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ISBN: 978-989-644-482-2
Para a Hanna
«I see it feelingly.»
«Eu vejo sentindo.»
GLOUCESTER PARA LEAR EM REI LEAR,
DE SHAKESPEARE, ATO IV, CENA 6
presente livro tem a ver com um interesse e uma ideia. Há muito que me
O interesso pelos afetos humanos, o mundo das emoções e dos sentimentos,
e que os investigo – como e porquê nos emocionamos e sentimos, como usamos
os sentimentos para construir as nossas personalidades, como os sentimentos
ajudam ou prejudicam as nossas melhores intenções, como e porquê o cérebro
interage com o corpo em apoio dessas funções. Disponho hoje de novos factos e
interpretações sobre essas perguntas que gostaria de partilhar com o leitor.
Quanto à ideia, é enganadoramente simples: os sentimentos ainda não
receberam o apreço que merecem como motivadores e negociadores da grande
empresa cultural humana. Os seres humanos distinguiram-se de todos os outros
seres ao criarem espantosas coleções de objetos, práticas e ideias, conhecidas
coletivamente como «culturas». Nelas se incluem as artes, o inquérito filosófico,
os sistemas morais e as crenças religiosas, a justiça, os sistemas governativos e
as instituições económicas, e a tecnologia e a ciência. Como e porquê teve início
este processo? Uma resposta frequente a esta pergunta invoca uma faculdade
importante da mente humana – a linguagem verbal – a par de outras
características notáveis, como a sociabilidade intensa e um intelecto superior.
Não tenho quaisquer dúvidas de que a capacidade intelectual, a sociabilidade e a
linguagem desempenharam papéis fundamentais no processo, mas julgo que terá
sido preciso algo mais para dar início à saga das culturas humanas. Esse «algo
mais» foi um motivo poderoso. Estou a referir-me especificamente aos
sentimentos, desde a dor e o sofrimento ao bem-estar e ao prazer. Para pôr a
claro a ideia, pensemos na medicina, um dos mais significativos
empreendimentos culturais. A combinação de ciência e tecnologia que deu
origem à medicina teve início como resposta à dor e ao sofrimento provocados
por toda a espécie de doenças, desde os traumatismos físicos às infeções e ao
cancro, como um meio de substituir dor e sofrimento por bem-estar e
possibilidade de desenvolvimento. A medicina não começou como desporto
intelectual destinado a estimular a nossa capacidade de fazer diagnósticos
difíceis ou resolver mistérios da fisiologia. Começou simplesmente como
consequência dos sentimentos específicos dos pacientes e dos sentimentos que a
situação desses doentes provocou nos primeiros médicos, nomeadamente a
compaixão nascida da empatia. Tais motivos ainda hoje perduram. Imagino que
todos os leitores se terão apercebido de como as visitas ao dentista e os
procedimentos cirúrgicos têm vindo a melhorar ao longo da nossa vida. O
motivo principal por detrás de melhorias, tais como os anestésicos eficazes e os
instrumentos precisos é a redução dos sentimentos de desconforto. A atividade
dos engenheiros e dos cientistas desempenha um papel louvável neste processo,
e tem a sua própria lista de motivos. A busca de lucro por parte das indústrias
farmacêuticas e da instrumentação também desempenha um papel importante,
pois o público precisa de reduzir o sofrimento e as indústrias respondem a essa
necessidade. A procura do lucro é alimentada por vários anseios, como sejam o
desejo de progresso, de prestígio, e a ganância, mas todos esses anseios são,
antes de mais, sentimentos. Não é possível compreender o esforço imenso
despendido para desenvolver curas para o cancro ou para a doença de Alzheimer
sem ter em conta os sentimentos como motivadores e negociadores do processo
(também não é possível compreender o menor esforço das culturas ocidentais na
procura de uma cura para a malária, em África, ou do controlo da
toxicodependência, um pouco por toda a parte, sem ter em conta os respetivos
sentimentos que as têm inibido). A linguagem, a sociabilidade, o conhecimento e
o raciocínio são, por certo, os principais inventores e os executores dessas
realizações, mas os sentimentos motivam-nas, permanecem em cena para que
possam avaliar os resultados e ajudam a negociar os ajustamentos necessários.
A ideia, na sua essência, é que a atividade cultural teve início nos
sentimentos e deles continua a depender. Se quisermos compreender os conflitos
e as contradições da condição humana, precisamos de reconhecer a interação,
tanto favorável como desfavorável, entre sentimentos e raciocínio.
II
III
Da condição humana
Uma ideia simples
Não é possível dizer ao certo quando terão ocorrido esses acontecimentos, pois o
seu aparecimento variou consideravelmente, dependendo das populações
específicas e da sua localização geográfica. Por certo que há 50 mil anos já
decorriam em torno do Mediterrâneo, na Europa Central e Austral, e na Ásia,
regiões onde o Homo sapiens estava presente, embora ainda na companhia dos
neandertais, muito depois de o sapiens ter aparecido, há cerca de 200 mil anos
ou mais3. Podemos assim considerar que o dealbar das culturas humanas ocorreu
então entre caçadores-recoletores, muito antes da invenção cultural conhecida
como «agricultura», há cerca de 12 mil anos, e antes da invenção da escrita e do
dinheiro. As datas em que os sistemas de escrita surgiram nos vários locais é um
bom exemplo de como os processos de evolução cultural foram multicêntricos.
A escrita começou na Suméria (na Mesopotâmia) e no Egito, entre 3500 a.C. e
3200 a.C. Todavia, um sistema de escrita diferente apareceria mais tarde na
Fenícia, acabando por ser usado pelos gregos e pelos romanos. A civilização
maia também desenvolveu a escrita independentemente, por volta de 600 a.C.,
na Mesoamérica, na atual região do México.
Podemos agradecer a Cícero e à Roma Antiga a aplicação da palavra
«cultura» ao universo das ideias. Cícero usou o termo para descrever o cultivo da
alma – cultura animi –, devendo estar a pensar no trabalho dos campos e no seu
resultado, o aperfeiçoamento e a melhoria do crescimento das plantas. Aquilo
que se aplicava à terra podia igualmente aplicar-se à mente.
Não há grande dúvida quanto ao principal significado atual da palavra
«cultura». Os dicionários dizem-nos que «cultura» se refere às manifestações
dos feitos intelectuais considerados coletivamente, e, a menos que se indique o
contrário, o termo refere-se à cultura humana. As artes, o pensamento filosófico,
as crenças religiosas, as faculdades morais, a justiça, a governação política e as
instituições económicas – mercados, bancos –, a tecnologia e a ciência são as
principais atividades evocadas pela palavra «cultura.» As ideias, as atitudes, os
usos e costumes, e as práticas e instituições utilizadas para distinguir grupos
sociais pertencem ao conceito global de cultura, tal como acontece com a noção
de que as culturas são transmitidas entre povos e gerações através da linguagem
e com os rituais e os objetos criados inicialmente pela cultura. Sempre que, no
presente volume, falo em culturas ou na mente cultural, é a este conjunto de
fenómenos que me refiro.
Existe um outro uso comum da palavra «cultura.» Curiosamente, refere-se ao
cultivo, em laboratório, de microrganismos como as bactérias: refere-se às
bactérias em cultura, e não aos comportamentos supostamente culturais das
bactérias que analisaremos em breve. Seja por que prisma o encaremos, as
bactérias estavam destinadas a fazer parte da grandiosa história da cultura.
Sentimento ou intelecto?
Origens humildes
Homeostasia
Dito isto, podemos adiantar uma hipótese de trabalho quanto à relação entre
sentimentos e cultura. Os sentimentos, como colaboradores da homeostasia, são
os catalisadores das respostas que deram origem às culturas humanas. Será
concebível que os sentimentos possam ter motivado as invenções intelectuais
que deram aos seres humanos 1. a arte, 2. a dúvida filosófica, 3. as crenças
religiosas, 4. as regras morais, 5. a justiça, 6. os sistemas de governação política
e as instituições económicas, 7. a tecnologia, e 8. a ciência? A minha resposta
será sim, sem dúvida. Posso afirmar que as práticas ou os instrumentos culturais
em cada uma das áreas desta lista exigiram uma situação de declínio
homeostático real ou antecipado (por exemplo, dor, sofrimento, necessidade,
ameaça, perda) ou de um benefício homeostático potencial (por exemplo, um
resultado recompensador), e que essa sensação serviu de motivo para a
exploração, através do uso dos instrumentos de conhecimento e de raciocínio,
das possibilidades de reduzir a necessidade ou de capitalizar a abundância
indicada pelos estados de recompensa.
Mas isto é apenas o início da história. A consequência de uma resposta
cultural bem-sucedida é o declínio ou o cancelamento do sentimento motivador,
um processo a cargo da monitorização do estado homeostático. Por sua vez, a
posterior adoção das respostas intelectuais e a sua inclusão – ou abandono – num
corpo cultural é um processo complexo que resulta das interações, ao longo do
tempo, de vários grupos sociais. Depende de variadas características dos grupos,
desde a dimensão e da história passada à localização geográfica e às relações de
poder, internas e externas. Envolve componentes intelectuais e emotivos
subsequentes. Por exemplo, quando surgem conflitos culturais, os sentimentos
positivos e negativos que deles resultam contribuem para solucionar ou para
agravar os conflitos. A seleção cultural depende desses resultados.
Convém insistir que identificar ligações entre processos biológicos, por um lado,
e fenómenos mentais e socioculturais, por outro, não significa que a forma das
sociedades e a composição das culturas possam ser cabalmente explicadas com
os mecanismos biológicos que aqui delineamos. É verdade que imagino que o
desenvolvimento dos códigos de conduta, independentemente de quando ou
como tenham surgido, terá sido inspirado pelo imperativo homeostático. Tais
códigos pretendem, em geral, atenuar os riscos que os indivíduos e os grupos
sociais enfrentam, tendo resultado na redução do sofrimento e na promoção do
bem-estar humano. Fortaleceram a coesão social, algo que, em si próprio, é
favorável à homeostasia. No entanto, para além do facto de terem sido
concebidos por seres humanos, o Código de Hamurabi, os Dez Mandamentos, a
Constituição dos Estados Unidos da América e a Carta das Nações Unidas foram
moldados pela especificidade das circunstâncias do seu momento na História e
pelos seres humanos que desenvolveram tais códigos. Não existe uma fórmula
universal e abrangente, embora partes de todas as fórmulas sejam universais.
Os fenómenos biológicos podem desencadear e moldar acontecimentos que
se tornam fenómenos culturais, e tê-lo-ão feito na alvorada das culturas, através
da interação dos sentimentos e do raciocínio em circunstâncias específicas
definidas pelos indivíduos, pelos grupos, pela sua localização e pelo seu passado,
etc. A intervenção dos sentimentos não se limitou a um motivo inicial. Eles
continuaram com o papel de monitor do processo e continuaram a intervir no
futuro de muitas invenções culturais, segundo as exigências da eterna
negociação entre afeto e razão. Mas os fenómenos biológicos cruciais –
sentimentos e intelecto nas mentes culturais – são apenas uma parte da história.
É preciso ter em conta a seleção cultural, e, para tal, precisamos da ajuda da
história, da geografia e da sociologia, entre muitas outras disciplinas.
Numa região
como nenhuma outra
Vida
A vida, ou pelo menos a vida de onde descendemos, parece ter surgido há cerca
de 3,8 mil milhões de anos, muito depois do tão famoso Big Bang;
discretamente, sem fanfarra a anunciar o seu espantoso início no planeta Terra,
protegida pelo nosso Sol, no departamento geral da Via Láctea.
Estavam presentes a crosta da Terra, os seus oceanos e atmosfera, certas
condições ambientais, como a temperatura, e certos elementos essenciais –
carbono, hidrogénio, nitrogénio, oxigénio, fósforo e enxofre.
Um número de processos, protegido por uma membrana circundante,
emergiu dentro de uma região isolada e improvável a que hoje chamamos
«célula»1. A vida começou dentro dessa primeira célula – era essa célula –
enquanto conjunto extraordinário de moléculas químicas com determinadas
afinidades, que garantiam reações químicas contínuas, ciclos pulsantes repetidos.
Sozinha e de moto próprio, a célula reparou o inevitável desgaste contínuo.
Quando uma parte se danificava, a célula substituía-a, com mais ou menos
exatidão, pelo que os processos funcionais da célula se mantiveram e a vida
prosseguiu. «Metabolismo» é o nome que damos aos processos químicos que
realizam esse feito, um processo que exige que a célula extraia, de forma tão
eficiente quanto possível, a energia de que precisa a partir de fontes no seu
ambiente, e que use essa energia, de modo igualmente eficiente, para a
reconstrução da maquinaria danificada, e, por fim, que se livre dos resíduos.
«Metabolismo» é um termo cunhado recentemente (nos finais do século XIX)
que deriva do grego para «alteração». O metabolismo abrange os processos de
catabolismo – a quebra das moléculas resultantes da libertação de energia – e
anabolismo – um processo de construção que consome energia. O termo
«metabolismo», usado tanto em inglês como nas línguas românicas, é, de certo
modo, opaco, ao contrário do termo germânico equivalente – Stoffwechsel, ou
«troca de material». Tal como comenta Freeman Dyson, o termo alemão sugere
desde logo aquilo de que realmente trata o metabolismo2.
Claro que o processo da vida foi mais do que a mera manutenção de
equilíbrio. De uma série de possíveis «steady states» («estados estacionários»), a
célula, no auge do seu poder, veio a tender, naturalmente, para o estado mais
conducente a um balanço energético positivo, um excedente com que a vida
pudesse ser otimizada e projetada para o futuro. Consequentemente, a célula
pôde florescer. Neste contexto, florescer significa uma forma mais eficiente de
viver e a possibilidade de se reproduzir.
A vida tem um desejo inato e espontâneo de persistir e avançar para o futuro,
ultrapassando todos os possíveis obstáculos. O conjunto de processos
necessários à execução deste desígnio é conhecido como homeostasia. Sei bem
que «inato», «espontâneo» e «desejo» são termos que, à primeira vista, parecem
entrar em conflito, mas, pese embora o aparente paradoxo, estou simplesmente a
descrever o processo da forma que melhor corresponde à realidade. Não parece
ter existido um processo comparável anterior ao começar da vida, embora seja
possível imaginar precursores do comportamento das moléculas e dos átomos.
Contudo, o estado emergente da vida parece ligado a certos substratos e
processos químicos particulares. Podemos dizer que a homeostasia teve origem
no nível mais simples da vida celular, e que as bactérias, de todas as formas e
feitios, foram excelentes exemplos. A homeostasia refere-se ao processo
extraordinário através do qual a tendência da matéria de se perder em desordem
é contrariada, de forma a manter a ordem, mas a um nível novo, o nível
permitido pelo steady state mais eficaz. Esta oposição assenta no princípio da
ação mínima – enunciado pelo matemático francês Pierre Maupertuis – em que a
energia livre será consumida da forma mais eficiente e rápida possível.
Imaginemos a extraordinária habilidade de um malabarista, que não pode
interromper o processo de manter todas as bolas no ar sem deixar que alguma
caia, e temos uma representação teatral da vulnerabilidade e do risco da vida.
Agora pensemos que o malabarista também nos quer impressionar com a sua
elegância e velocidade, com a sua genialidade, e percebemos que está já a
imaginar uma atuação ainda melhor3.
Vida em movimento
Hoje em dia existem muitas bactérias à nossa volta, em nós e no nosso interior,
mas já não restam exemplos dessas primeiras bactérias de há 3,8 mil milhões de
anos. Para sabermos como eram, como era essa vida inicial, é preciso juntar
vários indícios diferentes. Entre o início e o presente temos lacunas parcamente
documentadas. A forma exata como a vida surgiu está aberta a conjeturas.
À primeira vista, e na sequência da descoberta da estrutura de ADN, da
elucidação do papel do ARN e do decifrar do código genético, deveria parecer
que a vida teria surgido do material genético, mas a essa ideia deparou-se um
grande obstáculo: a probabilidade de tais moléculas complexas virem a reunir-se
espontaneamente como primeiro passo na construção da vida era quase nula6.
A confusão e o equívoco não surpreendem. Recordemos que a descoberta,
em 1953 (por Francis Crick, James Watson e Rosalind Franklin), da estrutura em
hélice dupla do ADN foi, e continua a ser, um dos momentos mais altos da
história da ciência, e influenciou, merecidamente, todas as formulações sobre
vida que se seguiram. Inevitavelmente, o ADN veio a ser visto como a molécula
da vida e, por extensão, a molécula do seu início. Mas como poderia uma
molécula de tal modo complexa ter sido criada espontaneamente na sopa
primordial? Vista sob tal perspetiva, a probabilidade de a vida ter surgido de
modo espontâneo era tão negligenciável que justificava o ceticismo de Francis
Crick de que tivesse sido criada na Terra. Ele e o seu colega Leslie Orgel, do
Salk Institute, pensavam que a vida poderia ter vindo do espaço exterior, trazida
por foguetões não-tripulados. Tratava-se de uma versão da ideia de Enrico Fermi
de que alienígenas de outros planetas teriam vindo à Terra, trazendo a vida
consigo. Isto limitava-se a afastar o problema para outro planeta, mas a ideia é
curiosa. Os alienígenas teriam entretanto desaparecido, ou talvez até estejam
entre nós, sem que os reconheçamos. O físico húngaro Leo Szilard aventou que é
óbvio que ainda se encontram entre nós, «mas que se chamam húngaros7». Isto é
especialmente curioso porque outro húngaro famoso, o biólogo e engenheiro
químico Tibor Gánti, foi um crítico da ideia de que a vida teria chegado de
algures, um conceito que Crick acabou por abandonar8. Não obstante, o enigma
da emergência da vida produziu opiniões amplamente divergentes, adiantadas
por alguns dos mais distintos biólogos do século XX. Jacques Monod, por
exemplo, era um «cético da vida», acreditando que o Universo não estava
«prenhe de vida», ao passo que Christian de Duve pensava exatamente o
contrário.
Não estranhará que a maioria das conversas sobre a ciência da vida se centre na
espantosa maquinaria dos genes, responsável, atualmente, por transmitir e
regular a vida. Claro que quando nos referimos à vida propriamente dita, não é
só sobre os genes que devemos falar. Com efeito, faz sentido aventar que o
imperativo homeostático, tal como se manifestou nas primeiras formas de vida,
terá sido seguido pelo material genético, e não vice-versa. Isso teria sido
conseguido em virtude do esforço homeostático para a otimização da vida, algo
que está por detrás da seleção natural. O material genético viria a ser
indispensável para o projeto homeostático: sendo responsável pela geração de
descendência, uma tentativa de garantir a perpetuidade, o material genético
permitiria a consequência última da homeostasia.
As estruturas e as operações biológicas responsáveis pela homeostasia dão
forma ao valor biológico que é a base para o funcionamento da seleção natural.
Este fraseamento ajuda à questão da origem e situa o processo fisiológico crítico
em condições particulares do processo de vida e sua química subjacente.
Faz sentido perguntar onde se devem situar os genes na história da vida. A
vida, o seu imperativo homeostático e a seleção natural apontam para o
aparecimento de processos genéticos e só têm a lucrar com eles. A vida, o seu
imperativo homeostático e a seleção natural também explicam a evolução da
inteligência, através de comportamentos sociais, nos organismos unicelulares,
bem como do desenvolvimento, em organismos multicelulares, de sistemas
nervosos e de mentes imbuídos de sentimentos, consciência e criatividade. É
com estes instrumentos que os seres humanos virão a questionar a sua condição,
em todas as suas dimensões, e virão potencialmente a sustentar ou a enfraquecer
o imperativo homeostático. Mais uma vez, não está em causa a importância, a
eficiência, ou a tirania relativa dos genes. O que está em causa é a sua posição na
ordem das coisas.
Variedades
de homeostasia
m dos primeiros passos do ritual conhecido como «medical check up»
U consiste na medição da tensão arterial. Todos os leitores medem
regularmente a sua tensão arterial e estão a par do facto de que existem
amplitudes diferentes para os valores de tensão «diastólica» e «sistólica» e de
que há valores máximos e mínimos fora dos quais a integridade do organismo
está ameaçada. Alguns leitores terão passado por episódios de hiper e hipotensão
arterial, tendo sido aconselhados a alterar as suas dietas ou a tomar
medicamentos para que os valores regressassem a um nível aceitável. Porquê
tanta preocupação? Simplesmente porque há uma gama permissível para a
variação na tensão arterial e que uns são mais desejáveis do que outros. É de
esperar que o organismo regule automaticamente este processo e evite desvios
excessivos. No entanto, quando os dispositivos naturais falham, verificam-se
problemas, por vezes com graves consequências para o futuro do organismo. A
função do médico durante a visita anual é verificar que os principais sistemas do
organismo estejam a funcionar dentro dos parâmetros compatíveis com a saúde.
Homeostasia e regulação da vida são frequentemente vistas como sinónimos,
algo que corresponde ao conceito tradicional de homeostasia que se refere à
capacidade, presente em todos os organismos, de manter as operações químicas
e fisiológicas, de forma contínua e automática, dentro de uma gama de valores
compatíveis com a sobrevivência. Este conceito restrito de homeostasia não
corresponde bem à complexidade e ao alcance dos fenómenos a que o termo
verdadeiramente se refere.
É bem verdade que, quer consideremos seres unicelulares ou organismos
complexos, são muito poucos os aspetos da operação de um ser vivo que
escapem à necessidade de controlo homeostático. De acordo com isso, os
mecanismos da homeostasia começaram por ser concetualizados como
automáticos, relacionados exclusivamente com o ambiente interno de um
organismo, e eram frequentemente explicados por analogia com um termóstato:
ao chegar a uma temperatura previamente determinada, o aparelho suspende, ou
inicia, a operação apropriada – arrefecer ou aquecer. Todavia, esta definição
tradicional (bem como as explicações típicas que ela inspira) não capta a
variedade de circunstâncias em que pode ser aplicada a sistemas vivos.
Permitam-me que explique o motivo por que a visão tradicional não é
suficientemente vasta.
Notavelmente, e tal como indicado no capítulo anterior, o processo
homeostático procura mais do que um mero estado de equilíbrio. Efetivamente,
os organismos, unicelulares ou multicelulares, procuram estados de regulação
interna capazes de os conduzir ao florescimento. Trata-se de uma tendência
natural que pode ser descrita, a posteriori, como tendo em vista o futuro do
organismo, uma marcada inclinação para se projetar no tempo através de uma
regulação ótima da vida e de uma possível descendência. Podemos dizer que os
organismos querem ser mais do que simplesmente saudáveis.
As operações fisiológicas raramente se regem por pontos estabelecidos, qual
termóstato. Existem, isso sim, cambiantes e graus de regulação, degraus entre
escalas que, em última análise, correspondem à maior ou menor perfeição do
processo regulatório. Peço ao leitor que recorde esta ideia mais à frente, quando
abordarmos a avaliação mental da qualidade, ou falta dela, do estado geral da
vida. Estou a referir-me ao processo dos sentimentos, processos que
correspondem com grande fidelidade aos estados da vida. É espantoso constatar
que, em geral, não precisamos de consultar o nosso médico para descobrir se
estamos de boa saúde. Os sentimentos garantem-nos uma perspetiva instantânea
do estado da nossa saúde. Os sentimentos de bem-estar ou de mal-estar são
sentinelas. É claro que os sentimentos podem não nos alertar para o início de
várias doenças, e que o curso dos sentimentos emocionais espontâneos pode
mascarar os sentimentos homeostáticos impedindo-os de transmitir uma
mensagem clara (ver capítulos 7 e 8). No entanto, em geral, os sentimentos
informam-nos daquilo que precisamos de saber. Como é óbvio, não devemos
depender unicamente dos sentimentos para cuidarmos bem de nós próprios, mas
é importante sublinhar o papel fundamental dos sentimentos e o seu valor
prático, sem dúvida o motivo por que foram preservados na evolução biológica.
Uma visão abrangente da homeostasia terá de incluir a aplicação do conceito
a organismos em que mentes conscientes e deliberativas, individualmente e em
grupos sociais, interferem com mecanismos reguladores automáticos e criam
novas formas de regulação de vida. Essas novas formas de homeostasia têm o
mesmo objetivo da homeostasia básica, automática, ou seja, alcançar estados de
vida viáveis que tendam a produzir florescimento. Tal como indiquei no capítulo
1, vejo o esforço de criação de culturas humanas como uma manifestação dessa
segunda variedade de homeostasia.
Qualquer que seja o ponto de vista, o processo homeostático é uma empresa
extraordinária. Quer analisemos organismos unicelulares ou multicelulares, a
essência da homeostasia é o processo da gestão da energia – procurá-la e
encontrá-la, destiná-la a tarefas essenciais, como sejam a reparação do
organismo, a sua defesa e crescimento, ou a participação na criação e na
manutenção de descendência. Trata-se de um processo monumental qualquer
que seja o organismo, mas especialmente para os organismos humanos devido à
complexidade da sua estrutura e organização e à variedade de ambientes em que
podem sobreviver.
A escala do empreendimento é de tal modo vasta que os seus efeitos podem
começar num nível fisiológico baixo e manifestar-se nos níveis mais elevados de
funcionamento, ou seja, ao nível da cognição. Por exemplo, sabe-se que à
medida que a temperatura ambiente sobe, não só temos de ajustar a nossa
fisiologia interna para compensar a perda de água e de eletrólitos, como também
funcionamos menos bem a nível cognitivo. Não surpreende que um ajuste
medíocre da fisiologia interna represente desastre e morte. Sabe-se que o número
de óbitos aumenta durante ondas de calor prolongadas, durante as quais há
igualmente mais homicídios e violência sectária1. Os estudantes obtêm
resultados marcadamente inferiores, e as boas maneiras também estão associadas
ao termómetro2. A relação entre homeostasia e fisiologia existe a todos os níveis
da economia viva. As culturas responderam de forma inteligente às ondas de
calor, primeiro com leques e depois com o ar condicionado. Eis aqui um bom
exemplo de desenvolvimentos tecnológicos induzidos pelas necessidades
homeostáticas.
A homeostasia hoje
Quando os sistemas nervosos começaram não eram assim tão complicados. Pelo
contrário, eram bem modestos. Consistiam, muito simplesmente, em redes
nervosas, um retículo de ligações (o termo «retículo» deriva do latim para rede,
rete). As redes nervosas de então assemelham-se às «formações reticulares» que
ainda hoje encontramos na espinal medula e no tronco cerebral de muitas
espécies, seres humanos incluídos. Nesses sistemas nervosos simples não
encontramos uma distinção clara entre componentes «centrais» e «periféricos».
Encontramos uma trama de neurónios que atravessam o corpo inteiro dos
respetivos seres8.
As redes nervosas apareceram no período Pré-Câmbrico, em espécies como
os cnidários. Os respetivos «nervos» emergem da camada celular externa do
corpo, a ectoderme, e a sua distribuição assiste de modo simples algumas das
principais funções que os sistemas nervosos complexos viriam a realizar mais
tarde. Os nervos mais superficiais cumprem objetivos percetuais elementares ao
serem estimulados a partir do exterior do organismo. Sentem o ambiente que
circunda o organismo. Outros nervos são usados para mover o organismo,
quando, por exemplo, responde a um estímulo externo. Trata-se de uma
locomoção simplificada, da natação, no caso das hidras. Um outro grupo de
nervos encarrega-se da regulação do ambiente visceral do organismo. No caso
das hidras, dominadas pelo sistema gastrointestinal, as redes nervosas
encarregam-se da sequência de operações do tubo digestivo: ingestão de água
com nutrientes, digestão e excreção de resíduos. O segredo destas operações são
os movimentos peristálticos. As redes nervosas ativam contrações musculares
em sequência, ao longo do canal digestivo, e produzem ondas peristálticas num
trabalho que, bem vistas as coisas, não diverge muito daquele que fazemos.
Curiosamente, as esponjas, que em tempos se julgava não terem sistemas
nervosos, apresentam uma variedade ainda mais simples de fibras que controlam
o calibre das cavidades tubulares, permitindo assim, mais uma vez, a admissão
de água com nutrientes e a expulsão de água com resíduos. Dito de outra forma,
as esponjas distendem-se e abrem, ou contraem-se e fecham. Quando se
contraem, elas «tossem» ou «arrotam», por assim dizer.
Neste contexto é curioso que o sistema nervoso entérico – a complicada rede
de nervos presente no nosso sistema gastrointestinal – se assemelhe às estruturas
das redes nervosas de outrora. Esse é um dos motivos que me levam a suspeitar
que o sistema nervoso entérico tenha sido o «primeiro» cérebro, e não o
«segundo», tal como é conhecido popularmente.
É provável que tenha demorado milhões de anos adicionais – ao longo da
explosão do Câmbrico e mais além – para o desenvolvimento de sistemas
nervosos mais complexos, culminando nos sistemas nervosos dos primatas, e
sobretudo no dos seres humanos. Embora as redes nervosas das hidras sejam
capazes de coordenar numerosas operações e conciliar as necessidades
homeostáticas com as condições do ambiente externo, trata-se de capacidades
limitadas. As hidras conseguem detetar a presença de determinados estímulos no
ambiente, pelo que é possível ativar uma resposta apropriada e conveniente. Mas
as capacidades sensoriais das hidras são uma espécie de parente pobre do sentido
do tato dos seres humanos. Na melhor das hipóteses, as redes nervosas são
capazes de perceção básica. As redes também procedem a uma regulação
visceral, uma espécie de sistema nervoso autónomo inicial, gerem a locomoção,
e coordenam todas estas funções.
É igualmente importante perceber aquilo que as redes nervosas não
conseguem fazer. As suas capacidades sensoriais permitem respostas úteis e
quase instantâneas. Os neurónios que efetivamente detetam e agem são
modificados por estas atividades, e aprendem assim alguma coisa em relação aos
acontecimentos em que estão envolvidos, mas pouco retêm do que aprendem,
uma forma delicada de dizer que têm uma memória limitada. Sem meias-
palavras, trata-se de funções primitivas. O design da rede nervosa é simples, não
havendo nele grande coisa que permita mapear os aspetos constituintes de um
estímulo – por exemplo, a sua textura – ou as que a sua deteção acarreta para o
organismo. A estrutura das redes nervosas não lhes permitiria representar a
configuração de um objeto detetado pelo tato. Carecem de capacidade de
mapeamento, o que significa que as redes nervosas não podem gerar as imagens
que vêm a constituir as mentes que caracterizam os sistemas nervosos
complexos. (No capítulo que se segue irei abordar os problemas do mapeamento
e da criação de imagens.) A ausência de capacidades de mapeamento e de
criação de imagens acarreta certas consequências fatais: a consciência, no
sentido mais vasto do termo, não pode surgir na ausência de mente, sendo que o
mesmo se aplica, de modo ainda mais fundamental, à classe especial de
processos a que chamamos «sentimentos», constituídos por imagens das
operações corporais. Dito de outra forma, segundo a minha perspetiva e no
sentido mais amplo e técnico dos termos, a consciência e os sentimentos
dependem da existência da mente; as noções de consciência e de sentimento
estão ligadas às noções de mente e de mental. (Note-se que aqui e em outras
partes deste livro uso o termo «consciência» no sentido técnico, em que é
geralmente usado na psicologia ocidental, na filosofia da mente e na
neurociência cognitiva atual.) A evolução teria de esperar por dispositivos
nervosos mais sofisticados para que o cérebro fosse capaz de realizar as
perceções multissensoriais finas que se baseiam no mapeamento de inúmeras
características componentes. Só então, segundo me parece, o caminho ficou livre
para a criação de imagens e para a construção de mentes9.
Porque foi assim tão importante ter imagens? O que nos trouxe a
disponibilidade de imagens? A presença de imagens levou a que cada organismo
pudesse criar representações internas baseadas em descrições sensoriais de
acontecimentos tanto internos como externos. Essas representações, geradas no
sistema nervoso do organismo mas com a colaboração do resto do corpo,
mudaram radicalmente as capacidades em que decorreram. Pretendo dizer que
essas representações, acessíveis apenas a cada organismo específico,
permitiram, por exemplo, guiar com precisão o movimento de um membro ou do
corpo no seu todo. Os movimentos guiados por imagens – imagens visuais,
sonoras ou táteis – aumentaram a probabilidade de resultados eficientes e úteis.
Ao mesmo tempo, a homeostasia também melhorou e, com ela, a sobrevivência.
Em resumo, as vantagens trazidas pelas imagens foram consideráveis,
mesmo que o organismo não tivesse consciência das imagens que nele se
formavam. O organismo não seria ainda capaz de subjetividade, não
conseguindo assim inspecionar as imagens da sua mente. Não obstante, as
imagens podiam guiar automaticamente a execução de um movimento, esse
movimento seria mais preciso em termos de alvo e teria maior probabilidade de
sucesso.
A capacidade de sentir acaba por ser atribuída aos sistemas nervosos capazes
de mapear e fazer imagens dos estados internos. E é a esses organismos, assim
dotados, que também acaba por ser atribuído o dúbio prémio da consciência.
As glórias da mente humana, a capacidade de vasta memorização, de
sentimentos profundos, de tradução de imagens em códigos verbais, bem como a
possibilidade de reagir de forma inteligente surgem bem tarde nesta saga do
desenvolvimento paralelo do sistema nervoso.
Por essa altura, os sistemas nervosos têm já uma rede complexa de sondas
periféricas – os nervos periféricos, distribuídos por cada canto do interior do
corpo e por toda a sua superfície, bem como os aparelhos sensoriais
especializados que permitem ver e ouvir, bem como o tato, o olfato e o gosto.
E por então, os sistemas nervosos também já têm uma coleção igualmente
elaborada de processadores centrais, agregados no sistema nervoso central, a que
chamamos, convencionalmente, «cérebro»10. Este conjunto inclui 1. a espinal
medula; 2. o tronco cerebral e o hipotálamo; 3. o cerebelo; 4. uma série de
grandes núcleos situados acima do nível do tronco cerebral – no tálamo, gânglios
basais e prosencéfalo basal; e, finalmente, o córtex cerebral, o mais moderno e
sofisticado componente do sistema. Estes processadores centrais gerem a
aprendizagem e o armazenamento em memória de toda a espécie de sinais, bem
como a integração desses sinais; coordenam a execução de respostas complexas
aos estados interiores e aos estímulos exteriores, uma operação crítica que inclui
pulsões, motivações e emoções; e geram o processo de manipulação de imagens
a que chamamos «pensamento», «imaginação», «raciocínio» e «tomada de
decisões». Em paralelo, estas regiões centrais gerem a conversão de imagens e
das suas sequências em símbolos, o que inclui as linguagens verbais – sons e
gestos codificados cuja combinação representa objetos, qualidades ou ações, e
cuja interligação é orientada por um conjunto de regras gramaticais. Assim
equipados com linguagem, os organismos organizam traduções contínuas de
representações não-verbais em representações verbais, e criam desse modo
narrativas paralelas.
As operações centrais são organizadas e coordenadas a partir de
componentes. Por exemplo, diversos núcleos do tronco cerebral, do hipotálamo e
do telencéfalo são responsáveis pela produção dos comportamentos referidos
acima, tais como pulsões, motivações e emoções, com os quais o cérebro
responde a uma variedade de condições internas e externas com reações pré-
programadas (por exemplo, secreção de determinadas moléculas, movimentos,
etc.).
Outro aspeto importante do sistema nervoso central diz respeito à execução
dos movimentos e à aprendizagem de sequências de movimentos. Neste caso, os
principais atores são o cerebelo, os gânglios da base e os córtices cerebrais
sensoriomotores. O controlo da aprendizagem e da recordação de factos e
acontecimentos baseados em imagens depende do hipocampo e do córtex
cerebral, enquanto um outro sector controla a construção de traduções verbais de
todas e quaisquer imagens não-verbais que o cérebro cria e organiza na forma de
narrativas.
Sabe-se muito sobre o sistema nervoso, mas não se sabe o suficiente. Há
inúmeros pormenores da operação dos circuitos neurais, microscópicos e
macroscópicos, que ainda são desconhecidos e a integração funcional dos
componentes anatómicos não foi ainda completamente elucidada. Por exemplo,
uma vez que os neurónios podem ser descritos como estando ou não ativos, a sua
operação presta-se a uma descrição em termos de álgebra booleana, de zeros e
uns. Esta descrição informa a ideia do cérebro como computador11. No entanto,
as operações dos microcircuitos neurais revelam complexidades inesperadas que
subvertem essa visão simplista. Por exemplo, em determinadas circunstâncias, os
neurónios podem comunicar diretamente com outros neurónios, sem usar
sinapses, e os neurónios e as glias que os sustentam também interagem
abundantemente12. A consequência destes contactos não-canónicos é a
modulação dos circuitos neuronais. As suas operações deixam de se conformar
ao simples esquema do on/off (ligado/desligado), e não podem ser explicadas
através do simples esquema digital. Quanto à relação entre o tecido cerebral e o
corpo em que o cérebro está inserido, continua por esclarecer na sua totalidade.
Não obstante, essa relação é essencial para um relato completo sobre como
sentimos, sobre como se constrói a consciência, e sobre como a nossa mente se
dedica a criações inteligentes, por certo os aspetos da função cerebral mais
relevantes para explicar a nossa humanidade.
Para abordar essas questões, é importante situar o sistema nervoso – e estou
agora a pensar no sistema nervoso complexo e muito humano – numa perspetiva
histórica. Essa perspetiva exige o reconhecimento dos seguintes factos:
A montagem
da mente cultural
5
A grande conquista
A mente em expansão
A orquestra oculta
O poeta Fernando Pessoa via a sua alma como uma orquestra oculta. «Não sei
que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores,
dentro de mim», escreveu em O Livro do Desassossego1. Só se conhecia como
sinfonia. A intuição do poeta é deveras sagaz, pois as construções que nos
habitam a mente podem bem ser imaginadas como desempenhos musicais
efémeros, tocados por várias orquestras ocultas, no interior dos organismos a que
pertencem. Pessoa não se mostrou intrigado quanto a quem estaria a tocar todos
esses instrumentos ocultos. Talvez se visse a ele mesmo em multiplicado,
encarregue de tudo um pouco como o Oscar Levant em Um Americano em
Paris, o que não surpreenderia no caso de um poeta que se inventou em tantos
heterónimos2. Mas nós podemos e devemos perguntar: quem são, ao certo, os
músicos dessas orquestras imaginárias? E eis a resposta: os objetos e os
acontecimentos no mundo em torno do nosso organismo, presentes de facto ou
recuperados pela memória, e os objetos e acontecimentos do mundo interior.
E quanto aos instrumentos? Pessoa não era capaz de identificar os
instrumentos que tão bem ouvia, mas podemos fazer isso por ele. Há dois grupos
de instrumentos nesta orquestra do Pessoa. Em primeiro lugar, os principais
dispositivos sensoriais com que o mundo em redor e no interior de um
organismo interagem com o sistema nervoso. Em segundo lugar, os dispositivos
que continuamente reagem de forma emotiva à presença mental de qualquer
objeto ou acontecimento. A reação emotiva consiste na alteração do rumo da
vida no «interior antigo» dos organismos. Esses dispositivos são conhecidos
como impulsos, motivações e emoções.
Os vários intervenientes – objetos e acontecimentos, atualmente presentes ou
recuperados pela memória – não dedilham as cordas de violinos ou de
violoncelos, nem pressionam as teclas de inúmeros pianos, mas a metáfora
traduz bem a situação. Os objetos e os acontecimentos «tocam», no sentido em
que, enquanto entidades distintas na mente do organismo, eles agem sobre
determinadas estruturas neurais do organismo, «afetam» o seu estado, e alteram
essas outras estruturas por um momento transitório. Durante o «tempo de
execução», as suas ações resultam num certo tipo de música, a música dos
nossos pensamentos e sentimentos, e a dos significados que emergem das
narrativas interiores que eles ajudam a construir. O resultado pode ser subtil ou
nem por isso. Por vezes equivale a um desempenho operático. Podemos assistir
passivamente ou podemos intervir, modificar a partitura em maior ou menor
grau, e produzir resultados imprevisíveis.
Para abordarmos a natureza e a composição das orquestras interiores, bem
como os tipos de música que elas produzem, invocaremos a disposição tripartida
que esboçámos para a criação de imagens. As mensagens com que as imagens
são construídas chegam de três fontes: o mundo em torno do organismo, a partir
de onde órgãos específicos, localizados na pele e em algumas mucosas,
recolhem dados; e de dois componentes distintos do mundo interno ao
organismo: o compartimento antigo, químico/visceral, e a estrutura músculo-
esquelética, não tão antiga e os seus portais sensoriais. Também é comum que
os relatos dos acontecimentos mentais privilegiem o mundo em redor, como se
nada mais fizesse parte da mente, ou para ela contribuísse significativamente. É
ainda comum que os relatos que têm em conta o interior não estabeleçam a
distinção que aqui fazemos entre o mundo antigo da química e das vísceras e o
mundo evolutivamente mais recente da estrutura músculo-esquelética e dos seus
portais sensoriais.
Diz-se com frequência que estas «fontes» estão «ligadas» ao sistema nervoso
central, e que o sistema nervoso central cria mapas e compõe imagens a partir do
material que recebe. Trata-se de uma simplificação enganadora que não
corresponde àquilo que está realmente a decorrer. As relações entre o sistema
nervoso e o corpo são tudo menos simples.
Em primeiro lugar, as três fontes indicadas acima fornecem materiais muito
diferentes ao sistema nervoso. Em segundo lugar, a «ligação» estabelecida por
essas três fontes tende a ser vista como comparável, mas isso não o é, de todo.
As ligações são equivalentes no sentido em que as três fontes geram sinais
eletroquímicos dirigidos ao sistema nervoso central. Contudo, a anatomia e o
funcionamento das «ligações» são distintos, sobretudo no que diz respeito ao
interior químico/visceral antigo. Em terceiro lugar, a par dos sinais
eletroquímicos, o mundo interior antigo comunica com o sistema nervoso central
diretamente através de sinais puramente químicos que são ainda mais antigos.
Em quarto lugar, o sistema nervoso central pode reagir diretamente aos sinais do
interior, sobretudo no que respeita ao mundo interior antigo, atuando assim sobre
a própria fonte dos sinais. Na maioria dos casos, o sistema nervoso central não
atua diretamente sobre o mundo exterior. O «interior» e o sistema nervoso
formam um complexo interativo; o «exterior» e o sistema nervoso, não. Em
quinto lugar, todas as fontes comunicam com o sistema nervoso central de modo
gradual, pelo que as mensagens são transformadas à medida que os sinais vão
sendo processados, desde as suas origens «periféricas» até ao sistema nervoso
central. A realidade é bem mais complexa do que desejaríamos3.
A fantástica riqueza dos nossos processos mentais depende das imagens
baseadas nas contribuições destes diversos mundos, mas organizadas por
diferentes estruturas e processos. O mundo exterior contribui com imagens que
descrevem a estrutura que apreendemos do universo que nos rodeia, de acordo
com os limites dos nossos dispositivos sensoriais. O interior antigo é o principal
fornecedor das imagens que conhecemos como sentimentos. O interior menos
antigo leva à mente imagens da estrutura global do organismo e contribui com
sentimentos adicionais. Os relatos sobre a vida mental que não tenham estes
factos em consideração não correspondem à realidade.
É verdade que podemos proceder à modificação, acrescento e interligação
das imagens, o que resulta num enriquecimento dos processos mentais. Mas as
imagens que servem de substrato para essas transformações e combinações têm
origem em três mundos distintos, e é preciso reconhecer as respetivas e distintas
contribuições.
Enriquecer a mente
Quase tudo o que nos surge nas imagens mentais está sujeito a registo interno,
quer o queiramos ou não. A fidelidade da gravação depende de como tratámos as
imagens, logo à partida, o que, por sua vez, depende da emoção e do sentimento
gerados aquando da sua viagem pelo corrente mental. Muitas imagens ficam
registadas, e porções substanciais desse registo podem ser played back, ou seja,
reproduzidas ou reconstruídas, com maior ou menor precisão. Por vezes, a
recordação do material antigo é tão refinada que chega a competir com o
material novo que está a ser gerado aqui e agora.
Integração de imagens;
Raciocínio e imaginação;
Os afetos
O aspeto mental que domina ou parece dominar a nossa existência prende-se
com o mundo que nos rodeia, seja ele presente ou recuperado pela memória,
com os seus objetos e acontecimentos, humanos ou não, representados pela
miríade de imagens de todas as vertentes sensoriais, frequentemente traduzidas
em linguagens verbais e estruturadas na forma de narrativas. Todavia, e trata-se
de um notável «todavia», existe um outro mundo mental, paralelo, um mundo
que acompanha essas imagens, de modo geralmente tão subtil que não chama
qualquer atenção para si próprio, mas que tem por vezes um tal significado que
altera o rumo da parte dominante da mente, por vezes de modo irresistível.
Trata-se do mundo paralelo dos afetos, um mundo em que encontramos os
sentimentos a acompanhar as imagens mais marcantes da nossa mente. Entre as
causas imediatas dos sentimentos contam-se: a) em pano de fundo, a corrente de
processos de vida no nosso organismo, vividos como sentimentos espontâneos
ou homeostáticos; b) as respostas emotivas desencadeadas pelo processamento
de numerosos estímulos sensoriais, tais como gostos e cheiros, e estímulos táteis,
auditivos e visuais, cuja experiência é uma das fontes dos qualia; e c) as
respostas emotivas que resultam de pulsões (como a fome ou a sede) ou
motivações (como o desejo), ou de emoções, no sentido convencional do termo,
programas de ação ativados pelo confronto com situações variadas e, por vezes,
complexas; entre os exemplos de emoções temos a alegria, a tristeza, o medo, a
fúria, a inveja, o ciúme, o desprezo, a compaixão e a admiração. As respostas
emotivas descritas em b) e c) geram sentimentos provocados, por oposição à
variedade espontânea que deriva da corrente homeostática básica. Note-se que,
infelizmente, as experiências das emoções são conhecidas pelo mesmo nome que
as emoções propriamente ditas, o que tem ajudado a perpetuar a ideia falsa de
que emoções e sentimentos são o mesmo fenómeno. Claro que não o são.
Nesta perspetiva, o afeto é uma vasta tenda sob a qual coloco não só todos os
sentimentos possíveis, mas também as situações e os mecanismos que são
responsáveis pela sua produção, ou seja, responsáveis pela produção de ações
cujas experiências se tornam sentimentos.
Os sentimentos acompanham o desenrolar da vida no nosso organismo,
mentalmente, quer estejamos a apreender, a aprender, a recordar, a imaginar, a
raciocinar, a julgar, a decidir, a planear ou a criar. Pensar nos sentimentos como
visitas ocasionais à mente ou como sendo causados apenas pelas emoções típicas
não faz justiça à ubiquidade e à importância funcional do fenómeno.
Para explicar bem o que uma coisa é, convém deixar claro o que a coisa não é.
Para que fique claro aquilo que os sentimentos básicos não são, se eu decidir
agora dirigir-me à praia – o que implica ter de descer uma centena de degraus
antes que possa andar na areia –, os sentimentos não se referem ao desenho dos
movimentos que farei com os membros, nem com os meus olhos, cabeça e
pescoço, os quais são também levados a cabo pelo corpo, controlado pelo
cérebro, o qual está a ser informado sobre todas essas operações. A noção exata
de sentimento só se aplica a certos aspetos da situação, nomeadamente à energia
e facilidade com que desço as escadas; à antecipação com que o poderei fazer,
bem como ao prazer de pisar a areia e chegar à beira do oceano; ou, já agora, à
fadiga que poderei sentir ao ter de subir, daí a algum tempo, as mesmas escadas.
Os sentimentos referem-se primordialmente à qualidade do estado de vida no
interior «antigo» do corpo, em qualquer situação, durante o repouso, durante
uma atividade conduzida com um objetivo, ou durante a resposta aos
pensamentos que estamos a ter, quer sejam causados por uma perceção do
mundo exterior ou pela recordação de um acontecimento, arquivado nas nossas
memórias.
Valência
Espécies de sentimento
As respostas emotivas
Estereótipos emocionais
Em conclusão, a maioria das imagens que nos entra na mente tem direito a uma
resposta emotiva, seja ela forte ou fraca. A origem da imagem não importa.
Qualquer processo sensorial pode servir de ativador, desde o paladar ao olfato e
à visão, e não importa se a imagem está a ser criada no momento atual pela
perceção, ou se está a ser recuperada da memória. Pouco importa se a imagem
pertence a objetos animados ou inanimados, a características de objetos – cores,
formas, timbres de sons –, a ações, a abstrações ou a julgamentos. Uma
consequência previsível do processamento das muitas imagens que nos
percorrem a mente é uma resposta emotiva, seguida pelo respetivo sentimento.
Assim provocados, os sentimentos emocionais não têm exatamente que ver com
a música de fundo da vida. Os sentimentos emocionais têm que ver com canções
ocasionais e, por vezes, com verdadeiras árias operáticas. As peças continuam a
ser executadas pelos mesmos conjuntos, no mesmo salão – o corpo – e contra o
mesmo pano de fundo – a vida. No entanto, a mente está agora, em grande
medida, sintonizada para o mundo dos pensamentos presentes – e não para o
mundo do corpo –, à medida que reagimos a esses pensamentos e sentimos a
reação. A execução musical varia em cada momento pois a execução das
respostas emotivas e a experiência do sentimento respetivo também variam, tal
como acontece com a execução de uma peça musical famosa nas mãos de
diferentes executantes. A composição a ser tocada, no entanto, continua a ser
inconfundivelmente a mesma. As emoções humanas são peças reconhecíveis de
um repertório normal.
Uma parte substancial da glória e da tragédia humanas dependem dos afetos,
mesmo tendo em conta a sua modesta genealogia não-humana.
Camadas de sentimento
Qualquer imagem que entre na mente tem direito a uma resposta emotiva, algo
que se aplica até às imagens que se chamam, elas próprias, «sentimentos». O
estado de sentir dor, por exemplo, pode ser enriquecido por uma nova camada de
processamento – um sentimento secundário, por assim dizer –, desencadeada
pelos variados pensamentos com que reagimos à situação original. A
profundidade a que chega esta sobreposição de sentimentos será porventura uma
característica típica das mentes humanas. É este o tipo de processo que
provavelmente mantém e sustenta aquilo a que chamamos «sofrimento».
Os animais com cérebro complexo, semelhante ao nosso, como é o caso dos
mamíferos superiores, terão, provavelmente, sentimentos sobrepostos como nós.
A excecionalidade humana extrema costuma negar a existência de sentimentos
nos animais, mas a ciência do sentimento tem vindo pouco a pouco a mostrar o
oposto. Não quero dizer com isto que os sentimentos humanos não sejam mais
complexos, sobrepostos e elaborados do que os dos animais. Como poderiam
não ser? No entanto, acredito que a distinção humana tem a ver com a rede de
associações que os estados de sentimento estabelecem com todos os tipos de
ideias e, sobretudo, com as interpretações que podemos fazer do nosso momento
presente e do nosso futuro antecipado.
Curiosamente, os sentimentos sobrepostos suportam a intelectualização dos
sentimentos a que me referi antes. O manancial de objetos, acontecimentos e
ideias que é evocado por tais sentimentos complexos, permite-nos dar uma
enorme riqueza à descrição intelectual da situação responsável pelo início do
processo.
A poesia é inconcebível sem a complexidade de sentimentos a que acabamos
de aludir. A análise definitiva de tais sentimentos complexos deve-se a um
romancista e filósofo cujo nome é Marcel Proust.
8
A construção
dos sentimentos
ara compreender a origem e a construção dos sentimentos, e para avaliar a
P sua contribuição para a mente humana, é necessário inseri-los no panorama
da homeostasia. O alinhamento de sentimentos agradáveis e desagradáveis com,
respetivamente, gamas positivas ou negativas de homeostasia é um facto bem
estabelecido. A homeostasia eficaz, ou mesmo ótima, exprime-se como bem-
estar e até alegria; por outro lado, a felicidade causada pelo amor e pela amizade
contribui para uma homeostasia mais eficiente e promove a saúde. Os exemplos
negativos são igualmente esclarecedores. O stresse associado à tristeza é devido
à entrada em ação do hipotálamo e da glândula pituitária e à libertação de
moléculas cuja consequência é a redução da homeostasia e a lesão de diversos
sistemas corporais, tais como os vasos sanguíneos e as estruturas musculares.
Curiosamente, o custo homeostático de uma doença física pode ativar o mesmo
eixo hipotalâmico-pituitário e causar a libertação de dinorfina, uma molécula
que conduz à tristeza e à depressão.
A circularidade destas operações é notável. Mente e cérebro influenciam
tanto o corpo como este influencia o cérebro e a mente. São, pura e
simplesmente, dois aspetos do mesmo ser.
Quer os sentimentos correspondam a gamas positivas ou negativas da
homeostasia, os vários sinais químicos envolvidos no seu processamento e os
estados viscerais que os acompanham são capazes de alterar o fluir mental
normal, tanto de maneira subtil ou de forma óbvia. Atenção, aprendizagem,
memória e imaginação podem ser comprometidas, e a abordagem a tarefas e
situações, triviais ou não, pode ser perturbada. É habitualmente difícil ignorar a
perturbação causada pelos sentimentos emocionais, sobretudo no que diz
respeito à variedade negativa, mas até os sentimentos positivos de uma
existência pacífica e harmoniosa preferem não ser ignorados.
As raízes do alinhamento entre os processos da vida e a qualidade dos
sentimentos remonta ao funcionamento da homeostasia nos antepassado daquilo
a que hoje chamamos sistemas endócrinos, imunitários e nervosos. Claro que
esses antepassados se perdem nas brumas do início da vida. A parte do sistema
nervoso responsável por detetar e responder ao interior, sobretudo o interior
antigo, sempre trabalhou em cooperação com os sistemas endócrino e imunitário
desse mesmo interior. Vejamos os pormenores desse alinhamento.
Quando ocorre um ferimento, causado, por exemplo, por um processo de
doença de origem interna ou por um corte externo, o resultado habitual é uma
experiência de dor. No primeiro caso, a dor resulta dos sinais transmitidos por
fibras nervosas não mielinizadas, fibras de tipo C, antigas, e a sua localização
pode ser vaga; no segundo caso usam-se fibras mielinizadas, evolutivamente
mais recentes, que contribuem para uma dor aguda e localizada1. Todavia, o
sentimento de dor, seja ela vaga ou aguda, é apenas uma parte daquilo que se
está a desenrolar no organismo e, do ponto de vista evolutivo, é a parte mais
recente. Que mais se passa? O que constitui a parte oculta do processo? A
resposta é que o ferimento ativa reações imunitárias e neurais, a nível local.
Entre essas reações contam-se alterações inflamatórias, como a vasodilatação
local e o envio de leucócitos (glóbulos brancos) para a zona afetada. Os
leucócitos são chamados para ajudar no combate à infeção ou na sua prevenção,
bem como para remover restos de tecido danificado. Esta segunda ação depende
do processo da fagocitose – que consiste no cercar, incorporar e destruir agentes
patogénicos – enquanto que a primeira depende da libertação de certas
moléculas. Uma molécula evolutivamente antiga – a proencefalina, uma
molécula ancestral, a primeira do seu tipo – pode ser dividida, resultando em
dois compostos ativos libertados localmente. Um dos compostos é um agente
antibacteriano; o outro é um opioide analgésico que vai agir sobre uma classe
especial de recetores opiáceos – a classe δ –, situados nos terminais nervosos
periféricos existentes no local. Os numerosos sinais de perturbação local e de
reconfiguração do estado da carne são comunicados localmente ao sistema
nervoso e são mapeados de forma gradual, contribuindo assim para a construção
de diversos níveis do sentimento de dor. Mas a maravilha é que,
simultaneamente, a libertação local e a absorção da molécula opioide também
ajudam a entorpecer a dor e a reduzir a inflamação. Através desta colaboração
neuroimunitária, a homeostasia esforça-se por nos proteger das infeções e tenta,
ao mesmo tempo, reduzir a inconveniência2.
Mas as coisas não se ficam por aqui. O ferimento provoca uma reação
emotiva que desencadeia o seu próprio conjunto de ações, como por exemplo
uma contração muscular que se pode descrever como recolhimento e fuga. Tais
respostas, bem como a subsequente configuração alterada do organismo, são
igualmente mapeadas, daí transformadas em imagens pelo sistema nervoso.
Fazem parte do mesmo evento. A criação de imagens para a reação motora ajuda
a garantir que a situação não passe despercebida. Curiosamente, tais respostas
motoras surgiram na evolução muito antes da existência de sistemas nervosos.
Os organismos simples encolhem-se, recolhem-se, fogem e lutam quando a
integridade do seu corpo é comprometida3.
Em resumo, o conjunto das reações a um ferimento que temos estado a
descrever para os seres humanos – químicos antibacterianos e analgésicos, ações
de recolha, hesitação e afastamento – é um conjunto de respostas antigas e bem
estruturadas que resulta de interações cooperativas entre o corpo e o sistema
nervoso. Num momento posterior da evolução, depois de os organismos com
sistemas nervosos conseguirem mapear acontecimentos não-neuronais, os
componentes desta reação complexa podiam converter-se em imagens. A
experiência mental a que chamamos «sentir dor» baseia-se nesta multiplicidade
de imagens4.
Devemos reter que o sentimento de dor é sustentado por todo um conjunto de
fenómenos biológicos mais antigos cujos objetivos são claramente úteis segundo
o ponto de vista da homeostasia. Dizer que as formas de vida simples sem
sistemas nervosos sentem dor é desnecessário e provavelmente incorreto.
Certamente que dispõem de alguns dos elementos necessários para a construção
de sentimentos de dor, mas será razoável aventar que para que surja a dor,
propriamente dita, como experiência mental, o organismo precisa de uma mente,
e que para que esta exista, o organismo necessita de um sistema nervoso capaz
de mapear objetos e as suas relações. Dito de outra forma, imagino que as
formas de vida sem sistemas nervosos ou mentes têm tido e têm processos
emotivos complexos, programas de ação defensivos e adaptativos, mas que não
têm sentimentos. Quando os sistemas nervosos entraram em cena, abriu-se o
caminho para os sentimentos e é por isso que, possivelmente, até os sistemas
nervosos mais humildes permitirão algum tipo de sentimento5.
Pergunta-se com frequência, e com alguma razão, porque se «sentem» os
sentimentos, por que razão podem ser agradáveis ou desagradáveis,
relativamente calmos ou tormentosos. O motivo deverá agora ser claro: quando a
constelação de acontecimentos fisiológicos que constituem os sentimentos
começou a surgir na evolução e proporcionou experiências mentais, a vida
mudou. Os sentimentos melhoraram a vida, prolongaram e salvaram vidas. Os
sentimentos conformaram-se aos objetivos do imperativo homeostático e
tornaram possível o cumprimento desse imperativo. Os sentimentos fizeram com
que os seus proprietários se importassem mentalmente com as situações, tal
como, por exemplo, o fenómeno da aversão condicionada a um local bem
mostra6. A presença de sentimentos tem uma relação próxima com um outro
desenvolvimento: a consciência e, mais especificamente, a subjetividade.
O valor dos conhecimentos que os sentimentos proporcionam ao organismo
em que ocorrem é a razão provável por que a evolução foi «obrigada» a mantê-
los. Os sentimentos influenciam o processo mental a partir do interior e são
indispensáveis devido à sua necessária positividade ou negatividade, à sua
origem em ações conducentes à saúde ou à morte, e à sua capacidade de cativar e
abalar o proprietário do sentimento, a garantir que se preste atenção à situação.
Uma descrição neutra e simples dos sentimentos como se apenas fossem
mapas/imagens percetuais ignora os seus ingredientes cruciais: a valência e o
poder de captar a atenção da mente assim afetada.
Este relato distinto dos sentimentos ilustra o facto de que as experiências
mentais não emergem do simples mapeamento de um objeto ou de um
acontecimento em tecido neural. Eles nascem, isso sim, do mapeamento
multidimensional de fenómenos do corpo, entretecidos interativamente com
fenómenos neurais. As experiências mentais não são «fotografias instantâneas»,
mas sim processos que decorrem ao longo do tempo, narrativas de diversos
microacontecimentos que têm lugar no corpo e no cérebro.
Claro que é concebível que a natureza pudesse ter evoluído noutro rumo, sem
nunca se ter deparado com os sentimentos. Mas não aconteceu assim. Os
elementos fisiológicos que suportam os sentimentos fazem de tal modo parte
integral da manutenção da vida que se encontram em funcionamento desde longa
data. Só foi preciso que se lhes juntasse a presença de sistemas nervosos capazes
de criar mentes.
A construção de sentimentos
Os factos debatidos até agora explicam a razão de ser dos sentimentos e esboçam
alguns dos seus processos críticos, nomeadamente os que correspondem à
valência. Abordaremos agora, do lado dos sistemas nervosos, algumas condições
que provavelmente desempenham um papel complementar na fisiologia da
valência.
Como já indiquei, uma parte substancial da informação que contribui para a
valência emerge num contexto invulgar: uma continuidade de estruturas
corporais e estruturas nervosas. Tenho usado diversos termos para explicar esta
ideia, como por exemplo, uma «bonding» («ligação») entre corpo e cérebro, ou
um «compact» («acordo» ou «fusão») entre corpo e cérebro. O termo
«continuidade»10 introduz uma subtileza suplementar. Na experiência do
sentimento há pouca ou nenhuma distância anatómica e fisiológica entre o
objeto que gera o conteúdo crítico, que é o corpo, e o sistema nervoso, que
tradicionalmente é visto como recipiente e processador da informação. Essas
duas componentes, objeto/corpo e processador/cérebro, são pelo menos
contíguas e, em muitos aspetos inesperados, contínuas. Isto permite-lhes uma
abundante interação, e só agora começamos a compreender a forma como essa
interação ocorre. A interação inclui operações moleculares e neurais em tecidos
específicos.
Os sentimentos não são apenas acontecimentos neurais. O corpo está
profundamente implicado, num envolvimento que inclui a participação de outros
sistemas importantes e homeostaticamente relevantes, como por exemplo os
sistemas endócrino e imunitário. Os sentimentos são, simultânea e
interativamente, fenómenos tanto do corpo como do sistema nervoso.
Um fenómeno puramente neural e puramente mental não seria capaz de
apreender e arrebatar os seres conscientes da forma intensa, coisa que os
sentimentos fazem sem qualquer dificuldade. Um fenómeno puramente neural
ou puramente mental não corresponderia àquilo que a vida complexa de seres
conscientes requer para que se sobreviva.
Há muito que se sabe que os sinais interocetivos são, em grande medida, levados
até ao sistema nervoso central por neurónios cujos axónios não dispõem de
mielina, as fibras C, ou por neurónios cujos axónios são muito pouco
mielinizados, as fibras A-delta22. Trata-se também de um facto estabelecido,
mas tem sido simplesmente interpretado como indicação da respeitável idade
evolutiva dos sistemas interocetivos, sem que se lhe atribuísse outro significado.
Tenho uma interpretação diferente do fenómeno. Vejamos os seguintes factos.
A mielina é uma conquista importante da evolução. Ela isola os axónios e
permite-lhes conduzir sinais a grande velocidade, pois não há perda de corrente
elétrica ao longo do axónio. A perceção que temos do mundo exterior ao nosso
corpo – através daquilo que vemos, ouvimos e tocamos – está agora nas mãos
rápidas, seguras e bem isoladas de axónios mielinizados. O mesmo se passa com
os movimentos hábeis e rápidos que realizamos nesse mundo, bem como os
grandes voos do nosso pensamento, raciocínio e criatividade23. As ativações dos
axónios mielinizados são modernas, rápidas e eficientes, qual produto do Silicon
Valley.
Assim sendo, é estranho descobrir que a homeostasia, o aparelho
indispensável à nossa sobrevivência, a par dos sentimentos, o precioso interface
regulador de que a homeostasia tanto depende, está nas mãos de antigas fibras
não-mielinizadas e por isso lentas, não isoladas contra a perda de eletricidade.
Como é possível explicar que a eternamente vigilante seleção natural não se
tenha livrado destes aviões a hélice, velhos e ineficientes, a favor de aviões a jato
rápidos, com poderosas e eficientes turbinas?
Podemos aventar dois motivos. Comecemos pelo motivo que vai contra a
minha linha de pensamento. A mielina é laboriosamente criada de forma a
envolver cada axónio com células gliais não-neurais, também conhecidas como
«células de Schwann». Resumidamente, a glia (a palavra significa «cola») não
só produz os andaimes e vigas aonde se vêm a colocar as redes neurais, como
também, a par disso, isola certos neurónios. Ora, como a mielina é muito
dispendiosa, em termos energéticos, o custo de equipar cada axónio com mielina
poderá ter sido superior aos benefícios. Dado que as fibras antigas, sem mielina,
faziam um trabalho razoável, a evolução não teria comprado o produto, e não se
atribuiria grande importância à falta da mielina.
O outro motivo por que a natureza teria aceitado o estado das coisas vai ao
encontro da minha linha de pensamento. As fibras não-mielinizadas
proporcionam oportunidades tão indispensáveis ao fabrico de sentimentos que a
evolução não podia dar-se ao luxo de isolar tão preciosos cabos e abdicar dessas
oportunidades.
Quais as oportunidades criadas pela ausência de mielina? A primeira tem que
ver com a abertura das fibras não-mielinizadas aos ambientes químicos
envolventes. As fibras mielinizadas modernas só podem ser influenciadas por
uma molécula em determinados pontos do axónio, pontos esses conhecidos
como «nódulos de Ranvier». É aí que existe um intervalo no isolamento de
mielina, uma falta «local» de mielina. Mas as fibras não-mielinizadas são outra
história. Na ausência de mielina cada axónio é como uma corda de violino que
pode ser tocada ao longo de toda a sua extensão. Tais fibras favoreceriam, por
certo, a fusão funcional entre o corpo e o sistema nervoso.
A segunda oportunidade que as fibras sem mielina oferecem não é menos
fascinante. Uma vez que carecem de isolamento, as fibras não-mielinizadas que
estão alinhadas em feixe, lado a lado – tal como é necessariamente o caso
quando constituem um nervo –, podem transmitir impulsos elétricos, de fibra
para fibra, lateralmente, numa direção ortogonal ao comprimento da fibra. O
processo é conhecido como «efapse». Em geral, a efapse não é tida em conta no
funcionamento dos sistemas nervosos, sobretudo dos sistemas nervosos como o
nosso. A atenção é dada, e justificadamente, acrescente-se, às sinapses, a
comunicação eletroquímica entre neurónios de que depende grande parte da
nossa cognição e locomoção. A efapse é um mecanismo antigo, uma coisa do
passado. Em geral, os manuais já não a referem. No entanto, os sentimentos
também são coisas do passado, trazidas para o nosso tempo por serem de tal
maneira úteis que se tornaram indispensáveis. A efapse pode alterar o
recrutamento dos axónios, por exemplo, amplificando as respostas transmitidas
ao longo dos troncos nervosos. É curioso pensar que as fibras do nervo vago, a
via principal para os sinais neurais de todo o tórax e abdómen até ao cérebro, são
quase todas não-mielinizadas. A efapse poderá desempenhar um papel relevante
nas suas operações.
Os mecanismos não-sinápticos de transmissão são uma realidade, podendo
operar não só entre axónios, mas também entre corpos celulares e até entre
neurónios e células de apoio, como as da glia24.
Que podemos nós afirmar com alguma certeza acerca dos sentimentos? Podemos
por certo dizer que o carácter único destes fenómenos está ligado ao papel
homeostático crítico que desempenham. O cenário para a criação de sentimentos
é radicalmente diferente do de outros fenómenos sensoriais. O menos que
podemos dizer sobre a relação entre os sistemas nervosos e os corpos é que é
invulgar: uns estão dentro dos outros, não apenas contíguos, mas, em certos
aspetos, contínuos e interativos. Tal como já vimos, o corpo e as operações
neurais fundem-se em vários níveis, desde a periferia do sistema nervoso até aos
córtices cerebrais e aos grandes núcleos que lhes são subjacentes. Isso, a par do
facto de corpo e sistema nervoso estarem em diálogo contínuo motivado por
requisitos homeostáticos, sugere que os sentimentos se baseiam,
fisiologicamente, em processos híbridos que não são nem puramente neurais,
nem puramente corporais. São estes os factos e as circunstâncias de ambos os
lados da moeda: de um lado a experiência mental a que chamamos
«sentimento», e, do outro, os processos corporais e neurais que lhe estão
circunstancialmente ligados. O aprofundar da exploração da fisiologia por trás
dos aspetos neurais e corporais promete lançar nova luz sobre o lado mental da
equação.
Consciência
Sobre a consciência
Observar a consciência
Ver o que quer que seja, no sentido amplo do termo, não é coisa fácil. Quando
«vemos», o conteúdo visual manifesto na nossa mente surge-nos a partir da
perspetiva da visão, especificamente da perspetiva aproximada dos olhos,
instalados na nossa cabeça. Acontece exatamente o mesmo com as imagens
auditivas. Elas formam-se segundo a perspetiva dos nossos ouvidos, não
segundo a perspetiva dos ouvidos de alguém que se encontra ao nosso lado, nem
sequer pela perspetiva dos nossos olhos. O mesmo acontece em relação às
imagens táteis: têm a perspetiva exata da nossa mão, ou rosto, ou da parte do
nosso corpo que entra em contacto direto com aquilo que está a ser tocado.
Cheiramos com o nariz e saboreamos com as papilas gustativas. Tal como
veremos em breve, estes factos são essenciais para se compreender a
subjetividade.
Um dos principais contribuidores para a criação da subjetividade é o
funcionamento dos portais sensoriais, nos quais encontramos os órgãos
responsáveis pela geração das imagens do mundo exterior. As primeiras fases de
qualquer perceção dependem do respetivo portal sensorial. Os olhos e a
maquinaria com eles relacionada são um excelente exemplo: as órbitas ocupam
uma região específica e delimitada no corpo, na cabeça e até no rosto. Têm
coordenadas GPS específicas nos mapas tridimensionais do nosso corpo, o
«manequim» corporal definido pela estrutura musculosquelética. O processo de
ver é muito mais complexo do que a simples projeção de padrões luminosos na
retina. A visão «topo de gama» começa na retina e continua, ao longo de várias
fases de transmissão e de processamento de sinais, até aos córtices cerebrais
dedicados à visão. Todavia, para que seja possível ver, primeiro temos de olhar.
O ato de olhar consiste em muitas ações, ações essas desencadeadas por um
conjunto complicado de dispositivos nos olhos e à volta destes, e não pelas
retinas nem pelos córtices visuais. Cada um dos olhos tem um obturador, um
diafragma, semelhante ao de uma máquina fotográfica, que controla a
quantidade de luz que entra na retina. Existe também uma lente, mais uma vez
como a de uma máquina fotográfica, que pode ser ajustada automaticamente
para focar objetos, o nosso autofocus original e pessoal. Finalmente, os dois
olhos movem-se em várias direções, de modo conjugado, para cima, para baixo,
para a esquerda e a direita, permitindo-nos perscrutar e capturar visualmente o
universo à nossa volta e não só o universo à nossa frente, sem termos de mexer a
cabeça ou o corpo. Todos estes dispositivos são continuamente sentidos pelo
nosso sistema somatossensorial e produzem as correspondentes imagens
somatossensoriais. Enquanto construímos uma imagem visual, o nosso cérebro
está simultaneamente a representar em imagens os movimentos executados por
estes dispositivos complexos. Da maneira mais autorreferencial possível
informam a mente, através de imagens, daquilo que o cérebro e o corpo estão a
caminho de fazer, e «situam» essas atividades no «manequim» corporal. As
imagens desse fantasma do corpo são subtis, integrando o lado do espectador do
espetáculo. Não são tão claras como as que descrevemos no espetáculo da
consciência propriamente dito. Os sistemas cerebrais que recebem a informação
acerca dos movimentos e dos ajustes necessários à execução do processo de
«olhar» são completamente diferentes dos que recebem a informação sobre as
imagens visuais propriamente ditas, aquelas que formam a base do «ver». A
maquinaria do «olhar» não se situa nos córtices visuais.
Vale a pena refletir agora na situação invulgar que aqui identificamos: parte
do processo de construir a subjetividade é composta pelo mesmo tipo de material
com que construímos os conteúdos manifestos na subjetividade, ou seja,
imagens. Contudo, embora o tipo de material seja o mesmo, a origem é
diferente. Em vez de corresponderem aos objetos, ações ou acontecimentos que
normalmente dominam a consciência, estas imagens particulares correspondem a
imagens gerais do nosso corpo enquanto todo, capturadas no momento de
produção daquelas outras imagens. Este novo conjunto de imagens constitui
uma revelação parcial do processo de criação do conteúdo manifesto da mente,
inserido destra e discretamente a par dessas outras imagens. O novo conjunto de
imagens é gerado no mesmo corpo que possui esse conteúdo, o que está a ser
exibido no ecrã do nosso cérebro e que a consciência nos permite ter e apreciar.
O novo conjunto de imagens ajuda a descrever nada mais, nada menos do que o
corpo do proprietário durante o processo de aquisição das outras imagens,
exceto que, a menos que prestemos muita atenção, mal daremos por elas.
Esta estratégia consegue uma mescla complexa entre a) as imagens
fundamentais que experienciamos e interpretamos como sendo indispensáveis
para o momento que estamos a viver na nossa mente, e b) as imagens do nosso
próprio organismo durante o processo de criação dessas ditas imagens. Não
prestamos grande atenção a estas, embora elas sejam essenciais para a
construção do sujeito. Guardamos a nossa atenção para as novas imagens que
descrevem o conteúdo fundamental da mente, o conteúdo com que teremos de
lidar caso pretendamos continuar vivos. Este é um dos motivos por que a
subjetividade e, num sentido mais amplo, o processo da consciência continuam a
ser tal mistério. Os fios do bonecreiro permanecem ocultos, tal como convém.
Nada disto precisa de um homúnculo ou de magia. É algo de tal forma natural e
simples que o melhor que temos a fazer é sorrir com respeito e admirar o
engenho do processo.
O que acontece quando as imagens que nos fluem pela mente vêm da
memória, quando surgem de uma recordação, em vez de provir da perceção do
momento? Aplica-se tudo o que acabámos de referir. Quando se inserem
materiais recordados no conteúdo da mente, eles misturam-se com a perceção
decorrente do momento, e esta, enquadrada e personalizada, garante a âncora
necessária à perspetiva pessoal.
Da sensação à consciência
A mente cultural
em ação
10
Culturas
A mente cultural humana
Nos primeiros capítulos deste livro referi que vários aspetos importantes das
respostas culturais humanas estavam pressagiados nos comportamentos de
organismos vivos mais simples do que nós. Todavia, os comportamentos sociais
extraordinariamente eficazes desses organismos não foram inventados por
intelectos formidáveis, nem motivados por sentimentos semelhantes aos nossos.
Eles resultaram da natural e extraordinária forma como o processo de vida lida
com o imperativo homeostático, o paladino cego dos comportamentos
vantajosos, quer sejam individuais ou sociais. A formulação proposta para
abordar a questão das raízes biológicas da mente cultural humana indica que a
homeostasia foi responsável pela emergência de estratégias e dispositivos
comportamentais capazes de garantir a manutenção e o florescimento da vida,
tanto em organismos simples como em organismos complexos, seres humanos
incluídos. Nos primeiros organismos, e na ausência de processos mentais, a
homeostasia gerou os precursores do sentimento e da perspetiva subjetiva. Nem
os sentimentos nem a subjetividade estavam presentes, apenas os mecanismos
necessários e suficientes para ajudar a regular a vida antes do desenvolvimento
dos sistemas nervosos e das mentes.
Todos estes mecanismos se basearam na seleção natural de moléculas
químicas presentes nos precursores dos sistemas endócrino e imunitário, e na
seleção natural de programas de ação. Muitos destes mecanismos foram
conservados até hoje; conhecemo-los como «comportamentos emotivos».
Em organismos posteriores, após a emergência dos sistemas nervosos, as
mentes tornaram-se possíveis e, dentro delas sobressaem os sentimentos, a par
de todas as imagens que representavam o mundo exterior e a sua relação com o
organismo. Tais imagens foram sustentadas pela subjetividade, pela memória,
pelo raciocínio e, a seu tempo, pela linguagem verbal e pela inteligência
criadora. Os instrumentos e as práticas que constituem as culturas e as
civilizações no sentido tradicional dos termos surgiriam depois.
A homeostasia permitiu a sobrevivência e o florescimento do indivíduo e
ajudou a criar as condições para que ele persistisse e se reproduzisse5. Os
organismos vivos começaram por lidar com esses objetivos sem recurso a
sistemas nervosos e mentes, mas mais tarde puderam vir a empregar formas
deliberativas e orientadas pela mente. As estratégias mais expeditas entre a
miríade disponível foram selecionadas na evolução e, como resultado, foram
mantidas geneticamente ao longo das gerações. Nos organismos mais simples, a
seleção foi feita a partir de opções geradas naturalmente por processos de
autoorganização autónomos; nos organismos complexos, a seleção viria a ser
cultural, feita a partir de opções produzidas por invenções já orientadas pela
subjetividade. O nível de complexidade variou, mas os objetivos homeostáticos
implícitos, básicos, mantiveram-se – sobrevivência, florescimento e possível
reprodução. Trata-se de um bom motivo para que as práticas e os instrumentos
que de alguma forma exibem características «socioculturais» tenham surgido
cedo e mais do que uma vez na evolução.
Nos organismos unicelulares, como as bactérias, vemos que comportamentos
sociais ricos, sem qualquer deliberação por parte do organismo, refletem um
julgamento implícito do comportamento alheio como sendo conducente ou não à
sobrevivência do grupo ou dos indivíduos. Estes organismos comportam-se
«como se» tecessem julgamentos. Exibem uma «cultura» primitiva conseguida
sem a ajuda de uma «mente cultural». Eis uma manifestação primordial do tipo
de solução esquemática que a sabedoria e a razão viriam a usar e a prescrever
logo que as mentes propriamente ditas conseguissem pensar num problema cuja
essência fosse comparável.
Nos insetos sociais, criaturas multicelulares com sistemas nervosos
avançados, a complexidade dos comportamentos «culturais» é bem maior. As
práticas comportamentais são mais complexas e existe igualmente a produção de
instrumentos concretos, como por exemplo a colónia enquanto entidade física e
mesmo arquitetura. Várias outras espécies também produzem artefactos – ninhos
elaborados, ferramentas simples. A distinção importante, claro está, é que as
manifestações culturais não-humanas tendem a ser o resultado de programas
bem estabelecidos desenvolvidos nas circunstâncias apropriadas e de uma forma,
em geral, estereotipada. Tais programas foram desenvolvidos ao longo do
tempo, através da seleção natural, sob o controlo da homeostasia, e foram
transmitidos pelos genes. No caso das bactérias, sem cérebro e sem núcleos
celulares, o centro de comando para a ativação dos programas situa-se no
citoplasma da célula; no caso das espécies metazoárias multicelulares, como os
insetos, os centros de comando situam-se no sistema nervoso, onde foram
moldados pelo genoma.
Ao contemplarmos a evolução e os seus ramos, deparamo-nos com
transições que funcionam como fronteiras entre organismos pré-mentais e pós-
mentais. Até certo ponto, essas fronteiras correspondem à distinção entre
comportamentos «pré-culturais» e comportamentos e mentes «realmente
culturais». Entrevemos um curioso alinhamento com uma evolução puramente
genética no primeiro caso, e com uma evolução mista, embora em grande
medida cultural, no segundo.
O quadro que podemos pintar para a mente cultural humana e para as suas
culturas difere em numerosos pontos. O imperativo governante continua a ser o
mesmo – a homeostasia –, mas há mais passos a dar para se chegar aos
resultados. Em primeiro lugar, ao aproveitarem a existência já estabelecida de
um corpo de respostas sociais simples presentes desde o início da vida bacteriana
– competição, cooperação, emotividade simples, produção coletiva de
instrumentos de defesa, como biofilmes –, as muitas espécies na linhagem que
nos antecedeu evoluíram e transmitiram geneticamente uma classe de
mecanismos intermédios capazes de produzir respostas emotivas complexas pró-
homeostáticas que são igualmente, as mais das vezes, reações sociais. O
componente crítico desses mecanismos está alojado na maquinaria dos afetos
descrita no Capítulo 7. É responsável pela ativação das pulsões e das
motivações, e pela reação, de forma emotiva, a vários estímulos e situações.
Em segundo lugar, ao aproveitar o facto de que os mecanismos intermédios
produzem respostas emotivas complexas bem como as suas experiências mentais
subsequentes – os sentimentos –, a homeostasia podia agora agir de forma
transparente. Os sentimentos tornaram-se motivos para novas formas de
resposta, engendradas pelo intelecto criador rico a um nível único e pela
capacidade motora dos seres humanos. Estas novas formas de resposta puderam
controlar parâmetros fisiológicos e alcançar o tipo de equilíbrio positivo de
energia que é tão essencial para a homeostasia. Mas as novas formas de resposta
foram inovadoras de uma outra maneira. As ideias, as práticas e os instrumentos
das culturas humanas puderam ser transmitidos culturalmente e ficaram abertos à
seleção cultural. A par dos antecedentes genéticos que permitiram que os
organismos respondessem de forma específica em determinadas circunstâncias,
os produtos culturais seguiam agora, em parte, o seu próprio ritmo, sobrevivendo
ou extinguindo-se segundo os seus méritos próprios, sempre orientados pela
homeostasia e pelos valores por ela determinados. Esta inovação leva-nos a uma
terceira, e não menos importante, característica da relação entre sentimentos e
cultura: os sentimentos podem também agir como árbitros do processo.
No seu começo a medicina não estava preparada para lidar com os traumas da
alma humana. No entanto, podemos bem dizer que as crenças religiosas, os
sistemas morais e a justiça, e a governação política visavam, em grande medida,
esses mesmos traumas e tinham como objetivo a sua recuperação. Concebo o
desenvolvimento das crenças religiosas como estreitamente relacionado com a
mágoa provocada por toda a espécie de perdas pessoais, perdas que obrigavam
os seres humanos ao confronto com a inevitabilidade da morte e com o sem-fim
de maneiras em que ela pode surgir: acidentes, doenças, violência perpetrada por
outros, catástrofes naturais, tudo menos a velhice, uma condição bem rara na
Pré-História. Mas note-se que grande parte dos traumas da alma humana eram
infligidos por acontecimentos públicos no espaço social. As crenças religiosas
constituíram respostas apropriadas a esses traumas em diversos aspetos8.
Recapitulação
Medicina, imortalidade
e algoritmos
A medicina moderna
De regresso à mortalidade
Sobre a atual
condição humana
A crise
Esta visão desoladora e desencorajante pode ser moderada pela visão de Manuel
Castells, um dos mais destacados estudiosos das tecnologias de comunicação e
um sociólogo de renome, cujo trabalho é essencial para compreender as lutas de
poder nas culturas do século XXI. Por exemplo, ao revelar a imperfeição e a
corrupção dos sistemas governativos das principais democracias, Castells
acredita que os media digitais abriram caminho para uma remodelação profunda
e saudável desses sistemas governativos. Não teríamos ainda visto os bons
resultados. Para Castells, a reorganização dos potenciais humanos compatíveis
com a democracia continua a ser possível. Castells mostra-se também cético
quanto ao facto de que jamais tenha havido uma era mítica em que os media, a
educação, o comportamento cívico e a governação fossem menos problemáticos
do que atualmente. As democracias liberais estão a passar por uma crise de
legitimidade que deve ser abordada o mais depressa possível. A internet, e a
comunicação digital de um modo mais geral, têm um papel positivo a
desempenhar e, feitas as contas, poderiam ser mais uma bênção do que uma
maldição5.
Daí a tragédia, tão bem captada pelo teatro ateniense há 25 séculos, quando os
problemas que atormentavam os personagens de uma peça não eram causados
pelas suas decisões, mas sim por forças caprichosas que lhes eram exteriores,
deificadas, incontroláveis e inevitáveis. Édipo mata o pai e não tem como
imaginar que Jocasta, a sua nova esposa, é, na verdade, sua mãe. Vê-se obrigado
a desempenhar essas ações, comportando-se tão cegamente como o cego em que
acaba por se tornar. Ele é obrigado.
A essência da condição humana pouco tinha mudado, na sua essência, no
século XVI, quando Shakespeare regressou a esse mesmo espírito trágico, com
grande profundidade, no tratamento das emoções maléficas e ex machina em
Macbeth, Otelo, Coriolano, Hamlet e Rei Lear. Essas tragédias foram apenas
levemente moderadas com o agridoce elegíaco do personagem de John Falstaff
no Henrique IV e nas Comadres de Windsor. Com tristeza e nostalgia, John
Falstaff pensa nos sarilhos e nas festas que sentiu na pele. Alternadamente
trágico e cómico, ilustra não só a sua condição, mas também a nossa.
É curioso que a ópera, que recuperou os cenários da tragédia grega
combinando drama e música, regressou no século XIX a esses temas trágicos e à
comédia que se lhes opõe. Verdi compôs versões magníficas de Macbeth e de
Otelo, e acabou a carreira com uma nota feliz: uma ópera inteira dedicada ao
Falstaff de Shakespeare que omitia, reveladoramente, o triste destino de Falstaff,
acabando, em vez disso, com uma coda festiva. Não havia, e continua sem haver,
uma única perspetiva e tratamento da condição humana, mesmo quando os seres
humanos vivem na mesma parte do mundo e partilham uma biografia
esquematicamente comparável. Reinam as diferenças humanas19.
Em termos teatrais, a nossa situação geral mudou um pouco, da tragédia para
o simples drama, com interlúdios cómicos bem-vindos. O equilíbrio entre as
nossas decisões e as forças que elas combatem alterou-se, e claramente, a nosso
favor. Não obstante, continuamos a pagar por males que não criámos ou por
erros que nunca desejámos cometer.
Há um vislumbre de esperança, uma grande diferença entre buscas antigas e
tentativas futuras, que reside no vasto conhecimento da natureza humana que
temos disponível e na possibilidade de planear uma estratégia mais inteligente
do que no passado. Esta abordagem veria como tolice ou mesmo loucura a ideia
da razão a dever assumir o controlo, uma ideia que mais não é do que o resíduo
dos piores excessos do racionalismo; mas esta abordagem também rejeitaria a
noção de que nos devemos limitar a promover as recomendações das emoções –
ser gentil, cheio de compaixão, irado ou repugnado – sem que as filtrássemos
pelo conhecimento e pela razão20. A nova abordagem promoveria a parceria
produtiva entre sentimentos e razão, destacando as emoções positivas e
suprimindo as negativas. Por fim, rejeitaria a noção das mentes humanas no
molde das criações de inteligência artificial.
Embora possa não haver cura para a vida, e enquanto aguardamos pelos
resultados de mais esforços civilizacionais, poderá haver remédios a mais curto
prazo. Por exemplo, podemos improvisar buscas comedidas de felicidade e de
eliminação da dor para o coletivo humano. Para isso seria preciso defender a
dignidade humana e a reverência pela vida humana como valores sagrados e
inalienáveis; seria ainda preciso estabelecer uma série de objetivos capazes de
transcender as necessidades homeostáticas imediatas, inspirando e elevando a
mente projetada no futuro. Dada a velocidade de mudança da Humanidade e o
seu grande nível de diversidade, não será fácil criar uma arquitetura social que
suporte tais remédios.
A estranha ordem
das coisas
O título deste livro foi sugerido por dois factos. O primeiro é que há cerca de
100 milhões de anos, algumas espécies de insetos tinham já desenvolvido
uma série de comportamentos e objetos que podemos classificar como culturais,
quando os comparamos com os que lhes correspondem em seres humanos. O
segundo facto é que há ainda mais tempo, vários milhares de milhões de anos,
organismos unicelulares começaram igualmente a exibir estratégias de
comportamento social cujo esquema se conforma aos comportamentos
socioculturais humanos.
Tais factos contradizem, certamente, uma noção convencional: que algo tão
complexo como comportamentos sociais capazes de melhorar a gestão da vida
só poderia ter surgido das mentes de organismos desenvolvidos, não
necessariamente humanos, mas suficientemente complexos e suficientemente
próximos dos humanos para que pudessem engendrar o necessário requinte. As
características sociais sobre as quais escrevi neste livro surgiram bem cedo na
história da vida, são abundantes na biosfera e não tiveram de esperar pelo
aparecimento na Terra de nada de parecido com seres humanos. Esta ordem é
realmente estranha, ou pelo menos inesperada.
Uma análise mais atenta revela pormenores por trás destes factos curiosos,
como por exemplo comportamentos cooperativos bem-sucedidos do género
daqueles que tendemos a associar, e com toda a razão, à sabedoria e ao bom
senso humanos. Todavia, as estratégias cooperativas não esperaram pelo
aparecimento de mentes sábias e sensatas. Tais estratégias, que são
provavelmente tão antigas como a própria vida, nunca se manifestaram de forma
mais brilhante do que no conveniente tratado celebrado entre duas bactérias:
uma bactéria arrivista e atrevida que quis dominar uma bactéria maior e já
estabelecida. O resultado da batalha foi um empate e a bactéria atrevida tornou-
se um satélite cooperativo da bem estabelecida. Os eucariotas, células com um
núcleo e organelos sofisticados como as mitocôndrias, terão, provavelmente,
nascido desta forma, na mesa de negociações da vida.
Nesta narrativa as bactérias não dispõem de mentes, e muito menos de
mentes sábias. A bactéria atrevida funciona como se concluísse que «se não os
podes vencer, mais vale juntares-te a eles». A bactéria bem estabelecida, por
outro lado, funciona como se pensasse que «mais vale aceitar esta invasora,
conquanto me ofereça alguma coisa, do que gastar energias
desnecessariamente». Claro que nenhuma das duas bactérias pensou fosse o que
fosse. Não houve qualquer reflexão mental, não houve consideração de
conhecimentos prévios, não houve astúcia, manha, generosidade, justiça ou
conciliação diplomática. A equação do problema foi resolvida às cegas, dentro
do processo, de baixo para cima, acertando numa opção simples e frugal que
resultou para ambas as partes. A solução foi moldada pelos requisitos
intransigentes da homeostasia. Não houve magia, salvo num sentido poético. A
solução assentou em restrições físicas e químicas concretas, impostas ao
processo de vida celular, no contexto das suas relações físico-químicas com o
ambiente. Trata-se de uma situação em que, aqui sim, o conceito de algoritmo é
perfeitamente aplicável. A maquinaria genética dos organismos bem-sucedidos
garantiu que essa estratégia permanecesse no repertório das gerações futuras.
Caso a opção não tivesse funcionado teria sido enterrada no vasto cemitério da
evolução. Nunca teríamos tido conhecimento desse facto.
O curioso processo de cooperação não opera sozinho e sem apoios. As
bactérias conseguem sentir a presença de outras graças às sondas químicas
instaladas nas suas membranas, e chegam mesmo a distinguir, graças à estrutura
molecular dessas sondas, as que pertencem à família e as que são estranhas.
Trata-se de um antecessor modesto das nossas perceções sensoriais, mais afins
do paladar e do olfato do que da audição ou da visão, cuja base são as imagens.
Estas emergências tão estranhamente ordenadas revelam a força imensa da
homeostasia. O inabalável poder homeostático funcionou por tentativa e erro
para aplicar e selecionar soluções comportamentais disponíveis no repertório
natural para resolver diversos problemas da gestão da vida. Os organismos
perscrutaram e avaliaram, involuntariamente, a física dos seus ambientes e a
química no interior das suas membranas, chegando, também involuntariamente,
a soluções pelo menos adequadas, embora amiúde boas, para a manutenção e
para o florescimento da vida. E eis grande maravilha: quando em outras
ocasiões, e outros momentos da complexa evolução das formas de vida,
surgiram problemas com configurações semelhantes, encontraram-se
precisamente as mesmas soluções. A tendência para certas soluções particulares,
para esquemas comparáveis, para um certo grau de inevitabilidade, resulta da
estrutura e das circunstâncias dos organismos vivos e da sua relação com o
ambiente, dependendo em absoluto da homeostasia. Tudo isto nos deve fazer
pensar no que escreveu D’Arcy Wentworth Thompson sobre crescimento e
forma – por exemplo, sobre as formas das células, dos tecidos, dos óvulos e dos
invólucros1.
A cooperação desenvolveu-se como irmã gémea da competição, o que
ajudou a selecionar os organismos que exibiam as estratégias mais produtivas.
Consequentemente, quando hoje nos comportamos de forma cooperativa, com
uma certa dose de sacrifício pessoal, e quando designamos de altruísta esse
comportamento, isso não quer dizer que os seres humanos tenham usado o seu
bom coração para inventar a estratégia cooperativa. Tal estratégia surgiu
curiosamente cedo e é bem antiga. Diferente e «moderno» é, sem dúvida, o facto
de que quando nos deparamos com um problema que pode ser resolvido com ou
sem uma resposta altruísta, podemos agora pensar e sentir o processo nas nossas
mentes e podemos, pelo menos em parte, escolher deliberadamente a abordagem
que iremos empregar. Temos opções. Podemos ser altruístas e sofrer as perdas
que daí resultam, ou abdicar do altruísmo e não perder nada, ou até ganhar, pelo
menos temporariamente.
A questão do altruísmo é um excelente ponto de partida para a distinção
entre as primeiras «culturas» e a sua variedade madura. O altruísmo tem a sua
origem na cooperação cega, mas pode ser analisado e ensinado no seio das
famílias e nas escolas como estratégia humana deliberada. Tal como acontece
com diversas emoções benevolentes e benéficas – compaixão, admiração,
respeito, gratidão –, o comportamento altruísta pode ser encorajado, treinado e
praticado na sociedade. Ou não. Nada garante que resulte sempre, mas existe
como recurso humano consciente, presente através da educação.
Podemos ver outro exemplo do contraste entre a origem das culturas e as
culturas já desenvolvidas na noção de lucro. Desde sempre que as células
procuram «lucro», querendo com isso dizer que elas administram o metabolismo
de modo a garantir um equilíbrio energético positivo. As células que têm êxito
na vida são capazes de produzir esses equilíbrios positivos, ou seja, «lucros».
Mas o facto de o lucro ser natural e, em regra geral, benéfico, não faz com que
seja necessariamente bom, em termos culturais. As culturas podem e devem
decidir quando as coisas naturais são boas – e determinar o grau da sua
qualidade – e quando não são. A ganância é tão natural como o lucro, mas não é
culturalmente boa, ao contrário do que Gordon Gekko famosamente afirmou2.
Torna-se agora mais clara a imagem que nos surge ao pensarmos nessas
emergências com tão estranha ordem. Durante a maior parte da história da vida,
especificamente desde há 3,8 mil milhões de anos ou mais, numerosas espécies
de animais e de plantas exibiram abundantes capacidades de sentir e de
responder ao mundo, mostraram comportamentos sociais inteligentes, e
acumularam dispositivos biológicos que lhes permitiram viver com mais
eficácia, mais tempo, ou ambos, e transmitir aos descendentes o segredo dessas
vidas florescentes. As suas vidas exibiam apenas os precursores das mentes, dos
sentimentos, do pensamento e da consciência, mas não mostravam tais
faculdades em si mesmas.
Faltava-lhes a capacidade de criar representações dos objetos e dos
acontecimentos da realidade, tanto exteriores ao organismo como interiores. As
condições para o materializar do mundo das imagens e das mentes começaram a
emergir há cerca de meio milhão de anos, e as mentes humanas vieram ainda
mais recentemente, possivelmente há umas meras centenas de milhares de anos.
O início das primeiras representações analógicas permitiu o desenvolvimento
de imagens baseadas em várias modalidades sensoriais e abriu caminho aos
sentimentos e à consciência. Mais tarde, as representações simbólicas passaram a
incluir códigos e gramáticas, tornando assim possível as linguagens das palavras
e da matemática. Seguiram-se os mundos da memória baseada em imagens, da
imaginação, da reflexão, do inquérito, do discernimento e da criatividade. As
culturas foram as principais manifestações destas novas conquistas.
As nossas vidas atuais e os seus objetos e práticas culturais podem ser
ligados cautelosamente às vidas de outrora, antes de haver sentimentos e
subjetividade, antes de haver palavras e decisões. A ligação entre os dois
conjuntos de fenómenos percorre um labirinto complexo onde é fácil dar uma
volta errada e perdermo-nos. Aqui e além, podemos encontrar o que resta de um
fio orientador – o fio de Ariadne, claro – mas a orientação é difícil. A tarefa da
biologia, da psicologia e da filosofia é fazer com que esse fio se torne contínuo.
Receia-se com frequência que o maior conhecimento da biologia reduza a
vida cultural complexa, mental e deliberada a uma vida automática e pré-mental.
O receio é injustificado. Em primeiro lugar, o maior conhecimento da biologia é
útil e permite algo de espetacularmente diferente: o aprofundar da ligação entre
culturas e o processo de vida. A riqueza e a originalidade de tantos aspetos das
culturas não só não se reduzem como persistem, enobrecidas. Em segundo lugar,
o aumento de conhecimento sobre a vida e sobre os substratos e processos que
partilhamos com outros seres vivos não diminui o carácter biológico distinto dos
seres humanos. Vale a pena repetir que não está em causa o estatuto excecional
dos seres humanos, bem acima de tudo o que partilham com as outras criaturas,
o qual deriva da forma única como o seu sofrimento e a sua alegria são
amplificados pelas memórias individuais e coletivas do passado e pela
imaginação de um futuro possível. Aumentar o conhecimento da biologia, desde
as moléculas aos sistemas, reforça o projeto humanista. Vale também a pena
repetir que não há qualquer conflito entre as versões do processo cultural que
favorecem fatores culturais autónomos ou seleção natural e transmissão genética.
Ambas as versões estão em jogo. Os seus fatores atuam em ordem e proporções
diferentes de acordo com os problemas e as ocasiões.
Notas
e
referências
1. Da condição humana
1 Esta afirmação não se aplica a situações como estados depressivos, em que os sentimentos
podem não ser indicadores corretos do estado homeostático.
2 Para ler mais sobre os afetos – pulsões, motivações, emoções e sentimentos, ver os capítulos
7 e 8. Para outros trabalhos relevantes ver António Damásio. O Erro de Descartes (Lisboa:
Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011); António Damásio, O Sentimento de Si (Lisboa:
Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013); António Damásio e Gil B. Carvalho, «The Nature
of Feelings: Evolutionary and Neurobiological Origins», Nature Reviews Neuroscience 14, n.º
2 (2013): 143‒52; Jaak Panksepp, Affective Neuroscience: The Foundations (New York:
Oxford University Press, 1998); Jaak Panksepp e Lucy Biven, The Archaeology of Mind (New
York: W.W. Norton, 2012); Joseph Le Doux: The Emotional Brain (New York: Simon &
Schuster, 1996); Arthur D. Craig, «How Do You Feel? Interoception: The Sense of the
Physiological Condition of the Body», Nature Reviews Neuroscience 3, n.º 8 (2002): 655–66;
Adolphs, R., Tranel, D., Damásio, H., & Damásio, A.R. (1994), «Impaired recognition of
emotion in facial expressions following bilateral damage to the human amygdala», Nature,
372(6507), 669-672, doi:10.1038/372669a0; Adolphs, R., Tranel, D., Damásio, H., &
Damásio, A.R. (1995). «Fear and the human amygdala», Journal of Neuroscience, 15(9), 5879-
5891; Adolphs, R., Tranel, D., & Damásio, A.R. (1998), «The human amygdala in social
judgment», Nature, 393(6684), 470-474, doi:10.1038/30982; Adolphs, R., Gosselin, F.,
Buchanan, T., Tranel, D., Schyns, P., & Damásio, A. (2005), «A mechanism for impaired fear
recognition after amygdala damage», Nature, 433(7021), 68-72, doi:10.1038/nature03086;
Stephen W. Porges: The Polyvagal Theory (New York e London: W.W. Norton & Company,
2011); Kent Berridge & Morten Kringelbach Pleasures of the Brain, (Oxford University Press,
2009); Mark Solms, The Feeling Brain: Selected Papers on Neuropsychoanalysis (London:
Karnac Books, 2015); Lisa Feldman Barrett, «Emotions Are Real», Emotion 12, n.º 3 (2012):
413.
3 Esta data continua a ser revista: 400 mil anos é uma data aceitável no caso da Península
Ibérica. Richard Leakey, The Origin of Humankind (New York: Basic Books, 1994); Merlin
Donald, Origins of the Modern Mind: Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1991); Steven Mithen, The Singing
Neanderthals: The Origins of Music, Language, Mind, and Body (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 2006); Ian Tattersall, The Monkey in the Mirror: Essays on the Science of
What Makes Us Human (New York: Harcourt, 2002); John Allen, Home: How Habitat Made
Us Human (New York: Basic Books, 2015); Craig Stanford, John S. Allen, e Susan C. Anton,
Exploring Biological Anthropology: The Essentials (Upper Saddle River, N.J.: Pearson, 2012).
O Center for Academic Research and Training in Anthropogeny (CARTA), publica
informações científicas de grande qualidade sobre a investigação da origem dos seres humanos,
um campo conhecido como «antropogenia». Ver https://carta.anthropogeny.org/about/carta
4 Michael Tomasello, The Cultural Origins of Human Cognition (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1999); Michael Tomasello, A Natural History of Human Thinking
(Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2014); Michael Tomasello, A Natural History of
Human Morality (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2016).
5 Relatórios do London Zoo sobre as visitas da rainha Vitória em 1842; Jonathan Weiner,
«Darwin at the Zoo», Scientific American 295, n.º 6 (2006): 114-19.
6 A seguinte literatura foi consultada para esta secção: Paul B. Rainey e Katrina Rainey,
«Evolution of Cooperation and Conflict in Experimental Bacterial Populations», Nature 425,
n.º 6953 (2003): 72-74; Kenneth H. Nealson e J. Woodland Hastings, «Quorum Sensing on a
Global Scale: Massive Numbers of Bioluminescent Bacteria Make Milky Seas», Applied and
Environmental Microbiology 72, n.º 4 (2006): 2295-97; Stephen P. Diggle et al., «Cooperation
and Conflict in Quorum-Sensing Bacterial Populations», Nature 450, n.º 7168 (2007): 411-14;
Lucas R. Hoffman et al., «Aminoglycoside Antibiotics Induce Bacterial Biofilm Formation»,
Nature 436, n.º 7054 (2005): 1171-75; Ivan Erill, Susana Campoy e Jordi Barbé, «Aeons of
Distress: An Evolutionary Perspective on the Bacterial SOS Response», FEMS Microbiology
Reviews 31, n.º 6 (2007): 637-56; Delphine Icard-Arcizet et al., «Cell Stiffening in Response to
External Stress Is Correlated to Actin Recruitment», Biophysical Journal 94, n.º 7 (2008):
2906-13; Vanessa Sperandio et al., «Bacteria-Host Communication: The Language of
Hormones», Proceedings of the National Academy of Sciences 100, n.º 15 (2003): 8951-56;
Robert K. Naviaux, «Metabolic Features of the Cell Danger Response», Mitochondrion 16
(2014): 7-17; Daniel B. Kearns, «A Field Guide to Bacterial Swarming Motility», Nature
Reviews Microbiology 8, n.º 9 (2010): 634-44; Alexandre Persat et al., «The Mechanical World
of Bacteria», Cell 161, n.º 5 (2015): 988-97; David T. Hughes e Vanessa Sperandio, «Inter-
kingdom Signaling: Communication Between Bacteria and Their Hosts», Nature Reviews
Microbiology 6, n.º 2 (2008): 111-20; Thibaut Brunet e Detlev Arendt, «From Damage
Response to Action Potentials: Early Evolution of Neural and Contractile Modules in Stem
Eukaryotes», Philosophical Transactions of the Royal Society B 371, n.º 1685 (2016):
20150043; Laurent Keller e Michael G. Surette, «Communication in Bacteria: An Ecological
and Evolutionary Perspective», Nature Reviews 4 (2006): 249-58.
7 Alexandre Jousset et al., «Evolutionary History Predicts the Stability of Cooperation in
Microbial Communities», Nature Communications 4 (2013).
8 Karin E. Kram e Steven E. Finkel, «Culture Volume and Vessel Affect Long-Term Survival,
Mutation Frequency, and Oxidative Stress of Escherichia coli», Applied and Environmental
Microbiology 80, n.º 5 (2014): 1732-38; Karin E. Kram e Steven E. Finkel, «Rich Medium
Composition Affects Escherichia coli Survival, Glycation, and Mutation Frequency During
Long-Term Batch Culture», Applied and Environmental Microbiology 81, n.º 13 (2015): 4442–
50.
9 Pierre Louis Moreau de Maupertuis, «Accord des différentes lois de la nature qui avaient
jusqu’ici paru incompatibles», Mémoires de l’Académie des Sciences (1744): 417-26; Richard
Feynman, «The Principle of Least Action», in The Feynman Lectures on Physics: Volume II,
cap. 19, acedido a 20 jan. 2017, http://www.feynmanlectures.caltech.edu/II_toc.html.
10 Edward O. Wilson tem escrito numerosas obras sobre a vida social dos insetos e a sua
riqueza e complexidades. O seu livro The Social Conquest of the Earth (New York: Liveright,
2012) dá-nos uma visão geral sobre este fascinante campo de investigação.
11 Tal como indiquei atrás, a relação consistente entre os sentimentos e a homeostasia colapsa
durante sentimentos negativos intensos. A tristeza profunda não expressa, necessariamente,
uma deficiência extrema de homeostasia básica, embora o risco possa resultar, chegando
mesmo a ser responsável por suicídio. A tristeza situacional e a depressão expressam situações
sociais desfavoráveis, e, em tais circunstâncias, os sentimentos agem como indicadores de
perigo para a regulação homeostática.
12 Talcott Parsons, «Evolutionary Universals in Society», American Sociological Review 29,
n.º 3 (1964): 339-57; Talcott Parsons, «Social Systems and the Evolution of Action Theory»,
Ethics 90, n.º 4 (1980): 608-11.
13 F. Scott Fitzgerald, The Great Gatsby (New York: Scribner’s, 1925). [Ed. portuguesa: O
Grande Gatsby, Lisboa, Clube do Autor, 2013.]
3. Variedades de homeostasia
1 Paul Butke e Scott C. Sheridan, «An Analysis of the Relationship Between Weather and
Aggressive Crime in Cleveland, Ohio», Weather, Climate, and Society 2, n.º 2 (2010): 127-39.
2 Joshua S. Graff Zivin, Solomon M. Hsiang e Matthew J. Neidell, «Temperature and Human
Capital in the Short- and Long-Run», National Bureau of Economic Research (2015): w21157.
3 Maya E. Kotas e Ruslan Medzhitov, «Homeostasis, Inflammation, and Disease
Susceptibility», Cell 160, n.º 5 (2015): 816-27.
4 António Damásio e Hanna Damásio, «Exploring the concept of homeostasis and considering
its implications for economics», Journal of Economic Behavior & Organization, 2016, 125,
126-129, no qual se baseia, em parte, este capítulo. António Damásio, Sentimento de Si
(Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013); Damásio e Carvalho, «Nature of
Feelings»; Kent C. Berridge e Morten L. Kringelbach, «Pleasure Systems in the Brain»,
Neuron 86, n.º 3 (2015): 646-64.
5 Para uma síntese breve e inteligente sobre esta pesquisa ver Michael Pollan, «The Intelligent
Plant», New Yorker, 23 e 30 dez. 2013; Anthony J. Trewavas, «Aspects of Plant Intelligence»,
Annals of Botany 92, n.º 1 (2003): 1-20; Anthony J. Trewavas, «What Is Plant Behaviour?»
Plant, Cell, and Environment 32, n.º 6 (2009): 606-16.
6 John S. Torday, «A Central Theory of Biology», Medical Hypotheses 85, n.º 1 (2015):
49-57.
7 Claude Bernard, Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux
(Paris: Librarie J.B. Baillière et Fils, 1879). Reimpressões da Coleção da Biblioteca da
University of Michigan.
8 Walter B. Cannon, «Organization for Physiological Homeostasis», Physiological Reviews 9,
n.º 3 (1929): 399-431; Walter B. Cannon, The Wisdom of the Body (New York: Norton, 1932);
Curt P. Richter, «Total Self-Regulatory Functions in Animals and Human Beings», Harvey
Lecture Series 38, n.º 63 (1943): 1942-43.
9 Bruce S. McEwen, «Stress, Adaptation, and Disease: Allostasis and Allostatic Load», Annals
of the New York Academy of Sciences 840, n.º 1 (1998): 33-44.
10 Trevor A. Day, «Defining Stress as a Prelude to Mapping Its Neurocircuitry: No Help from
Allostasis», Progress in Neuro-psychopharmacology and Biological Psychiatry 29, n.º 8
(2005): 1195-200.
11 David Lloyd, Miguel A. Aon e Sonia Cortassa, «Why Homeodynamics, Not
Homeostasis?», Scientific World Journal 1 (2001): 133-45.
6. A mente em expansão
1 Fernando Pessoa, The Book of Disquiet (New York: Penguin Books, 2001).
2 Ao sonhar acordado com o seu próprio êxito fugaz, o personagem de Oscar Levant,
compositor, imagina-se numa sala de concertos, a tocar piano para um público composto por
vários Oscar Levants, que, claro está, aplaudem com entusiasmo. Acaba por tocar outros
instrumentos e também por dirigir.
3 A excessiva simplificação do relato sobre as relações periferia/cérebro é um dos principais
problemas com que nos deparamos ao tentar compreender os processos mentais em termos
biológicos. O verdadeiro processo viola a conceção tradicional do cérebro como órgão
separado que recebe sinais quase informáticos e responde consoante as necessidades que
enfrenta. A verdade é que os «sinais neurais» nunca são puramente neurais, mesmo à partida,
na periferia, vindo gradualmente a alterar-se a caminho do sistema nervoso central. Além disso,
o sistema nervoso pode responder, a vários níveis, aos sinais que estão a entrar no sistema,
alterando assim as mensagens originais.
4 A investigação da base neural dos conceitos e da linguagem tem sido uma das áreas centrais
de pesquisa na neurociência da cognição. O nosso grupo tem contribuído significativamente
para essa área, e as referências seguintes indicam algumas das contribuições que fizemos ao
longo dos anos: António Damásio e Patricia Kuhl, «Language», in Kandel et al., Principles of
Neural Science; Hanna Damásio et al., «Neural Systems Behind Word and Concept Retrieval»,
Cognition 92, n.º 1 (2004): 179-229; António Damásio e Daniel Tranel, «Nouns and Verbs Are
Retrieved with Differently Distributed Neural Systems», Proceedings of the National Academy
of Sciences 90, n.º 11 (1993): 4957-60; António Damásio, «Concepts in the Brain», Mind and
Language, n.os 1-2 (1989): 24-28, doi:10.1111/j.1468-0017.tb00236.x; António Damásio e
Hanna Damásio, «Brain and Language», Scientific American 267 (1992): 89-95.
5 Os correlatos neurais do processo de construção de narrativas podem agora ser investigados
em laboratório. Ver, como exemplo, Jonas Kaplan et al., «Processing Narratives Concerning
Protected Values: A Cross-Cultural Investigation of Neural Correlates», Cerebral Cortex
(2016): 1-11, doi:10.1093/cercor/bhv325.
6 O default mode network refere-se a um conjunto de regiões corticais bilaterais que se tornam
especialmente ativas em determinadas condições comportamentais e mentais, como sejam o
repouso e a deambulação mental, podendo ficar menos ativas quando a mente se concentra
num conteúdo específico. Ou não, pois em algumas condições de processamento atento, a rede
torna-se ainda mais ativa. Os nodos na rede correspondem a regiões de grande convergência e
divergência de conexões corticais, situadas naquilo que tradicionalmente se conhece como
córtices associativos. A rede desempenhará, provavelmente, um papel na composição de
narrativas, como motor de busca de memórias (search engine). Muitas das características desta
rede (e de outras que com ela se relacionam) são bem curiosas. Foram as observações aturadas
de Marcus Raichle que levaram à descoberta do default mode network. Marcus E. Raichle,
«The Brain’s Default Mode Network», Annual Review of Neuroscience 38 (2015): 433-47.
7 Meyer e Damásio, «Convergence and Divergence in a Neural Architecture for Recognition
and Memory», e artigos relacionados sobre estruturas capazes de convergência-divergência.
8 O filósofo Avishai Margalit tem um importante contributo para o estudo destas questões, ver
The Ethics of Memory (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002).
7. Afetos
1 Ver O Erro de Descartes para uma descrição inicial de as-if-body-loop. A descrição de
sentimentos de Lisa Feldman Barrett captura a minha ideia quanto aos sentimentos
intelectualizados. Chama a atenção para um desenvolvimento do processo básico dos
sentimentos que assenta na memória e no raciocínio. Lisa Feldman Barrett et al., «The
Experience of Emotion», Annual Review of Psychology 58 (2007): 373.
2 Faço uma distinção entre o conteúdo mental, que pertence ao processo básico de sentimento
– a valência, por exemplo –, e o conteúdo mental que pertence à intelectualização do processo:
memórias, raciocínio, descrições. Entrego a César apenas o que é de César, nada mais.
3 Lauri Nummenmaa et al., «Bodily Maps of Emotions», Proceedings of the National
Academy of Sciences 111, n.º 2 (2014): 646-51.
4 William Wordsworth, «Lines Composed a Few Miles Above Tintern Abbey, on Revisiting
the Banks of the Wye During a Tour, July 13, 1798», in Lyrical Ballads (1974), Old Stile
Press, 2002: 111-17.
5 Comunicação pessoal de Mary Helen Immordino-Yang.
6 As condições de recompensa fisiológica estão associadas à libertação de moléculas
endógenas como a endorfina, que são agonistas dos recetores opioides μ (MOR). As MOR são
conhecidas desde há muito no contexto da analgesia e da toxicodependência, mas trabalhos
mais recentes mostram que as MOR promoveriam a qualidade agradável das experiências
recompensadoras. Morten L. Kringelbach e Kent C. Berridge, «Motivation and Pleasure in the
Brain», in The Psychology of Desire, orgs. Wilhelm Hofmann e Loran F. Nordgren (New
York: Guilford Press, 2015), 129-45.
7 O stresse, por definição, é um estado metabolicamente exigente, e estudos recentes
mostraram que embora o stresse agudo possa aumentar a intensidade de uma resposta
imunitária, o stresse crónico tem o efeito oposto, inibindo a capacidade do organismo de
responder a desafios imunitários. A ativação de respostas imunitárias mobiliza as fábricas
celulares que produzem células imunitárias. Este processo é metabolicamente dispendioso, pelo
que, por vezes, o desenvolvimento de uma resposta imunitária eficaz exige mais recursos do
que aqueles que o organismo pode ceder, sobretudo se já se encontrar num estado stressado.
Quando isto ocorre, o bem-estar do organismo deteriora-se e, quando outras despesas
homeostáticas são aplicadas ao esforço de defesa, instalam-se a exaustão e a letargia, e
reduzem-se ainda mais as possibilidades de recuperação total. Neste cenário, torna-se óbvio
que um organismo não stressado tem mais probabilidades de criar uma resposta imunitária
eficaz, e manter um estado florescente.
Ver Terry L. Derting e Stephen Compton, «Immune Response, Not Immune Maintenance, Is
Energetically Costly in Wild White-Footed Mice (Peromyscus leucopus)», Physiological and
Biochemical Zoology 76, n.º 5 (2003): 744-52; Firdaus S. Dhabhar e Bruce S. McEwen,
«Acute Stress Enhances While Chronic Stress Suppresses Cell-Mediated Immunity in Vivo: A
Potential Role for Leukocyte Trafficking», Brain, Behavior, and Immunity 11, n.º 4 (1997):
286-306; Suzanne C. Segerstrom e Gregory E. Miller, «Psychological Stress and the Human
Immune System: A Meta-analytic Study of 30 Years of Inquiry», Psychological Bulletin 130,
n.º 4 (2004): 601.
O stresse ativa o eixo hipotalâmico-pituitário (EHP) e induz a hormona libertadora de
corticotropina (CRH), que se liga ao recetor CRH1 e leva à libertação de dinorfina, uma classe
diferente de opioide endógeno. A dinorfina é uma agonista do recetor k (KOR), e enquanto os
MOR estão associados à qualidade agradável das experiências recompensadoras, a atividade
dos KOR na amígdala basolateral tem sido associada à qualidade de aversão das experiências
desagradáveis. Ver Benjamin B. Land et al., «The Dysphoric Component of Stress Is Encoded
by Activation of the Dynorphin K-Opioid System», Journal of Neuroscience 28, n.º 2 (2008):
407-14; Michael R. Bruchas et al., «CRF1-R Activation of the Dynorphin/Kappa Opioid
System in the Mouse Basolateral Amygdala Mediates Anxiety-Like Behavior», PLoS One 4,
n.º 12 (2009): e8528.
8 Jaak Panksepp fez contribuições pioneiras para a compreensão do papel do tronco cerebral e
da estrutura do prosencéfalo basal nos afetos. Ver Panksepp, Affective Neuroscience; entre
outras obras relevantes incluem-se António Damásio et al., «Subcortical and Cortical Brain
Activity During the Feeling of Self-Generated Emotions», Nature Neuroscience 3, n.º 10
(2000): 1049-56, doi:10.1038/79871; António Damásio e Joseph LeDoux, «Emotion», in
Kandel et al., Principles of Neural Science. Ver Berridge e Kringelbach, Pleasures of the
Brain, (Oxford University Press, 2009); Damásio e Carvalho, «Nature of Feelings»; Josef
Parvizi e António Damásio, «Consciousness and the Brainstem», Cognition 79, n.º 1 (2001):
135-60, doi:10.1016/S0010-0277(00)00127-X.
Para uma análise recente ver Anand Venkatraman, Brian L. Edlow e Mary Helen Immordino-
Yang, «The Brainstem in Emotion: A Review», Frontiers in Neuroanatomy 11, n.º 15 (2017):
1-12; Jaak Panksepp, «The Basic Emotional Circuits of Mammalian Brains: Do Animals Have
Affective Lives?» Neuroscience and Biobehavioral Reviews 35, n.º 9 (2011): 1791-804;
Antonio Alcaro e Jaak Panksepp, «The SEEKING Mind: Primal Neuro-affective Substrates for
Appetitive Incentive States and Their Pathological Dynamics in Addictions and Depression»,
Neuroscience and Biobehavioral Reviews 35, n.º 9 (2011): 1805-20; Stephen M. Siviy e Jaak
Panksepp, «In Search of the Neurobiological Substrates for Social Playfulness in Mammalian
Brains», Neuroscience and Biobehavioral Reviews 35, n.º 9 (2011): 1821-30; Jaak Panksepp,
«Cross-Species Affective Neuroscience Decoding of the Primal Affective Experiences of
Humans and Related Animals», PLoS One 6, n.º 9 (2011): e21236.
9 Quando ouvimos um grito e reagimos com uma variante do medo, o mecanismo por detrás
desse sentimento emocional baseia-se numa resposta emotiva desencadeada pelas
características acústicas do grito; o tom agudo do som pode contribuir para a resposta, mas, tal
como agora parece ser o caso, a aspereza do som parece ser o elemento crítico. As
circunstâncias em que ouvimos o grito também são relevantes. Ao ouvir Janet Leigh a gritar
em A Sede do Mal, de Orson Welles (ou no Psico de Hitchcock), filmes que tenho visto muitas
vezes, estou à espera desse grito; a resposta emotiva negativa ainda ocorre, mas de forma
reduzida; posso até superar o sentimento negativo com um sentimento positivo à medida que
observo como Welles montou a cena. Claro que se ouvir um grito semelhante à noite no beco
onde tive de estacionar o carro, as coisas vão ser diferentes. Fico assustado. Ocorrerá uma
variação da emoção «convencional» de medo e do consequente sentimento de medo. A
consequência inevitável da ativação de um programa emotivo é a modificação de certos
aspetos do estado homeostático. A representação mental – a criação de imagens – deste
processo de modificação e o seu auge, prolongado ou efémero, constituem um sentimento
emocional, a variedade típica do sentimento provocado. Luc H. Arnal et al., «Human Screams
Occupy a Privileged Niche in the Communication Soundscape», Current Biology 25, n.º 15
(2015): 2051-56; Ralph Adolphs et al., «A Role for Somatosensory Cortices in the Visual
Recognition of Emotion as Revealed by Three-Dimensional Lesion Mapping», Journal of
Neuroscience 20, n.º 7 (2000): 2683-90.
10 Não deve surpreender que o «desejo» de relações sociais seja antigo e motivado
homeostaticamente. Os organismos unicelulares exibem precursores destes fenómenos, e
podemos encontrar exemplos comparáveis em aves e mamíferos.
No habitat natural, o aumento de transmissão de parasitas e de competição por recursos entre
os animais sociais pode reduzir o êxito reprodutivo e a longevidade. Esta situação pode ser
compensada pelo «social grooming» («limpeza social»), um comportamento adaptativo que
não só reduz a carga de parasitas, como também forja laços sociais e alianças entre os parceiros
da limpeza. Entre certos primatas, a limpeza social está na base de sistemas complexos de
hierarquia social, reciprocidade e troca de recursos/serviços. As relações sociais formadas em
torno das parcerias de limpeza são vitais para a saúde e para o bem-estar individuais, além de
apoiarem a coesão do grupo. Ver Cyril C. Greuter et al., «Grooming and Group Cohesion in
Primates: Implications for the Evolution of Language», Evolution and Human Behavior 34, n.º
1 (2013): 61-68; Karen McComb e Stuart Semple, «Coevolution of Vocal Communication and
Sociality in Primates», Biology Letters 1, n.º 4 (2005): 381–85. Max Henning, Glenn R. Fox,
Jonas Kaplan, Hanna Damásio e António Damásio (em breve), «A Role for mu-Opioids in
Mediating the Positive Effects of Gratitude». Focused Review, Frontiers in Psychology.
11 O «play» social é mediado por circuitos cerebrais subcorticais. A investigação revelou que o
«play» que envolve «rough and tumble» é essencial para que se aprenda o que constitui um
comportamento social aceitável. O «rough and tumble» é uma forma de brincar, rude e por
vezes tempestuosa, que implica certos graus de agressão; este comportamento instintivo
permite ao animal avaliar os resultados da rudeza, em si próprio e nos outros, e assim
determuinar os limites de certos comportamentos. Os gatinhos domésticos privados de «play»
tornam-se gatos adultos agressivos. A par disso, o «play» social parece ser modulado por
mecanismos opioidérgicos, com a ativação dos recetores opioides mu e kapa a exercer efeitos
facilitadores ou inibitórios. Estes mecanismos opioides estão mais tipicamente associados a
pulsões homeostáticas e à valência afetiva; o seu papel na socialidade sugere que o
comportamento pró-social é motivado homeostaticamente. Siviy e Panksepp, «In Search of the
Neurobiological Substrates for Social Playfulness in Mammalian Brains»; Panksepp, «Cross-
Species Affective Neuroscience Decoding of the Primal Affective Experiences of Humans and
Related Animals»; Gary W. Guyot, Thomas L. Bennett e Henry A. Cross, «The Effects of
Social Isolation on the Behavior of Juvenile Domestic Cats», Developmental Psychobiology
13, n.º 3 (1980): 317-29; Louk J.M.J. Vanderschuren et al., «μ-and κ-Opioid Receptor-
Mediated Opioid Effects on Social Play in Juvenile Rats», European Journal of Pharmacology
276, n.º 3 (1995): 257-66; Hugo A. Tejeda et al., «Prefrontal Cortical Kappa-Opioid Receptor
Modulation of Local Neurotransmission and Conditioned Place Aversion»,
Neuropsychopharmacology 38, n.º 9 (2013): 1770-79.
Stephen W. Porges: The Polyvagal Theory, New York e London: W.W. Norton & Company,
2011.
Em estudos recentes de espécies dotadas dos sistemas neurais capazes de criar imagens, as
valências positiva e negativa estão consistentemente associadas aos recetores opioides mu e
kapa, respetivamente. O quarteto de recetores opioides – delta, mu, kapa e NOP – do corpo
humano existe na evolução desde o aparecimento dos vertebrados mandibulados, após a
explosão câmbrica, há cerca de 450 milhões de anos. Este facto é compatível com a hipótese de
que a valência, e até os sentimentos, possam estar bem mais presentes no reino animal do que
anteriormente se pensava. Susanne Dreborg et al., «Evolution of Vertebrate Opioid
Receptors», Proceedings of the National Academy of Sciences 105, n.º 40 (2008): 15487-92.
9. Consciência
1 Duas breves notas: em primeiro lugar, uso o termo «subjetividade» no seu sentido cognitivo
e filosófico e não no sentido popular, no qual «subjetivo» se refere a «opinião pessoal»; em
segundo lugar, há muitos anos que trabalho sobre os problemas da consciência e apresentei
algumas das minhas ideias em dois livros: O Sentimento de Si e O Livro da Consciência. Em
publicações posteriores apresentei extensões dessas ideias. Ver António Damásio, Hanna
Damásio e Daniel Tranel, «Persistence of Feelings and Sentience After Bilateral Damage of the
Insula», Cerebral Cortex 23 (2012): 833-46; Damásio e Carvalho, «Nature of Feelings»;
António Damásio e Hanna Damásio, «Pain and Other Feelings in Humans and Animals»,
Animal Sentience 1, n.º 3 (2016): 33. As minhas ideias continuaram a evoluir, influenciadas por
trabalhos teóricos e empíricos sobre perturbações de sentimentos e de consciência, mas não
apresento aqui os dados mais recentes, que serão alvo de um volume separado.
2 A designação «Teatro Cartesiano» chega-nos das animadas discussões de Daniel Dennett
sobre a consciência, as quais rejeitavam de forma clara e bem-vinda os mitos do «homúnculo»,
bem como com um alerta quanto aos riscos do «infinite regress» (eterno retorno) – a ideia de
que temos um homenzinho no cérebro que nos observa a mente, seguida pela necessidade de
acrescentar outro homenzinho que observa o anterior, etc., ad aeternum.
3 Vários colegas têm vindo a apresentar relatos sobre integração mental que são, de um modo
geral, compatíveis com os meus, sobretudo Bernard Baars, Stanislas Dehaene e Jean-Pierre
Changeux. Estas ideias são bem expostas em Stanislas Dehaene, Consciousness and the Brain:
Deciphering How the Brain Codes Our Thoughts (New York: Viking, 2014).
4 Isto aplica-se a uma zona cerebral esquiva conhecida como «claustro», cujos campeões têm
sido Francis Crick e Christof Koch, «A Framework for Consciousness», Nature Neuroscience
6, n.º 2 (2003): 119-26; e ao córtex insular, a região favorita de A.D. Craig, How Do You Feel?
An Interoceptive Moment with Your Neurobiological Self (Princeton, N.J.: Princeton University
Press, 2015).
5 Embora a essência da consciência seja mental e, desde logo, apenas seja acessível ao
indivíduo que está consciente, existe uma longa tradição que aborda a consciência segundo
uma perspetiva comportamental, a partir do exterior, por assim dizer. Os clínicos que
trabalham nas salas de urgência, nas salas de operação ou nas unidades de cuidados intensivos
são treinados segundo essa perspetiva externa e estão prontos a pressupor a presença ou a
ausência da consciência com base numa observação silenciosa ou numa conversa com o
paciente, caso isso seja possível. Enquanto neurologista, fui treinado para fazer este tipo de
observações.
O que procura o clínico encontrar nessas observações? Vigília, atenção, animação emotiva e
gestos deliberados são sinais úteis de consciência. Os pacientes inconscientes, como nos casos
de coma, não estão despertos, não estão atentos, não são emotivos, e os gestos que fazem,
quando os fazem, não se relacionam com o ambiente. As conclusões que se podem tirar em tais
situações são complicadas pelo facto de que há condições em que a consciência pode estar
afetada, como sejam os estados vegetativos persistentes, mas em que as pessoas alternam
períodos de sono com períodos de vigília. O problema de pressupor a presença ou a ausência
de consciência a partir de manifestações externas pode complicar-se ainda mais numa condição
conhecida como «síndrome de locked-in» (encarceramento). Neste caso, a consciência
mantém-se de facto, mas os pacientes estão quase completamente imóveis e é fácil não detetar
certos movimentos subtis que eles fazem, e que consistem, em geral, em pestanejar e fazer
movimentos limitados dos olhos. Embora as artes clínicas já tenham atingido um ponto de
razoável segurança, a única forma garantida de confirmar que alguém está consciente é fazer
com que a pessoa dê testemunho direto de um estado mental normal. Os clínicos gostam de
declarar que a pessoa está ou não consciente depois de obterem resposta a três perguntas
relacionadas com a) a identidade da pessoa, b) o local onde a pessoa se encontra, e c) a data
aproximada. Claro que isto não se pode comparar com o determinar, diretamente e sem
equívocos, se alguém tem uma mente consciente e funcional.
Existe uma vasta literatura sobre as condições neurológicas que provocam perturbações de
consciência, ou que podem parecer causar essas perturbações, mas realmente não o fazem, tal
como no caso da «síndrome de locked-in». Existe também uma vasta literatura sobre anestesia
e sobre como a administração de vários compostos químicos perturba, de forma reversível, a
experiência mental. Ambos os corpos de literatura garantem indícios importantes relativamente
à base neural da consciência. Todavia, deve reconhecer-se que as lesões cerebrais que
provocam coma ou as moléculas químicas responsáveis pela anestesia são instrumentos
grosseiros que não nos permitem identificar os processos neurobiológicos responsáveis pela
experiência mental. Vários anestésicos têm o poder de suspender o processo básico de sentir e
reagir que também se encontra nas bactérias, ou até nas plantas. Os anestésicos imobilizam a
sensação e a reação em todos os ramos da vida. Não suspendem diretamente a consciência, mas
bloqueiam processos de que dependem os estados mentais, os sentimentos e a tomada de
perspetiva.
Ver Parvizi e Damásio, «Consciousness and the Brainstem»; Josef Parvizi e António Damásio,
«Neuroanatomical Correlates of Brainstem Coma», Brain 126, n.º 7 (2003): 1524-36; António
Damásio e Kaspar Meyer, «Consciousness: An Overview of the Phenomenon and of Its
Possible Neural Basis», in The Neurology of Consciousness, orgs. Steven Laureys e Giulio
Tononi (Burlington, Mass.: Elsevier, 2009), 3-14.
6 Eric D. Brenner et al., «Plant Neurobiology: An Integrated View of Plant Signaling», Trends
in Plant Science 11, n.º 8 (2006): 413-19; Lauren A.E. Erland, Christina E. Turi e Praveen K.
Saxena, «Serotonin: An Ancient Molecule and an Important Regulator of Plant Processes»,
Biotechnology Advances (2016); Jin Cao, Ian B. Cole e Susan J. Murch, «Neurotransmitters,
Neuroregulators, and Neurotoxins in the Life of Plants», Canadian Journal of Plant Science
86, n.º 4 (2006): 1183-88; Nicolas Bouché e Hillel Fromm, «GABA in Plants: Just a
Metabolite?», Trends in Plant Science 9, n.º 3 (2004): 110-15.
É por isto que divirjo, em parte, das conclusões de Arthur S. Reber em «Caterpillars,
Consciousness, and the Origins of Mind», Animal Sentience 1, n.º 11 (2016). Os organismos
unicelulares sentem e reagem, competências fundamentais para o desenvolvimento posterior da
mente, dos sentimentos e da subjetividade, mas não podemos afirmar que têm mente,
sentimentos e consciência.
7 São poucos os autores que têm incluído os sentimentos numa conceção de consciência, e
menos ainda que tenham concebido a consciência segundo o ponto de vista dos afetos. Além
de Jaak Panksepp e A. Craig, encontrei outra exceção no trabalho de Michel Cabanac; ver
Michel Cabanac, «On the Origin of Consciousness, a Postulate and Its Corollary»,
Neuroscience and Biobehavioral Reviews 20, n.º 1 (1996): 33-40.
8 David J. Chalmers, «How Can We Construct a Science of Consciousness?», in The Cognitive
Neurosciences III, org. Michael S. Gazzaniga (Cambridge, Mass.: MIT Press, 2004), 1111-19;
David J. Chalmers, The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory (Oxford: Oxford
University Press, 1996); David J. Chalmers, «Facing Up to the Problem of Consciousness»,
Journal of Consciousness Studies 2, n.º 3 (1995): 200-219.