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A língua do pensamento que inquieta pensadores e cientistas 12/01/2020 22:31

A língua do pensamento que


inquieta pensadores e cientistas
Aldo Bizzocchi 21 de dezembro de 2019

A ideia de que pensamos independentemente da língua que falamos


intriga especialistas

Aldo Bizzocchi, da revista Língua Portuguesa

Por mais distintas que as línguas sejam, praticamente tudo que pode ser
dito em uma língua pode ser dito nas demais. Certas palavras não
encontram equivalentes exatos em outros idiomas, as estruturas
sintáticas são muito diferentes, mas o sentido geral das frases tende a
permanecer o mesmo. Tanto que, salvo em traduções de poesia, em que
a expressão é tão importante quanto o conteúdo, o que se traduz num
texto é o seu sentido geral e não o significado termo a termo, a chamada
tradução literal, que muitas vezes conduz a enunciados sem sentido.

Essa possibilidade quase irrestrita de tradução é possível porque o


“sentido geral” a que estou me referindo é algo que transcende a língua.
Trata-se de uma representação mental que fazemos da realidade e
prescinde de palavras. Mas tampouco se dá por imagens ou outros
símbolos dotados de um significante material. Tanto que cegos de
nascença, surdos-mudos e indivíduos privados da linguagem por alguma
patologia são perfeitamente capazes de pensar e compreender a
realidade.

Categorias

Também comprovam a existência dessa representação mental


puramente abstrata situações como quando não recordamos uma
palavra, mas, mesmo assim, sabemos o que queremos dizer, ou quando

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alguém diz algo e, tempos depois, lembramos o que foi dito, mesmo
tendo esquecido as palavras exatas. A ideia de que pensamos
independentemente da língua que falamos e mesmo de outros sistemas
simbólicos (sons, gestos, desenhos, esquemas) é bem antiga e tem
inquietado muitos pensadores e cientistas ao longo do tempo.

Aristóteles já havia postulado que o pensamento se estrutura em torno


de categorias gerais (substância, qualidade, ação), de tal modo que tudo
o que possamos conceber se encaixe numa dessas categorias. O
raciocínio seria, então, a combinação dessas categorias ou conceitos por
meio de regras bem definidas. Curiosamente, tais categorias inspiraram o
que chamamos hoje de classes gramaticais: substantivo, adjetivo, verbo,
etc. (Não que essas classes sejam um espelho fiel do nosso pensamento;
trata-se de mera aproximação feita pelos gramáticos.) Igualmente, as
regras de combinação das categorias aristotélicas deram origem, de um
lado, à lógica e, de outro, à sintaxe.

No século 17, o filósofo inglês John Locke afirmou que tudo o que
podemos conceber seria uma combinação de noções de base, ou
qualidades (existência, extensão, forma, movimento, cor). Para Locke,
haveria ideias primeiras (aquelas que não podem ser reduzidas a outras
ainda mais simples) e conexões entre elas. Por exemplo, o ouro é a
conjunção das qualidades material, inanimado, sólido, amarelo, brilhante,
metálico, valioso, e assim por diante.

Combinatória

Afirmando que só é possível pensar


por meio de algum tipo de linguagem,
não importando a sua natureza, e
inspirados na doutrina atomista dos
gregos Leucipo e Demócrito, Bertrand
Russell e Ludwig Wittgenstein
propuseram que qualquer conceito
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Foto: iStockphoto linguístico pode ser decomposto em


conceitos cada vez mais simples, até o ponto em que não possam mais
ser decompostos.

Decorre dessa teoria (embora os próprios autores não tenham dito isso)
que o pensamento seria uma combinação sintática de conceitos que, por
sua vez, seriam “pacotes” estruturados de atributos mínimos.

Fazendo uma analogia, fatos do mundo real são interações entre objetos
formados de átomos ou de partículas ainda menores. Se o pensamento é
a representação mental da realidade exterior, então a mente seria
povoada por “objetos” (conceitos) compostos de partículas mínimas
hierarquicamente organizadas, os quais interagem por meio de relações
lógicas e abstratas. Isso explicaria por que substância, qualidade e ação
são categorias universais e por que classes como substantivo, adjetivo e
verbo existem em todas as línguas – ainda que, no plano da superfície
discursiva, possam estar mascaradas em algumas delas.

Paralelamente, os estudos de Noam Chomsky sobre a aquisição da


linguagem e a competência linguística demonstraram que, por mais
pobres que sejam os estímulos vindos do meio, toda criança aprende a
falar muito cedo e é capaz de formular corretamente frases que jamais
ouviu antes.

Para Chomsky, há um inatismo na linguagem: não importa em qual língua


a criança seja criada nem quanto (ou quão pouco) esforço os adultos
circundantes dediquem a educá-la, ela sempre aprende a dominar o
código com total competência. (Não estou falando aqui de dominar a
norma culta, que, por sinal, a maioria das línguas não tem, mas de ser
plenamente capaz de comunicar-se com seus semelhantes.)

Plataforma

Para explicar esse paradoxo, Chomsky postula que a aptidão linguística é

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inata e se dá por módulos cerebrais. É como se o cérebro fosse o


hardware no qual já viesse de fábrica um sistema operacional capaz de
processar qualquer software linguístico (isto é, qualquer língua). A esse
sistema Chomsky chamou de Gramática Universal (GU). Assim, se o
cérebro é como um computador, a GU é a plataforma (como o Windows,
por exemplo) na qual roda o “software” linguístico instalado (no nosso
caso, algo como o programa “português.exe”). A fala é então o produto
do processamento desse programa, como o papel que sai da impressora.

Mas, se não pensamos só com palavras, a GU, sendo uma plataforma de


processamento linguístico, provavelmente ainda não é o sistema de base
do pensamento: deve haver um sistema ainda mais básico, que permite
“rodar” não só línguas mas todos os demais códigos simbólicos já
inventados ou por inventar.

Subjacente

Em 1975, o filósofo cognitivista Jerry Fodor publicou The Language of


Thought (“A linguagem do pensamento”), em que propõe a existência de
uma espécie de linguagem (LOT, na sigla em inglês) subjacente aos
processos mentais. De modo geral, a teoria sustenta que o pensamento
segue regras análogas às da língua. Só que sem palavras ou signos. Seria
uma linguagem abstrata, cuja representação simbólica para fins
operacionais se assemelha a equações matemáticas. Essa “linguagem”,
biológica (portanto, inata) e situada no nível hiperprofundo da mente,
vem sendo chamada de “mentalês” pelas ciências cognitivas e pela
neurociência.

Várias teorias paralelas à GU e à LOT têm sido desenvolvidas. Dentre as


mais importantes estão a noêmica de Bernard Pottier, a semântica
cognitiva de François Rastier e a psicologia cognitiva de Steven Pinker.
Eu mesmo venho realizando pesquisas sobre o assunto, algumas já
publicadas. É importante dizer que todas as teorias, apesar das
diferenças, são tributárias de um mesmo princípio, já intuído pelos
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gregos na Antiguidade. Como diria Mário Quintana, não há nada que


possamos pensar que algum grego já não tenha pensado.

Leia também:

Neurogênese, plasticidade cerebral e a sala de aula

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