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Universidade Federal de Santa Catarina

Pró-Reitoria de Pós-Graduação

Coordenadoria de Educação Continuada

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Instituto de Estudos de Gênero

Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola

Coleção Livros Didáticos do GDE/UFSC


Miriam Pillar Grossi
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini
(Editoras)

Especialização EaD em
Gênero e Diversidade na Escola
Livro IV – Módulo IV

8. Noções de raça, racismo,


etnicidade e desigualdade racial

9. Gênero, raça e diversidade


no cotidiano escolar

Tubarão-SC, 2015
© Copyright 2015. Universidade Federal de Santa Catarina / Instituto de Estudos de
Gênero. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada,
por qualquer meio eletrônico, fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito,
das/os autoras/es.

Capa: Rochelle dos Santos e William Carvalho (UFSC)

Projeto gráfico e diagramação: Rita Motta, sob coord. da Gráfica e Editora Copiart

Impressão: Gráfica e Editora Copiart Ltda.


Dilma Vana Roussef
PRESIDENTA DA REPÚBLICA

Eleonora Menicucci
MINISTRA DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS
PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SPM/PR

Renato Janine Ribeiro


MINISTRO DA EDUCAÇÃO

Paulo Gabriel Soledade Nacif


SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO,
DIVERSIDADE E INCLUSÃO – SECADI / MEC

Nilma Lino Gomes


SECRETÁRIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO
DA IGUALDADE RACIAL – SEPPIR/MEC

Roselane Neckel
REITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DE SANTA CATARINA – UFSC

Joana Maria Pedro


PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SANTA CATARINA – PROPG/UFSC

Mara Coelho de Sousa Lago


Miriam Pillar Grossi
Zahidé Lupinacci Muzart
COORDENADORAS DO INSTITUTO
DE ESTUDOS DE GÊNERO – IEG/UFSC
Equipe do Curso de Especialização Gênero e Diversidade na Escola – IEG/UFSC –
Edição 2015

Coordenação do Projeto GDE Especialização


Miriam Pillar Grossi e Olga Regina Zigelli Garcia – Coordenação Geral
Marie-Anne Stival Pereira e Leal Lozano – Coordenação de Ambiente Virtual de Ensino e
Aprendizagem (AVEA)
Pedro Rosas Magrini – Coordenação Editorial
Carmem Vera Ramos – Coordenação Financeira
Jonatan Siqueira Pereira – Secretaria do GDE/UFSC

Quadro Docente do Curso GDE UFSC


Professoras/es doutoras/es Adriano Henrique Nuernberg (Departamento de Psicologia
UFSC), Amurabi Pereira de Oliveira (Departamento de Sociologia Política UFSC),
Antonela Maria Imperatriz Tassinari (Departamento de Antropologia UFSC), Carmem
Silvia Rial (Departamento de Antropologia UFSC), Claudia Lima Costa (Departamento
de Letras e Literatura Vernáculas UFSC), Cristina Scheibe Wolff (Departamento de
História UFSC), Fernando Cândido da Silva (Departamento de História UFSC), Janine
Gomes da Silva (Departamento de História UFSC), Jair Zandoná (Departamento
de Língua e Literatura Vernáculas, Leandro Castro Oltramari (Departamento de
Psicologia UFSC), Luciana Patricia Zucco (Departamento de Serviço Social UFSC),
Luzinete Simões Minella (Departamento de Sociologia Política UFSC), Mara Coelho
de Souza Lago (Departamento de Psicologia), Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC),
Marivete Gesser (Departamento de Psicologia UFSC), Miriam Pillar Grossi
(Departamento de Antropologia UFSC), Olga Regina Zigelli Garcia (Departamento de
Enfermagem UFSC), Regina Ingrid Bragagnolo (Núcleo do Desenvolvimento Infantil
UFSC), Rodrigo Moretti (Departamento de Saúde Pública UFSC), Tania Welter (Pós-
doutoranda PPGAS), Teophilos Rifiotis (Departamento de Antropologia Social UFSC);
Tereza Kleba Lisboa (Departamento de Serviço Social UFSC).

Revisão de Conteúdo
Pedro Rosas Magrini, Miriam Pillar Grossi e Olga Regina Zigelli Garcia
Nota/Gênero e Diversidade na Escola (GDE)
Gênero e Diversidade na Escola é um projeto destinado à formação de profissionais da
área de educação que também permite a participação de representantes de Organizações
Não Governamentais (ONGs) e de movimentos populares, buscando a transversalidade
nas temáticas de gênero, de sexualidade e de orientação sexual e relações étnico-raciais.
A concepção do projeto é da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/
PR) e do British Council, em parceria com a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade e Inclusão (SECADI/PR), Secretaria de Ensino a Distância
(SEED-MEC), Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR) e
o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ).

Polos Presenciais – GDE Especialização 2015

Concórdia
Prefeito – João Girardi
Coordenadora do Polo – Leonita Cousseau
Endereço – Travessa Irmã Leopoldina, n. 136, Centro, Concórdia – SC
CEP: 89700-000
Tel.: (49) 3482-6029

Florianópolis
Prefeito – Cesar Souza Júnior
Coordenadora do Polo – Fabiana Gonçalves
Endereço – Rua Ferreira Lima, n. 82, Centro, Florianópolis – SC
CEP: 88015-420
Tel.: (48) 2106-5910/2106-5900

Itapema
Prefeito – Rodrigo Costa
Coordenadora do Polo – Soeli Uga Pacheco
Endereço – Rua 402-B, Morretes, Prédio Escola Bento Elóis Garcia, Itapema – SC
CEP: 88220-000
Tel.: (47) 3368-2267/3267-1450

Laguna
Prefeito – Everaldo dos Santos
Coordenadora do Polo – Maria de Lourdes Correia
Endereço – Rua Vereador Rui Medeiros, Portinho, Laguna – SC
CEP: 88790-000.
Tel.: (48) 3647-2808

Praia Grande
Prefeito – Valcir Daros
Coordenadora do Polo – Sílvia Regina Teixeira Christovão
Endereço – Rua Alberto Santos,n. 652, Centro, Praia Grande – SC
CEP: 88990-970
Tel.: (48) 3532-1011
Sumário

Apresentação............................................................................................................. 11
Miriam Pillar Grossi
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini

Disciplina 8
NOÇÕES DE RAÇA, RACISMO,
ETNICIDADE E DESIGUALDADES RACIAIS

Pela Igualdade........................................................................................................... 21
Yvonne Maggie

Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas......................................... 47


Flávia Piovesan

Notas para a interpretação das desigualdades raciais na educação............... 63


Danielle Oliveira Valverde
Lauro Stocco

Discutindo o privilégio racial [branco] na moda de luxo: imagens da


branquidade em Vogue Brasil............................................................................... 79
Daniela novelli
Disciplina 9

GÊNERO, RAÇA E DIVERSIDADE


NO COTIDIANO ESCOLAR

O enigma das interseções: classe, ”raça ”, sexo, e sexualidade. A formação


dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX......................................... 89
Verena Stolke

Mulatas profissionais: raça, gênero e ocupação...............................................121


Sonia Maria Giacomini

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler...........................................................139


Ângela Figueiredo

Políticas públicas e educação para indígenas e sobre indígenas..................161


Antonella Maria Imperatriz Tassinari
Izabel Gobbi

Sobre as/os autoras/es...........................................................................................181


Apresentação

É com imensa satisfação que apresentamos o quarto volume da Coleção


Editorial de Livros Didáticos da Especialização EaD em Gênero e Diversidade
na Escola (GDE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), referente
ao Módulo IV do curso. Debatemos nos três primeiros módulos do curso os
conceitos de gênero, sexo, sexualidade, diversidade, feminismos, movimentos
sociais, espaço escolar e políticas públicas. Neste livro texto optamos por re-
publicar artigos já publicados na Revista Estudos Feministas1 da Universidade
Federal de Santa Catarina por considerarmos que continuam muito atuais para
a formação de nosso GDE na UFSC. Escolhemos alguns dos textos publicados
em dois dossiês sobre questões envolvendo gênero, raça e etnicidade: o Dos-
siê Mulheres Negras, publicado no volume 14, n. 1 de 2006 e o Dossiê 120 anos
da abolição da escravidão no Brasil: um processo ainda inacabado, publicado no
volume 16, n. 3 em 2008. Além destes, republicamos dois outros artigos. Um
publicado na Revista Educação2 da Universidade Federal de Santa Maria no
volume 34, n. 1, de 2009, mais específico sobre a temática indígena e outro na
Revista Periódicus3 da Universidade Federal da Bahia no volume 1, n. 3, de 2015,
sobre teoria queer e questões raciais.
Antes de apresentarmos a organização do conteúdo de cada disciplina des-
te livro, faremos uma rápida exposição dos conceitos básicos sobre as categorias
de raça, racismo e etnicidade, centrais neste quarto módulo do GDE.
A primeira dúvida que surge quando se começa a estudar estes concei-
tos refere-se a qual terminologia usar: raça, etnia ou questões étnico-raciais?

1
  Link da revista: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref
2
  Link da revista: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reveducacao
3
  Link da revista: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus

11
A utilização destas terminologias de trabalhos acadêmicos científicos, movi-
mentos sociais, e até mesmo na linguagem coloquial está disseminada e cober-
ta de dúvidas e conflitos sobre o que representam e significam. Se o uso de raça
como conceito para falar das diferenças ligadas à cor e identidades culturais
havia sido abandonado no século XX em prol do uso do conceito de etnicida-
de, como melhor operador das diferentes formas de discriminação ligadas à
grupos étnicos, foram os movimentos negros que o recolocaram na ordem do
dia como bem aponta o antropólogo Kabengele Munanga, para quem atual-
mente, na academia

a maioria dos pesquisadores brasileiros que atuam na área das relações ra-
ciais e interétnicas recorre com frequência ao conceito de raça. Eles em-
pregam ainda este conceito, não mais para afirmar sua realidade biológica,
mas sim para explicar o racismo, na medida em que este fenômeno con-
tinua a se basear em crença na existência das raças hierarquizadas, raças
fictícias ainda resistentes nas representações mentais e no imaginário co-
letivo de todos os povos e sociedades contemporâneas. Alguns fogem do
conceito de raça e o substituem pelo conceito de etnia considerado como
um lexical mais cômodo que o de raça, em termos de ‘fala politicamente
correta’ (2003, p. 12).

No Brasil, atualmente o termo raça é utilizado também por vários movimentos


sociais, em particular pelos movimentos negros. O emprego destes conceitos, tanto
de raça quanto o de etnia, são apropriados de acordo com diferentes perspectivas
políticas, tanto por grupos e indivíduos que o usam como forma de discriminação
racista, quanto por movimentos sociais que lutam contra o racismo. Segundo Rita
Segato, o uso de determinada terminologia tem profundo significado político:

Existe um papel nominativo importante que nomeia uma diversidade de


sofrimentos e expõe a necessidade de sua erradicação. Esses nomes: “ge-
nocídio”, “racismo”, “xenofobia”, “discriminação contra a mulher”, “tortu-
ra”, “tratamento desumano e cruel”, “abuso infantil”, etc., permitem que
pessoas ou grupos humanos prejudicados se reconheçam ao identificar
em sua própria experiência os flagelos e formas de maus tratos nomina-
dos pela lei (2006, p. 3).

Ou seja, utilizar o termo raça para abordar as discriminações e desigualdades


dadas pela cor da pele pode ser uma importante arma política para alguns grupos.

12 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


A mesma autora distingue três tipos de preconceito e discriminação raciais:
1. O racismo que articula raça com etnia que seria aquele que discrimina um
grupo etnico-racial por sua diferença fenotípica (as características físicas
do sujeito) com um patrimônio cultural particular;
2. O racismo de raça sem etnia se caracteriza pela discriminação contra pes-
soas com fenótipos raciais específicos como cor da pele, tipo de cabelo e
formato do rosto, lábios e nariz, sem que façam parte de um grupo que
tenha um patrimônio cultural diferenciado;
3. Por último, o racismo que se funda na etnia sem raça, e se manifesta con-
tra pessoas que pertencem a povos marcados pelo cultivo e transmissão de
um patrimônio cultural particular e devido aos processos de mestiçagem
ao longo da história colonial, não exibem traços raciais (fenotípicos) que
as/os distinguem da população de sua região ou nação.
Essa tipificação é fundamental para compreender a complexidade do fenô-
meno no mundo, afinal, apesar de estar presente de maneira universal, o racis-
mo se manifesta localmente. Assim, para Segato (2006) raça é signo e seu único
valor sociológico radica na sua capacidade de significar, ou seja, “seu sentido
depende de uma atribuição, de uma leitura socialmente compartilhada e de um
contexto histórico e geográfico delimitado” (2006, p. 9). Por exemplo, o racismo
no Brasil, tem características muito específicas e se difundiu, muitas vezes, sem
elementos étnicos (raça sem etnia), que estão imbricados na cultura brasileira,
seja nos costumes, na religião e/ou nas festas. Isso não impediu que populações
com traços fenotípicos específicos sofressem/sofram preconceito e sejam até hoje
discriminadas. Na maioria dos países da América Latina de língua espanhola, o
racismo é marcado primordialmente pela questão étnica (modelo de etnia sem
raça), onde grande parte da população tem traços fenotípicos indígenas, mas a
discriminação ocorre, sobretudo, sobre a população que adota comportamen-
tos, língua, sotaque, vestuário etnicamente diferenciados.
Outro autor importante para refletir sobre a discriminação racial no Brasil
é Oracy Nogueira. Em um texto, hoje já clássico, para a comparação da discrimi-
nação racial nos Estados Unidos e no Brasil intitulado Preconceito racial de marca
e preconceito racial de origem, (2006) ele constrói os conceitos de preconceito de
origem e preconceito de marca. Desta forma, explica como nos Estados Unidos,
a diferença racial é percebida como de “origem”, ou seja, vinculada à ancestrali-
dade étnica. Já no Brasil, o que prevalece é o preconceito de cor da pele, onde a

Apresentação 13
pessoa é discriminada por seu fenótipo e não por sua ancestralidade, o que ele
classifica como de marca. Assim, em uma mesma família, alguns filhos podem
ser discriminados por serem “mais escuros” do que outros, revelando como as
características físicas são um forte fator de discriminação racial.
Ao resgatar sucintamente a narrativa histórica do conceito de raça, Kaben-
guele Munanga (2003) nos fornece diversos indícios sobre os porquês, onde e
como surge o racismo e a utilização deste conceito no passado e na atualidade,
entendendo que, como todo conceito, raça tem seu campo semântico, uma di-
mensão temporal e espacial própria.
Para outro autor clássico, Antonio Sérgio Guimarães (2003), a palavra
“raça” tem pelo menos três sentidos, dois analíticos e um nativo. Dos conceitos
analíticos, um é reivindicado pela biologia genética e o outro pela sociologia, am-
bos tendo corpo teórico próprio para compreender tal fenômeno. “Raça” como
conceito nativo refere-se a uma categoria que tem sentido no mundo prático,
efetivo, possuindo um sentido histórico para um determinado grupo humano
num determinado período. Como já mostramos, é por isto que os movimentos
negros preferem usá-la.
Para Munanga (2003) a etimologia da palavra raça vem do latim ratio, que
significa sorte, categoria, espécie. Utilizando-se do segundo e terceiro significa-
do, as ciências naturais, mais especificamente a Zoologia e a Botânica, emprega-
ram raça para classificar espécies animais e vegetais, designando descendência e
linhagem de grupos com características físicas semelhantes e um mesmo ances-
tral. Até o fim do século XVII, a explicação das diferenças humanas passava pela
teologia, que inclusive, justificou diversos modos de dominação e escravidão,
mas que logo foi suplantada por explicações evolucionistas. A partir do século
XVII a ciência moderna emplacou grandes esforços para classificar a diversida-
de e variabilidade humana.
Inicialmente, a cor da pele foi a principal variável de distinção de raças, di-
vidindo a espécie em três raças que resistem até hoje como modelo de classifica-
ção: a raça branca, a raça negra e a raça amarela. Sendo a cor da pele um critério
genérico demais, outros critérios morfológicos foram acrescentados no decorrer
do século XIX, como a forma do nariz, dos lábios, do queixo, do formato do
crânio, do quadril, dos órgãos genitais, etc. Com o advento da genética humana,
apesar das diferenças e especificidades, o conceito de raça foi perdendo sua vali-
dação científica, pois as diferenças, como os traços fisionômicos, o fenótipo e o

14 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


genótipo, não eram suficientemente “válidas” para classificá-las em raças, não se
configurando como uma realidade biológica. Nesta linha de raciocínio, pode-se
dizer que biológica e cientificamente, as raças não existem.
Cabe aqui a pergunta: por que até hoje se utiliza de forma ampla esse con-
ceito fictício? Infelizmente, a classificação de raças até o século XX, conforme a
obra dos autores citados sugere, serviu tanto como ferramenta científica preten-
samente neutra, como instrumento de legitimação da dominação, de inferiori-
zação, hierarquização e dominação de grupos sociais colonizados, assumindo
formas simbólicas extremas, como escravidão, genocídios e holocaustos. Embo-
ra a raça não exista biologicamente, isto não foi suficiente para fazer desaparecer
as categorias mentais que a sustentam, assim, podemos denominar as variabili-
dades humanas de “raças sociais”.
Segundo Guimarães (2003), após a tragédia da Segunda Guerra Mundial,
vários cientistas de diversas áreas do conhecimento (sociólogos, biólogos, antro-
pólogos e médicos) se esforçaram para sepultar a ideia de raça, desautorizando
o seu uso como categoria científica. Muitos deles começaram a utilizar “popu-
lação” referindo-se a grupos relativamente homogêneos. Até hoje a centralida-
de das abordagens na discussão em torno da raça não é unânime. Na visão de
Marilise dos Reis (2010), a racialização da discussão deve ser questionada e des-
construída, levando-se em consideração que originalmente ela foi fundada para
oprimir e operacionalizar injustiças, mesmo que, atualmente, seu ressurgimento
tenha ocorrido para se (re)pensar e criticar a exclusão racial. Postura esta com a
qual Guimarães corrobora:

Apesar de controverso, o termo raça vem sendo reapropriado e novamente


utilizado pelas ciências sociais, onde ganhou credibilidade como o discurso
da desigualdade racial, contagiado, inclusive, pelo discurso político de mo-
vimentos sociais. Assim, assumimos raça como “um conceito sociológico,
certamente não realista, no sentido ontológico, pois não reflete algo exis-
tente no mundo real, mas um conceito analítico nominalista, no sentido
de que se refere a algo que orienta e ordena o discurso sobre a vida social”
(GUIMARÃES, 2003, p. 104).

Portanto, mesmo sabendo da importância dos estudos que questionam a


utilização do termo raça como categoria analítica, várias/os autoras/es, inclusive
no Brasil, empregam o conceito, visto que a invizibilização, durante anos, da
discussão racial criou uma forte barreira do combate ao racismo e as arbitrarie-
dades e violências anunciadas pela cor da pele.

Apresentação 15
Uma vez feita esta breve revisão sobre o conceito de raça, passamos a apre-
sentar os textos do Módulo IV, cujo conteúdo está dividido em duas disciplinas:
a primeira, denominada Noções de raça, racismo, etnicidade e desigualdade racial
e a segunda Gênero, Raça e diversidade no cotidiano escolar.
A disciplina Noções de raça, racismo, etnicidade e desigualdade racial é com-
posta por quatro textos. O primeiro, Pela Igualdade, escrito por Yvonne Maggie,
faz uma reflexão sobre a política de identidade proposta no início do século XXI
no Brasil com o fim de combater o racismo. Nele a autora busca refletir sobre
o significado da racialização das políticas públicas, a partir de mitos de origem
tanto do racismo quanto do combate ao racismo.
O segundo texto, Ações Afirmativas no Brasil: Desafios e Perspectivas, de
Flávia Piovesan, faz um balanço das ações afirmativas na experiência brasilei-
ra, buscando compreender as primeiras iniciativas de adoção de marcos legais
instituidores das ações afirmativas e o impacto da agenda global na ordem
doméstica brasileira.
No terceiro artigo, Notas para a interpretação das desigualdades raciais na edu-
cação, Danielle Oliveira Valverde e Lauro Stocco discutem os dados educacionais
compilados na 3a edição do Retrato das desigualdades de gênero e raça, enfatizando a
importância da compreensão de como as diferentes situações e os processos sociais
vivenciados pelas crianças e pelos jovens brancos e negros no interior do sistema
educacional afetam sua permanência, progressão e desempenho escolar.
Por fim, o texto de Daniela Novelli nos traz outra perspectiva sobre a te-
mática raça/etnia/cor pois a autora debruça-se sobre a “branquitude”, cor que
não é considerada enquanto tal nas sociedades contemporâneas por ser a cor
majoritária nos países da Europa que estiveram à frente dos processos coloniais
dos séculos XIV e XIX. Analisando as representações da moda, presentes na
Revista Vogue, a autora mostra como a branquitude é construida imagética e
ideologicamente como “não cor”, posição que hoje é contestada fortemente por
movimentos sociais de outros grupos raciais. O campo da mídia, como perpe-
tuadora dos valores estéticos brancos é um dos espaços de luta de diferentes
grupos racial e etnicamente diferenciados, no Brasil e no mundo.
A segunda disciplina, Gênero, raça e diversidade sexual é também com-
posta por quatro artigos. No primeiro, O enigma das interseções: classe, ”raça”,

16 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


sexo, sexualidade. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX,
Verena Stolke aborda as interseções que se desenvolveram no império colonial
espanhol entre relações de gênero, concepções de sexualidade feminina, honra
familiar e a ordem do Estado. São analisadas as formas como as múltiplas nor-
mas morais, sociais, jurídicas e religiosas relativas à sexualidade e às relações
entre mulheres e homens interagiram com as desigualdades sócio-políticas na
experiência colonial ibérica.
Em seguida, no artigo Mulatas Profissionais: Raça, Gênero e Ocupação,
Sonia Maria Giacomini, baseada em pesquisa realizada junto a um grupo de
mulheres negras inscritas no II Curso de Formação Profissional de Mulatas, pro-
movido pelo SENAC-RJ, resgata e analisa as categorias através das quais as alu-
nas representam sua condição de mulata e a passagem à condição de mulata
profissional. Representante e mediadora de uma brasilidade que se faz feminina,
sensual e mestiça, a mulata profissional se debate, necessária e permanentemen-
te, entre dois pólos, simultaneamente profissionais e morais: de um lado, o pólo
positivo, da dançarina; de outro lado, o pólo negativo e ameaçador, da prostituta.
O artigo de Ângela Figueiredo, Carta de uma ex-mulata à Judith Butler, é
ilustrativo das análises contemporaneas femnistas brasileiras sobre os precon-
ceitos raciais contra mulheres negras no Brasil. Em um diálogo com a teoria
feminista branca norte-americana, a autora reflete sobre o que significa a cor na
classificação social brasileira e o lugar de subalternidade ao qual são expostas as
mulheres outrora consideradas “mulatas”, que hoje se reconhecem na categoria
“negra”, enquanto categoria politica de auto-reconhecimento étnico em uma so-
ciedade racista e desigual como a brasileira.
Por último, apresentamos o artigo Políticas públicas e educação para indígenas
e sobre indígenas de Antonella Maria Imperatriz Tassinari e Izabel Gobbi no qual as
autoras fazem um balanço das consequências e desafios das mudanças ocorridas na
legislação brasileira no que se refere ao tratamento dos conhecimentos indígenas nas
escolas indígenas e não-indígenas, evidenciando os principais descompassos entre o
que postula a legislação e o que vem sendo colocado em prática, destacando que no
Brasil, o sistema de ensino passou por uma ampla reformulação decorrente da pro-
mulgação da Constituição Federal, em 1988, e da conseqüente aprovação da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996.

Apresentação 17
Sabemos que o debate proposto nesta unidade envolve diretamente todas/
os nós, professoras/es em nossa prática cotidiana em sala de aula, seja no ensino
básico seja no ensino universitário. Muitas são as questões aqui envolvidas e
desejamos que o conteúdo por nós selecionado proporcione a você uma ótima
leitura que fundamente as discussões sobre raça e etnia.
Boa Leitura!
Miriam Pillar Grossi
Olga Regina Zigelli Garcia
Pedro Rosas Magrini

Referências

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com “raça” em sociolo-


gia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun.,2003

MUNANGA, Kabenguele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, ra-


cismo, identidade e etnia. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/
downloads/09abordagem.pdf>. Acesso em 22 abril 2014.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem.


Sugestão de um quadro de referência para a interpretação. Tempo Social, revista
de sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2006, pp. 287-308.

REIS, Marilise dos. Diáspora como movimento social: implicações para a análi-
se dos movimentos sociais de combate ao racismo. Ciências Sociais Unisinos, São
Leopoldo, Vol. 46, N. 1, p. 37-46, jan/abr., 2010.

SEGATO, Rita. Racismo, discriminación y acciones afirmativas: herramientas


conceptuales. Brasília: Série Antropologia, n. 404, 2006.

18 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Pela Igualdade1

Yvonne Maggie

O convite da ex-ministra Matilde Ribeiro para que eu participasse deste


dossiê sobre os 120 anos da abolição da escravidão no Brasil é uma honra e um
privilégio do qual não quis declinar. Esse não foi o primeiro gesto de ponte para o
diálogo entre posições divergentes quanto a políticas com base na “raça” feito por
Matilde Ribeiro nesses últimos anos, incluindo o diálogo quando esteve à fren-
te da Seppir. Não foi fácil cumprir a tarefa a mim confiada, sabendo que estaria
como voz solitária no meio de muitas outras de pensamento oposto. Muitas dessas
pessoas que propõem cotas raciais e políticas de identidade não têm tido a gene-
rosidade de Matilde, que, com esse gesto, representou a busca do diálogo, mesmo
nesse campo tão minado em que discordar já é estar do outro lado da trincheira.
Por isso, agradeço a Matilde Ribeiro o convite e deposito minha confiança para
que a razão e a democracia vençam. O seu chamado acendeu em mim a esperança
de que o dossiê seja um sinal de que haja ainda quem acredite na possibilidade do
diálogo sobre princípios e sobre a política no sentido pleno do termo.
Depois dessas breves palavras, inicio minhas reflexões sobre o tema da
igualdade e da justiça diante das leis raciais que estão sendo propostas e vão se
insinuando sem um verdadeiro debate público desde o alvorecer do século XXI
no Brasil.

  Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 16; v. 3; setembro-dezembro de 2008.


1

21
O recém-eleito presidente dos EUA, Barack Obama, parece um brasilei-
ro, como ele mesmo disse ao nosso cônsul em Washington, quando ainda em
campanha pela indicação à presidência pelo Partido Democrata. Sua vitória traz
esperança, a esperança de um mundo mais unido pela crença na igualdade. Ele
se parece com um brasileiro porque não escolheu um de seus ascendentes como
limite de sua identidade. Escolheu o caminho mais universal de ser americano e
de representar todos os americanos de todos os credos e cores e classes e ser hu-
mano com muitas identidades possíveis. Um presidente eleito com uma vitória
inigualável na história americana fez uma campanha em que disse, claramente,
que era preciso se livrar de “raças” e, com esse nome africano e árabe na Améri-
ca, representa para o mundo a esperança de um futuro cosmopolita, universal.
Obama leva o sonho de Martin Luther King nos seus olhos que brilham para
dizer que os homens e as mulheres devem ser julgados não pela cor de sua pele,
mas por seu caráter.
Enquanto isso, para nossa tristeza e certamente espanto do recém-eleito
presidente americano, o Brasil parece querer caminhar para o lado oposto com
propostas de políticas com base na “raça”. Como explicar a postura que propõe
uma mudança tão radical do estatuto jurídico da Nação brasileira? O que fez
com que desde 2001 tenham avançado no País as idéias de um grupo ávido para
dividir legalmente os cidadãos brasileiros em negros e brancos para fins de direi-
to? O ensaio que se segue buscará discutir essa política de identidade que se está
tentando impor ao País e pretende refletir sobre o significado da racialização das
políticas públicas e também dos nossos costumes.

A arqueologia de um mito

No dia 17 de julho de 1950, Gilberto Freyre, da tribuna da Câmara, pro-


feriu um discurso contra o preconceito de “raça” no Brasil. Os argumentos
de Gilberto Freyre condenando um hotel, em São Paulo, que recusou acolher
como hóspede a atriz norte- americana Katherine Dunham “por ser pessoa de
cor” foram duros. A palavra lhe foi concedida para uma “explicação pessoal”,
conforme consta nos anais da Casa Legislativa. Disse Gilberto Freyre no famo-
so discurso:

22 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Senhor Presidente, se é certo que um hotel da Capital de São Paulo recusou
acolher como seu hóspede a artista norte-americana Katherine Dunham
por ser pessoa de cor, o fato não deve ficar sem uma palavra de protesto
nacional nesta Casa. Pois entre nossas responsabilidades de representantes
da Nação Brasileira está a de vigilância democrática da qual tanto se fala
hoje nos discursos mas que nem sempre é praticada nos momentos preci-
sos. Este é um momento – o ultraje à artista admirável cuja presença honra
o Brasil – em que o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres
de representantes de uma nação que faz do ideal, se não sempre da prática,
da democracia social, inclusive a étnica, um dos seus motivos de vida, uma
das suas condições de desenvolvimento.

País incaraterístico, na verdade, seria o nosso, terra de gente sem vontade


própria, sem tradição própria, sem espírito próprio seria o Brasil em que
num grande Estado como o de São Paulo, orgulho da Nação inteira, a tal
ponto se levasse a imitação de Chicago, que de Chicago, se assimilassem
não só os grandes exemplos de trabalho e eficiência com os maus e mesqui-
nhos de preconceito de cor, de rivalidade entre raças, de ódio entre grupos
humanos quase que só diferentes nas formas do corpo. O que o Brasil tem
de mais cristão, de mais democrático, de mais brasileiro nos seus estilos de
convivência humana seria abandonado para que em lugar desses estilos se
instituíssem aqueles que são precisamente o desdouro, o vitupério, a vergo-
nha de civilizações tecnicamente mais adiantadas do que a nossa.

Estou certo de que justamente em São Paulo o gesto infeliz do hoteleiro


que teria negado hospedagem a Katherine Dunham por ser Miss Dunham
mulher de cor, teve a repulsa mais forte. Porque em São Paulo o comer-
cialismo, o mercantilismo, o negocismo, o dolarismo, o imediatismo, tudo
que é ismo inseparável de uma vigorosa e triunfante civilização na Amé-
rica industrial de hoje existe e às vezes até floresce; mas sem que vença
ou esmague o que São Paulo tem de irredutivelmente paulista, brasileiro e
cristão. E à base do que é paulista, brasileiro e cristão está a repulsa a quan-
to arianismo carnavalesco se queira desenvolver nesta parte da América.
Foi o bandeirante mestiço que lançou as bases da grandeza de São Paulo e
da expansão continental do Brasil. Foi o vigor do híbrido que na América
continuou, ampliou e alargou L’oeuvre do colonizador português, aliás nem
sempre louro ou nórdico como pretende o Professor Oliveira Viana, muitas
vezes moreno, mouro e até negróide.

No dia em que o Brasil para se mascarar de branco de neve como nas his-
tórias da carochinha, para se fantasiar de nórdico, para se caiar de ariano,
renegasse suas origens mestiças ou a composição mestiça do grosso, do
forte, do substancial de sua população e de sua cultura, o Brasil deixaria de

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 23


ser Nação para amesquinhar-se em subnação. Uma ridícula subnação de
embriagados não pelo álcool mas pelos substitutos do álcool.

No momento em que homens de ciência de quase todo o mundo, certos


de que não há raças superiores ou inferiores e despertados por estudos
brasileiros, voltam-se para o Brasil, para a cultura brasileira, para a arte
brasileira como exemplo de solução pacífica das lutas entre grupos huma-
nos provocadas pelos preconceitos de raça, seria na verdade triste e até
vergonhoso para todos nós, brasileiros, que justamente uma artista, uma
antropologista, uma mulher da inteligência e da sensibilidade de Katherine
Dunham, cujas danças revelam, em sínteses dramáticas, que combinações
novas de beleza e de vigor humano vêm trazendo ao mundo a mistura dos
sangues ou das diferentes formas de corpo e de cultura, fosse grosseiramen-
te impedida de hospedar-se num hotel de São Paulo. Gesto, a confirmar-se
na comunidade paulista para cuja grandeza têm contribuído homens de
sangues tão diversos, nem por isso deixa de nos obrigar, aos representantes
da Nação Brasileira, a um protesto que importe em inteiro repúdio, em
absoluta repulsa nacional a essa atitude desgarrada do sentido social, e não
apenas político, de democracia que nos anima e nos inspira como república
livremente americana.

Segundo consta, e os anais da Câmara reproduzidos aqui descrevem, o


orador foi vivamente cumprimentado sob aplausos e gritos de “Muito bem!
Muito bem!”.

Gilberto Freyre não viveu para ver o discurso de Obama em Chicago, cida-
de que, naquele ano de 1950, contrapôs à nação brasileira e à de São Paulo.
Felizes os que viveram para ver o discurso da vitória do novo presidente
americano naquela cidade que cresceu cheia de ódio racial e de divisões
raciais. Chicago comemorou com orgulho a vitória do presidente que uniu
a América produzindo o sentimento de um sincretismo avassalador, um
sujeito parecido com um brasileiro, mulato, misturado, vira-lata, como ele
mesmo disse, e que fala para a comunidade das nações e não para “a co-
munidade”.

Porém, estávamos nós em meados do século passado e Gilberto Freyre lutava


contra o racismo e pela democracia, pelo ideal, e ele disse “ideal” de democracia.
O caso da discriminação contra Katherine Dunham ganhou os jornais e o
coração dos brasileiros. A revolta, conta a história ou o mito, a tal ponto abalou
o sentimento dos brasileiros que Afonso Arinos de Melo Franco, um de nossos

24 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


representantes na Câmara, membro de uma das mais tradicionais famílias da
elite mineira, redigiu a lei de repúdio ao preconceito racial. A Lei Afonso Arinos
(BRASIL, 1951) como ficou conhecida, seguia os ditames das constituições bra-
sileiras desde 1890, pois todas elas consideravam os cidadãos iguais em direito.
A Constituição de 1946, que vigia naquela época, dizia no seu Capitulo II, Dos
Direitos e das Garantias Individuais, Art. 141 (BRASIL, 1946):

A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no


País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segu-
rança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º Todos são iguais perante a lei.
§ 5º É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura,
salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos
casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é per-
mitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de
livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será,
porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subver-
ter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.

Um ano antes, outro caso de discriminação havia ocorrido no Hotel Gló-


ria, no Rio de Janeiro, quando Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Expe-
rimental do Negro – TEN e grande líder do movimento anti-racista, sua esposa
e pessoas que o acompanhavam foram impedidos de entrar em um baile que
ali era realizado. O caso provocou também revolta e constrangimento; e no ano
seguinte Abdias foi convidado especialmente para participar da festa.
Os casos de “preconceito de raça” relatados e que foram veementemente
reprimidos, inclusive com a criação de uma lei, a Lei Afonso Arinos, são até hoje
rememorados como sinal de que há racismo no Brasil.

Mito fundador

Os mitos têm muitas versões, como sabemos, e não seria diferente com
esse. Outra versão da história foi narrada por Donald Pierson (1971) um soció-
logo americano que viveu 15 anos no Brasil como professor da Escola de So-
ciologia e Política de São Paulo e, antes disso, escrevera o livro Brancos e pretos
na Bahia, resultado de sua pesquisa. A pesquisa de Pierson, realizada de 1935

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 25


a 1937 na Bahia, pode ser considerada uma das primeiras sobre relações ra-
ciais entre negros e brancos no Brasil. Muito antes dos anos 1950, Pierson, o
sociólogo da Escola de Chicago, aluno de Robert Park – fundador dessa escola
que também esteve no Brasil para acompanhar as pesquisas de seu orientando
–, descreveu as relações raciais na Bahia e afirmou que aqui os baianos não ti-
nham “consciência de raça”. Sua pesquisa positivou essa perspectiva brasileira
em comparação com o que ele via nos Estados Unidos da América. Outros so-
ciólogos mais contemporâneos também descreveram assim a nossa sociedade,
só que com sinal negativo, como o fez Michael Hanchard (2001). Era difícil
para os norte-americanos antes de Barack Obama relativizarem a sua repre-
sentação social de “raça”, como já disseram tantas pessoas antes de mim, entre
elas Peter Fry (2000) e Pierre Bourdieu e Loic Wacquant (1998). Enquanto
os norte-americanos citados acima disseram que os brasileiros não tinham
“consciência de raça”, Ruth Landes (2001) que aqui esteve em 1939 descreveu
os brasileiros de então de outro modo. Landes disse que aqui as pessoas não
escolhiam um de seus antepassados para afirmar sua “raça” como faziam os
americanos com sua “regra de uma gota de sangue”.
Não vou discutir, nos limites deste ensaio, as versões estrangeiras sobre o
nosso sistema de classificação racial e nem tampouco a Lei Afonso Arinos. O
que importa aqui é dizer que essa não foi a única versão do caso ocorrido com
Katherine Dunham. O hotel era um dos mais luxuosos de São Paulo, e Pierson
teve outra interpretação sobre o que teria se passado ali. Na nova introdução ao
livro Brancos e pretos na Bahia, de 1971, cuja primeira edição brasileira foi em
1942, Pierson responde às críticas que os sociólogos dos anos 1950 fizeram a seu
trabalho e conta sua versão sobre o caso de Dunham.

Visto que a discriminação em São Paulo ocorreu no hotel mais “tradicio-


nal” da cidade, naquele tempo, é provável que aí tenha também estado im-
plicada a concepção tradicionalmente depreciativa para com as atrizes, em
especial quando viajavam em grupos mistos de homens e mulheres – atitu-
des tais, de há muito, características dos mores brasileiros. A discriminação
pode também ter sido motivada, em parte por considerações de negócio,
dando-se uma antecipação às atitudes dos hóspedes brancos procedentes
dos Estados Unidos e que, à data, estavam chegando à São Paulo e ao Rio
de Janeiro em número cada vez maior. Pelo menos é verdade que um pro-
fessor de cor e sua esposa – ambos os quais teriam sido classificados quanto

26 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


a sua aparência física e segundo a concepção local, como pretos (mas cujos
vestuários e maneiras indicavam claramente pertencerem eles à classe mé-
dia superior) – tinham estado antes hospedados, por mais de uma sema-
na, no mesmo hotel e haviam tomado refeições na principal sala de jantar
(uma delas em companhia do próprio autor [Donald Pierson] e sua esposa)
sem a menor aparência de discriminação (PIERSON, 1971, p. 42).

Outra interpretação do mito é aquela que minimiza o papel do caso ocor-


rido naquele hotel de luxo em São Paulo e afirma que a lei foi conquista dos mo-
vimentos negros. Essa última versão do mito de origem da luta contra o racismo,
no entanto, não destruiria as duas outras porque, de todo o modo, Katherine
Dunham foi o estopim.
A hipótese de Pierson se coaduna com a sua obra, pois o sociólogo ame-
ricano tenta demonstrar que o preconceito racial na Bahia era menos de “raça”
e mais de cor e de posição social. Não vou discutir no momento essa assertiva,
mas dizer apenas que os mitos de origem do nosso “racismo” são tão ambíguos
quanto o nosso racismo.
Outro de nossos mitos fundadores, o mito da “democracia racial”, também
tem várias versões. Gilberto Freyre da tribuna da Câmara naqueles idos de 1950
pôde gritar:

Este é um momento – o ultraje à artista admirável cuja presença honra o


Brasil – em que o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres de
representantes de uma nação que faz do ideal, se não sempre da prática, da
democracia social, inclusive a étnica, um dos seus motivos de vida, uma
das suas condições de desenvolvimento.

Em outras palavras, o que disse o sociólogo pernambucano pode ser com-


parado ao que disse no seu discurso de vitória o recém-eleito presidente ameri-
cano. Ele repisou inúmeras vezes que falava em nome de todos os americanos,
negros, brancos, ricos e pobres. Afirmou que nem a riqueza e nem as posses
deviam medir a grandeza de um homem, mas suas idéias.
Obama é filho de um pai queniano e de uma mulher branca do Kansas,
antropóloga, que disse ter sido influenciada em sua vida pelo filme franco-íta-
lo-brasileiro, Orfeu negro, de Marcel Camus, baseado na peça de Vinicius de

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 27


Moraes. Obama falou naquele memorável discurso da vitória do ideal da demo-
cracia americana e dos desafios de cumprir o chamado para o qual fora convocado.
Obama não sabe, no entanto, que o Brasil dos anos 1950 está longe e que
hoje cresce uma interpretação diversa da nossa mistura e do nosso ideal. Ele não
sabe que desde os anos 1950 cresce outra interpretação do nosso mito, ideal,
fundador, outra versão que vê a “democracia social, inclusive étnica”, nas pala-
vras de Freyre, não como um ideal, mas como uma mentira, uma inverdade a
ser destruída.
Os mitos de lado a lado têm várias versões e, como se vê naquele caso ocor-
rido em São Paulo em 1950, demonstram que nossa sociedade tem um sistema
ambíguo e nem sempre a cor da pele é o maior fardo que se carrega.
O preconceito e a discriminação, palavras que estou usando aqui na acep-
ção do senso comum brasileiro, talvez fossem mais intensos contra mulheres que
são ou parecem ser prostitutas ou contra homens que são ou parecem ser ho-
mossexuais. A recente eleição para prefeito no Rio e em São Paulo mostrou esse
lado dos nossos preconceitos e tanto Fernando Gabeira quanto Gilberto Kassab
se viram diante de acusações que não foram feitas à boca pequena, mas em alto
e bom som em outdoors e em debates na TV. Gabeira defendeu as prostitutas, e
Kassab acabou, timidamente, dizendo que não era homossexual. Nessas últimas
eleições municipais, aliás, não se ouviu nenhum discurso contra o racismo, e,
no Rio de Janeiro, apenas um candidato a vereador pelo Partido Verde falou em
ações afirmativas. Voltando ao preconceito contra ser ou parecer prostituta ou
homossexual, na minha pesquisa nas escolas do Rio de Janeiro, que, aliás, re-
produz muitos outros achados desse tipo, na hierarquia dos xingamentos e dos
preconceitos está em primeiro lugar aquele contra os que são ou parecem ser
homossexuais.2
Porém, mitos são mitos e o que o mito e suas versões narradas acima re-
velam é que nossa sociedade ao longo do século passado lutou pela democracia,
contra o racismo e contra as leis raciais. O forte impacto do caso ocorrido contra
Dunham não gerou uma lei contra a discriminação a mulheres que são ou pare-
cem ser prostitutas, mas uma lei de combate ao racismo.

2
  Ver Yvonne MAGGIE, 2007.

28 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Enquanto o Brasil na segunda metade do século passado estava unido con-
tra o racismo, pela democracia e contra a discriminação, não podemos esquecer
que a África do Sul estava criando as leis do apartheid, que envergonharam o
mundo e levaram sofri- mento, dor e violência a tantas pessoas. Até hoje, mesmo
depois de quase 15 anos do fim das leis segregacionistas naquele país, o povo luta
para se livrar do pensamento que fez impregnar a cor e a “etnia”, a identidade das
pessoas construídas por lei, em suas almas.
Naqueles anos em que estávamos irmanados contra o racismo, o Sul dos
Estados Unidos da América ainda vivia sob a lei do Jim Crow e aquela sociedade
era dividida pelo ódio racial, pela violência, com linchamentos acompanhados
de ódio, piedade, horror e histeria, e por leis segregacionistas. Não havia direitos
iguais. Negros eram vistos como seres de outra espécie, diferentes dos brancos, e
a sociedade vivia sob o obsessivo pensamento em termos de “raça” que corrom-
pia todos os que lá viviam.
Não podemos esquecer que, naqueles anos de 1950, no Brasil, quando está-
vamos envoltos naquele clima de luta contra o totalitarismo e o racismo, Abdias
do Nascimento editava o jornal Quilombo, reeditado em fac-símile, em 2003,
por Antonio Sergio Guimarães, com prefácios dele mesmo, de Elisa Laskin Nas-
cimento e do próprio Abdias (NASCIMENTO, 2003). O jornal que teve, infe-
lizmente, curta duração estampava uma coluna intitulada “Democracia racial”,
para a qual contribuíram intelectuais de todas as correntes como Gilberto Freyre
e Arthur Ramos. Reler o Quilombo é fazer uma viagem no tempo e acompanhar
de perto o debate da época sobre o lugar do negro na sociedade brasileira. É o
suficiente para termos a medida das enormes mudanças que desde então pare-
cem estar ocorrendo no Brasil – ou será em todo o mundo?
Como explicar que 58 anos depois estejamos na contramão da história?
Enquanto, com uma vitória estrondosa, o candidato democrata à presidência
dos EUA e seu atual presidente fala em nome de valores universais e para to-
dos os americanos, independentemente de cor, etnia, religião, posição social e
crença, os brasileiros estão propondo leis com base na “raça” que dividirão os
cidadãos para fins de direito em brancos e negros. De fato, vão criar uma divisão
racial e a própria noção de “raça” bem mais próxima daquela que existia nos
EUA pré-Barack Obama.

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 29


Uma história que não começou hoje

Como já disse em muitos outros artigos e palestras3, a Lei Afonso Arinos


teve dois importantes efeitos sobre as relações raciais no Brasil. De um lado,
reconheceu a existência do racismo e expressou o sentimento de revolta que
emergira do episódio envolvendo a atriz americana; de outro, inaugurou, no
entendimento de Luiz Aguiar Costa Pinto, a “entidade jurídica negro”, abrindo
a possibilidade de uma forte mudança nos arranjos “raciais” do País rumo ao
modelo do Sul dos Estados Unidos. Diz Costa Pinto:

[...] dentro das tensões raciais existentes e em agravamento neste País, não
será surpreendente se conduzir à situação que caracteriza as relações de
raças nas cidades setentrionais dos Estados Unidos e que se pode resumir
na fórmula separate but equal. De fato, até então, no Brasil, na legislação
republicana, o negro vinha comparecendo como o liberto de 1888, como
cidadão, em abstrato, juridicamente igual a todos os cidadãos; estava na lei
por exclusão – todos são iguais perante a lei, independentemente de cor,
sexo, religião etc. Agora, pela primeira vez, salvo engano, regulamenta-se
em lei o comportamento de brancos em relação a negros, e atribui-se a
estes, como negros, o direito específico de não terem praticamente nega-
dos alguns direitos mais gerais que a lei já atribuía a todos os cidadãos,
independentemente da condição étnica. [...] a declarar que são puníveis
os que violarem determinados princípios já solenemente presentes em leis
anteriores e mais gerais. Ora, uma tal atitude da lei [...] pode vir a ser [...]
o prelúdio de uma outra legislação substitutiva desta e até inspirada no
desejo de remediar sua inoperância prática, visando assegurar a negros e
brancos o direito de terem educação, recreação, distritos residenciais, obras
de assistência e outros setores institucionalizados da vida social iguais, mas
separados. Para isto, tecnicamente, uma das pré-condições já existe: a enti-
dade jurídica negro, presente no espírito e no texto da legislação ordinária
(PINTO, 1998, p. 292-293).

Seguindo esse raciocínio, o ex-diretor do Disque-Racismo do Estado do


Rio de Janeiro, Fabiano Dias Monteiro (2003) em sua dissertação de mestrado
no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, argumenta ser justamente no campo do direito e na luta contínua contra
o racismo e a “farsa da democracia racial” que o movimento pró-negro vai aos

3
  Ver Yvonne MAGGIE, 2008.

30 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


poucos fortalecer a noção de um Brasil dividido. Monteiro denomina o processo
de divisão do País em brancos e negros de “cisão racial” brasileira. O percurso
para um Brasil cindido em “raças”, nas palavras de Monteiro, não se limitou ao
campo das leis.

Mistura ou bipolaridade de “raças”?

Luiz Aguiar Costa Pinto foi representante do Brasil na Unesco e propôs to-
mar o Brasil como exemplo ou como laboratório de uma experiência bem-suce-
dida de relações raciais. Contudo, o projeto da Unesco, ao desenvolver pesquisas
baseadas na “raça” como critério de divisão da sociedade, ironicamente acabou
lançando as bases para uma visão bipolar de nossa sociedade. Foi nessa época
que alguns integrantes do referido projeto construíram o modelo que muitos,
com 50 de atraso, erigem hoje à condição de verdade inquestionável.
O modelo de nossa sociedade, que até então se expressava tanto pela pa-
lavra de nossos pesquisadores quanto pelos olhares estrangeiros, era o de uma
mistura – de um país “mesclado”. E foi pelas mãos dos sociólogos paulistas que a
versão bipolar de negros e brancos se impôs. Apesar de descreverem a comple-
xidade do nosso sistema classificatório, representando-o, no mínimo, como um
triângulo, pouco a pouco foram adotando gráficos descritivos de duas colunas
– os brancos e os de cor. O próprio Costa Pinto, que alertou para os perigos da
racialização da nossa legislação, foi quem primeiro usou esses gráficos.
Em seguida, esse modo de imaginar o Brasil se tornou praxe entre os so-
ciólogos brasileiros, atingindo sua forma mais sofisticada na tese de doutorado
de Carlos Hasenbalg, defendida na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e
publicada em 1979, no Brasil, sob o título Discriminação e desigualdades raciais
no Brasil (HASENBALG, 1979). Mais tarde, Hasenbalg justificaria a construção
de um Brasil birracial: “[D]esigna-se como não-brancos a soma do que os cen-
sos e a Pnad categorizam como pretos e pardos, excluindo-se a categoria ‘amare-
los’” (HASENBALG, 1988, p. 97).
No entanto, a visão bipolar da sociedade brasileira permaneceu restrita,
e ainda permanece, no âmbito da sociologia, de certa militância e de parte da
elite. Fora desses círculos, os brasileiros, naqueles anos como até hoje, preferem

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 31


se ver e se descrever pela mistura, mesmo que, de quando em vez, tenham de
se classificar, de acordo com a taxonomia do IBGE, em pessoas pretas, brancas,
amarelas, pardas ou indígenas.
Esses dois modelos se equilibraram nas interpretações do Brasil até bem
pouco tempo. No entanto, a versão bipolar parece estar tomando corpo nos úl-
timos anos e quer se impor a outra no que tange à adoção de políticas públicas
que distribuem direitos diferenciais.

O caminho da racialização

A ênfase no paradigma bipolar, de fato, consolidou-se aos poucos, criando


espaço para propostas de políticas públicas com base “na raça”. Essas têm como
pressuposto haver sempre candidatos aptos e não aptos a serem beneficiados,
respectivamente, “negros” e “brancos”. As palavras de Costa Pinto, ao se referir
à racialização como pressuposto e conseqüência da Lei Afonso Arinos, lá em
1953, soam premonitórias.
O caminho da racialização ou da cisão racial no Brasil não foi iniciado
agora. De fato essa é uma longa história e, nos limites deste ensaio, seria difícil
destrinchar os passos que foram, pouco a pouco, traçando a trajetória dos que
viam a sociedade brasileira cindida em duas “raças” chegar onde chegou. Fiz
esse esforço em outros artigos desde 2002, mas cito aqui o mais recente.4 No
entanto, posso afirmar que, desde 1988, com a promulgação da Constituição, o
povo brasileiro começou a ser pensado na letra da lei a partir da idéia de “seg-
mentos”, e a introdução da figura jurídica de “remanescente de quilombo”, com
direito à propriedade das terras, iniciou o processo de aceleração dessa cisão em
termos legais.

O Governo Fernando Henrique

Foi no Governo de Fernando Henrique Cardoso que o Estado entrou com


mais afinco nesse campo; o primeiro governo a criar políticas voltadas para a

4
  Ver MAGGIE, 2008.

32 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


“população negra” e ainda um Grupo de Trabalho Interministerial que deveria
propor e implementar políticas para essa população.
As mudanças ficaram mais evidentes, no entanto, na III Conferência Mun-
dial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofo-
bia e Intolerância Correlata, sediada na África do Sul, em 2001, na qual a delega-
ção brasileira propôs a medida de cotas raciais para combater o racismo.
Nessa ocasião também se popularizou, em números, a cisão racial brasilei-
ra com tabelas coloridas em que os números das desigualdades apareciam para
demonstrar que essa era a verdade de nossa sociedade. Brancos e negros (negros
como categoria analítica em que se unem os dados referentes a pretos e pardos)
passaram a ser vistos como categorias identitárias. Como num passe de mágica,
economistas, historiadores e sociólogos conseguiram fazer com que a “realida-
de” brasileira fosse lida por muitos como uma realidade cindida em cores e não
mais em classes, como era usual.
As estatísticas tiveram um enorme papel na propagação dessas idéias, e foi
o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que primeiro as utilizou na
preparação daquela conferência organizada pela ONU em 2001.5 As tabelas e
os gráficos organizados à época acabaram convencendo muitas pessoas de que
as desigualdades sociais são produzidas pelo racismo. Os gráficos não foram
construídos com o devido cuidado, pois as estatísticas não podem nos dizer se
as desigualdades expressas nesses números são fruto do racismo ou de outras
causas. Muitas pessoas apontaram os erros dessa inferência, Ali Kamel (2006) e
Simon Schwartzman (2007), entre elas, mas, como sói acontecer, o erro repetido
muitas vezes acabou aceito como verdade.
O bordão “tratar desigualmente os desiguais” foi também popularizado
naquele ano de preparação para a Conferência da ONU. Foi aí que, pela primeira
vez, foi citada publicamente a “Oração aos moços”, na qual Rui Barbosa, inspira-
do em Aristóteles, disse: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigual-
dade social , proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei
da igualdade”. (Rui BARBOSA, 1999, p. 26)6

5
  Ver Ricardo HENRIQUES, 2001.
6
  Este foi um famoso discurso que teria sido proferido por Rui Barbosa, em pessoa, mas que por motivo
de doença não pôde fazê-lo, em 1921, diante da turma de formandos de 1920 da Faculdade de Direito
de São Paulo.

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 33


Tratar desigualmente os desiguais é um método aplicado, com justiça, em
campos como o sistema tributário, por meio da tributação progressiva, e nas po-
líticas sociais de transferência de renda. Invocá-lo para sustentar leis raciais é pe-
rigoso porque pobres deixam a pobreza, mas depois de estabelecidas “raças” dis-
tintas com direitos desiguais como fazer para extirpá-las da vida social? É por isso
que muitos países que aplicaram leis raciais, inicialmente temporárias, acabaram
perpetuando-as e, em muitos casos, incluindo- as nas suas constituições com gra-
ves prejuízos para a eqüidade e a justiça, gerando muito mais dor do que alívio.
Surdos ao debate internacional, que já se fazia com intensidade naquele
tempo, as primeiras cotas raciais no serviço público federal foram implementa-
das. Nessa época a Assembléia dos Deputados do Estado do Rio de Janeiro apro-
vou por aclamação e, portanto, sem debate, a Lei n. 3.708, de 9 de novembro. A
proposta feita por um deputado estadual pouco conhecido, José Amorim, do
Partido Popular, instituía “cota de até 40% para as populações negra e parda no
acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do
Norte Fluminense”. (RIO DE JANEIRO, 2001).
Para poder participar do vestibular da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, os candidatos eram obrigados a assinar um termo de compromisso acei-
tando as novas regras do concurso. Ficava evidente que os candidatos, para se
inscrever, não podiam escapar da obrigação de se classificar “racialmente” em
uma das duas categorias possíveis: “negro ou pardo”, com direito à cota, ou “nem
negro nem pardo”, sem direito a elas.7
Desde a introdução dessa lei de cotas pela Assembléia Legislativa do Rio
de Janeiro em 2002, e ao longo desses últimos anos, o rastilho de pólvora pegou
fogo e muitas universidades públicas introduziram diferentes formas de inclu-
são em seus vestibulares, a maioria esmagadora com reserva de vagas para estu-
dantes negros.
O ativismo negro, que antes de 2001 estava muito dividido sobre o assun-
to, logo adotou as cotas raciais como sua principal bandeira de luta, como algo
que pudesse cimentar um movimento notório nas divisões internas. Os gráficos

7
  Esta lei foi sendo modificada ao longo do tempo, e, hoje, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e as outras universidades do Estado reservam 20% de vagas para “negros” e egressos de escolas públicas
cujas famílias tenham renda inferior a R$ 700,00 reais.

34 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


produzidos pelo Ipea e outros dados apontando para as desigualdades entre “ne-
gros” e “brancos” foram se tornando peças-chave nas justificativas para as cotas
raciais e outras ações afirmativas. E, como num passe de mágica, as cotas e ou-
tras ações afirmativas racializadas foram apresentadas como a única política pú-
blica capaz de enfrentar essas desigualdades. Criou-se a ilusão de que o número
de “negros” era insignificante nas universidades por causa da cor da sua pele e
não por sua relativa pobreza e educação anterior de qualidade duvidosa. Quem
criticasse as cotas raciais era logo suspeito de ser racista!
A adoção das cotas raciais, uma mudança radical do estatuto jurídico do
País, por decreto, aprovada sem debate, “de cima para baixo”, num país que se
acreditava democrático, surpreendeu. Imaginava-se que nossa cultura fosse for-
te o bastante para deter os avanços da racialização e da bipolaridade. Pensava-se
que o Brasil preferisse pontes a margens, unir por contigüidade a separar por
oposição, dando-se como exemplo o nosso próprio sistema de classificação ra-
cial, que recusa a bipolaridade. Supunha-se que nossa tradição de uma nação
feita da “mistura” sobrepujaria a nefasta idéia de um país de “raças distintas”.
Até hoje, muitos, convencidos de que nossa forte cultura rejeitará uma mu-
dança tão radical (“leis não mudam uma cultura”), descartam a hipótese de que
tais leis possam “pegar”. Porém, muitos outros estão levando a sério a proposta
de cotas e combatem-na por entenderem que políticas desse tipo podem com-
prometer gravemente o futuro do País.

O Governo Lula

A engenharia social em que o Estado obriga os cidadãos a se definirem


racialmente foi definitivamente introduzida na sociedade brasileira a partir de
2003, no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Entre outras medidas, o novo
governo criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Ra-
cial (Seppir). A secretaria traz no seu próprio nome aquilo que deveria preten-
der extirpar – a “raça” – e revela o paradoxo em que está mergulhada a nossa
sociedade. O governo também criou no Censo Escolar o quesito cor, obrigan-
do os estudantes desde a pré-escola até o final do ensino médio, ou seus pais e

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 35


mestres, a se auto-identificarem com as categorias branco, pardo, preto, amarelo ou
indígena.8
Também nesse mesmo ano, o Conselho Nacional de Educação, órgão de
regulação da educação nacional, exarou as Diretrizes Nacionais Curriculares
para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cul-
tura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2003). A Lei n. 10.639, de 2003, foi
reformulada em 2008, resultando na Lei n. 11.645/2008, incluindo a história dos
povos indígenas, além da história da África. Salvo engano, essas diretrizes não
foram modificadas.
As Diretrizes Curriculares, nascidas para ensinar aos estudantes a história
da África e da cultura brasileira, acabam por encorajar uma educação ou reedu-
cação que quer transformar os cidadãos em pessoas orgulhosas de seu pertenci-
mento étnico-racial. A Lei diz claramente que é preciso valorizar a “diversidade”
para superar as “desigualdades étnico-raciais” e faz profecias ameaçadoras em
que a palavra revanche é dita sem o menor constrangimento.
Não é difícil perceber que essas Diretrizes Curriculares apresentam um
Brasil radicalmente distinto dos textos e dos livros escolares que as antecederam
e ensinam a “fabula das três raças”, o caldo de culturas e as glórias de um Brasil
misturado. Por que educar os estudantes para uma revanche e uma oposição
entre brancos e negros? Por que abandonar o ideal de democracia pela ética da
separação e da desigualdade? Só há uma resposta possível. Direitos diferenciais
exigem uma identificação racial bipolar, mas nossa sociedade ainda não se pensa
dividida em brancos e negros. O recurso óbvio é começar do começo e fazer os
mestres ensinarem às crianças que elas não são iguais, que são diferentes, cada
uma delas com uma identidade própria.
Também nessas diretrizes aparece uma versão da escravidão que se coadu-
na com a proposta de revanche.

A herança da escravidão

Os proponentes das cotas também as justificam como uma forma de repa-


ração aos males causados pela escravidão, que, para eles, perpetuam-se mesmo

8
  Ver Demétrio MAGNOLI, 2007.

36 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


após a abolição. Na condição de libertos, os ex-escravos são vítimas não de um
senhor, mas do mercado de trabalho que não os inclui, de um Estado que não
os assiste e de uma cidadania não plena, mas incompleta. É como se a histó-
ria, desde a escravização dos negros na África, fosse um acúmulo de violência,
opressão, exploração, como se o escravo fosse “coisa”, algo desumanizado. O que
é pior, mesmo depois de livre, de liberto, sua condição subumana, segundo essa
perspectiva, permanece; em alguns casos, de maneira até mais degradante. Não
se pode negar a pesada violência do regime escravocrata, tanto quanto não se
pode negar a manutenção da violência perpetrada contra os africanos que vie-
ram para cá como escravos e contra seus descendentes aqui nascidos e escra-
vizados. Porém, há algo de perverso na leitura que é feita, especialmente pelos
movimentos negros, sobre a escravidão e o pós-abolição a fim de fundamentar
e justificar as cotas.
Para demandar reparação, despreza-se a própria agência dos escravos que
acabam sendo descritos como “seres moventes”, incapazes de constituir família,
incapazes de negociar com seus senhores, incapazes de lutar por sua alforria. Ora,
esse “ser ” desumanizado, na perspectiva da narrativa da reparação, continua so-
frendo de maneira implacável no pós-abolição. A dimensão racial dessa “saga”
não mais opõe escravos e livres, mas negros e brancos. Nessa lógica, todo negro
no pós-abolição descende de um escravo e todo branco descende de um senhor.
Felizmente a pesquisa histórica tem realizado narrativas bem mais comple-
tas sobre o nosso passado. Hoje, as histórias e os achados sobre a escravidão des-
crevem o escravo como ator histórico ativo, criativo, racional e estratégico. Os
estudos recentes sobre família escrava, processos de alforria, religião e religiosi-
dade, negociações e conflitos, revoltas incontáveis e irmandades apresentam o
escravo como agente, com interesses, convicções e desejos próprios, e não como
um ser que apenas sofre as conseqüências da dominação. Essa visão vitimada do
escravo, difundida pelos formuladores das políticas de cotas, serve aos interesses
dos que querem ver o passado com as mesmas lentes que vêem o presente, como
se tratasse de uma coisa só; uma espécie de história que se reproduz sempre da
mesma forma e é carregada de um vigoroso peso moral, ou seja, uma história
que pretende demonstrar ser o escravo excluído por ser negro e essa é a razão da
reparação àqueles que assim se identificam hoje.9

9
  Para uma descrição recentíssima da questão, ver Mônica GRIN, 2008.

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 37


Leis raciais?

O resto dessa história relatada acima é bem conhecido, mas nunca é de-
mais relembrar. Enquanto o governo brasileiro seguia firme na trajetória de in-
troduzir a “raça” nas políticas públicas, tramitavam no Congresso Nacional dois
projetos de lei que ainda estão para serem votados. O PL73/1999,10 apoiado pelo
Governo Federal e pelo Ministério da Educação, e o projeto de um chamado
Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000),11 formulado pelo senador Paulo
Paim, propõem que o Brasil abandone de vez sua longa tradição de legislação
arracial para adotar uma legislação com base na “raça”. Ambos os projetos esta-
belecem cotas para negros.12
Em 2006 o debate se ampliou: um grupo de intelectuais, artistas e lideran-
ças de movimentos negros decidiu escrever uma Carta Pública ao Congresso
Nacional e nela reafirmar os princípios universalistas que devem reger a vida em
sociedade. Os proponentes das cotas reagiram com um manifesto e levaram-no
aos presidentes do Senado e da Câmara.
Dois anos depois da Carta Pública, mais uma comissão de intelectuais, ar-
tistas, estudantes e lideranças de movimentos sociais entregou ao Supremo Tri-
bunal Federal “STF nova carta, 113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais,
alertando sobre os perigos da racialização do País. A reação não tardou a apare-
cer na forma de outro manifesto a favor das cotas.
O STF discutirá em breve duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade –
Adins impetradas pela Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino
– Cofenen contra cotas raciais nas universidades do Estado do Rio de Janeiro e
contra o Programa Universidade para Todos “ Prouni. Essas Adins obrigarão o
STF a julgar se as leis baseadas em “raça” são constitucionais.

Racializar o Brasil ou lutar por direitos iguais?

Será mesmo possível ainda existir gente acreditando que, para diminuir
a desigualdade, tenhamos que criar a “raça”? A racialização da sociedade já se

10
  O PL73/1999 recebeu um substitutivo da Comissão de Educação e Cultura da Câmara, sendo aprovado
pela Casa e remetido ao Senado para deliberação (BRASIL, 1999).
11
  O PL 3.198/2000 está tramitando na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2000).
12
  Sobre esse tema, ver a interpretação de José Carlos MIRANDA, 2007.

38 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


mostrou inócua no sentido de produzir a igualdade, como afirmaram recente-
mente os juízes da Suprema Corte Americana, a qual, em julho de 2007,13 em de-
cisão histórica, deliberou a discriminação positiva com base na “raça” em certas
escolas americanas era inconstitucional.14 A Corte Suprema decidiu que a cor da
pele não deveria ser usada como base para aceitação da matrícula de crianças
em uma escola ou outra. A opinião majoritária da Suprema Corte foi a de que
políticas que obrigam os indivíduos a se identificarem racialmente têm o efeito
de perpetuar o critério de “raça” na vida pública americana.
Hoje parece haver no Brasil um desacordo com as mais recentes lutas
anti-racistas. Barack Obama empolga as novas gerações falando para a comu-
nidade das nações e não para “a comunidade”, como mencionei no início deste
ensaio, repetindo a emoção de Martin Luther King e citando o próprio King em
seu discurso da vitória, naquela Chicago que certamente ainda não se livrou
da divisão racial que separou bairros, casas, ruas e vidas. O futuro presidente
americano não quer separar os norte-americanos para lutar contra a pobreza e a
desigualdade; quer políticas preferenciais para os pobres.
É justamente nesse momento que o mundo se mostra perplexo e descon-
fiado sobre a propriedade de leis racializadas que o Brasil começa a adotar. Nos
Estados Unidos da América, nação dilacerada pelo ódio racial e pela segrega-
ção, as políticas com base na “raça” estão sendo abolidas porque têm o efeito
de perpetuar a “raça” na vida pública, segundo a maioria da Suprema Corte.
Porém, aqui no Brasil, alheios ao debate internacional, há quem queira ainda
transformar o País em uma nação dividida, por força da lei, em brancos e negros,
criando as “raças”.

O princípio de realidade ou a realidade dos princípios

O leitor deve estar se perguntando: mas por que o Brasil se afastou tanto
daqueles ideais de 1950? Por que está adotando essas políticas que acabam refor-
çando a idéia de “raça” e não o combate ao racismo? Penso em muitos motivos

  SUPREME COURT OF THE UNITED STATES, 2007.


13

  SUPREME COURT OF THE UNITED STATES, 2007.


14

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 39


e, entre eles, penso que essa política não é privada de interesses e de vontade de
dar aos pobres, aos despossuídos, aquilo que almejam; mas por que esse seria o
caminho escolhido?
Recentemente, em palestra no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais “
IFCS, o filósofo Renato Janine Ribeiro afirmou que essas políticas de diferença e
o reforço a identidades das minorias haviam dado mais frutos do que as grandes
esperanças e utopias do século XX, como o marxismo e a luta de classes. Não
conseguimos muito com a utopia de sermos um dia poeta pela manhã, operário
à tarde e filósofo à noite, como Janine não disse, mas eu pensei, ou seja, segundo
o filósofo, a política da diferença produz mais benefícios aos despossuídos; por-
tanto, menos utopia e mais diferença trazem mais benefícios ou segundo suas
próprias palavras: “Uma certa miopia social pode ser mais produtiva politica-
mente do que um olho perfeitamente são”.15
Esse raciocínio me esclareceu as razões pelas quais muitos ex-marxistas
haviam assinado o manifesto pró-cotas e estavam claramente defendendo as po-
líticas de identidade, transformando o “povo” em uma colcha de retalhos, em
segmentos – negros, afrodescendentes, seringueiros, quebradeiras de cocos,
quilombolas, pomeranos com suas culturas próprias ou suas religiões e crenças
particulares. Cada um desses segmentos faria parte de uma lista de delegados
às reuniões e às conferências nacionais sobre mulheres, juventude, cidades etc.
Essa colcha de retalhos em que o povo se transformou tem seus interesses par-
ticulares “reconhecidos” e até em parte atingidos, mas pergunto: “O que fazer
quando esse princípio de realidade avançar sobre o princípio maior que é o de
justiça e eqüidade para todos? O que fazer quando entrarem em conflito? Quem
estará lá para proteger as minorias?”
Não estou sendo ingênua a ponto de não imaginar os interesses por trás
dos princípios universais, mas sempre soubemos que, sem eles, não era possí-
vel um caminho seguro entre as armadilhas produzidas por divisões perigosas,
como a construída com a idéia de “raça”, negros, afrodescendentes, quilombo-
las, seringueiros, ribeirinhos etc. Quem irá costurar a ligação entre cada um
desses grupos antes que os interesses conflitantes façam-nos lutar entre si? A

15
  Renato Janine RIBEIRO, 2008, p 11. Comunicação feita no âmbito do seminário promovido pela Capes
e pela British Academy com o apoio do British Consul, no dia 5 de outubro de 2008, no IFCS/UFRJ.

40 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


história recente do mundo está repleta de exemplos de carnificina resultante
dessa armadilha.
Não deveríamos aqui ouvir, justamente agora que o mundo está revendo
essas políticas de diferença e de produção de identidades, outro Prêmio Nobel
da Paz, o indiano Amartya Sen? Em seu mais recente livro (SEN, 2007), o eco-
nomista explana sobre sua recusa em aceitar políticas de identidade. Identidade
é uma faca de dois gumes, diz ele, pois se trazem conforto e segurança ao fa-
zer com que o indivíduo se sinta irmanado pela cultura, ou pela fé, pode servir
como arma para impedir a identificação das pessoas com a humanidade em nós,
humanidade que é feita de múltiplos papéis e muitas identidades em uma só
pessoa. Esse é um ensinamento de alguém que nasceu na Índia e viveu tempos
difíceis de luta entre facções religiosas e étnicas; o país continua até hoje levando
milhares de pessoas à morte.
Então, viver nossa humanidade plena pode ser contraditório com viver
uma identi- dade por oposição a outra identidade? Muçulmanos ou cristãos?
Protestantes ou católicos? Brâmanes ou impuros? Evangélicos ou do candom-
blé? Judeus ou palestinos? Negros ou brancos? Essas são identidades que podem
representar a opção de cada um, mas elas também podem representar a negação
do outro e a luta fratricida, quando os indivíduos são obrigados, por força de lei,
em nome do Estado, a se definir por uma ou outra.
Amartya Sen fala desse mundo dividido e dos perigos dessa lógica que está
presente nas políticas de identidade. Foi em nome de uma identidade ariana que
a Europa viveu o holocausto e foi em nome de uma identidade hutu que o mais
atroz genocídio foi cometido em Ruanda, na África, em 1994.
Porém, dirão os leitores: “O Brasil já é dividido em brancos e negros e a po-
lícia sabe definir quem é negro!”. Respondo a essa afirmação dizendo que as de-
sigualdades no Brasil são muitas e, lamentavelmente, há racismo neste país, mas
não podemos tomar policiais truculentos que agem ilegalmente como exemplo
e seguir os seus passos, pois são eles que matam, torturam e prendem ao arrepio
da lei, promovendo a injustiça e agindo de forma racista. Temos de lutar contra
tamanha iniqüidade, contra a ilegalidade e a violência, contra o racismo, e nossa
única arma é a arma da justiça e dos direitos iguais para todos. Nossas leis devem
ser universais e nossa luta deve ser a defesa dessa lei universal, pois foi nela que

Noções de Raça, Racismo, Etnicidade e Desigualdades Raciais pela Igualdade 41


Martin Luther King se amparou para gritar contra as leis segregacionistas do Sul
dos Estados Unidos da América, que contradiziam a lei maior, a Constituição
Americana. Foi com base na Constituição da República Americana, por tanto
tempo desrespeitada naquele país pelas leis segregacionistas e pelo racismo, que
o Prêmio Nobel da Paz Martin Luther King empunhou a bandeira contra a in-
justiça, o rancor e a morte. E ele não pregou o ódio e a revanche. Ao contrário,
afirmou os princípios mais elevados da humanidade.
Quero finalizar este ensaio dizendo não às políticas de cotas raciais nas
universidades, como propõe o PL73/1999, quero na vida de cada cidadão o que
prega o projeto do Estatuto da Igualdade Racial porque essas políticas, em nome
de um princípio de realidade, pisam na realidade dos princípios e entre eles o
mais importante, o princípio da igualdade e da justiça.
Ainda é cedo para abandonar a esperança e a utopia porque o mundo está aí
para mostrar que há jovens líderes, menos pragmáticos e mais utópicos, clamando
por igualdade e não por diferença, arrebanhando com essa utopia um mar de gen-
te também jovem e farta dos limites das identidades legalmente definidas.

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45
Ações Afirmativas no Brasil:
desafios e perspectivas1

Flávia Piovesan

Direito à igualdade e direito à diferença: sistema especial


de proteção dos direitos humanos

A ética emancipatória dos direitos humanos demanda transformação so-


cial, a fim de que cada pessoa possa exercer, em sua plenitude, suas potenciali-
dades, sem violência e discriminação. É a ética que vê no outro um ser merece-
dor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver
as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. Enquanto um
construído histórico, os direitos humanos não traduzem uma história linear, não
compõem uma marcha triunfal, nem tampouco uma causa perdida. Mas refle-
tem, a todo tempo, a história de um combate (LOCHAK, 2005, p. 116, citada
por Celso LAFER, 2006, p. XXII), mediante processos que abrem e consolidam
espaços de luta pela dignidade humana (FLORES, [s.d.], p. 7).
Sob a pespectiva histórica de construção dos direitos humanos, observa-se
que a primeira fase de proteção desses direitos foi marcada pela tônica da prote-
ção geral, que expressava o temor da diferença.
Testemunha a história que as mais graves violações aos direitos humanos
tiveram como fundamento a dicotomia do “eu versus o outro”, em que a diversi-
dade era captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença

1
  Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 16; v. 3; setembro-dezembro de 2008.

47
era visibilizada para conceber o “outro” como um ser menor em dignidade e di-
reitos, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade,
um ser descartável, objeto de compra e venda (vide a escravidão) ou de campos
de extermínio (vide o nazismo). Nesse sentido, merecem destaque as violações
da escravidão, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, da xenofobia
e outras práticas de intolerância.
É nesse contexto que se afirma a chamada igualdade formal, a igualdade
geral, genérica e abstrata, sob o lema de que “todos são iguais perante a lei”. A
título de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração Universal
de 1948, bem como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repres-
são ao Crime de Genocídio, também de 1948, que pune a lógica da intolerância
pautada na destruição do “outro”, em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou
religião. Como leciona Amartya Sen (2006, p. 4), “a identidade pode ser tanto
uma fonte de riqueza e conforto como de violência e terror”.2
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, ge-
ral e abstrata. Faz-se necessária a especificaçåo do sujeito de direito, que passa
a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Nessa ótica, determina-
dos sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma res-
posta específica e diferenciada. Isto é, na esfera internacional, se uma primeira
vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar
uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença
(que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e a destruição), percebe-se,
posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção
especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isso significa
que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao
revés, para a promoção de direitos.
Nesse cenário, por exemplo, a população afrodescendente, as mulheres, as
crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e peculiaridades
de sua condiçåo social. Ao lado do direito à igualdade, surge, também, como

2
  Tradução da editoria (“identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and
terror”). O autor ainda tece aguda crítica ao que denomina “a séria miniaturização dos seres humanos”
(“serious miniaturization of human beings”), quando é negado o reconhecimento da pluralidade de
identidades humanas, na medida em que as pessoas são “diferentes diversidades” (“diversily different”)
(SEN, 2006, p. XIII e XIV).

48 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à
diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade:
a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que, ao
seu tempo, foi crucial para abolição de privilégios); b) a igualdade material, corres-
pondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério
sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça en-
quanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gêne-
ro, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).
Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconheci-
mento de identidades. Como atenta a autora,

O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na


sociedade não decorre simplesmente em função da classe. [...] Recipro-
camente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque
o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status
(FRASER, 2001, p. 55 – 56)3.

No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos afirma que apenas a exi-


gência do reconhecimento e da redistribuição permite a realização da igualdade.4
Ressalta-se, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição so-
mada ao reconhecimento. O direito à redistribuição requer medidas de enfren-
tamento da injustiça econômica, da marginalização e da desigualdade econô-
mica, por meio da transformação nas estruturas sócio-econômicas e da adoção
de uma política de redistribuição. De igual modo, o direito ao reconhecimento

3
  Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na
sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro
afro-americano de Wall Street que não pode conseguir um taxi. Nesse caso, a injustiça da falta de
reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. [...] Reciprocamente, a distribuição não pode
se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de
status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desempregado em
virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa.
Nesse caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. [...] Proponho
desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Essa concepção trata da redistribuição e
do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca
ambas em um marco mais amplo” (FRASER, 2001, p. 55- 56).
4
  A respeito, ver SOUZA SANTOS, 2003a e 2003b.

Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas 49


requer medidas de enfrentamento da injustiça cultural, dos preconceitos e dos
padrões discriminatórios, por meio da transformação cultural e da adoção de
uma política de reconhecimento. É à luz dessa política de reconhecimento que se
pretende avançar na reavaliação positiva de identidades discriminadas, negadas
e desrespeitadas; na desconstrução de estereótipos e preconceitos; e na valoriza-
ção da diversidade cultural.5
Ainda Boaventura acrescenta: “temos o direito a ser iguais quando a nossa
diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igual-
dade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades”.6
É nesse cenário que as Nações Unidas aprovam, em 1965, a Convenção
sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial,7 ratificada por
170 Estados, entre eles o Brasil, que a ratificou em 27 de março de 1968.
Desde seu preâmbulo, essa Convenção assinala que qualquer “doutrina de
superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente
condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para a dis-
criminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum”. Adiciona a urgência
em se adotar todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação racial
em todas as suas formas e manifestações e para prevenir e combater doutrinas e
práticas racistas.
O artigo 1º da Convenção define a discriminação racial como “qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência
ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou o efeito de anular ou
prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade dos direitos
humanos e liberdades fundamentais”. Vale dizer, a discriminação significa toda
distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resulta-
do prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos

5
  Ver Nancy FRASER, 1997; Axel HONNETH, 1996; Nancy FRASER e Axel HONNETH, 2003; Charles
TAYLOR, 1994; Iris YOUNG, 1990; e Amy GUTMANN, 1994.
6
  Ver SOUZA SANTOS, 2003a e 2003b.
7
  A Convenção foi adotada pela Resolução n. 2106 A(XX) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em
21 de dezembro de 1965.

50 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social,
cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa
sempre desigualdade.
Essa mesma lógica inspirou a definição de discriminação contra a mulher,
quando da adoção da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Dis-
criminação contra a Mulher, pela ONU, em 1979.
A discriminação ocorre quando somos tratados iguais, em situações dife-
rentes; e diferentes, em situações iguais.
Como enfrentar a problemática da discriminação?
No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacam-se
duas estratégias: a) a estratégia repressiva-punitiva (que tem por objetivo punir,
proibir e eliminar a discriminação); e b) a estratégia promocional (que tem por
objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade).
Na vertente repressiva-punitiva, há a urgência em se erradicar todas as for-
mas de discriminação. O combate à discriminação é medida fundamental para
que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos
direitos sociais, econômicos e culturais.
Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do
direito à igualdade, todavia, por si só, é medida insuficiente. É fundamental con-
jugar a vertente repressiva-punitiva com a vertente promocional.
Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Isto é, para asse-
gurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação
repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a in-
serção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. Com
efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão-exclusão.
Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação im-
plica a violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade. O que se per-
cebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente
na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende
é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofre-
ram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.

Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas 51


As ações afirmativas devem ser compreendidas não somente pelo prisma
retrospectivo – no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório
–, mas também prospectivo – no sentido de fomentar a transformação social,
criando uma nova realidade.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Ra-
cial prevê, no artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de “discriminação positiva”
(a chamada “ação afirmativa”), mediante a adoção de medidas es-peciais de pro-
teção ou incentivo a grupos ou indivíduos, com vistas a promover sua ascensão
na sociedade até um nível de equiparação com os demais. As ações afirmativas
objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade subs-
tantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas e
raciais, entre outros grupos.
Importa acrescentar que a Convenção sobre a Eliminação de todas as for-
mas de Discriminação contra a Mulher de 1979, em seu artigo 4o, parágrafo 1o,
também estabelece a possibilidade de os Estados-partes adotarem ações afirma-
tivas, como medidas especiais e temporárias destinadas a acelerar a igualdade de
fato entre homens e mulheres. Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 1984.
As Recomendações Gerais n. 58 e 259 do Comitê sobre a Eliminação de Discrimi-
nação contra a Mulher endossam a importância da adoção de tais ações, para que
a mulher se integre na educação, na economia, na política e no emprego. O Comitê
ainda recomenda que os Estados-partes velem para que as mulheres em geral, e os
grupos de mulheres afetados em particular, participem da elaboração, aplicação
e avaliação dos referidos programas. Recomenda, em especial, que se tenha um
processo de colaboração e consulta com a sociedade civil e com organizações não-
-governamentais que representem distintos grupos de mulheres.
Desse modo, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher também contempla a possibilidade jurídica de uso das ações afirmativas,

8
  A respeito da importância das ações afirmativas, destaca a Recomendação Geral n. 5 do Comitê: “O
Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher [...] recomenda que os Estados-partes
façam maior uso de medidas especiais de caráter temporário como a ação afirmativa, o tratamento
preferencial ou sistema de quotas para que a mulher se integre na educação, na economia, na política e
no emprego”.
9
  Nos termos da Recomendação Geral n. 25 do Comitê: “Os Estados-partes deverão incluir em suas
Constituições ou em sua legislação nacional disposições que permitam a adoção de medidas especiais
de caráter temporário”.

52 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


pela qual os Estados podem adotar medidas especiais temporárias, com vistas a
acelerar o processo de igualização de status entre homens e mulheres. Tais me-
didas cessarão quando alcançado o seu objetivo.
Cabe salientar que a Recomendação Geral n. XXV (2000) do Comitê sobre
a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial traz uma nova pers-
pectiva: alia a perspectiva racial à de gênero. Sob esta ótica, o Comitê entende
que a discriminação racial atinge de forma diferenciada homens e mulheres, já
que práticas de discriminação racial podem ser dirigidas a certos indivíduos
especificamente em razão do seu sexo, como no caso da violência sexual pra-
ticada contra mulheres de determinada origem étnico- racial. A discriminação
pode dificultar o acesso de mulheres a informações em geral, bem como obstar
a denúncia das discriminações e violências que vierem a sofrer. O Comitê pre-
tende monitorar como as mulheres que pertencem às minorias étnicas e raciais
exercem seus direitos, avaliando a dimensão da discriminação racial a partir de
uma perspectiva de gênero.

Direito brasileiro e ações afirmativas

Além das ações afirmativas contarem com o sólido amparo jurídico das
Convenções sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e
contra a Mulher, ambas ratificadas pelo Brasil, a ordem jurídica nacional, grada-
tivamente, passa a introduzir marcos legais com o objetivo de instituir políticas
de ações afirmativas.
A Constituição Federal de 1988, marco jurídico da transição democrática
e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, estabelece importantes
dispositivos que traduzem a busca da igualdade material. Como princípio fun-
damental, consagra, entre os objetivos do Brasil, construir uma sociedade livre,
justa e solidária, mediante a redução das desigualdades sociais e a promoção do
bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação (artigo 3º, I, III e IV).
Prevê expressamente para as mulheres e para as pessoas com deficiência a pos-
sibilidade de adoção de ações afirmativas. Nesse sentido, destaca- se o artigo 7º,
inciso XX, que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos, bem como o artigo 37, VII, que determina que a lei reser-
vará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência.

Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas 53


Acrescente-se ainda a chamada “Lei das cotas” de 1995 (Lei n. 9.100/95),
que introduziu uma cota mínima de 20% das vagas de cada partido ou coligação
para a candidatura de mulheres. Essa lei foi posteriormente alterada pela Lei
9.504, de 30 de setembro de 1997, que, ao estabelecer normas para as eleições,
dispôs que cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de 30% e o má-
ximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
Some-se também o Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto
1.904, de 13 de maio de 1996), que faz expressa alusão às políticas compensató-
rias, prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor de
grupos socialmente vulneráveis.
Observe-se que o próprio documento oficial brasileiro apresentado à Con-
ferência das Nações Unidas contra o Racismo, em Durban (31 de agosto a 7 de
setembro de 2001), defendeu, do mesmo modo, a adoção de medidas afirma-
tivas para a população afrodescendente, nas áreas da educação e trabalho. O
documento propôs a adoção de ações afirmativas para garantir o maior acesso
de afrodescendentes às universidades públicas, bem como a utilização, em li-
citações públicas, de um critério de desempate que considerasse a presença de
afrodescendentes, homossexuais e mulheres no quadro funcional das empresas
concorrentes. A Conferência de Durban, em suas recomendações, pontualmen-
te nos seus parágrafos 107 e 108, endossa a importância dos Estados em adota-
rem ações afirmativas, enquanto medidas especiais e compensatórias voltadas
a aliviar a carga de um passado discriminatório daqueles que foram vítimas da
discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de intolerância correlatas.
Na experiência brasileira vislumbra-se a força catalisadora da Conferência
de Durban no tocante às ações afirmativas, envolvendo não apenas os trabalhos
preparativos pré-Durban, como especialmente a agenda nacional pós-Durban,
que propiciou significativos avanços no debate público sobre o tema. Foi no pro-
cesso pós-Durban que, por exemplo, acentuou-se o debate sobre a fixação de
cotas para afrodescendentes em universidades, bem como sobre o chamado Es-
tatuto da Igualdade Racial.
Em 2002, no âmbito da Administração Pública Federal, foi criado o Pro-
grama Nacional de Ações Afirmativas,10 que contemplou medidas de incentivo à

10
  Decreto Federal 4.228/02.

54 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


inclusão de mulheres, afrodescendentes e portadores de deficiência, como cri-
térios de pontuação em licitações que beneficiem fornecedores que comprovem
desenvolver políticas compatíveis com o programa. No mesmo ano, foi lançado
o Programa Diversidade na Universidade,11 que estabeleceu a criação de bolsas
de estudo e prêmios a alunos de instituições que desenvolvessem ações de in-
clusão no espaço universitário, além de autorizar o Ministério da Educação a
estudar, implementar e apoiar outras ações que servissem ao mesmo fim. É nes-
se contexto que foram adotados programas de cotas para afrodescendentes em
universidades – como é o caso da UERJ, UNEB, UnB, UFPR, entre outras. Pos-
teriormente, em 2003 foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igual-
dade Racial (PNPIR), que reforça a eficácia das ações afirmativas e determina a
criação de diversos mecanismos de incentivo e pesquisas para melhor mapear a
população afrodescendente, otimizando assim os projetos direcionados. Ainda
naquele ano, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igual-
dade Racial,12 da Presidência da República, que auxilia o desenvolvimento de
programas, convênios, políticas e pesquisas de interesse para a integração racial.
Ainda no âmbito da Federação, não apenas a União, mas também os Es-
tados passaram a adotar políticas e planos de promoção da igualdade material,
muitos deles sob a inspiração dos já apresentados, mas outros específicos para
as estruturas e realidades regionais. Um marco importante é a Constituição do
Estado da Bahia,13 que traz capítulos específicos a respeito do afrodescendente
e do índio. Estados como o Paraná14 e Santa Catarina15 prescreveram sanções
administrativas às empresas que praticarem atos discriminatórios – no primeiro
contra a mulher e no segundo por questões raciais –, prevendo a impossibilidade
de participar em licitações e convênios públicos até a proibição de parcelamento
de débitos, entre outras medidas.
Outros Estados também têm adotado políticas de ações afirmativas, como
São Paulo, com a Política de Ações Afirmativas para Afrodescendentes16 e o

11
  Lei 10.558/02.
12
  Lei 10.678/03. No site da Presidência da República é possível acessar estudos e pesquisas que abordam
essa temática, além de notícias e outras informações: www.planalto.gov.br/seppir/.
13
  Ver: www.al.ba.gov.br/infserv/legislacao/constituicao2005.pdf.
14
  Lei 10.183/92: www.pr.gov.br/casacivil/legislacao.shtml.
15
  Lei 10.064/96: www.alesc.sc.gov.br.
16
  Decreto 48.328/06: www.legislacao.sp.gov.br/legislacao/index.htm.

Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas 55


Grupo de Trabalho17 criado para introduzir mecanismos de incentivo em licita-
ções e concursos públicos.
Além disso, adicione-se o Estatuto da Igualdade Racial,18 que, pelo perío-
do de dez anos, propõe: a fixação de cotas raciais para cargos da administração
pública federal e estadual; a valorização da herança cultural afrodescendente na
história nacional; cota para a participação de afrodescendentes em propagandas,
filmes e programas; a inserção do quesito “cor/raça” no sistema de saúde; a reser-
va de vagas para afrodescenentes e povos indígenas em universidades federais; a
composição étnico-racial de empresas como critério para desempate em licita-
ções públicas; e o dever de adotar programas de promoção de igualdade racial às
empresas que se beneficiam de incentivos governamentais.

Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas

O debate público a respeito das ações afirmativas no Brasil tem sido mar-
cado por cinco dilemas e tensões.19
O primeiro dilema atém-se à discussão acerca da “igualdade formal ver-
sus igualdade material”. Argumentam os opositores das ações afirmativas que
seriam elas atentatórias ao princípio da igualdade formal, reduzido à fórmula
“todos são iguais perante a lei”, na medida em que instituiriam medidas dis-
criminatórias. Como já exposto, as ações afirmativas orientam-se pelo valor da
igualdade material, substantiva.

17
  Decreto 50.782/06: www.legislacao.sp.gov.br/legislacao/index.htm.
18
 Em janeiro de 2007, o Estatuto encontrava-se tramitando na Câmara dos Deputados como PL-
6264/2005, e pode ser encontrado diretamente pelo link: www.camara.gov.br-sileg-integras-359794.pdf.
A proposta tem gerado acirrada polêmica no Brasil, como ilustram os artigos “Todos têm direitos iguais
na República”, de Adel Daher Filho e outros, Folha de S. Paulo, p. A3, 29 jun. 2006; “Intelectuais assinam
manifesto contra o Estatuto da Igualdade Racial”, O Estado de S. Paulo, p. A12, 30 jun. 2006; e “Estatuto
da Igualdade Racial: Lula revê apoio”, O Estado de S. Paulo, p. A8, 7 jul. 2006.
19
 Como exemplo, há dezenas de ações judiciais propostas contra cotas para afrodescendentes em
universidades (ver, a título ilustrativo, TRF1 – AC 2006.33.00.002978-0/BA e AMS 2003.33.00.007199-
9/BA, TRF4 – AC 2005.70.00.013067-9), bem como a ação direta de inconstitucionalidade n. 2.858,
ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal pela Confederação dos Estabelecimentos de Ensino
(CONFENEN) contra leis estaduais que instituíram cotas no Estado do Rio de Janeiro. A mídia tem
explorado muito esse tema, com diversos artigos publicados (ver clipping da SEPPIR, www.planalto.
gov.br/seppir/, para artigos da mídia privada, e o site da Radiobrás para a cobertura oficial: www.
agenciabrasil.gov.br/assunto_view?titulo=igualdade%20racial).

56 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Uma segunda tensão envolve o antagonismo “políticas universalistas ver-
sus políticas focadas”. Isto é, para os críticos das ações afirmativas, as mesmas
demandariam políticas focadas, favoráveis a determinados grupos socialmente
vulneráveis, o que fragilizaria a adoção das políticas universalistas. A resposta
a essa crítica é que nada impediria a adoção de políticas universalistas combi-
nadas com políticas focadas. Além disso, estudos e pesquisas demonstram que
a mera adoção de políticas universalistas não tem sido capaz de reduzir as desi-
gualdades raciais, que se mantêm em padrões absolutamente estáveis ao longo
de sucessivas gerações.
Uma terceira crítica apresentada concerne aos beneficiários das políticas
afirmativas, considerando os critérios “classe social” e “raça/etnia”. Aqui a tensão
envolve, de um lado, o branco pobre, e, de outro, o afrodescendente de classe
média. Ora, a complexa realidade brasileira vê-se marcada por um alarmante
quadro de exclusão social e discriminação como termos interligados a compor
um ciclo vicioso, em que a exclusão implica discriminação e a discriminação
implica exclusão.
Outra tensão diz respeito ao argumento de que as ações afirmativas gera-
riam a “racialização” da sociedade brasileira, com a separação crescente entre
brancos e afrodescendentes, acirrando as hostilidades raciais. Quanto a esse ar-
gumento, cabe ponderar que, se “raça” e “etnia” sempre foram critérios utiliza-
dos para exclusão de afrodescendentes no Brasil, que sejam agora utilizados, ao
revés, para a sua necessária inclusão.
Um quinto dilema, especificamente no que se refere às cotas para afro-
descendentes em universidades, atém-se à autonomia universitária e à merito-
cracia, que restariam ameaçadas pela imposição de cotas. Contudo, o impacto
das cotas não seria apenas reduzido ao binômio inclusão/exclusão, mas também
permitiria o alcance de um objetivo louvável e legítimo no plano acadêmico –
que é a riqueza decorrente da diversidade. As cotas fariam com que as universi-
dades brasileiras deixassem de ser territórios brancos, com a crescente inserção
de afrodescendentes, com suas crenças e culturas, o que em muito contribuiria
para uma formação discente aberta à diversidade e pluralidade. Dados do IPEA
revelam que menos de 2% dos estudantes afrodescendentes estão em universi-
dades públicas ou privadas. Isso faz com que as universidades sejam territórios

Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas 57


brancos. A universidade é um espaço de poder, já que o diploma pode ser um
passaporte para ascensão social. É fundamental democratizar o poder e, para
isso, há que se democratizar o acesso ao poder, vale dizer, o acesso ao passaporte
universitário.
O debate público das ações afirmativas tem ensejado, de um lado, aqueles
que argumentam constituírem elas uma violação de direitos, e, de outro lado,
os que advogam serem elas uma possibilidade jurídica ou mesmo um direito.
A respeito, note-se que o anteprojeto de Convenção Interamericana contra o
Racismo e toda forma de Discriminação e Intolerância, proposto pelo Brasil no
âmbito da OEA, estabelece o direito à discriminação positiva, bem como o de-
ver dos Estados de adotar medidas ou políticas públicas de ação afirmativa e de
estimular a sua adoção no âmbito privado.
Por fim, em um país em que os afrodescendentes são 64% dos pobres e
69% dos indigentes (dados do IPEA),20 em que no índice de desenvolvimen-
to humano geral (IDH, 2000) figura em 74o lugar, mas que, sob o recorte
étnico-racial, o IDH relativo à população afrodescendente o indica na 108a po-
sição (enquanto o IDH relativo à população branca o indica na 43a posição),21
faz-se essencial a adoção de ações afirmativas em benefício da população afro-
descendente, em especial nas áreas da educação e do trabalho. Note-se que, de
acordo com o International Development Bank, há aproximadamente 190 mi-
lhões de afrodescendentes nas Américas, correspondendo a 25% da população
da região, que enfrenta um legado histórico de exclusão social, desigualdade
estrutural e grave discriminação.
Considerando as especificidades do Brasil, que é o segundo país do mun-
do com o maior contingente populacional afrodescendente (45% da população
brasileira, perdendo apenas para a Nigéria), tendo sido, contudo, o último país
do mundo ocidental a abolir a escravidão, faz-se urgente a aplicação de medidas
eficazes para romper com o legado histórico de exclusão étnico-racial e com as
desigualdades estruturantes que compõem a realidade brasileira.

20
  Ver: “Ipea afirma que racismo só será combatido com política específica”, Folha de S. Paulo, p. A6, 8
jul. 2001.
21
  Ver: Marcelo PAIXÃO, 2000.

58 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Se no início este texto acentuava que os direitos humanos não são um dado,
mas um construído, enfatiza-se agora que as violações a estes direitos também
o são. Isto é, as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias, os
racismos, as injustiças raciais são um construído histórico, a ser urgentemen-
te desconstruído, sendo emergencial a adoção de medidas emancipatórias para
transformar este legado de exclusão étnico-racial e compor uma nova realidade.
Destacam-se, nesse sentido, as palavras de Abdias do Nascimento, ao
apontar para a necessidade da inclusão do povo afro-brasileiro, um povo que
luta duramente há cinco séculos no país, desde os seus primórdios, em favor
dos direitos humanos. É o povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente
agredidos ao longo da história do país: o povo que durante séculos não mereceu
nem o reconhecimento de sua própria condição humana.
A implementação do direito à igualdade racial há de ser um imperativo éti-
co- político-social capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem negado
à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades
fundamentais.22

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  Um especial agradecimento é feito ao Paulo Dallari, pela preciosa pesquisa a este texto.
22

Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas 59


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University Press, 1990.

61
Notas para a Interpretação das
Desigualdades Raciais na Educação1

Danielle Oliveira Valverde


Lauro Stocco

Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir os dados educacionais com-


pilados na 3a edição do Retrato das desigualdades de gênero e raça à luz da
produção mais recente acerca das situações de preconceito e discriminação ra-
ciais presentes no sistema educacional brasileiro.2 A primeira seção destaca que
a partir de 2002, após várias décadas de estabilidade, inicia-se uma tendência
de queda na diferença de escolaridade entre brancos e negros. Nesse mesmo
período, entretanto, inicia-se a cristalização de uma diferença de escolaridade
entre crianças brancas e negras de 7 a 14 anos, o que aponta para a necessidade
de compreensão dos processos que contribuem para a manutenção dessa desi-
gualdade. A segunda seção apresenta os mecanismos pelos quais o preconceito
e a discriminação operam no ambiente escolar, processos esses que afetam dire-
tamente a permanência, a progressão e o desempenho escolar das crianças e dos
jovens brancos e negros. Por fim, a última seção aborda o ensino superior espe-
cificamente, mostrando que, apesar da diminuição da desigualdade de acesso de

  Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 17; v. 3; setembro-dezembro de 2009.


1

  As ideias expressas neste texto não representam a posição do Fundo de Desenvolvimento das Nações
2

Unidas para a Mulher nem do Ministério da Educação.

63
brancos e negros à universidade nos últimos anos, ainda é pequena a presença
de negros/as nas universidades brasileiras, o que corrobora com a relevância da
discussão sobre ações que mitiguem esse problema.

Quadro das desigualdades raciais na educação

Diferentemente do que ocorria até o ano de 2001, a análise dos dados das
últimas edições disponíveis da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) mostra uma diminuição na diferença entre a média de anos de estudo
de brancos e negros.3 Luciana Jaccoud e Natalie Beghin (2002) e também Ri-
cardo Henriques (2001) apontam que até 2001, a despeito dos avanços obtidos
pelo Brasil em educação na década de 1990, a diferença entre a média de anos de
estudo de brancos e negros permaneceu aproximadamente constante, em torno
de dois anos. Para Henriques (2001), o mais impressionante na desigualdade
educacional entre brancos e negros é sua estabilidade ao longo do século XX,
uma vez que a diferença na escolaridade média entre os adultos brancos e ne-
gros nascidos em 1974 é idêntica entre os nascidos em 1929 – mostrando que o
padrão de discriminação racial na educação manteve-se estável entre gerações.
Essa situação, entretanto, parece ter encontrado seu ponto de inflexão em
2002. Nesse ano, a diferença entre a média de anos de estudo de brancos e negros
foi, pela primeira vez desde que a PNAD passou a coletar o quesito cor/raça,
menor que dois anos, ficando em 1,9. Essa queda, que poderia ser interpretada
pelos mais céticos como anômala em uma séria história na qual a diferença de
escolaridade entre brancos e negros estaria cristalizada em torno de dois anos,
acabou se mostrando, nos anos seguintes, como a nova tendência desse indica-
dor (conforme pode ser visto na Tabela 1).
Considerando-se as questões metodológicas centrais ao processo de repro-
dução das desigualdades sociais e as transformações pelas quais o sistema edu-
cacional brasileiro tem passado desde meados dos anos 1990, não gera espanto a
verificação desse recuo das desigualdades raciais na educação. As desigualdades

3
 Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros órgãos oficiais do governo
brasileiro, a categoria “negro” é composta de pardos e pretos.

64 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


sociais, aqui especificamente as raciais,4 retratadas pelas estatísticas nacionais,
são os resultados – digamos, brutos – de variados processos sociais. As desigual-
dades educacionais entre brancos e negros resultam inegavelmente de processos
discriminatórios vivenciados pelos estudantes negros, mas não só disso.

Tabela 1 – Média de anos de estudo1 das pessoas de 15 anos ou mais de idade por cor/raça, Brasil e
Grandes Regiões – 1993-2007

Cor/Raça Total

1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Total 5,30 5,48 5,65 5,74 5,92 6,05 6,36 6,54 6,72 6,83 6,96 7,16 7,27

Branca 6,20 6,37 6,50 6,66 6,83 6,96 7,26 7,40 7,61 7,69 7,83 8,04 8,15

Negra 4,10 4,28 4,48 4,52 4,71 4,86 5,22 5,46 5,65 5,82 6,01 6,20 6,35

Branca- negra 2,10 2,10 2,02 2,14 2,12 2,09 2,03 1,94 1,96 1,86 1,82 1,84 1,80

Fonte: IBGE/Pnad microdados.


Adaptado de: Tabela 3.1, elaborada por Ipea/Disoc, UNIFEM e SPM. Nota: 1Fornece a média de séries concluídas com aprovação.

Tabela 2 – Proporção de crianças de 7 a 14 anos que frequentam escola, segundo sexo e cor/raça, Brasil
– 1993-2007

Sexo e Cor/Raça 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Total 88,6 90,2 91,2 93,0 94,7 95,7 96,5 96,9 97,2 97,1 97,3 97,6 97,6

Branca 92,1 93,3 94,1 95,5 96,5 97,0 97,5 97,7 98,1 98,1 98,0 98,4 98,2

Negra 85,0 87,1 88,3 90,6 93,1 94,4 95,4 96,2 96,4 96,2 96,8 97,1 97,1

Masculino 87,7 89,3 90,6 92,4 94,4 95,3 96,3 96,6 96,9 96,8 97,1 97,5 97,4

Branca 91,8 92,8 94,0 95,4 96,5 96,8 97,5 97,6 97,9 98,2 97,8 98,3 98,1

Negra 83,7 85,9 87,3 89,6 92,5 93,9 95,0 95,7 96,1 95,6 96,4 96,9 96,9

Feminino 89,5 91,1 91,8 93,6 95,0 96,1 96,7 97,3 97,5 97,4 97,6 97,8 97,8

Branca 92,5 93,9 94,3 95,5 96,4 97,2 97,5 97,8 98,3 98,0 98,2 98,5 98,4

Negra 86,4 88,4 89,2 91,6 93,6 95,0 95,8 96,8 96,7 96,8 97,1 97,3 97,3

Fonte: IBGE/Pnad microdados.


Adaptado de: Tabela 3.9, elaborada por Ipea/Disoc, UNIFEM e SPM.

4
  Neste texto são empregados os termos “raça”, “inscrição racial” e “variável raça”. A diferença entre eles
não é meramente semântica, mas sim fruto de suas diferentes origens disciplinares e metodológicas.
Todos eles, entretanto, possuem em comum o reconhecimento de que as relações sociais no Brasil
possuem um importante componente racial, ou seja, são informadas por ideias e categorias baseadas no
conceito (histórica e socialmente construído) de raça. Ver Antônio Sérgio Alfredo GUIMARÃES, 2003
e 2004; e Kabengele MUNANGA, 2004.

Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 65


Segundo Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1999), além das ques-
tões ligadas à inscrição racial dos estudantes, as desigualdades educacionais en-
tre brancos e negros são geradas por diferenças de renda, região de domicílio,
estrutura familiar, escolaridade dos pais e estrutura do sistema de ensino. Toda-
via, normalmente, as análises dos indicadores educacionais prendem-se mais às
questões do lado da oferta educacional, principalmente àquelas relacionadas à
qualidade do ensino oferecido pelas escolas brasileiras. Sem deixar de reconhe-
cer a importância de todos esses fatores, o que importa aqui é destacar a contri-
buição específica da inscrição racial – ou dos processos relacionados a ela – na
reprodução das desigualdades raciais na educação.
A análise descritiva da média de anos de estudo da população brasileira
desagregada por idade apresenta uma pista da existência de um efeito da variá-
vel cor/ raça sobre as desigualdades educacionais. A universalização do acesso à
educação fundamental promovida na década de 1990 foi indubitavelmente be-
néfica à população negra.5 Conforme pode ser visto na Tabela 2, a expansão do
acesso à educação fundamental foi acompanhada por uma acentuada queda da
desigualdade de acesso ao sistema educacional pelas crianças brancas e negras
de 7 a 14 anos, caindo de aproximadamente 7 pontos percentuais em 1993 para
apenas 1 ponto em 2007.
Essa diminuição das desigualdades raciais na educação pela universaliza-
ção do acesso ao ensino parece ter, contudo, um “limite racial”. Curiosamente, o
mesmo período no qual houve o rompimento da barreira dos dois anos de dife-
rença entre a média de anos de estudo de brancos e negros também foi o período
no qual parece ter-se iniciado a cristalização de outra diferença, a da média de
anos de estudo entre brancos e negros de 7 a 14 anos. Conforme se pode ver na
Tabela 3, a diferença entre a média de anos de estudo de brancos e negros de
7 a 14 anos sofreu uma queda vertiginosa entre 1999 e 2001, de 0,67 para 0,43
ano de estudo. Mas depois disso, a partir de 2002, essa diferença se estagnou em
aproximadamente três décimos (0,3) de ano.

5
  Mesmo que, em um primeiro momento, essa expansão tenha acontecido em detrimento da qualidade
do ensino e sem uma rediscussão acerca dos conteúdos abordados em um sistema escolar que foi
construído, ao longo de décadas, para atender a um público de classe média, branco e masculino.

66 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Considerando que foi justamente no ensino fundamental – que atende
principalmente às crianças de 7 a 14 anos – que o Brasil alcançou seus melho-
res resultados educacionais no período compreendido entre a década de 1990 e
os primeiros anos do século XXI, é no mínimo intrigante a permanência desse
resíduo de diferença entre brancos e negros nesse segmento educacional. Não
menos intrigante é a constatação de que não há sequer um indicador educacio-
nal no qual haja uma inversão de posições, com negros à frente dos brancos.
Tendências como essa fizeram Henriques – ao analisar os dados educacionais
da PNAD das edições compreendidas entre 1992 e 1999 – pontificar que as “po-
líticas de acesso universal e progressão continuada desenvolvidas nos últimos
anos” obtiveram um êxito parcial, pois a análise separada dos dados educacio-
nais dos jovens brancos e negros mostra que “o desempenho não é homogêneo
entre as raças” (2001, p. 28).
Os dados indicam que, mesmo sendo altamente benéfica à população ne-
gra, a universalização do acesso ao ensino não é suficiente para a superação das
desigualdades raciais na educação. A existência desse resíduo de desigualdade
entre brancos e negros em um segmento da educação que atingiu há anos núme-
ros muito próximos da total universalização do acesso aponta para a necessidade
da identificação, da compreensão e do reconhecimento dos processos sociais ra-
cializados que produzem essas desigualdades educacionais. Dessa maneira, nos
últimos anos, há um deslocamento da problemática das desigualdades raciais do
acesso à educação para o diagnóstico do interior do sistema educacional, pois
as diferentes experiências vivenciadas por crianças e jovens brancos e negros na
escola têm efeito direto em sua permanência, progressão e desempenho.6

6
 Mais informações sobre o desempenho desigual de estudantes brancos e negros avaliados pelo
Ministério da Educação por meio do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) podem ser vistas
em Alicia Maria Catalano de BONAMINO, Francisco Creso Junqueira FRANCO e Fátima ALVES, 2005;
e José Francisco SOARES e Maria Teresa Gonzaga ALVES, 2003.

Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 67


Tabela 3 – Média de anos de estudo da população segundo cor/raça e faixa etária, Brasil – 1993-2007

Total

Cor/Raça 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Branca
7 a 14 anos 2,57 2,68 2,75 2,79 2,87 2,98 3,27 3,29 3,33 3,32 3,32 3,36 3,11

15 a 17 anos 5,93 6,18 6,36 6,52 6,66 6,90 7,25 7,33 7,54 7,58 7,69 7,71 7,78
Negra
7 a 14 anos 1,70 1,82 1,96 1,98 2,15 2,31 2,84 2,93 2,97 2,98 3,02 3,07 2,76

15 a 17 anos 4,24 4,50 4,68 4,83 5,12 5,41 5,72 6,00 6,28 6,43 6,57 6,66 6,77
Branca - negra

7 a 14 anos 0,87 0,85 0,79 0,81 0,72 0,67 0,43 0,36 0,35 0,34 0,30 0,29 0,34

Branca - negra

15 a 17 anos 1,69 1,68 1,68 1,69 1,53 1,49 1,53 1,33 1,26 1,15 1,12 1,05 1,01

Fonte: IBGE/Pnad microdados.


Adaptado de: Tabela 3.2, elaborada por Ipea/Disoc, UNIFEM e SPM.

Preconceito e discriminação na escola

O ambiente escolar, tal como microcosmo da sociedade brasileira, apre-


senta mecanismos racistas e sexistas que se conformam para a exclusão ou o
atraso escolar dos jovens do sistema educacional desde a mais tenra idade. Estu-
dos qualitativos identificam a ocorrência de discriminação e preconceito racial
nas relações intracomunidade escolar, tanto entre pares (alunos e alunos) quan-
to na relação hierárquica entre professores e alunos, e mesmo da direção escolar.
Em estudo realizado com a educação infantil, Eliane Cavalleiro (2005)
identificou as seguintes situações: a ausência da população negra em cartazes,
fotos e informativos fixados no espaço escolar; a omissão de professores diante
das situações de discriminação sofridas por crianças negras;7 a prática de adjeti-
vação desumanizadora das crianças negras também por parte dos professores; e
o estímulo e o tratamento mais afetivo legado à criança branca. Em detrimento
dessas práticas, a autora destaca a observação da afetividade e do contato físico

7
 Nilma Lino GOMES (1996) destaca que o silenciamento e o discurso da igualdade são recursos
utilizados como estratégia para invisibilizar alunos/as negros/as no ambiente escolar e se furtar à
discussão sobre as relações raciais no Brasil.

68 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


identificado entre crianças negras e brancas, demonstrando que a discriminação
não é algo intrínseco, mas construída ao longo do processo de socialização.
Além disso, cabe ressaltar a ainda frequente invisibilidade da população
negra nos livros didáticos ou a sua presença desumanizada e exotizada – por
vezes, associada exclusivamente à escravidão, maximizando as elaborações ne-
gativas em torno das crianças e dos jovens identificados com essas imagens. An-
dréia Souza (2005), no entanto, aponta para mudanças empreendidas por algu-
mas editoras e autores, que buscam a afirmação de uma imagem positiva das
personagens negras, a valorização de elementos culturais herdados das culturas
africanas e a valorização das diferenças étnico-raciais.
Ainda assim, há no Brasil uma cultura de negação da existência de práti-
cas racistas no meio escolar que prefere atribuir o fracasso escolar de jovens e
crianças negras exclusivamente à desestruturação familiar, à condição socioeco-
nômica ou à necessidade precoce de se inserirem no mercado de trabalho, sem
considerar o peso que o pertencimento racial tem sobre suas trajetórias.
As práticas e os mecanismos destacados acima contribuem diretamente
para os dados de distorção idade–série, resultados do abandono ou da reprova-
ção de crianças e jovens negros. Embora a diferença entre as taxas de distorção
idade–série de brancos e negros no ensino fundamental venha diminuindo, ela
ainda é elevada, constituindo-se quase o dobro uma da outra. Conforme se pode
observar na tabela a seguir, enquanto as crianças brancas possuíam em 2007
uma taxa de 17,4%, as crianças negras nessa situação somavam 30,8%, uma di-
ferença de 13,4 pontos percentuais.

Tabela 4 – Taxa de distorção idade–série1 no ensino fundamental, segundo cor/raça, Brasil – 1993-2007

Cor/Raça Ensino Fundamental – 1ª a 8ª série

1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Total 46,3 44,8 44,3 44,0 42,1 39,8 35,3 33,1 31,2 28,9 28,5 26,9 25,1

Branca 34,8 33,2 33,2 32,3 30,8 28,3 24,6 23,1 21,9 20,0 19,9 18,6 17,4
Negra 58,4 56,8 55,8 55,4 52,6 50,3 44,6 41,8 38,9 36,2 35,1 33,1 30,8

Fonte: IBGE/Pnad microdados.


Adaptado de: Tabela 3.11c, elaborada por Ipea/Disoc, UNIFEM e SPM.
Nota: 1Taxa de distorção idade–série: considera-se com “distorção idade–série” o aluno com idade de 2 anos ou mais acima da
idade recomendada para a série que frequenta.

Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 69


Tabela 5 – Taxa de escolarização líquida1 no ensino superior por sexo e cor/raça, Brasil – 1993-2007

Ensino superior por cor/raça Total Masculino Feminino

1993 2007 1993 2007 1993 2007

Total 4,8 13,1 4,1 11,3 5,5 14,9

Branca 7,7 19,8 6,9 17,4 8,4 22,1

Negra 1,5 6,9 1,2 5,9 1,8 8,0

Taxa de crescimento total 172,4 172,5 173,1

Taxa de crescimento: branca 158,6 151,9 164,7

Taxa de crescimento: negra 366,3 408,4 338,1


Branca - negra 6,2 12,9 5,7 11,5 6,5 14,2

Fonte: IBGE/Pnad microdados.


Adaptado de: Tabela 3.10, elaborada por Ipea/Disoc, UNIFEM e SPM.
Nota: 1A taxa de escolarização líquida fornece a proporção da população matriculada no nível de ensino considerado adequado
conforme as seguintes faixas etárias: educação infantil para menores de 6 anos (0 a 3 anos e 4 a 6 anos); ensino fundamental (7 a
14 anos); ensino médio (15 a 17 anos); e ensino superior (18 a 24 anos).

No ensino médio, a distorção idade–série é ainda mais elevada do que a


identificada no ensino fundamental, sendo importante, para a compreensão
desse fenômeno, além das variáveis racial e institucional, recorrer-se aos estudos
sobre juventude. Paralelamente às experiências escolares, os jovens vivenciam
espaços bastante heterogêneos de socialização – a rua, a família, a igreja, os gru-
pos culturais, os grupos de amigos. Em meio ao surgimento de indagações e
descobertas sobre as mais diversas experiências – tais como sexualidade, drogas,
violência, desemprego e emprego, vestibular –, a escola vai perdendo o seu lugar
de exclusividade na vida dos/as jovens. Assim, o distanciamento entre a cultura
escolar e a cultura juvenil gera tensões que, por vezes, resultam na repetência, no
abandono, na evasão e até na violência na escola.

O ensino superior

A importância da articulação de diferentes aspectos e categorias sociais


para a compreensão das desigualdades educacionais se torna mais evidente na
análise da situação do ensino superior. Apesar de os dados compilados no Retra-
to das desigualdades de gênero e raça referendarem o que já havia sido apontado
por outros estudos, ou seja, a reversão do hiato de gênero na educação – com as

70 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


mulheres passando a atingir maiores índices de escolarização8 –, essa situação
não é tão “confortável” no caso das mulheres negras no ensino superior.
Nos últimos anos, paralelamente à expansão de vagas no ensino superior
e à implementação de ações afirmativas de acesso em algumas universidades,
houve uma redução na desigualdade de acesso de brancos e negros à universida-
de. Enquanto a presença de estudantes negros de 18 a 24 anos no ensino superior
cresceu em torno de 366%, o aumento de estudantes brancos foi de aproxima-
damente 158%,9 conforme se pode ver na Tabela 5. Isso fez com que a razão de
representação de brancos e negros no ensino superior – ou seja, a quantidade de
vezes que a população branca é maior do que a negra10 – baixasse de aproxima-
damente 5 em 1993 para 3 em 2007.
Contudo, esse crescimento da presença da população negra no ensino su-
perior é marcado por uma novidade em relação aos dados dos outros indicadores
educacionais constantes no Retrato das desigualdades de gênero e raça: a melhor
situação dos homens diante das mulheres em um determinado grupo racial, no
caso o negro. Diferentemente do que acontece no grupo branco, o grupo negro
apresenta as maiores taxas de crescimento do acesso ao ensino superior para os
homens, tendo sua participação ampliada em 408% entre 1993 e 2007, enquanto
que, no mesmo período, as mulheres negras tiveram um aumento de 338%.
Isso indica a existência de mecanismos sexistas na passagem do ensino mé-
dio para o ensino superior que acometem marcadamente as mulheres negras,11
uma vez que elas não conseguem manter sobre os jovens negros o mesmo pa-
drão de vantagem alcançado nos outros indicadores do ensino básico. A manu-
tenção dessa tendência de crescimento desigual no acesso ao ensino superior

8
  Segundo Kaisô Iwakami BELTRÃO e José Eustáquio Diniz ALVES (2009), essa inversão se iniciou na
segunda metade do século XX, em função da pressão exercida pelo movimento feminista no Brasil e
também das políticas públicas adotadas a partir da Revolução de 1930.
9
  A taxa de crescimento foi obtida da seguinte maneira: [(proporção em T1/proporção em T0) -1] x 100.
10
  A razão de representação de brancos e negros foi obtida pela divisão da porcentagem de brancos no
ensino superior pela porcentagem de negros, num dado ano.
11
  As especificidades da luta da mulher negra nem sempre estiveram representadas nos movimentos
feministas e nos movimentos negros. O reconhecimento das diferenças intragênero e intrarracial
foi pautado pelas mulheres negras à medida que não se viam representadas nas demandas e ações
empreendidas por esses movimentos sociais (Sueli CARNEIRO, 2003).

Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 71


pode, no limite, provocar uma inversão na representação percentual de homens
e mulheres negras nos próximos anos.12
Em relação à população negra, a ampliação de sua presença no ensino su-
perior quando comparada com a da população branca no período considerado –
e a consequente redução da desigualdade racial nesse segmento educacional –
deve ser tomada com cautela.
Primeiro porque a diferença na representação das duas populações no en-
sino superior ainda é grande, com uma proporção de escolarização líquida em
2007 de 19,8% para a população branca de 18 a 24 anos ante apenas 6,9% para
os negros da mesma idade (ver Tabela 5). Assim, mesmo com a diminuição da
razão de representação de brancos e negros de 5 para 3 no período de 1993 a
2007, a diferença na proporção de membros dos dois grupos atendendo ao ensi-
no superior aumentou de 6,2% para 12,9%.
Em segundo lugar, porque a maior taxa de crescimento do acesso ao en-
sino superior da população negra não significa necessariamente que entre 1993
e 2007 tenha ocorrido uma grande transformação da sociedade brasileira em
geral, e da escola em particular, no sentido do enfrentamento do preconceito e
da discriminação raciais, que reduzem as chances de os jovens negros atingirem
e concluírem o ensino superior. Mais adequada parece a suposição da centrali-
dade de duas mudanças institucionais ocorridas nesse período: a ampliação de
vagas no ensino superior e a instituição de programas de ação afirmativa em
várias universidades brasileiras.
Ações afirmativas são benefícios temporários concedidos a grupos sociais
discriminados com o intuito de promover a igualdade de oportunidade em dife-
rentes dimensões da vida social, em especial na educação e no trabalho. Segundo
Joaquim Barbosa Gomes (2005), além de garantir a igualdade de oportunidades,
as ações afirmativas têm como objetivo induzir a sociedade a transformações
culturais que permitam que o preconceito racial seja desconstruído das mentes
dos indivíduos e eliminado da estrutura das instituições.

12
  Vale destacar que o problema do retorno desigual aos esforços desenvolvidos por homens e mulheres,
que no caso do acesso ao ensino superior tem sido um problema específico para a mulher negra, expande-
se para toda a população feminina brasileira quando se trata da relação entre educação e mercado de
trabalho. As conquistas das mulheres na área da educação não têm se revertido em ascensão profissional
semelhante à obtida pelos homens, seja em termos de melhores cargos ou salários. No mundo do
trabalho, em iguais condições de escolaridade, as mulheres continuam recebendo salários mais baixos.

72 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Contudo, as ações afirmativas, por si só, não são suficientes para romper
com as desigualdades raciais existentes no país. Devido à configuração da es-
trutura social brasileira, é necessário que essas políticas sejam implementadas
em articulação com as políticas universais, especialmente no caso da educação.
Ademais, em sociedades permeadas pelo racismo e por outras discriminações,
é necessário haver uma articulação de políticas que visem não só à promoção
da igualdade racial, mas também ao combate ao preconceito e à discriminação,
inclusive por meio de um aparato repressivo-punitivo, conforme concordam Lu-
ciana Jaccoud e Mário Theodoro (2005) e Flávia Piovesan (2005).

Considerações finais

A análise dos dados compilados na 3a edição do Retrato das desigualda-


des de gênero e raça mostrou que, a despeito do recuo apresentado no período
compreendido entre meados dos anos 1990 e meados da primeira década dos
anos 2000, as desigualdades raciais na educação ainda persistem e não dão
mostras que cessarão se políticas públicas específicas não forem implementa-
das com esse objetivo.
Na educação básica, o processo de universalização do acesso à escola não
foi suficiente para a erradicação das desigualdades raciais. Entre o começo da
década passada e o final desta, houve, de fato, uma acentuada queda na desi-
gualdade de acesso ao sistema educacional por crianças brancas e negras, o que,
todavia, não foi suficiente para igualar a média de anos de estudo das crianças
de 7 a 14 anos. Pior ainda, desde 2002 essa diferença tem se mantido aproxima-
damente constante.
A existência desse resíduo de desigualdade entre brancos e negros no seg-
mento de ensino cujos indicadores apresentaram os maiores progressos no pe-
ríodo em questão é um indício de que as distintas experiências vivenciadas por
crianças brancas e negras no interior do sistema educacional têm efeito direto
sobre sua permanência, progressão e desempenho escolar. Dentre as situações e
os processos sociais que condicionam essas distintas experiências, destacam-se
a prática de adjetivação desumanizadora das crianças negras, a omissão de pro-
fessores diante das situações de discriminação sofridas por crianças negras, o

Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 73


estímulo e o tratamento mais afetivo legado à criança branca, além da invisibili-
dade histórica e cultural da população negra nos materiais didáticos.
A melhor compreensão desses – e de outros – mecanismos de reprodução
das desigualdades raciais na educação possibilita a construção de respostas pú-
blicas mais efetivas. Esse é o caso, por exemplo, da Lei n° 10.639/2003 (e das suas
alterações pela Lei n° 11. 645/2008), que estabelece a obrigatoriedade do ensino
da história e da cultura da África e das populações negras no Brasil. O currículo
escolar durante muito tempo relegou à população negra apenas a condição de
subalterna no processo escravista, sendo o lugar de escravo passivo o único que
lhe cabia na história. Mas com a implantação da Lei n° 11. 645/2008 abre-se
a possibilidade de mudanças nas abordagens sobre as contribuições dos povos
africanos – e indígenas – para a constituição da sociedade brasileira.
Outra importante ação afirmativa para a transformação do quadro de desi-
gualdades raciais no país são os programas de reserva de vagas para a população
negra no ensino superior. Isso porque, a despeito do aumento da presença de ne-
gros nas universidades brasileiras nos últimos anos, ainda é enorme a diferença
de representação de brancos e negros nesse segmento de ensino. Além do mais,
essa ampliação do acesso da população negra ao ensino superior ocorreu para-
lelamente à ampliação de vagas nesse segmento de ensino e à própria introdução
de programas de reserva de vagas em algumas universidades, o que sugere que
esse avanço foi causado primordialmente por mudanças institucionais pontuais,
não por mudanças no imaginário social nacional com vistas à construção de
uma sociedade na qual brancos e negros sejam tratados da mesma forma e, por
conseguinte, compitam em condição de igualdade.
Essa desigualdade de tratamento – que gera uma condição de desigualdade
de oportunidade – é ainda mais grave em relação ao acesso das mulheres negras
ao ensino superior. A taxa de crescimento do acesso dessas mulheres é inferior à
taxa apurada para homens do mesmo grupo racial, e, se mantida essa tendência,
pode haver no futuro a inversão da representação de homens e mulheres negras
no ensino superior. Como hipóteses para essa taxa de crescimento desigual, des-
tacam-se as formas de incidência do racismo e do sexismo sobre as trajetórias
familiares, educacionais e profissionais das mulheres negras, que dificultam seu
acesso a melhores condições e oportunidades de vida. Para a compreensão desse

74 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


surpreendente fenômeno, faz-se necessária a realização de estudos que aprofun-
dem essa discussão.
Diante do exposto nestas poucas páginas, estas últimas linhas não poderiam
ser usadas senão para apontar a necessidade da articulação de diferentes ações
públicas para a superação das desigualdades raciais na educação. Nesse processo,
é basilar a melhoria das escolas, principalmente as públicas, pois é nelas que está a
grande maioria das crianças e dos jovens negros. Essa melhoria, entretanto, deve
transcender à tão debatida e almejada qualidade de ensino; ela deve ser também
uma melhoria do ambiente escolar, que o transforme em um espaço no qual a po-
pulação negra sinta seus elementos históricos e culturais respeitados e valorizados.
A reserva de vagas para negros no ensino superior, por sua vez, surge como uma
perspectiva para a juventude negra escolarizada, estratégica para garantir o acesso
da população negra a espaços de poder e, com isso, introduzir nesses espaços um
novo referencial sobre os problemas e desafios do país.

Referências

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Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 75


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76 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


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Notas para a Interpretação das Desigualdades Raciais na Educação 77


Discutindo o Privilégio Racial
[Branco] na Moda de Luxo: imagens
da branquidade em Vogue Brasil

Daniela Novelli

Se a “negritude” configurou-se como um movimento artístico-literário que


buscava valorizar os aspectos positivos da(s) cultura(s) ou da(s) identidade(s)
negra(s), pode-se dizer que o termo “branquidade”, adaptado de whiteness (do
inglês) e de blanchité (do francês), faz referência à tradução material e ideal das
relações sociais racistas favoráveis ao grupo social de brancos/as  (KEBABZA,
2006). Nesse sentido, a escolha desta tradução em português – ao invés de “bran-
quitude” – vem justamente ao encontro da ideia de que este último poderia ser
apenas uma afirmação daquilo que seria positivo em uma cultura “branca”, o que
é perfeitamente contraditório ao conceito desenvolvido aqui. Dentre os princi-
pais conceitos válidos para entender a brancura como “fruto de uma aprendi-
zagem social que repousa sobre a socialização dos indivíduos” (BOUAMAMA;
CORMONT; FOTIA, 2012, p. 72, tradução nossa), estão os de produção discur-
siva, naturalização, violência simbólica e interseccionalidade:
• Produção discursiva: produção que revela um “conjunto de regras anô-
nimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que defini-
ram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica,

79
geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciati-
va” (FOUCAULT, 1987, p. 136). 
• Naturalização: atribuição de qualidades essenciais (biologizantes) aos in-
divíduos para justificar determinadas práticas humanas consolidadas no
senso comum por meio de padrões específicos de comportamento, que
na realidade são construídas socialmente (nas relações interpessoais e hie-
rarquizadas). Ex.: competição, força e intelecto são “naturais” do homem;
fragilidade e delicadeza são “naturais” da mulher (FÁVERO, 2010).
• Violência simbólica: se institui por intermédio da adesão que o domina-
do não pode discordar do dominante (e então da dominação) quando ele
dispõe, para pensá-lo, se pensar ou pensar sua própria relação com ele,
apenas de instrumentos de conhecimento em comum com o dominante
e que, sendo apenas a forma incorporada da relação de dominação, fazem
aparecer essa relação como natural (BOURDIEU, 1998, tradução nossa).
• Interseccionalidade: ferramenta teórica que permite pensar na articula-
ção de várias categorias (gênero, sexualidade, raça/etnia, classe, geração
etc.) para entender um fenômeno discriminatório.

Desta forma, a perspectiva dos estudos da brancura (e da branquidade)


nos convida para uma desnaturalização do corpo [branco] feminino produzi-
do discursivamente pela mídia de moda, proposta por meio da utilização de
análises críticas contemporâneas amparadas nos estudos culturais, de gênero e
pós-coloniais.

A perspectiva dos whitenessstudies (estudos da brancura)

Segundo Ruth Frankenberg (1993), a raça molda a vida das mulheres bran-
cas, da mesma forma que as vidas de homens e mulheres são moldadas por seu
gênero. Em um contexto social no qual “pessoas brancas têm muitas vezes visto
a si mesmas como não-raciais ou racialmente neutras, torna-se crucial olhar a
‘racialidade’ [racialness] da experiência branca” (FRANKENBERG, 1993, p. 1,
tradução nossa). Assim, evitar focalizar o branco é evitar “discutir as diferentes

80 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o pri-
vilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa” (BENTO, 2002, p. 27).
Tal perspectiva aponta para o fato de que a brancura possui um conjun-
to de dimensões ligadas, podendo ser entendida primeiramente como o “lugar
de vantagem estrutural, de privilégio racial”, em seguida como um “ponto de
vista”, um lugar a partir do qual as pessoas brancas olham para si mesmas,
para outros e para a sociedade e ainda como um conjunto de práticas cultu-
rais que são usualmente não marcadas e não nomeadas (FRANKENBERG,
1993). Discutindo sobre o processo de branqueamento no contexto brasileiro,
Bento (2002) afirma que este é um importante aspecto da branquitude, assim
como o medo do branco sobre o negro, os pactos narcísicos entre os brancos
e as possíveis conexões entre a ascensão negra e o branqueamento. Edith Piza
(2002), uma das raras estudiosas brancas brasileiras que se dedicou ao estudo
dos brancos, utiliza a metáfora da “porta de vidro” para representar simbolica-
mente a entrada para a branquidade:

bater contra aparentemente inexistente uma porta de vidro é um impacto


fortíssimo e, depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o
contorno do vidro, a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta
de vidro. Isto resume, em parte, o descobrir-se racializado, quando tudo o
que se fez, leu ou informou (e formou) atitudes e comportamentos diante
das experiências sociais, públicas e principalmente privadas, não incluiu
explicitamente nem a mínima parcela da própria racialidade atribuída ao
outro. (PIZA, 2002, p. 61). 

Em minha recente tese de doutorado1, procurei analisar a produção dis-


cursiva da branquidade a partir do corpo feminino visto em edições francesas e
brasileiras da revista Vogue, um periódico de alta moda e prêt-à-porter de luxo2.
O uso de colchetes no termo “branco” na tese foi retomado neste ensaio (in-
cluindo sua aplicação no plural e/ou no feminino), com o objetivo de chamar a

1
  NOVELLI, Daniela. A branquidade em Vogue (Paris e Brasil): imagens da violência simbólica no
século XXI. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas.
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, 2014. 345 p.
2
 Segmento da “moda de luxo” vendida em Vogue, marcada historicamente pela invenção da Alta
Costura [Haute Couture] na França e mais recentemente pela produção em série e relativamente restrita
de coleções sazonais; abrange ainda importantes setores como o de acessórios e o de perfumes.

Discutindo o Privilégio Racial [Branco] na Moda de Luxo... 81


atenção para a invisibilidade cultural e histórica que o corpo [branco] adquiriu
justamente no processo de construção social da branquidade.

A branquidade na mídia de moda contemporânea

A moda adquiriu um crescimento no âmbito simbólico e foi entendida


não somente como “fenômeno vestimentário de elite, associado à ascensão do
mercantilismo capitalista no Ocidente, ao final da Idade Média” (VILLAÇA,
2007, p. 142), mas como campo privilegiado de práticas e investimentos estéti-
cos, simbólicos, socioculturais, históricos, políticos permeados por complexos
diálogos. Assim, faz-se necessário analisar, explorar e nomear o terreno da bran-
cura, partindo do pressuposto de que não há uma “essência verdadeira” para a
brancura, mas sim construções historicamente contingentes deste lugar social
(NAKAYAMA; KRIZEK, 1995).
As páginas de Vogue são documentos históricos que traduzem representa-
ções imagéticas e efeitos discursivos de diferentes experiências de uma estrutura
social e racial branca, bem como as formas pelas quais o privilégio da raça pode
estar atravessado por outros eixos de diferença e desigualdade – tanto da ordem do
simbólico e do discursivo quanto da ordem do material e do corporal. A própria
dinâmica de intersecção de formas de dominação pela violência simbólica instiga
a retomada do seguinte questionamento: quais seriam as implicações sociais da
circulação do corpo branco e da “naturalização” da brancura no universo do luxo
diante do aparente “esvaziamento” da cor branca como identidade cultural, em
diferentes contextos históricos e políticos (norte-americanos, latino-americanos,
europeus) marcados por diferentes narrativas e modos de visibilidade?
Trata-se de uma excelente questão que deve ser problematizada já nos en-
sinos fundamentais e médios, pois sabe-se que as imagens de moda ocupam um
lugar central no exercício do poder simbólico [branco]. As páginas de revistas
representam o corpo [branco] na mídia, as quais devem ser encaradas como um
“espaço de aprendizado”, uma vez que a brancura (co)produz habitus de maneira
articulada e simultânea a outras formas de dominação de classe e de sexo/gêne-
ro – variáveis em diferentes contextos socioculturais e históricos, influenciando
identidades, maneiras de ver, pensar e agir.

82 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


O valor de ser branco na mídia brasileira não suscita estranhamento e,
muitas vezes, a força da hegemonia branca “se faz presente em discursos identi-
tários que não mencionam raça explicitamente” (SOVIK, 2005, p. 166). Assim,
não parece suficiente valorizar a cultura negra sem discutir o lugar da branqui-
dade nas relações raciais.

Em um país mestiço, os brancos são irrelevantes, pois a questão é de mis-


turar-se, deixar-se misturar, reconhecer-se como produto da mistura, o
que, paradoxalmente, sempre é possível sem deixar de ser branco. Pois ser
branco no Brasil é ter a pele relativamente clara, funcionando como uma
espécie de senha visual e silenciosa para entrar em lugares de acesso restri-
to. O branco aparece como problema, hoje, porque a militância cultural e
política negra e as estatísticas oficiais informam que o Brasil não é só um
país de mestiços, mas de negros-e-pardos, de um lado, e de brancos, do
outro (SOVIK, 2005, p. 171). 

Em 2006, a versão brasileira de Vogue publicou uma edição especial in-


teiramente dedicada às férias de julho, mostrando alguns destinos visitados pe-
las convidadas da revista, mulheres reconhecidas no campo da moda brasileira
e que atuam ou atuaram no mercado internacional: Carolina Overmeer (cor-
respondente de Vogue Brasil em Paris), que viajou para a Índia; Cássia Ávilla
(ex-modelo), que foi para Portugal; Cris Barros (estilista), que visitou Bue-
nos Aires e Petê Marchetti (consultora de moda), que viajou para a África do
Sul. Inspirados justamente nesses países, o fotógrafo Daniel Klajmic e a edito-
ra de moda Chiara Gadaleta Klajmic produziram um editorial de moda para
mostrá-los a partir do olhar de Vogue.
Segundo a redatora-chefe Patricia Carta, Vogue traz “o olhar sofisticado
de nossas convidadas e a hospedagem em hotéis e resorts que são verdadeiros
paraísos na terra – seja lá qual for a sua imagem de paraíso” (CARTA, 2006,
p. 11), sendo um bom exemplo a partir do qual significantes plásticos, icônicos
e linguísticos passam a fazer sentido no campo da moda se interpretados a par-
tir de um ethos constituído pela branquidade – e somente a partir dela. Nesse
sentido, a transmissão, a comunhão e mesmo a diferenciação devem ser vistas
como estratégias discursivas nas quais os “signos constitutivos do corpo perce-
bido, esses produtos de uma fabricação propriamente cultural têm como efeito
a distinção dos grupos sob a relação do grau de cultura, quer dizer distante do

Discutindo o Privilégio Racial [Branco] na Moda de Luxo... 83


natural, parecem estar fundados no natural” (BOURDIEU, 1979, p. 214, tradu-
ção nossa). Pode-se ainda ler a frase “Brincadeira étnica para arrasar no safári”
no editorial sobre a África do Sul, assim como “Um caleidoscópio de cores, teci-
dos e volumes” sobre a “Índia”. Ou seja, para além da questão do “autoexotismo”
na moda brasileira, tais representações remetem à hegemonia do corpo branco
– e mesmo à sua suposta “neutralidade” – no discurso da moda contemporânea
e logicamente de Vogue.
O que se percebe é que a brancura, como elemento constituinte da branqui-
dade, é uma estrutura social e mental que facilita a reprodução do poder bran-
co.  O padrão corporal europeu [branco] exerce uma influência determinante
na produção das capas de Vogue Brasil na primeira década do século XXI, uma
vez que essas modelos brasileiras de projeção mundial – muitas delas gaúchas
e de descendência europeia – ocupam lugar central. Brancas, jovens, sensuais
e extremamente magras: as modelos brasileiras que se enquadram no padrão
europeu de beleza acabam personificando o corpo [branco] da moda e do luxo,
contribuindo enormemente para determinada percepção estética corporal por
parte das leitoras brasileiras de Vogue.
Segundo Dulcília Buitoni (2009), a imprensa feminina brasileira colabora
para a mitificação e a mistificação do ser feminino, sendo a “mulher de papel”
retratada no Brasil conforme padrões estrangeiros – e por isso a real mulher
brasileira não apareceria nas páginas de revistas brasileiras ao longo do século
XX, entre elas Capricho, Manequim, Cláudia, Mulherio, Bárbara, Atrevida, Ana
Maria e Minha Novela. Buitoni (2009, p. 23) questiona em que medida “a im-
prensa, como fator cultural, difundiu conteúdos que influíram na formação da
consciência da mulher”.

A mulher branca, sorridente, é rótulo e marca do produto chamado im-


prensa feminina. Verdadeira mulher de papel que conserva fracos pontos
de contato com a realidade. Num país de mestiços, a negra raramente sur-
ge em revistas femininas, a não ser como manequim exótico [...]. A mu-
lher brasileira mesmo não frequenta as páginas da imprensa a ela dedicada
(BUITONI, 2009, p. 209). 

Seu estudo contribui para mostrar que a produção discursiva da branqui-


dade não é produto exclusivo de Vogue (um periódico voltado para a elite de

84 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


nosso país), sendo também objeto da imprensa de massa feminina – fato que
comprova a manutenção de um poderoso status quo que tem na mulher bran-
ca seu bem simbólico mais precioso. Afinal, a validade de pensar a raça como
linguagem reside no fato de que os significantes fazem referência a sistemas e
conceitos de classificação no seio de uma cultura, no contexto de práticas que
consistem em “produzir sentidos”.

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Discutindo o Privilégio Racial [Branco] na Moda de Luxo... 85


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VILLAÇA, Nízia. A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. Barueri, SP:


Estação das Letras Editora, 2007.

VOGUE BRASIL. São Paulo, Carta Editorial, n. 334, 2006.

86 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


O Enigma das Interseções:
classe, “raça”, sexo, sexualidade.
A formação dos impérios transatlânticos
do século Xvi ao Xix1

Verena Stolke

Dois mundos Deus colocou nas mãos de nosso soberano católico, e o Novo
não se assemelha ao Velho, nem em seu clima, nem em seus hábitos, nem
em seus habitantes; ele tem um outro corpo legislativo, outro modo de go-
verno, sempre porém com o fim de torná-los semelhantes. Na Velha Espa-
nha apenas uma casta de homens é reconhecida; na Nova, muitas e diferen-
tes (Arcebispo Francisco A. Lorenzana do México, de 1766 a 1772, citad o
em Ilona KATZEW, 1996, p. 8).

Abertura

Em 1752 um Dr. Tembra do México emitiu a seguinte opinião sobre se um


matrimônio desigual poderia ou não ser celebrado sem o consentimento dos pais:

Se a donzela deflorada por uma promessa de casamento é tão inferior em


status, que cause maior desonra à linhagem dele, no caso de ele se casar
com ela, do que aquela que recairia sobre ela no caso de ela permanecer
deflorada (como quando um Duque, Conde, Marquês ou Cavalheiro de
conhecida nobreza seduz uma menina mulata, uma china [descendente da

  Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 14; v. 1; janeiro-abril de 2006.


1

89
mistura de negro e indígena com negro2], uma coyota [descendente de ín-
dio e mestiça3] ou a filha de um carrasco, um açougueiro, um curtumeiro)...
Neste caso, ele não deverá se casar com ela porque a injúria para ele e para
toda sua linhagem seria maior do que aquela em que a donzela incorreria
ao permanecer sem salvação, e deve-se sempre escolher o mal menor [...]
pois o último caso é uma ofensa individual e não causa danos para a Repú-
blica , enquanto o primeiro é uma ofensa de tal gravidade que irá denegrir
uma família inteira, desonrar uma pessoa proeminente, difamar e manchar
toda uma linhagem de nobres e destruir algo que oferece esplendor e honra
à República. Mas se a donzela seduzida é de status apenas levemente infe-
rior, de diferença não muito marcante, de forma que sua inferioridade não
cause uma desonra marcante para a família, então, se o sedutor não desejar
e compensá-la, ou se ela simplesmente rejeitar a compensação na forma
de doação, ele deve ser forçado a se casar com ela; porque nesse caso sua
injúria pode prevalecer sobre a ofensa infligida à família do sedutor, já que
eles não sofreriam um dano grave com o casamento, enquanto ela sofreria
se não se casasse (Citado por STOLCKE, 1974, p. 101).

Esta é uma das mais eloquentes ilustrações das interseções que se desen-
volveram no império colonial espanhol entre relações de gênero, concepções
de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. Na sociedad e
colonial o corpo sexuado tornou-se fundamental na estruturação do tecido só-
cio-cultural e ético engendrado pela conquista portuguesa e espanhola e pela
subsequente colonização do Novo Mundo. Até recentemente, porém, as/os pes-
quisadoras/es em geral deram pouca atenção para o papel crucial que o controle
da sexualidade das mulheres, por parte do Estado, da Igreja e o domínio dos
homens, teve na construção da sociedade colonial. Neste artigo, vou enfocar
minha atenção na forma como as múltiplas normas morais, sociais, jurídicas
e religiosas relativas à sexualidade e às relaç ões entre mulheres e homens inte-
ragiram dialeticamente com desigualdades só cio- política s, na época em que
a sociedade colonial estava se estruturando política e simbolicamente. A expe-
riência colonial Ibérica permite assim transcender as justaposições e a literações
convencionais dos critérios de identificaçã o de classe, raça e gênero. O gênero
não trata de mulheres como tais. Refere-se a os conceitos que prevalecem em
uma sociedade sobre o que são as mulheres em relação aos homens enquanto

2
  Nota da autora.
3
  Nota da autora.

90 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


seres humanos sexualmente identificados. O Novo Mundo proporciona um
exemplo especialmente claro das interseções dinâmicas entre as idéias e os ideais
contemporâneos sobre sexo/gênero, raça/etnicidade e classe social que se refle-
tem nos novos sistemas de identificação, classificação e discriminação social que
se forjaram na consolidaçã o da sociedade colonial íbero-americana. Torna-se
exemplo também das consequências que a moralidad e sexual e os estereótipos
de gênero prevalentes tiveram para todas as esferas da vida das mulheres.
O império colonial espanhol e seu correspondente português foram os pio-
neiros na expansão européia na África e na América, o que para Adam Smith foi
o evento mais significa tivo da história humana. Seus impérios sobreviveram, de
maneira mais homogênea do que divergente, até o século XIX, quando seus su-
cessores, os impérios inglês e francês, foram aos poucos adquirindo sua fisiono-
mia definitiva. Até 1815, Portugal e Espanha não só monopolizaram a expansão
marítima da Europa, mas também ensinaram ao Velho Mundo como conquistar
e colonizar vastos territórios no Novo Mundo e tornar lucrativos seus enormes
recursos naturais e humanos. As colônias espanholas no México e no Peru fo-
ram as primeiras colônias “mistas”, onde uma minoria de colonos ibéricos criou
um tipo inteiramente novo, até então desconhecido, de sociedade, composta de
toda uma gama de categorias incomuns de povos, resultante da subjugação da
população indígena e da exploração de enorme contingente de escravos negros
importados da África .
A prática histórica que se tornou convencional foi explorar as sociedades
coloniais america nas de maneira isolada . Mas os contrastes entre os projetos e
as experiências de espanhóis e portugueses, de um lado, e de ingleses e franceses,
de outro, são mais marcantes do que foram suas óbvias semelhanças (CANNY e
PAGDEN, 1987; PAGDEN, 1995). No Brasil, Portugal criou a primeira planta-
tion, cuja mão-de-obra foi formada pelo maior contingente de escravos africa-
nos já transportado para as Américas, sob o controle de uma pequena minoria
de colonizadores europeus que, como fizeram os espanhóis em suas colônias
“mistas”, se esforçou para impor sua civilização metropolitana, suas instituições
e sua cosmologia. Apesar das dificuldades de comunicação e controle, dadas as
distâncias enormes que separavam os assentamentos coloniais de suas metró-
poles, Portugal e Espanha se obrigaram a um rígido sistema de administração

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 91


direta que contrastou com o posterior governo colonial britânico, muito mais
solto (FIELDHOUSE, 1982).
O principal objetivo da empresa colonial era sem dúvida lucro pessoal e
riqueza nacional. Mas num tempo em que a religião era inseparável da política,
a Igreja Católica teve um papel tão importante quanto o da Coroa na formaçã o
da política colonial das Américas portuguesa e espanhola, e também nas rela-
ções com os povos indígenas, até então prática ou totalmente desconhecidos, e
com o contingente de escravos africanos que crescia de forma acelerada . Uma
perspectiva transatlântica é indispensável para se compreender e levar em conta
o padrão sócio-político que moldava esses novos “tipos” de povos, bem como o
projeto político e econômico de colonizaçã o e exploração de recursos humanos
e naturais nos novos territórios nos séculos que se seguiram à conquista. Isso
porque tal padrão era o resultado de uma interação dinâmica entre os princí-
pios administrativos metropolitanos e os valores espiritual-religiosos e sociais
relativos a honra e hierarquia social, sustentados por ideais de gênero relati-
vos ao casamento e à moralidade sexual. O código moral universalista da Igreja
Católica, reforçado pela Contra-Reforma, associou explicitamente virgindade e
castidade femininas, honra familiar e proeminência social, sempre de acordo
com a doutrina religiosa da limpieza de sangre. Essa doutrina estruturou políti-
ca, moral e simbolicamente as identidad es e hierarquias sociais, bem como os
seus modos de reprodução, mas também estab eleceu novos dilemas políticos e
conceituais na sociedade colonial emergente. Para situar a questão de gênero no
contexto colonial português e espanhol, é necessário examinar uma dupla cone-
xão sócio-política histórica. A conquista americana não aconteceu num vácuo
cultural histórico, mas ela deve muito ao passado cultural e social dos próprios
colonizadores ibéricos. E, por serem construtos sócio-políticos, os estereótipos
e as relações de gênero não podem ser dissociados do ambiente sócio-político e
conceitual mais amplo em que se desenvolveram.

O sexo da conquista

Nos primeiros anos da conquista, colonos ibéricos, oficiais da Coroa e


até o clero se apropriaram de terras indígenas, submeteram a populaçã o local

92 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


a trabalhos forçados nas minas e a serviços pessoais de vários tipos, empenha-
ram-se em colonizar suas mentes e sujeitaram mulheres indígenas a todas as
maneiras de abuso sexual, o que teve um enorme custo humano e social. Uma
das consequências disso foram os deslocamentos em massa e o dramático de-
clínio da populaçã o indígena, resultantes da conquista militar, da disseminação
de doenças trazidas pelos colonos e da fome, o que acabou por destruir as bases
da organizaçã o sócioeconômica local. Outra consequência quase imediata da
conquista foi a mestiçagem,4 resultado da exploraçã o sexual feita pelos coloni-
zadores. Em sua Nueva crónica y buen gobierno, relato ímpar escrito no início do
século XVII a fim de chamar a atenção do Rei Phillip para a brutalidade e a in-
competência dos administradores, o etnógrafo andino Guamán Poma de Ayala,
de pai espanhol e descendência materna da nobreza inca , fornece uma descriçã
o detalhada da organização social, econômica e política dos Andes, enquanto
denuncia a destruição que encomenderos, mineiros, administradores e o clero
espanhol estavam promovendo entre a população indígena. Os quatrocentos de-
senhos que ilustram a crônica retratam cenas chocantes de abuso sexual e traba
lhos forçados de mulheres indígenas sob o jugo de oficiais da Coroa, colonos e
missionários (ADORNO e BOSERUP, 2003; POMA DE AYALA, 1980).
No século XVII estava claro que o primeiro projeto da Coroa de estabelecer
duas repúblicas distintas, de índios e de hispânicos, havia fracassado. Os contatos
estreitos que resultaram da exploraçã o da mão-de-obra, dos serviços pessoais, e
especialmente dos abusos sexuais de mulheres indígenas e africanas pelos colo-
nos europeus, produziram um número crescente de mestizos (filhos de hispânicos
com índias) e mulatos (filhos de hispânicos com africanas). A sociedad e colonial
espanhola logo se tornou um confuso mosaico humano formado por desigualda-
des sócio-econômicas e legais e por diferenças étnicas perceptíveis.
Ao contrário da América espanhola, o Brasil foi colonizado de forma
muito esparsa até o fim do século XVI, quan do as fazendas de cana-de-açúcar,
primeiramente no Nordeste, começaram a absorver um número crescente de
escravos africanos. Logo em seguida começa a exploraçã o sexual de escravas,

4
  É inadequado o uso do termo miscigenação para a relação sexual entre colonos europeus e a população
indígena nos dois primeiros séculos após a conquista porque, como mostro mais abaixo, a categoria
moderna de “raça”, e portanto a idéia da mistura “racial” a que a miscigenação se refere, só apareceram
no início do século XVIII.

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 93


no início ainda pouco numerosas, por seus proprietários. A capitania da Bahia,
ampla região que circunscreve a Baía de Todos os Santos, dominada pela cidade
de Salvador, capital da colônia brasileira de 1549 a 1763, tornou-se a primeira
e mais importante região de posse de escravos das Américas. Em meados do
século XVI as fazendas de cana em expansão no Recôncavo Baiano se torna-
ram um importante terminal do tráfico de escravos do Atlântico. A mudança do
trabalho escravo de índios para africanos teve razões não só econômicas como
também geopolíticas e culturais. Escravos africanos se firmaram como uma for-
ça de trabalho mais produtiva, por estarem disponíveis em abundância e por se
sujeitarem a uma disciplina rígida, enquanto a relativamente pequena popula-
ção indígena fugia muito facilmente pela vastidão da terra. Não só escravos mas
também escravas trabalhavam nos moinhos de cana e nos campos, sempre sob
vigilância masculina, prestando também serviços domésticos na casa-grande,
onde se tornavam presas das aventuras sexuais de seus senhores (SCHWARTZ,
1985). O retrato seminal, feito por Gilberto Freyre, da benevolência patriarcal
dos senhores em relação a seus escravos, segundo a qual a exploraçã o sexual
de escravas por colonos portugueses evidenciava uma surpreendente ausência
de preconceito, que distinguia o Brasil da América espanhola colonial, acabou
se mostrando uma falácia (FREYRE, 1933; e SCHWARTZ, 1985). No Brasil, de
forma semelhante ao que aconteceu na América espanhola, a população em ve-
loz crescimento de mulatos correspondia na sua maioria a filhos de fazendeiros
da cana-de-açúcar; estes engravidavam suas escravas domésticas, raramente se
mostrando dispostos a legitimá-las pelo casamento. Como apontou Roger Basti-
de, “raça ” implicava “sexo”. Quando a mestiçagem acontece dentro do casamen-
to ela de fato indica ausência de preconceito. Mas do modo como a mestiçagem
ocorreu no Brasil, ela transformou toda uma raça em prostitutas (BASTIDE,
1959, p. 10-11.).

Antecedentes metropolitanos

Misturas étnicas nã o eram novidade para os colonizadores portugueses e


espanhóis. A descoberta do Novo Mundo coincidiu com a queda da prevalência
muçulmana em Granada e com a conversão compulsória ou a expulsão de ju-
deus e muçulmanos, processo que arrematou a conquista cristã e a unificaçã o

94 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


político-religiosa da Espanha. Um século depois (1609-1614), os moriscos (mu-
çulmanos convertidos) foram igualmente expulsos.
As inusitadas categorias sócio-étnicas que surgiram do encontro colonial
entraram em contradição, no entanto, com os ideais medievais metropolitanos
de honrarias, proeminências e discriminações sociais típicas da vida corporati-
va. A diferença cultural-moral dos indígenas desafiou as certezas cosmológicas e
teológicas dos administradores das colônias, e os filhos misturados dos colonos
estabeleceram novos dilemas legais, políticos e religiosos. Primeiro os coloni-
zadores empregaram noções culturais da metrópole para entender a realidade
americana. Com o tempo, aquela dinâmica social sem precedentes da sociedade
colonial modificou noções metropolitanas de nobreza, honra social e hierarquia,
família e moralidade sexual (SCHWARTZ e SALOMON, 1999).

Limpieza de sangre – “sangue” de gênero

A doutrina teológica da limpieza de sangre, que estruturou a sociedade ibé-


rica dos fins da Idade Média, tinha uma posição central entre os valores sócio-
-culturais metropolitanos. A noção da limpieza de sangre ganhava forma a par-
tir da ideologia genealógica que funda mentava o status e as honrarias sociais no
nascimento legítimo como prova de “sangue” puro, garantido pelo controle dos
homens sobre a pureza sexual das mulheres, para assegurar sua virgindade antes
do casamento e a castidade depois. A linguagem da limpieza de sangre prevaleceu
nas Américas coloniais portuguesa e espanhola seguramente até o século XIX. Seu
sentido simbólico na sociedad e colonial começou a mudar radicalmente, porém,
já no século XVIII. Muito já foi escrito sobre a aplicação dos estatutos de pureza de
sangue pela Inquisição espanhola e sobre o ambiente de desconfiança e apreensão
que as investigaç ões genealógicas provocaram na Península Ibérica (SICROFF,
1979; SANGUINETTI, 2000, p. 106; e ZÚÑIGA, 1999). Muito menos, porém, se
conhece quanto às origens e ao sentido simbólico da limpieza de sangre.
A doutrina ibérica da limpieza de sangre era algo sui generis na Europa no
fim da Idade Média; trata-se do sistema normativo legal e simbólico que possibi-
litou o combate a crimes contra a cristandade (os principais sendo o judaísmo e
o islamismo), introduzido na Península no alvorecer da modernidade. A pureza

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 95


de sangue era entendida como a qualidade de não ter como ancestral um mou-
ro, um judeu, um herético ou um penitenciado (condenado pela Inquisição).
As atitudes, justificações e políticas de inclusão e exclusão típicas desse final de
Idade Média foram definidas em termos religioso-culturais, relativos não só à
lei canônica como também à própria vontade de Deus, o sangue puro autenti-
cando uma fé cristã genuína e inabalável. A oposiçã o entre pureza e impureza,
que não previa gradação de pureza espiritual, referia-se a qualidades morais.
O sangue impuro era entendido como aquele que carregava a mancha indelé-
vel da descendência dos judeus, que mataram Jesus Cristo, e dos muçulmanos,
que se recusaram a reconhecê-lo como filho de Deus. O sangue era, portanto,
concebido como um veículo de pureza da fé, que transmitia vícios e virtudes
religioso-morais de uma geração para outra (ZÚÑIGA, 1999, p. 429-434). A pu-
reza d o sangue era avaliada através d e investigações genealógicas que procura-
vam determinar a fé religiosa num contexto em que o catolicismo, considerado
a única fé verdadeira, era concebido como a origem suprema do significado e do
conhecimento da ordem da sociedade e do universo. Uma verdadeira obsessão
com a genealogia enquanto prova da descendência de ancestrais cristãos atra-
vés das gerações impôs um ônus especial à conduta sexual das mulheres cristãs
como garantia de origem pura e legítima.
A Inquisição espanhola, como a única Corte com jurisdição sobre a lim-
pieza de sangre, fazia a mediaçã o entre os teóricos da exclusão e o povo, po-
pularizando a ideia de que todos os convertidos eram suspeitos. A Inquisição
foi criada por uma bula promulgada pelo papa Sisto IV em 1478, autorizan-
do os monarcas católicos a nomear padres p ra investigar e punir os heréticos,
especialmente os convertidos suspeitos de prática clandestina do judaísmo
(KAMEN, 1985; e BOXER, 1978).
Já em 1348 as leis espanholas Las Siete Partidas haviam de c larado os ju-
deus como uma naçã o “estrangeira”. A esse estigma seguiram-se várias leis que
revelavam a crescente animosidade aos judeus, como em toda a Europa. Até o
século XIV judeus e muçulmanos viviam pacificamente na Península Ibérica,
geralmente em estreita associação com a Corte e com a nobreza. Mas então uma
onda de ataques às juderías (bairros judeus) e de massacres sangrentos de judeus
começou a se espalhar por Castela, Aragão, Catalunha, Valência e Sevilha, em

96 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


meio a novas tensões políticas entre nobres e membros da Corte (NIRENBERG,
2001). Para escapar da perseguição, da perda de propriedade e até da morte,
os judeus se viram obrigados, ou a se converter ao cristianismo, ou a procurar
refúgio em Portugal, onde a atmosfera em relação aos judeus era menos repres-
siva. Em 1449, após uma nova revolta popular, o primeiro estatuto de pureza de
sangue foi adotado pelo Concílio de Toledo. Dessa vez a ira popular foi dirigida
contra cristãos novos (judeus convertidos) abastados, cujas propriedades foram
confiscadas. Considera-se que essa revolta foi detonada por um novo e pesado
imposto cobrado pela Coroa, que alegou ter sido levada a isso por um mercador
convertido muito influente. Em 1536 um ramo português da Inquisição foi fun-
dado e passou a perseguir judeus convertidos ao cristianismo.
“Provas de sangue” começaram a ser exigidas, de modo que qualquer cargo
civil, eclesiástico ou militar com alguma distinção social ficava restrito a “cris-
tãos velhos”. Alianças via matrimônio entre cristãos velhos e cristãos novos eram
um meio para os últimos adquirirem status social disfarçando suas origens. Os
estatutos da limpieza de sangre exigiam também dos cristãos a apresentação da
prova de sangue para poderem se casar. A Inquisição, no entanto, podia cance-
lar as autorizações de casamento sempre que o passado das famílias envolvidas
desse margem a dúvidas. Consequentemente, qualquer pessoa nascida fora do
casamento se tornava suspeita de impureza (CARNEIRO, 1988, p. 99).
Obedecendo aos preceitos cristãos, a conversão ao catolicismo, tido como
a única verdadeira fé, poderia apagar a mancha que estivera impressa nos
não-crentes. Através do batismo, judeus e muçulmanos poderiam equivaler aos
gentios (Diaz de Montalvo, citado por KAMEN, 1985, p. 158). Esses gentios
eram entendidos não como pagos, mas como genuínos neófitos, por terem sido
ignorantes em relação às leis de Deus até a conversão.
Os estatutos da limpieza de sangre não permaneceram livres de contesta-
ção. Os conflitos entre oficiais da Inquisição, e também entre as elites, sobre a
aplicação dos estatutos eram intensos, porque a nobreza, tanto quanto as pessoas
comuns, costumava antes realizar seus casamentos também com muçulmanos
e judeus; os cristãos velhos genuínos acabaram assim se tornando muito raros.
No século XVII, os desastrosos efeitos políticos das investigações sobre a pureza
de sangue para a unidade político-religioso-nacional do império espanhol eram

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 97


cada vez mais evidentes para muitos pensadores. Os opositores alertavam sobre
as consequências econômicas e demográficas negativas dos estatutos, já que um
grande número de convertidos fugia da Península. Eles condenavam os estatu-
tos de limpieza de sangre por considerá-los contrários à lei civil ou à canônica, e
também à tradiçã o bíblica, ao negarem aos convertidos o benefício da redenção
pela purificaçã o do batismo. As opiniões entraram em choque: a pureza de san-
gue seria uma questão de prática religiosa ou se referiria a algum tipo de traço
inato, essencial? Apesar dessa discussão, no entanto, tornou-se impossível para
a Espanha se livrar daquilo que se tornou uma ansiedade obsessiva relativa a
honrarias e distinções sociais, intensifica ndo as preocupações com o casamen-
to, com a legitimidade e consequentemente com o controle sobre os corpos das
mulheres (SICROFF, 1979, p. 259-342).
A Inquisição espanhola estava em seu apogeu no século XVII. Em Portu-
gal, o Santo Ofício foi dissolvido em meados do século XVIII, e a distinção entre
cristãos velhos e novos foi abolida em 1773 pelas reformas pombalinas. Na Es-
panha dos Bourbons, a Inquisição sobreviveu até o início do século XIX, quando
também as provas de sangue deixaram de ser exigida s para o casamento.

Velhas idéias no Novo Mundo

As repercussões das idéias metropolitanas de pureza de sangue no mun-


do colonial são mais bem documentadas nas colônias espanholas do que no
Brasil, embora a preocupaçã o com a limpieza de sangre tenha sido parte do
cotidiano em ambos os impérios coloniais. De qualquer forma, a Inquisiçã
o portuguesa nunca estabeleceu um tribunal em sua colônia; apenas enviava
comissários em visitas ocasionais (BOXER, 1978, p. 85). Desde o início, nem
a Espanha nem Portugal permitiram a “mouros, judeus, seus filhos, ciganos,
nem [a] qualquer pessoa em desacordo com a Igreja” que passasse pelas Índias
Ocidentais, embora um número não conhecido de cristãos novos tenha de fato
ido para a América. Estes foram particularmente para o Brasil, onde encontra-
ram uma discriminação prevista em lei, porém mais amena na prática, tendo
assim maiores chances de passar como cristãos velhos e ascender na escala
social (CARNEIRO, 1988, p. 195 et seq).

98 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Nas colônias ibéricas, a doutrina da limpieza de sangre permaneceu se re-
ferindo a uma qualidade cultural-religiosa até o século XVIII. Estudiosos das
sociedades coloniais portuguesa e espanhola tenderam, no entanto, a interpretar
a limpieza de sangre como uma ideologia da pureza racial e da exclusão desde o
início da colonização, sendo os termos raça, etnia e identidade étnica intercam-
biáveis em boa parte da literatura do império.5 Na América espanhola a obsessão
com a pureza de sangue esteve em seu apogeu no século XVIII, quando final-
mente sofreu uma importante mudança de significado, precisamente quando
estava perdendo força na metrópole, onde a intensificação do poder real, o ra-
cionalismo e as políticas anticlericais, em Lisboa e Madri, colaboraram, depois
de 1750, para reduzir o poder e a influência da Inquisição (BOXER, 1978, p. 92).
Em suas análises dos sistemas de classificação e estratificação social na so-
ciedade colonial em desenvolvimento, e suas implicações sobre o gênero, alguns
pesquisadores têm privilegiado a raça e/ou a classe social como princípio estru-
turador dominante.6 Quanto a isso, é reveladora a recente análise que Ann Twi-
nam (1999) fez de petições de legitimação do século XVIII, dirigidas à adminis-
tração colonial, em seu estudo sobre a dinâmica das honras sociais, casamento,
legitimidade e gênero na América colonial espanhola. Pessoas de nascimento
ilegítimo sofriam discriminação social por conta das incertezas que cercavam
sua limpieza de sangre. Twinam teve o grande mérito de prestar atenção aos
precedentes metropolitanos das noções coloniais de identificação e honra social.
Ela indica que “no século XVIII o elo entre limpieza , legitimidade e honra era
plenamente institucionalizado, já que as tradições discriminatórias da história
espanhola haviam sido absorvidas” (1999, p. 47). Mesmo assim, ela não deixa
claro o sentido que o “sangue” tinha a essa altura na sociedade colonial. Ela na
verdad e usa as noções de raça e de limpieza de sangre indistintamente, como
acontece quando afirma que os estatutos de pureza de sangue “impediam os
ilegítimos e os de raça mista de assumirem cargos” na Espanha, já nos fins da
Idad e Média (TWINAM, 1999, p. 47). Patricia Seed (1988) ao contrário, mostra

5
  Kamen sugere igualmente para a Península Ibérica que aquilo que começou como discriminação
religiosa e cultural se transformou, em meados do século XVI, em “uma doutrina racista do pecado
original da mais repulsiva espécie” (KAMEN, 1985, p. 158).
6
  Susan SOCOLOW, 1978; Silvia ARROM, 1985; SOCOLOW, 1987; Irene SILVERBLATT, 1987; Patricia
SEED, 1988; Asunción LAVRIN, 1989; Guiomar DUEÑAS VARGAS, 1996; e María Imelda RAMIREZ,
2000.

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 99


que no Vice-Reinado do México, nos dois primeiros séculos após a conquista,
a oposiçã o pré-nupcial dos pais ocorria predominantemente entre grupos de
hispânicos e crioulos sócio-economicamente próximos, por motivos de saúde,
enquanto a limpieza de sangre não era questão própria a uma sociedade estru-
turada pela raça . Só no fim do século XVIII, quando a legislação real exigiu
explicitamente a prova da limpieza de sangre para que a oposição dos pais ao
casamento se efetivasse, os motivos para a disputa eram, aí sim, a disparidade
racial (SEED, 1988, p. 330; e ARDANAZ, 1977). Nos anos 1980, em mais uma
controvérsia sobre a estrutura social colonial, defensores da visão tradicional
de que a identidade étnica condicionava o posicionamento social do indivíduo
nos últimos tempos da sociedad e colonial criticaram historiadores que, como
Seed, sustentavam que classe teria se tornado, na época, tão ou mais importante
que raça (Juan Carlos GARAVAGLIA e GROSSO, 1994, p. 39-42; e ARROM,
1985). Schwartz e Salomon, assim como Zúñiga, são notáveis exceções a essa
tendência a-histórica geral de interpretar a doutrina da limpieza de sangre como
ideologia racial. Eles insistiram, com razão, em afirmar que, nos primeiros tem-
pos da era colonial, o uso da linguagem genealógica de “sangue” e “nascimento”
para definir fronteiras sociais precisa ser diferenciad do racismo moderno, que
só apa receu no século XVIII (SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p. 443-478;
SCHWARTZ, 1995; e ZÚÑIGA, 1999).
Por uma série de razões, nada há de trivial na compreensão dos sentidos
simbólicos das categorias de posicionamento social que se desenvolveram na so-
ciedade colonial ibérica sobre o pano de fundo de seus precedentes metropolita-
nos. Primeiro porque a análise histórica corre o risco do anacronismo ao aplicar
ao passado sentidos culturais do presente. As categorias de posicionamento que
eu examinei não só possibilitavam a identificação e o tratamento da população
indígena e dos escravos africanos, junto com seus filhos “misturados”, e não só
limitavam suas chances de ascensão social de forma peculiar. Elas tinham tam-
bém consequências imediatas para as relações de gênero. Conforme argumenta-
rei abaixo, na sociedade colonial ibérica durante os dois primeiros séculos após a
conquista, a doutrina da limpieza de sangre era um a forma cultural-religiosa de
posicionamento social e de discriminação. Isso não torna a hierarquia de honra-
rias da época nem melhor nem pior, em termos morais, do que o racismo, mas
põe em destaque seu contexto histórico específico. Mesmo quando pesquisadores

100 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


usam o controverso termo raça num sentido mais descritivo do que analítico,
isso se torna historicamente temerário por esquivar a questão fundamental so-
bre como os povos da América entendiam a identidade e a exclusão social de sua
própria época.
Segundo porque os modos de classificação e identificação social que estru-
turam uma sociedad e determinam também a forma pela qual sua reprodução
social é organizada; o sentido simbólico com o qual a limpieza de sangre era
estabelecida determinava a maneira pela qual as concepções e as relações en-
tre homens e mulheres eram construídas sócio-politicamente. Como mostrarei
abaixo, sempre que o status social tem por base o “ nascimento” , o “ sangue” ,
ou seja, a descendência, em vez de méritos ou aquisições sócio-econômicas indi-
viduais, o que se torna decisivo para os homens em suas disputas por honrarias
sociais são as mulheres e o controle de sua sexualidade. Só as mulheres, afinal,
poderiam, nessas circunstâncias, certificar que o nascimento era legítimo. Como
diz o velho adágio, mater semper certa est. Finalmente, interpretar como racis-
ta qualquer ideologia que fundamenta qualidade e status social no nascimento,
na genealogia, na linhagem ou na descendência nos levaria, em última análise,
à insustentável conclusão de que todas as sociedad es pré-modernas, incluin-
do aquelas tradicion lmente estudadas por antropólogos, eram organizadas de
acordo com a raça (NIRENBERG, 2000, p. 42; e SCHWARTZ, 1995, p. 189).

Os novos povos da América

Ideias ibéricas e ideais de posicionamento social eram, no entanto, quase


imediatamente desafiados no Novo Mundo. Ao contrário do que ac ontecia na
Península Ibérica, nas colônias americanas o jogo entre a metafísica do san-
gue e as funções sócio-econômicas promoveram uma gradaçã o das posições
sociais em vários níveis, ao invés de uma polaridad e estrita entre status social
puro ou impuro.
Os povos indígenas não se encaixaram facilmente no esquema classificató-
rio cultural-religioso da limpieza de sangre e muito menos os filhos misturados
dos colonos. Os índios eram formalmente considerados vassalos da Coroa, mas
se distinguiam dos conquistadores e colonos espanhóis em sua conduta moral

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 101


e em sua crença, sistemas que conflitavam com preceitos religioso-morais cris-
tãos. Já no século XVI a Igreja e as Coroas ibéricas proibiram a escravização
de índios, uma nova categoria inventada pelos colonizadores. Sendo ignorantes
em relação às escrituras sagradas, eles eram vistos como menores dependentes,
mais ou menos como as mulheres, que dependiam da proteção e da orientação,
ou seja, do controle, de seus homens. As almas pequeñas dos índios precisavam
da tutela da Coroa e da Igreja, que se tornavam responsáveis por instruí-los na
única verdadeira fé (PAGDEN, 1982; e GUSDORF, 1972).
Em termos legais, os povos originais da América espanhola e seus descen-
dentes desfrutaram da qualidade de gentios conferida a eles pela Coroa. Como
estab eleceu um decreto real em 1697, sua “pureza de sangue [...] sem mistura ou
infecção de outro grupo repudiado” reservava- lhes todas as prerrogativas, dig-
nidades e honras desfrutadas na Espanha por aqueles que tinham sangue puro.
As escolas deveriam se estabelecer para ensiná-los a língua castelhana, e eles
deveriam ser evangelizados (KONETZKE, 1962, p. 66-69 e 21).7 O fenótipo era
irrelevante na época para definir a posição social. O que importava eram crenças
religiosas e condutas morais. Só os índios que se recusavam a se converter ao
cristianismo tinham sangue impuro, podendo então ser escravizados.
No Brasil, o status formal da população indígena é menos claro na pes-
quisa acadêmica disponível. No Brasil português, os índios parecem não ter re-
cebido a atenção que seus irmãos receberam na América colonial espanhola,
possivelmente porque, com o aumento do tráfico de escravos, sua importância
como força de trabalho em potencial declinou muito mais cedo do que no caso
de escravos africanos. Inicialmente a Coroa e a Igreja protegeram-nos da es-
cravidã o, mas num determinad o momento eles se tornaram um obstáculo à
expansão da fronteira agropastoril, o que os condenou ao extermínio. No Brasil,
o preconceito de sangue pesava sobre “judeus, mulatos, negros e mouros”. Os
inquisidores não se davam ao trabalho de investigar antecedentes de índios e

7
  Ao contrário da legislação que regulava direitos e deveres dos africanos, que até o século XVIII foi
extraordinariamente repetitiva e escassa, as leis referentes aos índios eram abundantes. Por exemplo,
a Coroa insistia sempre, como em 1734, que “todas as distinções e honrarias (sejam elas eclesiásticas
ou seculares) atribuídas a castelhanos nobres serão oferecidas a todos os caciques e seus descendentes;
e a todos os índios menos ilustres e a seus descendentes que sejam limpios de sangre, sem mistura ou
[infecção] de um grupo condenado [...] e por essas determinações reais eles passam a ser qualificados
por Sua Graça para qualquer emprego honorífico” (KONETZKE, 1962, III, 1, p. 217).

102 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


caboclos (descendentes de índios e portugueses), já que eram considerados pes-
soas absolutamente primitivas, frágeis e infantis. A preocupação com o “sangue
negro”, no entanto, era intensa (CARNEIRO, 1988, p. 216 e 220; e SCHWARTZ,
1996, p. 21).
Na prática, a população indígena e o significativo grupo intermediário de
mestiços na América espanhola colonial eram, no entanto, economicamente
desprivilegiados e socialmente discriminados até o fim do século XVI. Sua igual-
dade formal em relação aos hispânicos não evitou que suas terras lhes fossem
brutalmente arrancadas, nem que eles acabassem concentrados em povoados
indígenas (pueblos de indios) para serem mais facilmente disciplinados e explo-
rados como força de trabalho. Ainda assim eles eram livres. Depois de uma fase
de apreensão, a Coroa permitiu casamentos entre índios e também aceitou que
hispânicos e seus descendentes se casassem com índios e mestiços, ainda que
fosse para reverter o dramático declínio das populações indígenas (ARDANAZ,
1977, p. 230-236). Na maioria das vezes, porém, a mestiçagem foi resultado pre-
dominantemente de sexo casual ou uniões extra-conjugais de espanhóis, que
em geral não se viam muito inclinados a se casar com índias. Como diz um pro-
vérbio colombiano (DUEÑAS VARGAS, 1996, p. 54): “la palabra de mestizo se
entiende de ilegítimo” (O termo mestiço significa nascimento ilegítimo). Embora
os mestiços “derivassem de duas nações puras e castas”, eles eram desdenhados,
tornando-se também progressivamente inelegíveis para o sacerdócio e para o
trabalho público honorário (MÉCHOULAN, 1981, p. 58). E na segunda metade
do século XVI eles perderam também seus direitos políticos, já que sua lealdade
era dividida entre seus pais, geralmente encomenderos, a quem deviam suceder
no comando das terras, e seus parentes índios, cujas rebeliões alguns mestiços
apoiavam ou mesmo lideravam.
O status político-cultural de escravos africanos na sociedade colonial tam-
bém se define a partir de precedentes da metrópole. Mas em contraste com o
que aconteceu com os índios, a escravização de africanos era encarada como
perfeitamente legítima. Os africanos trazidos ao Novo Mundo como escravos, e
seus descendentes, eram vistos como genuinamente impuros e infectados, por
carregarem “o peso da horrível mancha do vil nascimento como zambos, mu-
latos e outras castas piores, com as quais homens da esfera intermediária ficam

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 103


envergonhados de se misturar” (KONETZKE, 1962, p. 185 e 107).8 Enquan-
to o sangue espanhol era tido como prevalente sobre o sangue índio após três
gerações de mestiçagem, a mancha do sangue negro era considerada indelével
(KATZEW, 1996, p. 11-12).9
Na América espanhola colonial, o princípio de limpieza de sangre iden-
tificava os escravos negros, e todos aqueles suspeitos de descender deles, e os
separava do resto da população. “Sangue” negro significava sangue impuro, cor-
respondente a uma contaminação indelével dos africanos que, de acordo com
idéias de Aristóteles assumidas por europeus, eram inaceitáveis na pulitia, ou
seja, na civilização, porque eles descendiam dos africanos negros bárbaros da
Guiné. Uma fisionomia negra ou mulata era o sinal visível dessa herança genea-
lógica bárbara em termos culturais e morais.
Ainda que isso seja pouco conhecido, a escravidão foi parte da sociedade
espanhola do século XVI, especialmente na Andaluzia (MARTÍN CASARES,
2000). Pensadores contemporâneos, políticos e a Igreja, em Portugal e na Es-
panha, não sentiram qualquer desc onforto moral em relação à escravização de
africanos negros, nenhum deles questionou a justificaçã o aristotélica de sua “es-
cravidão natural”, ao contrário do que aconteceu com a escravidão de índios,
que provocou calorosas discussões na Península, em nome de uma imaturidade
racional indígena que os seus senhores ajudariam a superar.

8
  A palavra casta, hoje associada ao sistema de castas indiano, foi introduzida no sul da Ásia como um
conceito ibérico referente a pessoas definidas pelo “sangue”. Na América espanhola, “casta” primeiro
indicava o contorno natural das desigualdades de poder e de status entre os colonizadores espanhóis, os
índios e os escravos africanos. Mas com o tempo, a “casta” se transformou num termo genérico referente
à ampla coorte das pessoas “misturadas” (SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p. 444).
9
  Katzew cita o seguinte trecho da Idea compendiosa del Reyno de Nueva España (1774), de Pedro
Alonso O’Crouley: “[...] las calidades y linajes de que estas castas se originan; son español, indio y negro,
sabido es que de estas dos últimas ninguna disputa al español la dignidad y estimación, ni alguna de las
demás quiere ceder a la del negro, que es la más abatida y despreciada [...] Si el compuesto es nacido de
español e indio sale la mancha al tercer grado, porque se regula que de español e indio sale mestizo, de
éste y español castizo, y de éste y español sale ya español [...] porque se encuentra que de español y negro
nace el mulato, de éste y español morisco, de éste y español ornatrás, de éste y español tenteenelaire, que
es lo mismo que mulato, y por esto se dice y con razón que el mulato no sale del mixto, y antes bien como
que se pierde la porción de español y se liquida en carácter de negro, o poco menos que es mulato. Por
lo que respecta a la confección de negro e indio sucede lo mismo; de negro e indio, lobo: de éste e indio
chino, de éste e indio albarazado, y todos tiran a mulato” (KATZEW, 1996, p. 109).

104 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Os portugueses dominaram o tráfico de escravos para a Península Ibérica,
que recebeu as primeiras cargas desse contingente em meados do século XV. A
maioria dos escravos importados, por exemplo, para Granada durante a primei-
ra metade do século XVI veio da região então conhecida como Guiné, que com-
preendia toda a região que hoje inclui Senegal, Gâmbia, Guiné Bissau, Repúbli-
ca da Guiné, parte de Mali e Burkina Fasso. Houve também escravos berberes
muçulmanos capturados por piratas espanhóis no norte da África. E quando os
mouros (muçulmanos convertidos) se rebelaram na noite de Natal de 1568, 70
anos depois da conquista de Granada pelos cristãos, eles também se tornaram
aptos a serem escravizados porque, como o Núncio de Madri escreveu na época,
“mesmo batizados eles são mais muçulmanos do que seus irmãos norte-africa-
nos” (MARTIN CASARES, 2000, p. 176). No século XVI a escravidão atingiu o
ápice, com os escravos, na maioria mulheres empregadas em serviços domésti-
cos, totalizando 14% da população de Granada. Os senhores exploravam suas
escravas sexualmente, mas em grau menor do que era comum nas Américas
coloniais. Aos olhos dos contemporâneos, não existia casta mais baixa do que a
dos negros escravos vindos da Guiné. Traficantes portugueses de escravos, em
Luanda por exemplo, consideravam os escravos africanos negros como “brutos
desprovidos de compreensão inteligente” e “quase, pode-se dizer, seres irracio-
nais” (Citado por BOXER, 1963, p. 29). Escravos do norte da África, muçulma-
nos africanos, tiveram o duvidoso benefício de pertencer à cultura muçulmana,
que era desprezada ainda que considerada como algo superior em relação aos
escravos que vinham da Guiné. Escravos negros libertos, negros nascidos livres
ou mulatos traziam a mancha de sua descendência de escravos bárbaros. Na vi-
são popular, a cor escura de suas peles revelava esse caráter cultural manchado.
O número de escravos em Granada só decaiu a partir do século XVIII, época em
que escravos africanos foram ficando cada vez mais numerosos nas plantations
das colônias caribenhas, da Nova Espanha, da costa do Peru e da Colômbia;
nessa época sua importância econômica crescia, e a categoria moderna de raça
começava a se estabelecer.

A moralidade sexual da honra social e do casamento

O sistema de identificaçã o e classificação social desenvolvido na socie-


dade colonial marcou as relações de gênero e a experiência das mulheres. Eu

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 105


venho insistindo em que, durante os dois primeiros séculos depois da conquista,
a limpieza de sangre se referiu mais a qualidades cultural-morais do que a qua-
lidades raciais, já que a categoria moderna de raça foi introduzida apenas no
início do século XIX. Fragilidades culturais e morais podiam ser remediadas
pela educação. Posteriormente, autoridades no estudo das raças previam que
nenhuma melhoria social poderia ser garantida pelo chamado branqueamento.
Ainda assim, esses princípios conceitualmente distintos de classificação social
tinham em comum que ambos atribuíam o status sócio-político à genealogia. A
hierarquia social era baseada em linhas de descendência, embora o que se pen-
sava ser transmitido pelo sangue tenha mudado de uma conduta moral-religiosa
remediável para distinções sociais inatas, devidas a manchas indeléveis.
Justamente por se acreditar que a posição social era determinada preci-
puamente pela origem genealógica, a norma reprodutiva na sociedade colonial
ibérica era o casamento endogâmico entre pessoas de mesmo status social. Ze-
lando pela garantia da honra social associada à pureza de sangue, as elites colo-
niais aspiravam casar-se entre si para assegurar a pureza social condicionada ao
nascimento legítimo de sua prole. Sob tais circunstâncias, as ordens inferiores
dificilmente poderiam se casar de outra forma. Relações sexuais entre parceiros
de status sociais distintos não raro aconteciam fora do casamento. Os filhos ile-
gítimos eram excluídos das honrarias sociais do ascendente mais bem colocado,
normalmente o pai, e então eram criados em casas comandadas pelas mães, de
status mais baixo. As elites coloniais reproduziam o código de honra metropoli-
tano, em que a busca por pureza dependia daquela moralidad e sexual em que a
virgindade e a castidad e das mulheres apareciam como o valor maior, adaptan-
do tal código ao novo ambiente colonial. Esse elo entre pureza social e virtude
sexual feminina era claro numa ideologia de gênero que atribuía aos homens
o direito e a responsabilidade de controlar os corpos e a sexualidade de suas
mulheres. Isso era assim precisamente porque o valor social de um indivíduo,
em vez de ser algo adquirido através de ações ou comportamentos, dependia
primordialmente de seus antecedentes genealógicos. Os homens podiam obter
honrarias sociais através de feitos heróicos, mas eles precisavam seguir o código
de honra para não perdê-las depois, enquanto as mulheres podiam apenas per-
der sua honra ou virtude.

106 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


O sistema de parentesco da Península Ibérica e da América colonial era
bilateral, com as crianças definindo sua descendência tanto pelo pai quanto pela
mãe, além de ser compreendido como relacionado a parentes consanguíneos de
ambos os ascendentes na mesma medida. Por ser a origem genealógica traça-
da bilateralmente, o casamento entre pessoas socialmente equivalentes teve esse
papel central na perpetuaçã o das honrarias sociais. No caso de filhos de uniões
mistas, no entanto, era sempre o ascendente inferior, independentemente do
sexo, que determinava o status da criança. Como vou mostrar mais abaixo, dada
a importância atribuída à virtude sexual das mulheres para a honra familiar, era
inconcebível a uma mulher da elite se casar, e muito pior, manter uma união
sexual com um homem de pureza social inferior, porque isso poderia “conta-
minar” toda sua família. Assim, encontros sexuais mistos eram normalmente
hipergâmicos (entre homem de classe alta e mulher de status inferior).
É preciso destacar, entretanto, que, apesar do peso social da genealogia na
determinação do status social, a sociedad e colonial nunca teve uma ordem hie-
rárquica impermeável e fechada . No século XVIII, as sociedades coloniais por-
tuguesa e espanhola se tornaram uma complexa e fluida gradação de desigualda-
des – resultado do jogo entre raça e critério moderno de classe. O surpreendente
aumento no número de petições de legitimação oficial à Coroa, particularmente
no Caribe e no norte da América do Sul, reflete a intensa preocupaçã o da elite
com a genealogia e com a pureza sanguínea, especialmente nas regiões onde o
número de escravos africanos ainda crescia no fim do século XVIII. Casamento
e nascimento legítimos não eram apenas provas da qualidade e moral dos as-
cendentes. A pureza do sangue adquiriu nova relevância porque os filhos não
puros de uniões sexuais esporádicas e da concubinagem de europeus e crioulos
com mulheres índias ou mestiças, ou ainda com aquelas de descendência afri-
cana, borraram as fronteiras visíveis de grupo, num tempo em que o fenótipo se
tornou um indicador importante de qualidade social. As aspirações desses filhos
misturados à ascensão social eram vistas pelas elites como ameaças a sua proe-
minência social e a seus privilégios (TWINAM, 1999, p. 258-260). Mais do que
nunca, o nascimento ilegítimo era sinal de “infâmia, mancha e defeito”, como
declarou um decreto real de legitimaçã o de 1780 (KONETZKE, 1962, p. 173).
Os cuadros de castas produzidos nos anos 1780, predominantemente na
Nova Espanha (México), por pintores do cotidiano são sintomáticos das agudas

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 107


sensibilidades sociais que três séculos de mestiçagem, em vez de diminuir, ser-
viram só para intensificar. Esses quadros apa recem normalmente em conjuntos
de dezesseis, cada um retratando um casal com cores de pele e fisionomias di-
ferentes, acompanhados de um filho misturado. Esses quadros não apresentam,
à primeira vista, taxonomias sócio-raciais, mas representam processos de re-
produção sócio-racial ao documentar múltiplas form as de estabelecimento de
“misturas” coloniais. Os quadros mostram meticulosamente o grande leque de
matizes, texturas de cabelo, vestidos e até condutas morais que os contempo-
râneos percebiam em meio ao grande número de povos de “sangue” mistura-
do, sugerindo assim a crescente instabilidade social da colônia no que diz res-
peito a sua fluidez sócio-racial (KATZEW, 1996; e SCHWARTZ e SALOMON,
1999, p. 493). É nesse contexto da fluidez social e da instabilidade que a lin-
guagem da limpieza de sangre obtém nova relevância, perdendo sua conotaçã o
religioso-moral prévia e adquirindo um sentido racial.
Para dar conta da mudança no sentido simbólico da pureza de sangue para
esse sentido racial, e também da fluidez crescente da sociedade colonial, temos
que nova mente voltar os olhos para a Europa. Ali, a disseminação do indivi-
dualismo moderno que acompanhou o declínio da monarquia fez surgir novas
teorias sobre como “os indivíduos devem ser agrupados de acordo com seus as-
pectos naturais” (Guillaumin citado por STOLER, l995, p. 37). O advento da fi-
losofia natural experimental na Europa do fim do século XVII buscou descobrir
as leis naturais que governavam a condição humana e abandonou a ontologia
teológica anterior. Depois da publicação de trabalhos de William Petty, Edward
Tyson e Carl Linnaeus sobre a ordem da natureza, a humanidade deixou de ser
um todo perfeito criado por Deus e passou a ser dividida entre dois, três, tal-
vez mais, graus em potencial de seres humanos, ou seja, raças. A preocupação
dos naturalistas era com seres humanos enquanto criaturas físicas e enquanto
membros de sociedades organizadas. A ênfase não recaía mais sobre a unidade
humana, mas sobre diferenças físicas e culturais. O interesse em tipos plurais de
seres humanos iria ressoar por gerações através de tratados e volumes variados
sobre teoria racial e social (HODGEN, 1964, p. 418 et seq.).
Um artigo anônimo publicado no Journal des Savants, na França, em
1684, percebe um dos primeiros usos do conceito de raça num sentido que se
aproxima de seu significado moderno. Seu autor distinguia “quatro ou cinco

108 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


espécies ou raças de homens”, diferenciadas através de características antropo-
lógicas, sendo cruciais entre estas a cor da pele e o habitat geográfico, embora
o autor hesitasse em conceber índios americanos como uma raça separada . O
Journal de Savants estava entre os principais periódicos europeus. O artigo era
um sinal dos tempos (GUSDORF, 1972, p. 362-363). Incidentalmente, essa nova
noção de raça se desenvolveu paralelamente ao novo modelo bissexual, no qual
o útero naturalmente torna a mulher fadada à maternidade e à vida doméstica
(LAQUEUR, 1990, p. 155). É difícil dizer exatamente quando essa noção de raça
foi transposta para o Novo Mundo, mas não há dúvida de que ela o foi, prin-
cipalmente devido à intensa ansiedade das elites coloniais em relação à pureza
genealógica. Apesar do novo sentido racial, a linguagem da qualidade menos
palpável da pureza de sangue persistiu nas colônias ibéricas, porque no século
XVIII o fenótipo se tornou um signo muito pouco confiável da herança genea-
lógica de uma pessoa (STOLCKE, 1974).
A Igreja, obviamente, não era indiferente aos costumes ligados ao casa-
mento e ao sexo. Até fins do século XVIII a Igreja tinha autoridade exclusiva
sobre os casamentos. E sua política de casamentos servia apenas para intensi-
ficar as preocupações das elites coloniais quanto ao status social. Embora a In-
quisição tenha sido contra os contratos de casamento de cristãos velhos com
novos na metrópole, o princípio doutrinal que regulou a prática eclesiástica nas
colônias era o da liberdade de casamento, que garantia aos jovens o direito de
escolher livremente suas esposas e rejeitar a oposição dos pais ao casamento por
motivos de pureza de sangue. A partir do século XVI, porém, há exemplos do-
cumentados de que alguns pais tentaram impedir os casamentos de seus filhos
por motivos de desigualdade social, a fim de manter a pureza da família (SEED,
1988, p. 75-91). Mas embora a doutrina moral canônica de fazer a virtude sexual
prevalecer sobre honrarias sociais tenha desafiado a hierarquia social, a Igreja
era liberal apenas na aparência. A Igreja ignorava desigualdades sociais, mas
impunha o mais estrito controle sexual, particularmente sobre as mulheres. Para
a Igreja, a virtude sexual feminina – virgindade antes do casamento e castidade
depois – era o maior de todos os bens morais. A consequência da preocupa-
ção da Igreja com a proteção da virtude moral era portanto o controle sexual: a
salvação da alma dependia da submissão do corpo aos preceitos religioso-mo-
rais. Mesmo assim a Igreja nunca conseguiu erradicar a exploraçã o sexual de

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 109


mulheres consideradas de baixa posição social e “sanguínea”, e os religiosos, no-
tórios por seus próprios abusos sexuais nas colônias, não cumpriam estritamen-
te esses preceitos. Apesar de tentativas isoladas de casar casais que “viviam em
pecado”, uniões socialmente desiguais eram, na maioria, consensuais – como
eram chamadas eufemisticamente na época. Isso teve outras consequências.
Hoje está perfeitamente estabelecido que oportunidades e experiências de mu-
lheres diferem de acordo com o nível social reservado a elas na sociedade. Ao
exaltar a virtude sexual, a Igreja fomentou a discriminação de diferentes tipos
de mulher em termos sexuais: de um lado, mulheres abusadas sexualmente por
homens que, devido ao alto status social, não se casariam com elas (essas eram
posicionadas em um status inferior e, mais do que isso, penalizadas por estarem,
assim, vivendo em pecado mortal); de outro, mulheres virtuosas (de famílias
respeitáveis) cuja sexualidade era severamente controlada por homens em nome
da família e da pureza social.
Em meados do século XVIII, no entanto, a Igreja se viu ameaçada por dois
lados. Ela enfrentou o Estado, que estava limitando os tradicionais poderes ecle-
siásticos e os privilégios econômicos da Igreja, e também entrou em choque com
a Coroa quanto à jurisdição sobre os efeitos civis de casamentos considerados
desiguais. As coroas ibéricas aprovaram uma nova legislação sobre casamentos
que refletia suas preocupações com a livre escolha de cônjuges pelos jovens, e
com isso a Igreja passou a encarar dificuldades cada vez maiores para defender
o casamento livre contra a oposição prénupcial dos pais. Uma lei portuguesa de
1775 reforçou um decreto de 1603 que autorizava os pais a deserdar a filha que
se casasse sem consentimento, estendendo a exigência de consentimento pa ter-
no aos filhos homens. Na Espanha, Charles III promulgou a Sanção Pragmática
de 1776 que, do mesmo mo do, buscou prevenir o “ abuso” dos contratos de
casamentos desiguais por filhos e filhas. Essas leis suprimiram a livre escolha de
casamentos, enquanto o Estado assumia o controle. Daí em diante, os casamen-
tos só puderam ser realizados com consentimento paterno, ficando os filhos sob
ameaça de serem deserdados, de acordo com o consagrado princípio “patrimô-
nio pelo matrimônio” (STOLCKE, 1974; e NAZZARI, 1991, p. 130 et seq.).
Pode ser paradoxal que as coroas portuguesa e espanhola tenham introdu-
zido simultaneamente suas formas severas de controle sobre o casamento num

110 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


tempo de reforma política e modernização, quando o princípio de status genea-
lógico de limpieza de sangre, além de tudo, perdia validade na Península Ibérica.
Mas absolutamente nada tem de atípico o fato de as reformas de secularização
liberal serem acompanhadas de novos controles sociais. É portanto plausível ver
nessas leis de casamentos uma tentativa, por parte do Estado, de conter as poten-
ciais consequências sociais das reformas num clima político que em toda Europa
já estava ameaça ndo hierarquias sociais estabelecidas.
Na América espanhola, como já mencionado, o princípio da limpieza de
sangre foi retomado. Em 1778, o rei estendeu a Sanção Pragmática às colônias,
considerando que efeitos iguais ou piores são causados por esse abuso [de casa-
mentos desiguais] em meus reinos e nos domínios das Índias, levando em conta
seu tamanho, a diversidade de classes e castas de seus habitantes [...] e o sério
dano que vem sendo experimentado em meio a essa liberdade absoluta e desor-
denada com a qual os casamentos vêm sendo contratados por jovens impetuo-
sos e desajustados de ambos os sexos.
Excluídos da Sanção Pragmática estavam “mulatos, negros, coiotes [filhos
de africanos e índios] e indivíduos de castas e raças assumidas e publicamen-
te reputadas como tais”, que presumivelmente não tinham qualquer honra que
valesse a pena proteger (KONETZKE, 1962, III, 1, p. 438- 442). Tendo a Coroa
portuguesa buscado refúgio no Brasil, o Brasil seguiu a lei de matrimônios por-
tuguesa de 1775, que foi incorporada ao Código Criminal do Império de 1831
(NAZZARI, 1991, p. 132).
No século XVIII, juízes brasileiros ainda se preocupavam com a igualdade
entre parceiros para o casamento, mas como Murial Nazzari mostrou, em re-
lação a São Paulo, essa preocupaçã o mudou no século XIX, quando a idéia de
igualdade das esposas já perdia a importância que teve em séculos anteriores;
a preocupaçã o passou então a ser a competência do marido para sustentar a
esposa (NAZZARI, 1991, p. 138-139). Ao contrário do que acontece com Cuba
no século XIX, não há infelizmente informação disponível sobre o Brasil quanto
aos efeitos da desigualdade sócio-racial sobre o casamento, e também parece
não ter havido proibição legal de casamento inter-racial.
A implementação da Sanção Pragmática espanhola encontrou dificuldades
consideráveis nas colônias espanholas. Vários decretos reais adicionais relativos

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 111


a casamentos desiguais se seguiram ao de 1778 para resolver conflitos entre a
Coroa e autoridades coloniais quanto à política de casamentos. O problema cru-
cial, nesse momento, era o casamento inter-racial. No início não estava claro se
apenas pessoas de idade legal e reconhecida nobreza, ou se pessoas de sangue
puro em geral, precisavam de autorização oficial para se casar com “membros das
castas”. Um decreto de 1805 resolveu essa questão exigindo que “todas as pessoas
de reconhecida nobreza e de reconhecida limpieza de sangre que, tendo atingido
a maioridade, desejarem se casar com um membro das ditas castas (negros, mu-
latos e outras)” se dirigissem às autoridades civis coloniais, que poderiam con-
ceder ou negar as licenças correspondentes, enquanto “índios e mestiços puros
[eram] livres para se casar com brancos ou hispânicos” (KONETZKE, 1962, III,
2, p. 826). Isso não era apenas equivalente a uma virtual proibição do casamento
de hispânicos ou crioulos com os negros e seus descendentes: o casamento inter-
-racial se tornou um problema de Estado. O que estava em questão não eram só
os interesses das famílias, mas também a estabilidade da ordem social.
Cuba foi a mais valiosa das colônias espanholas no século XIX. Em seu
apogeu econômico como produtor de açúcar, o país explorou uma população
escrava que crescia, tornando-se o lugar privilegiado da aplicação dessa legisla-
ção sobre o casamento, ainda que o rigor das autoridades coloniais na proibição
do casamento inter- racial tenha variado. Particularmente na primeira metade
do século, era frequente pais dissidentes discordarem em relaçã o à limpieza de
sangre. Repetidas vezes eles falavam da “ absoluta desigualdade” do casal, de sua
própria “reconhecida pureza de sangue” e da “mancha evidente e transcenden-
tal” em sua reputação, da “degradação dos filhos” e da “desgraça e insatisfação”
que o casamento traria à família. Nas colônias espanholas, a estabilidade social
representava a preservação da hierarquia social fundada no jogo entre as condi-
ções relativas a escravidão, qualidade racial e virtude sexual feminina (MARTI-
NEZ-ALIER, 1974, p. 15).
No século XIX, a pureza de sangue era usada no sentido racial moderno
para distinguir pessoas de origem africana/escrava daquelas de origem euro-
péia/livre. Pessoas livres “de cor” – eufemismo cubano para pessoas de descen-
dência africana – eram porém igualmente discriminadas. No entanto, no caso
de “pardos” (mulatos) nascidos livres, a proibição do casamento inter-racial era
aplicada com grande leniência por terem eles escapado mais evidentemente da

112 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


“cor negra e da escravidã o” (MARTINEZ-ALIER, 1974, p. 76). Cor de pele e
classe eram combinadas na determinação do status social da pessoa. Pele clara
e sucesso sócio-econômico podiam amenizar a mancha genealógica da descen-
dência de escravos até um certo ponto. Não eram frequentes os casamentos entre
homens brancos e mulheres de cor, como forma de oposição à concubinagem,
mas as autoridades permitiam-nos a homens brancos de poucos recursos se eles
quisessem se casar por amor ou para legitimar uma relação sexual anterior e o
filho dela resultante.
Como já foi indicado, a sociedade colonial não era uma ordem hierárquica
impermeável. A parafernália legal sobre o matrimônio era necessária justamente
porque, apesar da preocupaçã o com a limpieza de sangre, sempre houve mulhe-
res e homens brancos prontos a desafiar a ordem político-racial e seus valores
sociais e morais, casando-se contra as recomendações da tradição. Havia limi-
tes, porém, para a compensação do status racial pelas conquistas econômicas
em relação ao casamento. A endogamia sócio-racial era a forma de casamento
preferida, oficialmente e socialmente, entre brancos e pessoas de cor em Cuba
no século XIX. A maioria dos casamentos obedecia a esse padrão. Mas quando
um casal jovem decidia desrespeitar as normas estabelecidas, podia solicitar às
autoridades civis uma licença suplementar de casamento, compensando a ob-
jeçã o dos pais, ou podia, mais dramaticamente, fugir para casar. Ao encarar o
fait accompli da perda da virtude sexual da mulher, era de se supor que os pais
achassem muito mais difícil manter suas objeções iniciais. Mas quando o casal
era visto como pertencendo a uma “raça ” diferente, os pais brancos em desacor-
do geralmente preferiam tolerar um a filha desonrada a deixar que sua linhagem
fosse poluída. Um pai branco argumentou quanto a isso da seguinte forma:

[O pretendente teve] a audácia inconcebível de seduzir, levar e talvez até


estuprar uma moça branca de respeito [...] tornando-se assim culpado, aos
olhos da lei, de uma ofensa extremamente grave, uma ofensa do tipo que
exige ser levada diante das cortes da Ilha de Cuba a qualquer custo. Este é
um país em que, dadas suas circunstâncias excepcionais [isto é, a escravi-
dão], torna-se necessário que a linha divisória entre os brancos e as raças
africanas seja muito bem demarcada, porque qualquer tolerância, que em
alguns casos pode ser elogiável, trará desonra às famílias brancas, revolta e
desordem ao país, e talvez até o extermínio de seus habitantes; [ele] nunca
aprovará um casamento de sua filha com um mulato, porque isso estaria

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 113


recobrindo uma mancha com outra muito maior e ainda mais indelével; ao
contrário, é melhor elas engolirem a dor e a vergonha em silêncio do que
autorizá-las publicamente (STOLCKE, 1974, p. 113).

Tais desafios ao status quo social indicam que, paralelamente à norma da


hierarquia sócio-racial típica de uma sociedade escravocrata, existia um ideal
de liberdade individual, de liberdade de escolha. Esse ideal liberal moderno de
liberdade individual, enraizado na noção de igualdade básica de todos os huma-
nos vinda da renascença européia, era a raison d’être da ideologia da limpieza de
sangre, tanto no sentido religioso-cultural prévio quanto no sentido racial poste-
rior, que serviu para justificar e dar conta da desigualdade social real. Apesar das
diferenças regionais, o ethos universalista cristão, segundo o qual todos os seres
humanos seriam iguais diante de Deus, dominou a sociedade ocidental mais ou
menos até o século XVIII. Desde então, o iluminismo europeu estabeleceu uma
mudança conceitual que foi progressivamente substituindo a ontologia teológica
anterior pelo ideal secular segundo o qual todos os seres humanos nascem livres
e iguais perante a lei. Mas ambos os conceitos de humanidade foram constante-
mente contrariados pela realidade das desigualdades sociais. De acordo com o
princípio genealógico da limpieza de sangre, cujo sentido histórico está sempre
mudando, a desigualdade social, em vez de resultar do acesso desigual a recur-
sos econômicos e ao poder, era vista como algo que está no “sangue”. Assim, se
desde o início os valores político-morais igualitários possibilitavam mudanças
na ordem social desigual, a ideologia da limpieza de sangre desqualificava mo-
ralmente essas potenciais mudanças e as neutralizava politicamente ao atribuir
a hierarquia social, seja à lei divina, seja às diferenças “naturais” físicas e/ou ra-
ciais. Era o elemento ideológico igualitário que fornecia também a brecha para
aqueles casais que, diante da oposição dos pais, sentiam-se encorajados a fugir
para casar. Embora a endogamia fosse a norma prescrita para perpetuar o status
quo hierárquico, o casamento inter-racial, mesmo condenado, de fato ocorria
excepcionalmente, justo porque o consenso em relação à legitimação da ordem
social e da endogamia racial estrita era nulo.
Que consequências essas concepções genealógicas de pureza social e sta-
tus têm para as mulheres e para as relações de gênero? Aqui a linha geral de
meu argumento pode ser reiniciada . Sempre que o posicionamento social numa

114 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


sociedade hierárquica é atribuído ao nascimento e à descendência, e enquanto o
sexo não puder ser dissociado da gravidez, será essencial para os homens da elite
controlar a sexualidade de suas mulheres a fim de garantir a reprodução adequa-
da de seu status social através de um casamento apropriado. Na sociedad e co-
lonial do século XVIII, o casamento intra-racial aparecia como a forma ideal de
casamento, a partir da norma segundo a qual “não pode haver casamento se não
há igualdade de linhagem” (STOLCKE, 1974, p. 134). A exploraçã o sexual por
homens, embora muito danosa para a mulher envolvida, literalmente não trazia
qualquer consequência para a honra da família. Ao reforçar a noção metafísica
do sangue como veículo do prestígio familiar e como ferramenta ideológica usa-
da para salvaguardar a hierarquia social, o Estado, numa aliança com as famílias
que exigiam sangue puro, submetia suas mulheres a uma rígida vigilância de
sua conduta sexual enquanto seus filhos se deleitavam livremente com mulheres
consideradas sin calidad. A desdenhada imagem da mulata, síntese da mulher
irresistivelmente sedutora e moralmente depravada, eximia homens brancos de
qualquer responsabilidade, culpando em vez disso a mulher. O ditado cubano
do século XIX “no hay tamarindo dulce ni mulata señorita” (não existe tama-
rindo doce, nem mulata virgem) é expressão dramática dessa lógica de gênero
distorcida. O valor moral especial atribuído à virtude sexual das mulheres não se
devia, no entanto, a suas características sexuais biológicas específicas. A sexuali-
dade feminina se tornou tão valiosa porque as circunstâncias sócio-ideológicas
permitiram às mulheres o papel crucial de transmissora dos atributos de família
de geração a geração. Os homens, como guardiães das mulheres da família, as-
sumiam a função de cuidar da transferência socialmente satisfatória desses atri-
butos, através do controle estrito da sexualidade das mulheres. O confinamento
doméstico das mulheres e sua subordinação geral em outras esferas sociais eram
consequências de sua centralidade reprodutiva. E isso era assim porque, como
bem observou um jurista espanhol do século XIX, só as mulheres poderiam
introduzir bastardos no casamento. Entendia-se o bastardo como uma criança
ilegítima nascida de uma relaçã o sexual ilícita entre parceiros que, de acordo
com as normas sociais, não poderiam se misturar.

O Enigma das Interseçõe: classe, “raça”, sexo, sexualidade...s 115


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119
Mulatas Profissionais:
raça, gênero e ocupação1

Sonia Maria Giacomini

Este artigo pretende contribuir para os estudos que se desenvolvem no


campo definido pelas questões relativas à construção e articulação das identida-
des de gênero e de raça/cor na sociedade brasileira – ou, se se prefere, no campo
de estudos sobre a mulher negra brasileira.2 Reúnem-se aqui alguns resultados
de pesquisa realizada sobre uma ocupação em que gênero, raça/cor e sexualida-
de ocupam lugar central: a profissão de mulata.3
A pergunta que orientou esta pesquisa poderia ser formulada da seguinte
maneira: por que e como uma categoria racial se transforma em categoria pro-
fissional? Como, em uma sociedade que se pretende sem preconceitos de raça ou
cor, determinados atributos raciais podem ser discriminados, isto é, separados
e selecionados, de modo a permitir a criação de uma profissão particular? Qual
o significado dessa operação de transmutação do que é racial em profissional
para aqueles, ou melhor, aquelas que estão diretamente envolvidas, que são ao
mesmo tempo sujeitos e objetos da operação?

1
  Texto publicado originalmente na Revista Estudos Feministas, n. 14; v. 1; janeiro-abril de 2006.
2
  Autora agradece mais uma vez o apoio da Fundação Carlos Chagas, sem o qual a pesquisa que deu
origem a este artigo não teria sido possível.
3
  Esse tema foi amplamente explorado em GIACOMINI, 1992.

121
Certamente não se pretende, com este trabalho, responder de maneira
exaustiva a todas essas perguntas, mas, mais modestamente, explorar parte do
material recolhido em entrevistas com as alunas do II Curso de Formação Pro-
fissional de Mulatas, ministrado pelo SENAC no Rio de Janeiro no final dos anos
1980 e início de 1990, e na observação realizada em diferentes shows de mulatas
em cartaz na cidade no mesmo período, o que permitiu fazer etnografias dos
espetáculos e captar alguns elementos recorrentes.
Durante três meses, três vezes por semana, freqüentei a Casa de Show onde
era ministrado o Curso. Como me introduzi naquele universo através do proprie-
tário da casa de espetáculo em que eram realizadas as aulas e da coordenadora do
Curso, passou-se bastante tempo até que as alunas entendessem o motivo de mi-
nha presença. Fui muitas vezes confundida com jornalista, e acredito que muitas
participantes, sobretudo no início, imaginavam que eu podia ser uma empresária
ou olheira de algum produtor, algo bastante comum nesse universo. Com o decor-
rer das aulas, porém, minha assiduidade e muitas explicações contribuíram para
que ficasse mais clara minha identidade de antropóloga/pesquisadora.
Dessa forma, observando o Curso, entrevistando as alunas candidatas a
mulata profissional e observando as interações entre os diferentes agentes envol-
vidos na realização das aulas e, em particular, analisando o show de encerramen-
to do Curso apresentado na cerimônia de formatura, consegui recolher um rico
material para a pretendida reflexão sobre a identidade da mulata profissional.
Dividido em três partes, este artigo inicia-se com uma análise da
auto-representação das candidatas no que concerne à identificação de atribu-
tos e características considerados fundamentais para ser uma mulata profissio-
nal. A segunda parte apresenta a estrutura dos shows de mulata e investiga a
composição de seus diferentes quadros, os quais, como se verá mais adiante, se
apresentam como que condensados no show apresentado pelas alunas durante
a cerimônia de formatura do Curso. Através da análise do show de formatura,
procura-se identificar a maneira pela qual os atributos considerados típicos da
mulata são acionados e configuram, como que ‘naturalmente’, uma forma de in-
teração recorrente e tipificada que constitui o núcleo da narrativa de brasilidade
atualizada pelo show.
Na última parte, alinham-se alguns comentários sobre as especificidades
da ocupação de mulata, em particular sobre a maneira como são vivenciadas

122 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


e representadas aquelas que seriam as principais dificuldades e ameaças que
acompanham a mulata profissional.

O que é ser mulata?

Quais as percepções e conceitos a partir dos quais as alunas do Curso de


Mulata do SENAC, em um contexto que se pretende de formação profissional,
constroem sua visão acerca da profissão de mulata, profissão em que as condi-
ções de gênero e de cor são fundamentais?
As entrevistas, abertas, muitas delas bastante longas, tiveram como eixo
ou ponto de partida quase sempre a mesma pergunta ou questão, formulada e
reformulada de várias maneiras: O que é ser mulata? O que é uma mulata? Você
é mulata? Por quê? Por que você está fazendo o Curso de Mulata? O que significa
ser mulata profissional?
Nas entrevistas e conversas emergiu espontaneamente algo que me parece
particularmente significativo: a maneira como aquelas mulheres percebem as
relações entre a profissão de mulata e a prostituição, o que envolve, sem rodeios,
uma associação imediata da ocupação com a sexualidade .
O que é ser mulata? Muitas acham que esta é uma pergunta “difícil de res-
ponder”. Talvez porque, de seu ponto de vista, trata-se de uma pergunta que nem
mesmo se justificaria, por ser absolutamente banal.
Mulata é mulata, não sei como explicar.
Pode-se sugerir que a dificuldade em explicar o que é ser mulata deve-se
sobretudo a duas razões: em primeiro lugar, porque ser mulata é algo evidente,
que, por isso mesmo, não carece de explicação; mas também, em segundo lugar,
é de difícil explicação porque significa muitas coisas juntas, o que torna difícil
discernir e destacar o essencial.
O que mostra a narrativa das meninas, que é como elas mesmas se cha-
mam, é que há várias maneiras de ser mulata, de definir mulata. São várias as
razões, ou combinações de razões, que justificam incluir ou excluir alguém; mas
se há, por assim dizer, uma certa margem de manobra, a indeterminação não
é absoluta, havendo certos limites e uma determinada lógica que condiciona o
campo de possibilidades.

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 123


Diante da gama de respostas surgidas nas entrevistas, optei por agrupar os
enunciados em dois grandes tipos ou grupos.
No primeiro grupo, tem-se o conjunto de conceituações que insistem no
que se poderia chamar de caracteres inatos. Estes, por sua vez, podem ser sub-
dividos em dois subgrupos: de um lado, temos os atributos inatos que são atri-
butos do grupo racial, dos pretos, daqueles que são escuros; de outro lado, há
aqueles atributos e qualidades que, também inatos, são individuais.
No subgrupo dos atributos inatos coletivos, ou seja, referidos à raça ou
etnia ou cor, temos, entre outras, as seguintes definições de mulata:
Ser mulata é cor;
Ser mulata é saber sambar;
Ser mulata é algo que está no sangue, é de raiz.
Dentre as menções a caracteres inatos de natureza individual, pode-se citar:
Ser mulata é ter um corpo violão;
É ter bundinha empinadinha;
Ter cintura fina;
Ser mulata é ter um corpo bonito.
Nesse caso, a mulata é definida por atributos de que são dotadas apenas
algumas, individualmente, dentre as mulheres que têm a cor negra ou mulata.
Não parece estranho que um conjunto de mulheres, com a cor da pele que,
para usar as expressões nativas, vai de negona a morena clara, e que consideram
que são mulatas por serem portadoras de certos atributos inatos, esteja fazendo
um curso para aprender a ser aquilo que já são por nascimento?
É esse impasse lógico que explica, como referido acima, um segundo gru-
po de conceitos que, no lugar dos atributos inatos, destaca a dimensão propria-
mente profissional. Agora, é o universo profissional que se impõe:
Ser mulata é comportar-se segundo as exigências da profissão.
Em certo sentido, poder-se-ia dizer que essa visão surge de um curioso
paradoxo, que, por sinal, não escapa ao grupo entrevistado. Elas percebem que
a profissionalização enquanto mulata impõe certos atributos que não são inatos,
que devem ser adquiridos. A aquisição desses atributos seria a marca e a prova
da profissionalização.

124 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Ser mulata é ser “profissional”, é ser “responsável”, é saber “enfrentar o pú-
blico”. Ser mulata é “saber se produzir”, isto é, assumir a aparência física e o ges-
tual que se espera de uma verdadeira mulata. É saber “interagir com o público”,
enfrentando com frieza e tranquilidade os “acidentes de trabalho”.4
As relações entre os diferentes atributos, inatos e adquiridos (GIACOMINI,
1992), fornecem uma amostra da extraordinária ambiguidade em que estão lan-
çadas essas moças que, se por um lado se vêem como mulatas, por outro lado
vivem na dúvida se estarão aptas a serem reconhecidas pelos empresários como
verdadeiras mulatas. Com efeito, o que se passa de essencial durante a realização
do Curso é um processo de seleção, no âmbito do qual se vai atestar quais dentre
as candidatas estão em condições de representar aquela que seria a mulata típica, a
mulata autêntica. E, certamente, o tipo que alimenta o imaginário da clientela des-
se tipo de espetáculo está bastante distante do tipo comum das mulatas brasileiras.
Em outros termos: o Curso de Formação, longe de configurar um verdadeiro
processo de aprendizagem, constitui-se, antes de mais nada, em processo de seleção.
Nesse ponto, poder-se-ia citar a insatisfação, registrada por várias entre-
vistadas, com o fato de que a mulata profissional tipo exportação deve ser alta,
muito alta. O raciocínio delas é inquestionavelmente lógico: se o show de mulata
quer mostrar aquilo que é autêntico, quer mostrar como é, de fato, a mulata bra-
sileira, por que exigir uma altura que é antes exceção que regra?

Pedir o corpo violão é válido, mas não se pode valorizar muito a altura,
porque afinal o brasileiro é conhecido como de estatura mediana. É a nossa
estrutura mesmo física. Eles tinham que visar uma coisa assim, nessa altu-
ra, as pessoas com esse tamanho... isto é, entre um metro e sessenta e cinco
e um metro e setenta.

Algumas chegam mesmo a afirmar que a estatura postulada é excessiva,


que constituiria um obstáculo à dança, ao samba, introduzindo um conflito en-
tre dois requisitos igualmente valorizados pelos empresários.

Você pode notar que uma mulher assim muito alta não sabe dançar direi-
to, assim... mexer o corpo muito bem... Já num tamanho não tanto, pode
observar como ela dança melhor, samba melhor, leva mais jeito.

4
  Por “acidentes de trabalho” entendem-se situações, embora eventuais mas nem por isso totalmente
inesperadas, em que um turista se excede sobre o palco ou fora dele, tornando-se inconveniente ou
mesmo agressivo.

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 125


Diante de um conjunto tão amplo de qualidades requisitadas – inatas cole-
tivas, inatas individuais e adquiridas – as meninas sentem-se objeto de um pro-
cesso nem sempre claro em seus critérios e procedimentos, que acabará fazendo
delas – apenas algumas delas, é bom registrar – uma mulata profissional. O que
elas compreendem, mesmo que intuitivamente, porém, é que, do início ao fim, o
processo seletivo rege-se por uma mulata paradigmática, que corresponde a um
imaginário presente na sociedade brasileira.
A mulata bonita, de corpo violão, boa sambista, de bundinha arrebitada,
sensual, sedutora é produzida segundo um determinado modelo. O segredo da
operação consiste em apresentar o resultado desse meticuloso processo de se-
leção e produção – que é a mulata profissional – em exemplar, típico, represen-
tativo. Dessa forma, o show de mulata é como que uma prova de que a mulata
brasileira é tudo o que dela se diz e imagina: encontram-se aí, no palco, para
quem quiser ver, as mulatas brasileiras autênticas.
Mas esse imaginário não produz apenas uma representação estética da
mulata brasileira;5 ele também implica, talvez principalmente, uma representa-
ção moral e sexual da mulata . A esse respeito Gilberto Freyre já dizia em 1936:

o bom senso popular e a sabedoria folclórica continuam a acreditar na


mulata diabólica, superexcitada por natureza [...] Por essa superexcitação,
verdadeira ou não, de sexo, a mulata é procurada pelos que desejam colher
do amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum (FREYRE,
1985, p. 602).

Bem antes de Freyre, em 1894, Raymundo Nina Rodrigues, pai da medicina


legal no Brasil, afirmava com a autoridade que lhe conferia sua posição de cien-
tista: “A excitação genésica da clássica mulata brazileira não póde deixar de ser
considerada um typo anormal” (RODRIGUES, s/d, p. 153. Grifado no original).
Ora, a mulata profissional deve, antes de mais nada, ser portadora desses atri-
butos e corresponder a esse modelo. Deve não apenas ter o tipo físico, mas portar-se
de modo a evocar essas imagens. Isso se dá, em particular, numa forma de

5
  Presente no imaginário brasileiro de forma crescente, principalmente a partir do século XIX, a mulata
é construída, em verso e prosa, como um tipo feminino peculiar. Para uma análise da mulata na literatura
brasileira, verTeófilo QUEIROZ JUNIOR, 1975; eAffonso Romano de SANT’ANNA, 1975. Sobre
representações damulata no pensamento social brasileiro, em particular em Gilberto Freyre, Raymundo
Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Florestan Fernandes, ver GIACOMINI, 1992.

126 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


interação com o público: ela tem de seduzir seu público. Sua capacidade de sedu-
ção, em última instância, constitui a prova de sua efetiva capacitação profissional.
Uma etnografia do show de formatura, protagonizado pelas quinze alunas
que se diplomaram, permite enfocar melhor e mais de perto essa questão.

A confirmação da mulata: o show de formatura

O show apresentado durante a cerimônia de formatura, idealizado pelos


professores de coreografia, foi composto por seis quadros que reproduziam qua-
se que integralmente números do espetáculo que há vários anos se encontravam
em cartaz na casa de espetáculos que sediou o Curso.
Bem menor e mais curto que o espetáculo da casa com seus treze quadros
e cerca de duas horas de duração, o show da formatura condensou alguns núme-
ros e suprimiu outros, mas manteve aqueles considerados carros-chefe, isto é, os
chamados “solos de mulata”6
Tanto a concepção do show quanto a exibição das alunas procuraram, de
forma explícita e evidente, reproduzir um conjunto: o clima, as personagens e seus
respectivos papéis, em suma, todos os ingredientes que compõem o ambiente no
qual se realiza o trabalho de uma mulata profissional. Com efeito, as alunas enten-
diam muito bem o sentido da realização daquele show: era uma formatura. Em
consequência, a cada momento e no contexto de cada quadro, procuraram mos-
trar que tinham realizado a passagem de mulata aluna para mulata profissional.

O samba e a mulata brasileira – elogio da miscigenação

Já se encontrava em cena a Dupla Café com Leite – integrada por uma


aluna que se considera “fechada na cor” e outra cuja autoclassificação é de
“branca mesmo” – quando o mestre de cerimônia se dirige à platéia para

6
  Dos seis números apresentados no show de formatura, dois constituem solos de mulata e um se encerra
com um solo desse tipo, ficando nesse show mantida a mesma proporção existente no show regular:
metade dosquadros do espetáculo é especialmente dedicada a exibições solo de mulata. Quanto aos outros
quadros, no espetáculo das formandas houve a supressão de três regularmente protagonizados por outros
tipos de profissionais: Balé Africano, executado exclusivamente por bailarinos negros; Capoeira, exibição
de capoeiristas; e, finalmente, o número em que Ataulfo Alves Filho canta em homenagem ao pai. Foi
também suprimido o quadro Iemanjá, provavelmente por se julgar que a nudez de uma mulata envolta em
diáfanos véus azulados não seria apropriada a um show de formatura apresentado a familiares das alunas.

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 127


apresentá-las como “duas mulatinhas arretadas, levadas da breca, do zirigui-
dum, do telecoteco” e exortar: “Vai lá maestro, capricha no sambinha para A. e
B. porque, afinal, elas fazem parte de uma mesma cultura, a cultura brasileira,
do samba, da miscigenação”.
Bastante desinibidas desde o início, as duas alunas, da mesma estatura me-
diana e vestindo o mesmo modelo de biquíni brilhante e franjado, iam execu-
tando performaticamente passos de samba, uma secundando a outra, como que
num desafio ou competição da qual o público entusiasmado participava. Ao final
do número, manifestações inequívocas da assistência como que confirmavam a
fala inicial da apresentadora, atestando que a disputa terminara em empate.

Encarnando Carmem Miranda – a mulata - garota notável

Dublando chica-chica-bum, com muitos babados da mesma cor das penas


do incômodo adereço de cabeça que insistia em sair do lugar, as três alunas es-
colhidas para encarnar a garota notável sabiam que protagonizar aquele número
era considerado por todas as alunas um privilégio – “esse quadro exige muita
vida”, como havia dito a coreógrafa –, o que só fazia aumentar a responsabili-
dade. Alguns encontrões pelo palco, elegantemente ignorados pela assistência,
ficaram totalmente eclipsados pelo sucesso das caras e bocas, olhinhos arteiros
escorregando de um lado para outro e, evidentemente, pelo balanço dos quadris
que ritmava os babados, fazendo-os alternadamente esconder e revelar as pernas.

Maculelê – uma mulata-afro?

O quadro mais intencionalmente afro do show apresenta uma notação rít-


mica bastante diferente daquela do samba, mais precisamente uma adaptação da
música religiosa ritual do candomblé de caboclo. Comparando-se esse quadro
com aqueles que o antecederam, não há como ignorar a instauração de um novo
clima, mais dramático e respeitoso que, desde o palco à platéia, pareceu exigir de
todos uma postura mais introspectiva e cerimonial. Duas alunas representam,
em solo, cada uma um orixá. Trajando réplicas das pesadas vestimentas e dos
adereços rituais do candomblé, sua representação da possessão vai garantir, du-
rante toda a longa apresentação, um silêncio algo religioso da platéia. Envolvida

128 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


pelo ritmo cadenciado e repetitivo, a assistência era como que conduzida pela
crescente dramaticidade da coreografia.
Quanto a esse quadro, vale registrar que a escolha das protagonistas re-
sultou de uma cuidadosa seleção das duas melhores entre aquelas que sabiam
“dançar afro”. Esse quadro foi também o único dirigido pela coreógrafa mais
idosa, uma ex-bailarina comprometida no passado com projetos de balé étnico.
Para essa coreógrafa, a seleção não se resumia em simplesmente escolher uma
dançarina para representar um orixá, sendo igualmente importante “encontrar
qual seria o orixá” das escolhidas. Assim é que o rodízio das alunas testadas
era acompanhado de uma mudança da coreografia e do próprio quadro – isto
é, cada aluna remetia à opção pela dança de um orixá específico, tendo sido
testadas várias coreografias entre aquelas associadas às entidades incluídas no
panteão do candomblé.
Tanto a escolha da diretora do quadro quanto os procedimentos adotados
atestam que o efeito provocado na platéia não foi casual, mas resultado de um
tratamento particular, singular. Esse quadro é aquele que confere o selo de qua-
lidade e autenticidade afro ao conjunto do espetáculo.

Baianão – a mulata-baianinha

Trata-se de um quadro tipicamente coletivo, que evoca brejeirice nos enor-


mes laços coloridos que enfeitam a cabeça das oito participantes que vão rodan-
do as bufantes saias de renda, parecendo imitar as evoluções das velhas baianas
das escolas de samba. Nesse número foram como que encaixadas todas as alunas
que, mesmo não sabendo dançar ou sambar muito bem e, além disso, não tendo
o “tipo específico ou adequado para um solo”, não se encontravam, entretanto,
na mesma situação daquelas duas que, reprovadas em coreografia, foram ex-
cluídas do show. Assim é que a participação de algumas formandas – principal-
mente daquelas muito baixas e/ou sem os atrativos de um “corpo violão” – ficou
restrita a essa aparição pouco (ou nada) individualizante.
Essa característica da escolha das participantes desse quadro reforça a sen-
sação de que ele constitui antes um intervalo animado que um verdadeiro nú-
mero do show, intervalo que acaba por engrandecer o impacto e a personalidade
daquele que viria a seguir.

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 129


O solo – a mulata-exportação

Ao som de uma música em que o refrão repetia “segura no pé dessa nêga”,


a percussão que acompanha a entrada triunfal de M. chega a fazer vibrar copos,
mesas e cadeiras. Todos os que ocupavam as mesas reservadas a convidados
se levantam para aplaudir entusiasticamente, e há mesmo quem faça soar uma
barulhenta corneta (dessas utilizadas por torcidas em estádios); outros ainda
estendem uma grande faixa exibindo o nome da formanda. Durante vários mi-
nutos, revelando para a platéia as “qualidades de uma solista”, M. “preenche o
palco” com seus movimentos e tremidinhas, provocando a assistência com mo-
vimentos insinuantes seguidos de pausas não menos sugestivas. A cada nova
evolução a platéia responde com encorajamentos crescentes, pedindo sempre
mais. A demora na entrada de Mt., que obriga a apresentadora a anunciar diver-
sas vezes que “aí vem outra mulata de fazer perder o rebolado, foi até Rainha do
Carnaval”, faz com que a já cansada M. tenha que esticar sua apresentação.
Mt. ainda leva alguns minutos para, com um sorriso um pouco força-
do, se apresentar no palco. Esse pequeno atraso – resultante do inexplicável
desaparecimento de seu biquíni no camarim, como me foi informado mais tarde
pela própria – não parece ter comprometido a boa receptividade da platéia. Ao
contrário, o incidente parece ter servido para reforçar simpatias. De uma certa
forma, se aquele era um show de formatura no qual as alunas deviam mostrar
publicamente sua capacitação como mulatas profissionais, o público atestava,
com seus calorosos aplausos, que aquela solista esbanjava aptidão. Soube, como
a que a antecedeu, seduzir o público à moda de uma verdadeira mulata: envolver
com seus trejeitos os espectadores, manter com eles uma forma de comunicação
privilegiada, fazendo desaparecer as barreiras que normalmente estão interpos-
tas entre quem se apresenta e quem assiste. Conseguiu, através do samba, fazer o
corpo falar uma linguagem bastante familiar à platéia; em suma, no ato eficiente
mas aparentemente gratuito e descompromissado de envolver os espectadores,
apagou distâncias e celebrou integrações. A novata soubera resolver uma di-
ficuldade, o que foi evidentemente percebido logo de início pelo público que,
redobrando os aplausos a cada novo passo, ia exigindo mais e mais da passista.
De fato, Mt. teve uma performance extraordinária: executou durante vários mi-
nutos um tipo de movimento de quadris que amiúde não corresponde senão a
poucos segundos – o ápice – do solo de uma mulata.

130 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Que esse tenha sido o quadro com maior potencial de projeção individual
de suas integrantes, não há a menor dúvida. Quem não conhecia M. ou Mt. teve
oportunidade não somente de vê-las em uma situação de absoluto destaque, mas
igualmente de conhecer parte de seus currículos, ao menos aquela ligada ao
samba e ao espetáculo, assim como de memorizar seus nomes – verdadeiros –
que eram repetidos a cada instante. A apresentadora chegava mesmo a mencio-
nar as propostas de contratos e viagens que já haviam recebido antes mesmo do
fim do Curso essas “duas mulatas que não estão no mapa”. Tudo parece indicar o
início promissor de uma carreira de mulata.

Mulher rendeira – de mulata-Maria Bonita a mulata-


exportação

Diferentemente dos outros quadros – cópias integrais de segmentos com-


pletos do espetáculo regular da casa –, esse número é resultado de uma com-
binação: ao quadro regular Mulher rendeira foi justaposto um solo bastante
característico do show, em que a mulata convida um homem da assistência – ge-
ralmente um estrangeiro – que sobe ao palco para aprender a sambar.
Assim é que nesse quadro é possível falar-se em duas partes nitidamente
separadas. A parte inicial tem evidente inspiração regional nordestina: uma san-
fona ao fundo vai ritmando saiotes, laçarotes, bustiês coloridos e xales de renda
de um coro bastante vivaz de quatro alunas que apenas deixam entrever, ao cen-
tro, a rendeira principal – diferenciada do coro apenas pela cor do traje.
A segunda parte desse quadro inicia-se quando desaparecem as rendeiras
por entre as cortinas e irrompe, cena adentro, uma mulata de biquíni. Enquanto
o som da viola cede gradativamente espaço ao do tamborim, os espectadores
vão tendo um pequeno momento de pausa para notar as semelhanças entre a
mulata de biquíni sambando no palco e aquela que anteriormente fizera o papel
da mulher rendeira principal.
A anônima rendeira retorna agora transformada: é a fogosa “mulata salien-
te: a mulata D.!” – como repete diversas vezes uma voz ao microfone. Enquanto
é anunciada, D. vai realizando uma rápida performance solo e, dirigindo-se à

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 131


platéia, começa a escolher alguém para sambar com ela, apontando alguns ho-
mens nas fileiras próximas ao palco. Como ninguém se prontifica, ela insiste
diretamente com um rapaz que, incentivado por apelos e aplausos, termina fi-
nalmente por subir ao palco.
Começa, então, aquilo que seria uma aula de samba, na qual a mulata, com
ar muito malicioso e mãos nos quadris do rapaz que parece um pouco enver-
gonhado, tenta ensinar de que parte do corpo devem partir os movimentos. Em
seguida, para delírio da platéia, inverte as posições, colocando as mãos do rapaz
em seus quadris, mostrando-lhe como balançam ao ritmo do samba.
Tudo levava a crer que a apresentação decorreria como previsto, reprodu-
zindo o efeito jocoso que esse quadro tem quando realizado com turistas estran-
geiros, quando é sugerida uma intimidade maliciosa e sensual na qual a iniciati-
va e o savoir-faire – inclusive o saber sambar – estão do lado da mulata, e a falta
de jeito e o constrangimento estão do lado do gringo. A partir de determinado
momento, porém, o clima da apresentação vai se modificando: o rapaz, a princí-
pio um pouco atônito, se recupera do susto e, abandonando a condição de aluno
que deveria assumir, resolve mostrar que sabe sambar. E ele samba por vários
– excessivos – minutos, durante os quais nem sequer demonstra notar a presen-
ça da mulata, que deveria protagonizar o número. O público paulatinamente
emudece, aparentemente partilhando o mesmo constrangimento de D. diante
da atitude inesperada daquele convidado que, afinal, não tinha jogado o jogo, e a
quem, de forma gentil, sem abandonar o sorriso nos lábios, ela sugere inutilmen-
te que encerre sua participação. Pessoas a meu lado, surpresas, perguntavam-se
o que estava acontecendo e sobre a identidade do rapaz, demonstrando a mesma
curiosidade que, no momento, mobilizava par te da platéia e dos promotores que
cochichavam entre si: seria talvez o namorado de D.?
Quando finalmente o rapaz deixa o palco, o que se deveu a uma interven-
ção da orquestra, que literalmente interrompe a música, as ovações que se segui-
ram pareciam mais uma reação de alívio pela quebra da tensão que envolvera a
todos por bons minutos. De toda forma, o ambiente termina por se descontrair
definitivamente quando a apresentadora puxa os aplausos finais para a retirada
de “nossa professorinha do telecoteco, do balacobaco, a nossa mulata D.”

132 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


O desconcerto provocado pelo desempenho do falso turista não deixa de
recolocar, em outros termos, o paradoxo vivido naquele show. De um lado, as
formandas deveriam realizar um espetáculo que reproduzisse, da forma mais
aproximada possível, aquilo que constitui um show de mulatas profissionais; por
outro lado, esse show supõe a existência de um tipo de espectador muito parti-
cular, que, no caso, estava ausente – o turista. Ao recusar-se a desempenhar esse
papel, e, dessa forma, desfazer o quadro, o rapaz sambista rompeu o acordo im-
plícito no qual estava inscrito: “nós agiremos como mulatas profissionais, vocês
agirão como gringos”. E, ao romper tal protocolo, de uma certa maneira aquele
rapaz desvendou que a apresentação de mulatas está ancorada, antes de tudo, em
uma relação muito particular com um tipo de cliente muito específico. O show
de mulatas, assim, não é apenas uma exibição, mas é uma exibição para um ou-
tro muito claramente definido: o turista, o gringo.
O que pode ser depreendido dessa descrição/ interpretação do show de forma-
tura pode ser resumido da seguinte forma: é na capacidade de sedução de uma mu-
lata que reside, em última instância, a prova de sua efetiva capacitação profissional.

Mulata sim, prostituta não

O conjunto do material recolhido durante a pesquisa reforça enfaticamen-


te esta conclusão, ao mostrar que a construção da identidade da mulata profis-
sional passa necessariamente pela sua diferenciação da prostituta. Praticamente
todas as entrevistadas fazem questão de ressaltar que ser mulata não tem nada a
ver com prostituição.
A construção da identidade mulata profissional, como a de qualquer identida-
de social, não passa apenas pela afirmação de atributos e características partilhados
por um mesmo grupo; ela é também, e talvez principalmente, o estabelecimento das
fronteiras que demarcam esse grupo de grupos percebidos como vizinhos, próxi-
mos, e por isso mesmo ameaçadores daquela identidade em construção.
No caso da mulata profissional a fronteira a ser marcada e defendida é
aquela que limita o seu grupo do grupo das prostitutas, o que significa que essa
é uma identidade cercada de perigos, de ameaças de diluição.

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 133


Como foi verbalizado por várias entrevistadas, “estar na noite exige cabe-
ça”, o que quer dizer: não se misturar com os outros, potencialmente corrupto-
res. Essa situação insere a mulata profissional em um contexto moral ligado ao
imprevisível, ao perigo, sobretudo porque a implica em um domínio no qual a
prostituta se destaca como inescapável referência feminina.
Estar inserida na noite é circular num espaço-tempo em que paira fortemen-
te a sugestão de uma identificação com a prostituta, sugestão que a produção e o
ritual de sedução que são exigidos da mulata profissional reforçam ainda mais.

Tem muito homem que pensa assim, eles logo vem: ´Está com aquela bun-
da de fora é prostituta, é prostituta da noite, é piranha’. Eu posso trabalhar
no show, fazer o meu show, pegar as minhas coisas e ir embora, fico se eu
quiser na prostituição.
No fundo, no fundo, a gente tem que mostrar que não é nada daquilo que
as pessoas pensam [...] dizem logo que é prostituta, mas não é nada disso.

A prostituição é, com efeito, uma referência constante. E se apresenta atra-


vés de duas modalidades ou formatos: como uma atividade em si, totalizante ou
exclusiva, ou como práticas que uma mulher pode desenvolver paralelamente,
isto é, superpor ao exercício de uma profissão qualquer. No primeiro formato a
prostituição se contrapõe a trabalho e é pensada como alternativa a ele.
Quem quer se prostituir, se prostitui; quem quer trabalhar, trabalha.
A inclusão da ocupação mulata no mundo do trabalho, no universo pro-
fissional, constrói um distanciamento diante dessa primeira forma, alternativa
e oposta a trabalho. Mas há uma percepção muito clara de que essa inclusão/
exclusão no universo profissional é ambígua e que a identidade da mulata profis-
sional nunca está definitivamente dada, assegurada.
Diferenciar-se da prostituta, levar a cabo o projeto de realizar a definitiva
integração da ocupação de mulata ao universo profissional: eis algo que somente
seria/é alcançado quando tal ocupação se transforma em uma profissão como
outra qualquer.

Ser mulata é como uma profissão qualquer, estou levando a minha vida
normalmente, é como um emprego qualquer.

134 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Nessas condições, não é difícil entender a necessidade sentida por algumas
entrevistadas de colocarem claramente a prostituição como uma prática equidis-
tante, uma possibilidade igualmente oferecida a todas as mulheres, seja qual for
sua inserção profissional. Em outros termos: no que se refere à prostituição en-
quanto atividade que se desenvolve paralelamente a outra atividade profissional,
a mulata profissional encontra-se na mesma situação que qualquer outra mulher
trabalhadora.

Prostituta você pode ser em qualquer lugar, não precisa ser mulata, você
pode trabalhar num escritório e ser uma prostituta, trabalhar num banco
e ser uma prostituta.

O que pode ser lido no conjunto dos depoimentos é que as mulatas são tão
dadas à prostituição quanto as mulheres em geral – o que pode ser, ainda, lido
no sentido inverso: as mulheres em geral se prostituem tanto quanto as mulatas.
Tal postura, ressalte-se, não implica um julgamento moral da prostituição, ou
das mulheres que se prostituem, como fica claro no depoimento seguinte:

Cada um com seu trabalho, cada um com a sua profissão, e quem quer se
prostituir se prostitui, quem quer trabalhar, trabalha.

Equidistante de todas as profissões, indiferente à condição de cor, de classe


ou de ocupação, a prostituição é algo que está definido no espaço individual, por
opções e estratégias particulares:

Já ouvi falar muito que as mulatas são muito... discriminadas, são prosti-
tutas a bem dizer, né? Então eu vi que não é nada disso, vai pela cabeça de
cada um [...] Gostei da carreira e vou continuar.

Mas se a noite é um espaço-tempo que aproxima a mulata profissional de


práticas e ocupações das quais é necessário demarcar-se claramente para afirmar
uma identidade própria, ela oferece igualmente outros referenciais que, embora
igualmente demarcatórios, não aparecem como vizinhos perigosos e ameaçado-
res. A noite é também povoada por outros elementos que, tanto quanto a mulata,
trabalham na noite: músicos, artistas em geral são vizinhos bem-vindos, com os
quais se busca uma associação evocativa que viria reforçar a identidade positiva

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 135


de mulata profissional.
A auto-inclusão no mundo artístico é acionada, via de regra, como um
reforço da condição profissional e como a circunscrição de um conjunto de qua-
lidades que, próprias às mulatas, são por elas compartilhadas com um conjunto
mais amplo de artistas. A mulata é uma dançarina, e, em cer tas circunstâncias,
tal afirmação é conotada positivamente, como reconhecimento de uma certa
qualificação.
Há momentos, no entanto, em que o saber dançar, ou melhor, o ser dança-
rina é confrontado ao ser bailarina. De modo geral, a dançarina aparece como
aquela que não tem – ou que ainda não pôde adquirir – todos os conhecimentos
e técnicas que devem ser aprendidos e que são indispensáveis a uma bailarina.

Eu faço show de mulata, mas é uma coisa, assim, que eu não gosto. Não
desfaço, mas eu sempre liguei mais pro meu mundo profissional da dança.
Não quero ser mulata, quer dizer, isso faz parte também da dança, mas eu
quero continuar sendo uma dançarina profissional. Tudo bem que faz par-
te da profissão, mas o que eu mais me amarro mesmo é dançar, é uma coisa
que eu sempre tive comigo: dança afro, faço também um pouco de jazz...

A hesitação é evidente: em certa medida, ser mulata faz parte da profissão


de dançarina, mas ao mesmo tempo não permite que a condição de dançarina
se realize plenamente. Embora contida no universo da dança, embora situada no
campo das profissões artísticas, a mulata profissional só é dançarina de maneira
ambígua: de um lado, incompleta; de outro lado, excessiva ou desviante. Parece
mesmo haver uma certa consciência de que aquelas mulheres com determinada
cor e determinados atributos de corpo, se e quando ingressarem no universo
das profissões associadas à dança, deverão encaminhar- se para a profissão de
mulata. É como se o corpo, enquanto forma perceptível, como observou Pierre
Bourdieu (1977), se fizesse perceber como corpo de mulata e conduzisse inequi-
vocamente àquela ocupação.
Em suma: mesmo ali onde a mulata profissional parece afirmar-se como
um tipo particular de dançarina, a condição de cor cobra seu preço, indicando
que o caminho aberto para uma ascensão profissional, e conseqüentemente so-
cial, permanece contido em limites estreitos, demarcados.

136 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Provavelmente em nenhum outro lugar, hoje, no Brasil, mesmo havendo
recentemente e em alguns espaços a adoção de políticas de cotas em que a au-
toclassificação racial é critério relevante, ouvir-se-ia a afirmação, feita por uma
aluna, de que ter a cor de mulata é a chave para abrir um espaço profissional.

Com a cor dela que ela ganha o trabalho, com a cor porque é mulata. Tenho
essa cor, porque senão eu não teria o espaço nessa casa.

Mas é a mesma entrevista que, logo a seguir, destaca a outra face da mesma
moeda, revelando que a abertura desse espaço às mulheres que têm a cor é con-
temporânea a sua exclusão de outros espaços:

A oportunidade aqui é para as mulatas, porque as brancas têm outras car-


reiras pra fazer.

Assumindo de maneira plena a idéia de que são símbolos sincréticos da


brasilidade, as mulatas incorporam também a representação segundo a qual são
portadoras de qualidades intrínsecas passíveis de manipulação em rituais de se-
dução do homem branco (no caso, sobretudo, o gringo).
Mas se a possibilidade de acionar profissionalmente essa aptidão é vislum-
brada como uma benesse, as mulatas correm permanentemente o risco de fra-
cassar pela ameaça de serem confundidas/deixarem-se confundir com a prosti-
tuta. Com efeito, elas se vêm defrontadas aos estigmas associados seja à imagem
da mulata sensual e disponível – que, contraditoriamente, aceitam, rejeitam e
devem representar/apresentar –, seja à imagem da mulher da noite.
Concluindo: nem prostituta, embora implicada em práticas de sedução e
inserida num espaço-tempo – a noite – que evoca permanentemente a prostitui-
ção, nem plenamente dançarina, embora inserida no campo dos profissionais da
dança, o ser mulata profissional é, antes de qualquer outra coisa, um permanente
exercício de rejeição de identidades negativas ameaçadoras, uma permanente
busca de associação a identidades idealizadas que não se completam.
A esta altura seria possível perguntar se, e em que medida, é o conjunto da
sociedade brasileira e das relações de gênero e raça que se atualiza nesse drama
de um grupo de mulheres cuja cor simultaneamente constitui a condição de sua

Mulatas Profissionais: raça, gênero e ocupação 137


profissionalização e a ameaça permanente de desqualificação da profissão que
exercem. Afinal, não têm sido as mulheres negras e mulatas, no imaginário brasi-
leiro, símbolo da sensualidade e espaço de projeção da dominação (do desejo) do
homem branco? Nas condições sociais vigentes, parece coerente que a existência
de uma profissão que discrimina positivamente a mulher negra seja, enquanto pro-
fissão, permanentemente ameaçada de discriminação negativa, ao mesmo tempo
em que aciona, contraditoriamente, os símbolos da sensualidade e da brasilidade.

Referências

BOURDIEU, Pierre. “Remarques provisoires sur la perception sociale du corps”.


Actes de la Recherche, n.14, p. 51- 54, avril 1977.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e de-


senvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985 [1936].

GIACOMINI, Sonia Maria. Profissão mulata: natureza e aprendizagem num


curso de formação . 1992. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

QUEIROZ JUNIOR, Teófilo. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasilei-


ra. São Paulo: Ática, 1975.

RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no


Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, s/d [1894].

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a inter-


dição em nossa cultura através da poesia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1975.

138 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Carta de uma
ex-mulata à Judith Butler1

Ângela Figueiredo

Cachoeira, 02 de fevereiro de 2015.

Prezada Judith Butler,

Agradeço pela oportunidade em ler algumas de suas análises sobre a


relação, ou a não relação entre sexo e gênero, e pela motivação e entusiasmo
com que os seus escritos tem chegado até aos alunos da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB)2, jovens estudantes interessad@s no tema,
mas que, devido ao ingresso recente na universidade, ainda conhecem pouco
sobre os Estudos de Gênero, apesar de demonstrarem absoluto interesse nos
conceitos propostos por você acerca de performance e de performatividade.
Em realidade, el@s estão seduzidos pelo discurso que informa e que constrói
tais categorias.

1
  Texto publicado originalmente na Revista Periódicus, n. 3; v. 1; maio-outubro de 2015.
2
  A UFRB é uma universidade localizada na histórica cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia,
berço da religiosidade e da cultura negra do Brasil. Inicialmente, acessei os textos de Judith Butler para
compreender o entusiasmo dos alunos com os escritos da autora.

139
É a primeira vez que vens ao Brasil e para nós é importante termos a opor-
tunidade de escutá-la na Bahia, um estado importante para as formulações do
debate sobre raça no Brasil.
Sou antropóloga de formação e fiz o doutorado em sociologia. A minha
formação tem sido definida como uma formação clássica na área de raça e classe,
ou no campo de estudos definido inapropriadamente no Brasil como o Estudo
das Relações Raciais, ao invés de Estudos das Hierarquias Raciais como reivin-
diquei (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007). Somente após a aquisição do
doutorado é que começo a incorporar a dimensão de gênero nas pesquisas que
tenho desenvolvido orientado e aprendido sobre o tema com os alun@s e colegas
da universidade em que trabalho. Há muito que tenho sido estimulada para es-
crever este texto que somente agora, graças às constantes provocações de Cintia
Tâmara, Felipe Fernandes3 e de outros que “apertaram a minha mente”, como se
diz por aqui, resolvi escrever. O meu ponto de partida reside em um interesse
muito especial no diálogo entre a problematização da identidade de gênero e na
sua correlação com a identidade racial e, conseqüentemente, dos efeitos dessas
perspectivas para o empoderamento4 e conquista de direitos para grupos ra-
cializados. Penso que estes dois campos, Estudos de Gênero e Estudos Raciais,
definidos a partir de uma abordagem teórica e de bibliografias muito distintas,
efetivamente, demonstram muitas similaridades. Escolhi tratar desse tema assu-
mindo a minha posicionalidade como um sujeito feminino negro, ativista, cuja
sexualidade e constituição familiar se constrói de forma contra-hegemônica,
constituído discursivamente em um contexto sócio histórico das relações raciais
e sexuais brasileiras, notadamente marcada pelo discurso da democracia racial e
pela recusa ao uso de categorias binárias e identitárias.
Nascida em uma sociedade em que a raça é discursivamente construí-
da, não polarizada, afinal de contas existia e existe hoje, ainda que em medida

3
  Professor da Universidade Federal da Bahia, a quem agradeço imensamente ao estímulo, a colaboração
e a leitura atenta.
4
  “O empoderamento de mulheres é o processo de conquista de autonomia, da auto-determinação. E
trata-se para nós ao mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O empoderamento
das mulheres implica para nós a liberdade das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão
patriarcal. Para as feministas latino-americanas em especial, o motivo maior do empoderamento das
mulheres é questionar e desestabilizar e por fim, acabar com a ordem patriarcal que sustenta a opressão
de gênero (...) Além de assumirmos o controle sobre nossos corpos, nossas vidas”. (SARDENBERG, 2006)

140 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


menor, uma escala classificatória da cor no Brasil, cujos pólos extremos são bran-
co e negro, mas que no interior desta escala existem inúmeras denominações da
categoria da cor, como, por exemplo, a categoria mulato, mestiço, cabo-verde,
moreninho, cor-de-telha, etc. O conceito de raça no Brasil há muito foi acrescido
do termo social para destacar a sua dimensão discursiva, uma construção social
(ver WAGLEY, 1952; GUIMARÃES, 2005). De modo muito breve, poderíamos
dizer que a história da formulação do conceito de raça no Brasil visava exata-
mente responder a um processo de “mistura” derivado da miscigenação entre
negros, indígenas e brancos que dificultava que o Brasil visse a si mesmo como
um país moderno e civilizado no século XIX, período em que vigorava a crença
nos efeitos maléficos da mistura racial. Nesse sentido, é evidente a relação entre
o discurso normativo do Estado que constrói os sujeitos supostamente não ra-
cializados - os mestiços e mulatos brasileiros -, ainda que a noção de mestiçagem
seja, ela mesma, oriunda da crença na existência de pelo menos duas raças.
Inicialmente, os “Estudos das Relações Raciais no Brasil” estabeleceram
uma comparação entre o Brasil e os Estados Unidos, com o intuito de entender,
sobretudo, a experiência negra no que se refere ao sistema classificatório da cor, às
manifestações do racismo, do preconceito e da ideologia racial. No início, a maio-
ria dos pesquisadores brasileiros, assim como os norte-americanos, consideravam
que o racismo na sociedade brasileira era inexistente por dois importantes moti-
vos: devido ao grande número de mestiços e a inexistência de segregação racial
oficial na sociedade brasileira. A partir do final dos anos 1970, os ativistas negros
brasileiros e alguns pesquisadores americanos ofereceram uma outra perspectiva5.
Para eles, o racismo no Brasil é pior do que o existente nos Estados Unidos, já que
aqui as desigualdades sociais caminham lado a lado com o discurso da democra-
cia racial e da mestiçagem, o que dificulta, sobremaneira, que os negro-mestiços
no Brasil tenham consciência da sua condição social estar relacionada à sua con-
dição racial e, consequentemente, assumirem a identidade negra.
É importante destacar aqui a relevância atribuída as categorias da cor pre-
sente no modelo racial brasileiro em que as denominações da cor ou da raça
estavam associados aos fenótipos, daí a importância atribuída à escala classifica-
tória e da auto-classificação da cor (NOGUEIRA, 1985; MAGGIE, 1996; SILVA,

5
  Ver Michael Hanchard (2001).

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 141


1994). Ainda que escrito nos anos 1950, Oracy Nogueira (2007), em seu clássico
Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem, aborda a diferença
marcante nas dinâmicas raciais nos dois países. De acordo com Nogueira (ib)i, o
preconceito no Brasil ocorre devido as marcas, os fenótipos raciais, a aparência;
enquanto nos Estados Unidos, o preconceito é de origem, marcados, portanto, pela
ancestralidade ou ascendência negra e sua situação de classe. Ainda com relação a
classificação da cor, a maioria dos autores enfatizava a importância da classificação
da cor no Brasil e o papel ocupado pelo mestiço escuro ou mulato na estratificação
social Brasileira, ou mulato como válvula de escape (DEGLER, 1976).
Contudo, se diferentes termos são empregados no cotidiano para a clas-
sificação da cor, as categorias oficiais do censo demográfico limitam-se a cinco:
brancos, pretos, pardos, indígenas e amarelos. Com exceção do censo popula-
cional realizado em 1970, o censo brasileiro tem tradicionalmente incluído o
item cor no questionário. Por outro lado, o termo negro, que tem sido cada vez
mais utilizado tanto nos textos acadêmicos quanto na linguagem política e rei-
vindicatória por direitos, não aparece como opção oficial. De acordo com Telles
(2003), há três sistemas de classificação da cor operando conjuntamente ou iso-
ladamente. São eles: a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica (IBGE); os inúmeros termos empregados na cultura popular e a classificação
bipolar negro e branco.
Dessa perspectiva, alisar o cabelo na sociedade brasileira pode não ser
visto apenas como um exercício de beleza, mas também pode ser considerado
como um modo de mover-se na escala classificatória da cor, tornando-se menos
negro. Considerando a importância atribuída ao cabelo na definição do lugar a
ser ocupado na escala classificatória da cor, o movimento negro brasileiro con-
siderou o uso do cabelo natural como símbolo de afirmação da identidade6. O
modelo que vigora hoje nos movimentos feministas negros jovens brasileiros
é uma assunção da identidade negra baseada na “aceitação de si”. O corte do
cabelo alterado por químicas desde a infância é um momento ritual de reconhe-
cimento enquanto mulheres negras.

6
  Tratei do tema da manipulação do cabelo e da assunção da identidade negra nos textos Dialogando
com os estudos de gênero ( 2008); Cabelo, cabeleira, cabeluda (2010) e no Impactos e representações sobre o
cabelo em uma exposição fotográfica (2012). Além da curadoria da exposição global African hair (2011).

142 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Ainda relacionado a esse tema, é importante destacar as pesquisas desen-
volvidas no âmbito do que convencionalmente chamamos de projeto UNESCO.
Grosso modo, poderíamos dizer que a escolha do Brasil pela UNESCO manti-
nha uma estreita relação com as preocupações advindas do pós-guerra, visando
acabar com as consequências da crença na existência de raças e do racismo. O
Brasil, portanto, teria um bom exemplo a dar ao mundo, qual seja, a convivência
harmônica entre as diferentes raças, já que aqui as raças não eram biologicamen-
te consideradas.
É importante destacar algumas mudanças de enfoque nos estudos sobre
as “relações raciais” empreendidos a partir do final dos anos 1970, sobretudo a
partir dos estudos realizados por Carlos Hasenbalg (1979), que demonstravam
as desigualdades no acesso à educação e nos desníveis de renda entre negros e
brancos, aliados às denúncias empreendidas pelo então recém-formado Movi-
mento Negro Unificado (MNU) sobre o preconceito e a discriminação racial
no Brasil. O final dos anos 1970 e toda a década de 1980 são determinantes por
revelar o esforço empreendido pelos movimentos sociais negros de um lado
e de outro a abordagem de pesquisadores como Hasenbalg (1979) que se em-
penharam em demonstrar que independente da auto-classificação da cor e da
diluição de categorias polares como aquelas existentes nos Estados Unidos, os
não-brancos, categoria utilizada por Hasenbalg, estavam em condições infe-
rior e diametralmente oposta aos brancos nos indicadores de educação, renda
e escolaridade.
Essa breve descrição do tema tem como objetivo estabelecer um paralelo
entre o contexto estadunidense e brasileiro no âmbito das desigualdades raciais,
onde no Brasil é particularmente destacada a ausência de identidades raciais
fixas ou binárias em oposição ao que ocorre nos Estados Unidos. Entretanto, a
conquista de direitos e o empoderamento de pessoas negras somente ocorreu
após os anos 1970, com a desarticulação da celebração da mestiçagem e do uso
de termos identitários branco-negro no modelo político bipolar.
Uma análise mais acurada do contexto brasileiro mostrará como no Brasil
a desconstrução do conceito de raça e sua desvinculação com a biologia/na-
turalização ocorreu há muitos anos atrás, talvez, antes mesmo da construção
do sistema sexo/gênero. Do ponto de vista da desconstrução da raça e de sua

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 143


conotação biológica, a experiência ocorreu logo após a abolição da escravatura,
quando o Brasil viu o seu projeto de formação do estado nação moderno amea-
çado pela massa de pessoas de origem negra-mestiça. Diferente do contexto
americano, a definição de raça no Brasil reflete a aparência e não a ancestralida-
de como destacado por Oracy Nogueira. Disse tudo isso com o propósito de de-
monstrar que o contexto brasileiro é muito distinto do contexto estadunidense,
e que os efeitos produzidos sobre o nosso contexto das políticas de identidade
não encontra terreno fértil em uma ideologia que prima pelo número impar
(DA MATTA, 1986). Quer dizer, no caso brasileiro, para os sujeitos não-bran-
cos, coloniais, do ponto de vista das lutas políticas por acesso a direitos, não há
motivo para a diluição das identidades. Neste sentido, Pelúcio (2014) conside-
ra que, no contexto brasileiro, “os estudos queer começam a ser referenciados
no Brasil no mesmo momento no qual experimentávamos o fortalecimento de
políticas identitárias (...) De maneira que uma teoria que se proclamava como
não-identitária parecia potencialmente despolitizante”; portanto, a concepção
inicial do termo remetia-se pouco a uma prática de vida que se coloca contra as
normas socialmente aceitas (COLLING, s/d)Em Pouvoir de Mots (2004;289),
Butler afirma que “(...) a identidade queer não tem portanto limites herméticos
e definidos, e se caracteriza, ao contrário, por sua fluidez, o que se constitui um
desafio a identidade”. (BUTLER apud VALE, 2005; 71). Para Miskolci (2009), a
teoria queer seria um “contraponto crítico aos estudos sociológicos sobre mi-
norias sexuais e à política identitária dos movimentos sociais”, Citando Michael
Warner, Miskolci (ib) observa que no Brasil a identidade se baseava em valores
como família, língua e tradição. A Teoria Queer não tem nem ambiciona ponto
de apoio similar. (...) o queer lida com sujeitos sem alternativa passada nem lo-
calização presente. (MISKOLCI, 2009, p. 160)
Considerando tais afirmações e assumindo o lugar de ex-mulata é que
proponho um diálogo com a teoria queer com o propósito de destacar os ga-
nhos políticos resultantes da afirmação da identidade negra em oposição aos
inúmeros termos utilizados para a classificação da cor e da ausência da identi-
dade étnico-racial. Do mesmo modo, quero sublinhar que as narrativas sobre
uma origem comum presente no discurso identitário não ocorrem isoladas e
nem são mais importantes do que o realce no combate ao racismo - representa-
ções e discursos do outro sobre nós - e da discriminação racial –atualização dos

144 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


discursos racistas através de práticas cotidianas que incidem sobre a materiali-
dade dos corpos, como, por exemplo, naquelas praticadas através da violência
policial contra os corpos dos homens negros, ou mesmo através da baixa remu-
neração de negr@s no mercado de trabalho. Sabemos que as definições identi-
tárias operam através de categorias homogeneizantes, entretanto, herdamos um
passado que insiste em afirmar a nossa diferença em termos de cor e de tipo de
cabelo, ou seja, trata-se de uma hierarquia da cor.
Roger Bastide (1976) considera que a negritude no Brasil é centrípeta, ou
seja, um discurso identitário que reclama por maior participação/inclusão na
sociedade brasileira, em oposição e negritude centrifuga, aquele que assume no
discurso centrifugo, uma espécie de reivindicação de retorno à África.
Como constatei, recentemente, a partir da minha experiência nos Estados
Unidos, há temas ou questões teóricas que são específicas do contexto brasileiro,
a exemplo da busca em compreender o significado da identidade negra. Quer
dizer, enquanto a antropologia brasileira debruçou-se na busca de entender o
que é ser negro, a antropologia americana jamais fez desta uma questão relevan-
te, ao que parece, a identidade étnico-racial é herdada no nascimento, ela é vista
quase que como um sinônimo da cor e da ancestralidade. No meu registro de
nascimento, o estado brasileiro me definiu como parda. Nascida numa família
de 10 filhos (7 meninos e 3 meninas), desde pequena aprendi a importância das
diferentes nuances da tonalidade da pele. Faço aqui ecos aos relatos de Gloria
Anzaldúa (1987) quando discorre sobre a experiência de ser a mais escura da
família e por apresentar traços mais marcadamente indígenas. La Petra, como
era chamada, indicava o seu lugar na hierarquia familiar. Como Anzaldúa sa-
lienta, essa experiência do racismo no interior da família, uma das instituições
mais importantes para o aprendizado e reprodução das ideológicas raciais e de
gênero, marcou profundamente a nossa subjetividade. Faço parte dos mais escu-
ros da minha casa, pois puxamos ao lado paterno, como dizem. Cresci ouvindo
brincadeiras que colocavam em xeque a minha origem; meu irmão dizia que eu
não era filha natural de minha mãe, mas que eu havia sido encontrada na lata do
lixo, enquanto sorria sentado ao meu lado. Graças a isso, desenvolvi uma sensi-
bilidade desde pequena para compreender as questões da cor, e sei como poucos
o significado de ser a mais preta da casa. Aqueles que me conhecem dirão que a

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 145


minha tonalidade de pele “nem é tão escura assim”, mas no contexto familiar era
isso que fazia a diferença. Em análise correlata, Sarah Schulman (2010) destaca
a homofobia existente no interior das famílias e o modo como tais práticas con-
tribuem para a construção de uma inferiorização do homossexual, mantendo-o
em posição de menor valor. A autora enfatiza duas experiências compartilhadas
da vivência homossexual: a primeira é o processo de assumir-se como homos-
sexual e a segunda é de inferiorização dentro da família. A autora considera
que as pessoas gays estão sento punidas no contexto familiar mesmo que nunca
tenham feito nada de errado. Como conseqüência dessas práticas, a pessoa gay
torna-se o bode expiatório dentro e fora da família. Na literatura brasileira rela-
tiva aos estudos raciais temos dado pouca atenção à compreensão das dinâmicas
da reprodução do racismo e do sexismo no interior das famílias. Embora sejam
corriqueiros os exemplos de que pessoas de pele mais escura são preteridas com
relação aqueles de pele mais clara em diferentes aspectos da relação familiar,
nas considerações aparentemente inofensivas no que se refere aos padrões de
beleza ou mesmo nas expectativas do desempenho escolar e das carreiras pro-
fissionais. De certo modo, ainda temos considerado as famílias negras-mestiças
como um espaço de proteção às dinâmicas externas a ela, ou temos silenciado
com relação as suas práticas excludentes. Certamente essa opção em proteger os
erros e afirmar a experiência familiar responde de maneira contundente ao ra-
cismo existente na sociedade que considera de modo demasiadamente negativo
a experiência das famílias negras, quando aceitam a sua existência. Entretanto, o
exercício proposto por Anzaldúa e Schulman ao denunciar o racismo, o sexismo
e a homofobia no interior da família demonstram como é importante o reconhe-
cimento dessa dupla opressão existente na família e na sociedade. O debate so-
bre o machismo e a homofobia no interior da comunidade negra tem sido uma
pauta encabeçada apenas pelas jovens feministas negras, insatisfeitas e não mais
dispostas a pactuar com o alto preço de silenciar tais questões. Sinceramente,
acho que já está na hora de romper o silêncio, de fazer ruir as estruturas familia-
res e sociais que tanto damos suporte como o quanto nos oprimem.
Essa apresentação pessoal objetiva deixar claro que o diálogo que pretendo
estabelecer com alguns dos seus escritos é menos no campo da sexualidade e
mais na arena da identidade. Hoje, li o seu texto sobre o termo queer no livro
Corpos que importam e verifiquei a existência de algumas comparações, ainda

146 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


que breves, com as relações de raça nos Estados Unidos. A leitura desse texto
somente me estimulou a prosseguir com as minhas questões e de certo modo
reforçou a minha iniciativa no estabelecimento desse diálogo.
Nesse texto, você indaga sobre as razões que permitiram a transformação
do sentido negativo para a positividade atribuída ao termo queer, em oposição
ao fracasso da mesma tentativa encabeçada pelos afro-americanos para a utiliza-
ção do termo nigger nos Estados Unidos, nosso equivalente ao termo negro. Na
experiência brasileira, o termo negro considerado anteriormente, notadamente
do período pós-abolição até os anos 1950, como negativo foi sendo paulatina-
mente positivado. Como muitos dos processos identitários, a positivação ocorre
através da afirmação de características consideradas negativas, processo conhe-
cido pelos feminismos brasileiros como “guerrilha de linguagem”.
O intento de destacar os contextos em que as formulações teóricas são con-
duzidas já foi observado por outras autoras quanto do uso da perspectiva queer.
Marie-Hélène Bourcier (2012) considera que na França há uma busca por re-
produzir o contexto americano, portanto, longe de ser a experiência queer liber-
tadora e de empoderamento, demonstra ser uma incansável busca por anular as
diferenças culturais locais. Como observado por Pelúcio (2014), a tendência ini-
cial no Brasil foi de “aplicar os achados teóricos e conceituais queer, mais do que
tencioná-los e, assim, produzir nossas próprias teorias”. Ainda que não tenha
estabelecido nenhuma comparação com o Brasil, Márcia Ochoa (2014) aborda o
contexto venezuelano em que são visíveis as semelhanças com o contexto brasi-
leiro. Ochoa destaca a relação entre gênero, sexualidade, raça, beleza e nação em
contextos sociais bastante distintos do norte-americano.
Nesse sentido, podemos dizer que em termo das identidades raciais e se-
xuais o contexto latino-americano, com particular ênfase para o Brasil, sempre
foi queer, se consideramos, prioritariamente, a fluidez da categoria e o desafio à
identidade presente nessa categoria (BUTLER, 2004). Quer dizer, em contexto
particularmente misturado em que o Estado é caracterizado pela falta de res-
peito aos direitos das minorias, da sexualização das mulheres nas narrativas da
identidade nacional e desrespeito à cidadania, o modo ainda eficaz para obten-
ção de direitos tem sido através da articulação coletiva e da mobilização política
formuladas em termos identitários.

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 147


Outro conceito que trabalhas muito em sua obra que parece dialogar com
o contexto brasileiro é o de melancolia (BUTLER, 1999). Em Édipo Brasileiro,
Rita Segato (2006) recorre à mitologia afro-brasileira das diferentes maternida-
des dos orixás femininos Oxum e Iemanjá para estabelecer uma correspondência
entre a mãe biológica e a mãe que cria, função exercida pela babá, uma mulher
negra. Na abordagem de Segato, a mulher branca não exerce a função materna,
pois a mesma seria exercida pela ama de leite durante o período escravista e
posteriormente pelas babás. Isso criaria uma identificação e desejo do menino
branco pela mulher negra que é interditado pelas estruturas racistas. A melanco-
lia seria então fruto da perda do desejo não realizado pela mulher negra.
Semelhante análise é feita por Lélia Gonzales anos antes (1988), ao analisar
o racismo como uma neurose da sociedade brasileira. De acordo com a auto-
ra, a mulher negra é quem dá educação, carinho e ensina as primeiras palavras
de preto, ou o pretuguês, como Lélia se refere. Da perspectiva da psicanálise, o
desejo da criança por quem exerce a função materna é uma característica uni-
versal da condição humana. Nesse sentido, há um desejo dos homens brancos
pela mulher negra desde a mais tenra idade. Entretanto, as estruturas racistas
impedem a realização desse desejo, o que cria a violência e o ódio racial. Essa é
a característica mais marcante da nossa sociedade.
Noutra direção, autores clássicos tinham interpretado as conseqüências
de uma sociedade formada pela ausência paterna. Sabemos que os padrões de
relacionamentos que deram origem às primeiras gerações de mestiços não re-
sultaram de uma relação afetiva consensual, horizontalizada. Fruto da violência
contra as mulheres negras e indígenas ou de relacionamentos extraconjugais, os
mestiços brasileiros não tiveram a oportunidade do convívio com os pais bran-
cos. No seu pensamento, a melancolia é o luto não vivenciado. Nesse sentido, em
que medida o mestiço brasileiro vive uma melancolia racial?
No seu trabalho, como no pensamento de Michel Foucault, a identidade
é o resultado da imposição da norma disciplinar sobre o sujeito e do engaja-
mento do sujeito na sua reprodução. Desse modo, o preço para a obtenção de
uma identidade socialmente inteligível é a subordinação, porque essa identidade
nos encarcera em papeis sociais rígidos (KNUOSEN, 2006). Mas esse processo
de encarceramento só é bem sucedido quando o próprio sujeito participa dele

148 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


ativamente. Assim sendo, a construção da identidade, no seu pensamento, de-
pende em grande parte de uma “auto-opressão” (BUTLER, 1997).
Analisando a experiência negra brasileira observa-se que o processo iden-
titário ocorre através de duas perspectivas: por um lado, constata-se uma ruptu-
ra com a reprodução de normas e valores que insistem em desumanizar o sujeito
negro; por outro, há uma investida na reelaboração de discursos e práticas que
sejam capazes de reinventar o corpo e a experiência negra.
A afirmação de que a instância política exige um sujeito estável correspon-
de, de certo modo, a constatação de que não pode haver oposição política a essa
afirmação. Assim você diz, ao defender a distinção entre recusar a existência do
sujeito como premissa e recusar completamente a noção de sujeito. Você es-
taria tentando deslocar o feminismo do campo do humanismo, como prática
política que pressupõe o sujeito como identidade fixa, para algo que deixe em
aberto a questão da identidade? Algo que não organize a pluralidade, mas a
mantenha aberta sob permanente vigilância (SALIH, 2012). Uma correlação
com a mestiçagem no Brasil permite indagar sobre a não preservação da plu-
ralidade, ainda que esta seja a sua retórica. Aqui a mestiçagem também buscou
a padronização dos fenótipos e dos discursos que caminham pari passu com
a negação da existência do racismo e dos reclamos de fortalecimento de uma
consciência racial. Quer dizer, o oposto da identidade/homogeneidade seria
a pluralidade/heterogeneidade presente na experiência de mestiçagem, o que
não ocorreu em nosso contexto.
Desse ponto de vista, a homogeneidade dos discursos que acompanham as
identidades oprime os indivíduos porque os obriga a adequarem-se à coletivida-
de. No caso do Brasil, o recurso ao discurso da identidade negra não tinha como
pano de fundo um contexto que primasse pela diferença e heterogeneidade dos
sujeitos negros; de modo contrário, em contextos estruturados pelo racismo,
o recurso aos discursos identitários busca dar sentido à experiência através da
articulação coletiva de um discurso hegemônico que busca também responder
a um conjunto de estereótipos e de estigmas que são generalizados para o gru-
po. O que quero destacar é que a visão homogeneizante e generalizada que faz
subsumir as singularidades/particularidades não está presente apenas nos dis-
cursos afirmativos do reconhecimento e da identidade; na verdade o recurso às

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 149


generalizações é parte estruturante do discurso dominante. Certa vez, quando
estava entrevistando um afro-americano, ele relatou que ainda que tivesse sido o
melhor jogador de beisebol e o melhor estudante de sua classe quando cursava
o high school, tudo que conseguiria seria ser considerado uma ótima exceção às
regras. Isso quer dizer que o desempenho individual não afeta as representações
negativas sobre o desempenho intelectual dos homens negros.
Retomarei brevemente a clássica distinção entre políticas de redistribuição
e de reconhecimento proposta por Nancy Fraser (2001). De acordo com essa
abordagem, a redistribuição estaria relacionada aos aspectos econômicos, prin-
cipalmente envolvendo a classe social. Enquanto a política de reconhecimento
envolveria as questões de diferença/identidade. Em contextos fortemente mar-
cados por discriminação são exigidas políticas de reconhecimento, entretanto,
Fraser considera que isso não precisa e não deve ser feito a partir de políticas
de identidade. No contexto brasileiro há uma melhor aceitação das políticas de
redistribuição frente às políticas de identidade (ver a relativa maior aceitação da
reserva de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas em comparação
com a reserva de vagas para negros na universidade).
Uma perspectiva conservadora sobre a identidade tem abordado apenas os
aspectos relativos à perda da singularidade, do direito a diferença... Essas pers-
pectivas têm deixado de lado o fato que de que as identidades são dinâmicas, são
reinventadas, são discursivamente construídas em contextos históricos socais
específicos. Além disso, os discursos coletivos permitem retirar os sujeitos dis-
criminados do isolamento a que foram submetidos historicamente.
Nas dinâmicas identitárias, a auto-identificação ou o auto-reconhecimen-
to dos sujeitos ou grupos vitimizados/excluídos/oprimidos são determinantes.
Ainda segundo Pinto (2008), o reconhecimento como auto-reconhecimento é
essencial para a construção do sujeito da ação na luta social. Só existe o domina-
do contra a dominação se este se reconhecer como tal. Não há feminismo antes
da feminista, assim como não há paridade participativa antes do sujeito auto-
-reconhecido como igual (ib).
Quero agradecer a Leandro Colling por ter oportunizado a redação desse
texto. Escolhi escrever uma carta, pois considero que esse estilo narrativo me
permite, com maior facilidade, adentrar em aspectos teóricos e pessoais. Quero

150 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


agradecer a Alda Motta por me estimular a prosseguir nessa empreitada e por
definir essa estratégia narrativa como sendo “metodologicamente criativa”.
Certamente, o uso do recurso metodológico da escrita através de uma carta
está relacionado com as abordagens qualitativas utilizadas inicialmente pela Es-
cola de Chicago. O método de história de vida, assim como as biografias, objeti-
va apreender as articulações entre a história individual e a história coletiva, uma
ponte entre a trajetória individual e social. A biografia, ao tornar-se discurso
narrado pelo autor, ou seja, as auto-biografias ou auto-relatos, instaura sempre
um campo no qual estão presentes a possibilidade de releitura e reinterpretação
dos fatos. Nesse sentido, uma carta não é exatamente uma auto-biografia, mas é
uma possibilidade da autora se colocar como protagonista, de estabelecer uma
releitura de sua trajetória empírica, interpretando e dialogando com o que tem
sido proposto do ponto de vista teórico.
Dito isso, quero recuperar os processos através dos quais construí a minha
subjetividade e identidade. Ressaltar o contexto histórico e social em que tal ex-
periência é formulada é de fundamental importância. A propósito, o termo mu-
lata ou ex-mulata, que intitula este texto, refere-se a uma experiência pessoal de
transformação ou assunção identitária. Como a maioria dos brasileiros mestiços
escuros, nascemos pardos, essa é a categoria oficial utilizada no censo demográ-
fico e que estava presente na maioria dos documentos quando da sua obrigato-
riedade. Diferente dos Estados Unidos, a categoria da cor no Brasil não é sinôni-
mo de identidade racial. O processo de tornar-se negro, como bem descrito por
Neusa de Souza (1990), é um processo lento de busca por uma auto-definição
perpassado por contextos históricos e políticos, por tensões e descobertas, por
histórias familiares e pela subjetividade.
Importante aqui é também recuperar a diferença entre os termos mulato
e mulata. Mariza Corrêa (1996), num instigante texto, mostra como os mulatos
estiveram associados ao desenvolvimento econômico do nosso país: o mulato
esteve associado ao progresso. Nesse sentido, poderíamos acrescentar que a ca-
tegoria mulato é interceptada pelo gênero, pois, afinal de contas, o mulato no
Brasil sempre esteve associado a incorporação dos homens negros-mestiços, ou
mulatos, à estrutura produtiva. Do ponto de vista da narrativa da formação do
Estado-Nação, a mobilidade social dos mulatos era a prova inconteste da não

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 151


existência do racismo em nossa sociedade. De modo contrário, a mulher mulata
foi discursivamente construída como um sujeito sexualizado, responsável pela
procriação dos mestiços brasileiros. Quero com isso destacar como o Estado
construiu não somente sujeitos racializados quanto sexualizados, reproduzindo,
deste modo, as estruturas racistas e sexistas que caracterizam a nossa sociedade,
ao invisibiliza, na sua narrativa, o fato de que as mulheres negras eram não so-
mente reprodutoras, mas, em igual medida, eram também produtoras.
Ainda com relação à categoria mulato/mulata é importante destacar o tra-
balho de Sonia Giacomini (2006), ao abordar, em sua pesquisa sobre um curso
de formação de mulatas, referindo-se a um conhecido brasileiro que formava
grupos de dançarinas negras e mestiças para apresentar-se em casas de shows no
Rio de Janeiro e no exterior. Nesse sentido, a categoria mulata não é apenas uma
categoria racial, resultante do processo de miscigenação, mas é também uma
categoria profissional, de gênero e de geração. Isso permite compreender que há
também ex-mulatas, ou seja, profissionais que abandonaram a dança e seguiram
outras trajetórias profissionais. Certamente, a referência à categoria ex-mulata
utilizada neste texto não se refere ao fato de eu ter sido mulata profissional, leia-se
dançarina, mas ao fato de que, ao longo da minha experiência, eu ter escolhido
uma auto-identificação identitária ao me definir como negra, seguindo o mes-
mo devir de muitas mulheres negras no Brasil.
Do mesmo modo, gostaria de salientar que a construção do corpo femini-
no negro, discursivamente construído como símbolo de resistência e como um
elemento importante para a afirmação da identidade negra no Brasil foi elabo-
rado como uma resposta para a excessiva representação sexualizada atribuída
ao corpo da mulata. Quer dizer, mais do que um discurso endereçado à mulher
branca, o discursivo afirmativo da mulher negra tem como objetivo a descons-
trução da mulata discursivamente e sexualmente construída. O que importa
agora é opor à imagem da mulata faceira, sexualizada, construindo, assim, a
imagem de uma mulher negra orgulhosa de si e, portanto, valorizada.
Esse discurso constitui, evidentemente, uma rejeição aos discursos consti-
tutivos da mulata, tanto no que diz respeito às narrativas relativas à formação da
identidade nacional (CÔRREA, 1996; PINHO, 2004; MOUTINHO, 2004) quanto
ao papel sexual/sensual desempenhado pela mulata como profissão. Gillian (1995)

152 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


observou como as mulatas esforçam-se para se distanciar das mulheres pretas. O
que se verifica é que tanto a mulata quanto à negra são construídas relacionalmen-
te, uma em oposição aos discursos e práticas que constituíram a outra.
O que se evidencia a partir desses textos é que a categoria mulato/mulata
não é apenas uma categoria racial, ou uma categoria de cor, como poderíamos
ingenuamente imaginar; mas ela reflete uma construção social sobre a raça no
Brasil, onde a cor e os fenótipos são associados aos comportamentos de gênero
e de geração. Por isso mesmo, trata-se de uma categoria que é interceptada pelo
gênero, quer dizer, as representações sobre as mulatas são diferentes daquelas
construídas sobre os mulatos.
O debate em torno do significado da raça, das categorias raciais, da mes-
tiçagem e da classificação da cor no Brasil é o terreno em que se movem alguns
dos textos antropológicos que articulam as categorias gênero e raça. Explorando
cada vez mais esse tema, podemos entender também como a concepção da raça
é diferente para homens e mulheres. Gillian, por exemplo, sugere que o cabelo é
o entrelaçamento entre as categorias de gênero e raça e observa que “de todas as
características, é o cabelo o que marca a raça e o que mais significa para a mulher”
(1995; 533). Acrescentaria o fato de que também a vivência do racismo é dife-
rente para homens e mulheres. Os homens negros, sobretudo os jovens negros,
estão mais expostos à violência física, institucionalizada ou não; enquanto que
as mulheres são mais vulneráveis a outro tipo de violência, não somente aquelas
que condicionam a aparência às oportunidades de trabalho (CARNEIRO, 1995),
mas, principalmente, as que estão relacionadas às representações sobre o corpo e
à construção de padrões de beleza hegemônicos que desconsideram a existência
da beleza negra.
Como mencionado anteriormente, no Brasil nascemos pardos. Na adoles-
cência, com a transformação do corpo que categoriza essa fase, nos tornamos
mulatas e, na fase adulta, nos tornamos negras, ou, melhor, eu me tornei negra.
Essa é uma experiência que caracterizou muitas pessoas de minha geração e que
se mostra relativamente diferente para as novas gerações, sobretudo para aqueles
e aquelas com menos de 25 anos de idade. Tornar-se negra, portanto, descreve
um processo de afirmação e de busca por uma auto-definição, ou, como sugere
Patricia Hill Collins, a busca pelo controle da imagem.

Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 153


Em contextos em que ainda opera a colonialidade do poder7 como aquele
existente na sociedade brasileira, antes mesmo da criança negro-mestiça nas-
cer há uma imensa especulação acerca da sua tonalidade de pele e da textura
do seu cabelo. Dois fenótipos importantes para a auto-classificação da cor no
Brasil. O desejo por filhas e filhos de pele mais clara, mas, principalmente, de
cabelo menos crespo, se conecta com as representações de gênero. “Se nascer
menina pode até ter uma pele mais escura, desde que o cabelo não seja crespo”.
Em caso da criança ser um menino os pais se apressam em cortar bem curto
os seus cabelos crespos.
Mas, afinal, o que é uma imagem? As imagens são representações de si
construídas pela sociedade através de seus discursos que nos constituem como
sujeitos. Contudo, Patricia Hill Collins reivindica que é preciso assumir o con-
trole da imagem, pois somente assim será possível a construção de uma auto-de-
finição ou de uma auto-imagem positiva. Franz Fanon (2008) descreve o modo
como os sujeitos coloniais constroem a sua imagem. De acordo com o autor, o
que se vê diante o espelho é uma imagem que reflete somente a negação, rejei-
ção e falta. Por esse motivo, o olhar que nos constrói e a linguagem que usamos
para nos descrever são caracterizados pela ausência, pela negação de si enquanto
sujeitos. Não é por acaso que um dos aspectos mais importantes do discurso
identitário é a afirmação de si enquanto sujeito e a linguagem é parte significa-
tiva deste processo.
No que se refere às desigualdades e hierarquias presentes no debate sobre
os estudos de raça no Brasil, gostaria de destacar que não somente advoguei
em prol de uma mudança de nome do campo definido como estudos das re-
lações raciais no Brasil para estudos das hierarquias raciais (FIGUEIREDO e
GROSFOGUEL, ib). Assim como quero destacar as análises realizadas sobre a
escala classificatória da cor em que era destacado o papel desempenhado pelo
mulato como intermediário, como diluidor das fronteiras/tensões entre negros e
brancos. Nesse sentido, estou efetivamente apontando para as hierarquias raciais
existentes entre os não-brancos e sublinhando que embora os mulatos tenham

7
  De acordo com Anibal Quijano (2002), as independências nas Américas ocorreram sem que houvesse
a transformação das hierarquias raciais existentes no período colonial. A colonialidade do poder seria,
portanto, a manutenção dessas hierarquias e do privilégio assegurado aos brancos-crioulos.

154 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


sido benefíciados pela aparência física mais próxima dos brancos, eles de fato
estavam muito mais próximo dos pretos em termos dos indicadores de renda e
de escolaridade.
Para finalizar, quero reafirmar a importância de analisar os contextos em
que o discurso sobre a identidade e a diferença são destacados. Como procurei
demonstrar, as diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil são significativas no
que diz respeito não só sobre a formulação do conceito de raça e de identidade
quanto ao modo como Estado lida com os direitos para as populações minori-
tárias. No caso brasileiro, foi somente através do sentido identitário e político
atribuído à categoria negro, em contraposição às misturas e fluidez das inúmeras
categorias raciais que estruturam o racismo à brasileira, que as conquistas foram
galgadas. Do ponto de vista mais subjetivo, enquanto eu me definia como mes-
tiça ou mulata ficava sempre a mercê da concordância ou discordância daqueles
para o qual eu me dirigia, quer dizer, era uma categoria que precisa sempre ser
negociada. Contudo, foi somente a partir do processo de tornar-me negra que
rompi com um ciclo em que a minha identificação passava pela aprovação do
outro. Quanto à perda da singularidade que caracteriza os sujeitos nos processos
de afirmação de identidade, quero lembrar que os discursos racistas e sexistas
são pioneiros em nos considerar de maneira homogênea e estereotipada. Dito
de outro modo, enfoquei a minha experiência para dizer que analiso de for-
ma positiva o processo de assunção da identidade racial no contexto brasileiro
considerando os seus ganhos políticos – destaco a adoção da reserva de vagas
para negros nas universidades públicas - e no âmbito das representações sociais
– através da reformulação do discurso que construiu a mulata sexualizada e da
atuação coletiva em reposta a ato de discriminação, como, por exemplo, através
do cabelaço, ação realizada em lugares em que as mulheres negras são discrimi-
nadas por não utilizarem o cabelo alisado.

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Carta de uma ex-mulata à Judith Butler 159


Políticas Públicas e Educação
para Indígenas é Sobre Indígenas1

Antonella Maria Imperatriz Tassinari


Izabel Gobbi

Introdução

No Brasil, o sistema de ensino passou por uma ampla reformulação de-


corrente da promulgação da Constituição Federal, em 1988, e da consequente
aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996.
Este artigo procurará fazer um balanço das consequências e desafios destas mu-
danças no que se refere ao tratamento dos conhecimentos indígenas nas escolas
indígenas e nas escolas convencionais.2 Nosso foco está voltado para o reconhe-
cimento dos saberes indígenas e sobre indígenas nas políticas públicas relativas
à educação escolar.
No caso da educação escolar indígena, não se pode dizer que as transfor-
mações se deram em virtude da legislação, mas bem o contrário, as mudanças
na legislação brasileira a respeito dos direitos indígenas é que são frutos de um
grande movimento social que aglutinou lideranças indígenas de todo o país, com
o apoio de intelectuais e religiosos, ao longo dos anos 1980 (SANTOS, 1989).

1
  Texto publicado originalmente na Revista Educação, v. 34; n. 1; janeiro-abril de 2009.
2
  Na falta de termo melhor, chamaremos de “escolas convencionais” aquelas que funcionam em todo
o território nacional e seguem os parâmetros curriculares oficiais, como forma de diferenciálas das
escolas indígenas, que funcionam, em sua maioria, nas aldeias indígenas e podem optar por currículos
diferenciados.

161
Para a discussão que se segue, será oportuno citar alguns aspectos da le-
gislação, a começar pelos artigos da Constituição de 1988 que se referem aos
saberes indígenas:

Art. 210 § 2º: O ensino fundamental regular será ministrado em língua


portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de
suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais
e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização
e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º: O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indíge-
nas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo ci-
vilizatório nacional.
Art. 231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tra-
dicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.

Já os artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que se refe-


rem aos saberes indígenas e sobre indígenas são:

Art. 26: Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada estabelecimento escolar,
por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais
da sociedade, da cultura e da econo-mia.
§ 4º o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especial-
mente das matrizes indígenas, africana e européia.
Art 78: O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências
federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá pro-
gramas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de Educação escolar
bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de
suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a va-
lorização de suas línguas e ciências;
II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informa-
ções, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais
sociedades indígenas e não-indígenas.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs – (MEC, 1997) encontra-


mos a questão da pluralidade cultural como um dos temas transversais. Dentre
os objetivos indicados pelos PCNs para o ensino fundamental está o de:

162 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


[...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasi-
leiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicio-
nando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais,
de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características indi-
viduais e sociais.

Nos PCNs há o entendimento de que tratar a temática da pluralidade cul-


tural nas escolas é contribuir para o combate ao preconceito e à discriminação
“em suas mais perversas manifestações” (MEC, 1997, p. 24) e contribuir, igual-
mente, para a “construção da cidadania na sociedade pluriétnica e pluricultural”
(MEC, 1997, p. 59). Cabe aqui uma crítica formulada por Valente (2003), que
discute minuciosamente a questão da pluralidade cultural presente nos PCNs e
demonstra que, ainda que o texto cause boa impressão numa primeira leitura, há
que se reconhecer que a demasiada atenção dada à diferença cultural e à sua pos-
sibilidade de articulação no espaço escolar acaba “despolitizando” e mascarando
relações de poder e dominação presentes na sociedade brasileira.
De qualquer forma, há avanços inegáveis nos PCNs quanto ao reconheci-
mento da diversidade sociocultural brasileira e, no caso das escolas indígenas,
por reiterar que estes povos têm pedagogias próprias. Sobre a temática indígena,
os PCNs fazem a seguinte consideração:

Tratar da presença indígena, desde tempos imemoriais em território na-


cional, é valorizar sua presença e reafirmar seus direitos como povos nati-
vos, como tratado na Constituição de 1988. É preciso explicitar sua ampla
e variada diversidade, de forma a corrigir uma visão deturpada que ho-
mogeneíza as sociedades indígenas como se fossem um único grupo, pela
justaposição aleatória de traços retirados de diversas etnias. Nesse senti-
do, a valorização dos povos indígenas faz-se tanto pela via da inclusão nos
currículos de conteúdos que informem sobre a riqueza de suas culturas e
a influência delas sobre a sociedade como um todo, quanto pela consoli-
dação das escolas indígenas que destacam, nos termos da Constituição, a
pedagogia que lhes é própria (MEC, 1997, p. 39).

Tal preocupação também está presente na legislação referente à educa-


ção infantil. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (MEC,
1998) assegura que as práticas educativas devem “promover e ampliar as condi-
ções necessárias para o exercício da cidadania das crianças brasileiras” (MEC,

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 163


1998, p. 13) e, para que isso seja possível, um dos princípios regentes deve ser “o
respeito à dignidade e aos direitos das crianças consideradas nas suas diferenças in-
dividuais, sociais, econômicas, culturais, étnicas, religiosas, etc.” (MEC, 1998, p. 13).
Dentre os objetivos gerais estabelecidos pelo Referencial Curricular Na-
cional para a Educação Infantil está o de estimular na criança a capacidade de
“conhecer algumas manifestações culturais, demonstrando atitudes de interesse,
respeito e participação frente a elas e valorizando a diversidade” (MEC, 1998,
p. 63). O RCNI recomenda que a pluralidade cultural deva estar na pauta dos
trabalhos desenvolvidos pelas instituições de educação infantil e que a criança,
na construção da sua identidade e autonomia, deve ser estimulada a aceitar-se e
a aceitar os outros como diferentes.
Estes aspectos da legislação brasileira estão em conformidade com a le-
gislação internacional, no que se refere à questão do tratamento, na educação
escolar não-índia, de temas relacionados à temática indígena. A Organização
Internacional do Trabalho (OIT) teve sua convenção n. 169, sobre povos indí-
genas e tribais, adotada em 27 de junho de 1989 pela Conferência Internacional
do Trabalho, 76ª Sessão, e ratificada por vários Estados, sendo o Brasil o último
Estado – membro a ratificá-la. Tal convenção, em seu artigo 31, postula que,
dentre outras medidas:

Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da


comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato
mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os
preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos. Para esse fim,
deverão ser realizados esforços para assegurar que os livros de História e
demais materiais didáticos ofereçam uma descrição equitativa, exata e ins-
trutiva das sociedades e culturas dos povos interessados. (OIT, 2003, p. 21)

A partir desse breve apanhado, se-percebe que a legislação brasileira reco-


nhece os saberes indígenas e prevê sua inclusão não apenas nas escolas indíge-
nas, mas também nos currículos das escolas convencionais e propõe a todas as
escolas uma parte curricular diversificada para se adequar às características cul-
turais e econômicas de sua clientela. Especialmente às escolas indígenas, propõe
ações específicas para o desenvolvimento de programas de ensino interculturais.

164 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


A seguir, ao analisarmos os avanços e dificuldades da execução dessa legisla-
ção e dessas diretrizes, procuraremos refletir sobre a dificuldade mesma do reco-
nhecimento de outras tradições de saberes e processos de ensino e aprendizagem.

Desafios do ensino sobre indígenas nas escolas


convencionais

No que tange às escolas convencionais, Gobbi (2006) analisou detalhadamen-


te, em sua dissertação de mestrado, a maneira como a temática indígena é retratada
em livros didáticos de História destinados às séries 5ª a 8ª do Ensino Fundamental,
que foram avaliados e recomendados pelo Ministério da Educação (MEC), nos anos
de 1999 a 2005, mediante o novo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)3,
livros estes que são distribuídos às escolas públicas de todo o país.
Os livros oficiais – analisados, comprados e distribuídos pelo Governo Fe-
deral – ocupam um lugar fundamental no sistema educacional brasileiro e re-
presentam um importante investimento financeiro por parte do Governo. Além
disso, como já dito, a legislação brasileira, no que concerne à educação, postula
que as escolas e instituições de educação infantil devem trabalhar com questões
relativas à diversidade cultural.
Na maioria dos livros didáticos analisados pela autora são reproduzidos
pressupostos evolucionistas e valores etnocêntricos, os povos indígenas são
mencionados como pertencentes ao passado, caracterizados como primitivos e
têm seus conhecimentos desconsiderados – “as referências às culturas não-euro-
péias são sempre em relação ou em comparação às culturas européias, dando a
essas ultimas uma valoração positiva, em detrimento das outras” (GOBBI, 2006,
p. 61). O tom evolucionista permeia a abordagem dos livros didáticos, nos quais
a temática da “evolução”, da história em “etapas” é bastante recorrente. Podemos
exemplificar com algumas afirmações encontradas em tais livros, como a que
está a seguir e que foi extraída de um capítulo que tinha como tema a formação
da sociedade brasileira:4

  Somente a partir do ano de 1999 o novo PNLD passou a avaliar e recomendar os livros de 5ª a 8ª séries.
3

  As citações dos livros analisados por Gobbi (2006) não contém referências bibliográficas propositada-
4

mente. Todos os grifos das citações são das autoras.

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 165


Os índios que viviam no Brasil quando os portugueses desembarcaram, em
1500, eram muito primitivos. Ainda estavam na Era da Pedra Lascada, isto
é, não sabiam fazer ferramentas de ferro ou de outros metais. Eles influen-
ciaram na língua, na alimentação e nos nomes de localidades e acidentes
geográficos.

Nessa citação, os indígenas são considerados primitivos, quando compara-


dos aos portugueses, em função de não fabricarem determinados instrumentos.
Segundo Lévi-Strauss (1976), esta é uma “visão ingênua”, que resulta “de uma
total ignorância da complexidade e da diversidade das operações implicadas nas
técnicas mais elementares” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 352). E, ainda, todos os
diferentes povos “possuem e transformam, melhoram e esquecem técnicas su-
ficientemente complexas para permitir-lhes dominar seu meio; sem o que já te-
riam desaparecido há muito tempo” (p. 357). Ressaltamos que essas observações
de Lévi-Strauss, da obra Raça e História, foram feitas na década de 1950 e que,
portanto, já poderiam estar amplamente incorporadas aos textos didáticos.
Na citação a seguir, afirma-se que os povos indígenas estão “em extinção”,
além da referência aos indígenas como uma “espécie”, atribuindo uma diferen-
ciação biológica, “racial”, entre índios e não-índios, quando, na realidade, as di-
ferenças são culturais:

Comparados a nós, os índios que viviam no Brasil eram menos desenvol-


vidos quanto à utilização de técnicas e instrumentos. Nós possuímos co-
nhecimentos técnicos muito mais desenvolvidos que os deles. O contato,
que no caso do Brasil começou a acontecer em 1500, demonstra, no entan-
to, que, em virtude da superioridade técnica e das diferenças sociais entre
brancos e índios, estes últimos sempre levaram a pior. [...] Hoje, os índios
são uma espécie em extinção!

Gobbi também encontrou muitas informações contraditórias e confusas


nos livros didáticos analisados, observando que:

[...] ora os autores, nas informações veiculadas, concebem os indígenas


como seres inferiores, “primitivos”, menos “avançados” ou mais “atrasados”
do que os não-índios, que, por sua vez, seriam “superiores” técnica e cul-
turalmente, ora criticam essa perspectiva. [...] ora afirma-se que as culturas
indígenas foram destruídas, que seu processo histórico foi interrompido,
dando a impressão de que os povos indígenas teriam sido completamente

166 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


extintos, ora afirma-se que estes ainda resistem, vivem no tempo presente.
(GOBBI, 2006, p. 65)

Do mesmo modo, destaca-se a constatação de que a maior parte das refe-


rências aos povos indígenas, naqueles livros, encontra-se nos capítulos dedica-
dos à colonização portuguesa, em que o foco principal costuma ser o “branco”
colonizador e seu contato com os habitantes do continente, sendo que, nos ca-
pítulos dedicados, especificamente, à temática indígena, a maioria das informa-
ções sobre as diversas culturas dos povos indígenas aparece no tempo pretérito.
Os livros didáticos trazem algumas referências à “ocupação da Amazônia”,
à atuação dos jesuítas junto aos grupos indígenas e às missões. Gobbi observa
que da maneira como o assunto costuma ser tratado dá a entender que a Ama-
zônia era um imenso vazio demográfico, não era habitada por nenhum grupo
humano, quando, ao contrário, sabe-se que era ocupada por diversos deles, arti-
culados em extensas redes de relações.
Importante destacar, ainda, que em tais livros didáticos nem sempre os
indígenas são concebidos como passivos em relação à colonização, entretanto,
alguns autores não deixam de atribuir a eles uma idéia de demérito. E, além
disso, “em muitos casos, a agência indígena é apresentada na figura daqueles
que lutaram contra outros índios ou negros, formando bandeiras ou atuando
como ‘capitães do mato’”, de tal modo que “assim retratada, essa não passividade
indígena é também apresentada de forma negativa” (GOBBI, 2006, p. 73), como
exemplifica a seguinte citação:

Os índios, depois de integrados à sociedade colonial, funcionavam como


capitães-do-mato na perseguição de negros escravos fugidos e trabalhavam
também na pecuária, uma atividade que lembrava a caça para eles.

Também foram encontradas as seguintes considerações:

Vejamos, por exemplo, o que aconteceu com inúmeras tribos indígenas. Ao


entrar em contato com os civilizados, os componentes das tribos ouvem
falar de um Deus único e verdadeiro, de um Deus feito homem que morreu
na cruz para salvar os homens, em santos e em milagres. Aprendem a rezar
e a participar da missa. Mas as velhas crenças que possuíam não desapa-
recem de sua memória, não somem completamente. Nas suas cabeças, as
novas crenças são incorporadas às antigas. Há junção, não substituição.

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 167


Para muitos índios, os santos são o mesmo que os antigos espíritos das flo-
restas. E, então, a nova religião torna-se uma espécie de “salada mista”, um
“balaio de gatos” danado!

De acordo com Gobbi:

Está evidente a forma pejorativa como os autores se referem ao que cha-


maram de “religiosidade popular”. Este é mais um exemplo da dificuldade
que demonstram em abordar a agência indígena: ou sua cultura é “des-
truída” ou vira um “balaio de gatos”. Parece não haver construção possível.
No outro caso de menção à participação indígena, ou eles eram dizimados
ou ajudavam na dizimação dos outros. Ou seja, para estes autores, não há
atuação indígena que seja legítima. (2006, p. 75)

Alguns livros didáticos até mencionam a diversidade cultural entre os in-


dígenas, porém, muitas vezes, essa informação fica em descompasso com as de-
mais informações sobre estes povos, já que é seguida de uma série de outras
mal fundamentadas. Destacamos, a seguir, mais algumas imprecisões que foram
encontradas nos livros analisados e que aludem a supostos “graus de evolução”
ou “estágios de cultura” e, ainda, a uma falaciosa questão “racial”:

A diferença entre as duas sociedades era decorrente do grau de evolução


que os europeus tinham acumulado [...] há diversos grupo humanos, em
vários estágios di-ferentes [...].
As tribos selvagens contemporâneas são geralmente grupos de clãs que,
sendo mais estáveis, obscurecem e até mesmo substituem a família como
instituição [...].
O saber ler e escrever indica um estágio mais avançado de cultura [...].
Quando os primeiros historiadores portugueses, franceses, alemães e ho-
landeses passaram a noticiar os povos do Brasil, diziam que os índios do
século XVI eram divididos em duas raças: os Tupinambá, povos que domi-
navam a agricultura e a caça, e os Tapuia, povos coletores.
Os indígenas americanos, antes da chegada do “branco”, habitavam em todo
o território, mas não tinham consciência de fazerem parte de um mesmo
grupo racial. Do norte ao sul da América, os “brancos” trataram separa-
damente com os antigos habitantes. Muitas vezes, fizeram o possível para
impedir que os grupos indígenas tomassem consciência das semelhanças
que possuíam com outros grupos de outros territórios.

Gobbi considera que os autores parecem desconhecer que diferentes gru-


pos indígenas mantinham contatos entre si: trocavam, guerreavam, classificavam

168 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


uns aos outros e, por vezes, essa classificação consistia em, inclusive, atribuir ao
outro um estatuto que não era o de humano, ou seja, atribuíam a si próprios a
humanidade e, aos outros, o que a negava. A saber:

É indubitável que os homens elaboraram culturas diferentes por causa do


afastamento geográfico, das propriedades particulares do meio e da igno-
rância que tinham do resto da humanidade; mas isto só seria rigorosamen-
te verdadeiro se cada cultura ou cada sociedade tivesse nascido e se desen-
volvido isoladamente de todas as outras. [...] Jamais as sociedades humanas
estão sós; quando parecem mais separadas, ainda o é sob forma de grupos
ou feixes. Assim, não é exagerado supor que as culturas norte-americanas
e sul-americanas tiveram seu contato rompido com o resto do mundo du-
rante muitas dezenas de milhares de anos. Mas este grande fragmento da
humanidade destacada consistia numa multidão de sociedades, grandes
e pequenas, que tinham entre si contatos muito estreitos. E, ao lado das
diferenças devidas ao isolamento, existem aquelas, também muito impor-
tantes, devidas à proximidade: desejo de se oporem, de se distinguirem, de
serem elas mesmas. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 332-333)

A partir da análise de Gobbi (2006) dos livros didáticos de História destina-


dos às séries 5ª a 8ª do Ensino Fundamental e mais recentemente recomendados
pelo MEC, mediante o novo PNLD, verifica-se a permanência de algumas temá-
ticas apontadas por pesquisas anteriores,5 como a reprodução de estereótipos, a
utilização de pressupostos evolucionistas, a presença de noções etnocêntricas, a
menção aos povos indígenas como pertencentes ao passado, a desconsideração
dos saberes indígenas, as inúmeras imprecisões conceituais, a confusão na grafia
dos nomes indígenas, entre outros aspectos. Contudo, também foram encontra-
dos avanços no tratamento dado à temática indígena e à diversidade cultural em
alguns dos referidos livros, como a veiculação de informações mais atualizadas,
mais próximas da realidade, ou o uso do conceito de cultura.
Uma primeira dificuldade reside no fato de tais permanências e avanços,
quase sempre, aparecerem lado a lado, ou seja: num mesmo livro didático foram
encontradas concepções completamente equivocadas em relação aos povos in-
dígenas e às suas culturas, seguidas daquelas informações mais atualizadas, mais
próximas da realidade ou que, de algum modo, os valorizem.

5
  Como exemplo, podemos citar os trabalhos de Telles (1984) e os trabalhos constantes nas coletâneas
organizadas por Lopes da Silva (1987) e Lopes da Silva e Grupioni (1998).

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 169


Dito isso, o que aparenta é que muitos autores, para se adequarem a uma
demanda e, também, uma exigência do próprio PNLD, qual seja, de que os livros
didáticos não devem expressar “preconceito de origem, etnia, gênero, religião,
idade ou outras formas de discriminação”, além de que devem estar atentos “a
qualquer possibilidade de o texto ou as ilustrações sugerirem ou explicitarem
preconceitos” (MEC, 2004), incluíram em tais livros algumas informações mais
apropriadas, mas não se preocuparam em adequar o restante do texto, em dar
coerência ao que é informado. Os autores, em geral, assumem idéias “anti-racis-
tas”, mas não são capazes de escrever um texto que faça a crítica a tais pressupos-
tos, ou seja: os livros didáticos, em sua maioria, continuam reproduzindo uma
ideia evolucionista e etnocêntrica de História.
São vários os exemplos nos quais foi observada a ausência de uma preocu-
pação com a fundamentação teórica do que é informado. É evidente o hiato que
há entre a produção acadêmica sobre a Etnologia Indígena contemporânea e as
informações veiculadas nestes livros:

Diante da variedade de estudos acerca das populações indígenas e diante


do fato destas populações serem nossas conterrâneas e contemporâneas, o
tratamento dispensado às mesmas mereceria um cuidado maior por parte
dos autores de livros didáticos. E, aprofundando um pouco mais a questão,
é possível concluir que a responsabilidade recai, igualmente, naqueles que
avaliam e recomendam tais livros, e que estão a serviço do Estado brasilei-
ro. (GOBBI, 2006, p. 104)

Desafios das escolas indígenas

No que tange às escolas indígenas, consideramos que o aspecto mais ino-


vador da legislação é o reconhecimento de que os indígenas possuem “processos
próprios de aprendizagem” que precisam ser levados em conta pela escola e pro-
curaremos mostrar que o principal desafio das políticas públicas voltadas para
a educação escolar indígena se refere à dificuldade de reconhecer a legitimidade
dessas pedagogias nativas.
Apesar das várias dificuldades das escolas indígenas do país, não se pode
negar que houve um considerável investimento governamental para colocar em
prática as exigências da legislação. No Ministério da Educação e nas Secretarias

170 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Estaduais de Educação foram criados departamentos voltados para o desenvol-
vimento de políticas educacionais para indígenas; foram elaborados parâmetros
curriculares para as escolas indígenas e para a formação de professores indíge-
nas; foram desenvolvidos programas de formação de professores indígenas para
atuar nas escolas e foram publicados livros didáticos em línguas nativas. (SAN-
TOS; TASSINARI; WEBER, 2007)
Uma contradição que permeia esse investimento governamental é a neces-
sidade de normatizar e regular programas de educação, enquanto políticas pú-
blicas gerais, mas que visam justamente respeitar a diversidade de cada contexto
escolar. De fato, o grande desafio que cada escola indígena tem procurado resol-
ver é o de adequar as especificidades de seus conhecimentos e processos nativos
de ensino e aprendizagem às normas gerais propostas pelo Estado.
O censo escolar de 2002 (INEP, 2007) apontou a existência de 1.392 escolas
indígenas no Brasil. Destas, pouco mais da metade (751 ou 54%) utilizava cur-
rículos diferenciados e somente 424 delas (30,5%) utilizavam material didático
específico. Nestas escolas estavam matriculados 93.037 estudantes e o censo es-
colar registrou, ainda, 3.998 professores atuando nestas escolas, sendo a grande
maioria formada por indígenas: 3.059 professores índios (76,5%) e 939 não-ín-
dios (23,5%). Desse alto número de professores índios, somente 17,6% haviam
se formado em cursos de magistério específicos para indígenas.
Em 2005, o censo escolar registrou 2.323 escolas indígenas com 163.693
alunos matriculados e 8.431 professores.6 Vale ressaltar que a quase totalidade
dessas escolas funciona em aldeias indígenas, sendo que apenas 1,6% localizam-
-se em áreas urbanas. Apesar da legislação, somente 1.818 escolas declararam
utilizar línguas indígenas e 965 declararam possuir material didático específi-
co ao grupo étnico. Em 2007, o censo voltado para escolas indígenas registrou
2.422 escolas indígenas com 174.255 estudantes matricula-dos.
Nos últimos anos, as universidades públicas brasileiras vêm criando cursos
superiores de licenciatura específicos para a formação de professores indígenas.

6
  O expressivo aumento do número de escolas indígenas entre 2002 e 2005 se explica não só pela
construção de novas escolas, mas também pela criação da categoria “escola indígena” segundo a
Resolução CEB03/1999 e o Plano Nacional de Educação/2001, que passou a definir várias escolas já em
funcionamento, mas anteriormente classificadas como “escolas rurais”.

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 171


Atualmente, sete universidades oferecem cursos de licenciatura indígenas,
com currículos voltados para a formação de professores para lecionar nas es-
colas indígenas.
Uma característica dessas iniciativas é o seu caráter emergencial. Para su-
prir lacunas das escolas indígenas, as políticas governamentais das últimas dé-
cadas ofereceram cursos pilotos de formação de professores indígenas em nível
médio e, mais recentemente, em nível superior. Não há ainda uma política pú-
blica continuada voltada para a educação escolar indígena no país. (SANTOS
ET ALLI, 2007).
Verifica-se que o investimento governamental nas escolas indígenas foi
concentrado na produção de material didático, na elaboração de currículos es-
pecíficos e na formação de professores indígenas. Há, no entanto, uma grande
dificuldade em elaborar políticas públicas que respeitem “os processos pró-prios
de aprendizagem”, conforme previsto na legislação, e acreditamos que isso de-
corre da mesma dificuldade etnocêntrica de que sofrem os livros didáticos: a re-
cusa em reconhecer a legitimidade de conhecimentos que não são transmitidos
pela linguagem oral e, principalmente, por intermédio da escrita.
Marcel Mauss (1969), no início do século XX, afirmava que geralmente
atribuímos às “tradições” elementos relacionados à oralidade e possíveis de se-
rem transmitidos de forma oral e, conseqüentemente, escrita. Mauss alertava
que há muitos outros aspectos da tradição que nem sequer imaginamos, porque
os incorporamos inconscientemente, que são transmitidos de outras maneiras e
que se cristalizam, por exemplo, em posturas corporais.
Mais recentemente, Carlo Severi (2004) questionou a dicotomia geralmen-
te postulada entre “tradições orais” e “tradições escritas”. Severi afirma que entre
a oralidade e a escrita há um grande número de situações intermediárias nas
quais não prevalecem nem a palavra dita nem os signos linguísticos, mas uma
articulação entre ambos, de cunho estético. Nestes casos, que Severi chama de
“tradições iconográficas”, a memória social é elaborada e transmitida por inter-
médio de imagens e enunciações rituais. Se atentarmos para o poder das ima-
gens e da gestualidade para a produção de uma memória coletiva, poderemos
mais facilmente compreender como as tradições indígenas podem ser transmi-
tidas quase sem recurso à palavra.

172 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


São poucos os trabalhos antropológicos que se dedicaram ao estudo dos
processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos de indígenas no
Brasil. Temos os trabalhos pioneiros de Egon Schaden (1945), Alfred Métraux &
Simone Dreyfus (1958), Julio Cezar & Delvair Melatti (1979) e Silvio Coelho dos
Santos (1975). Já na última década, um conjunto de pesquisadoras vem investi-
gando as crianças indígenas, com uma perspectiva atenta à participação infantil
nos processos de elaboração cultural, como os artigos da coletânea organizada
por Ângela Nunes, Aracy Lopes da Silva e Ana Vera Macedo (2002) e os traba-
lhos de Ângela Nunes (1997 e 2003), Clarice Cohn (2000), Melissa de Oliveira
(2004), Camila Codonho (2007), Hanna Limulja (2007), Myriam Alvarez (2004)
e Lisiane Lecznieski (2005).
Podemos, igualmente, obter informações significativas nos trabalhos de-
dicados aos ritos de iniciação ou às noções de pessoa, que revelam aspectos im-
portantes dos sistemas nativos de ensino e aprendizagem. Apontamos, a seguir,
alguns aspectos que podem ser destacados como características de tradições na-
tivas de ensino e aprendizagem e que são radicalmente diferentes dos pressupos-
tos que embasam a educação escolar. Certamente, esses aspectos merecem ser
mais bem investigados no desenvolvimento de futuras pesquisas.
Há exemplos de aprendizagem por meio dos sonhos e descrições de si-
tuações em que os neófitos são treinados para sonhar, sendo o sonho uma fon-
te legítima e importante de saber. Há referências à aprendizagem por meio da
embriaguez ou do uso de alucinógenos. Nesses casos, há o reconhecimento de
que certos saberes dependem de estados alterados de consciência. Descrições
de ritos de iniciação que incluem reclusão, entre outros exemplos, indicam a
noção de que a aprendizagem é “incorporada”, ou seja, reconhece-se que cer-
tos saberes só são adquiridos em condições corporais específicas, notando-se
um investimento na produção dos corpos para a formação de pessoas éticas e
morais. É preciso considerar que há saberes indígenas que não são transmitidos
oralmente, mas que se apóiam em gestos e imagens. Nesse sentido, o silêncio
também é fonte de conhecimento. Há também saberes que não são transmitidos
dos adultos às crianças, mas das crianças mais velhas às mais novas.
Acreditamos que as escolas indígenas dificilmente poderão incluir al-
guns desses “processos próprios de aprendizagem” em seus currículos, por se

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 173


basearem em fontes de saber não legítimas para o conhecimento escolar. Seria
absurdo sugerir o uso de alucinógenos em contextos escolares, por exemplo. No
entanto, a escola deve reconhecer e respeitar esses diversos processos de trans-
missão de conhecimentos, evitando que as rotinas escolares venham prejudicar
a sua realização.
Gostaríamos de salientar alguns exemplos da pesquisa de Tassinari (1998;
2001; 2003) junto aos Karipuna e Galibi-Marworno, utilizando também dados
da pesquisa de Codonho (2007) com as crianças Galibi-Marworno. Desde 1995,
Tassinari vem acompanhando o processo de elaboração de um currículo dife-
renciado para as escolas indígenas do Uaçá, onde uma das reivindicações indí-
genas é de que as crianças possam iniciar a escola com 4 anos.
Entre os Galibi-Marworno, as crianças até os 3 anos são consideradas “be-
bês” e incapazes de desempenhar atividades, passando boa parte do tempo no
colo dos pais ou irmãos mais velhos. A partir dos 3 ou 4 anos, as crianças se
engajam em atividades no âmbito de grupos de primos vinculados a um mes-
mo segmento residencial matrilocal. Esses grupos, pesquisados por Codonho
(2007), fornecem o contexto de aprendizagem de conhecimentos sobre a socie-
dade e o meio ambiente, transmitidos das crianças mais velhas às mais novas.
Essa transmissão se dá enquanto se envolvem em brincadeiras na mata próxima
e nos rios e realizam pequenas expedições de coleta. Nesses grupos também
são transmitidas e treinadas habilidades importantes para as atividades diárias,
como nadar, remar, andar na mata, entre outras. Também a partir dos 3 ou 4
anos, as crianças acompanham os pais nas atividades diárias, sendo estimuladas
por estes a realizar pequenas tarefas que vão se tornando mais complexas e exi-
gindo mais habilidade e responsabilidade com o passar dos anos.
Certamente, a reivindicação indígena de iniciar a escola com 3 ou 4 anos
decorre das categorias nativas de infância e do reconhecimento das capacidades
de aprendizagem das crianças desta idade. Porém, preocupa-nos a possibilidade
da escola retirar a criança de seus contextos tradicionais de aprendizagem – os
grupos de primos e a convivência com os pais. Esse é um exemplo das dificul-
dades concretas que as escolas indígenas vivenciam quando procuram pôr em
prática os princípios da legislação.

174 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Vemos que os impasses se tornam mais claros a partir de pesquisas volta-
das à compreensão dos processos próprios de aprendizagem. No caso citado, a
solução prática foi a inclusão das crianças pequenas na escola, atendendo à rei-
vindicação indígena, mas em turmas de crianças de 3 a 7 anos, por um período
mais curto (de 2 horas diárias) e menos regular. Mesmo assim, estamos cientes
que a escola interfere na rotina dos grupos de primos, importante lócus de trans-
missão de saberes.

Considerações finais

Com este balanço das consequências e desafios que as mudanças na legis-


lação brasileira acarretaram para o sistema de ensino, especificamente no que se
refere ao tratamento dos conhecimentos indígenas e sobre indígenas nas escolas
convencionais e nas escolas indígenas, foi possível fazer alguns apontamentos
importantes para a reflexão. Verificamos que o MEC segue aprovando para as
escolas convencionais, não-índias, livros didáticos que trazem forte carga pre-
conceituosa. As orientações para a produção de tais livros – oriundas tanto de
pesquisas acadêmicas quanto da legislação internacional (nesse caso, referimo-
-nos à Convenção n. 169 da OIT para Povos Indígenas e Tribais) e nacional,
como a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a inclusão da diversidade
cultural nos Parâmetros Curriculares Nacionais – não foram suficientes para
modificar esse aspecto.
A atenção ao que se ensina na escola a respeito dos povos indígenas deverá
merecer cuidado redobrado, na medida em que uma nova lei7 torna obrigatório,
nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, o
estudo de “história e cultura afro-brasileira e indígena”:

Art. 26-A. § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo inclui-


rá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o

7
  A saber, Lei nº 11.465, de 10/03/2008, que “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada
pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”.

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 175


estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio
na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas
áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

Nesse sentido, considerando as ressalvas apontadas nos trabalhos de Va-


lente (2003) e Gobbi (2006), será urgente investir na capacitação de professores e
nos cursos de licenciatura para evitar que o ensino a respeito da pluralidade cul-
tural continue a ser mera retórica e espaço para a perpetuação de preconceitos.
Sobre as escolas indígenas verificamos que o investimento governamen-
tal priorizou iniciativas pontuais e emergenciais, havendo ainda necessidade
de políticas continuadas voltadas para a educação escolar indígena. Além dis-
so, verifica-se grande falta de entendimento a respeito do reconhecimento dos
“processos próprios de aprendizagem”. Procuramos apontar para um aspecto
que acreditamos ser útil para o desenvolvimento de pesquisas futuras: o que ha-
bitualmente chamamos de “conhecimentos” – e que pode ser transmitido oral-
mente – é apenas uma parcela dos conhecimentos indígenas, cujas tradições
geralmente se apóiam em fontes iconográficas e rituais. É necessário considerar
que a produção e transmissão desses saberes depende de contextos específicos
de aprendizagem que envolvem recursos e pessoas que não reconhecemos ha-
bitualmente como fontes legitimas de saber: crianças, sonhos, transes, estados
alterados de consciência.
Percebe-se, com o que foi exposto, por que a inclusão de saberes indíge-
nas nas escolas, tanto naquelas indígenas quanto nas escolas convencionais, não
pode se dar de forma imediata ou sem conflitos: trata-se de sabe-res ancorados
em bases muito distintas e não reconhecidas como legítimas pela educação esco-
lar. Nas escolas indígenas percebe-se que a atuação de professores indígenas é o
caminho mais seguro para a introdução desses saberes e dos respectivos proces-
sos próprios de aprendizagem. Mas nas escolas convencionais corre-se o risco
de banalizar as histórias e culturas indígenas, exotizando aspectos anedóticos de
costumes nativos que facilmente se encaixam em estereótipos de “cultura”, mas
deixando de lado o respeito às outras tradições de conhecimentos.

176 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


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180 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Sobre as/os autoras/es

Ângela Figueiredo

Professora e pesquisadora do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade


Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Étnicos e Africanos (POSAFRO/UFBA). Coordenadora do Grupo de
pesquisa em Gênero, Raça e Subalternidade - Coletivo Angela Davis e, atual-
mente, coordena o projeto de Censo das Manifestações Culturais Negras. Reali-
za pesquisas na área gênero, raça, desigualdades e subalternidade.

Antonella Maria Imperatriz Tassinari

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1990) e


doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São
Paulo (1998). Atualmente é pesquisadora convidada na Universidade de Mon-
tréal, Canadá, onde desenvolve projeto de Estágio Sênior/CAPES. É Professora
Associada da Universidade Federal de Santa Catarina, vinculada ao Departa-
mento de Antropologia, onde desenvolve projetos de pesquisa e extensão vincu-
lados ao NEPI (Núcleo de Estudos de Povos Indígenas). Tem atuação na Comis-
são de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas e no Colegiado do
Curso de Licenciatura Indígena Intercultural do Sul da Mata Atlântica da UFSC.
Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena,
atuando principalmente nos seguintes temas: povos indígenas, infância e educa-
ção indígenas, identidade étnica, diversidade cultural e educação escolar.

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 181


Daniela Novelli

Pós-doutoranda na Université de Paris-Sorbonne Paris IV, junto ao Centre de


Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibériques Contemporains (CRI-
MIC). Pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Ciências Humanas pelo Progra-
ma Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), na área de Estudos de Gênero. Mestre em História
pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com área de concen-
tração História do Tempo Presente (2009), com estudos voltados para juventu-
de/juvenilização contemporânea em periódicos de moda. Especialista em Moda:
Criação e Produção pela UDESC (2002). Bacharel em Moda, com habilitação
em Estilismo pela UDESC (2000).

Danielle Oliveira Valverde

Graduada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade de


Brasília (UnB). Mestra em Educação pela mesma Universidade, na linha de pes-
quisa sobre Políticas públicas em educação: Juventude, Raça, Etnia e Gênero
(2008). Atuou como consultora em organismos internacionais como UNESCO
e PNUD, além de ter assessorado o Programa Regional Gênero, Raça, Etnia e
Pobreza implementado pela ONU Mulheres. Atualmente atua em consultorias.

Flávia Piovesan

Possui Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


(1990), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo (1993) e doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1996). É professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo nos programas de Graduação e Pós Graduação em Direito. Tem experiên-
cia na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos, Direito Constitucional
e Direito Internacional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos
humanos, Direito Constitucional, Direito Internacional, proteção internacional
e proteção constitucional.

182 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola


Izabel Gobbi

Possui bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal


de Santa Catarina (2003) e mestrado em Ciências Sociais (Antropologia Social)
pela Universidade Federal de São Carlos (2006). Atualmente é antropóloga da
Fundação Nacional do Índio, onde integra a equipe da Coordenação Geral de
Educação. Tem experiência, também, em pesquisas nas áreas da Antropologia
da Criança, Antropologia da Educação, Infância e Educação indígenas.

Lauro Stocco

Mestre em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pelo Instituto Uni-


versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e doutorando em Sociologia
pela Universidade de Brasília (UnB). Entre suas áreas de interesse estão: relações
e desigualdades raciais, desigualdades educacionais, estratificação e mobilidade
social, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Já atuou como consul-
tor na Diretoria de Políticas da Educação de Jovens e Adultos do Ministério da
Educação (DPEJA/SECAD/MEC) e nas secretarias de Avaliação e Gestão da In-
formação (SAGI/MDS) e de Assistência Social (SNAS/MDS) do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, além de ter trabalhado no escritório
da Unesco no Brasil e na ONG internacional Pact Brasil.

Sonia Maria Giacomini

Possui graduação História (Licence d`Histoire) - Universite de Paris VII (1979),


e em Administration Economique et Sociale, option Sciences de la Société - Uni-
versite de Paris VII (1976), mestrado em Antropologia Social pelo PPGAS-Mu-
seu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e doutorado em
Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (2004). Desde
1980 é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem
experiência na área de Sociologia e Antropologia, com ênfase em Antropologia
das Relações de Gênero, Antropologia das Populações Afro-Brasileiras e An-
tropologia Urbana, aí atuando principalmente nos seguintes temas: relações de

Políticas Públicas e Educação para Indígenas é Sobre Indígenas 183


gênero, relações raciais, cultura, corporalidades, sexualidade, pensamento social
brasileiro e identidade social.

Verena Stolcke

Professora emérita de Antropologia Social no Departamento de Antropologia


Social e Cultural da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).

Yvonne Maggie

Professora titular aposentada do Departamento de Antropologia Cultural do


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Graduada em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968). Tem especialização em An-
tropologia Urbana e das Sociedades Complexas na Universidade do Texas, em
Austin (1971). Obteve o título de mestre em Antropologia Social pela Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (1974). É doutora em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988). Foi coordenadora do Laborató-
rio de Pesquisa Social do IFCS/UFRJ. Tem experiência na área de antropologia,
com ênfase em antropologia das populações afro-brasileiras, atuando principal-
mente nos seguintes temas: religião, relações raciais, ação afirmativa e educação.

184 Módulo IV - Especialização EaD em Gênero e Diversidade na Escola

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