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BLAISE PASCAL PENSAMENTOS Introdgdo © notas de Cx, ~M. DES GRANOES “Fradugio de Sekoro Muir 1973 Biblioteca Padre Vaz 20881405, Pensamentos EDITOR: VICTOR CIVITA Artico IT Miséria do homem sem Deus 60 — Primeira parte: Misé- ria do homem sem Deus. Segunda parte: Felicidade do homem com Deus. Ou em outras palavras: Primeira parte: A natureza esta corrompida (pela propria natureza’ °). ‘Segunda parte: Ha um repara- dor (pela Escritura). 61 — Ordem — De bom grado teria seguido esse discurso de ordem da seguinte maneira: para mostrar a vaidade de todo género de condigdes, mostrar a das vidas comuns € depois a das vidas filoséficas pirronicas, est6i- cas; mas nao conservaria a cordem. Sei um pouco de que se trata e quiio pouca gente a enten- de. Nenhuma ciéncia humana pode conservi-la. Santo Tomas nfo a conservou. A matematica conserva-a, mas a matemitica initil em sua profundidade. *62 — Prefécio da primeira parte — Falar dos que trataram 18 Io é a demonstrar usando a. propria natureza.(N.do E) do conhecimento de si mesmos; das divisées de Charron que entristecem e aborrecem; da con- fusio de Montaigne; que este tinha muito justamente sentido a falta de um método (preciso| a que obviara pulando de um as- sunto para outro, buscando a boa atmosfera, Tolo projeto o seu, de se pin- tar! E isso, ndo de passagem, ¢ contra seus principios, falhando, como acontece a todos; mas com suas préprias méximas e em obediéncia a um objetivo pri- meiro e essencial. Pois dizer toli- ces por acaso e fraqueza é mal vulgar; dizé-las, porém, volunta- riamente é que é insuportavel, e dizer algumas semelhantes a es- ne *63 — Montaigne — Os de- feitos de Montaigne sio grandes. Palavras lascivas; isso nao tem valor, apesar da Mlle de Gour- nay" ?, Crédulo, gente sem olhos. 7 Mille de Gournay publicou em 1595 a edi- ‘go dafinitiva dos Ensaias de Montaigne; ¢ no Preticio justice Montaigne, desse ponto de ita 4 PASCAL Ignorante, quadratura do cireulo, mundo maior. Seus sentimentos acerca do homicidio voluntario, da morte. Inspira_indiferenca pela salvagao, sem temor e sem arrependimento’®. Como seu livro nao foi feito para induzir & devogao, a esta nao era obrigado; mas somos sempre obrigados a dela nao desviar ninguém. Pode- mos desculpar-Ihe os sentimentos um tanto livres e voluptuosos em certos momentos de sua vida; mas nig podemos desculpar-Ihe ‘os sentimentos pagdos sobre a morte; porque € preciso renun- ciar a toda devocio, se nio se quer, ao menos, morrer cristd- mente; ora, ele sé pensa em mor- rer covardemente, docemente, em todo o seu livro., 64 — Nao € em Montaigne, mas em mim mesmo que acho tudo 0 que nele vejo. *65 — O que Montaigne tem de bom sé dificilmente se adqui- re, O que tem de ruim, afora os costumes, ter-se-ia corrigido em um instante, se o houvessem advertido de que fazia muita his- toria e que falava demais de s 66 — E preciso conhecer-se a si mesmo; se isso nao servisse para encontrar a verdade, servi ria ao menos para regular a vida, endo ha nada mais justo. ** Vide em Montaigne, respectivamente: gente sem olhos (Apologia de Raymond ‘Sebond): quadratura do elrulo (Ensaio, 14); mundo maior (Apologia); homicidio vo" luniério Ensaios, MI, 3), sem temor € sem arrependimento (Ensaios ode 0 capitulo Td livro TV) (N do E.) "67 — Vaidade das ciéneias — A ciéncia das coisas exterio- res no me consolaré da igno- rncia da moral, em tempo de afligdo; mas a ciéncia dos costu- mes me consolaré sempre da ignorancia das ciéncias exterio- res. "68 — No se ensina os ho- mens a serem homens de bem, € tudo o mais se lhes ensina; ¢ de nada se jactam mais que de ser homens de bem. S6 se vanglo- riam de saber 0 que nao aprende- ram. 69 — Dois infinitos, meio- termo — Quando se 18 depressa demais ou demasiado devagar, no se entende nada. 70 — A natureza néo (pode deter-se nus extremus]. [A natu- reza pds-nos de tal modo no meio que, se trocamos um lado da balanga trocamos também 0 outro: Je fesons, 26a irékhei®, Isso me leva a crer que ha molas em nossa cabeca, dispostas de tal maneira que, se se toca uma, toca-se também a contriria] 71 — Muito pouco vinho ou vinho em demasia: nfo tho déem © nao podera achar a verdade; déem-Iho em demasia e acorreré o mesmo. 8 Je fesoms (eu fazemos). Nessa expressio popular o sujito esté no singular eo verbo n0 plural; em Ta 26a trékhe, encontrae a api agi de uma regra propria da sintaxe grega: 0 sueito no plural neutto com o verbo no singu Tar. Pascal assinaln estas duss construgoes ‘como prova de uma lei de oscilagao de um Jogo de contrapesos em nosso cérebro. PENSAMENTOS 3s "712 — Despropor¢io?® do homem — (Eis aonde nos condu- zem os conhecimentos naturais. Se estes nao sio verdadeiros, nao ha verdade no homem; ¢, se 0 sii, ele degcobre nisso um gran- de motivo de humithagao; e, uma vez que nfo pode subsistir sem crer neles, desejo, antes de entrar em maiores indagagGes acerca da natureza, que ele a considere uma vez seriamente € com vagar, que se observe também a si mesmo € julgue se tem alguma proporgao com ela...) Que no se atenha, pois, a olhar para os objetos que © cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestade. Con- sidere essa brilhante luz colocada acima dele como uma lampada eterna para iluminar 0 universo € que a terra lhe aparega como um ponto na érbita ampla desse astro, € que se maravilhe de ver que essa amplitude tampouco passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento. Mas se nossa vista af se detém, que nossa imaginagao nao pare; mais rapidamente se cansara de conce- ber que a natureza de revelar. Todo esse mundo visivel € apenas um trago imperceptivel na ampli- dio da natureza, que nem sequer nos é dado conhecer mesmo de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepgoes +9 Variant: ineapacidade.(N. do T.) © as projetemos além dos espagos imaginaveis, concebemos ta0-so- mente atomos em comparacao com a realidade das coisas. Esta € uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferéncia nfo. se acha em nenhuma. Eo fato de nossa imaginagao perder-se nesse pen- samento constitui, em suma, a maior caracteristica sensivel da onipoténcia de Deus. Que o homem, voltado para si proprio, considere o que é diante do que existe; que se encare como um ser extraviado neste canto afastado da natureza, e que, da pequena cela onde se acha preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cida- des e ele proprio. Que é um homem dentro do infinito? Quero, porém, apresentar-Ihe outro prodigio igualmente as- sombroso, colhido nas coisas mais delicadas que conhece. Eis uma léndea que, na pequenez de seu corpo, contém partes incom- paravelmente menores, pernas com articulagdes, veias nessas pernas, sangue nessas veias, hu- mores nesse sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas; dividindo-se estas diltimas coisas, esgotar-se-fo as capacidades de concepgio do homem, e estare- mos, portanto, ante 0 tiltimo ob- jeto a que possa chegar o nosso discurso. Talvez ele imagine, entio, ser essa a menor coisa da 56 PASCAL natureza. Quero mostrar-Ihe, porém, dentro dela um novo abi: mo. Quero pintar-Ihe nfo somen- te o universo visivel mas também a imensidade concebivel da natu- reza dentro dessa parcela de tomo. Ai existe uma infinidade de universos, cada qual com 0 seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporgdes as do mundo visivel; e nessa terra ha animais ¢ neles essas léndeas, em que voltara a encontrar o que nas primeiras observou. Depara- 14 assim, por toda parte, sem ces- sar, infindavelmente, com a mesma coisa, € perder-se-4 nes- sas maravilhas tio assombrosas ha sua pequenez quanto nas ou: tras na_ sua magnitude. P como ndo admirar que uussu corpo hé pouco imperceptivel no universo, imperceptivel no todo, se torne um colosso, um mundo, ou melhor, um todo em relagao ao nada a que nio se pode chegar? Quem assim raciocinar ha de apavorar-se de si proprio e, con- siderando-se apoiado na massa que a natureza Ihe deu, entre esses dois abismos do infinito do nada, tremera a vista de tantas maravilhas; e creio que, transfor- mando sua curiosidade em admi- ragdo, preferira contempli-las em siléncio a investigé-las com pre- sungio. Afinal, que é 0 homem dentro da natureza? Nada em relago a0 infinito; tudo em relagio a0 nada; um ponto intermediario entre tudo e nada. Infinitamente incapaz de compreender os extre- ‘mos, tanto o fim das coisas como © seu principio permanecem ocultos num segredo impene- travel, € éthe igualmente impos- sivel ver o nada de onde saiu e 0 infinito que o envolve. Que podera fazer, portanto, seniio perceber [algumal aparén- cia das coisas num eterno deses- pero por no poder conhecer nem seu principio nem seu fim? Todas as coisas sairam do nada e foram levadas para o infinito; quem seguir estes caminhos assom- brosos? O autor destas maravi- Ihas conhece-as; ¢ ninguém mais. Por nao haver meditado sobre esses infinitos, puseram-se os ho- mens temerariamente a investigar a natureza, como se tivessem al guma proporgo com ela. E é estranho que tenham querido compreender os principios das coisas, ¢ assim chegar ao conhe- cimento do todo, através de uma Presungao to infinita quanto o seu objetivo. Pois nao ha divida de que & impossivel conceber tal designio sem presungao ou sem capacidade infinita, como a natu- reza. Quando se estuda, compreen- de-se que, tendo a natureza gra- vado sua imagem ¢ a de seu autor em todas as coisas, todas partici- pam de seu duplo infinito. Assim, todas as cigncias si infinitas na amplitude de suas investigages, PENSAMENTOS. 37 pois quem duvidaré, por exem- plo, de que a geometria tenha uma infinidade de infinidades de teoremas a serem expostos? Sao infinitas também na multidao na delicadeza de seus principios, pois quem no percebe que aque- es que se considera iltimos no se sustentam sozinhos, mas se apdiam em outros, os quais, tendo por sua vez outros por apoio, nunca sio os tiltimos? Nés, porém, consideramos tlti- mos os que parecem tiltimos & nossa razio, tal qual fazemos com as coisas materiais, em que denominamos ponto indivisivel aquele para além do qual os nos- sos sentidos nada mais. distin- guem, embora continue divisivel independentemente por sua pré- pria natureza. Desses dois infinitos da cién- cia, o infinitamente grande € 0 mais sensivel; por isso, poucas pessoas tiveram a pretensio de conhecer todas as coisas. “Vou falar de tudo”, dizia Demécrito. Porém, o infinitamente peque- no & muito menos visivel. A ele pretenderam chegar os fil6sofos, entretanto; € nisso é que tropega- ram todos. Isso é que deu azo a titulos tio freqiientes quanto estes: Do Principio das Coisas, Do Principio da Filosofia, e que- jandos, tio pretensiosos efetiva- mente, embora menos, aparente- mente, do que esse outro que entra pelos olhos: De Omni Sci- bili. Acreditamos muito natural- mente sermos mais capazes de alcangar 0 centro das coisas que de abragar-Ihes a circunferéncia; a extensio visivel do mundo ultrapassa-nos manifestamente; porém, como ultrapassamos as coisas pequenas, acreditamo-nos mais capazes de possui-las; en- tretanto, nfo nos falta menos capacidade para chegar ao nada do que para chegar a0 todo; para um, como para outro, falta-nos uma capacidade infinita, ¢ creio que quem tivesse compreendido 0s principios diltimos das coisas chegaria também a conhecer 0 infinito. Uma coisa depende da outra, e uma conduz a outra. Esses extremos se tocam ¢€ se unem, a forga de se afustarem, © se reencontrarem em Deus © somente em Deus. Conhegamos, pois, nossas for- gas; somos algo ¢ nao tudo; 0 que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros prin- cipios que nascem do nada; ¢ 0 pouco que temos de ser impede- nos a visdo do infinito. Nossa inteligéncia ocupa, entre as coisas inteligiveis, 0 mesmo lugar que nosso corpo na magnitude da natureza. Limitados em tudo, esse termo médio entre dois extremos encon- tra-se em todas as nossas forgas. Nossos sentidos nao percebem os extremos: um ruido demasiado forte ensurdece-nos, demasiada luz nos deslumbra, demasiada 38 PASCAL distancia ou demasiada proximi- dade impedem-nos de ver, dema- siada longitude ou demasiada concisio do discurso obscure- cem-nos, demasiada verdade nos assombra (sei de alguém que nao pode compreender que, quem de zero tira quatro, obtém zero); os primeiros principios tém dema- siada evidéncia para nés outros; demasiado prazer incomoda, de- masiada consonancia aborrece na misica, e mercés em demasia irritam, pois queremos ter com que pagar a divida: Beneficia eo usque laeta sunt dum videntur exsolvi posse; ubi multum ante- venere, pro gratia odium reddi tur?’ No sentimos nem o extre- mo calor, nem o frio extremo; as qualidades cxcessivas so nossas inimigas, nao sao sensiveis; no as sentimos, sofremo-las. Dema- siada juventude ou demasiada velhice tolhem o espirito, bem como demasiada ou insuficiente instrugio. Em suma, as coisas extremas so para nés como se no existissem, nio estamos den- tro de suas proporgdes: esca- pam-nos ou lhes escapamos. Eis 0 nosso estado verdadeiro, que nos torna incapazes de saber com seguranga e de ignorar total- mente. Nadamos num meio- termo vasto, sempre incertos € flutuantes, empurrados de um 2° Os ‘beneicios so. agradives enguanio pensamos poder devolvelon, mas alemy 0 ‘econeimeno fe transforma em dio. Tier toy nai TV, 8, chado por Monsen, Ensaios, Il, 8.) ' a lado para outro. Qualquer objeto @ que pensemos apegar-nos e consolidar-nos abandona-nos ¢, se 0 perseguimos, foge & perse- guigdo. Escorrega-nos entre as mos numa eterna fuga. Nada se detém por nés. £ 0 estado que nos € natural ¢, no entanto, ne- nhum serd mais contrario & nossa inclinagao. Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma firme € uma base iiltima permanente para sobre ela edificar uma torre que se erga até o infinito; porém, 08 alicerces ruem e a terra se abre até 0 abismo. Nao procuremos, pois, segu- ranga e firmeza. Nossa razio € sempre iludida pela inconstancia das aparéncias ¢ nada pode fixar © finito entre os dois infinitos que © ceream e dele se afastam. Desde que compreendamos isso, ereio que nos manteremos trangiilos, cada um no estado em que a natureza o colocou. Como esse termo médio, que nos coube por destino, se situa sempre longe dos extremos, que importa que um homem tenha um pouco mais inteligéncia das coisas? Se a tiver, as vera de um pouco mais alto. Mas nfo se acharé sempre infinitamente |afastado] da meta, € a duracio de nossa vida, por durar dez anos mais, nio sera igualmente infima na eternidade? Diante desses infinitos, todos 0s finitos so iguais; no vejo razio para basear a imaginagao num deles de preferéncia a outro. PENSAMENTOS 3 A simples comparagio entre nés €0 infinito nos acabrunha, Se o homem se estudasse a si mesmo antes de mais nada, per- ceberia logo a que ponto é inca- paz de alcangar outra coisa. Como poderia uma parte conhe- cer 0 todo? Mas a parte pode ter, pelo menos, a ambigao de conhe- cer as partes, as quais cabem dentro de suas préprias propor- Ges. Mas as partes do mundo tém todas tais relagdes e tal enca- deamento umas com as outras que considero impossivel com- preender uma sem alcangar as outras, e sem penetrar 0 todo. © homem, por exemplo, esta em relagdo com tudo o que conhece. Tem necessidade de es- ago que o contenha, de tempo para durar, de movimento para viver, de elementos que o consti- tuam, de alimentos e calor que 0 nutram, de ar para respirar; vé a luz, percebe os corpos, em suma, tudo se alia a ele proprio. Para conhecer 0 homem, portanto, mister se faz sabér de onde vem 0 fato de precisar de ar para subsis- tir; e para conhecer o ar é neces- s&rio compreender donde provém essa sua relago com a vida do homem, etc. A chama nio sub- siste sem 0 ar; 0 conhecimento de uma coisa liga-se, pois, ao conhe- cimento de outra. E como todas as coisas so causadoras e causa- das, auxiliadoras auxiliadas, mediatas ¢ imediatas, e todas se acham presas por um vinculo natural ¢ insensivel que une as mais afastadas e diferentes, es mo impossivel conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem entender particularmente as partes. [A eternidade das coisas, em si mesma ou em Deus, deve assom- brar a nossa infima duragio. A imobilidade fixa e constante da natureza, em comparagao com a transformagio continua que se verifica em nés, deve causar-nos ‘© mesmo efeito,] E 0 que completa a nossa incapacidade de conhecer as coi- sas 6 0 fato de serem simples em si, enquanto nés somos compos- tos por duas naturezas antag6- nicas e de géneros diversos, alma © corpo. Pois € impossivel que a parte raciocinante de nés mes- mos nao seja unicamente espir tual; e, se pretenderem que somos tGo-somente corporais, afastario ainda mais de nés 0 conheci- mento das coisas, porquanto nada mais inconcebivel do que dizer que a matéria se conhece a si propria; no podemos conce- ber de que maneira se conheceri Assim, se [somos| simplesmente materiais nada podemos conhe- cer; € se somos compostos de espirito e matéria no podemos conhecer perfeitamente as coisas simples, espirituais ou corporais. Dai a confusio generalizada entre quase todos os filésofos que misturam as idéias das coisas, falando espiritualmente das coi- o PASCAL sas corporais € corporalmente das coisas espirituais. Dizem, ousadamente, que as coisas ten- dem a cair, que aspiram ao cen. tro, que fogem a sua destruigio, que temem o vacuo, que tém inclinagées, simpatias, antipatias, qualidades todas que somente a0 espirito pertencem. E, referindo- se a0 espirito, consideram-no como se estivesse em determi- nado espaco, ¢ the atribuem a capacidade de movimentar-se de um lugar a outro, coisas que per- tencem apenas aos corpos. Em vez de recebermos a idéia pura das coisas, tingimo-la com nossas qualidades e impreg- namos de nosso ser composto todas as coisas simples que con- templamos. Quem nio acreditaria, ao ver- nos juntar as coisas do espirito © do corpo, que tal mescla nos é muito compreensivel? No entan- to, é essa a coisa que menos se compreende. © homem é em si mesmo, 0 objeto mais prodigioso da natureza; pois no pode con- ceber nem 0 que € corpo nem, menos ainda, 0 que é espirito ¢, ainda menos, de que modo pode um corpo unir-se a um espirito. Essa a sua dificuldade maxima e, nao obstante, a sua propria es” séncia: Modus quo corporibus adhaerent spiritus comprehendi ab hominibus non potest, et hoc tamen homo est??. hhomem e, ndo obstante, € 0 homem. (Santo ‘Agostnho, A Cidade de Deus, XXI, 10, citado por Montaigne) Mas, para concluir a prova de nossa fraqueza, terminarei com estas duas consideragGes . 73 — Mas talvez este assun- to ultrapasse o aleance da razio. Examinemos, pois, suas inven- ges acerca das coisas de sua competéncia, Se algo existe em que seu proprio interesse deva té-la aplicado seriamente, € a procura do soberano bem. Veja- mos, portanto, onde essas almas fortes ¢ clarividentes 0 coloca- ram, e se estio de acordo a respeito. Um diz que o soberano bem esta navirtude, outro na volipia; um na ciéncia da natureza, outro na verdade: Felix qui potuit reruh cognoscere causas*®, outro na ignorancia total, ouco na indoléncia, outros em resistir as aparéncias, outros em nada admirar, nihil mirari prope res una quae possit facere et servare beatum® *, € os verdadeiros pirré- nicos em sua ataraxia, divida ¢ suspensiio perpétua; e outros, mais sdbios, pensam achar coisa um pouco melhor. Estamos real- mente bem avancados! Transpor para depois das leis no titulo seguinte, Cabe ainda ver se essa bela filosofia nada adquiriu de certo, mediante tio longo trabalho, ¢ to tenso. Talvez, ao menos, a 29 Feliz 0 que pode conheoer as causes das coisas. Virgilio, Gedrgieas Il, 489.) TONao se espantar de nada: eis, meis-ou ‘menos, nice coisa que pode dare conservar Aelicidade. (Horacio, Zpodos,l, VI, 1) PENSAMENTOS o alma venha a conhecer-se a si mesma. Ougamos os regentes do mundo a esse respeito. Que pen- saram de sua substancia? 394? *, Foram mais felizes em situd-la? 395. Que descobriram acerca de sua origem, sua duragao, seu ponto de partida? 399. Sera, pois, a alma um assunto ainda nobre demais para tio fra- cas luzes? Nivelemo-la & matéria, vejamos se sabe de que é feito o proprio corpo, que ela anima, e os outros que contempla e arran- ja como bem entende. Que soube- ram disso esses grandes dogma- ticos que nada ignoram? Harum sententiarum, 3932 °. Isso bastaria, sem divida, se a raziio fosse razoavel. Ela o é bas- tante para confessar que nada encontrou ainda de firme; mas no desespera de consegui-lo [ao contrario, mostra-se mais ardo- rosa do que nunca nessa pesqui sa, € confia em que possui as for- ‘gas necessarias a essa conquista. Cumpre, pois, acabé-la. E, apos ter examinado suas forgas em seus efeitos, reconhecé-las em si mesmas; vejamos se tem algumas forcas?? e algumas possibili dades de aprender a verdade]. 74 — Uma carta da loucura 2+ Por meio estes nimeros Pascal referee 8 certs pasos dn Apologia de Raymond de Schond de Montsine- 2 estas opines qual a verdaira? 86 ue Det eer ee (tm, Taos Ti) Ceagao compl: Hari senrntanm uae vera at, Deut agus vider (60) Punschvieg prpde a stra de formas (+ comentadores mur moderns, por, pe ferem orgs. (Sd ®) da ciéncia humana e da filosofia. Essa carta antes do diverti- mento. Felix qui potuit.. mirari?*, Duzentas ¢ oitenta espécies de soberanos bens em Montaigne?®. 75 — Part. I, 1. 2.,¢. I, seco 4 Nihil ad- Conjetura, No sera dificil fazé-la descer mais um degrau tomé-la aparentemente ridicula. Pois, para comegar com ela propria havera coisa mais ab- surda do que dizer que os corpos inanimados tém paixdes, temo- res, horrores? Que corpos insen- siveis, sem vida e até incapazes de vida, tém paixdes que pressu- poem, pelo menos, uma alma sensivel para senti-las? Que, além disso, o objeto desse horror € 0 vacuo? Que haveré no vacuo suscetivel de amedronté-los? Que haverd mais vil e ridiculo? Nao € tudo: mesmo que tenham em si proprios um principio de movi mento para evitar 0 vacuo, terdo bragos, pernas, miisculos, ner- vos? 76 — Escrever contra os que aprofundam demais as ciéncias. Descartes. 71 — No posso _perdoar Descartes: bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar sem Deus, mas nfo pide evitar de 2 Feliz aquele que pode nio se admirar de nada. 5° Montaigne refere-se a um clculo de Var- io, segundo 0 qual a questio do “soberano bem da homem’” provocou o aparecniento de duzentas eoitentae ito setas (N- do E) e PASCAL fazé-lo dar um piparote para por © mundo em movimento; depois do que, nfo precisa mais de Deus. 78 — Descartes: indtil e in- certo. 19 — |Descartes — Cumpre dizer, grosso modo: “Isso se faz por figura e movimento”, porque isso € verdadeiro; mas dizer quais € montar a maquina é ridi- culo, pois & initil e incerto, penoso. E ainda que fosse verda- deiro, nfo acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de trabalho.] *80 — Como se explica que um coxo nao nos irrite e um espi- rito coxo nos aborrega? E que o coxo reconhece que andamos direito, e um espirito coxo afirma que nés que mancamos; se assim nao fosse, terfamos pieda- dee nao raiva. Epitecto pergunta com mais énfase: “Por que nao nos zanga- mos se nos dizem que temos dor de cabega e nos zangamos se nos dizem que raciocinamos mal, ou que escolhemos mal?” A razao std em que temos inteira certeza de nao sentir dor de cabeca ¢ de nao sermos coxos; mas ja no estamos igualmente certos de ter escolhido bem. De modo que, no estando seguros senao acerca do que vemos coni nossa vista, quando outro vé com vista con- traria, suspendemos nosso juizo e nos espantamos, ¢ mais ainda quando mil outros zombam de nossa escolha; pois temos que preferir nossas luzes as alheias e isso € dificil e ousado. Nao ha nunca semelhante contradigo no que concerne a um coxo. #81 — Oespirito cré natural- mente, € a yontade ama natural- mente; de modo que, na auséncia de objetivos verdadeiros, se ape- gam aos falsos. *82 — Imaginagdo — E essa parte enganadora?® no homem, essa senhora de erro e falsidade, tanto mais velhaca quanto nao 0 & sempre; pois seria regra infali- vel da verdade, se o fosse infali- vel da mentira. Mas, sendo o mais das vezes falsa, nio di nenhuma marca de sua qualida- de, emprestando o mesmo cardter ao verdadeiro € ao talso. Nao falo dos loucos, falo dos mais sabios, e é entre cles que a imaginago tem o grande dom de persuadir os homens. Por mais que a razio grite, no pode valo- rizar as coisas. Essa soberba poténcia inimiga da razio, que se compraz em controlé-la ¢ em domind-la para mostrar quanto pode em todas as coisas, estabeleceu no _homem uma segunda natureza. Tem seus felizes, seus infelizes, seus sos, seus doentes, seus ricos, seus pobres; faz crer, duvidar, negar a razio; suspende os sentidos, f4- los sentir; tem seus loucos € seus 2° Rrunschvicg, seguindo Tourneur, prefee a leituca dominante & décevante (enganadora), (N.do BE) PENSAMENTOS. 6 sbios: e nada nos despeita mais do que ver que enche seus héspe- des de uma satisfagio bem mais plena e completa do que a razio. Os habeis por imaginaglio com- prazem-se muito mais em si mes- mos do que os prudentes 0 conse- guem razoavelmente. Observam as pessoas com autoridade; dis- putam com ousadia ¢ confianca; ‘05 outros, com medo e descon- fianca: essa alegria visivel da- Ihes muitas vezes vantagem na opiniao dos ouvintes, de tal ma- neira os sabios imagindrios gozam de favor junto aos juizes de idéntica natureza! Nao pode tornar sdbios os loucos; mas os torna felizes, ao contrario da raz, que s6 pode tornar seus amigos miseraveis; uma cobrin- do-os de gléria, a outra de vergo- nha. ‘Quem dispensa a reputagio? Quem da o respeito e a veneragao As pessoas, as obras, as leis, aos grandes, se nfo essa faculdade imaginativa? Como todas as ri- quezas da terra (sfo| insu cientes sem 0 seu consentimento Nao dirfeis que esse ma trado, cuja velhice veneravel impde respeito a todo um povo, se governa por uma razo pura € sublime e que julga as coisas na sua natureza, sem se deter nessas vis circunstncias que s6 ferem a imaginagio dos fracos? Véde-o entrar, para assistir ao sermio com um zelo todo devoto, refor- gando a solidez da razio pelo ardor da caridade. Bi-lo pronto a ouvir com respeito exemplar. Que o pregador aparega: se a natureza the deu uma voz rou- quenha e uma fisionomia esquisi- ta, se o barbeiro o barbeou mal, se, por acaso, ainda por cima, 0 lambuzou, por maiores que sejam as verdades que anuncia, aposto na perda da gravidade do nosso senador. © maior filésofo do mundo, sobre uma tébua, por mais larga que seja, se houver embaixo um precipicio, embora a raziio 0 con- venga de sua seguranca, a imagi- nagao prevaleceré. Muitos nao poderiam pensar sequer_nisso sem empalidecer e suar. Nao pretendo relatar todos os seus efeitos. Quem nio sabe que a visio dos gatos, dos ratos, o esmaga- mento de um carvao, etc., poem a razio fora dos eixos? O tom de voz impressiona os mais sibios modifica um diseurso e um poema. A afeigao ou 0 édio mudam a face da justia: e quanto um advogado, bem pago adiantada- mente, acha mais justa a causa que defende! Quanto o seu gesto ousado a faz parecer melhor aos juizes enganados por esta aparén- cia! Razio divertida que um vento move em todos os senti- dos! Eu relacionaria quase todas as agSes dos homens que quase s6 se abalam com suas sacudidelas. “ PASCAL Pois a razo foi obrigada a ceder, a mais sébia toma como seus principios os que a imaginagao dos homens temerariamente in- troduziu em cada lugar. [Quem quisesse seguir apenas a razio seria louco perante o juizo do homem comum. E preci- ‘0 julgar de acordo com o julga- mento da maior parte do mundo. E preciso, pois isso Ihe apraz, trabalhar o dia todo para alcan- gar bens reconhecidos como ima- gindrios, ¢, quando 0 sono repara as fadigas de nossa razio, cum- pre-nos levantar incontinenti, para correr atras de fumagas experimentar as impresses dessa senhora do mundo. Eis um dos principios do erro, embora nao 0 tinico,] Os nossos magistrados conhe- ceram bem esse mistério. As suas togas vermelhas, os arminhos ‘com que se enfaixam como gatos peludos, os palacios em que jul- gam, as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito neces- sario: e, se os médicos nao tives- sem sotainas ¢ galochas, e os doutores nao usassem borla e ca- pelo e tinicas muito amplas de quatro partes, nunca teriam enga- nado 0 mundo, que nao pode resistir a essa vitrina tio autén- tica. Se possuissem a verdadeira justi¢a e se os médicos fossem senhores da verdadeira arte de curar, nao teriam o que fazer da borla e do capelo; a majestade destas ciéncias seria bastante ve- nerével por si propria. Como, porém, possuem apenas ciéncias imaginarias, precisam tomar esses instrumentos vaos que im- pressionam as imaginagdes com que lidam; ¢ destarte, com efeito, atraem 0 respeito. S6 os homens de guerra nio estio disfargados assim, porque na realidade a sua parte € mais essencial: estabele- cem-se pela forga, ao passo que 0 outros o fazem pela aparéncia. Eis por que os nossos reis nao buscaram tais disfarces. Nao se mascararam com habitos ex- traordinarios para se apresen- tarem como tais; mas esto acompanhados de guardas ¢ de alabardas: essas carrancas arma- das que s6 tém mis e forga para eles, as trombetas € os tambores que marcham & sua frente, ¢ essas legides que os cercam, fazem tremer os mais firmes. Nio tém o habito somente, tém a forga. Seria preciso possuir uma razio bem depurada para obser- var como um homem qualquer 0 grio-senhor rodeado, em seu so- berbo serralho, por quarenta mil janizaros. Nao podemos mesmo ver um advogado de sotaina e borla sem uma opinigo favordvel de sua suficiéncia. ‘A imaginagao dispde de tudo; faz a beleza, a justica ¢ a feli dade, que é tudo no mundo. Eu desejaria de bom grado ler o livro italiano, do qual s6 conhego o ti- tulo, que vale sozinho muitos PENSAMENTOS 6 livros, Della Opinione, Regina del Mondo. Subscrevo-o sem 0 conhecer, salvo o mal, se nele existe algum. Eis, aproximadamente, os efei- tos dessa faculdade enganosa que parece nos ser dada de propésito para induzir-nos a um erro neces- sirio. Temos muitos outros prin- cipios sobre este assunto. Nao sio as impresses antigas as tinicas capazes de nos iludir; 0s encantos da novidade tém igual poder. Dai provém todas as disputas dos homens, que tanto se censuram por seguir as falsas impresses de sua infancia ou por correr temerariamente atras das novas. Quem se atém a um justo equilfbrio? Que apareca e prove. Nao ha principio, por natural que seja, mesmo desde a infancia, que nao se faga passar por falsa impressao, ou da educa- G0 ou dos sentidos. “Porque acreditastes desde a infancia que um cofre se achava vazio, por nele nfo verdes nada”, dizem-nos, “acreditais ser possi- vel o vacuo. E uma ilusio de vos- 308 sentidos, fortalecida pelo hé- bito e que a ciéncia precisa corrigir.” E dizem outros: “Por- que vos disseram na escola que 0 vacuo nio existe, corromperam vosso bom senso que 0 com- Preendia tao nitidamente, antes dessa _mé impressio, que cabe corrigir recorrendo & vossa pri- meira_natureza”, Quem enga- nou? O sentido ou a instrugio? Temos outro principio de erro: as enfermidades. Elas nos pertur- bam o julgamento e os sentidos. E, se as grandes os alteram sensi- velmente, & de crer que as peque- nas também os impressionem proporcionalmente. Nosso interesse ¢ ainda um instrumento maravilhoso para nos vazar os olhos agradavel- mente. Nao é permitido ao homem mais eqiiitativo julgar em causa propria. Conhego alguns que, para nao sucumbir a esse amor-préprio, foram os mais ih- justos do mundo em_ sentido contrario: o meio mais seguro de perder uma causa justa consistia em fazerlha recomendar por seus parentes mais proximos, A justica e a verdade so duas pontas tao sutis que nossos ins- trumentos se revelam demasiado grosseiros para as tocar exata- mente. Se porventura 0 conse- guem, — desagugam-nas, apéiam-se em torno, mais sobre 0 falso do que sobre 0 verdadeiro. [O homem € pois fabricado com tanta felicidade que nao tem nenhum [principio] justo do que € verdadeiro e muitos excelentes do que é falso. Vejamos agora quantos... Mas a causa mais forte desses erros é a guerra que existe entre os sentidos e a razio.] 83 — Cumpre comecar por ai o capitulo das forcas engana- doras. © homem nao passa de um sujeito cheio de erro, natural 6 PASCAL ¢ indelével sem a graga. Nada lhe mostra a verdade. Tudo o ilude. Os dois principios das verdades, a raziio e os sentidos, além de carecerem de sinceridade, ilu- dem-se mutuamente. Os sentidos, com suas falsas aparéncias, enga- nam a razio; e essa mesma frau- de que oferecem a razio rece- bem-na dela, por sua vez. Ela revida. As paixdes da alma per- turbam os sentidos ¢ provocam- Ihes falsas impressbes. Eles men- tem e se enganam a porfia. Mas, além desses erros que ocorrem por acidente e falta de inteligéncia, entre estas faculda- des heterogéneas . *84 — A imaginagdo amplia os pequenos objetos até encher- nos a alma com eles, em uma avaliagfo fantasista; e numa in- soléncia temeraria diminui_ os grandes e os reduz a sua medida, como ao falar de Deus. *85 — As coisas que mais prezamos, como esconder a nossa pequena fortuna, nfo sio, amide, quase nada. Séo um vazio que nossa imaginagao am- plia. Outro passe da imaginagao no-lo faz descobrir sem dificul- dade. 86 — Minha fantasia impe- Je-me a odiar um individuo que grasna ou que come ofegando. A fantasia pesa muito. Que pro- veito tiraremos disso? Seguir esse peso por ser natural? Nao. Mas resistin... 87 — Quasi quidquam infe- licius sit homine cui sua figmenta dominantur (Plin.)°". 88 — As criangas, que se amedrontam com a careta que desenham, sio criangas; mas como conseguir que o que é assim tio fraco, em crianga, se tome forte, mais tarde? Muda-se apenas de fantasia. Tudo o que se aperfeigoa pelo progresso. tam- bém perece com ele. Tudo o que foi fraco nunca sera inteiramente forte, Por mais que se diga: cres- ceu, mudou; a verdade é que tam- bém continua sendo 9 mesmo. 89 — O habito é nossa natu- reza. Quem se habitua a f€ cré, € no pode deixar de temer o infer- no; e nao cré em outra coisa. Quem se habitua a crer que o rei @ terrivel, ete... Quem duvida, pois, de que nossa alma, estando habituada a ver nimero, espago, movimento, cra ism amie "8" Quod erebro vider non ‘miratur, etiamsi cur fiat nescit; quod ante non viderit, id si evene- rit, ostentum esse censet (Cic.)*2 ‘Nae iste magno conatu magnas nugas dixerit®*. 1 — Spongia solis**. Quando vemos um efeito repeti 2 Como se houvesse algo mais despracado 4do que um homem dominado pela imaginaeso Pino, 7. 52 Um sioesso freqlente no nos surpreend, mesmo quando Ihe ignoramos a causa; um ‘contecimento que nunca vimos passa por pro- igioso (Cicero, De Divinatione, ll, 49). 33° Eilo_ que vai dizer com grande esforgo ‘grandes roles. (Teréncio, Heaurentimers- ‘menos, V8). Fe Manchas do co PENSAMENTOS 0 se seguidamente, concluimos tra- tar-se de uma necessidade natu- ral: amanha sera dia, etc. Mas nao raro a natureza nos desmente € nao se submete a suas préprias leis. *92 — Que so nossos prin: cipios naturais, senfo principios de habitos? E’nas criancas, os que receberam com os habitos dos pais, como a caga entre os animais? Habitos diferentes dio-nos prineipios naturais diversos, & 0 que nos prova a experiéncia ‘e, se existem principios que 0 habito nao pode fazer desaparecer, hé- os também do costume contra a natureza, inapagaveis por esta, ou por um segundo costume. Tudo depende da disposigao. *93 — Temem os pais que 0 amor natural de seus filhos se extinga. Que espécie de natureza sera essa_entio, suscetivel de extingdo? O habito é uma segun- da natureza que destréi a primei- ra, Mas que & a natureza? Por que nao é 0 habito natural? Re- ceio muito que essa natureza nao seja ela propria sendo um pr meiro habito, assim como o habi- to uma segunda natureza. 94 — A natureza do homem é toda natureza, omne animal. Nao ha nada no mundo que nfo se torne natural. Nao ha natural que ndo se perca. 95 — A memoria, a alegria sio sentimentos; e até as propos ges geométricas fazem-se sent mentos, pois a razio torna os sentimentos naturais e os senti- mentos naturais se extinguem pela razéo. 96 — Quando se est acostu- mado a valer-se de mas razdes para provar os efeitos da nature- za, nao se quer mais acolher as boas quando descobertas. O exemplo foi dado a respeito da circulagio do sangue, para expli- car de maneira racional por que a veia incha sob a atadura, *97 — A coisa mais impor- tante na vida é a escolha de uma profissaio. E 0 acaso que dispoc. O costume faz os pedreiros, sol- dados, empalhadores. “E um ex- celente empalhador”, diz-se; e, falando dos soldados: “Sao muito loucos”; mas outros, ao contrario: “Nao ha nada de gran- de fora da guerra; os demais ho- mens so velhacos.” A forca de ouvir louvar na infancia esses off- cios ¢ desprezar todos os outros, escolhe-se; ama-se naturalmente a virtude ¢ odeia-se a loucura. Essas palavras nos comovem; se pecamos, é na aplicagio; to grande é a forga do costume que, daqueles que a natureza fez ape- nas homens, se fazem todas as condigées dos homens; com efei- to, em certas regides todos sio pedreiros, ¢ noutras, todos solda- dos, etc. Sem divida, a natureza nao é to uniforme. E, pois, 0 costume que faz isso, constran- gendo a natureza; e, as vezes, também, a natureza o vence ¢ ry PASCAL retém 0 homem no seu instinto, malgrado o costume, bom ou mau. 98 — A prevenedo induzindo em erro — & lamentavel ver todos os homens deliberarem apenas sobre 0s meios € néo sobre os fins. Cada qual pensa ‘em como desempenhar a sua con- digo; mas a escolha da condigag e da patria é fungao da sorte. E lamentavel ver tantos turcos, he- réticos, infigis, seguirem o cami nho de seus pais, pela énica razio de terem sido induzidos na prevengao de que este cra 0 melhor. Eis o que determina a condigéo de cada um, serra- Iheiro, soldado, etc. Por isso & que os selvagens nao sabem que fazer da Provenga. *99 — Ha diferenga essencial ¢ universal entre as agGes da von- tade e todas as outras. ‘A vontade é um dos principais érefios da crenga, néo porque forme a crenga, mas porque as coisas so verdadeiras ou falsas segundo 0 Angulo pelo qual as encaramos. A vontade, que se apraz mais em um do que em outro, desvia 0 espirito da consi- deragio das qualidades que nao quer ver; assim, o espirito, mar- chando de comum acordo com a vontade, detém-se 4 olhar do &n- gulo que esta aprecia. Julga-se desse modo pelo que se vé. 100 — Amor-préprio — A natureza do amor-préprio e desse ‘eu humano é nao amar sendo a si nao considerar sendo a si. A que pode levar? Nao poderé impedir que esse objeto que ama esteja cheio de defeitos e misé rias: quer ser grande e acha-se pequeno; quer ser feliz e acha-se miserdvel; quer ser perfeito © acha-se cheio de imperfeigies; quer ser 0 objeto do amor e da es- tima dos homens, ¢ vé que seus defeitos s6 merecem deles aver- slo e desprezo. Esse embarago em que se acha produz nele a mais injusta e criminosa paixéo que se possa imaginar; pois con- cebe um ddio mortal contra essa verdade que o repreende e 0 con- vence de seus defeitos. Desejaria aniquilar essa verdade e, nio podendo destruf-la em si mesmo, a destréi quanto pode em seu conhecimento e no dos outros; isto é, pde todo o seu cuidado em encobrir os préprios defeitos a si mesmo ¢ aos outros, e nao supor- ta que o fagam vé-los, nem que os vejam. E, sem divida, um mal ter tan- tos defeitos; mas é ainda um mal maior estar cheio deles e nao querer reconhecé-los, pois € ajun- tar-Ihes ainda o de uma ilusio voluntaria. Nao queremos que os outros nos enganem; nao acha- mos justo que queiram ser esti mados por nés mais do que mere- cem; nao & portanto, justo também que os enganemos © queiramos que nos estimem mais, do que merecemos. Assim, quando os outros s6 PENSAMENTOS ° descobrem em nés imperfeigdes € vicios, que na realidade temos, é claro que nao nos prejudicam, pois nao so eles os causadores dessas imperfeigdes, e que nos fazem um beneficio, pois nos aju- dam a livrar-nos desse mal que € a ignorancia das imperfeigdes. Nao devemos zangar-nos pelo fato de eles as conhecerem € nos desprezarem, pois € justo que nos conhegam pelo que somos, € que nos desprezem se somos despre- ziveis. Tais seriam os senti- mentos naturais de um coragdo cheio de eqiiidade e justiga. Que devemos dizer do_nosso, vendo nele uma disposigao tio contra- ria? Pois nao é que odiamos a verdade € os que no-la dizem? Que desejamos que se enganem, com vantagem para nds, € que nos tomem por outros, diferentes do que somos na realidade? Eis uma prova que me causa horror. A religiao catélica nao nos obriga a revelar nossos peca- dos indiferentemente a todo mundo: permite que 0s oculte- mos de todos os outros homens; mas excetua um Unico, ao qual ordena que abramos 0 fundo do coragio, e que nos mostremos tal qual somos. Somente a esse tinico homem, no mundo, ela nos ordena confes- sar, mas obriga-o a um segredo inviolavel, 0 que faz que o seu conhecimento de nossos pecados permanega nele como se nao existisse. Sera possivel imaginar algo mais caritativo e mais suave? E, contudo, é tal a corrupgio do homem que acha ainda dureza nessa lei; ¢ foi uma das principais, razdes que levaram grande parte da Europa a revoltar-se contra a Iereja. Tao injusto ¢ desarra- zoado € 0 coragao do homem que Ihe parece um mal ser obrigado a fazer, em relagio a um sO homem, © que seria justo, de certa_maneira, que fizesse em relago a todos os homens! Pois sera justo que os enganemos? Ha diferentes graus nessa aver- sfo a verdade; mas pode-se dizer que até certo pono ela existe em todos, porque é insepardvel do amor-proprio. Assim, essa falsa delicadeza € que obriga os que tém necessidade de repreender os outros a escolher tantos rodeios ¢ manejos para nfo feri-los. Preci sam diminuir os nossos defeitos, fingir desculpé-los, misturar lou- vores e testemunhos de afeigio estima. E, mesmo assim, esse remédio nao deixa de ser amargo a0 amor-préprio. Tomamos dele ‘© menos que podemos, e sempre com repugnincia, e muitas vezes com um secreto despeito contra ‘0s que no-lo apresentam. Por isso acontece que, quando alguém tem interesse em ser amado por 1nés, foge de prestar-nos um servi- go que sabe ser-nos desagra- davel; trata-nos como desejamos ser tratados: odiamos a verdade, a verdade nos é ocultada; deseja-

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