dançar, é uma coisa
que eu sempre tive comigo: dança afro, faço também um pouco de jazz...
Com a cor dela que ela ganha o trabalho, com a cor porque é mulata. Tenho
essa cor, porque senão eu não teria o espaço nessa casa.
Mas é a mesma entrevista que, logo a seguir, destaca a outra face da mesma
moeda, revelando que a abertura desse espaço às mulheres que têm a cor é con-
temporânea a sua exclusão de outros espaços:
Referências
Ângela Figueiredo
1
Texto publicado originalmente na Revista Periódicus, n. 3; v. 1; maio-outubro de 2015.
2
A UFRB é uma universidade localizada na histórica cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia,
berço da religiosidade e da cultura negra do Brasil. Inicialmente, acessei os textos de Judith Butler para
compreender o entusiasmo dos alunos com os escritos da autora.
139
É a primeira vez que vens ao Brasil e para nós é importante termos a opor-
tunidade de escutá-la na Bahia, um estado importante para as formulações do
debate sobre raça no Brasil.
Sou antropóloga de formação e fiz o doutorado em sociologia. A minha
formação tem sido definida como uma formação clássica na área de raça e classe,
ou no campo de estudos definido inapropriadamente no Brasil como o Estudo
das Relações Raciais, ao invés de Estudos das Hierarquias Raciais como reivin-
diquei (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007). Somente após a aquisição do
doutorado é que começo a incorporar a dimensão de gênero nas pesquisas que
tenho desenvolvido orientado e aprendido sobre o tema com os alun@s e colegas
da universidade em que trabalho. Há muito que tenho sido estimulada para es-
crever este texto que somente agora, graças às constantes provocações de Cintia
Tâmara, Felipe Fernandes3 e de outros que “apertaram a minha mente”, como se
diz por aqui, resolvi escrever. O meu ponto de partida reside em um interesse
muito especial no diálogo entre a problematização da identidade de gênero e na
sua correlação com a identidade racial e, conseqüentemente, dos efeitos dessas
perspectivas para o empoderamento4 e conquista de direitos para grupos ra-
cializados. Penso que estes dois campos, Estudos de Gênero e Estudos Raciais,
definidos a partir de uma abordagem teórica e de bibliografias muito distintas,
efetivamente, demonstram muitas similaridades. Escolhi tratar desse tema assu-
mindo a minha posicionalidade como um sujeito feminino negro, ativista, cuja
sexualidade e constituição familiar se constrói de forma contra-hegemônica,
constituído discursivamente em um contexto sócio histórico das relações raciais
e sexuais brasileiras, notadamente marcada pelo discurso da democracia racial e
pela recusa ao uso de categorias binárias e identitárias.
Nascida em uma sociedade em que a raça é discursivamente construí-
da, não polarizada, afinal de contas existia e existe hoje, ainda que em medida
3
Professor da Universidade Federal da Bahia, a quem agradeço imensamente ao estímulo, a colaboração
e a leitura atenta.
4
“O empoderamento de mulheres é o processo de conquista de autonomia, da auto-determinação. E
trata-se para nós ao mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O empoderamento
das mulheres implica para nós a liberdade das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão
patriarcal. Para as feministas latino-americanas em especial, o motivo maior do empoderamento das
mulheres é questionar e desestabilizar e por fim, acabar com a ordem patriarcal que sustenta a opressão
de gênero (...) Além de assumirmos o controle sobre nossos corpos, nossas vidas”. (SARDENBERG, 2006)
5
Ver Michael Hanchard (2001).
6
Tratei do tema da manipulação do cabelo e da assunção da identidade negra nos textos Dialogando
com os estudos de gênero ( 2008); Cabelo, cabeleira, cabeluda (2010) e no Impactos e representações sobre o
cabelo em uma exposição fotográfica (2012). Além da curadoria da exposição global African hair (2011).
7
De acordo com Anibal Quijano (2002), as independências nas Américas ocorreram sem que houvesse
a transformação das hierarquias raciais existentes no período colonial. A colonialidade do poder seria,
portanto, a manutenção dessas hierarquias e do privilégio assegurado aos brancos-crioulos.
Referências
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“sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002. ______. Le pouvoir des mots. Politique du
performatif. Paris: Éditions Amsterdam, 2004.
______. On Speech, Race and Melancholia. in: Theory, Culture and Society. Vol.
16, No. 2, 1999, pp. 163-174.
COLLINS, Patricia Hill. The black feminist thought. London, Routledge, 2000
DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil o Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
DEGLER, C. Nem preto nem branco: escravidão e relações raciais no Brasil e nos
Estados Unidos. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976.
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais. São
Paulo: T.A. Queiroz, 1985.
OCHOA, Marcia. Queen for a day. Transformistas, beauty queens, and the per-
formance of femininity in Venezuela. Duke University Press, 2014.
SALIH, S. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
SEGATTO, Rita. Édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. Série Antro-
pologia, 400, Brasília, 2006.
SILVA, Nelson do Valle. Uma nota sobre “raça social” no Brasil. Estudos Afro-
-Asiáticos, nº 26, 1994, p. 67-80.
WAGLEY, Charles. Comment les classes ont remplacé les castes dans le Brésil
septentrional. In: WAGLEY, Charles. Races et classes dans le Brésil rural. Paris:
Unesco, 1952.
Introdução
1
Texto publicado originalmente na Revista Educação, v. 34; n. 1; janeiro-abril de 2009.
2
Na falta de termo melhor, chamaremos de “escolas convencionais” aquelas que funcionam em todo
o território nacional e seguem os parâmetros curriculares oficiais, como forma de diferenciálas das
escolas indígenas, que funcionam, em sua maioria, nas aldeias indígenas e podem optar por currículos
diferenciados.
161
Para a discussão que se segue, será oportuno citar alguns aspectos da le-
gislação, a começar pelos artigos da Constituição de 1988 que se referem aos
saberes indígenas:
Art. 26: Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada estabelecimento escolar,
por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais
da sociedade, da cultura e da econo-mia.
§ 4º o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especial-
mente das matrizes indígenas, africana e européia.
Art 78: O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências
federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá pro-
gramas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de Educação escolar
bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de
suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a va-
lorização de suas línguas e ciências;
II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informa-
ções, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais
sociedades indígenas e não-indígenas.
Somente a partir do ano de 1999 o novo PNLD passou a avaliar e recomendar os livros de 5ª a 8ª séries.
3
As citações dos livros analisados por Gobbi (2006) não contém referências bibliográficas propositada-
4
5
Como exemplo, podemos citar os trabalhos de Telles (1984) e os trabalhos constantes nas coletâneas
organizadas por Lopes da Silva (1987) e Lopes da Silva e Grupioni (1998).
6
O expressivo aumento do número de escolas indígenas entre 2002 e 2005 se explica não só pela
construção de novas escolas, mas também pela criação da categoria “escola indígena” segundo a
Resolução CEB03/1999 e o Plano Nacional de Educação/2001, que passou a definir várias escolas já em
funcionamento, mas anteriormente classificadas como “escolas rurais”.
Considerações finais
7
A saber, Lei nº 11.465, de 10/03/2008, que “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada
pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”.
TELLES, N. 1984. Cartografia Brasílis ou: esta história está mal contada. São
Paulo: Edições Loyola.
Ângela Figueiredo
Flávia Piovesan
Lauro Stocco
Verena Stolcke
Yvonne Maggie