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[0 Couecionanoa] “Todas essas velharias tém um valor moral." Charles Baudelaire! "Eu creio ... em minha alma: a Coisa.” Léon Deubel, cEuvres, Paris, 1928, p. 193. Foi aqui o ultimo refiigio das criacuras-prodigio que viram a luz do dia em exposigées universais como mala com iluminagGo interna, canivete de um metro de comprimento ou cabo de guarda-chuva patenteado, com relégio e revélver. E ao lado dessas gigantescas criaturas degeneradas, a matéria semi-acabada, atolada. Percorremos 0 corredor estreito ¢ escuro até o lugar onde, entre uma livraria com liquidacées, na qual macos de papel empocirados e amarrados com barbante expressam todas as formas de faléncia, ¢ uma loja s6 de botdes (de madrepérola e outros que em Paris sio chamados de botées-fantasia) localizava-se uma espécie de sala de estar. Uma lampada a gés iluminava um papel de parede de um colorido palido, cheio de quadros e bustos. Junto dela lia uma velha senhora Esté ali, sozinha, como hd anos, procurando dentaduras “de ouro, de cera ou quebradas”. ‘A partir deste dia também ficamos sabendo de onde o doutor Milagre tirow a cera com a qual fabricou a Olympia? m Bonecas (41,1 “A multidao se comprime na Passage Vivienne, onde nao € percebida, ¢ deixa a Passage Colbert onde, talvez, seja percebida demais. Um dia, quiseram chamé-la, a multidio, enchendo cada noite a rotunda com uma musica harmoniosa, que sala invistvel das janelas de uma sobreloja. Mas a multidéo veio xeretar na porta ¢ néo entrou, suspeitando nessa novidade uma conspirago contra seus hébitos e seus prazeres rotineitos.” Le Livre des Cent-et-un, vol. X, Paris, 1833, p. 58. Ha quinze anos, tentou-se igualmente e também inutilmente ir em socorro da loja de departamentos W. Wertheim. Realizavam-se concertos na grande passagem que a percorria. sae 1a 7 Carta de 30 de dezembro de 1857 8 sua me. (E/M) 0 doutor Miagte Olimpia, boneca autémat,s80 personagens da Opera Les Contes o'Hoffmann, de Offenbach (1880); cf. "O Homem de Areia", de E. 7. A. Hoffmann (LL) ~ 0 fragmento todo retoma boa parte do 2 1. (wb) > Loja de departamentos ern Berlim. (.L) 238 m Pessagens Nunca se deve confiar naquilo que os escritores dizem a respeito de suas préprias obras. Quando Zola quis defender sua Therese Raquin das criticas hostis, explicou que seu livro era um estudo cientifico sobre os temperamentos. Sua intencio teria sido a de demonstrar detalhadamente, a partir de um exemplo, como o temperamento sangiiineo e 0 nervoso eagem um sobre o outro ~ em detrimento de ambos. Esta declaracdo néo satisfez a ninguém. ‘Tampouco explica o elemento de colportagem, 0 caréter sanguindrio, a atrocidade cinematogréfica da agio. Nao 4 toa que esta se desenrola em uma passagem.* Se este livro de fato demonstra algo cientificamente, é a agonia das passagens patisienses, 0 processo de decomposi¢ao de uma arquitetura. A atmosfera do livro esté prenhe de seus venenos, € estes fazem suas personagens sucumbir. 1,3) Em 1893, as cocotes so expulsas das passagens. ae Hid ‘A miisica parece ter se estabelecido nestes espagos apenas no momento de seu declinio, quando as préprias orquestras comecaram a tornar-se antiquadas, porque estava prestes @ surgit a mtisica mecinica. De modo que essas orquestras de fato af buscaram refiigio. (O “teatrofone” nas passagens foi de certa maneira o precursor do gramofone.) E, no entanto, havia miisica no espirito das passagens, uma musica panorimica que s6 se ouve hoje em concertos elegantes, porém, antiquados, como, por exemplo, os da orquestra do cassino de Monte Carlo: as composigdes panorimicas de David,’ por exemplo — Le Désert, Christophe Colomb, Herculanum. Foi motivo de orgulho poder executar Le Désert no grande teatro da Opera (2), por ocasigo da visita a Paris de uma delegacio politica drabe nos anos sessenta (2). (HLS) “Cineoramas; Grande Globo celeste, esfera gigantesca de 46 metros de diémetro onde sers tocada muisica de Saint-Saéns.” Jules Claretie, La Vie 4 Paris 1900, Patis, 1901, p. 61. = Diorama © 1H, 61 Muitas vezes, estes espacos interiores abrigam oficios antiquados, mas também os atuais adquirem nesses espacos um ar obsoleto. E 0 local dos servigos de informagGes ¢ investigagdes que ficam lé na luz mortica das galerias do entressolho ao encalco do passado. Nas vitrines dos cabeleireiros véem-se as iiltimas mulheres de cabelos compridos. Ostentam cabeleiras volumosas, ricamente onduladas que séo agora “encaracolados permanentes”, penteados artisticos petrificados. Devia-se consagrar pequenas placas votivas aqueles que criaram um mundo préprio a partir destas construgdes capilares, Baudelaire e Odilon Redon, cujo nome cai como uma mecha lindamente cacheada, Em vez disso, foram traidas e vendidas, € cabeca da propria Salomé foi utilizada, caso aquilo que sonha no console no seja 0 corpo embalsamado de Anna Caillag.* E enquanto essas cabeleiras se petrificam, 0 revestimento das paredes tornou-se quebradico, na parte de cima. Quebradigos so também = Expelhos Ht.) 4 Na Passage du Pont Neuf. (EA¥) ® Félcien David (1810-1876): masico saint-simoniano. Depois de uma viagem pelo Oriente, ele compés 0 oratorio Le Désert (1846). Cf. S. Kracauer, Schriften, vol. Vil p. 102. UL.) ° tsa referéncia permanece obscura. ().L.; EM) H {0 Goleconadon) 2397 F decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas fung6es primitivas, a fim de travar a relago mais intima que se pode imaginar com aquilo que lhe ¢ semelhante. Esta relagdo é diametralmente oposta & utilidade ¢ situa-se sob a categoria singular da completude. © que é esta “completude” E uma grandiosa tentativa de superar carder totalmente irracional de sua mera existéncia através da integragio em um sistema histérico novo, criado especialmente para este fim: a colecdo. E para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciéncia da época, da paisagem, da industria, do proprietério do qual provém. O. mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa particular em um cfrculo magico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um tltimo estremecimento (0 estremecimento de ser adquirida). Tudo o que ¢ lembrado, pensado, consciente torna-se suporte, pedestal, moldura, echo de sua posse, Néo se deve pensar que o tdpos hyperouranios, que, segundo Platéo,” abriga as imagens primevas ¢ imutéveis das cojsas, seja etranho para 0 colecionador. Ele se perde, certamente, Mas possui a forca de erguer-se novamente apoiando-se em uma tibua de salvacio, ¢ a peca recém-adquitida emerge como uma ilha no mar de névoas que envolve seus sentidos. ~ Colecionar é uma forma de recordacao pritica e de todas as manifestagGes profanas da “proximidade”, a mais resumida. Portanto, (© ato mais diminuto de reflexao politica faz, de certa maneira, época no comércio antiquério. Construimos aqui um despertador, que sacode o kkitsch do século anterior, chamando-o & “reuniao”.* (Ha 2} Natureza morta: aloja de conchas das passagens. Strindberg, em “As Tribulagdes do Piloto”, fala de “uma passagem cujas lojas estavam iluminadas”. “Depois ele avangou para dentro da passagem... Havia ali lojas de todos os tipos, contudo, nao se via uma s6 pessoa, nem atrds dos balcses nem diante deles. Apés ter andado por algum tempo, ficou parado diante de uma grande vitrine por detrés da qual se via uma exposiglo completa de conchas. Como a porta estava aberta ele entrou. Do cho ao teto havia prateleiras com conchas de todas as espécies, coletadas em todos os mares da Terra. Pessoa alguma se encontrava ali, mas uma rnuvem de tabaco flucuava no ar como um andl... E entéo ele retomou seu caminho, seguindo o tapete azul e branco. A passagem nao era em linha reta ¢ fazia curvas, de modo que nao se via nunca o fim; e sempre novas lojas, mas nao havia gente; e os proprictirios eram invisiveis.” A imensidao das passagens mortas é um tema significativo. Strindberg, Marchen, Munique e Berlim, 1917, pp. 52-53, 59. 5 1,31 E preciso reexaminar as Fleurs due Mal para ver como as coisas sio elevadas & condigéo de alegoria. Deve ser observado 0 emprego de letras maitisculas. (Hla, 4) ‘Ao final de Matidre et Mémoire, Bergson desenvolve a idéia de que a percepgio ¢ uma fungi dlo tempo.) Poder-se-ia dizer que, se vivéssemos segundo um outro ritmo ~ mais serenos diante de certas coisas, mais répidos diante de outras -, no existiria para nés nada 7 Lugar supraceleste”; cf. Patéo, Fedo, 247¢, (wb; E/M) 8 Jogo de palavas entre Sammein, “coleconar", e Versemmiung, “reuniso", com a conotacso de “reunigo das coisas colecionadas”. (wb) 2 Cf, provavelmente H. Bergson, Matiére et Mémoire, in: Euvres, Paris, RULE, Ed. du Centenaire, 1970, p. 359. ULL)

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