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“SÓ CUIDADO PARA NÃO DESMUNHECAR A MÃO!

”: REFLETINDO SOBRE
HETERONORMATIVIDADE, GÊNERO E DOCÊNCIA

Fernanda Xavier Silva Santana


Especialista em Educação, Contemporaneidade e Novas Tecnologias - UNIVASF
Mestranda em Educação Científica e Formação de professores- UESB
ssxf.1@hotmail.com
2 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Cixto de Assis Bandeira Filho1


Especialista em Gestão Pública Contemporânea - UNEB
Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco - Educação
cixtofilho@hotmail.com
2 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Marcos Lopes de Souza¹


Doutor em Educação -
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - Educação
markuslopessouza@gmail.com
2 - Educação escolar, diversidade de gênero e sexual

Resumo

O/A docente carrega em sua fala, gestos e atitudes, marcas de sua história, cultura e
sociabilidade. São aspectos formativos que não estão inscritos no currículo formal, ou seja, é
um dito que não é entendido como parte integrante na formação do aluno/a, e, que, ao mesmo
tempo, possui relevância, visto que, uma fala, um gesto, uma atitude docente transforma,
liberta, entusiasma, mas, também, silencia e amedronta pensamentos, criatividades,
dificultando as condições de ensino aprendizagem de alunos/as. O objetivo desse texto é o de
refletir sobre heteronormatividade, gênero e docência, visando contribuir para uma educação
não normatizadora/normalizadora, a partir do relato da minha experiência acadêmica, no
bacharelado em Engenharia da Computação, tendo como análise, falas de um docente.

Palavras-chave: heteronormatividade; gênero; docência.

Introdução
O currículo escolar/universitário é um elemento político e de relações de poder, e, o/a
docente, assim como o currículo, é um ser não neutro/a, ou seja, suas concepções de mundo e
1
Orientadores.
sua relação com a sexualidade entram em suas falas, diálogos e jeito de ser e estar em sala de
aula, e, na sua relação com a/o discente. Richard Miskolci (2016, p. 14) já nos diz que fomos
formados para pensar que o professor/a aprende a educar de forma neutra, como se fosse
possível ao entrar na sala de aula, deixar de lado toda sua história de socialização, o autor,
ainda nos diz que: “[...] todos/as trazemos uma bagagem cultural para nossas atividades
profissionais, mas, sobretudo, porque educar nada tem de neutro, seus métodos e seus
conteúdos têm objetivos interessados”.
Há algum tempo venho observando um movimento comum da prática docente: os
discursos invisíveis ao currículo formal/planejado. Essas observações, inicialmente,
aleatórias, me fizeram refletir/preocupar com o que os/as docentes têm contribuído (em suas
falas) para construção das subjetividades dos discentes em relação a construção e constituição
da sexualidade. Além das falas, julgo importantes também, seus gestos, suas atitudes frente a
situações, seu modo de vestir, de olhar, de silenciar, enfim, inúmeras sutilezas que fazem
parte da construção moral, cultural e histórica do docente, que mesmo não planejado ou
previsto no plano de aula, constituem-se como elementos formativos, ou seja, penetram nos
sujeitos (discentes).
Por isso, trago para reflexão, falas de um docente, para que possamos pensar sobre
heteronormatividade2, educação pelas diferenças e docência. Essas falas fazem parte da minha
história de vida acadêmica, de uma experiência num curso de Bacharelado em Engenharia da
Computação. Curso este, que tentei fazer depois de ter concluído uma licenciatura. Vale
ressaltar, que ter feito uma licenciatura, e ter tido como tema de trabalho de conclusão de
curso a temática sexualidade, foi o que me proporcionou fazer as observações e análises no
curso de bacharelado em questão, e o que me impulsiona, também, estar cursando um
mestrado em educação, com a mesma temática, com foco diferenciado.

O dito, que não está inscrito no currículo formal

“São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as


palavras banalizados que precisam se tornar alvos de

2
Heteronormatividade, segundo Miskolci (2016, p. 15/46) seria a ordem sexual vigente, onde todos são
formados para ser heterossexual, ter família e reproduzir, ou, mesmo que tenha relações com o mesmo sexo,
adote o modelo da heterossexualidade. Nesse caso, gays e lésbicas também podem ser normalizados, aderir ao
modelo e ser agente da heteronormatividade.
atenção renovada, de questionamento e, em especial, de
desconfiança. A tarefa mais urgente talvez seja
exatamente essa: desconfiar do que é tomado como
‘natural’” (LOURO, 2014, p. 67).
É comum que na sala de aula (ou qualquer outro espaço utilizado para formação) o/a
docente converse, brinque, conte piada, dê sermões, conte histórias, para resolver algo, ou
para a descontração da aula. E, é nesse pequeno espaço formador que peço atenção.
Começo este relato chamando atenção para o título, que trata da fala de um “docente”
do curso de bacharelado em Engenharia da Computação de uma determinada universidade, a
qual me fez refletir sobre a relação educação-sexualidade-docência. Numa aula da disciplina
“Introdução à Programação”, o docente diz: “Está aqui no quadro a questão”. Ao mesmo
tempo, faz uma provocação: “Alguém se habilita para responder?” Então, um discente
levanta para tentar resolver o problema sobre conversão de número binário para número
decimal posto no quadro. O discente, ao pegar o piloto da mão do “professor”, e dirigir-se ao
quadro, antes mesmo de começar a resolver o problema, o professor ironiza, em tom
zombeteiro e risonho (como se tivesse graça): “Só cuidado para não desmunhecar a mão”.
Naquele momento, alguns riram, outros silenciaram. O meu olhar foi de horror!
Daquele episódio, comecei a refletir sobre o processo de “fabricação dos sujeitos”, a
produção “de regimes de verdades”, a homofobia, e a heteronormatividade. Comecei a pensar
em como a fala foi incorporada pelas pessoas daquela sala e quais as consequências em cada
uma delas.
Então pude refletir sobre dois aspectos inscritos na fala do professor. O primeiro é o
discurso heteronormativo que humilha e despreza todo um coletivo que não se enquadra ao
padrão estabelecido, que oprime ainda mais aqueles que se encontram silenciados pelas
pressões sociais e familiares, onde o modelo heterossexual é o padrão, o normal, o certo a
seguir.
Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou a
negação dos/as homossexuais – e da homossexualidade – pela escola
[universidade]. Ao não falar a respeito deles e delas, talvez se pretenda
‘eliminá-los/as’, ou pelo menos se pretenda evitar que os alunos e as alunas
‘normais’ os/as conheçam e possam desejá-los/as (Louro, 2014, p. 71-72).
Para aquele professor, “desmunhecar a mão”, nada mais é do que ser gay, ou parecer
feminino. por isso, zombava de uma forma de ser, onde considerava o feminino e/ou ser gay,
inferior. Ou seja, deixou transparecer que não aceita e/ou respeita as diferenças. Nesse
contexto, vi o binário (assunto da disciplina), incorporado em seu discurso binário3 referente à
sexualidade.
O segundo aspecto é a homofobia, alimentada pela cultura heterossexista, pois, uma
vez que fica sobre aviso que desmunhecar a mão é perigoso para a reputação masculina (é
desviante, ridículo e anormal), isso vem a se caracterizar como uma violência psicológica para
quem não está no padrão da normalidade. Miskolci (2016, p.34-35) conceitua a maneira como
se opera o heterossexismo de “terrorismo cultural” e afirma:
Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças costumam preceder tapas,
socos ou surras. A recusa violenta de formas de expressão de gênero ou
sexualidade em desacordo com o padrão é antecedida e até apoiada por um
processo educativo heterossexista, ou seja, por um currículo oculto
comprometido com a imposição da heterossexualidade compulsória.
Na minha convivência com os alunos/as da turma, percebi dois alunos que não
estavam na identidade heterossexual, um deles inclusive, era evangélico, apesar da religião
não aceitar a homossexualidade; o outro só mantinha diálogo constante comigo, e, eu sentia
que ele não era aceito pelos outros colegas, isso, acredito que devido ao seu jeito feminino de
falar, sorrir, gesticular. Saia angustiada da sala, e, ficava imaginando os receios e as angústias
que se passavam na cabeça deles; com certeza seus medos e receios aumentaram ainda mais,
pois, para eles, aquele lugar não tratava a homossexualidade como algo positivo. Louro (2014,
p.87) questiona “como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e a desprezar? Como,
estando imerso/a nesses discursos normalizadores, é possível articular sua (homo)sexualidade
com prazer, com erotismo, com[o] algo que pode ser exercido sem culpa?”.
O que me entristecia era a rejeição do docente as diferentes formas de sexualidades
existentes na sala. Ou seja, ele não tinha o cuidado, a delicadeza, a sensibilidade de
reconhecer e respeitar as diferenças; dialogava como se só houvesse heteros na turma,
assumindo assim, uma visão heteronormativa. Talvez, essa rejeição do professor, seja pelo
estigma machista de que a engenharia seja uma profissão genuinamente masculina, onde as
mulheres foram e ainda são estranhadas e inferiorizadas. Como aponta Lombardi (2006),
numa pesquisa com dados de meados de 1980 a 2002, e entrevistas com engenheiras e
engenheiros, dentro da relação de gênero: o salário dos homens é superior ao das mulheres;
apenas 15% das engenheiras estão ocupadas/empregadas; o ingresso do público feminino em
cursos de engenharia é de apenas 20%; os homens não concedem cargos de chefia para as

3
Ideia de dualidade homem-mulher, hetero-homo, feminino-masculino.
engenheiras, estando geralmente como subordinadas; modelo de bom profissional e de
inteligência exclusivamente masculino, como é possível verificar na fala de um diretor a uma
engenheira: “Rosa, você é tão inteligente que parece um homem”.
Lombardi (2006) afirma que com o passar das décadas (até 2002) melhorou muito a
aceitabilidade das mulheres no mercado de trabalho e nas escolas de engenharia. Porém, os
números ainda são bastante desiguais, e, tive a oportunidade de ver isso com meus próprios
olhos. A turma de engenharia que ingressei era de 50 alunos/as, sendo somente 05 do gênero
feminino. Na disciplina do professor em questão, éramos 03 alunas, pois, como a aula era em
laboratório, dividia-se a turma em duas.
Não esqueço o dia em que o professor chegou em sala cumprimentando todos/as
(risonho), olhou para nós (alunas) e disse: “vocês são nossos colírios, né rapazes? [buscando
uma confirmação e aprovação pelo grupo masculino] Numa sala com tanto macho, né, é bom
ter umas menininhas!”. Que piada sem graça, achei! Nesta fala, percebi o discurso machista,
onde as alunas são vistas como objeto de desejo e posse, perpetuando o não reconhecimento
das mulheres pelo seu potencial intelectual. As duas alunas deram um leve sorriso e nada
falaram. Isso me preocupa porque as meninas eram muito jovens, recém-formadas no ensino
médio, então, talvez pela ingenuidade e/ou pela falta de reflexão naquele momento, elas não
tenham se incomodado com a fala do professor. Mas, o que ficou evidente é que ainda existe
discriminação de gênero nos cursos de engenharia.
Essa experiência me fez pensar: que tipo de universidade estamos
criando/alimentando? Que tipo de sujeito é produzido neste curso (ou das engenharias)? E,
para que profissionais está sendo dada a autorização para atuar na docência?
É importante pensarmos em fortalecer nossa profissão docente, lutando pelo
reconhecimento do/a licenciado/a como profissional habilitado para a docência. A docência
não é vocação, não é uma atividade que se aprende apenas executando, pois, a ela exige
habilidades e conhecimentos específicos (de ensino, aprendizagem, didática, etc.), ou seja,
preparação, requisitos de ingresso, plano de carreira profissional para exercê-la (Zabalza,
2004). Além disso, precisamos pensar num “aprendizado pelas diferenças”, e/ou numa
educação pelas diferenças, onde os/as educadores/as possam se inspirar nos “anormais”,
“estranhos”, para o educar, fazendo o exercício da “ressignificação do estranho, do anormal
como veículo de mudança social e abertura para o futuro” (Miskolci, 2016, p.67).
Quanto à docência no ensino superior, temos grandes desafios. Um deles é que nas
licenciaturas pouco ou quase nada se fala em sexualidade, gênero e diversidade sexual, por
isso, um desafio é a inclusão dessa discussão na formação inicial e continuada de
professores(as). Outra questão é que muitos(as) bacharéis estão lecionando sem formação
pedagógica/didática, sem experiência, e acabam refletindo em sala de aula o modelo de ensino
aprendizagem que foram formados(as), então é necessário que estes/as profissionais façam
formações continuadas que os dê condições de reflexão sobre sua prática, e os possibilite o
reconhecimento da identidade docente.

Considerações finais
Ainda vivemos uma sociedade preconceituosa, altamente controladora e
disciplinadora, e os espaços educativos possuem cicatrizes abertas e nocivas ao convívio em
coletividade e ao reconhecimento das diferenças. Por isso, não podemos deixar de pensar que
o reconhecimento das diferenças (sexuais, culturais, étnicas e raciais) é fundamental para que
possamos dialogar todos/as, quebrando a hegemonia de grupos específicos, rompendo com a
cultura universalista que tenta colocar todos/as no mesmo enquadramento.
Outro fator importante de se ressaltar é que a fala do docente em questão e outras
tantas que insulta e desrespeita pessoas, está em tantas outras bocas; outros tantos docentes
fazem “piadas” desse tipo todos os dias, e, o discurso presente em sua fala “cuidado para não
desmunhecar a mão” faz parte de uma rede de estratégias de poder e hegemonia de uma
determinada sociedade, para o estabelecimento de um padrão, de uma “verdade” e controle
social.
Desejo que este relato sirva para reflexão dos/as educadores/as no que tange os
desafios a vencer e os caminhos a percorrer rumo a uma educação não
normatizadora/normalizadora. Sei que são muitos os entraves, as desmotivações, os desafios,
mas, também, foram muitas as conquistas, por isso, não podemos deixar de almejar uma
educação de diálogo e reconhecimento das diferenças.

Referências
LOMBARDI, Maria Rosa. Engenheiras Brasileiras: inserção e limites de gênero no campo
profissional. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 127, p. 173-202, jan./abr. 2006.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2.ed. ver. E ampl.,
3.reimp. – Belo Horizonte: Autentica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto,
2016.

ZABALZA, Miguel A. Os professores universitários. In: O ensino universitário: seu cenário


e seus protagonistas. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2004. (105-144).

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