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CE | INOVAÇÃO NO ENSINO • A CONSTRUÇÃO DE CIDADÃOS QUE FAZEM

| 20 GVEXECUTIVO • V 18 • N 6 • NOV/DEZ 2019 • FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS


A CONSTRUÇÃO
DE CIDADÃOS
QUE FAZEM
| POR FABIO ZSIGMOND

A educação integral, a cultura maker e o empreendedorismo desenvolvem


competências para viver em um mundo exponencial, complexo e incerto.

O
termo empreendedorismo costuma tra- essa demanda, vejo como premente a adoção da educação
zer à mente a imagem daqueles seres integral em nossas sociedades. E o que é educação integral?
fora do comum que usam suas ideias Segundo o Centro de Referência em Educação Integral,
geniais para fundar startups. Em sua trata-se de “uma concepção que compreende que a educa-
etimologia, entretanto, o sentido é mais ção deve garantir o desenvolvimento dos sujeitos em todas
amplo: vem do francês entreprendre, ou as suas dimensões – intelectual, física, emocional, social e
realizar; e do sânscrito antha prerna, cultural – e se constituir como projeto coletivo, comparti-
que pode ser traduzido como autorrealização. Quando um lhado por crianças, jovens, famílias, educadores, gestores
indivíduo era chamado de empreendedor, significava que e comunidades locais”.
era percebido como alguém que assumia a responsabilida- Recentemente, pensadores de variados backgrounds pu-
de de buscar uma meta que lhe traria autorrealização. Foi blicaram trabalhos que abordam esse olhar tríplice, que con-
somente no século 17 que o termo passou a ser utilizado no sidero a base da educação integral, entre eles Patrick Paul
sentido econômico que carrega atualmente. (Formação do sujeito e transdisciplinaridade), Peter Sen-
Sempre tive afinidade com o entendimento mais abrangen- ge e Daniel Goleman (O foco triplo, uma nova abordagem
te de empreendedorismo. Empreender é transformar ideias para a educação) e Satish Kumar (Solo, alma, sociedade).
em realidade. Nossa vida é um empreendimento constante.
Porém, nessa jornada, notamos que não estamos sozinhos APRENDENDO A FAZER
no mundo e que precisamos aprender a nos relacionar com Existe uma relação direta entre o conceito amplo de em-
três dimensões à nossa volta: com os outros, com o mundo preendedorismo e a chamada cultura maker. Para além de
e a natureza e, por fim, com nós mesmos. Para responder a robótica, programação, impressoras tridimensionais (3D)

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| INOVAÇÃO NO ENSINO • A CONSTRUÇÃO DE CIDADÃOS QUE FAZEM

MACROTENDÊNCIAS: 1750–2000*

1. Temperatura média da superfície do Hemisfério Norte


2. População
3. Concentração de CO2
4. Produto Interno Bruto (PIB)
5. Destruição de florestas e pântanos
6. Extinção de espécies
7. Número de veículos
8. Uso de água
9. Consumo de papel
10. Pesca predatória
11. Destruição da camada de ozônio
12. Investimento estrangeiro

2 8
3 10
9 12
4 5 6 11
7

1750 1800 1850 1900 1950 2000

*Para entender melhor a escala de construção do gráfico, veja: endofcapitalism.files.wordpress.com/2008/10/exponent.jpg.


Fonte: New Scientist, 2008. Disponível em: newscientist.com/article/dn14950-special-report-the-facts-about-overconsumption

e máquinas de corte a laser, o make está ligado ao fazer. do contexto e do sentido da atividade proposta para o alu-
O maker é quem põe a mão na massa, mas ele não faz, sim- no. A aprendizagem criativa consiste em uma filosofia de
plesmente, de qualquer jeito, e sim com atitude. educação fundamentada em quatro pilares (4Ps): projects,
E qual é essa atitude? O maker é curioso, resiliente, ex- passion, peer learning e play. Trata-se de uma prática pe-
perimentador. Explora possibilidades, erra e aprende com dagógica baseada em projetos (projects), em que os alunos
os erros. Diverte-se fazendo e gosta de compartilhar suas são movidos pelo que tem significado para eles (passion),
descobertas. Olha um problema e é capaz de elaborar um trabalham de forma colaborativa (peer learning) e são va-
projeto criativo e colaborativo para resolvê-lo. Fundamen- lorizados por competências como curiosidade, criatividade
talmente, é apaixonado pelo que faz. Essas característi- e resiliência (play).
cas são muito presentes em todos nós quando vivemos a A introdução de práticas ligadas à educação integral e
nossa infância, porém só alguns conseguem mantê-las na aprendizagem criativa na educação abre caminho para en-
idade adulta. contrarmos a solução para os problemas cada vez mais
Pesquisadores e cientistas perceberam a potencialidade complexos que enfrentaremos. A população mundial levou
dessa forma de comportamento e contribuíram para trazê-la 200 mil anos para chegar a um bilhão de pessoas e somen-
para a educação. Entre eles estão John Dewey, Seymour te 200 anos para ir de um para sete bilhões. Crescem expo-
Papert e Mitchel Resnick. Este último desenvolveu o con- nencialmente também a produção de CO2, a utilização de
ceito de aprendizagem criativa a partir das ideias de Frie- água, o desmatamento de florestas e a extinção das espécies
drich Froebel, o criador do jardim da infância, e das desco- (veja no gráfico). Vivemos ainda uma época extremamente
bertas de Dewey e Papert em relação ao que potencializa complexa e incerta, com uma profusão de informações di-
a aprendizagem, como o papel do fazer e a importância fíceis de ser claramente interligadas. A ubiquidade do uso

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Com habilidades como colaboração, criatividade e autoconhecimento,
os cidadãos empreendedores terão a capacidade de pensar
criticamente e trazer suas ideias para a realidade, contribuindo para a
construção de um mundo mais justo, sustentável e confortável.

de tecnologias digitais permitiu o surgimento de um repo- que utiliza a aprendizagem criativa no Projeto Robótica com
sitório gigantesco de dados, que se transformou no objeto Sucata em uma escola pública de São Paulo; e que um dos
de maior valor que temos hoje em dia, concentrado em pra- filmes de maior sucesso este ano na Netflix, O Menino que
ticamente cinco organizações – Facebook, Amazon, Apple, Descobriu o Vento, conta a história, baseada em fatos reais,
Netflix e Google – e um governo, o chinês. de um jovem que vive no Malawi em condições de seca e
Quais competências e qualificações nos habilitam a com- pobreza e criou uma solução criativa para resolver o pro-
preender e atuar nesse contexto? Não é muito difícil perceber blema de falta de água para a agricultura de seu vilarejo.
que, sem saber o que chamamos de ciência dos dados e pro- O mundo está mudando rapidamente e as fórmulas antigas
gramação de computadores, ficaremos à margem do núcleo não resolvem mais as complexas equações do nosso tempo.
que decidirá os rumos da humanidade. Mas isso não basta. Para preparar nossos jovens e também para nos mantermos
Vamos precisar de cidadãos empreendedores, acostumados vivos e atuantes, precisamos buscar propostas de educação
com a cultura maker. Guiados pela ética e com habilidades que levem em consideração a velocidade, a complexidade
como colaboração, criatividade e autoconhecimento, terão a e as incertezas do mundo. Além de ensinarem as tecnolo-
capacidade de pensar criticamente e trazer suas ideias para gias, essas novas propostas devem reconhecer que somos
a realidade, contribuindo para a construção de um mundo seres humanos, que estamos no centro do nosso processo
mais justo, sustentável e confortável. de aprendizagem e que temos também uma natureza trípli-
ce, o que nos leva a ter de aprender a nos relacionar com
NOVAS PROPOSTAS nós mesmos, com os outros e com a sociedade em geral, e
Já temos escolas e universidades no Brasil e no mundo com o mundo, a natureza e seus sistemas.
que praticam uma educação que responde aos desafios da Temos dentro de nós, e também ao nosso redor, recursos
exponencialidade, da complexidade e da incerteza. São para criar coletivamente soluções para os problemas que se
propostas de uma educação integral fundamentada em va- colocam à nossa frente. Sejamos ousados e deixemo-nos
lores éticos, na cultura maker e na postura empreendedora. abrir ao novo, permitindo que, na relação entre nossa ex-
Como exemplos de ensino básico, poderia citar o Projeto periência e o contato com o novo e desconhecido, encon-
Âncora, em Cotia, na Grande São Paulo, a Glashan Public tremos caminhos criativos.
School, em Ottawa, no Canadá, e a Green School, em Bali,
na Indonésia, cada uma com sua particularidade e respeito
às características de sua comunidade. No ensino superior, PARA SABER MAIS:
- Fabio Zsigmond. Educação 4.0, como ir da teoria a prática, 2019. Disponível em: youtube.
eu citaria os cursos de engenharia do Insper Instituto de En- com/watch?v=2riq9uIHf5U&t=2362s
- Tony Wagner e Robert A. Compton. Creating Innovators: The Making of Young People Who
sino e Pesquisa e o de medicina do Hospital Israelita Albert Will Change the World, 2012.
Einstein, em que os alunos são colocados, desde o início, em - Edward P. Clapp, Jessica Ross, Jennifer O. Ryan e Shari Tishman. Maker-Centered Learning,
empowering young people to shape their worlds, 2017
contato com questões reais e precisam mobilizar diversas - Sylvia Libow Martinez e Gary S. Stager. Invent to Learn: Making, Tinkering, and Engineering

dimensões e conhecimentos para abordá-las e resolvê-las. in the Classroom, 2019.


- Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa. Portal. Disponível em: aprendizagemcriativa.org
Não é por acaso que, entre os 10 professores finalistas do - MundoMaker. Portal. Disponível em: mundomaker.cc/referencias

Global Teacher Prize de 2019 – o equivalente ao Prêmio FABIO ZSIGMOND > Chief executive officer (CEO) do MundoMaker Educação >
Nobel da educação –, tivemos a brasileira Débora Garofalo, fabio@mundomaker.cc

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