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001-427-009-9

O Brasil de JK

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...
O BRASIL DE JK
Angela de ·c astro Gomes
organizadora
Clovis de Faro
Gerson Moura
Helena Bomeny
Maria Antonieta P. Leopoldi
Maria Victoria Benevides
Mônica Pimenta Velloso
Salomão L. Quadros da Silva
Sheldon Maram

Editora da Fundação Getulio Vargas - CPDOC


~~ cdlçao re<C"rvadas a Fundação Getulio Vargas
P:z;a óe Bou.fogo, 190 CEP 22253

E \Td3d3 a n-produção total ou parcial desta obra

~Tight ~ Ce ntro de Pesquisa e Documcntaçao


de llistõria Contempor:inca do Bras i I

1' edição- 1991

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO


DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IJRASIL- CPDOC

Coordenaçao editorial : Cristina Mary Paes da Cw~-..~


Revisão de texto: Dora Rocha FlaksnL1n

EOITORA DA f'UNDAÇÂO GETULIO VARGAS

Chefia: Francisco ele Castro Azevedo


Coordcnaç:io editorial : Dmnião Nascimento
Editoração de texto: Ercilia Lopes ele Souza (supervisara)
Editoração de arte: Cl'sar R. Garcia (supervisor); Jayr Ferreira Vaz, Leci IJrêda de Paula, Rozalra Conceiçiio
de Arnüjo (digitadores ); ElisalJ\;UI Aldcrctc (técnica em OTP); Marilza Azevedo IJarlx>za, Osvaldo Moreira
da Silva (paginadorcs); Aleidis de Beltran, Fatirrm Carorú, Heloisa Vieira, Renato Barraca (revisores)
Supervis:1o grMica: llelio Lourenço Netto

Capa: Marcos 'l\1pper

Fotos das capas: F1mdação Oscar Nkmeycr

Apoio: r-M_E_M_O
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BRASIL

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BIBLI OTECA CENTRAL
CI DADE UNI VERS ITÁRI A A-
CEP. 50670-901- Rec ife-Per nambuco· Bra sil

I bCl8: ~ /~ {l1119 j
1\ o. C)~ .0., ~
nR23
O Brasil de JK/ Angela de Castro Gomes (org.); Clovis de faro et a!. -
Rio de Janeiro: Ed. da Fw1dação Getulio VargasfCPDOC, 1991

168p.

Inclui bibliografia

I. O Brasil - História- 1956-1961. 2.1Jrasil- Relações Exteriores - 1956-1961.3. Brasil - Condições


econômicas - 1956-1961.4. Eleições - BrasiL 5. Cultura popular - BrasiL 6. Nacionalismo. I. Gomes,
Angcla de Castro, 1948-, coord. 11. Faro, Clovis de, 1941-. III. Centro de Pesquisa c Doctuncntação de
Histõria Contemporânea elo nrasiL

CDD 981.0633
CDU 981.083.3
SUMÁRIO

Introdução 1
Angela de Castro Gomes

O governo Kubitschek: a esperança como fator de desenvolvimento 9


Maria Victoria Benevides

Avanços e recuos: a política exterior de JK 23


Gerson Moura

A década de 50 e o Programa de Metas 44


I
Clovis de Faro e Salomão L Quadros da Silva

Crescendo etn meio à incerteza:


a política econômica do governo JK (1956-60) 71
Maria Antonieta P. Leopoldi

Juscelino Kubitschek e a política presidencial 100


Sheldon Maram

A dupla face de Jano: romantismo e populismo 122


Mônica Pimenta Velloso

Utopias de cidade: as capitais do modernismo 144


Helena Bomeny
Introdução

Qual a cor dos anos dourados?


"O descontentamento provocado nos últimos anos da Ve-
lha República determinara na mentalidade do povo brasi·
leiro uma inclinação cuja interpretação psicológica a
tornava facilmente compreensível. O espírito popular so-
fre invariavelmente de uma incapacidade de criar imagi-
nativamente wn futuro melhor que o presente. Assim, nas
épocas de desânimo e descontentamento, o sentimento
público regride ao passado em uma ânsia romântica de
encontrar alívio aos seus infortúnios no ressurgimento de
formas arcaicas de organização social e política que, co-
loridas pela distância se lhe afiguram haver-lhe proporcio-
nado tranqüilidade e bem-estar."
Azevedo Amaral

Os "bons tempos"

A idéia de, em inicias dos anos 90, organizar um livro sobre o Brasil de JK
nasceu de um conjunto de circunstâncias.
A primeira, e talvez a mais significativa de todas, está traduzida na epígrafe
de Azevedo Amaral, pequeno trecho extraído de seu clássico trabalho O Estado
autoritário e a realidade nacional, publicado em 1938 como uma apologia dos
tempos que então se inauguravam: os tempos do Estado Novo. Voltado para o
futuro que então se desenhava, "grande" e "moderno", o autor nos remete à
dinâmica histórica e nela destaca o tema fundamental da nostalgia dos "bons
e velhos tempos".
Ensinam-nos a história, a sociologia e ainda outras ciências sociais que não
só o povo brasileiro, mas todos os povos, em todos os tempos, ao vivenciar
gtoroentos..de <;Xise profunda, p..r.ocuram enç_ontrar no p~o "alívio para seus
infortúniQs", além de esperança e coragem. Esta fantástica viagem ao "paraíso
terrestre" pode tomar a forma de "espaços sonhados" (regiões fabulosas; ilhas
da fortuna) ou de "tempos imaginários" (a idade de ouro; a pureza das origens) .
. Em muitos casos, a distinção entre tempo e espaço não é em absoluto essencial,
havendo uma interseção entre eles que configura um "preciso" momento -
cronológico ou mítico, não importa - da história desse povo.
A questão de saber se essa nostalgia dos "bons tempos" tem fundamentos
"objetivos", ou se não é nada mais do que uma idealização, não elimina nem
minimiza o ponto central da reflexão que se pretende empreender. Trata-se..
sim, de reconhecer a presença e a força deste mito dos "bons tempos" e de se":!
valor ao mesmo tempo explicativo - ele pode fornecer chaves para a can-
preensão do passado e do presente - e mobilizador - ele pode abrir cam 515:
dinamismo o tempo para o futuro. 1
Alê:n cilsso, e fundamental destacar o caráter de construção deste mito, isto
~ 'i'le tambern os "bons tempos" foram inventados e que o mergulho no
passado e sempre um ato de recriação da geração presente. Com esta pers-
pectiva, é possível entender que uma viagem ao paraíso perdido pode ser bem
mais do que a incapacidade... de ru;gjetar ,lliT1 ful!!!:Q_ ~or, como sugere
Azevedo Amaral. Ela também pode ser interpretada como um penoso e
complexo esforço de aprendizado político que, sem deixar de possuir a face
da idealização do passado, fixa-se na dimensão de uma possível avaliação
compreensiva desse mesmo passado que, sob os olhos do presente e do futuro,
emerge em uma dialética de "sonho" e "realidade" impossível de ser desfeita.
Sem dúvida, o povo brasileiro vive hoje, mais uma vez, um momento de
grande dificuldade e profundo desencanto. Aliás, há muito talvez o mundo não
venha experimentando momentos de tão grande perplexidade.
É dentro deste contexto maior, nacional e internacional, que o "lugar" dos
anos 50, em especi a I para nós brasi leitos, pode ser melhor situado. Não é casua I
que de forma tão recorrente estejamos assistindo a manifestações políticas e
culturais de reinvenção deste passado ao mesmo tempo tão próximo e tão
distante. Não é fortuito que a memória coletiva venha consagrando a identifi-
cação deste tempo com a expressão "os anos dourados". Estamos, assim, no
centro de uma construção histórica que se afigura como um mito, à qual se
quer "retornar" em busca do que de melhor o brilho do ouro pode oferecer,
mesmo que com certo risco de cegar.

JK, o sucessor de Vargas

Nestes "anos dourados" há sem dúvida uma grande figura: o presidente


Juscelino Kubitschek. Os "anos dourados" são, portanto, basicamente os anos
do governo JK.
A trajetória da apenas centenária República brasileira, tão cheia de golpes
.e governos de exceção, explica em boa parte o lugar de destaque reservado ao
presidente civil que conseguiu ser eleito, tomar eosse e empossar seu sucessor,
atravessando todo o seu mandato como um líder que soube e pôde absorver e
neutralizar conflitos dentro da legalidade institucional do país. Ou seja, e é
bom assinalar, a presença de conflito,SJ1ão prejudica o brilho do presidente e
do período, mas ao contrário ressalta-o, dimensionando suas qualidades.
Na verdade, cada vez tem ficado mais claro o grau de tensão que marcou o
governo JK, que mesmo antes de ter início foi garantido por um "contragolpe
preventivo" pelo qual o ministro do Exército depôs o então presidente Café
Filho. Mas a presença dos militares não se restringe a este episódio original,
nos dois sentidos da palavra. As forças armadas retomaram~ cena política com
leva11tes, todos controlados pelo mesmo ministro e futuro candidato à presi-
dência da República, o marechal Henrique Teixeira Lott. Conforme a tradição
política do país, pelo menos aquela assentada desde os anos 30, presidente e
ministro do Exército são figuras sine qua non para a manutenção ou destruição
das normas institucionais vigentes. _9óis Monteiro, Eurico Gaspar Dutra,

2
Zenóbio da Costa e Lott são nomes imprescindí.Y.ds àrompree_nsão da história
política deste Brasil _Qe 1930 a 1960.
Mas não apenas os militares tiveram o papel de desencadear conflitos. De
forma inteiramente diversa e com desdobramentos distintos, estudantes e
trabalhadores pressionaram o presidente JK, que contava neste campo com o
auxílio precioso de seu vice-presidente petebista, João Goulart. Neste sentido,
o que se mantém na memória sobre o período é a resistência das instituições
políticas democráticas, ou seja, o funcionamento dos mecanismos eleitorais;
a atuação dos partidos políticos e do Congresso; a presença do Judiciário, e
last but not least, o papel do Executivo. Mesmo que se discuta, como se discute,
o grau de democracia então vigente, a questão da legalidade institucional
permanece como um trunfo na rememoração.
Este trunfo fica porém muitíssimo mais forte porque está associado a um
projeto de crescimento e "modernização" econômica do país, conhecido como
"desenvolvimentismo". Assim, a proposta de que o desenvolvimento econô-
mico caminhasse junto com o desenvolvimento político acabou por associar
Brasil "moderno" a Brasil "democrático". Mais ainda, a idéia de que tudo isso
não se faz sem cultura, ou dito de maneira mais conforme aos anos 50, sem
que as forças do "atraso" sejam suplantadas, qualificou o tipo de esperança
que se mobilizou na época como recurso político.
O sonho, para Juscelino, pode ter começado nos anos 40, quando era prefeito
de Belo Horizonte, enquanto Benedito Valadares era interventor em Minas e
Getúlio Vargas era "chefe" do Estado Novo. Certamente, os momentos de
glória iniciaram-se na priÍneita metade dos anos 50, quando governou Minas
e construiu a Pampulha, e encontraram seu apogeu com a presidência e com
Brasília, já na segunda metade da década. O colapso, por sua vez, começou
em 1964, com a cassação do mandato e a certeza de que o processo de
industrialização iria aprofundar-se sob a égide de governos autoritários. A total
desilusão veio nos anos 70, com a derrota na Academia Brasileira de Letras
(1975), seguida da morte em 1976.
Mais uma vez, como os historiadores conhecem bem, a trajetória de um
personagem político funciona como fio condutor para se repensar a trajetória
de um "tempo", de uma geração. Recentemente, quando do falecimento de
José Guilherme Merquior, Celso Lafer escreveu um ensaio para o Jornal do
Brasil onde caracteriza com finura o que estou pretendendo fixar como o clima
de uma época.

"( ... )em inúmeras ocasiões, José Guilherme e eu conversamos sobre o que
explicava a identidade da nossa (geração). Ponderávamos que, tendo acordado
para a vida das idéias na presidência de Juscelino, haurimos dessa experiência
uma confiança nas inúmeras possibilidades do nosso país. Tínhamos em
mente, também, que havíamos estudado numa época em que era muito viYo o
debate na universidade brasileira e no cenário nacional, e que isso nos tn:L--cc;.
do ponto de vista da abrangência dos interesses. Avaliávamos crue. ::xr--
... ;,..-=,s companheiros de geração, tivemos a oportwúdade de realizar estudos
:5.:: pas-graduação no exterior, e assim adquirir não só uma visão mais ampla
6s coisas como também o rigor e a disciplina intelectual que, regra geral, a
~:riversidade, nos grandes centros, oferece aos que a ela têm acesso. Concluía-
mos, destas conversas, que a nossa geração teve mais oportwúdades intelec-
tuais do que a que nos antecedeu, e não enfrentou, como a que nos sucedeu, a
dura experiência de se formar nos anos plútnbeos do regime militar. "2

Para os intelectuais da geração dos anos 50, para os homens em geral desta
geração, ou mesmo para aqueles que pertencem a gerações anteriores ou
posteriores, a idéia de um tempo com mais oportwúdades e esperanças é bem
visível e não deve ser menosprezada~ A operação que delineia este'"tempo"
destaca-o daquele que vem "antes" e "depois", e elege a figura de Juscelino
como seu símbolo.
Um dos caminhos para se refletir sobre o como e o quando esta operação
ganhou contornos mais precisos pode ser o exame do papel que o próprio
Juscelino desempenhou nessa construção. Os homens públicos são, em geral,
os primeiros a se preocupar e a trabalhar com sua próprl'a imagem, realizando .
investimentos de naturezas diversas, de menos ou mais longo prazo, e recor-
rendo a profissionais especializados e à tecnologia avançada. O herói pode ser
assim um dos primeiros construtores do mito e, como tal, é útil examinar sua
própria visão de si mesmo e de seu tempo.
Em um exercício rápido, vou procurar levantar certas sugestões a partir do
depoimento de Juscelino Kubitschek. Poderia utilizar seu longo e conhecido
livro de memórias, Meu caminho para Brasília (Rio de Janeiro, Bloch, 1975),
mas vou preferir trabalhar com sua entrevista, concedida a Maria Victoria
Benevides em duas etapas (1974 e 1976), e interrompida por seu falecimento.
Os motivos que me levam a esta escolha não se prendem ao fato de a entrevista
trazer revelações distintas do livro de memórias. Na verdade, ela cobre um
período mais curto e repete a mesma narrativa. Minha preferência advém do
tom coloquial, de diálogo, que a entrevista possui, trazendo o depoente para
bem próximo de nós, através da presença e da interferência do entrevistador. 3
O primeiro e mais importante aspecto a ser ressaltado no trabalho de
Juscelino ao construir sua própria imagem é a preocupação e o desejo de
associá-la às tradições democráticas do povo brasileiro desde seus primórdios. 1-;--
Neste contexto, o fato de ser mineiro é fundamental. De Minas Gerais, de suas
cidades do ouro, vem a história de nossa luta pela liberdade, vem Tiradentes.
A narrativa de JK destaca essa herança, reforçada pela trajetória de menino
pobre e órfão de pai, que estuda com dificuldade e esforço com o apoio e
carinho da família. Em suas próprias palavras:"(... ) quando perguntam por que
desenvolvi esse sentimento democrático ... Eu bebi isso no leite, no café, no ar
de Diamantina, nas serenatas de minha terra. "4
De Juscelino a JK um longo aprendizado teria sido feito, mas sempre dentro
cbs "virtudes mineiras" da modéstia, da pa~cia e da habilidade politica.
Frisando seu inicial distanciamento da vida política e marcando a importância
da formação-profissional como médico, Juscelino acaba por tecer sólidos laços
entre uma e outra experiência de vida. A carreira como médico se inicia pelas
mãos do cunhado e amigo Júlio Soares, e é nesta qualidade que ele conhece
Benedito Valadares e toma-se seu próximo. O momento é bem simbólico: era
1932 e Juscelino era capitão-médico das forças legalistas que combatiam os
revoltosos paulistas no front do túnel da Mantiqueira.
Foi no consultório médico que, segundo Juscelino, ele aprendeu a ouvir as
pessoas, a entender seus medos e desejos e a derrubar formalidades, sem perda
de autoridade. Desta fonna, quando convidado para ser chefe de gabinete do
interventor Valadares, sentiu-se como em um consultório, ouvindo os chefes
políticos municipais, filtrando os problemas que deveriam ou não chegar ao
interventor, atendendo, protelando ...
Pela narrativa de JK, fica nítido o quanto ele valorizava esta vivência e o
quanto atribuía a ela a marca de seu estilo político pessoal: agudo psicologi-
camente; tolerante e agradável, mas decidido e inflexível para alcançar os
objetivos políticos definidos como necessários e desejáveis.5
O ingresso na política, ocorrido, como diz JK, "quando a providência me
trouxe ao palco", emerge, ao mesmo tempo, como uma surpresa e uma
demanda de amigos com vínculos farrúliares. O casamento é fato-chave, já que
a casa dos sogros é local de reunião de políticos importantes como Gabriel
Passos e Gustavo Capanema. 6 Uma vez na política, nos anos 30, e no Partido
Social Democrático mineiro, a partir de 1945, a carreira passa a fluir.
Mas a democracia no Brasil tem caminhos caprichosos, e não é fácil
construir uma história a ela associada. A carreira de Juscelino não poderia ser
uma exceção, iniciada que foi sob os auspícios de Benedito Valadares, no plano
estadual, e de Getúlio Vargas, no plano federal.
Neste ponto é impossível não ressaltar a ambigüidade que marca as relações
entre Juscelino e Getúlio Vargas. A proximidade é por demais evidente. JK foi
prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais quando Getúlio estava
no poder, primeiro como ditador, depois como presidente eleito pelo povo. Mas
sobretudo JK foi o sucessor de Vargas. Ele foi o presidente eleito para governar o
país após o suiCÍdio, com tOda a herança política da experiência anterior. Em seu
próprio relato, Juscelino aproxima-se de Vargas, reconhecendo e respeitando seu
talento e grandeza política, mas também procura se distanciar dele, em busca de
um compromisso diferente e mais forte com a democracia.
Afinal, há leituras historiográficas que ressaltam que no período da chamada
democracia populista JK teria sido, por seu estilo, o único Qr~idente não-populis-
~urna vez que Dutra não entra sequer em consideração para configurar as
características do período. Contudo, há outras leituras que, mesmo distinguindo
o estilo pessoal de JK- muito distante do de Jango ou do de Jânio - , susten:.:un
que ele levou ao máximo as virtualidades do populismo. É bom lembrar porém
que, para muitos dos que conviveram com Getúlio, e também para ~
analistas, ele teria sido um líder popular, mas não "populista".
.-\ a.."!lbigüidade destes laços não cessou com a morte de JK. Enterrado nos
b:-aços do povo em pleno regime militar, Juscelino lembrava Vargas, como
1ancredo Neves lembrou Vargas e JK.
É preciso que se reconheça que, em nossa história, são poucos os nomes de
políticos retidos pelo "homem comum", vale dizer, pelo povo. É muito difícil,
portanto, buscar modelos que possam se afigurar como exemplares. Getúlio
Vargas continua a ser, sem a menor dúvida, um deles, e Juscelino também. Um
delicado e complexo conjunto de circunstâncias históricas colaborou nos dois
casos para isso, e ambos os políticos nele tiveram ativo papel, realizando um
grande investimento.

O Brasil de JK

Organizar um livro sobre a segunda metade dos anos 50 em inícios dos anos
90 obedeceu também a razões muito prosaicas. Embora o conjunto de temas
presente neste período encontre-se mencionado ou mais ou menos extensiva-
mente tratado em uma grande série de trabalhos, não são tantos, paradoxal-
mente, os livros que se concentram em uma análise específica dos anos JK.
Além disso, a bibliografia mais especializada está datada dos anos 70, valendo
registrar aqui, apenas como exemplos, os livros de Maria Victoria Benevides,
O governo Kubitschek (1976), e de Mítiam Limoeiro Cardoso, Ideologia do
desenvolvimento (1977). 7
Revisitar os anos JK, com a perspectiva e a motivação dos anos 9J, surgiu
como um empreendimento adequado e proveitoso. O livro é composto por
artigos inteiramente independentes uns dos outros, que procuram traçar um
painel do período, destacando certas problemáticas que o marcaram fortemt;nte
e realizando uma espécie de balanço analítico, que aponta tanto para os
governos anteriores quanto para os posteriores.
O primeiro deles vem assinado por Maria Victoria Benevides, que retoma
sua reflexão, discute críticas que recebeu e atualiza sua visão do "juscelinis-
mo ". Como é a dinâmica da política nacional que se encontra primordialmente
em foco, são vários os atores em cena. Sob os holofotes, o próprio presidente
e os partidos políticos que garantiram o "equilíbrio instável" do governo: PSD
e PTB em aliança, e a UDN em vigilante oposição. Além deles, os militares,
cada vez mais participativos e menos arbitrais, segundo a autora; a burocracia

!
I
do Estado, com destaque para a administração paralela, herdada de Vargas e
não inventada por JK; os empresários e os trabalhadores, reunidos numa única
estratégia de peleguismo; e também a Igreja, rapidamente citada por seu
deslocamento em defesa das reivindicações populares.
O segundo artigo é o de Gerson Moura, que analisa os avanços e recuos da
política exterior de JK, defendendo a tese de que, neste governo, já se
percebiam as mudanças que ocorriam na ordem internacional, não havendo,
contudo, condições políticas de acompanhá-las mais abertamente. Desta for-
ma, nem a política externa independente de Jânio Quadros foi tão abrupta e
inovadora, nem a política de alinhamento do Brasil com os Estados Unidos foi

6
tão simples e automática como a maioria das análises sobre o período JK parece
sugerir. ·
A seguir, dois artigos procuram caracterizar e discutir uma dimensão
estratégica dos anos JK: a da política econômica então adotada, seus desdo-
bramentos e impasses. Clovis de Faro e Salomão L. Quadros da Silva analisam
o Programa de Metas, identificado como uma bem-sucedida e~eriênciª-._d~
_planejamento econômico ~ B~il. O texto nao tem como objetivo realizar
uma análise econôrruca tou{courr, mas sim traçar um quadro informativo sobre
os anos 50, destacando o impacto do plano e avaliando seus resultados, bem
como o do próprio governo.
Já o artigo de Maria Antonieta P. Leopoldi privilegia o processo de tomada
de decisões na área econômica, demonstrando onde e como eram planejadas
e executadas as políticas do governo, e quem interferia mais ou menos
diretamente nesse processo. Alguns exemplos de políticas econômicas -
como a cambial, a de comércio exterior e a industrial - são debatidos, com a
finalidade de destacar as oportunidades, as dificuldades e, por fim, os impasses
do crescimento em meio à incerteza.
O texto de Sheldon Maran traz de volta, e com destaque, à cena política o
presidente JK no momento de sua sucessão. Eleições presidenciais no Brasil
são, por tradição, momentos extremamente delicados e reveladores de nossa
dinâmica política. A sucessão de JK, mesmo tendo sido cumprida conforme
os ritos institucionais, não foi uma exceção, como o autor deixa claro. Traba-
lhando no âmbito das escolhas dos atores políticos, Maran nos esclarece sobre
a situação dos partidos e dos planos de seus principais líderes,
Um outro par de textos fecha o volume. Mônica Pimenta Velloso traça um
amplo panorama da questão cultural nos anos 50. Mais uma vez a ambigüidade
é presença forte, pois o que a autora deil\a claro, ao lado da riqueza e da euforia
culturais, é a dificuldade de se conceberem projetos que integrassem de forma
mais substantiva uma ampla parcela da população brasileira. Os intelectuais, com
suas distintas formações e concepções, são os personagens que povoam o artigo.
Finalmente, o Brasil de JK entra também para a memória nacional com um
emblema da modernidade: a "Nova Cidade", a "Utopia de Lúcio", o sonho
nacional de realização da igualdade. O texto de Helena Bommeny vai ao
encontro dos dois tempos modernistas que tiveram nos mineiros protagonistas
atentos. A estrada que liga Belo Horizonte a Brasília é a que traça a linha da
utopia, mas é também a que denuncia os imprevistos não anunciados na
proposta de igualdade.
De uma forma geral, todos os textos procuram caracterizar o Brasil de JK.
construindo continuidades e descontinuidades com os governos de Getúlio
Vargas, Jânio Quadros e até mesmo outros presidentes. A tenninologia utili-
zada nos próprios títulos é sintomática do sentido estratégico deste peri<Xlo
para a história recente do país: avanços e recuos, dupla face, incerteza ...
D e uma forma também geral, creio que o governo e o presidente JK -saem-
deste lhTo com "bom tamanho". Por isso, mineiramente, socorro-me G.e c:::.
õ t"Y'!'-' g::r me ficou na memória para encerrar esta introdução. Na peça
G-~ Galiki, de Brecht, há wn momento em que Galileu, preso pela
~ção, é visitado por um discípulo atônito ante a possibilidade de ver seu
~ negar suas próprias descobertas. Revoltado e desejoso de ver Galileu
~ mentir, ele o exorta, dizendo algo assim: "Pobre do povo que não tem
~-óis!" Ao que Galileu retruca: "Não, pobre do povo que precisa ter heróis."
Serldo assim, deixo ao leitor a tarefa de escolher qual a cor dos anos dourados.

Rio de Janeiro, agosto de 1991.

Angela de Castro Gomes*

Notas
1
Girardett, Raoul . Mitos e mitologias polfticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
2 Lafer, Celso. A amizade na mesma geração. Jornal do Brasil, 10 mar. 1991, Idéias/En-
saios, p. 7.
3 A entrevista de Juscelino Kubitschek a Maria Victoria Benevides encontra-se deposi-
tada no CPDOC/FGV.
4 Kubitschek, Juscelino. Depoimento. CPDOC/FGV, 1974, p.6.

5 Vale a pena a citação:


''Eu sempre pensava, quando entrei na política, como a medicina era inspiradora dos
meus atos políticos. Por exemplo, quando eu chegava no meu gabinete, eu já presidente
da República, no Palácio do Catete, e chegava uma pessoa - , geralmente, a não ser as
grandes figuras do Brasil, os que conseguiam aproximar-se de mim vinham numa emoção
muito grande. Alguns não podiam nem falar; eram mulheres, homens. Então eu dizia:
'Olhe, meu filho, eu conheço bem toda essa gama de emoções que sentem atualmente as
pessoas que se aproximam de mim, porque também passei pelas mesmas dificuldades,
também procurei homens poderosos para pedir. Sempre encontrei as portas fechadas,
porque os poderosos nunca abriram portas para quem precisa. Eles só abrem para quem
não precisa.'( ... ) Nunca deixei uma pessoa sair desapontada do meu gabinete. À5 vezes,
podia ser impossível atender ao que pediam, mas saíam com a minha palavra carinhosa,
com a minha assistência, com a minha atenção." Kubitschek, Juscelino. Depoimento.
CPDOC/FGV, 1976, p. 23.
6 Sérgio Miceli em seus trabalhos tem recorrentemente chamado a atenção para a
importância das relações familiares e do casamento no processo de ascensão à carreira
política. Ver, por exemplo, Carne e osso da elite política brasileira pós-1930. In: Fausto,
Boris, org. O Brasil republicano. v. 3. São Paulo, Difel, 1981. (História Geral da Civiliza-
ção Brasileira).
7 Além dos livros das duas autoras mencionadas, ambos publicados pela editora Paz e
Terra, são conhecidos os trabalhos de Lafer, Celso. The planning process and the political
system in Brazil: a study on Kubitschek's target plan. Ph.D Thesis. Come11 Univ. , 1970 e
de Barbosa, Francisco de Assis. JK: uma revisão na política brasileira. Rio de Janeiro,
José Olympio, 1960. Recentemente, foi publicado um novo livro: JK: o estadista do
desenvolvimento. Brasília, Ed. Memorial JK e Subsecretaria de Edições Técnicas do
Senado Federal, 1991.

* Pesquisadora do CPDOC e professora adjunta do Departamento de História da UFF.

8
O governo Kubitschek: a esperança
como fator de desenvolvimento

Maria Victoria Benevides*

l Da figura e da atuação de Juscelino Kubitschek terá ficado, para adversários


e admiradores, a imagem de seu espírito otimista e criador, iluminado por
inegável tolerância política. Os saudosistas falariam de um capitalismo "riso-
nho e franco". Nunca houve tal coisa, é claro: Mas não deixa de seduzir o
fascínio do "50 anos em 5" do presidente que ousou duvidar da "eterna vocação
agrícola" do país e que aliou ao desenvolvimento acelerado uma experiência
bem- sucedida de governo democrático. Tão democrático quanto possível nos
limites óbvios de uma democracia de elites, com forte tradição oligárquica,
militarista e mesmo gol pista.
Quinze anos depois da morte do presidente- cujo féretro levou às ruas,
em pleno regime de opressão, uma multidão que chorava, cantava o "Peixe
vivo" e pedia democracia - muito há ainda a se discutir sobre o seu modelo
de desenvolvimento, assim como sobre sua brilhante personalidade política.
Temas polêmicos, sem dúvida - tanto o modelo quanto a persana - mas que
permanecem associados a idéias-forças que povoam, para o bem ou para o
mal, o imaginário e o deb::~te político nacional: a crença no Brasil "país do
futuro", a consolidação da "identidade nacional", o desequilíbrio entre "os dois
brasis", a intervenção do Estado e a "sedução da tutela", o papel dos militares
"salvacionistas" e a conjugação entre liberdades públicas e desenvolvimento
- enfun, as várias forn1as de que se reveste a velha questão, irresolvida, de
atraso versus moderruzação.
Pois foi no governo Kubitschek que se consagrou, definitivamente, o
vocábulo "desenvolvimentismo", como já salientou o escritor Antonio Calla-
do. Antes de JK falava-se em "fomento" e em "fomentar o desenvolvimento";
Juscelino teria sido o inventor da palavra, cuja mística ficou, na história
contemporânea, inarredavelmente vinculada ao seu nome. Até hoje, qualquer
sinal de "modernidade" ou de "espírito realizador" - misturados a um certo
otimismo e às virtudes da conciliação política - costuma ser identificado
como traço de um "juscelinismo" redivivo. Justifica-se, portanto, esta breve
revisão sobre o período e o personagem.

• Professora de Sociologia Política da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo-


USP; membro do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea- CEDEC e da Comissão Justiça
e Paz de São Paulo. É autora de O governo Kubitschek; A UDN e o udeni.smo (ambos na Ed. Paz
e Terra); O governo Jânio Quadros; Violência, povo e polícia, O PTB e o trabalhismo (os três m
àl.. Br.lsiliense) e A cidadania ativa: plebiscito, referendo e iniciativa popuÚlr (Ed. Áticl).

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Minha questão inicial diz respeito ao significado do juscelinismo (se é que
se pode falar em "juscelinismo") para essa juventude que tem, do governo
Kubitschek (1956-61), a imagem esmaecida de um tempo marcado pelo
impulso industrializante e pela mudança da capital para Brasília, no contexto
de relativa liberdade política e culturaL E me pergunto, então, se esse período
conteria certas características que o justificariam, coerentemente, como "is-
mo"' da história politica brasileira. E até que ponto o juscelinismo estaria
vinculado a outros "ismos" famosos, como popuJismo e nacionalismo, OU, em
plano mais pessoal, ao getulismo? Em outros termos, pode-se dizer que o
juscelinismo faz parte do "inconsciente político" nacional?
Creio que vale a pena retomar a indagação básica que motivou minha
pesquisa sobre o governo Kubitschek: como explicar a aparente estabilidade
política do governo, cujo chefe foi o único presidente civil, depois de 1930, a
assumir a presidência da República e a transferi-la ao sucessor no dia marcado
pela Constituição? Pois Kubitschek assumiu o governo em circunstâncias
delicadas; sua posse, e a do vice-presidente João Goulart, foram violentamente
combatidas por setores antigetulistas e por civis ligados à conservadora UDN
- a União Democrática Nacional (o partido de políticos de atuação recente
como José Sarney, Afonso Arinos, Aureliano Chaves, José Aparecido, Antônio
Carlos Magalhães, Sandra Cavalcanti e Amaral Neto, além das origens políti-
cas familiares do atual presidente Collor de Mello).
Empossado a partir do famoso "contragolpe preventivo" do então ministro
da Guerra, general Lott, e assumindo a presidência após dois presidentes
interinos, Juscelino conseguiu manter-se até o fim do mandato. Também é
preciso lembrar que as crises com a renúncia de Jânio Quadros (agosto 61) e
a oposição golpista à investidura do vice-presidente Goulart quase levaram o
país à guerra civil. O govemo de Juscelino encrava-se, pois, num período
extremamente critico, entre o suicídio de Getúlio Vargas (agosto 54) e a
renúncia de Jânio Quadros. No entanto, essa experiência resultou num governo
politicamente estável, apesar de marcado por crises militares no começo e no
fundo período, como os levantes de Jacareacanga e de Aragarças; pelas crises
provocadas por conflitos entre as três annas militares; por uma intensa ativi-
dade sindical e partidária; pela ascensão dos movimentos camponeses, e pela
crescente intervenção da Igreja na área político-social, sobretudo no Nordeste.
Aliás, este último ponto merece uma certa qualificação, pouco lembrada nas
análises políticas do período.
A Igreja Católica inicia, nesta fase, sua participação política mais ativa, só
que, desta vez, do lado das reivindicações dos dominados - numa ruptura
sensível com aquele padrão de intervenção política no estilo da Liga Eleitoral
Católica ou de apoio incondicional às "autoridades". A presença de JK nos
Encontros dos Bispos do Nordeste, em 1956 e em 1959, é significativa.
Juscelino contaria com o apoio da Igreja (lembre-se da aproximação ostensiva
entre JK e Dom Helder Câmara) para seus projetos de desenvolvimento, assim

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como reconheceria o importante papel da Igreja em suas mensagens sobre a
criação da Sudene.
Esse governo, todavia, deixou a marca de estabilidade política exatamente
porque conseguiu "administrar" e superar essas crises. A negociação consistia
no principal recurso do governo para enfrentar as freqüentes greves no eixo
Rio-São Paulo. As lideranças sindicais e os dirigentes patronais geralmente
entravam em acordo (com a intermediação dos petebistas nas Delegacias
Regionais do Trabalho) sem precisar recorrer à repressão policial. As crises
militares, igualmente numerosas, foram todas absorvidas no âmbito da disci-
plina hierárquica. E mesmo aqueles oficiais da Aeronáutica envolvidos nas
rebeliões de Jacareacanga e de Aragarças foram prontamente anistiados -
embora tenham sido identificados com as forças derrotistas e reacionárias, pois
seriam "contra o desenvolvimento". O documentário Os anos JK, de Silvio
Tendler, mostra cenas relativas àqueles levantes onde se vêem - triste ironia
- índios e caboclos arregimentados para, supostamente, "defenderem a
democracia". A narração enfatiza a anistia e a reintegração dos militares
revoltosos. O governo perdoava o primeiro seqüestro de avião e a câmera
registra os "subversivos" desembarcando, livres e sorridentes, abraçados aos
filhos e ovacionados no aeroporto.
Mas será Celso Furtado quem melhor compreende a atitude de Juscelino
nesses momentos de gravíssima perturbação da ordem e de contestação à sua
autoridade como chefe supremo das Forças Armadas. Vejam-se seus comen-
tários, por exemplo, no segundo volume de suas memórias, A fantasia desfeita
(Paz e Terra, 1989): "Mais do que os ensaios de insubordinação de Aragarças
e Jacat~canga, cujo alcance estava limitado por se localizarem na Aeronáu-
tica, a manobra dos oficiais do Exército para firmar pé no Nordeste, região do
gen..:ral Juarez Távora, candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais,
preocupou Kubitscheck. Sem conhecimento efetivo da região ( ... ) se inter-
rogava sobre o que fazer para evitar que a questão nordestina pusesse em risco
a obra de redenção nacional que imaginava estar realizando."
Além das crises militares, deve ser enfatizado que, apesar de contar com
confortável maioria parlamentar (fruto da histórica aliança PSD-PTB), o
governo era alvo constante da virulenta oposição udenista. A UDN - através
sobretudo de sua implacável "Banda de Música" - especializou-se na dením-
cia dos "escândalos" da administração e na obstrução aos projetos do Execu-
tivo. "A UDN sempre me trouxe de canto chorado" - dizia JK cotn ironia
desprovida de ressentimentos. "É uma expressão lá de Minas, quer dizer
sempre na mira para atacar, sempre perseguindo, uma perseguição medonha"
(entrevista à autora). Isso porque não há dúvidas de que Juscelino era, para
amigos ou inimigos, apresentado e identificado como "herdeiro" de Getúlio.
O que não foi simples. Embora encarnasse, em sua trajetória política, o estilo
do pessedismo mineiro (o poderoso PSD que, com honrosas exceções como
Tancredo Neves, afastara-se de Getúlio no final de seu governo), estava c:.aro
para JK que apenas uma sólida bandeira trabalhista-getulista congraçaria c

H
apoio popular após o trauma do suicídio. Foi por isso, aliás, que Juscelino
insistiu na aliança eleitoral com o PTB e no nome de João Goulart, apesar de
saber que enfrentaria a imediata oposição udenista e militar: "Eu sabia que
uma aliança com o PTB era imprescindível; somente uma aliança muito forte
poderia enfrentar a oposição e sair vitoriosa. E somente com um candidato que
conseguisse a reconciliação entre o voto rural do PSD e o voto urbano do
PTB ... : o nome de Goulart era o que reunia maiores possibilidades" (JK,
entrevista à autora, 1.4.7 4). Assim, Juscelino e J ango, personificando a herança
getulista, consagraram o "ponto ótimo" da aliança PSD-PTB, solidamente
reinstalada no poder. ·
Creio que, mais do que estável, esse período representaria um "equilíbrio
instável", graças aos "mecanismos de compensações" entre as variáveis que,
no meu livro, assinalei: a cooptação dos militares; a forte aliança PSD-PTB,
indispensável no Congresso em virtude das disputas orçamentárias; o de-
senvolvimento do Programa de Metas e a "administração paralela", ou seja,
uma "administração de notáveis", um módulo de eficiência, e, como o nome
o indica, paralelo à administração formal que devia ser mantida. Nesse sentido,
e sob a égide dos poderes concentrados nas mãos do presidente da República,
o Executivo conseguia implementar uma política inovadora sem destruir o
clientelismo já tradicional na administração brasileira. Deu certo. Pois essa
"administração paralela" - ampliada e dinamizada a partir de breve ensaio
no segundo governo Vargas - era uma forma de evitar o imobilismo do
sistema sem contestá-lo,. uma vez que os novos órgãos funcionavam como
centros de assessoria e execução, enquanto os antigos continuavam a corres-
ponder aos interesses das clientelas políticas, sobretudo regionais (Francisco
de Assis Barbosa considera que essa tática de Kubitschek antecipava, de certa
forma, o que faria o presidente Kennedy, na linha da política iniciada nos
tempos de Roosevelt, com o New Deal).
Em breve resumo sobre o governo Kubitschek, considero que se poderia
caracterizar o "juscelinismo" por uma política que, nas palavras de Celso
Lafer, procurou a conciliação entre o velho e o novo, entre a elite e as massas.
Esse "ismo" também se identifica com um novo tipo de nacionalismo que se
distanciava do nacionalismo getulista pela ênfase concedida ao capital es-
trangeiro, cujo ingresso privilegiado constituiria o principal motivo da crítica
das esquerdas ao governo. Esse nacionalismo de certa forma confundia-se com
desenvolvimentismo em termos de mobilização de recursos e de apoio e
também no nível ideológico, graças ao grupo dos intelectuais articulados em
tomo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).

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tenção da "paz e tranqüilidade" no campo; a criação de empregos e a mobili-
zação do voto urbano, e o controle sobre as reivindicações sindicais, princi-
palmente através do vice João Goulart, que dominava o Ministério do Traba-
lho. Para a classe empresarial o Programa de Metas tinha evidentes atrativos.
O pre;idente enfatizava incentivos, e não ordens ou proibições. Isso significa-
va estímÚlos à inversão privada, legislação favorável à obtenção de financia-
mentos externos, créditos a longQ.._ptazo, baixa taxa de jy,ros e reserva de
mercado interno para as produ~~ substitutivas de importações (lembre-se o
êXJto aãindústria automobilísti~esse ponto, vale a pena lembrar a obser-
- vaçaõdeRoberto Gusmão: "Nenhum presidente da Confederação Nacional
das Indústrias ou de confederações estaduais - como a FIESP- fez oposição
ao governo JK. Quando se fala pejorativamente em peleguismo da liderança
sindical operária é preciso lembrar que, do outro lado, havia também o
peleguismo dourado das classes produtoras: tão dependentes do governo
quanto os pelegos sindicais" (entrevista à autora, 16.5.75).
A preocupação com o "discurso" juscelinista não pode, é claro, ser desvin-
culada da conjuntura política (daí por que considero do maior interesse
entender a conjugação entre um estudo de ciência política e uma perspectiva
de historiador político). Entendo por conjuntura política aquele nível onde se
defrontam e se integram evoluções estruturais de longa e média duração. E
também acontecimentos que podem destoar, quer por serem relativamente
imprevisíveis, quer por ocorrerem em contextos diferentes. Nesse sentido,
entendo que, numa análise sobre o governo Kubitschek, é possível apontar
tendências estruturais que já vinham desde os anos 30, como o lento cresci-
mento da participação substantiva - e não apenas arbitral - dos militares
na política. E, pelo lado do imprevisível, avulta como fenômeno singular a
personalidade de Juscelino Kubitschek.
Se é verdade que não se avalizam análises históricas em termos meramente
personalizantes, é igualmente verdade que são exatamente nessas coJ?junhJ.Tas
e encmzillzadas que o óomem faz a Hístóría. No caso específico de Juscelino,
ele disporia daquilo que o cientista político David Easton denomina "talento
das autoridades", ou seja, sensibilidade para captar o estilo de política possível
no momento de demandas conflitantes. Mais do que a encarnação da velha
"conciliação" - recorrente na história de nossas elites - o talento de JK
consistia na provocação contagiante de um "estado de espírito" de esperança
e otimismo. Afonso Arinos de Mello Franco identifica este "estado de es-
pírito", por exemplo, ao evocar a construção da nova capital: "Brasília foi a
exaltação da esperança nacional, do sentimento de grandeza, do aspecto
sentimental da esperança de cada um" (entrevista à autora). Além disso, avesso
a qualquer radicalismo, JK repudiava o refrão da ''infiltração comunista", tão
ao gosto de carcomidos, civis e militares, aquele velho temor ironizado por
~fário de Andrade, na década de 40, como a "assombração medonha". Medo-
nha é a miséria, que gera a revolta, dizia Juscelino. E, assim, até mesmo o
Partido Comunista, apesar de ainda na ilegalidade, desfrutava de wna ce:-..a
liberdade de ação - dispunha de ativa imprensa própria, vendida em bancas,
e lideres importantes, como Luiz Carlos Prestes, apareciam em conúcios
(Prestes, aliás, apoiou JK publicamente, por ocasião do rompimento com o
Fundo Monetário Internacional e trabalhou ostensivamente pela candidatura
do marechal Lott à sucessão presidencial). A imprensa oposicionista, de
esquerda ou de direita (como o tablóide sensacionalista Maquis, ligado à UDN
carioca mais radical e golpista), gozava de ampla circulação, praticamente sem
atrito com a censura.
A historiadora Maria Yedda Linhares escreveu, na ocasião do lançamento
de meu livro, as críticas mais contundentes a este tipo de argumentação. "O
seu modelo, assim como um navio que é lançado ao mar, não flutua. Isto porque
o concreto - ou seja, a história - sobre a qual ele foi construído parece não
ter levado em conta outros fatores, ou outras variáveis, igualmente fundamen-
tais", como "a relação dialética entre desenvolvimento acelerado de um país
subdesenvolvido, periférico e dependente e a recuperação do capitalismo no
plano internacional da guerra fria" ( ... ), "o imperialismo" (... ) e "as classes
sociais, o que elas são e representam no jogo político" (Opinião, 17 set. 1976).
Creio que, com outros termos e outra abordagem teórica, aproximo tais
considerações quando discuto o esgotamento do modelo - inclusive pelos
motivos salientados por Maria Yedda - tanto do ponto de vista da participação
dos militares (sensíveis ao "imperialismo", à "guerra fria" e à "luta de classes")
quanto do ponto de vista da política econômica.
É assim que, para a compreensão do período, eu incluiria não apenas aquelas
evoluções já presentes na década de 30, mas também as brechas franqueadas
ao capitalismo periférico, o que permitiu a autonomia das macrodecisões de
investimento e os desdobramentos estruturais do capitalismo central na década
de 50. Tais considerações, embora brevíssimas, são necessárias porque a
política econômica juscelinista acabou tomando-se o eixo para a análise,
positiva ou negativa, desse importante período de nossa experiência democrá-
tico-populista que vai de 1946 a 1964.
E por que populismo? Até que ponto podemos associar populismo a
juscelinismo e considerar Juscelino Kubitschek um líder populista? A meu ver,
foi o presidente que levou ao máximo as virtualidades do período populista.
Mas, integrado numa época onde predominou o populismo, não exibia as
características "tradicionais" do populista, como, por exemplo, João Goulart,
pelo apelo do trabalhismo, Adernar de Barros, no sentido paternalista, com
aspectos reacionários, ou ainda Jânio Quadros, com sua versão de populismo
moralista-autoritário.
E ainda sobre o "discurso juscelinista" e a possível aproximação com o
populismo, é importante lembrar que nele não há uma caraterística essencial
ao pensamento reacionário, no sentido de que este distingue-se, sob qualquer
vertente política ou ideológica, pela vontade explícita de volta à situação
anterior, de exaltação do passado. O futuro é sempre a referência maior de JK
e seu discurso.

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Se não era "tradicionalmente" populista, poderíamos falar de "ideologia"
do juscelinismo?
Nas análises sobre "ideologias", interessa-me especialmente o confronto
das ambigüidades e das contradições, partes integrantes de qualquer discurso
político - como, aliás, de qualquer linguagem simbólica. Interessa-me o que
há de lógico nas ambigüidades, já que tais ambigüidades possuem uma "lógica
própria", muito mais importante do que a redução a oposições contraditórias
e muitas vezes antagônicas. Portanto, a lógica dessas ambigüidades e contra-
dições constitui o perfil ideológico, tanto de um partido quanto de um governo,
e identifica determinado projeto político (nesse ponto, lembro o estudo verda-
deiramente clássico do saudoso mestre Victor Nunes Leal que, em Coronelis-
mo, enxada e voto, desenvolve a idéia de que o coronelismo não significa a
redução das polaridades entre o poder público e o poder privado, mas sensíveis
complementaridades entre o público e o privado).
A meu ver, a ambigüidade mais visível nos discursos j uscelinistas refere-se,
de início, à conjugação entre o nacionalismo da herança varguista e um novo
modelo de desenvolvimento amarrado ao capital estrangeiro. Tais contra-
dições compõem o perfil ideológico do governo e se inserem no projeto
político que, no caso do juscelinismo, era o projeto de desenvolvimento
econômico, aqui entendido não como crescimento "tradicional", mas cresci-
mento com mudança estrutural ,_profundamente _dependente de p_klnos es-
-. pecfficos de execução num prazo detenninado. No juscelinismo está clara a
proposta para o futuro, em termos ideológicos da "construção do novo" -
país, Estado e nação - e uma proposta prática de mudança na administração
pública. É assim que o populismo toma outro sentido com Juscelino, além de
ser a expressão de uma aliança vitoriosa e virtualmente contraditória entre um
partido conservador de base rural, como o PSD, e uma agremiação de base
urbana, como o PTB.
Isso não significa dizer que um governo proveniente do PSD não dispusesse
do voto urbano e do apoio das camadas emergentes. E aqui voltamos para outro
aspecto daquele populismo. Pois um ponto da maior relevância deve ser
enfatizado: Juscelino foi eleito por apenas 36% dos votos válidos (contra os
49% de Getúlio em 1950 e os 55% de Dutra em 1945) e sabia que teria que
enfrentar o "complexo de minoria". Assim, não somente apostou com sucesso
nas composições partidárias e outros compromissos assumidos na campanha
(no velho sistema do clientelismo) como, sobretudo, desenvolveu uma com-
preensão mais "moderna" sobre o populismo. O que significava dimensionar
pragmaticamente a ampliação da participação política através do voto, conse-
qüência da Carta de 46 e das novas franquias eleitorais. Em outros termos, JK
compreendeu que, se o voto era necessário para conferir legitimidade ao
sistema e ao seu governo (apesar de todas as distorções e insuficiências da
representação via partidos, atuantes porém precários do ponto de vista da
representatividade democrática), a contrápartida do governante, para canalizar
o apoio dos grupos e classes emergentes, era justamente a maciça criação de
dllf'egos. A euforia desenvolvimentista e, especificamente, a fundação de
B..-asilia e a implantação da indústria automobilística, no âmbito do Programa
de Metas, converteram-se na resposta de um novo e "moderno" populismo.
É nesse sentido que entendo a argumentação de um arguto analista do
fenômeno do populismo, como Francisco Weffort, que chama a atenção
justamente para os aspectos contraditórios do fenômeno: "O populismo não
era apenas esse fenômeno de liderança, de comando político, de organização
política que tentei descrever. (... )era também um fenômeno de Estado, não
marginal ao processo político, era um dos travejamentos da estrutura de poder
do Brasil, embora não fosse o único(... ) e os populistas eram grandes políticos
nacionais (...)Na verdade, não há, no populismo, representação alguma na
qual o representado possa fazer a sua voz ser ouvida - mas o populismo é
contraditório no sentido de ser democrático, quando alguém no poder reco-
nhece a emergência de certas reivindicações que vêm vindo pela base e busca,
dentro do possível, atendê-las: ao fazer isso, introduz novos atores no cenário
político" (1976, p. 176). E continua: "O período de meados dos anos 50 foi de
crise geral do populismo latino-americano, e o populismo brasileiro, em que
pesem suas particularidades, não é uma exceção à regra. As quedas de Arbens
na Guatemala (1953) e de Perón na Argentina (1955), o curto ~ass~o
_ período de Rojas Pinilla na Colômbia (IDT- [957), sem detxarC!e mencionar
o trágico destino..9ue ~taria reservado à revolução boliviãnã de-1953- todos
esses acontecimentos indicam as maneiras muitodiversas pelas quais os
sistemas políticos latino-americanos recebiam (e respondiam) os primeiros
impactos da nova linha de expansão do sistema capitalista internacional( ... ). o
que transformou o caso brasileiro num caso à parte foram as peculiaridades da
crise de hegemonia que caracteriza a história do país desde os anos 30, e, em
particular, o lugar estratégico que estas circunstâncias de crise deveriam
reservar para o aparelho de Estado e, em especial, para a figura de Getúlio
Vargas" (1979, p.5).

~ Resumindo, o populismo juscelinista pode ser visto como um tipo de


conciliação, ao mesmo tempo modernizante e conservadora, e como um
"novo" nacionalismo voltado para as experiências de um capitalismo perifé-
rico e dependente do capital estrangeiro. Sobre esse ponto, aliás, é importante
destacar a releitura, inovadora e polêmica, feita por Fiori e Lessa, sobre o
segundo governo Vargas. Ao negar as interpretações mais correntes sobre o
"radicalismo nacionalista e popular" do projeto de Getúlio, sobretudo a partir
da "crise de 1953", os autores enfatizam que não houve rupturas ou desconti-
nuidades maiores entre a proposta de desenvolvimento de Vargas e a de JK.
"A vitória da industrialização pesada e a euforia da segunda metade dos anos
cinqüenta não se deveu, pois, à derrota de um suposto projeto nacionalista e
popular de desenvolvimento. O Plano de Metas não foi mais nem menos
'pró-imperialista'do que o plano implícito no conjunto das mensagens e
iniciativas de Vargas" (1983, p. 31).

16
No entanto, creio ainda que, mesmo no plano mais simples da "retórica" e
da "imagem" em relação ao nacionalismo da herança varguista, o de-
senvolvimentismo possuía vantagens que o tomavam mais atraente, mais
"pragmático", como recurso dos mais eficientes, tanto para a mobilização
quanto para a legitimação . .. Para a hurguesia-industrial-tmi- ex.pansão,.. ao
contrário do getulist""llo, o_desenvolvi1ne11tismo e'{itava a ênfase na intervenção
estatal na economia. Para os trabalhadores, o nacionalismo podia ser uma
abstraçao, uma palavra de ordem, uma bandeira, um ideal, e o dé-
senvolvimentismo era concreto, porque dele emanavam frutos imediatos,
como o já citado atendimento às demandas específicas por empregos e serviços
básicos. Já P.ara os militares, o-.desenvolvitllentismo_tepresentava o que mais
tarde seria identificado como a ideglogia do "Brasil grande potência", pela
multiphcação de recursos para_aQa_relhaiT)ento bélico, comunicação e trans-
.eortes. Para a esquerda em geral (onde o debate ideológico se tornou cada vez
mais débil entre o nacionalismo, digamos, autêntico, e o nacionalismo com
tinturas entreguistas), a questão estava esmaecida pela política conciliadora do
Partido Comunista. O PC acreditava na "revolução burguesa" e via a entrada
do capital estrangeiro como um mal muito menor do que a oposição no "estilo
udenista", anti popular, anti progressista e antigetulista.
No govern~ Kubitschek, no entanto, a manutenção da ordem foi tão impor-
tante quanto a defesa das liberdades políticas. Relembro a famosa frase: "Meu
governo"- dizia Juscelino - " se assent'!_IE!_m.!_riE_é." Es~ tri~ ~ra formado _
pelo Ministério da Guerra, chefiado pelo marechal Lott, pelo comjlndo do I
Exércffo,exerêíaõperogetierãl- Odilio ·ne 1_ys, _e pela chefia d~.J:ol!~
- D1sitlto e era :L esta ultima bastante importante, numa época em que o
governo não dispunha de centrais de informação militares, como hoje. Aliás,
aquela frase seria depois ironizada pelo ex-ministro Afonso Arinos, pata quem
o tripé de Juscelino "tinha uma perna só: a bota do general Lott". Mas é bem
verdade que, ao contrário de Getúlio, que tev,' três ministros da Guerra, e de
Jango, com quatroLJuscelino manteve um único ministro na chefia das or s
Armadas. O general Lott tomou-se o" 1a or o regime", controlando qualquer
envolvimento eartidário dos militares e impedindo que o Exército concretizas-
- se a fatalidade latino-ameri~ana de se tomar_" o g~nde eartido fardado". A~sim
é que o Clube Militar permanece, pela primeira vez, à margem das cons-
pirações e do enredamento com a pregação golpista das etemas "vivandeiras
dos quartéis". Pois embora se mantivesse viva a divisão entre o grupo do li
de novembro e o do 24 de agosto, as Forças Armadas, no seu conjunto, tinham
interesse em apoiar a política econômica do governo. O Programa de Metas
não prejudicava o atendimento às emergências de equipamentos e aumentos
salariais; o orçamento dos militares crescia junto com o PNB. E mantinham-se
inalterados os interesses "não-negociáveis" dos militares, cotno a Petrobrás e
o controle sobre os minerais energéticos.
~ão há negar, no entanto~ s~ o discurso juscelinista idemificava a ordem
~lica como r~uisito ~ara o desenvolvimento, enfatizava também a suboc-


c#nação das exigências de "ordem" à manutensão do§_direitos civis, o respeito
ã Consti~ção. Os militares eram, sem dúvida, essencialmente importantes
para a estabilidade do governo sem, contudo1 abalar de maneira irreve~ível
os alicerces dopõderclVil. Tõtharam-se co-resgonsáveis pelo_programa de
desenvolvimento- e dele muito se beneficiaram- mas não de forma isolada,
e srm ern con,pmto com.as demais.forças políticas que atuam nas democ_racias
-por mais incipientes gue sejam --:_,__cotllo as lideral!Ças partidárias, os setores
da-imp~e aqueles emJ?..resários que participavam dos Grupos de Trabalho
e dos Grupos Executivos criados especialmente para implementar o Programa
de Metas.
Porlãrifo, a cooptação dos militares, que gradativamente foram assumindo
posições de mando nos postos executivos (reforçando mna tendência já visível
nos governos anteriores) também avulta como característica do período. Tais
virtualidades tiveram seu ponto máximo no governo Kubitschek, e por esse
ângulo é que entendo classificá-lo como "apogeu do populismo". No entanto,
por se tratarem de virtualidades típicas de uma determinada conjuntura,
esgotaram suas possibilidades no final do governo.
Essa cooptação foi decisiva no período 1956-61 : em meu livro O governo
Kubitschek procedo a um levantamento dos oficiais militares que detiveram
cargos executivos na administração pública e nos setores mais importantes da
economia nacional. Contudo, essa participação cresce e muda sensivelmente
quando o legalismo militar começa a alterar-se- por influências externas, em
face dos rumos socializantes da revolução cubana, mas também pela eferves-
cência política interna. O que antes significava mn legalismo constitucional-
militar, de respeito à Constituição e subordinação à lei, passa a ser um
legalismo condicionado a uma postura basicamente anticomunista e que
considerava "subversiva.. toda e qualquer manifestação popular, na cidade e
no campo, sendo que estas últimas se tornaram substancialmente mais agudas
no final do governo.
Em sua análise sobre o período, Hélio Jaguaribe lembra "a política de
adiamentos estratégicos" do governo JK, para impedir o confronto direto com
as forças opositoras, e que consistia em jogar para a frente os problemas que
resultariam nas crises de 61-64. Nesse sentido, encerro estas notas sustentando
que o sistema politico era estável no jogo das forças políticas, porém instável
do ponto de vista institucional. A extrema improvisação institucional do
governo Kubitschek tornou-se responsável pela instabilidade futura. Essa
improvisação que marcou o governo e teve seu ponto culminante na "adminis-
tração paralela" - apontava, por um lado, a fragilidade institucional, já
crônica desde a década de 30, e, por outro, o esgotamento daquelas virtuali-
dades que marcaram o apogeu do populismo no período.
Nesses termos, aquelas próprias variáveis que garantiam o apogeu foram
também responsáveis pelo declínio do sistema. O Programa de Metas, o apoio
da aliança PSD-PTB, a mobilização pelo desenvolvimento e a cooptação dos
militares - variáveis básicas para se entender o êxito do governo Kubitschek,

18
- , esgotaram sua eficácia no período. Na medida em que mudaram as zonas
de incerteza na economia, pelo próprio crescimento econômico (incerteza
situada nas propostas de financiamento externo), a "administração paralela"
perdeu sua eficácia, o recurso à inflação e ao capital estrangeiro começou a
declinar, não apenas em termos pragmáticos, como em termos da legitimação
de um novo nacionalismo. E embora se tratasse de uma inflação razoavelmente
baixa, comparada a niveis posteriores, ela se converteria no principal eixo dos
ataques ao governo. E facilitou, sobremaneira, a ascensão de Jânio Quadros,
que se apresentava com a autoridade de quem poria "ordem no caos".
O apoio conjtmto do PSD-PTB também foi declinando pelo esfacelamento
dessa aliança; o crescimento do PTB (o partido que mais cresceu no período)
começou a ameaçar a posição hegemônica do PSD, que se aproxima de seu
tradicional adversário- a UDN.
_O~róprios frutos do crescimento econômico mudaram o perfil da econo-
mia nacional, em termos daSforças políticas conflitantes e no quadro das
relações írltei-nacionãis. Paradoxalmente, na medid a em que o de-
senvolvimento mobilizava camadas sociais cada vez mais reivindicativas -
porém sem condições de serem absorvidas institucionalmente pelo sistema -
contribuía para o declínio das virtualidades dos "anos dourados" que signifi-
caram, com todas as contradições e ambigüidades, a experiência mais brilhante
de nossa democracia liberal-burguesa. Num_Q_aís como o Brasil, marcado por
desigualdades sociais tão absurdas e desequilíbrios econômicos crescentes,
essa democracia·- sempre para "os de cima"- pode "dar certo", mas apenas
durante um certo tempo.
Enfun, o esgotamento das virtualidades do modelo desenvolvimentista
revela seus aspectos mais discutíveis: asconseqüências, a longo prazo, da
entrada em massa do capital estrangeiro; a descapitalização do meio rural, com
os efelfOstliUIIiplicadores do inchaço urbano, des~mprego e subemprego; a
inflação e o crescimento da dívida_externa, com o dese.quilibrio do ba lanço de
pag~s etc. Passada a euforia, o prenúncio da ctise.exigia uma política de
estabilização (tentada, sem sucesso, no govemo Kubitschek, por iniciativa do
ministrOLucas Lopes) e de ausleridade. O otimismo jamais igualável da
democracia juscgínista seria substituído pela catTãilCa autoritária, moralista e
vingativa do janismo. A vitória de Jânio Quadros em 1960 seria a maior derrota
de JK que,ale'1Tíãe não fazer seu sucessor, não lograra consolidar, no empre-
sariado que tanto o apoiara, a crença duradoura nas virtudes da democracia
para a construção de um capitalismo mais contemporâneo do mundo civiliza-
do. (Aliás, uma questão incômoda permanece: em nome de que a burguesia
acabou aceitando, em 1964, a substituição de um Estado liberal-burguês por
um Estado militar e tecnocrático?)

Francisco de Assis Barbosa enfatiza o compromisso radical de Juscelino


~om a legalidade democrática. "Foi um ponto de honra de seu governo; resistiu
as rentações de continufsmo, possível através de uma reforma constitue~

l9
qne lhe pennitiria a reeleição. Seu desejo era o de despertar o gigante
adormecido, como dizia sempre, mas sem quebra das normas constitucionais.
Sua obsessão: passar o governo ao seu sucessor, eleito pelo povo, garantir a
continuidade e a normalidade democrática. E isso ele conseguiu. Deu conta
do recado. Com audácia, energia e confiança, como disse André Malraux"
(entrevista à autora) .
..Juscelino foi a prova personificada de que o regime democrático é viável
(...) Sua vocação de tolerância, sua capacidade de compreensão, sua tenaci-
dade, sua jovial confiança no poder da ação fizeram dele um criador de
otimismo, um desbravador de caminhos. Foi isto que o povo identificou nele.
E por isso, tão grande parte do povo se identificou com ele" ( ltéja, 25 ago.l976,
p. 8). Tais palavras não pertencem a um fiel admirador e correligionário -
mas ao mais ferrenho adversário que JK e seu governo tiveram que enfrentar:
Carlos Lacerda. E não se trata de um necrológio "il moda cordial" brasileira
(pois Lacerda não perdoava inimigos nem mesmo mortos), mas o reco-
nhecimento de que, mais do que o lugar-comum da "tolerância e da simpatia",
percebia no governante a marca de um carisma para a formação de um ethos
positivo e criador.
Em 1990, comentando com agudeza e pungência a torpeza da campanha
presidencial vitoriosa - que se valera da fraude, das negociatas, da mentira,
da manipulação da miséria e do cinismo do "guerra é guerra" - a escritora
Marilene Felinto confessava o sentimento de vergonha de ser brasileira e
resumia, numa frase, o desamparo angustiado de tantos jovens de hoje: "tenho
trinta anos na cara e nenhum ano de esperança pela frente" (Folha de S. Paulo,
p. 3, "A coisa errada"). Esse desencanto, esse brutal complexo de inferioridade
de "ser brasileiro" (e as filas de espera por mais de um ano no consulado para
se obter a cidadania italiana? E a onda imigratória de jovens na ilusão de fugir
para as luzes do "primeiro mundo"?) é, mais do que tudo, a desgraça de uma
nação. Nação que se identifica na comunidade cultural e política, mas só se
mantém, só se consolida "como nação" se houver crença no futuro. Pois foi
justamente essa crença no futuro, essa esperança nos destinos da nação que
fizeram de Juscelino um presidente singular na nossa história. Singular porque
não encontramos paralelo em nenhum outro. De ~ficou o carisma do
"pai dos pobres", fortalecido pelo radicalismo do sangue derramado,.más ele
não incutiu esperança no povo, que nele venerava o protetor austero e insubs-
tituível. O presidente Jânio Qu~dros também não, pois falava muito mais em
"vigiar e punir" do que em criar e desenvolver; e sentimentos nacionais de
delação e vingança são, evidentemente, incompatíveis com otimismo e es-
perança. E João Goulart, marcado pelo fardo de ser o novo e contraditório
"herdeiro de Getúlio", não conseguiu enfrentar e superar a devastadora campa-
nha de propaganda do terror: a ameaça do comunismo "ateu e solerte". O que
foi decisivo para incutir em grande parte da opinião pública o medo e· o ódio
ao "inimigo interno" - e nesse clima de guerra civil ideológica não é possível
florescer qualquer tipo de sentimento nacional positivo.

20
-
E nosso primeiro presidente civil depois do regime militar, José Sarney,
apesar de comprazer-se com uma auto-imagem de "generosidade e espírito
conciliador à moda de Juscelino", precipitou a desesperança a niveis insus-
peitados após o efêmero "Plano Cruzado". (É razoável supor que Tancredo
Neves, como o candidato do consenso das "diretas indiretas", lograsse alcançar
a marca da esperança - mas só houve tempo para a manifestação popular de
"orfandade". Talvez tenha sido, no brevíssimo espaço da ascensão, doença e
morte, um novo cavaleiro da esperança.) Mas Fernando Collor, em apenas um
ano de governo, conseguiu reverter completamente as expectativas de metade
dos eleitores que acreditaram nas promessas e nas possibilidades de realização
de quem também se apresentava como um "novo Juscelino"- na determina-
ção e na radicalidade de suas propostas de "modernização". Deu no que deu.
Pesquisas da Standard, Ogilvy & Mather revelam que 74% da classe média
brasileira estão pessimistas (Folha de S. Paulo, p.2, 21 jul. 1991), e reportagem
especial de um semanário descreve o que chama de verdadeiro êxodo dos
desesperançados, identificando-o como uma nova "diáspora" (Veja, 32,ago.
1991).

É claro que não podemos perder o senso crítico em relação à superficiali-


dade e ao lado ingênuo e ufãillsta daquela retóncaOaépoca - "o país do
futuro'-:-Mas não resta dúvida de que JK, com sua personalidade na qual
Afonso Mt:J.os percebia "imaginação, entusiasmo e fé de um visionário do
real" - conseguiu ~r, por um certo tempo, o necessário "equilíbrio
ESicológicÕ" da-nação. Essa é, a meu ver, a marca inconfundível de um
estadista. Consciente ou inconscientemente --=eesiOu convencida de que não
se tratava de uma política deliberada, mas de algo intrínseco à personalidade,
do "talento da autoridade"- Juscelino transmitiu a esperança, obrigação de
todo homem público. Pois, sem esperança, como será possível construir, criar,
participar, acreditar em seu próprio país? Sem esperança no futuro estaremos
sempre, ressentidos ou aparvalhados, ''estrangeiros em nossa terra" -ou, em
analogia com o que constatava Sérgio Buarque de Holanda, ameaçados pelo
"demônio pérfido e pretensioso", aquele que nos torna "comparsas desatentos
do mundo em que habitamos".

Talvez seja nesse sentido que podemos compreender melhor com~.!~


no répudiava, com_veemência- e até mesmo com uma certa repugnância
pelos derrotistas e acomodados, que se comportavam como na imagem dos
"caranguejos" - as cassandras da fatalidade, ~xora.bili.dade..do_subde­
senvolvimento num país como o Brasil. Em seu discurso de despedida é
enfático: "Não ~echo os olhos à realidade. Conheço e reconheço que é um
trabalho imenso o que desafia os nossos administradores e homens públicos.
Sei que o pauperismo continua a afligir-nos, a danificar-nos. Sei que não foram
extintas as fontes do sofrimento e da miséria. Mas, ao mesmo tempo em que
me dou_conta disso, dou-me conta, também, de que já não aceitamos um
destino negativo."
O presidente Juscelino foi, sem dúvida, um grande político nos moldes do
que já se convencionou denominar "modernização conservadora". Mas sacu-
diu o pais do marasmo "caranguejeira" e conseguiu incutir, no brasileiro, algo
mais do que o fugaz e alienante sentimento da "pátria em chuteiras". Durou
pouco e trouxe algumas conseqüências funestas - sobretudo no plano da
credibilidade institucional. Se vivo fosse, estaríamos em campos diferentes;
mas tenho certeza de que Juscelino Kubitschek teria com o meu partido - o
Partido dos Trabalhadores - um ·diálogo mais respeitoso e democrático do
que muitos dos chamados "liberais" da já velha "Nova República" e deste
triste, apagado é vil "Brasil novo".

Referências bibliográficas

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senvolvimento e estabilidade política. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1979.
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brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1988 (e entrevista à autora).
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para a história do período 1945- 1964. Revista de Cultura Contemporânea,
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LESSA, Carlos & FlORI, José Luis. Relendo a política econômica: as falácias
do nacionalismo popular do segundo governo Vargas. Instituto de Economia
Industrial, UFRJ, out. 1983.

22
Avanços e recuos:
a política exterior de JK
Gerson Moura*

O governo de Juscelino Kubitschek (1956-61) situa-se em plena vigência do


que se convencionou chamar de "guerra fria.. entre as duas superpotências.
Ancorados em supostos ideológicos aparentemente irreconciliáveis, EUA e
URSS constituíam então dois poderes que se confrontavam em termos politi-
co-estratégicos e ideológicos e se afmnavam como centro e liderança de dois
blocos antagônicos que porfiavam pela adesão e lealdade do restante da
humanidade. De fato, são notáveis na década de 50 a guerra de propaganda, a
corrida armamentista, assim como as doutrinas estratégicas que tomavam
próxima a possibilidade de um conflito nuclear de caráter apocaliptico -tudo
procurando reduzir a complexidade do sistema internacional a uma ordem
bipolar simples, à qual deveriam amoldar-se os demais estados nacionais.
No entanto, na segunda metade dos anos 50, nem os blocos que se antago-
nizavam eram perfeitamente coesos no seu interior e nem o restante da
humanidade se dispunha a aderir completamente à liderança das superpotên-
cias. Esses elementos perturbadores da ordem bipolar, embora não fossem
suficientes para demolir os alicerces da guerra fria, constituíam contudo
..sinais dos tempos" para estadistas mais atentos e que buscavam uma adequa-
da inserção de seus países na ordem internacional.
'Firmemente atado ao sistema de poder norte-americano, desde que se
consolidara a aliança com os EUA no decorrer da II Guerra Mundial, o Brasil
parecia destinado ao alinhamento automático na sua política exterior. Posição
inteiramente assumida entre 1945-50 por identidade ideológica (governo
Dutra)eparcialmenterenegadaentre 1950-54porumpragmatismoimpossível
(governo Vargas), o alinhamento automático parecia então se inscrever na
lógica da situação geopolítica brasileira, assim como parecia ser o ponto de
partida da politica exterior de JK. De acordo com o secretário de &tado
norte-americano, em comunicado ao presidente Eisenhower, o presidente
eleito Kubitschek revelara-lhe a aspiração de mirar-se no exemplo e ganhar o
respeito do povo americano, dizendo-lhe as seguintes palavras: "Sou um
conservador; e quero renovar nossa amizade.. (com o povo americano).' É
gerahnente em termos de alinhamento aos EUA que se tem analisado a politica
exterior do governo JK. Desse ponto de vista, as eventuais d'iscrepâncias
juscelinistas ao modelo do ..alinhamento" constituiriam incidentes de menor
monta ou até mesmo exceções que confmnariam a regra..
* Pesquisador do CPDOC e autor, entre outras obras, c;leAutonomia na dependência (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1980), 11o Sam chega ao Brasil (São Paulo, Brasiliense, 19&.!)
e Estados Unidos e América Latina (São Paulo, Contexto, 1990).
O que hoje parece mais claro é que nem a "política externa independente"
- que se inaugura com Jânio Quadros em 1961 - constitui fenômeno que
nasce da noite para o dia por um carisma presidencial, nem a política exterior
de JK pode ser explicada pelo puto e simples automatismo do alinhamento ao
Ocidente ou aos EUA. O que emerge do período 1956-61 é a imagem de uma
política externa matizada, complexa, cheia de ambigüidades, fragilidades,
descompassos e contradições, mas que, por isso mesmo, já indicava uma
necessidade e um desejo de mudança em relação ao modelo proposto pelos
EUA em 1945 e amplamente vigente nos anos do pós-guerra.
A impressão que se tem é de que o governo JK já se dava conta das mudanças
que se operavam na ordem internacional, embora não fosse capaz de acompa-
nhá-las plenamente e nem de tirar delas todas as conseqüências, tanto por
inibições e contradições internas, como por constrangimentos externos. Pode-
se, ·no entanto, acompanhar a gestação de formulações e posições de inde-
pendência ·em meio à reafmnação de posições de alinhamento. O "novo" e o
"velho" na política exterior de JK aparecem não apenas em linhas paralelas,
mas também em linhas cruzadas, justapostas e até misturadas, o que torna
difícil uma caracterização univoca do período. Daí a permanente impressão
de avanços e recuos na política exterior de JK.

1. As relações internacionais: rachaduras nos blocos

Na segunda metade dos anos 50 alguns elementos perturbadores começaram


a afetar o mundo bipolar que as·superpotências tinham edificado desde 1945.
É bem verdade que a guerra ideologica se intensificava e aumentava o poder
de destruição e o nível técnico dos armamentos. Transformada a paz num puro
"equilíbrio pelo terror" gerado pela estratégia da "retaliação maciça", a visão
da guerra era a de um evento total, apocalíptico, coin perdas irreversíveis para
a humanidade. Mas em meio a essa polarização aguda, o pretenso monolitismo
polftico dos blocos começava a apresentar fissuras, como se evidenciou em
1956 com a crise de Suez e a insurreição húngara. Ao mesmo tempo, o avanço
da luta anticolonial criava uma nova realidade de nações que não aceitavam a
camisa-de-força do alinhamento às potências e reivindicavam urna terceira
posição, que negava os pressupostos mesmos da guerra fria.

A crise de Suez - Expressão do nacionalismo de terceiro mundo, a naciona-


l ização do canal de Suez em julho de 1956 pelo presidente egípcio Nasser
provocou uma intervenção militar conjunta anglo-franco-israelense no final
daquele ano e se transformou rapidamente numa crise aguda de contornos
internacionais. A pronta reação da ONU, condenando a intervenção e apresen-
tando a cena inédita de soviéticos e norte-americanos unidos na condenação à
agressão, obrigou a um imediato cessar-fogo. Seguiu-se a formação de uma
força de paz das Nações Unidas para garantir a retirada dos intervencionistas

24.
da zona do canal (tropas franco-britânicas) e na península do Sinai (israe-
lenses).
EUA e URSS não se dispuseram a serem arrastados a um conflito que
poderia degenerar numa guerra global, a partir de uma crise que não fora por
eles desencadeada. Ao mesmo tempo, não podiam manter-se alheios à crise,
sob pena de perda de prestígio entre as nações do mundo árabe e do terceiro
mundo em geral; daí a condenação ao intervencionismo. Mas esta posição
comprometia a solidez do bloco liderado pelos EUA, e cedo se percebeu no
Ocidente que a crise de Suez constituía "um golpe sofrido pela unidade
ocidental". 2 Como notou Ronaldo Sardenberg, a crise de Suez deixou óbvio,
ao menos para os franceses, "que a solidariedade americana não deveria ser
presumida automática". 3 Pouco tempo depois de Suez, a França de De Gaulle
contestaria a liderança norte-americana no Ocidente.
Àquela altura, a criação da Comunidade Econômica Européia (1957) cons-
tituía também um elemento novo na competição européia-norte-americana no
mercado internacional, ao favorecer as indústrias localizadas nos países-mem-
bros em detrimento da importa,,;ão de terceiros países (inclusive os EUA).
Desse modo, tanto no plano das relações políticas como no das relações
econômicas internacionais, a noção de um bloco ocidental monolítico e coeso
-fundamento da liderança incontestável dos EUA- começava a sofrer seus
primeiros arranhões.

A insurreição húngara - O aparente monolitismo do bloco soviético sofr"u


também uma rachadura severa em 1956, com as revoltas húngara e polones<
Esses movimentos ocorreram na esteira da desestalinizaçào, isto é, das refor-
mas moderadas que se aplicaram ao modelo stalinista na URSS e às suas cópias
da Europa ocidental. Em junho de 1956, iniciaram-se manifestações na Polônia
por melhores condições de vida, por liberdade política e pela retirada das tropas
soviéticas estacionadas no país. Nos meses seguintes, o setor reformista do PC
polonês (Gomulka) conseguiu assumir e manter a liderança do movimento
político, afirmando seu próprio caminho para o socialismo e assegurando à
URSS que a Polônia manter-se-ia aliada da URSS nos quadros do Pacto de
Varsóvia.
Simultaneamente, os acontecimentos poloneses animavam a oposição hún-
gara e provocavam enormes manifestações em Budapeste no início de outubro
de 1956. A facção reformadora do PC húngaro (Imre Nagy) inspirava-se nos
programas de Gomulka, mas o movimento de massas (operários, estudantes,
camponeses, intelectuais) rapidamente assumiu o controle, superando em
muito as disposições reformistas da equipe de Nagy, que fora conduzido à
liderança do governo no bojo da agitação política. Na verdade, "o movimento
de massas foi tão poderoso e tão radical que em alguns dias pulverizou
literalmente o PC e todo o aparelho de Estado". E "tudo o que subsistia como
poder estava nas mãos da juventude armada e nos conselhos operários-~ A
abolição do sistema de partido único exigida pelos conselhos revolucionãrit:~S
nos últimos dias de outubro ampliou a presença de tropas soviéticas nos
primeiros dias de novembro. Em 12 desse mês, os tanques soviéticos atacaram
a resistência civil e o governo Nagy, embora ainda se passasse um mês antes
que os fiéis a Moscou se impusessem definitivamente aos conselhos operários
e revolucionários. 5 A tragédia húngara repercutiu intensamente no Ocidente e
foi amplamente utilizada como elemento da luta ideológica, mas as reações
norte-americanas à intervenção soviética não passaram de condenações ver-
bais, marcando o reconhecimento de Washington de que os soviéticos tinham
pleno direito de manter intocadas as bases do seu poder na Europa oriental. 6
A insurreição húngara e a agitação polonesa revelavam a natureza do bloco
soviético, assim como as dificuldades de manter a sua coesão interna. E assim
como a crise de Suez, também desmentiam a inexorabilidade do conflito entre
os dois blocos. Ao mesmo tempo, o reconhecimento mútuo dos interesses vitais
das superpotências evidenciava que a bipolaridade era o discurso da dominação
interna aos blocos, mas não a regra básica do jogo político internacional.
Interessava aos poderes hegemônicos, mas pouco ou nada tinha a oferecer aos
aliados subordinados. Estes começavam a tirar suas próprias conclusões.

Descolonização e não-alinhamento - Na segunda metade dos anos 50, o


ímpeto da descolonização alcançou a África e concluiu a independência
nacional de quase toda a Ásia. O marco simbólico da ligação entre os dois
processos foi exatamente a Conferência de Bandllllg (Indonésia), em 1955,
que resultou da articulação de estados da Ásia Jntro-oriental, do Oriente
Médio e do Norte da África, na busca de uma posição comum na luta contra
o colonialismo e o racismo. Bandung constituiu UtÍl marco e um estímulo na
luta contra a ideologia da dominação colonial. Os autores chamam a atenção
para o impacto produzido pela conferência, em termos "psicológicos" ou de
"fermentação de idéias" em toda a África.7
Exatamente no período do governo JK, o impulso para a descolonização da
África tornou-se irresistível. Os anos 1958-60 foram particularmente notáveis:
em abril de 1958 a I Conferência de Acra proclamou o direito das colônias à
independência e reconheceu a FLN como a única representante do povo
argelino; em dezembro do mesmo ano 200 delegados de 28 países africanos
(independentes ou não) realizaram em Acra a Conferência Geral dos Povos
Africanos e criaram um secretariado permanente, encarregado de lutar pela
independência política da África e de estimular a solidariedade pan-africana. 8
1960 foi o "ano da África": 17 países se livrl!falll da tutela colonial e se
tornaram independentes. Entre 1956 e 1959 sete países já se tinham liberado,
e de 1961 a 1964 mais 10 países vieram juntar-se à lista. Embora se registrasse
entre os novos países uma grande variedade de regimes políticos e políticas
econômicas, no plano das relações internacionais sua tendência seria a do
desengajamento dos blocos. A descolonização contribuiu, portanto, para a
negação da bipolaridade e a formação do que viria a ser mais tarde o movi-
mento dos países não-alinhados.

26
O terceiro mundo - A partir da Conferência de Bandung, uma outra ordem
de eventos começava a se produzir no sistema internacional das nações. Sob
a liderança de Nehru (Índia), Tito (Iugoslávia) e Nasser (Egito), o movimento
procurava estabelecer um perfil próprio que fosse além da definição puramente
geográfica que prevalecera em Bandung (afro-asiatismo) e da feição estática
do "neutralismo" dos anos 50. Gestava-se aí o movimento dos "não-ali-
nhados", que "nasceu" oficialmente na Conferência de Belgrado em 1961.
Desde 1957, porém, o movimento recebeu adesões de paises recém-inde-
pendentes e começou a auto-identificar-se como "não-alinhado".
O impacto da constituição desse grupo de nações foi imediato: "A era da
dominação de grandes potências na ONU tinha efetivamente tenninado.
Maiorias norte-americanas automáticas já não eram mais certas. Nem se podia
prever o comportamento dos novos países da mesma maneira em cada voto.
Mais importante de tudo, as nações pobres começaram a tomar suas próprias
iniciativas. "9 Com sua presença, criava-se uma alternativa política na ONU,
não ligada a blocos e defensora legítima da paz entre as nações. A reação das
superpotências foi, a princípio, a mais negativa. O não-alinhamento era visto
no Ocidente como "imoral" (cf. expressão de John Foster Dulles) e como linha
auxiliar do "imperialismo comunista". No Leste, os não-alinhados eram fre-
qüentemente considerados "cães de guarda do imperialismo". to
A insistência desse grupo em rejeitar a clivagem Leste x Oeste e em destacar
a especificidade dos seus problemas econômicos e políticos acabou por atrair
outros países que até então se posicionavam na órbita do Ocidente, como os
latino-americanos. Desse esforço se produziria nos anos 60 a Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), que contou
com a adesão da América Latina.

2. As relações interamericanas: segurança x desenvolvimento

A formalização das relações interamericanas no final dos anos 40 criara uma


zona de estabilidade política e exercício tranqüilo da liderança norte-america-
na no hemisfério. Nesse sentido, o governo Eisenhower, que abarcou a quase
totalidade dos anos 50, foi o herdeiro da construção político-militar do governo
Truman, mantida praticamente intacta pelo seu sucessor. No plano das relações
econômicas, os incipientes esforços industrializadores de alguns países latino-
americanos ainda eram vistos com ceticismo e até mesmo desconfiança em
Washington. Prevaleciam na administração Eisenhower os mesmos dogmas
que o governo Truman procurara impor às nações latino-americanas nas
conferências interamericanas do pós-guerra (México em 1945; Rio de Janeiro
em 1947 e Bogotá em 1948), a saber: combate ao protecionismo e à presença
do Estado na economia, afirmação do livre-comércio, exigência de tratamento
igualitário para o capital estrangeiro em face do nacional, criação de melhores
condições para o investimento estrangeiro na América Latina. Tratava-se de
um programa que tinha como objetivo (ou pelo menos teve como resultado)
um atnnento extraordinário da liquidez dos países capitalistas avançados, 11
mas que era impotente para resolver os problemas da inserção da América
Latina no mercado mundial e atender às demandas crescentes de vastos setores
de suas sociedades. Esse programa igualmente não atendia às aspirações de
movimentos políticos e lideranças latino-americanas que assumiam uma po-
sição de nacionalismo econômico.

A política diz segurança - Durante o governo Eisenhower, os nacionalismos


latino-americanos que procuravam dar conta das insatisfações coletivas, via
reforma social, continuavam a ser vistos em Washington como um desafio
subversivo à segurança do "mundo livre". O nacionalismo era percebido como
um veículo do movimento comunista internacional e, como tal, um instrumento
do expansionismo soviético no continente. Dai, portanto, a necessidade de
enquadrar as manifestações desse nacionalismo como um problema relacionado
à segurança dos EUA e à segurança continental. 12 Eis porque a "luta contra o
comunismo" se tomou a chave para a compreensão da política latino-americana
dos EUA nos anos 50 e iffipregnou o conjunto das relações e eventos interameri-
canos, apesar das resistências que o México e, por vezes, a Argentina opunham a
essa visão simplista dos problemashemisféricos. No conjunto, prevalecia a lógica
da guerra fria e a necessidade de "contenção" da URSS no continente.
A retórica pomposa das reuniões interamericanas não deve, porém, obscurecer
um dado fundamental: a América Latina constituía um espaço secundário e muito
distante dos espaços essenciais da guerra fria, localizados na Europa e na Ásia.
Dai, a caracterização de "negligência benigna" para definir as relações entre EUA
e América Latina nos anos 50. 13 São conhecidos os objetivos básicos dos EUA
para seus vizinhos continentais no pós-guerra: estabilidade interna, funda agita-
ção comunista e anti-EUA, fluxo garantido de matérias-primas para a indústria
norte-americana, estandardização das forças armadas da América Latina segundo
o modelo de Washington, apoio latino-americano à política internacional dos
EUA. 14 Nesse contexto, a aliança político-militar que se formalizou em 1947
(TIAR) e a organização regional que se estabeleceu em 1948 (OEA) são menos
a criação de um mecanismo de defesa coletiva e muito mais a consolidação da
inequívoca liderança norte-americana na região.

Essa dimensão das relações interamericanas ajuda a entender por que, no


plano das relações militares, a década de 1950 assiste à proliferação de
políticas bilaterais de assistência e colaboração, em detrimento da abordagem
multilateral que o TIAR teoricamente deveria estimular. Vários foram os
acordos bilaterais assinados no início da década (especialmente 1952), me-
diante os quais os EUA passaram a exercer "um monopólio virtual do fome-
cimento de armas, treinamento e influência sobre os militares latino-america-
nos".15 Embora constituísse uma área "segura" do ponto de vista de
Washington, ou talvez por isso mesmo, a atenção que o governo Eisenhower

28
dedicava à América Latina centralizava-se nas questões da segurança e suas
decorrentes expressões ideológicas.I6

As conferências hemisféricas - O conjunto das considerações precedentes


ajuda também a entender o significado dos encontros periódicos dos governos
da região. As questões de "segurança" tiveram sempre prioridade sobre as
questões do desenvolvimento econônúco, além de produzirem instrumentos
jurídico-políticos mais concretos e de aplicação imediata. Assim foi com a X
Conferência Interamericana de Caracas (1954), que se ocupou basicamente da
existência de um governo nacionalista na Guatemala (Jacobo Arbenz). Por
iniciativa dos EUA aprovou-se o projeto de resolução que abriu caminho para
o reconhecimento do movimento armado contra o governo legal da Guatemala
e que culrrúnou na deposição de Arbenz. Do ponto de vista americano, a
Guatemala constituiu um acidente de percurso que não abalava a idéia de que
os assuntos hemisféricos achavam-se totalmente sob seu controleP
As aspirações econômicas latino-americanas - preços mais altos e estáveis
para suas matérias-primas, créditos para a industrialização, criação de um
banco interamericano para o desenvolvimento econômico e estabelecimento
de um mercado integrado latino-americano- reiteradamente apresentadas às
reuniões interamericanas, continuavam a receber nos anos 50 débeis respostas
de Washington, como fora também negativa a sua reação nos anos 40. Assim
foi com a Conferência dos Ministros da Fazenda, no Rio de Janeiro (1954), a
dos Chefes de Estado no Panamá ( 1956) e a Conferência Econômica de Buenos
Aires (1 957). Esta última solicitou que se considerasse seriamente a questão
da integração latino-americana, mas a reação norte-americana bloqueou a
iniciativa. A reticência e mesmo df".sconfiança com que os EUA encaravam o
assunto ligava-se à aversão que seus círculos oficiais e privados alimentavam
em relação à CEPAL, órgão inspirador das idéias de integração. A CEPAL era
vista em Washington como uma "intrusa" nos assuntos hemisféricos ou então
como defensora de idéias estatistas ou até mesmo "socialistas". Ademais,
constituía uma instância que escapava ao controle da OEA e, portanto, da
liderança mais imediata dos EUA. Desse modo, ao iniciar-se a segunda metade
dos anos 50, eram visíveis as diferenças de perspectiva que América Latina e
EUA mantinham quanto à natureza e utilidade das relações interamericanas.

Em resumo, os contextos externos nos quais se situa o governo JK seriam


os seguintes:
l. no plano internacional, ocorrem as primeiras fissuras nos blocos comanda-
dos pelas superpotências, a par de uma afirmação vigorosa de independência
política por um número crescente de nações do "mundo subdesenvolvido",
especialmente as ex-colônias européias. O alinhamento às grandes potências
àei."<ava de ser uma regra absoluta da política internacional;
2 no plano regional, um rígido domínio político e a imposição de uma visão
ee segurança hemisférica por parte dos EUA começavam a chocar-se com~.;::
crescente consciência latino-americana de interesses próprios e contraditórios
aos norte-americanos.
O mundo mudava e permitia, com isso, mudanças de rota nas políticas
externas dos países dependentes. Neste mundo em mudança JK governou o
Brasil por cinco anos. Exaniinaretnos, a seguir, algumas dimensões da política
exterior de JK que a caracterizam como uma política de avanços e recuos.
Desenvolvimentismo, OPA, descolonização da África e reatamento de re-
lações com a URSS serão o objeto de nossa atenção.

3. Desenvolvimento e política exterior

Os estudiosos do período concordam, de um modo geral, que a chave maior


de compreensão do governo JK encontra-se no desenvolvimenrismo, enten-
dendo-se pelo conceito tanto os planos de ação governamental voltados para
o crescimento econômico acelerado, como as formulações que procuravam
explicá-los e justificá-los. O programa nacional de desenvolvimento de JK,
elaborado pelo Conselho do Desenvolvimento da Presidência da República
em 1956, consubstanciou-se no Programa de Metas, até então o mais completo
plano de investimentos planejados da economia brasileira. De certo modo um
herdeiro de estudos e projetos rea Iizados mas não implementados pelo governo
anterior, o Programa de Metas visava o aumento contínuo da capacidade de
investimento do país, mediante a conjugação de esforços do capital privado
(nacional e estrangeiro) com a assistência do setor público - este abrindo
caminho, suplementando esforços e produzindo incentivos, mas de modo
algum substituindo a ação do capital privado. Papel muito importante nesse
esquema caberia ao capital estrangeiro, que se procurava atrair de vários
modos; daf, a caracterização que se produziu do modelo juscelinista de
desenvolvimento econômico como de "desenvolvimento associado".
Alguns autores chamam a atenção para o fato de que, diferentemente de
esquemas tradicionais, o plano de JK não dava maior atenção à questão da
estabilização monetária, um dos ··cavalos de batalha" do Fundo Monetário
Internacional desde a sua criação ·ao fmal da II Guerra Mundial, preferindo
concentrar-se mais diretamente na questão do crescimento econômico acele-
rado, expresso no slogan ..50 anos em 5" . 18 Notam os especialistas do período
que os esforços de estabilização, como o Plano de Estabilização Monetária
(PEM) do ministro Lucas Lopes em 1957, foram meras tentativas de reduzir
o ritmo inflacionário a niveis toleráveis (e aplacar as críticas do FMI), sem
nunca sacrificar o desenvolvimento à estabilidade. 19 Essa definição axial da
política econômica de JK ajuda a entender por que o governo rompeu nego-
ciações com o FMI, que exigia um choque mais radical que o próprio PEM, e
ajuda a entender também por que JK acabou por rejeitar o próprio PEM e
aceitar a demissão do ministro Lucas Lopes.
Em termos de setor externo, a política de sustentação dos preços do café no
mercado internacional (em uma década de aumento global da produção tanto

30

-.
Uíino-americana quanto africana) teve como conseqüência urna redução das
exportações num contexto de estabilização ou mesmo de queda dos preços do
produto a partir de 1954. Foi inevitável a deterioração dos termos de intercâm-
bio do setor externo da economia brasileira desde aquele ano. A possibilidade
de compensar o declínio das exportações tradicionais e manter a taxa de
investimentos requerida pelo processo de substituição de importações depen-
dia então da entrada liquida de capitais autônomos no país. 20 Facilitado desde
1955 com a Instrução 113 da Sumoc, o ingresso do capital estrangeiro
constituiu elemento fundamental, como já dissemos, na estratégia econômica
do governo JK. A reforma cambial de 1957 procurou promover o aprofunda-
mento do processo de substituição de importações, agora já não mais de bens
de consumo, mas de bens de capital. Esses esforços estariam ir-
remediavelmente comprometidos, caso não houvesse o ingresso do capital
estrangeiro, sob a forn1a de empréstimos ou investimentos que aliviassem a
escassez de divisas.2 1 Em função dessa perspectiva, o governo JK procurou
atrair maciçamente para o Brasil capitais estrangeiros, tanto privados quanto
públicos. Para os primeiros, estabeleceu uma política cambial extremamente
favorável, permitindo movimentos absolutamente livres de entrada e saída de
capitais privados no país. Quanto aos capitais públicos estrangeiros, a pos-
sibilidadeeramuitomenor. É bem verdade que, desde muito cedo, JK começou
a explorar essa possibilidade junto a Washington. Em sua primeira carta ao
presidente Eisenhower, escrita no inicio de seu mandato, Juscelino procurou
argumentar que "o impulso presentemente tomado pela iniciativa privada teria
de ser apoiado por um consistente esforço governamental para fortalecer a
infra-estrutura brasileira( ...) Esta esperança, de que (...) não nos faltará o apoio
governamental americano indispensável para que se materializem os empreen-
dimentos em perspectiva( ... )" orientou o governo JK desde o seu inicio. 22 Mas
nos EUA o govemo Eisenhower mantinha o mesmo "perfil baixo" que
mantivera Truman em relação à América Latina. Prevalecia a noção de que,
dada a liberdade de ação aos capitais privados norte-americanos, o desenvol-
vimento econômico latino-americano seria uma decorrência natural, prescin-
dindo portanto de injeções maciças de recursos públicos norte-americanos,
semelhantes aos que ajudaram o reerguimento econômico da Europa no
pós-guerra. Foi para quebrar a indiferença norte-americana nesse particular
que o governo JK lançou em 1958 uma vastã ação político-diplomática
conhecida por Operação Pan-Americana (OPA), cujo objetivo econômico
explícito era o aporte de recursos em larga escala para projetos de desenvol-
vimento na América Latina. -

4. A Operação Pan-Americana

Pensada como iniciativa polilico-diplomática de largo fôlego, a Operação Pan-


Americana, lançada por Kubitschek em maio de 1958, tinha um tríplice
objetivo: captar recursos em vasta escala para projetos de desenvolvimen:.o

31
econômico, colocar o Brasil numa posição de liderança entre os países latino-
americanos e assegurar as boas relações com a superpotência americana, que
deveria ser, em última análise, a fonte de recursos para este projeto ambicioso.
Como vimos, as dificuldades do empreendimento eram enormes, dado o
descompasso entre os modelos de planejamento econômico que se elaboravam
na América Latina e o receituário liberal conservador que o governo Eise-
nhower mantinha intacto para o continente. Somente um evento traumático ou
circunstância extraordinária poderia alterar as convicções e a boa consciência
norte-americana e permitir alguma modificação em suas receitas de política
econômica.
Nos cálculos do governo brasileiro, a visita do vice-presidente Richard
Nixon à América Latina em 1958 constituiu um evento traumático que pos-
sibilitava a alteração do padrão vigente das relações interamericanas. Progra-
mada como um exercício de relações públicas para expor aos vizinhos do sul
as boas razões da política de Washington para o continente, o giro de Nixon
pela América Latina quase terminou em desastre. Para proteger o seu vice,
insultado no Peru e atacado na Venezuela por uma multidão furiosa, Eise-
nhower mobilizou tropas pata um eventual desembarque e resgate de Nixon
em Caracas, gerando uma onda de protestos políticos em todo o continente.23
O evento dramatizou a distância entre EUA e América Latina e realçou a
dicotomia do discurso de seus respectivos grupos dirigentes: os latino-ameri-
canos falando a linguagem do desenvolvimento econômico, os norte-ameri-
canos apegados ao discurso da segurança. A correspondência mantida por
Kubitschek e Eisenhower naquela ocasião sublinha essa diferença: as cartas
do presidente americano apontavam o comunismo internacional como a causa
dos problemas políticos e da agitação social no continente, enquanto as do
presidente brasileiro consideravam o comunismo como conseqüência dos
problemas sociais, cuja causa profunda se chamava subdesenvolvimento,
sendo este portanto o verdadeiro nó a ser desatado.24
Para o governo brasileiro, a situação ensejava uma iniciativa audaciosa, que
arregimentasse recursos materais e políticos em escala continental, como um
novo Plano Marshall, agora destinado à América Latína. Assim nasceu a OPA.
Ao que tudo indica, a iniciativa surgiu do próprio palácio do Catete, sede do
governo federal, mais precisamente a partir da assessoria especial de JK
(Augusto Frederico Schmidt), longe portanto dos gabinetes de planejamento
do Itamarati. A baixa receptividade inicial de Washington à idéia lançada por
JK não desanimou o governo brasileiro, que insistiu na tese de que o verdadeiro
pan-americanismo seria feito de atos de solidariedade concreta, com vistas à
luta contra o subdesenvolvimento; ao mesmo tempo, JK acentuava a natureza
multilateral da iniciativa, assim como a necessidade de se dar um tratamento
político aos problemas econômicos e assegurar um novo papel para a América
Latina no sistema interamericano. 2s
À imponência das formulações e objetivos gerais da OPA não correspondia,
porém, uma concretude de planos de ação, e essa indigência programática não

32
passou despercebida do embaixado r brasileiro nos EUA, Ernani do Amaral
Peixoto.26 Na qualidade de canal de comunicações entre Brasil e EUA, a
embaixada em Washington teve de se encarregar de produzir um plano geral
da OPA, mais tarde ampliado por uma comissão do Itamarati, no qual se fazia
um diagnóstico do subdesenvolvimento latino-americano, com base num
circulo vicioso de escassez de poupança - falta de investimentos - baixa
produtividade, fatores encarados ao mesmo tempo como causa e efeito do mal
maior que se pretendia combater. O plano preconizava a luta conjunta contra
o desenvolvimento a partir de diagnósticos e corretivos elaborados por cada
país. Para o Brasil, o plano previa o aporte de 3,1 biU1ões de dólares até 1967
para projetos de desenvolvimento, devendo a dívida ser paga a partir de 1970,
com juros fixos de 4,25% ao ano.
A reação norte-americana à OPA passou a ser cautelosa. Embora esse "Plano
Marshall" latino-americano contrariasse sua política para o continente, a
administração Eisenhower logo verificou que ele recebia apoios na região e
se constituía em núcleo político com grande potencial de aglutinação. Nos
meses que se seguiram ao lançamen to da OPA, Washington teve de manobrar
com habilidade. Para contrabalançar o entusiasmo latino-americano, o gover-
no norte-americano apontou a OEA como foro natural de discussão da proposta
brasileira e, para romper a unidade político-econômica da Operação, fez
aprovar uma divisão de tarefas- temida por JK e seus assessores- pela qual
a dÍnlensão político-diplomática ficaria por conta de um comitê de alto nível
(O Comitê dos 21), enquanto os pla nos econômicos seriam encaminhados ao
CIES (Conselho Interam ericano Econômico e Social), órgão burocrático da
OEA. Com esta última resolução, ficava fora do processo de decisões a
CEPAL, que por m ais de uma década produzira diagnósticos e propusera
planos de superação dos problemas e conômicos latino-americanos. Ao mesmo
tempo que se alongava nos procedimentos, Washington evitava também
comprometer-se concretamente com a definição do montante de recursos que
estaria disposta a desembolsar. A seu favor, militava a inexistência imediata
de projetos nacionais integrados de desenvolvimento econômico na América
Latina.
Também favoreci a a res istência norte-americana à OPA uma certa duplica-
ção e até duplicidade tática do governo brasileiro, resultante da dicotomia entre
a condução propriamente diplomática (ltamarati) e a condução política (Ca-
tete) das üúciativas brasileiras. A tentativa de dramatizar o perigo comwústa
na América Latina e o poder soviético no mundo, como alavanca para abrir os
cofres norte-americanos, poss ivelmente sugerida por Augusto Frederico
Schmidt, produziu resultados adversos. O argumento, enunciado por Schmidt
no Comitê dos 21 em novembro de 1958 e repetido no mesmo mês por JK,
pode não ter criado mas certamente reforçou as resistências de Washington à
OPA. À inabilidade política somava-se a impressão de que o Brasil procurava
agir como líder dos países latino-americanos sem ter uma procuração para esse
fim. Essa dÍnlensão política inibia a possibilidade de se produzir um plano

33
in:.egrado e não apenas urna soma de projetos bilaterais de ajuda econômica .
.-\5 discussões em torno da OPA se arrastaram penosamente no decorrer de
:959 e não teriam, segundo urn observador privilegiado, conseguido es-
tabelecer urna política clara de ação econônúca, mas tão-somente um diagnós-
tico do subdesenvolvimento latino-americano.27
Em março de 1960, tentando revitalizar a OPA, o novo ministro brasileiro
das relações exteriores, Horácio Lafer, apresentou ao governo americano
aqueles que seriam os elementos-base da Operação, no seu entender: (1)
política de estabilização de preços de produtos primários da América Latina
no mercado americano; (2) planificação da produção de alimentos; (3) forta-
lecimento de instrumentos e meios financeiros para atender às necessidades
de projetos de interesse nacional; (4) campanha contra o analfabetismo; (5)
organização da assistência técnica para o desenvolvimento da agricultura. O
chanceler brasileiro confiava que na Conferência Interamericana que se reu-
niria em Quito dar-se-ia um conteúdo prático aos pontos-chave da cooperação
econômica interamericana.
Àquela altura, porém, Washington já se preocupava com uma grande
questão que, por outras vias, chamava a atenção para os problemas sociais da
América Latina. A revolução cubana, vitoriosa em 1959, gerava entusiasmo
entre os movimentos populares e nacionalistas na América Latina e ampliava,
no decorrer de 1960, o leque das discórdias entre Washington e Havana. A
reforma agrária e a reforma urbana em Cuba atingiram fundo os interesses e
propriedades norte-americanos na ilha e desencadearam sanções econômicas
que acentuaram a tendência cubana a buscar na Europa (oriental, es-
peciahnente) alternativas de sobrevivência. A força do exemplo cubano decor-
ria não tanto de sua definição "socialista" (que só viria a ocorrer em 1961),
mas muito mais do efeito-demonstração de uma política interna e externa
independente em face dos EUA.
Por isso, em seu último ano de governo (1960), Eisenhower procurou
aproximar-se dos países latino-americanos com um discurso novo e reformis-
ta, destinado a articular politicamente uma resistência hemisférica ao "perigo
cubano". Ao final de seu mandato, o presidente norte-americano já apoiava a
criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento e dava sinal verde aos
estudos de integração econômica na América Latina. Não faltou também quem
pedisse àquela altura uma revitalização da OPA, corno a melhor alternativa
para contrabalançar o entusiasmo provocado pela revolução fidelista. O res-
surgimento da OPA, nesse plano, deveria carregar consigo a habitual parafer-
nália de propaganda política. 28
Entretanto, a nova administração democrata em Washington, sob a lideran-
ça de John Kennedy, tinha idéias próprias sobre o assunto. Para a nova
administração era necessário, por um lado, sufocar ou ao menos isolar a
revolução cubana e, por outro, arrancar de suas mãos a bandeira da reforma
social. Tratava-se de uma política de largo espectro, de objetivos muito mais
amplos e abrangentes do que a OPA pretendera ser. Com Kennedy, urna nova

34

---
operação iria nascer, não da América Latina, mas para a América Latina: a
operação Aliança para o Progresso. Em seu nascimento, a APP pelo menos
registrou sua filiação: o projeto que o governo norte-americano submeteu à
apreciação dos demais governos do continente em 7 de julho de 1961 intitu-
lava-se "Acordo para o Estabelecimento de uma Aliança para o Progresso,
dentro da Estrutura e Conceitos da Operação Pan-Americana.29
A OPA surgiu, portanto, com as virtudes e os pecados das iniciativas
unilaterais de um país periférico. Sua paternidade única garantiu-lhe as van-
tagens do impacto da novidade num contexto hemisférico marcado pela
estagnação política; por sua diretriz fundamental - o desenvolvimento eco-
nômico nacional, o Brasil reencontrou-se como país latino-americano nos
foros continentais e deixou de ser o mero tradutor da linguagem de Washington
para seus vizinhos hispano-americanos; e por ser o Brasil um tradicional aliado
de Washington, sua proposta não sugeria a possibilidade de uma concertação
antinorte-americana . De outro lado, entretanto, a ausência de uma articulação
prévia com os países vizinhos fazia da OPA mais uma declaração de intenções
ou um desejo genérico de mudanças do que propriamente uma iniciativa
política com suficiente capacidade de pressão; e ao registrar inequivocada-
mente o mérito brasileiro da iniciativa, tomava extremamente problemático o
patrocínio financeiro norte-americano ao programa.
Vista de outro ângulo, apesar de não ter surgido de um concerto latino-ame-
ricano, a OPA aparece retrospectivamente como um esforço novo no cenário
da política externa brasileira e das relações continentais no sentido de tentar
romper uma situação periférica e assegurar recursos para um certo modelo de
desenvolvimento econômico. Atenta às realidades políticas do continente, a
OPA procurou ganhar para sua causa a grande potência da região. Nesse
sentido, ela padeceu do mesmo dilema que marcou a política exterior de JK
de modo geral: a busca de novas fonnas de atuação, sem prejuízo de tradicio-
nais vínculos de inserção brasileira no sistema internacional.

5. Brasil-Portugal-África

Em nenhuma outra área de atuação da política externa de JK os avanços foram


bloqueados por recuos tão contundentes como a política para a África. Não
sabendo, não podendo ou não querendo decidir-se claramente entre "aliados
ocidentais" ou "novas nações africanas emergentes", a política brasileira
acabou por desagradar de certo modo a uns e outros ao mesmo tempo. Essa
obtusa indefinição, resultado não apenas de pressões contraditórias no interior
do próprio governo, como também da ausência de uma diretriz clara da
Presidência da República, que poderia ter arbitrado o conflito interior, tem sido
elegantemente classificada pelos estudiosos como uma política "ambígua". 30
A duplicidade do governo JK em face do colonialismo é tanto mais difícil de
entender quanto a consideração que o projeto desenvolvimentista achava-se
em jogo também neste caso; e estaria ainda mais bem servido com a remoção

35
àefiniriva dos vínculos coloniais e a criação de nações independentes na
Africa, como observaram, à época, não apenas os estudiosos, mas também os
atores do processo político-diplomático.31
É curioso o meio-caminho andado pelo Itamarati na questão dos problemas
econômicos na relação Brasil-África. Reconhecia o Ministério das Relações
Exteriores que o Brasil se prejudicava nos mercados internacionais pela
concorrência de produtos coloniais africanos, mais baratos que seus similares
brasileiros, especiahnente em decorrência das isenções alfandegárias de que
se beneficiaram esses produtos nas metrópoles européias. Daí o esforço por
fazer do GAIT um foro que obrigasse os países do Mercado Comum Europeu
a compensar de algum modo outros produtores de bens primários prejudicados
pela concorrência africana. Raciocínio semelhante se aplicava aos fluxos de
investimentos europeus (MCE) que tenderiam a deixar de lado os interesses
da América Latina.32 A lógica do discurso não se acompanhava da lógica da
ação, que deveria sustentar a necessidade e utilidade da remoção dos laços
coloniais. Na realidade, os argumentos da "competição desigual" entre Brasil
e África "tenninavam por sucumbir à lógica da guerra fria .., visto que, embora
o MCE constituísse uma ameaça a certos interesses brasileiros, "sua criação
(...)serviria como anteparo à expansão comunista no continente". (... ) Ade-
mais, boa parte da exportação africana de café provinha de Angola (em 1958,
já o quarto produtor mundial), o que criava complicadores para a relação
Brasil-Portugal, o que ficou claro na visita de JK a Lisboa em janeiro de 1956.33
No jogo das pressões anticolonialistas e das contra pressões colonialistas, o
governo JK freqüentemente produziu dicotomias entre q genérico e o es-
pecífico, entre o abstrato e o concreto, entre o retórico e o conteudístico. Nas
formulações genéricas, abstratas e retóricas, apresentou-se solidário ao movi-
mento da libertação nacional africana; nas questões específicas, concretas e
de conteúdo, agiu em acordo com ou em benefício das potências coloniais,
especiahnente Portugal. Uma iniciativa que parecia caminhar na contracor-
rente do colonialismo foi a apresentação de projeto na XII Assembléia Geral
da ONU em 1957, então presidida pelo embaixador Osvaldo Aranha, criando
a Comissão Econômica para a África. Embora apresentada por Gana, a idéia
tinha a paternidade brasileira e visava contribuir para a compreensão de certos
problemas decorrentes da situação colonial - como a baixa remuneração da
mão-de- obra africana, que se refletia em custos de produção e preços muito
baixos no mercado internacional. Contrabalançada essa iniciativa pelo inaba-
lável apoio à manutenção das colônias portuguesas na África mediante a
aceitação da tese de que se tratava de "territórios de ultramar", mesmo assim
o governo português protestou energicamente contra o apoio brasileiro à
criação da comissão, considerando-a nociva aos interesses de Portugal na
África, além de "servir à tática comunista e à política da Rússia", conforme
registrou o embaixador brasileiro em Lisboa, Álvaro Lins. 34
Tendo votado favoravelmente à Declaração de Independência dos Povos na
Assembléia Geral da ONU, o Brasil continuou votando até 1960 contra a

36
autodeterminação da Argélia e bloqueando por todos os meios ao seu alcance
a inclusão do problema das colônias portuguesas em comitês especiais ou
debates gerais no seio das Nações Unidas. Amarrado ao apoio incondicional
à manutenção das colônias sob tutela portuguesa, o Brasil teria que apoiar ipso
facto as pretensões coloniais francesas, que se fundamentavam em argumentos
idênticos aos portugueses. 35 Também o governo JK produziu candentes decla-
rações anti-apartheid, destinadas especialmente ao consumo interno, ao mes-
mo tempo em que participava do Comitê de Bons Ofícios da ONU para o
Sudoeste Africano (Namíbia); neste último, tinha a significativa companhia
dos EUA e Grã-Bretanha, o que assegurava de antemão a manutenção do status
quo na região.
Além de assinalar as dificuldades do governo JK em romper o alinhamento
com o Ocidente, que eram habilmente manobradas pelas potências coloniais,
os estudiosos do período chamam a atenção para a presença de fortíssimo lobby
português no Rio de Janeiro. Este era igualmente hábil em equacionar o
colonialismo aos interesses nacionais legítimos de Portugal, assim como em
acentuar uma herança cultural comum aos dois países. Esta era uma corda
particularmente sensível às nossas classes dirigentes, pouco afeitas à idéia de
que uma herança cultural africana pudesse ter peso maior ou igual à portuguesa
na formação cultural brasileira. Nossa "cultura" comum também era manipu-
lada pelo regime salazarista e se transmutava, no discurso diplomático portu-
guês e brasileiro, em uma "afetividade" luso-brasileira que se colocava acima
e para além da mera política.36
Que as afinidades culturais luso-brasileiras não teriam de produzir neces-
sariamente um alinhamento brasileiro às teses colonialistas portuguesas se
pôde ver claramente ao deixar JK o poder e se inaugurar uma política externa
conhecida como independente. Na apreciação do novo chanceler, Afonso
Arinos, nossa diplomacia não fora capaz, no período JK, de apreciar o sentido
dos novos tempos (o grande movimento de emancipação das colônias euro-
péias na África) e acabara por colocar o Brasil "como um elefante, puxado
pela tromba, pelos espertos, tenazes e calculistas diplomatas de Salazar". 37
Havia evidentemente durante o período JK um conflito entre posições,
movimentos, grupos de pressão e argumentos anticolonialistas e colonialistas,
que recortavam a sociedade e o sistema político como um todo, assim como a
diplomacia brasileira. Ancorados em forças emergentes - especialmente a
indústria nascente - e atentos às modificações que se operavam em larga
escala no mundo, os opositores do colonialismo não tiveram força suficiente
para tirar todas as conseqüências do desenvolvimento juscelinista para a
política exterior do pais. Prevaleceram os formula dores de política ligados aos
velhos tempos. E, ao que tudo indica, o próprio JK era prisioneiro entre os
"velhos" e os "novos" tempos. Quando sua presença se fez efetiva na política
exterior pesou para o lado dos velhos tempos, tal como na segunda visita a
Portugal, em 1960, capitalizada por Lisboa como apoio à política portuguesa,
exatamente no "ano da África".


Ao menos se pode constatar que o intenso debate político em torno da
questão produziu os argumentos e suscitou as noções que constituiriam a base
para a mudança que se gerou a partir de 1961 nas relações do Brasil com a
África. ·

6. Reatando com a URSS

Os mesmos dilemas entre as exigências do desenvolvimentismo e as per-


cepções ideológicas totalizantes dadas pela guerra fria, assim como as mesmas
tentativas de solução de compromisso, marcam a questão do reatamento de
relações com a URSS. Como sabemos, o rompimento de relações diplomáticas
e comerciais entre Brasil e URSS, ocorrido em 1947, derivava de uma visão
ideológica totalizante já ligada às realidades da guerra fri a, e que unia mnna
mesma corrente de causa-e-efeito os movimentos sociais urbanos e rurais no
Brasil com o Partido Comunista, o movimento comunista internacional e o
Estado soviético. 38
Do ponto de vista dos projetos desenvolvimentistas, a retomada de relações
com a URSS significava não apenas uma normalização politica desejavel
como principahnente a possibilidade de abertura de novos mercados, es-
pecialmente para o café - um dos nós mais sérios com que se defrontava o
modelo econômico, como já vimos. Daí que uma série de agências estatais,
setores políticos e parcelas do empresariado apoiavam a proposta do reata-
mento, enquanto outros gtupos e setores mais conservadores (alto clero,
grandes jornais, parcelas do empresariado, estamento diplomático e militar)
opunham-se resolutamente a ele. Para estes grupos e setores da sociedade e do
Estado, o reatamento de relações seria desaconselhável, visto que a ..L"RSS é
incapaz de dissociar política de comércio", e também porque o reatamento
poria em risco "as relações diplomáticas e comerciais que mantemos com uma
nação amiga" (EUA)P9
Numa inevitável polarização, manifestações típicas em 1956 eram as po-
sições de Carlos Lacerda (UDN) contra o reatamento e João Goulart (PTB) a
favor. 40 A clivagem típica da época, entre o nacionalismo e o "entreguismo"
(cosmopolitismo), recortava os estamentos diplomático e militar, embora as
forças hegemônicas determinassem uma clara posição de cautela ou de opo-
sição ao reatamento de relações: era o caso do Itamarati e dos ministérios
militares. Os ministérios mais diretamente ligados aos negócios e à exportação
mostraram-se favoráveis, como o da Fazenda e o da Agricultura. O Instituto
Brasileiro do Café punha-se inteiramente a favor. 4 l
O ano de 1957 apresenta uma situação política bastante semelhante àquela
vivida exatamente 10 anos antes pela nossa política exterior. Nas duas si-
tuações as delegações permanentes do Brasil nas organizações internacionais,
especialmente na ONU, guiavam-se por referências mais amplas e livres de
interesse nacional, enquanto a chancelaria no Rio de Janeiro insistia numa
diretriz estrita e estreita, de alinhamento ao Ocidente, em especial aos EUA.

38
Em ambas as ocasiões a delegação brasileira à ONU foi chefiada por Osvaldo
Aranha, e em ambas ele divergiu frontalmente das opiniões da chancelaria a ·
propósito das relações entre Brasil e URSS. Em 1947, opôs-se ao rompimento
de relações, em conflito com Raul Fernandes; em 1957, Aranha defendeu o
reatamento, em conflito com Macedo Soares. Para Osvaldo Aranha, que de
modo algum poderia ser acusado de antiamericanismo, constituía um contra-
senso em 1957 que, das grandes nações do mundo, o Brasil fosse o único pais
a não manter relações com a URSS.42
A clara opinião de Osvaldo Aranha, enunciada a partir de uma posição
preeminente na ONU, não deixou de produzir um forte impacto no Brasil,
ampliado pela sinalização do secretário-geral do PCUS, Nikita Krushev, ao
dirigir um telegrama de Ano Novo ao presidente brasileiro, imediatamente
respondido por JK. Esta promessa de diálogo produziu uma intensa discussão
nos meios políticos, e se refletiu com intensidade na Câmara e no Senado nos
primeiros meses de 1958, começando a posicionar-se os partidos e seus
representantes nas duas casas do Congresso Nacional.43
As articulações políticas visando impedir o reatamento, nas quais o ministro
das Relações Exteriores parece haver exercido relevante papel, começaram a
enfrentar opositores crescentes não apenas na opinião pública, mas no interior
do próprio aparelho de Estado, de modo que acabou-se por fixar uma linha de
defesa da idéia de reatamento de relações econômicas, evitando-se porém o
reatamento de relações diplomáticas. 44 Após um longuíssimo processo de
maturação, a fórmula acabou se tomando vitoriosa- o que se compunha bem
com o interesse pragmático primordial do modelo desenvolvimentista de JK.
Finalmente, uma missão econômica brasileira seguiu para Moscou em novem-
bro de 1959 e em dezembro assinou um acordo com os soviéticos, que marcava
a retomada das relações comerciais entre os dois países.
A tibieza do governo JK neste episódio expressou-se outra vez na aprecia-
ção que o presidente fez sobre os acordos econômicos então assinados.
Enquanto o secretário-geral Krushev saudava os acordos como um passo
positivo na direção da normalização das relações diplomáticas, Kubitschek,
saindo pela tangente e apelando para generalidades, respondia que o acordo
era um exemplo de que os povos podiam viver sob a égide da concórdia e da
paz ... 45 O Brasil de JK titubeava ante a perspectiva de aventurar-se por conta
própria na política internacional, ao dar um primeiro passo para se livrar do
círculo de ferro em que se colocava desde 1945.

7. Conclusão

A polaridade característica da política brasileira nos anos 50, descrita e


analisada por Hélio Jaguaribe em termos de cosmopolitismo versus naciona-
rias relações exteriores do
lismo, tinha uma correspondência clara no plano ..__
Brasil. 46 Vago enquanto formulação ideológica, o nacionalismo propunha \liil3.
política externa autônoma em relação aos EUA e uma posição neutralista no

39
coc:fiito Leste-Oeste. Em termos de desenvolvimento econômico, advogava
politicas de corte protecionista e estatista, em contraposição à tese cosmopolita
dê privatismo, livre-concorrência e abertura da economia ao capital es-
trangeiro. Em termos de política externa, o cosmopolitismo se expressava pela
subordinação às diretrizes norte-americanas e europeu-ocidentais, por uma
ação diplomática rotineira e uma retórica freqüentemente destituída de conteú-
dos.47
O descompasso da política exterior brasileira com as grandes mudanças que
já se operavam no sistema internacional na segunda metade dos anos 50
vinculava-se, nessa perspectiva, ao predomínio da visão cosmopolita do Brasil
no sistema internacional. Em outras palavras, a política externa brasileira
carecia de representatividade ao não exprimir interesses e opiniões de vastos
setores da sociedade brasileira, assim como de agências governamentais que
se viam tolhidas em sua ação pela "reprodução simples" do comportamento
diplomático e a adesão incondicional aos EUA e às potências européias. Hélio
Jaguaribe atribuiu essa incapacidade de definir diretrizes claras diante dos
novos desafios do sistema internacional à natureza cartorial do Estado brasi-
leiro e sua decorrente política de clientelas, assim como a ausência de uma
opinião pública consciente e responsável. 48 Contra esse pano-de-fundo do
Estado, a política de JK procurava conciliar as contradições brasileiras em
matéria de relações internacionais, em vez de tentar superá-las.

Não tendo formulado com clareza uma diretriz compatível com os novos
tempos e as novas forças no sistema internacional e na sociedade brasileira, o
governo JK apresentou uma política exterior de avanços e recuos, meias-me-
didas e descompassos entre o discurso e a ação - enfim, contradições geradas
pela própria ideologia do desenvolvimento, que pretendia superar o laissez-
faire absoluto preconizado por Washington e ao mesmo tempo enquadrar-se
nas noções da "civilização ocidental". Entretanto, ao veicular algumas das
teses do nacionalismo, o desenvolvimentismo se chocaria inevitavelmente
com o americanismo e o europeísmo da diplomacia tradicional, como notaram
à época alguns observadores argutos. 49

O discurso juscelinista equacionando soberania à prosperidade e ligando a


prosperidade ao afluxo de capitais estrangeiros, procurava compatibilizar o
desenvolvimentismo ao alinhamento tradicional do Brasil aos EUA. De outro
lado, a soberania era também uma ponte que o discurso juscelinista lançava
na direção do nacionalismo. 50 Já vimos como também a OPA procurava se
compatibili zar com os ideais da segurança coletiva e nesse sentido reafinnava
a posição de "aliado fiel" dos EUA,51 mas ao mesmo tempo constituía uma
iniciativa política que escapava às prescrições de Washington sobre os conteú-
dos e as formas da segurança coletiva. Escapava também às prescrições
econômicas dos EUA para a América Latina, como ficou claro na definição
de pan-americanisrno apresentada pelo chanceler Horácio Lafer ao Conselho
da OEA em 1960.52

40

'lo... -
Desse modo, o govemo JK tinha uma certa consciência das novas condições
vigentes no mundo e no Brasil, mas não se dispunha a tirar todas as conse-
qüências dessa nova consciência, assim como se dava conta de certos dilemas,
mas não se dispunha a ultrapassá-los, em nome da conciliação nacional e
social. Daí a permanente impressão de que avança, mas de que, ao avançar,
também recua.

Notas
1 Memorando de conversa telefônica entre o presidente Eisenhower e seu secretário de

Estado, em 5.1.1956. CPDOCJBDE 56.01.05.


2 Equivalência na brutalidade. Editorial de O Estado de S. Paulo, 8.nov. 1956, p.3.
3 Sardenberg, Ronaldo. Eswdo das relações internacionais. Brasília, Ed. UnB, 1982.
p.83. Sobre a posição da França de De Gaulle ver também Kramer, Paulo R. C. O
relacionamento Leste-Oeste e as origens da guerra fria. Dissertação de mestrado, Rio de
Janeiro, IUPERJ, 1985. p. 89-95.
4 Castoriadis, Cornelius. Socialismo ou barbárie. São Paulo, Brasiliense, 1970. p. 261-2.
5 Claudin, Fernando. A oposição no "socialismo real~- Rio deJaneir"', Marco Zero, 1981.
p. 147-70; Lefort, Claude. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983.
p.l32-87; e Castoriadis, Comelius. op.cit. p. 257-87.
6 Uma interpretação diversa afirma que a passividade norte-americana no episódio se
deve ao fato de que a guerra fria n..'io se articulava realmente em tomo da Europa, mas na
periferia do sistema capitalista, isto é, no Terceiro Mundo: Devis, Mike. O imperialismo
nuclear e a dissuasão extensiva. In: Thompson, E. et ali i. Exterminismo e guerra fria. São
Paulo, Brasiliense, 1985. p.T/.
7 Ver, por exemplo, Grimal, Henri. La déco/onization. Paris, A. Colin, 1967. p. 275;
Worsley, Peter. Tlle tllird world. p. 254-5.
8 Ki-Zerbo, Joseph. História daAfrica Negra. Lisboa, Europa-América, s.d .. v. 2. p. 391.
9 Worsley, Peter. op.cit. p. 255.
lO Id. ibid .. p. 247.
11 Lafer, Celso. Comércio e relações iJtTemacíonais. São Paulo, Perspectiva, 1977. caps.
2e3.
12 Green, David. The C•>ld war comes to Latin America. In: Bemstein, B.J. Politics &
Policies ofthe Truman odministration. Chicago, Quadrangle Books, 1970. p. 149-95.
13 Child, Jolm. The intcr-american military system. Ph.D Thesis. Ann Arbor University,
Microfilms Intemational, 1979. p.333.
14 Examinei a questão militar no imediato pós-guerra em Brazilian foreign relations

1929-1950. Ph.D Thesis. London, University College London. 1982. p.308-10. Ver
também Child, Jolm. op.cit. p. 333.
15 Ch.ild, Jolm. op.cit. p. 332.
16 Ver, por exemplo, Mitchell, Christopher. Domilúo y fragmentación en la politica
estadounidense con resp~ct o a América Latina. In: Cotler J. & Fagen R. org. Relaci~
políticas entre América Latina y Estados Unidos. Buenos Aires, Amorrortu. 197~. p. 203.

~1
1
- Skidmore, Thomas. United States policy towards Brazil: assumptions and options. In:
HeUman, R. G. & Rosenbaurn, H. J. Latin America: the search for a new international role.
New York. Sage, 1975. p. 192.
18
Malan, Pedro S. Relações econômicas internacionais do Brasil. In: Fausto, Boris, org.
História geral da civili<Jlção brasileira. O Brasil republicano, São Paulo, Difel, 1984. v.
3, t.4: espec. p. 80-2.
19 Orenstein, Luiz & Sochaczewski, Antonio Claudio. Democracia com desenvolvimen-
to, 1956-1961. In: Abreu, Marcelo de Paiva, org. A ordem no progresso. Rio de Janeiro,
Campus, 1990. p. 193-4.
20 Malan, Pedro S. op. cit. p. 82-3. Ver também Orenstein, Luiz & Sochaczewski, Antonio
Claudio. op.cit.
21 Malan, Pedro S. op.cit. p. 82.
22 Carta de Jllscelino Kubitschek a Dwight Eisenhower, em 28.4.56 (CPDOC/BDE
56.04.2?"
23 Uma apreciação r.:-Iativamente recente da famosa viagem de Nixon à América Latina
pode ser vista em Zalmiser, M. R. & Weis, W. M. A diplomatic Pearl Harbor? Richard
Nixon·s goodwill rnission to Latin America in 1958. Diplomatic History, 12 (2): 163-90,
1988. Os autores tentam resgatar a utilidade "educativa" da viagem para o público e o
governo americano.
24 Carta de Juscelino Kubitschek a Dwighl Eisenhower, em 14.10.57 (CPDOCJBDE
57.10.14/2); Carta de Dwight Eisenhower a John Foster Dulles em 5.6.58, encaminhando
resposta a JK (CPDOC/BDE 58.06.05); Carta de Juscelino Kubitschek a Dwight Eise-
nhower em 22.8.58 (CPDOCJBDE 58.08.22).
25 Uma descrição circunstanciada do lançamento e desenvolvimento da Operação Pan-
Americana pode ser apreciada no relatório de pesquisa assinado por Francisco Cavalcanti
intitulado A Operação Pan-Americana. CPDOCfFGV, 1991. rnimeogr.
26 Peixoto, Emani do Amaral. Artes da política, org. por A. Camargo, L. Hippólito, M. C.
S. D' Araujo e Dora R. Flaksman. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. p. 414-7.
27 Torres, Garrido. "Operação Pan-Americana, uma polftica a formular. Revista Brasileira
de Política Internacional, p. 35-48, jun.l960.
28
Upton, T. Graydon. Operação Pan-Americana, o catalisador oculto? Revista Brasileira
de Política Internacional, p. 58-66, jun.1961.
29 Cf. Carvalho, Maria lvânia Navarro de. A Aliança para o Progresso no BrasiL Dis-
sertação de mestrado em Relações Internacionais. PUC-RJ. Departamento de Ciências
Jurídicas, 1990.
30 Dissertação de mestrado de Letícia de Abreu Pinheiro, intitulada. Ação e omissão: a
ambigüidade da política brasileira frente ao processo de descolonização africana, 1946-
1960. Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1988. Uma síntese desse trabalho foi editada sob forma de
artigo intitulado Brasil, Portugal e a descolonização africana (1946-1960). Contexto
Internacional, (9): 91-111, jan./jun.1989. Valho-me de seu trabalho para compor boa parte
deste item do presente artigo.
31 Lins, Álvaro. Missão em Portugal. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960.
32 Pinheiro, L. A. op.cit. p. 103.
33 Gonçalves, Williams. As relações Brasil-Portugal durante o governo Juscelino Kubit-

schek. mimeogr. p. 10-15.


34
Lins, Álvaro. Missão em Portugal. op.cit. v.1 , p. 9.

42
35
Pinherro, . p. 105-6.
. L. A. op.c1t.

36 Pinheiro, L. A. op.cit. p. 107-8. Gonçalves, W. op.cit. p. 2.


37 Melo Franco, Afonso Armos de. Portugal-Brasil-África. Tempo Brasileiro, 3fV39: 70,

jul./dez.1974.
38 ExamÍilei as motivações mtemas do rompimento de relações entre Brasil e URSS em
Brazilian Foreign Rela.tions, 1939-1950. Ph.D Thesis. University College London, p.
287-302.
39 As relações com a URSS. Editorial de O Estado de S. Paulo, 23 nov.l959, p.3.
40 Lacerda, Carlos. As ofertas russas ao Brasil. O Estado de S. Paulo, 9 fev.1956, p.7; Fala
Goulart à imprensa canadense. O Estado de S.Paulo, 12 maio 1956, p. 3; Declaração do
sr. João Ooulart em Roma. O Estado de S. Paulo, 6 jun.1956, p.3.
41 Pronto o relatório do ltamarati sobre as relações com a URSS, O Estado de S. Paulo, 8
jan.l958, p.32.
42 O impacto da posição do ex-chanceler de relações comerciais com a Rússia, Correio

da Manhã, 31 dez.1957, p. 1 e 11; entrevista de Aranha, Correio da Manhã, 28 fev.1958,


p. 14 e 12; nova entrevista de Aranha. Correio da Manhã, 6 nov.l958, p.14 e 7. Os
argumentos do ex-chanceler foram sistematizados num artigo intitulado Relações diplo-
máticas com a União Soviética. Revista Brasileira de Política Internacional, v.l,jun.1958.
43Dúvida sobre o relatório do Itamarati no caso do reatamento de relações com a URSS,
Correio da Manhã, 19 jan.1958, p.16 e 13; Senador quer saber... Correio da Manhã, 2
mar.1958, p. 20 e 15.
44 Satisfeito com o relatório do Itatnatati (sobre posição do cardeal-arcebispo do Rio, D.
Jayme de Barros Câmara). O Estado de S. Paulo, 11 jan.1958, p.38; Contra as relações com
a URSS o Conselho de Segurança Nacional. O Estado de S.Paulo, 15 fev.1958, p.4; Vale
a pena lutar por nosso país nesse momento (posição do Dep. José Maria Alkmin, favorável
ao reatamento). O Estado de S.Paulo, 18 abr.I958, p.34; Questão antiga a vmda do
diplomata (posição da Associação Brasileira de Exportadores, favorável ao reatamento).
O Estado de S.Paulo, 3 dez.1958, p.S.
45 Troca de mensagens entre Kubitschek e Nikita Kruschev. O Estado de S.Paulo, 6
jan.I960, p.36.
46 Jaguaribe, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro, ISEB, 1958.
47
Idem, p. 221-2.
48 lb., p. 271-3.
49
Valle, H. Alguns aspectos das relações Brasil-EVA. Revista Br_asileira de Política
Internacional. Rio de Janeiro, p. 5-16, dez.l961.
5° Cardoso, Miriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977. p. 104-12.
51Id. ibid. p.131-9. Ver também Rodrigues, José Honório. Uma política própria e
mdependente. Política Externa Independente, Rio de Janeiro, (1): 31-9, 1965.
52 Lafer, Horácio. Operação Pan-Americana. Revista Brasileira de PoUticsz Internacional,
Rio de .Janeiro, p.l23-6,jun.l960.
A década de 50 e o Programa de Metas
Clovis de Faro*
Salomão L. Quadros da Silva**

Recém-saídos da chamada década perdida, como ficaram tristemente caracte-


rizados, em termos de desempenho econômico, os anos 80; após um 1990 que
marcou uma das quedas de produto das mais dramáticas de nossa história; e
ainda por cima vivendo em plena recessão e com altas taxas de inflação neste
ano de 1991, não é sem saudosismo que olhamos para o período em que fomos
governados pelo presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. Afinal de contas,
embora associados a um certo descontrole das contas públicas, os anos JK
(1956-60) foram fundamentalmente marcados por altas taxas de crescimento
econômico e por uma boa dose de otimismo.

Dado que o êxito da administração JK pode ser diretamente creditado a uma


das nossas mais bem-sucedidas experiências de planejamento econômico,
consubstanciada no que foi denominado Programa de Metas, é oportuno que,
contando com a perspectiva propiciada pelos quase quarenta anos decorridos
desde sua concepção, se faça um retrospecto. Fique claro, porém, que não tendo
como objetivo uma análise econômica, no seu sentido formal, nossa apresen-
tação terá mais um caráter informativo, meramente acompanhado de alguns
comentários gerais.

O artigo compõem-se de duas partes. Na primeira, o ano de 1955 é tomado


como momento-chave para se traçar um quadro da economia brasileira da
época. Na segunda, o Plano de Metas está em foco: seus antecedentes, seus
objetivos e também seus resultados são, mesmo que brevemente, historiados.

1. O Brasil às vésperas de JK

Durante o ano de 1955, o ágio sobre a cotação oficial do dólar manteve-se


inalterado, em tomo de 100%. Daí não se moveu nem no mês de outubro, com
a eleição presidencial, nem em novembro, quando escaramuças militares
pretenderam barrar a posse de Juscelino Kubitschek, nem depois, com a

* Diretor de publicações técnico-científicas da EPGE; editor da RJJE e professor na EPGE.


** Chefe do Banco de Dados do IBRE/FGV.
Nota: Agradecemos a Antônio Adorno Filho e Maria das Graças E. Alirnandro, da equipe ao
Banco de Dados do IBRE/FGV.

44
aproximação do início do novo mandato. Há 36 anos, as incertezas e expecta-
tivas econômicas dos brasileiros eram outras e não se expressavam através de
flutuações no valor da moeda americana. O ágio que existia, legal porque
resultava de negociações em bolsas, era produto de wn complicado esquema
de racionamento cambial estabelecido pela Instrução 70 da Superintendência
da Moeda e do Crédito (Swnoc). Seu valor, elevado, traduzia o que os preços
em geral costumam traduzir: o grau de escassez de qualquer mercadoria. Em
1955, divisas estrangeiras eram mercadoria rara e, por isso mesmo, cara.
Mas no Brasil de 1955, a neutralidade positivista dos preços relativos era
matéria de enfado e desgosto. Nossos planejadores de primeira geração haviam
sido impregnados pelo conceito de bottlenecks (pontos de estrangulamento) e
por outras formulações modernas, difundidas por técnicos americanos. Após a
visita de duas missões de cooperação e do trabalho de uma Comissão Mista
Brasil-EVA, o desenvolvimento econômico estava agora, inadiavelrnente, ao
alcance de todos. Eliminar os obstáculos que retinham o crescimento da
produção, a acumulação de riquezas e a melhoria da qualidade de vida da
população rapidamente converteu-se em obsessão política e, a seguir, em
programa de governo. Aquele Brasil, de estrutura econômica ainda tenra o
bastante para abrigar os vôos da imaginação desenvolvimentista, estava pronto
para ser modelado.
O molde deveria envolver um país "essencialmente" agrícola, pelo menos
assim diziam as estatísticas. Dos 51.944.397 brasileiros recenseados em 1950,
33.161.506 habitavam zonas rurais. Na mesma data, de wna população econo-
micamente ativa de 17.117,4milharesde pessoas, 10.369,9milharestrabalhavam
no setor agropecuário, que absorvia 29% da renda nacional. Em 1955, o setor
agrícola ainda era essenciaImente cafeeiro. O café respondia por 30% do valor
da produção vegetal, que por sua vez contribuía com mais de 70% do valor da
produção agropecuária. Tão merecedora de destaque era a performance desta
cultura que as séries históricas de produto agrícola, exportações e preços por
atacado desdobravam-se, cada uma, em outras duas, com e sem café, capazes de
apresentar resultados contraditórios e até mesmo diametralmente opostos.
O indicador mais cintilante da soberania econômica do café era o seu peso
nas exportações. Em 1955, o país exportou o equivalente a 1.419 milhões de
dólares em mercadorias, 60% dos quais provenientes das vendas de café. A
conversão para cruzeiros desta receita cambial se fazia à taxa de 37,06 cruzeiros
por dólar. Enquanto isso, no mercado livre, o dólar era negociado a 66,75
cruzeiros.
A Instrução 70 da Sumoc, de 1953, que segmentou as pautas de exportação
e importação, atribuindo a algumas categorias taxas de câmbio próprias e
deixando ao mercado a tarefa de atribuí-las às demais, minorou parcialmente
as perdas do setor cafeeiro. Classificado na categoria inicial, cuja taxa, com a
instrução, passou a valer23,36 cruzeiros, após seis anos de vigência da paridade
de 18,36 cruzeiros, fixada em acordo com o FMI, o café exportado começou a
:eceber o pagamento de bonificações, custeadas pelos ágios dos leilões de
câmbio para as importações. Os exportadores de café nunca chegaram a ver
nestas bonificações a compensação plena para a sobrevalorização da taxa
cambial de sua categoria. O declínio do império cafeeiro acentuou-se entre
1954 e 1963, período em que as cotações internacionais despencaram de 78,71
para 34,11 cents/libra peso.
Em contraste com a opulência da cafeicultura, as lavouras alimentares,
caracterizadas por produtividade baixa e estacionária, proporcionavam ao
brasileiro uma oferta nutricional deficiente. Em 1955, as 3,6 milhões de
toneladas colhidas de arroz, 62 kg por habitante, foram produzidas à razão de
1,52tfha. No mesmo ano, a China, com uma população dez vezes maior,
produziu 2,5tfha, cabendo 84 kg a cada habitante. A produtividade do trigo
brasileiro situava-se na faixa de 0,80tfha, pouco mais que a metade do rendi-
mento argentino. Em 1955, a produção nacional não ultrapassou os 15,7 kg/hab.
Mesmo considerando-se as importações do cereal, 28 kg!hab, a oferta domés-
tica colocou-se significativamente aquém da produção argentina, de 327
kg/hab. Mas se o prato principal deixava a desejar, o brasileiro ia à forra na
sobremesa. O consumo per capica de açúcar atingiu 33 kg em 1955, similar ao
da Bélgica.
Enquanto a agricultura fraquejava, as pretensões industrializantes de alguns
grupos privados, hibernadas desde o fim da li Guerra Mundial, ganhavam novo
alento. A Instrução 113 da Sumoc, de 1~55, que teve seu mentor em Eugênio
Gudin, ministro da Fazenda, permitiu o ingresso de equipamentos estrangeiros
no país sem o dispêndio de divisas. Muitos empresários brasileiros sentiram-se
discriminados com a medida. Enquanto empresas genuinamente nacionais
precisavam freqüentar os leilões de câmbio para conseguir importar, outras,
associadas a capitais estrangeiros, o faziam diretamente pela 113. Como o setor
automobilístico, por exemplo.
Desde 1919, quando Hen.ry Ford acreditou que um dia o Brasil teria boas
estradas e instalou aqui a Ford Motor Company Export Inc., o Brasil compor-
I,
tava ramificações da indústria automobilística. Nos anos 20, a General Motots
e a International Harvester também iniciaram operações em território nacional.
Durante trinta anos estas operações limitaram-se à importação de peças para a
montagem de caminhões e também de alguns carros, como o lendário Ford
Pé-de-Bode, de 1929. Direta ou indiretamente, os mais de 300 mil carros de
passeio que, em 1955, trafegavam pelas cidades e pelos 400 mil km de estradas
de terra tinham sido importados. O potencial inexplorado deste mercado,
reprimido à força de controles administrativos de câmbio, fermentava pressões
internas para que se impedisse a continuidade das importações. A Instrução 113
era o "caminho das pedras" para a nacionalização de todos os estágios da
manufatura.

46
Ainda em 1955, antes do governo Juscelino e do estabelecimento do GElA
(Grupo Executivo da Indústria Automobilística), em 1956, outras empresas,
entre elas a Mercedes-Benz, constituída no Brasil em 1954,já estav.am inves-
tindo para dar ao país caminhões com índices crescentes de nacionalização. O
ancestral dos caminhões nacionais foi o D-9500 da Fábrica Nacional de
Motores, a FNM, empresa governamental criada em 1940 e inicialmente
dedicada à fabricação de motores de avião. Em 1950, a FNM passou a
concentrar-se na produção de veículos de carga, sob licença da empresa italiana
Isotta-Fraschini, que pouco depois faliu. Tomou seu lugar a Alfa-Romeu,
detentora da patente do D-9500. Em 1953, a FNM produziu 373 unidades desse
caminhão. Em 1954 a produção alcançou 531 unidades e em 1955,já na terceira
etapa de nacionalização, que correspondia a 60% do peso do veículo, a
produção atingiu 2.420 unidades.
A fundição do primeiro bloco de motor diesel para caminhões, a pedido da
Mercedes-Benz, foi o acontecimento mais importante de 1955, para o setor
automobilístico privado. A presidência da cerimônia coube a Juscelino, já eleito
mas ainda não empossado. Os planos das duas companhias, FNM e Mercedes-
Benz, porém, eram retardados pela insuficiência da oferta de metais não ferrosos,
em particular cobre, chumbo e zinco, necessários aos empreendimentos. Em
compensação, a disponibilidade de metais ferrosos era mais que folgada.
A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) produziu 665.666t de aço em
lingotes e 521.666t de larninados de aço no ano de 1955. Estes dois valores
representaram mais de 50% das quantidades produzidas nas respectivas classes
de produtos, o que garantia à CSN a liderança isolada no setor. A segunda maior
empresa do ramo era a Companhia Siderúrgica Belga-Mineira, cuja produção,
em 1955, foi de 182.202t de aço em lingotes e 168.230t de laminados. A
Mannesmann, terceira colocada, produziu menos de 100 mil t de aço. Todas as
empresas do setor mantinham engavetada a maior parte de seus programas de
expansão. Nada modestos, esses programas se chocavam com as dificuldades
de ordem cambial que assolavam o país em 1955.
Tanto a siderurgia quanto a indústria automobilística eram setores emergentes,
em busca de seus caminhos de expansão. Os pesos-pesados do setor secundário,
há muito tempo estabelecidos, eram têxtil e alimentos. De acordo com o censo
de 1950, os dois, reunidos, contribuíram com 40% da produção industrial.
O setor de produtos alimentares, responsável por 20,5% de todo o valor
agregado na indústria de transformação, era composto por segmentos bastante
diferenciados. Um deles, o de frigoríficos, desde cedo formado por reduzido
número de participantes, notadamente empresas de capital estrangeiro, como
a Armour, a Anglo, a Swift e a Wilson, absotvia quase 20% do abate de reses,
estimado em 6 milhões de cabeças. Outro segmento, ativo desde os tempos do
Brasil Colônia, era a agroindústria açucareira. Em 1955, foram m oídas
24.819.410t de cana, convertidas em 2.072.965t de açúcar nas 378 usinas em

47
5=• iommento. A produtividade de 83,5 kg de açúcar por tonelada de cana
moi.Ca era bem próxima do coeficiente americano, que valia 93 kg/t. O setor
oe alimentos compreendia ainda, em grandes traços, a moagem de farinha de
~60 e de café, a fabricação de laticínios e a preparação de banha, que tinha
:.;gar em um número incontável de pequenos estabelecimentos, característicos
de uma época em que as famílias de todas as classes não dispensavam a
presença da gordura animal em suas mesas.
No setor têxtil o quadro não era dos mais animadores. Tradicional absorve-
dor de mão-de-obra, o setor têxtil empregava, em 1955, um terço dos operários
industriais, pagando-lhes salários 17% inferiores à média da indústria e metade
daquilo que ganhavam os empregados no setor automobilístico. A grande
concentração de maquinário obsoleto, com mais de 30 anos de uso, o des-
preparo da mão-de-obra e a matéria-prima de má qualidade condenavam o
Brasil a um nível de produtividade 45% inferior ao prevalecente em países
latino-americanos, como Chile e Peru. Apesar de todos esses pesares, em 1955,
o consumo aparente de produtos têxteis, de 4,5 kg/hab, metade do argentino e
a quarta parte do americano, era atendido em mais de 98% pela indústria
nacional.
Em outros setores da indústria brasileira a produção substitutiva de impor-
tações seguia, com sucesso, esta etapa do desenvolvimento econômico. Era o
caso da indústria do cimento que, em 1955, supria 90% do consumo doméstico,
embora a demanda ex-ante estivesse artificialmente reprimida. Papel e borracha
sintética, ao contrário, eram ainda majoritariamente importados. Na pauta de
importações, depois do trigo, com 140 milhões de dólares, os óleos combustíveis
e a gasolina, juntos, consumiram 130 núlhões de dólares em 1955. As compras
externas de veículos a motor, fortemente contidas, exigiram 43 milhões de
dólares, o dobro da despesa com bacalhau, que por sua vez superou as referentes
às aquisições de tratores de rodas e máquinas ferramentas.
Para financiar 1.099 milhões de dólares em importações, o Brasil contou
com 850 milhões de dólares obtidos com o café, mais 150 milhões provenientes
do algodão e do cacau, além de outros 120 milhões, amealhados em lotes
aproximados de 30 mil, com açúcar, minério de ferro, óleos vegetais e madeira
serrada. Quarenta por cento das exportações brasileiras destinavam-se aos
Estados Unidos que, já em 1955, haviam colecionado sucessivos reveses no
comércio bilateral. O saldo comercial de 320 milhões de dólares, conseguido
em 1955, excedeu o sempre deficitário balanço de serviços, deixando equili-
bradas nossas transações correntes. A regra geral, porém, nos anos anteriores
e nos seguintes, era de transações correntes deficitárias.
A queda vertical na importação de gasolina, de 3.672.026m3 em 1954 para
318.942m3 em 1955, garantiu 70 milhões de dólares ao saldo comercial. Esta
mudança radical de comportamento deveu-se à rápida expansão da capacidade
de refino de petróleo, após a cnação da Petrobrás, em fins de 1953, cem anos

48
!
____
~......
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depois das primeiras explorações. Nos anos 30, multinacionais como a Shell e a
Standard Oil adquiriram terras supostamente ricas em óleo mas não puderam
explorá-las porque a Constituição de 1934 havia tomado os minerais propriedade
da União. Essas e outras empresas estrangeiras, já então, dedicavam-se primor-
dialmente à distribuição de derivados de petróleo, do Oiapoque ao Chuf.
A primeira refinaria instalada no Brasil começou a operar em 1'932 em
Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Sua capacidade limitava-se a 300 barris por
dia. Em 1936 as Indústrias Matarazzo e a Petróleo Ipiranga inauguraram
refmarias com capacidade para 500 e 1 mil barris por dia, respectivamente. Em
1950, a primeira incursão empresarial do setor público no ramo petrolífero, a
refmaria Landulpho Alves, em Mataripe, Bahia, agregou mais 2.500 barris/dia
à capacidade existente no país. Nos anos seguintes, o Estado continuou inves-
tindo mais de 50% dos recursos de sua "conta" petróleo no aumento da
capacidade de refino, reservando à exploração apenas 20% . Por isso, a queda
na importação de gasolina foi acompanhada de acréscimos maiores na impor-
tação do que na produção de petróleo. De 1954 para 1955, em número de barris
por dia, a importação passou de 2.830 para 69.940, ao passo que a produção
subiu de 2.727 para 5.540.
O petróleo e seus derivados forneciam 40% de toda a energia requerida no
país, em 1955. Em segundo lugar nesta escala vinha a energia elétrica, suprindo
25% das necessidades. Desde o final dos anos 20, a geração de energia elétrica
no Brasil era praticamente monopolizada por empresas estrangeiras. Em 1955, a
Brazilian Traction, Light and Power Company, hoiLJing, entre outras, da São Paulo
Light and Power Company e de sua co-irmã carioca, detinha 50% dos 3.148.500
kW instalados no país. O grupo Amforp, cuja subsidiária mais importante era a
Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), eletrificava um terço do território
paulista. As concessionárias que serviam o Nordeste, como a Pernambuco
Tramway and Power Co. Ltd., restringiam-se a distribuir a energia produzida pela
Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), cuja potência instalada, de
200 mil kW à época, dependia em 90% da usina de Paulo Afonso.
Estas empresas, que dominavam o setor de energia elétrica, eram também
as proprietárias de 95% de todo o estoque de 162,5 milhões de dólares de capital
estrangeiro registrado na Sumoc, em 31 de dezembro de 1955, sob o qualifica-
tivo ..de especial interesse para a economia nacional". Ainda que o qualificati-
vo, por ser restringente, subestime a participação do capital estrangeiro na
economia nacional, o saldo registrado na Sumoc não chegava a representar 2%
do· produto interno bruto, percentual que a Instrução 113 encarregou-se de
elevar. Todavia, as reações à sua presença eram carregadas de um teor de
emocionalidade desproporcional à verdadeira grandeza macroeconômica do
capital estrangeiro. O trecho abaixo, retirado de mensagem enviada ao congres-
so pelo então presidente Getúlio Vargas, é ilustrativo da retórica nacionalista
que imperava antes da eleição de Juscelino Kubitschek. Dizia Vargas das

~9
:i.iimrinacionais: a ..ação predatória destas forças de rapina que não conhecem
bandeira nem cultuam outra religião que não seja a do lucro".
O crescimento da oferta de energia elétrica a taxas inferiores ao ritmo da
industrialização que vinha ocorrendo desde os anos 40 foi a justificativa mais
ftmdamentada para a intensificação da presença do setor público nesta ativi-
dade. Na primeira metade da década de 50, a participação das empresas
públicas na capacidade geradora do país quase triplicou. Em 1955 o setor
público já respondia por 17% da potência instalada. A usina de Fumas era então
apenas um projeto que, na avaliação de especialistas, poderia duplicar a ..
capacidade geradora de energia elétrica do setor público.
A rede ferroviária em tráfego em 1955 media 37.092km, 97% da extensão
máxima que chegou a atingir antes de iniciar um longo ciclo de decadência e
desativações. Construídas pelo governo ou encampadas a empresas nacionais
e estrangeiras, em alguns casos através de transações de duvidosa imparciali-
dade, as estradas de ferro, em seu conjunto, estavam integralmente estatizadas
em 1955. A União possuía o controle de 80% da rede, que empregava 215 mil
funcionários. Os trechos mais expressivos em extensão eram, pela ordem, a
Rede Mineira de Viação, a Estrada de Ferro Central do Brasil e a Viação Férrea
do Rio Grande do Sul, cada uma com aproximadamente 10% do comprimento
total. Pelas ferrovias eram transportados 20% das mercadorias e 28% dos
passageiros, enquanto para as rodovias estas proporções subiam para 56% e
67%, respectivamente.
Em 1955, havia no Brasil 3 mil km de estradas pavimentadas, embora a
extensão da malha rodoviária superasse os 400 mil quilômetros. Destes, 380
mil pertenciam às administrações municipais, naturalmente menos providas de
recursos do que a União. A precariedade da rede de estradas, intransitáveis boa
parte do ano por causa das chuvas, e também a baixa confiabilidade do sistema
de peças de reposição eram comumente apontados como barreiras ao es-
tabelecimento de uma indústria automobilística no país.
O setor de comunicações vivia, em 1955, um processo de transição em túvel
mundial, em que o tráfego telefônico substituía velozmente o telegráfico. Nos
Estados Unidos, nos dez anos que se seguiram ao fun da II Guerra Mundial, o
número de telefones instalados duplicou, chegando em 1955 a 56,2 milhões de
aparelhos, o equivalente a 340 por mil habitantes. No mesmo período da extensão
a rede de cabos telegráficos reduziu-se de 2.247 para 1.100 milhas.
No Brasil, em 1955, havia 811.393 telefones instalados, ou 13,5 por mil
habitantes. A rede telefônica expandiu-se, na primeira metade da década, a uma
taxa média de 10% ao ano. Por outro lado, a expedição de telegramas atingiu
33.230 em 1955, o número mais elevado desde a inauguração das linhas
telegráficas, em 1862. A partir de 1956 o uso de telegramas decaiu ininter-
ruptamente.

50
Em 1955, prosseguia em vigor a Lei da Usura, proibindo juros norrúnais
superiores a 12% ao ano. A imposição desse teto, numa fase em que a inflação
anual já superava com facilidade os 20%, atrofiava a acumulação de poupança
fmanceira. Os bancos comerciais captavam cinco vezes mais depósitos à vista
do que a prazo, embora tanto uma modalidade quanto a outra crescesse apenas
vegetativamente. O volume per capita de depósitos bancários no Brasil de 1955
era de 35 dólares, pouco inferior aos 42 dólares da Argentina e 40 do Chile.
Num país em estágio avançado de desenvolvimento financeiro, como os
Estados Unidos, este quociente aproximava-se de 1.200 dólares.
O desinteresse pelas aplicações financeiras era particularmente sentido pelo
Tesouro Nacional. O saldo dos títulos públicos em circulação em 1955 corres-
pendia à metade do saldo em depósito a prazo e encontrava-se praticamente
inalterado desde o início da década. Os papéis públicos com maior volume de
negócios na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro eram as Obrigações de Guerra
da União, títulos ao portador que pagavam juros de 6% ao ano. Diante da
inapetência dos investidores frente aos papéis governamentais, o envolvimento
crescente do setor público na atividade econôrrúca precisou recorrer à exparu>ào
da base monetária. Em 1955 a proporção entre os saldos dos títulos e da base
era de 1 para 9.
Onipresente no mercado financeiro, o já então quase sesquicentenário Banco
do Brasil desempenhava funções de autoridade monetária com mais freqüência
que a própria Sumoc, criada 10 anos antes como aspirante a Banco Central.
Detentor de apenas 15% dos depósitos à vista e 5% dos depósitos a prazo, o
banco fundado por D. João VI conquistara para si uma fatia de 30% dos
empréstimos concedidos ao setor privado. Esta desproporção entre ativo e
passivo realçava ainda mais a condição de autoridade monetária do Banco do
Brasil, isto é, a provisão de recursos inacessíveis aos bancos comerciais puros.
Em 1955, os depósitos de 1.500 milhões de dólares no Banco do Brasil,
maior banco comercial brasileiro, rivalizavam com os mantidos no Dresdner
Bank, de Frankfurt, 33º colocado no ranking mundial. O segundo lugar, entre
os 400 bancos ou casas bancárias existentes, pertencia, naquele ano, ao Banco
do Estado de São Paulo, com depósitos avaliados em 250 rrúlhões de dólares.
O terceiro colocado e primeiro entre as instituições privadas era o Banco da
Lavoura de Minas Gerais, cujos depósitos alcançavam 150 milhões de dólares.
Em desacordo com o nome, o banco, destinava menos de 10% de seus
empréstimos à lavoura, preferindo o comércio como aplicação. O Bradesco
ainda era o Banco Brasileiro de Descontos, nono colocado, enquanto o Itaú
ocupava uma pálida 3()!! posição. Entre os dez maiores estabelecimentos
bancários do país não havia nenhuma instituição internacional.
Da mesma forma que os depósitos, os empréstimos bancários cresciam muito
lentamente em 1955, com exceções momentâneas por parte do Banco do Brasil.
Para complementar a ação desenvolvimentista própria das atividades creditícias

5:
~do Banco do Brasil, fora criado, em 1952, o Banco Nacional do Desenvol-
Timer:no Econômico (BNDE). Em 1955, contudo, seus empréstimos, dirigidos
~ente aos setores industriais de base, eram ainda incipientes.
A pouca atratividade exercida pelo sistema financeiro sobre o público,
comprovada pelos 2% de participação deste segmento na renda nacional, era,
em parte, responsável pela procura ao tnercado acionário. Os títulos privados
de companhias industriais de tecidos, como a Nova América, eram os preferidos
dos investidores mais avessos ao risco. Em 1955, estes papéis foram objeto de
55% das operações realizadas na Bolsa do Rio, cujo total igualou-se ao
montante de subsídios pagos pelas três esferas de governo ao setor privado.
Em 1955, os conhecidos dilemas acerca dos preços das ações provocavam
acalorados debates. As blue chips - Btahma, Mesbla, Mannesmann, Belga-
Mineira, Souza Cruz etc.- eram negociadas com PL'sl superiores a 10, pelo
menos o dobro da média das demais ações transacionadas em bolsa. A Vale do
Rio Doce já se insinuava como ação francamente especulativa, capaz de variar
dez vezes mais pontos percentuais do que o nível geral de preços.
Na repartição da renda interna, em 1955, São Paulo já ocupava a dianteira,
com 33% do bolo. O Rio de Janeiro, a cidade-estado, na época Distrito Federal,
encontrava-se num distante segundo lugar, com 14%. Minas Gerais vinha logo
a seguir, com 11%. Os estados do Nordeste, em conjunto, geravam 9% da renda,
cabendo a Pernambuco 35% da parcela desta região. A indústria nacional era
45% paulista, mas na agricultura o predomínio de São Paulo não era o mesmo,
correspondendo ao estado 27% da renda rural. São Paulo perdia para o Rio a
disputa de centro financeiro com maior atuação no país. Em 1955, as contas
nacionais atribuíam ao Rio de Janeiro 36% da renda obtida na intermediação
financeira, enquanto São Paulo aparecia com 31%. Embora o Rio sediasse um
complexo bancário mais numeroso e ramificado, São Paulo tinha a preferência
das instituições de maior porte. O Rio de Janeiro concentrava ainda 33% da
renda proveniente de atividades governamentais, além de ser um importante
núcleo comercial, com 22% da renda deste setor.
A população do Rio de Janeiro, de 2,3 milhões de habitantes, superava a da
cidade de São Paulo, à época na marca de 2 milhões. No Rio estava instalado
mais de um terço dos telefones em operação no Brasil, a tuberculose matava
mais do que todas as doenças do coração, e o aeroporto Santos Dumont, com
seus quase 30 mil pousos de aeronaves por ano, era o mais movimentado do
país. Em 1955, já se podia, duas vezes por semana, ir do Rio a Dakar, sem
escalas, a bordo dos modernos Constellation.
Em 1955, o déficit orçamentário consolidado das três esferas de governo
alcançou 12,5 milhões de cruzeiros, o equivalente a 1,5% do PIB. No mesmo
ano a base monetária registrou uma expansão de 18 milhões de cruzeiros
enquanto a dívida mobiliária federal permaneceu inalterada. Como se sabe,
nem só de déficits orçamentários alimenta-se a base monetária. Aquisições

52

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líquidas de divisas, assim como expansões líquidas de crédito ao setor privado
também a inflam. De todo modo, a semelhança entre os dois valores, o déficit
e a expansão da base, indica que a indisciplina fiscal, amparada pela "cama
elástica" monetária, constitui velho hábito entre nós.
Na divisão da despesa pública, as preferências da União recaíam sobre os
ministérios militares, aos quais eram destinados 28% dos recursos. Os transportes
· recebiam 22%, enquanto educação e saúde, reunidas, mal chegavam aos 10%.
Para fmanciar gastos de 63,3 milhões de cruzeiros, ou 8% do Pffi, o mesmo que
despenderam todos os estados e municípios juntos, o governo federal arrecadou
55,7 milhões de cruzeiros, ou 7% do Pm. Desta receita, 35% eram oriundos do
imposto de renda e 30% do imposto de consumo, que dez anos depois transfor-
mou-se em imposto sobre produtos industrializados. Outros 1O% da arrecadação
vieram do imposto do selo, que anos mais tarde tomou-se o imposto sobre
operações fmanceiras. No início da década de 50, o imposto do selo desbancou
da terceira posição o imposto sobre importação, que foi o principal tributo até a
II Guerra Mundial e em 1955 já se encontrava em ocaso definitivo, contribuindo
com apenas 3,5% da arrecadação.
Em 1955, à parte as funções típicas de governo, o Estado possuía ou
controlava numeroso elenco de empresas que atuavam em vários setores da
atividade econômica. Na indústria cabe destacar a Petrobrás, a Companhia
Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Nacional
de Álcalis, a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Hidrelétrica do São
Francisco. Na intermediação financeira são lembranças obrigatórias o Banco
do Brasil, as Caixas Econômicas, o Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico, o Banco do Nordeste e o Banco Nacional de Crédito Cooperativo.
O terceiro mais importante foco de atenção do governo eram transportes e
comunicações. O Lóide Brasileiro, o Serviço de Navegação do Rio da Prata, a
Administração do Porto do Rio de Janeiro, as ferrovias federais e estaduais e
outras empresas menos expressivas completavam o leque de estatais.
A performance econômico-financeira das empresas públicas era bastante
heterogênea. As industriais, de um modo geral, eram lucrativas. Os bancos e
caixas econômicas apresentavam lucros mais moderados, enquanto aquelas do
setor de transportes e comunicações amargavam prejuízos tão pesados que
anulavam os bons resultados dos dois primeiros grupos. Em 1955, as estatais
pagavam 8 a 10% da folha total de salários do setor urbano e não contribuíam
com mais do que 3 a 5% para a formação bruta de capital fixo da economia.
Na área financeira, a participação das empresas governamentais chegava a 35 %
da renda gerada neste segmento. Na área de transportes e comunicações as
empresas públicas recebiam subvenções superiores a suas receitas operacio-
nais. Etn todas elas já se detectavam sintomas de improdutividade com niYeis
de salário e de emprego adiante de suas reais possibilidades.

53
1955 foi um ano de inflação em queda. Entre janeiro e dezembro, o Índice
Geral de Preços da Fundação Getulio Vargas subiu 12,4%, após dois anos
consecutivos de elevações superiores a 20%. A desaceleração pode ser credi- t
tada, em boa dose, ao monetarismo de Eugênio Gudin, que mesmo tendo
deixado o Ministério da Fazenda em meados do ano, conseguiu reduzir a taxa
de expansão dos meios de pagamento de 24,4% em 1954 para 16,1% em 1955.
A cartada ortodoxa do ministro foi vitoriosa também porque recebeu contri-
buições decisivas de componentes-chave da oferta agregada. Os gêneros ali-
mentícios subiram 8,9% naquele ano, a taxa de câmbio livre valorizou-se 12%
....
e o salário mínimo, após um polêmico reajuste de quase 100% em 1954,
atravessou todo o ano de 1955 absolutamente rígido em tennos nominais.
Mesmo congelado, o salário minimo desfrutava, em 1955, de um poder
aquisitivo 11% acima do que possuía em 1940, ano de sua criação. Até 1951 o
salário mínimo sofreu continuadas desvalorizações em termos reais. Com duas
vigorosas tacadas, uma em 1952 e outra em 1954, o então presidente Getúlio
Vargas pôs fun àquele estado de coisas, pelo merios por alguns anos.
As taxas de inflação no Brasil sempre estiveram entre as maiores do mundo.
Em 1955 apenas quatro países sofreram altas de preços mais elevadas. O
primeiro, com 68%, foi a Coréia, possivelmente ainda sob os efeitos da guerra.
Em seguida veio o Paraguai, com 24%, depois o México, com 15%, e,
finalmente, a Turquia, com 14%. Se a comparação tivesse sido feita um ano
antes, o Brasil só perderia para Coréia e Paraguai.
Nas suas relações econômicas com o resto do mundo o Brasil caracteriza-
va-se por ser receptor de capitais. Em 1955 ingressaram Iiquidamente 63
milhões de dólares em investimentos diretos. Coincidentemente, este foi tam-
bém o valor das remessas de lucros ao exterior, superior aos 35 milhões
correspondentes ao pagamento de juros. A soma destes dois itens, a renda
líquida enviada ao exterior, correspondia a 5,5% das exportações de mercado-
rias. Em 1955, os compromissos decorrentes de financiamentos estrangeiros
registrados na Sumoc totalizavam 1.556 milhões de dólares, valor que excedia
em 10% a receita com exportações.
Os fluxos de capitais internacionais que transitavam pelo Brasil eram
inegavelmente diminutos. E não podia ser diferente. Em 1955, o Brasil tinha
um Pffi de aproximadamente 12 bilhões de dólares, seis vezes maior que o da
Coréia, 30% superior ao do México, a metade do indiano, um terço do italiano,
a 35 2 parte do americano e 1% do somatório dos produtos nacionais de todos
os países que apresentavam estatísticas ao FMI. Nosso comércio não passava
de 0,5 % do total mundial.
Assim, foi da condição de figurante apagado na cena econômica internacio-
nal que o Brasil iniciou um longo trajeto introspectivo, rumo à auto-suficiência
mais completa possível. Juscelino Kubitschek, porém, não conheceu o fim
dessa viagem.

54
2. O Programa de Metas

·~
2.1 Antecedentes

A idéia da adoção, aqui no Brasil, do planejamento como instrumento de


política econômica em economias de mercado, que acabou por ser posta
efetivamente em prática com o Programa de Metas, foi acompanhada de
,.. acirrados debates. De um lado, como ferrenhos opositores, tínhamos os adeptos
da postura liberal, cujos expoentes eram Eugênio Gudin e Octavio Gouvêa de
Bulhões. De outro, como proponentes, tínhamos Roberto Simonsen, que exer-
ceu a presidência da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, e
Euvaldo Lódi, que presidiu a Confederação Naciunal da Indústria, para os quais
era imprescindível a coordenação estatal das decisões econômicas. Palcos
destes debates foram o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial,
criado em dezembro de 1943, onde pontificava Roberto Simonsen, e a Comis-
são de Planejamento Econômico, instituída em outubro de 1944, que contava
com a presença marcante de Eugênio Gudin. 2
Segundo Roberto Campos, wn vigoroso adepto do planejamento econômico
e uma das figuras instrumentais na elaboração e execução do Programa de
Metas, juntamente com Lucas Lopes, as primeiras tentativas de planejamento
no Brasil ocorreram ainda durante a II Guerra Mundial. Exemplos dos primei-
ros esforços são o Plano Qüinqüenal de Obras e Reaparelhamento da Defesa
Nacional, que data de 1942, e o Plano Salte (saúde, alimentação, transporte e
energia), que foi elaborado durante os anos de 1946 e 1947 e cujas origens
podem ser atribuídas às idéias desenvolvidas por técnicos do Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP). Deve ainda ser mencionado o
conjunto de recomendações das chamadas Missão Cooke, de 1943, e Missão
Abbink, de 1948. Esta última pode ser considerada representativa do primeiro
enfoque de formulação de política macroeconômica. 3

Mais fundamental foi o trabalho elaborado pela Comissão Mista para o


Desenvolvimento Brasil- Estados Unidos, estabelecida em dezembro de 1949.
Sua principal contribuição foi a elaboração do conceito de pontos de es-
trangulamento como elemento para a identificação de áreas prioritárias de
desenvolvimento. Mesmo interrompida de forma repentina, em 1953, a comis-
são lançou o que foi a base instrumental para a criação do Banco Nacional do
Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952. Concorreram também para
a definição do Programa de Metas as projeções e estudos conduzidos pela
equipe mista da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) -
BNDE, da qual fazia parte, como representante da CEPAL, o economista e
futuro ministro do Planejamento Celso Furtado. 4

55
- 2 O programa

fiel ao seu mqte de campanha, de "50 anos (de progresso) em 5", Juscelino
Kubitchek, logo após sua posse, instituiu, pelo Decreto nº 38.744, de 12 de
fevereiro de 1956, o Conselho do Desenvolvimento, diretamente subordinado
ao Presidente da República, que se constituiu no primeiro órgão central de
planejamento de caráter permanente no Brasil. Como seu secretário-geral foi
designado Lucas Lopes, que exercia cumulativamente a presidência do BNDE
e que havia sido também colaborador de Juscelino em sua gestão como
governador de Minas Gerais.
Fazendo uso de refmamentos do conceito de pontos de germinação, cujos
princípios, datados da criação do BNDE, tinham como fundamento a identifica-
ção de setores que, uma vez adequadamente estimulados, poderiam apresentar
capacidade de crescimento, e atendendo à necessidade de ampliação de setores
de infra-estrutura básica, notadamente nas áreas de energia e transportes, previa-
mente apontados como pontos de estrangulamento, o Conselho do Desenvolvi-
mento elaborou um conjunto de 30 objetivos específicos, distribuídos segundo
cinco setores, denominado Programa de Metas. Contando com metas quantitati-
vas, determinadas tanto com base no detalhamento de projetos específicos, tais
como geração de energia elétrica e transporte ferroviário, quanto em projetos
ainda em estudo, como no caso da siderurgia; com uma listagem de prioridades
para a expansão de áreas tais como mecânica pesada, metais não ferrosos e
materiais elétricos; e ainda com a formulação de incentivos a serem dados à
iniciativa privada para que se atingissem os objetivos propostos, que vieram a se
transformar em projetos específicos, como nos casos das indústrias automobilís-
tica e naval, o Programa de Metas pode ser sumariado da forma a seguir.5

I. Setor de energia

Meta 1 Energia elétrica: elevação da potência instalada de 3 milhões de


kW para 5 milhões de kW e ataque de obras que possibilitassem
o aumento para 8 milhões de kW em 1965.
Meta2 Energia nuclear: instalação de uma central atômica pioneira de
10 mil kW e expansão da metalurgia dos minerais atômicos.
Meta3 Carvão mineral: aumento da produção de carvão de 2 milhões
para 3 milhões toneladas/ano de 1955 a 1960, com ampliação da
utilização in loco para fins termelétricos dos rejeitos e tipos
inferiores.
Meta4 Petróleo (produção): aumento da produção de petróleo de 6.800
barris em fms de 1955 para 100 mil barris de média de produção
diária em fins de 1960.

56
} Meta5 Petróleo (refinação): aumento da capacidade de refinação de 130
mil barris diários em 1955 para 330 mil barris diários em fins de
1960.

11. Setor de transportes

r
.) Meta 6 - Ferrovias (reaparelhamento): com jnvestjmento de US$239 mi-
lhões e Cr$ 39,8 bilhões.
Meta 7 Ferrovias (construção): construção de 2.100km de novas fer-
rovias, 280km de variantes e 320km de alargamento de bitola.
Meta 8 Rodovias (pavimentação): pavimentação asfáltica de 5 mil km
de rodovias até 1960.
Meta 9 Rodovias (construção): construção de 12 mil km de rodovias de
1a classe até 1960.
Meta 1O Portos e dragagem: reaparelhamento e ampliação de portos e
aquisição de uma frota de dragagem com investimento de
US$32,5 milhões e Cr$5,9 bilhões.
Meta 11 - Marinha mercante: ampliação da frota de cabotagem e longo
curso de 300 mil toneladas e da frota de petroleiros de 330 mil
toneladas (deadweight) dwt.
Meta 12 - Transportes aeroviários: renovação da frota aérea comercial com
a compra de 42 aviões.

111. Setor de alimentação

Meta 13 Produção agrícola (trigo): aumento da produção de trigo de 700


mil para 1.500 mil toneladas.
Meta 14 Annazéns e silos: construção de annazéns e silos para uma
capacidade estática de 742 mil toneladas.
Meta 15 Armazéns frigoríficos: construção e aparelhamento de armazéns
frigoríficos para uma capacidade estática de 45 mil toneladas.
Meta 16 Matadouros industriais: construção de matadouros com capaci-
dade de abate diário de 3.550 bovinos e 1.300 suínos.
Meta 17 Mecanização da agricultura: aumento do número de tratores em
uso na agricultura de 45 mil para 72 mil unidades.
Meta 18 Fertilizantes: aumento da produção de adubos quúnicos de 18
mil toneladas para 120 mil toneladas de conteúdo de rutrogênio
e arudrido fosfórico.

57
n: Setor de indústrias de base
Meta 19 - Siderurgia: aumento da capacidade de produção de aço em
lingotes de 1 milhão para 2 milhões de toneladas por ano em
1960 e pata 3.500 mil toneladas em 1965.
Meta 20 - Alumínio: aumento da capacidade de produção de alumínio de
2.600 para 18.800 toneladas em 1960 e 42 mil toneladas em
1962.
Meta 21 Metais não ferrosos: expansão da produção e refmo de metais
não ferrosos (cobre, chumbo, estanho, túquel etc.).
Meta 22 Cimento: aumento da capacidade de produção de cimento de
2.700 mH para 5 milhões de toneladas anuais em 1960.
Meta 23 Álcalis: aumento da capacidade de produção de álcalis de 20 mil
em 1955 para 152 mil toneladas anuais, em 1960.
Meta 24 Celulose e papel: aumento da produção de celulose de 90 mil
para 260 mil toneladas e de papel de jornal de 40 mil para 130
mil toneladas, entre 1955 e 1960.
Meta 25 Borracha: aumento da produção de borracha de 22 mil para 65 mil
toneladas, com o início da fabricação da borracha sintética.
Meta 26 Exportação de minério: aumento da exportação de minério de
ferro de 2.500 mil para 8 milhões de toneladas e preparação para
exportação de 30 milhões de toneladas no próximo qüinqüênio.
Meta 27 Indústria de automóveis: implantação da indústria pata produzir
170 mil veículos nacionalizados em 1960.
Meta 28 Construção naval: implantação da indústria de construção naval.
Meta 29 Indústria mecânica e de material elétrico pesado: implantação e
expansão da indústríá mecânica e de material elétrico pesado.

V. Setor de educação

Meta 30 - Pessoal técnico: intensificação da formação de pessoal técnico e


orientação da educação para o desenvolvimento.

2.3 Execução6

Baseado na adoção de uma tarifa aduaneira efetivamente protecionista, com-


plementada com um sistema cambial que subsidiava tanto a importação de bens
de capital como de insumos básicos, e que atraía o investimento direto por parte
do capital estrangeiro, e contando com uma política monetária e fiscal aberta-

58
mente expansionista, o Programa de Metas pode ser considerado, no seu cerne,
como uma diretriz deliberada de industrialização. 7
Obedecida a coordenação geral do Conselho do Desenvolvimento, que, por
um processo de aproximações sucessivas, ia revendo as metas na medida em que
estas eram alcançadas ou desvios eram constatados, a execução do Programa de
Metas foi efetuada não só por meio de investimentos .estatais, basicamente no
caso das metas de infra-estrutura (energia e transporte), de refmo de petróleo e
de siderurgia, contando com a participação fmanceira e a supervisão do BNDE,
como por meio de investimentos privados. Para o caso destes últimos, buscando-
se evitar uma excessiva pulverização, a supervisão foi atribuída, para cada setor
específico, aos especialmente criados "grupos executivos". Assim, entre outros,
tivemos o famoso Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GElA), que se
responsabilizou pela coordenação da meta 27, e o Grupo Executivo da Indústria
da Construção Naval (GEICON), a quem coube a responsabilidade pelo acompa-
nhamento da meta 28. Relativamente ao ingresso de recursos externos, cabe
também destacar a ativa participação da antiga Superintendência de Moeda e
Crédito (Sumoc), que foi instrumental no estabelecimento de regras especiais de
favorecimento, inclusive para importação.

Tabela 1
Investimentos programados
(1957-61)
Custo estimado dos bens e serviços

Nacionais Importados Total Proporção


Setor
Cr$ bilhões US$ milhões Cr$ bilhões Cr$ bilhões (%)

Energia 110,0 862,2 (44,3) 154,3 43,4


Transportes 75,3 582,6 (30,0) 105,3 29,6
Alimentação 4,8 130,9 (6,7) 11,5 3,2
Indústrias
de base 34,6 742,8 (38,1) 72,7 20,4
Educação 12,0 12,0 3,4
Total 236,0* 2.318,5* (119,1) 355,8* 100,0
Fonte: C. Lessa, op. cit.
*Estes totais em valores médios de 1991 seriam respectivamente: Cr$ 2.789,59 bilhões; USS
8.570, 52 milhões; Cr$ 4.205,66 bilhões.

Tendo sido decidido que o financiamento do plano deveria ser estabelecido


paralelamente à sua própria execução, e não previamente (como seria o mais
natural), o que pode ser considerado como tendo representado uma estratégia
para evitar resistências por parte do setor privado, os investimentos programa-

59
dos para o período 1957-61, agrupados segundo os cinco setores básicos e a
preços da época, são transcritos na tabela 1. Embora não se dispondo de dados
precisos, é importante ressaltar que os recursos envol\idos variaram entre 7,6%
do Produto Interno Bruto (Pffi), em 1957, e 4,1% em 1961.

2.4 Os resultados

Observando que, em termos globais, o sucesso do plano pode ser ilustrado pela
taxa média de crescimento do Pffi de 8,27% no período 1957-61; contra 6,06%
no qüinqüênio 1952-56, e 3,49% no período 1962-66, os resultados obtidos,
com relação a cada Utna das metas, foram:
1. energia elétrica - a capacidade instalada alcançou 4. 770 mil kW em 1960
(ou seja, 95,40% da meta proposta), subindo já para 5.205 mil kW em fins de
1961;
2. energia nuclear - foi construído e inaugurado o reator de pesquisas do
Instituto de Energia Atômica, na Cidade Universitária da Universidade de São
Paulo;
3. carvão mineral - alcançou-se a produção de 2.199 mil toneladas/ano, o
que representa 73,30% da meta proposta;
4. petróleo (produção) - em 1960 a produção chegou a 75.500 barris por dia
(ou seja, 75,5% da meta);
5. petróleo (refinação) - o volume refinado foi igual a 218 mil barris diários
em 1960, o que significa dizer que 66,7% da meta proposta foram atingidos;
6.ferrovias (reaparelhamento) - no seu conjunto, estima-se que tenham sido
alcançados 76% da meta prevista;
?.ferrovias (construção) - tendo sido construídos 826,5 km, conseguiu-se
chegar a somente 39,4% da meta estabelecida;
8. rodovias (pavimentação) - a meta foi ultrapassada em 24%, pois foram
pavimentados 6.202 km até 1960;
9. rodovias (construção) - a meta foi superada em 24,8%,já que, até 1960,
foram construídos 14.970 km;
10. portos, dragagem - no seu conjunto, estima-se que tenham sido alcan-
çados 56,1% da meta;
11. marinha mercante - foram respectivamente obtidas 255 mil dwt de
cabotagem e longo curso (85% da meta) e 300 mil dwt de petroleiros (90, 9%
da meta).
12. transporte aeroviário - adição de 13 unidades à frota aérea (31% da
meta);

60
13. produção agrícola (trigo) - tendo sido obtida a produção de somente 370
mil tem 1960, o resultado foi decepcionante, pois se ficou abaixo da produção
do início do período;
14. armazéns e silos - a capacidade estática adicionada chegou a 569.233t
(ou seja, 76,7% da meta);
15. armazéns frigoríficos - a ampliação da capacidade estática foi de so-
mente 8.014t, que representam apenas 17,8% da meta;
16. matadouros industriais - a capacidade diária de abate alcançou 2.100
bovinos (59,2% da meta) e 700 suínos (53,8% da meta);
17. mecanização da agricultura - o número de tratores em 1960, segundo
estimativas, foi de 77.362; logo, a meta foi superada em 7,2%;
18.fertilizantes - tendo a produção de adubos químicos alcançado 290 mil
t, a meta foi ultrapassada em 141,7%;
19. siderurgia - com a produção atingindo a 2.279 mil t de lingotes, a meta
não só foi alcançada, como superada em 14%;
20. alumínio - como em 1960 a produção foi de 16.573t, atingiu-se a 92,1%
da meta;
21. metais não ferrosos - as produções de cobre, chumbo, estanho e níquel
foram aumentadas em, respectivamente, 203,8%, 147,7%,93,7% e 143,6%;
22. cimento - a produção em 1960 chegou a 4.369.250t, ou seja, 87,4% da
meta;
23. álcalis - tendo a produção atingido 152 mil tem 1960, este é um caso
em que a totalidade da meta foi obtida;
24. celulose e papel - os resultados alcançados em 1960 foram 200.237t de
celulose (77% da meta) e 65.760t de papel de jornal (50,6% da meta);
25. borracha - embora, em 1960, tenha sido alcançada a meta de instalação
de capacidade de fabricação de borracha sintética, a produção de borracha foi
de somente 22.500t (ou seja, um aumento de apenas 2,3% em relação à
produção inicial);
26. exportação de minério - o volume exportado em 1960 de minério de
ferro foi 5 milhões de t, o que representa 62,5% da meta;
27. indústria de automóveis - esta meta, por seu simbolismo, pode ser
considerada como uma das mais representativas dos anos JK. Sua importância
como símbolo marcante do processo de industrialização é, inclusive, traduzida
na marca JK atribuída a um dos modelos da Alfa-Romeo, que eram produzidos
na antiga Fábrica Nacional de Motores.
A evolução da capacidade instalada e da produção efetiva no período 195'-60.
tanto para automóveis como para caminhões, é apresentada na tabela 2.

61
Tabela2
Montagem de veículos automotores - automóveis e caminhões

Capacidade instalada Produção efetiva


Anos
Automóveis Caminhões Automóveis Caminhões
1957 11.853 18.847 10.845 19.855
1958 50.200 33.830 25.521 35.608
1959 81.040 57.590 48.679 47.564
1960 116.520 82.660 81.753 51.325
Fonte: ]. Almeida. Evolução da capacidade de produção da indústria automobilística brasileira
no período 1957-69, Pesquisa e Planejamento Econômico, v.2, n_ 1 (jun. 1972), P- 55-80.

Embora tenha havido a presença de excessiva capacidade ociosa, a capaci-


dade total instalada em 1960, que chegou a 199.180 unidades, ultrapassou de
17,2% a meta fixada. Entretanto, em termos de índices de nacionalização, a
meta não foi totaltnente alcançada;
28. construção naval - dado que os projetos aprovados até 1960 apresenta-
vam uma capacidade de 158 mil dwtfano, a meta foi plenamente atingida;
29. indústria mecânica e de material elétrico pesado - as metas es-
tabelecidas, implantação e expansão, foram também plenamente satisfeitas.
Em relação a 1955, o aumento de produção de máquinas e equipamentos em
1960 foi de 100%, tendo sido de 200% no caso de material elétrico;
30. pessoal técnico - embora não quantificada, pode-se também dizer que
esta meta foi alcançada. Não só foram progressivamente aumentadas as verbas
destinadas ao Ministério da Educação e Cultura, como foi criado, em junho de
1959, o Grupo Executivo do Ensino e Aperfeiçoamento Técnico, que deixou
importantes subsídios sobre o assunto.
Sumariando, pode-se afirmar que, no que concerne a seus objetivos es-
pecíficos, a execução do Programa de Metas obteve uma grande dose de
sucesso. Isto também foi verdade no caso da construção de Brasília, que embora
não tenha sido incluída como um dos itens do programa, representava um
compromisso de campanha e podia ser considerada uma meta-símbolo. Não
obstante o fato de ter sido uma decisão extremamente controversa, e cujo custo
foi certamente excessivo (cerca de 2,3% do PIB), a construção da nova capital
encontrava suporte no conceito de ponto de germinação, posto que ela propi-
ciaria o maior desenvolvimento da região Centro-Oeste.

62
Anexo
Gráfico 1
Em 1965 a economia brasileira era Pm a preços constantes (base: 1949"'100)
2, 6 vezes maior que em 1950. Esta Número índice % ao ano
multiplicação foi o resultado de um - .-------------, •~
creScimento médio anual de 6, 7%. 110 taxa de
Entre 1956e 1960, osanosJK. esta variação
100
percentagem média elevou-se a
8,1 %. Não se elevou mais porque, ...
nesse período, as flutuações nas
safras de café ainda repercutiam ...
com enorme intensidade sobre o
PIB. Em 1956, a quantidade co-
.
lhida de café foi 28,5% inferior à ,... '"' lHO
'"'
de 1955. A indústria, por sua vez. LF<_.,_te_:lkvw:o
_ _de _dodc.Vl~_B_RE.ffG
~-v---------'
cresceu 6,0% no primeiro ano JK. Em 1958 a taxa de crescimento do PIB, em
termos reais, alcançou os 10,8, percentual suplilntado apenas no início dos
r
L
anos 70, durante o período conhecido como "mililgre econômico".
l
Gráfico 2 Indústria e agricultura-~ de
A participação da indústria de transformação participação no Pm
no produto interno bruto expandiu-se rapida- agricultura
mente na segunda metade da década de 50, /
saltando de 20,4% em 1955 para 25,6% em
1960. Este acréscimo foi acompanhado do es- 2o-
treitamento da fatia correspondente à agricul-
tura, que, no mesmo período, declinou de 10-. ,-
1tll0 1011
-· -. I
1HO 1010
r--r-~

23,5% para 17,8%. Fo.,lt: lkvw:o de dodc.VTBRF,IFGV

Valor da transformação industrial: % de participação por setores Gráfico 3


ProJ.. aiJtMIUDTU

:
::=:=;:;~~W#$)~#M~#U$Mm

=
Tutíl
Mclablrwl~
W/11// /$//////li'l.!'llh
W/1//UU/U#//IY$/h
Durante a década de
Prod "''"" ,.a.,.,..f'C6lko.r
(}ttflflicO ~$$& :
WI////1#/M :
50, a estrutura indus-
&INW ;- -4111< ' :
trial experimentou
""""""'
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Morklrtl : ~/, :
EJitorltJJ 6r4lfc-G
Prtltd.jQ!f'Wt.ewl~riltdria
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· transformações pal-
PapJ <pop<ldo
&r.«"" : Anos 5q An<?s 60 páveis. As indústrias
JIDL fk ITIIIUpM'k ..w;;;#lli#//h
Mobilibio
M«âlt~
_.a : líderes em 1950, pro-
. . .W//11. :
Dn-crMU
Ai« ellt. 1t de co,nmlt,
. f'//, : dutos alimentares e
.....$#ú.
p,~ ~ têxteis, cederam dez
F o_,
C6111Qt~pclc
hoJ. lftGit. pldstk'M I
••
-ri pontos p ercentuais
Fonu: Banco de
25 20 15 10 5 o 5 10 15 20 25 de participação a se-
~BRF,IFGV
tores nascemes. co-

63
"'lO o de material de transporte, impulsionado pela fabricação de automóveis,
e o de maJerial elétrico. Durante os anos JK, enquanto os dois primeiros
cresciam a taxas médias· anuais de 5,6% e 3, 7%, respectivamente, os outros
dois, naquela ordem, expandiam-se 30,6% e 24,6% ao ano.
No final de 1960, as 11 fábricas que
Produção de autovekulos compunham a indústria automobilística,
mil Wlidades
somadas, tinham capacidade para produ-
200- - -· - - - - - - zir 215 mil unidades, em turno único de
trabalho, com um índice de nacionaliza-
ção de 98%. A arrancadil do setor pode
também ser dimensionada através do
grau de diversificação da produção. Ao
término da gestão Kubitschek, eram fa-
bricados 11 tipos de caminhões médios,
leves e pesados; Séis tipos de automóveis
1957 1961 1965
de passeio; três tipos de jipes; quatro
tipos de utilitários e três tipos de ônibus.

Gráfico 4 - Café
Durante os anos 50, as exportações brasilei- Café: presos, produção e
ras de café, em torno de 15 milhões de sacas exportaçao
de 60kg anuais, começaram a perder terreno
para as variedades robustas, cultivadas na uss cents/lb milhões de sacas de 60 kg
África. Enquanto as exportações africanas s o h - - - - - - - - - - - - . 5 o
cresceram quase 50% na segunda metade da 70 c.I:.'Ir':./'\ ";:z~ ,o
décadil, as vendas externas do Brasil perma- \ li
neceram em níveis semelhantes às do come- 60 ~ \..-_\
30

ço do século. A controvertida política de &o 20


valorização de preços, depois de anos, vol-
tava-se contra seu principal artífice. Mesmo
elevando para 17 milhões anuais o número 1955 1960
de sacas exportadas durante os anos 60, a
receita cambial proveniente do café não pas- Fome: Banco lkdados(IBRE/FGV
sou de dois terços da obtida na décadil anterior.
\ ,·
f-..... Gráfico 5 -Petróleo
A capacidade de refino de petróleo do Brasil, virtualmente inexistente no início
dos anos 50, cresceu aos saltos, na medida em que novas unidades entravam
em operação ou expandiam-se as já instaladas. Em 1952, a refinaria lpiranga,
no Rio Grande do Sul, elevou sua capacidade de mil para 6 mil barris/dia. Em
1954, a refinaria Landulpho Alves, da Petrobrás, dobrou sua capacidade, de
2.500 para 5 mil barris/dia. Ainda nesse ano foram inauguradas as refinarias

64
de Manguinhos, no Rio de Petróleo: capacidade de refino e importação de
Janeiro, e União, em São gasolina
Paulo, agregando 35 mil mil barris/dia
barrisjdia à capacidade de 400I.------- - - -....,....,-..,.......,.--=-- - - .70
refino do pafs. -.. . .
Ao final de 1955, com·os 300
45 mil barris/dia adicionais
do. refinaria Presidente Ber-
nardes, em Cubatão, São 200 importação
de gasolina
I
Paulo, o Brasil já proces- (eocala à direita)
sava aproximadamente 100 100
mil barris/dia.
Embora a única refinaria
inaugurada durante o perío- 1965
1950 1955 1960
do JK tenha sido a de Ma-
naus, com capacidade para l.:F.~o"='"~Ba=nco=tk-=tlaiJoVI=-=8RE/1'.:::..:...;0::..:.v_ _ _ _ _ _ _ _ ____j
5 mil barris/dia, as ampliações das refinarias Presidente Bernardes, União e
Landulpho Alves foram metas bem-sucedidas do governo, que permitiram a
duplicação do. capacidade de refino do pafs.
A conseqüência inevitável do rápido crescimento do. atividade de refino de
petróleo no Brasil foi a instantânea e definitiva retração do. importação de
gasolina e demais derivadtJs. No lugar desses produtos, o país passou a
importar diretamente petr6~o, cuja disponibilidade interna foi, desde logo,
complementada pela. produção nacional.

)A
.--- -- -----..., Gráfico 6a -Energia elétrica
Energ_ia elétrica:
capacldade de geração
Na década de 40, enquanto a indústria de trans-
instalada formação mais do que dobrou seu índice de pro-
GW dução, a capacidade de geração de energia elé-
trica aumentou em apenas 50%, convertendo-se
no ponto de estrangulamento cuja remoção tor-
nou-se mais premente. A luz racionado. incorpo-
rara-se aos hábitos do. nação, condicionando ro-
tinas familiares e retardando decisões
empresariais.
Mesmo reconhecendo a potência desse obs-
táculo e destinando recursos substantivos à sua
Fonu:BtmcotktlaiJoVIBRE/f'VV eliminação, O governo JK nãO póde COlher todos
os frutos de seu empenho em acelerar o processo de eletrificação do pais.
Vários investimentos iniciados em sua gestão maturaram após 1960, corr.o

65
FiU7Ul.S, no âmbito fede ral, e Três Marias, na esfera estadual. Entre 1955 e
1960 a capacidade geradora cresceu 52,5%, ou 8,8% ao ano, 15 pontos de
percentagem a menos do que no qüinqüênio imediatamente anterior. No
qüinqüênio 1960-65 foi criada a Eletrobrás, holding que auxiliou na consoli-
dação do setor público como destacado empresário da área de energia elétrica.
Nesse qüinqüênio a capacidade instalada cresceu 55%.

Gráfico 6b - Rodovias
Rodovias: extensão
pavimentada A extensão da rede rodoviária pavimentada foi !J
millan quadruplicada durante o governo Kubitschek É
,.,-- - - - - -- --i certo que a rede contava com fnfimos 3.133/an em
fins de 1955, mas não é menos verdade que o
descaso com as estradas de rodagem condenaria
ao fracasso a meta de implantação da indústria
automobilfstica. Findo o período JK, a pavimen-
tação de rodovias prosseguiu em andamento ace-
~~t#lo~1880t;0~~~1gP'ie lerado. Entre 1960 e 1965, a extensão pavimen-
Fonk:Ba•cotkdados/IBREfFGv tada passou de 13.357/an para 26.546/an.
~~~~~~----~

Gráfico 7- Investimentos
A partir de 1955, com a en- . - - - - - - -- - - -------------,
trada em vigor da Instrução eFormação bruta de capital fixo (FBKF)
investimentos estrangeiros
113 da Sumoc, o ambiente
econômico brasileiro tor- US$ miUtães
nou-se mais e mais receptivo 20r-- - - -- -- - - -- - ----r14o
aos investimentos es- 120
trangeiros. Com efeito, de
l956a 1960, a entrada líqui- 8 100

da de capitais de risco atin-


giu US$ 565 milhões, o que FDKF
11
significa US$ 113 milhões
por ano, em média. Nos
qüinqüênios adjacentes, es-
tes influxos foram significa- •
tivamente inferiores. Entre
1951 e 1955, a entrada líqui- 2 -'-t--.--...,.---.--+--,......,--.-----.-+--.---.---,-----,....-+-'- · 2
da de investimentos diretos 19so 1866 1885
ficou em US$ 16, 2 milhões
ao ano, em média. Para os ._F<_onr_.:_&N:o_lk
_ dotJMIT ..;___v- - - -- - -- - ----l
__'-s_REffG

cinco anos pós-JK, a média registrada foi de US$ 61 milhões, sendo que no

66
biênio 1963-64, caracterizado pela diminuição das taxas de crescimento
econômico, esta média caiu para US$ 29 milhões.
Nos anos finais da década de 50, a formação bruta de capitalfixo absorvia
aproximadamente 17% do dispêndio correspondente ao produto interno bruto,
numa visível e importante realocação de recursos em comparação com anos
anteriores. Parte desse esforço deve ser creditado ao setor público que, desde
então, delimitou seu espaço como coadjuvante e não como rival do setor
privado na tarefa de acumulação de capital.

Gráfico 8 - Salário mínimo

Salário núnimo: valor real Durante os anos JK, o salário mínimo sofreu
(base: 1940=100) correções nominais de 58,3% em 1956, 57,9%
Nümt.roirulice em 1959 e 60% em 1960. Mesmo tendo perma-
necido fixo durante intervalos médios de quase
20 meses, numa época em que as taxas infla-
cionárias beiravam os 30% ao ano, foi nesse
perlodo que o salário mínimo teve o seu mais
alto poder aquisitivo. Segundo o DIEESE, os
Cr$ 3.800,00 de 1957 compravam 22% mais
1950 1955 1eso 1965 que os Cr$ 240,00 de 1940, ano de criação do
Fon,.: &""o <k ~BRE/FGV SaláriO m(nimo.

Gráfico 9 - Inflação e meios de pagamento


No terreno econômico, o calcanhar-de-aquiles do governo Kubitschek foi o
alto custo da opção preferencial pelo crescimento: elevação permanente da
taxa de inflação. A expansão monetária para financiar déficits orçamentários
do governo, sancionar aumentos salariais sem prejufzo do nível de emprego e
estimular as atividades pro-
dutivas, como não poderia :~~~~~e meios de pagamento: taxas anuais de
deixllr de ser, traduziu-se em Taxa de variação
inflação. Quando Juscelino 1 ao--
assumiu o poder, os preços
subiam 12,5% ao ano. 80-
Quando o deixou, a veloci-
60-- -
dade de ascensão dos preços
havia saltado para 30,5%.
Cabe salientar que mes-
mo o governo JK ·hesitou
ante o dilema entre es-
tabilizar e crescer. Por 1950 1955 1960 1965
necessidade de empréstimos L.:.F~onu=-=:&nco=~.u.:..:~=!.::8:..::REIFG:::!..:...::..::v_ _ _ _ _ _ _ _ _ _.....:


j:mlo ao FMI, em 1958, o presidente tentou implantar o Programa de Es-
:abilização Monetária, que pretendia reduzir gradualmente o ritmo de eleva-
ção dos preços. Entretanto, no curto espaço de seis meses, o plano de es-
tabilização entrou em rota frontal de colisão com o Programa de Metas, que
prevaleceu.
O clima de "ressaca" política e econômica em que se viu submerso o país
no início dos anos 60 pôs em xeque convicções apressadamente estabelecidas,
como a de que o Brasil desafiava a sabedoria econômica ao crescer a taxas
expressivas ignorando a existência da inflação.

Gráfico 10 - Déficits orçamentários

Déficit orçamentário e expansão da base monetária Os sucessivos déficits orça-


(percentual do Pffi) mentários, a prática cada
% vez mais freqüente de des-
5.----------------------------.
pesas extra-orçamentárias
4 (para as quais havia inúme-
ros fundos especiais) e a
3 recorrência de expansões
creditícias sem o devido las-
tro fiscal enfraqueciam eco-
nômica e politicamente a fi-
gura dos orçamentos
governamentais. Se estes já
nasciam deficitários, a
- ~ '-....._.__.___.__..__ .....-'--'--'---'-- +--'--'---'---'-- +-' impossibilidade de financiá-
9 60 19 6 6 19 6 0 19 6 5
los através de dívida mobi-
FOAU: &vrcotk~BRF/FGv liária configurava um colos-
sal ponto de estrangulamento, não relacionado entre aqueles que o Programa
de Metas pretendia eliminar.
De fato, somente depois de 1964, com a reforma financeira, foram criadas
condições favoráveis à colocação maciça e sistemática de papéis públicos.
Durante os anos 50 e parte da década seguinte, as despesas que excediam as
receitas fiscais eram financiadas majoritariamente através de expansão mo-
netária.

Gráfico 11 - Câmbio

De 1947 a 1953 vigorou no Brasil a taxa de câmbio de Cr$18,72, acordada


com o Fundo Monetário Internacional em 1946. Nestes seis anos, o n{vel.
interno de preços praticamente duplicou, implicando diminuição da rentabili-
dade das exportações e subvenção às importações. Em 1952, quando o balanço

68
Taxa de câmbio ~ali' deOacionada de pagamentos registrou um déficit
pelo IGP-DI (base: 950=100) de US$ 615 milhões, o governo bra-
Índice
sileiro viu-se compelido a tomar
providências. Em 1953 entraram em
vigor a Lei 1. 807 e a Instrução 70 da
200
Sumoc. Este conjunto de medidas
fragmentou o mercado de moeda es- .
150
trangeira, multiplicou as taxas de
câmbio, mas não realizou a façanha
·:ft;····. . . . . . . . . .
de, com um único instrumento, o
câmbio, alcançar vários objetivos
····~·
50 ~~~~~~~~+-~~~
195o 1955 1960 1966 de politica econômica, entre os
Fonk: Banco tk dodos/TBRE,IFGV
quais moderar a inflação, equilibrar
o balanço de pagamentos, financiar
déficits orçamentários e estimular o desenvolvimento econômico.
De acordo com a Instrução 70, a determinação da taxa de câmbio para cada
categoria de importação resultava de combinações variáveis entre uma taxa
fixa e sobretaxas definidas durante os leilões de câmbio. As sobretaxas eram
induzidas pelo governo, que alocava quantidades prefixadas de moeda es-
trangeira a cada categoria. Para as exportações a regra era adicionar à taxa
oficial bonificações diferenciadas por grupos de produtos. Havia ainda a taxa
livre, usada para a remessa de lucros e rend.ímentos de capital estrangeiro.
Os repetidos déficits do balanço de pagamentos do final da década de 50
denunciavam o esgotamento daf6rmula cambial vigente.
Sucessivas desvalorizações e reclassificações de produtos dentro das cate-
gorias estabelecidas pela Sumoc foram os mecanismos encontrados pelas
autoridades para reaproximar o país do chamado realismo cambial, causa que
tinha em Eugênio Gudin seu mais fervoroso apóstolo.

Gráfico 12
É antiga entre os teóricos do desenvolvimento . - - - - - - - - - - - - - - ,
Indicadores sociais
econômico a preocupação de encontrar me- 1eo.--- - - - -- - - .
canismos de conciliação entre crescimento da
economia e bem-estar social. Durante a dé-
cada de 50, o Brasil conseguiu alguns resul-
tados importantes nesse terr~no. Comparan-
do-se os censos de 1950 e 1960, a taxa de
mortalidade infantil reduziu-se de 144, 73 pa-
ra 118,13 por 1 mil nascidos vivos. A taxa de
alfabetização entre pessoas de mais de cinco t9l0 14-173 o12.1 <lU

anos elevou-se de 42,7 para 53,2%. A vida ~~~9CiO~=~~~L~u::::::!:~~.1::::::::~s:..~=~-..!


53
~ada tk cada brasileiro alongou-se de 45,9 para 52,4 anos. Vale ressaltar
qu a década de 50, confrontada com as anteriores, representou uma acelera-
ção do progresso sociaL

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70
Crescendo em meio à incerteza: a política
econômica do governo JK (1956-60)
Maria Antonieta P. Leopoldi*

Na medida em que nos distanciamos dos anos JK, podemos ver com menos
paixão política o legado que eles nos deixaram. As análises feitas no calor da
hora tenderam a aplaudir sem críticas, ou a rejeitar em parte ou globalmente
as políticas do seu governo.
A interpretação que predorrúnou nos anos seguintes ao governo Kubitschek,
veiculada pela UDN e pelos economistas mais ortodoxos, como Eugênio
Gudin e Octavio Gouveia de Bulhões, entendia os tempos de JK como os de
um novo Encilhamento, 1 dada a elevada taxa de investimento do Estado e o
ritmo acelerado de crescimento econômico.
Após algumas décadas, os estudos realizados sobre o governo Kubitschek
permitem que se empreenda um balanço do processo de industrialização
acelerada que então se promoveu e dos impactos positivos e negativos por ele
trazidos para a econorrúa e a sociedade brasileiras. 2
Trataremos neste trabalho da articulação entre a política industrial do
governo - delineada em linhas gerais no Plano de Metas, e apoiada num
complexo sistema cambial e numa nova tarifa alfandegária - e as políticas
cambial e de comércio exterior. Essas políticas representaram, nos anos 50, os
l.
nervos do poder, já que em tomo da taxa de câmbio e das atividades de
importação e exportação articulavam-se interesses os mais diversos. Elas
envolveram as agências oficiais mais dinârrúcas e poderosas e causaram
impacto em setores estratégicos, como os dos industriais, cafeicultores, expor-
tadores, importadores, empresas multinacionais e operariado, entre outros.
Procuraremos mostrar aqui o processo de transformação por que passou o
aparelho de Estado nesse período, nas áreas do planejamento e da implantação
das metas industriais. Essa mudança ocorreu fundamentalmente na estrutura
do Estado, que criou organismos burocráticos, de caráter neocorporativo,
mudando a administração sem fazer reforma administrativa, portanto sem
autorização legislativa. O Executivo foi, nesse governo, o centro nervoso da
política econômica, mas não se restringiu ao campo exclusivo dos técnicos
(como aconteceria alguns anos depois), pois no governo Kubi tschek a política
econômica foi sempre comandada por ministros da Fazenda do PSD. O
Congresso, com sua bancada majoritária constituída pelo bloco PSD-PTB,
forneceu no período a base para a realização das políticas econômicas eJ:!

• Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Flumi.~


xo:iições de estabilidade política, sem os confrontos entre Executivo e Legis-
tam·o que caracterizaram o segundo governo Vargas e o governo Jânio Qua-
dros.
Buscaremos também analisar neste artigo as pressões e contrapressões dos
setores econômicos em relação ao Estado, gestor das políticas econômicas. A
intenção aqui é mostrar que a formulação de decisões nessa área envolveu a
participação cooperativa ou o confronto entre Estado e segmentos sociais,
nwna constante dinâmica. Sendo assim, as perspectivas que supõem classes
sociais frágeis perante uma política econômica conduzida por uma tecnocracia
iluminista serão aqui discutidas de forma crítica.

1. O processo de tomada de decisão na área econômica

Nos cinco anos do governo JK, que promoveram enormes mudanças na


economia e na sociedade brasileiras, a formulação de políticas econômicas foi
muito intensa. Para entendê-las melhor, procuraremos delimitar as áreas
envolvidas no processo de tomada de decisões de política econômica, bem
como as agências do Estado que participaram desse processo. Priorizaremos
nessa análise as arenas da política cambial e do planejamento.
Entendemos que as decisões na área da política econômica resultam da
interação de três campos: o campo internacional, o Estado e os setores
econômicos.
A conjuntura internacional constituiu o quadro maior dentro do qual se
inseriu a política econômica brasileira do período. Ela teve um efeito muito
importante sobre as escolhas políticas feitas então, mas não condicionou a
tomada de decisão, como afim1aram algumas análises econômicas influencia-
das pela CEPAL.
O Estado não é aqui entendido como um bloco monolítico, que age coeso
numa só direção. Ele é visto como uma arena, que abriga interesses contradi-
tórios e complementares que se ajustam em alianças ou formam áreas de
conflito. Não supomos, portanto, que as políticas governamentais sejam for-
muladas por uma equipe técnica do Estado, acima e no lugar de classes sociais,
incapazes de organização e de ação. 3
Contudo, se não existe uma total autonomia do Estado e de sua burocracia
frente aos setores econômicos, temos de reconhecer que no Brasil, como em
outros países de inserção tardia no comércio e no sistema produtivo interna-
cionais, o Estado tem novos papéis. Além de abrigar os vários interesses
econômicos em jogo e ordená-los conforme prioridades de caráter nacional, o
Estado se lança como empresário, financia o desenvolvimento econômico e
prepara quadros, no setor público e privado, para desempenharem novas
funções econômicas. Mas a ação do Estado tende quase sempre a se conjugar
com a dos setores econômicos dominantes, que detêm o poder de veto assim
como informações técnicas sobre sua área.

72
Daí que o terceiro campo, envolvido com a formulação de políticas econô-
micas, seja constituído pelos setores econômicos, que atuam junto e dentro do
Estado. A impossibilidade de os atores econômicos fmanciarem o de-
senvolvimento do Brasil nos anos 50 não invalida seu papel de participantes
ativos no processo decisório.
A estratégia usada para a tomada de decisões na área econômica no governo
JK envolvia um acompanhamento dos eventos no cenário internacional com
vistas à inserção do Brasil no jogo das grandes potências capitalistas, e o
atendimento às pressões de setores econômicos e políticos. A frente de tudo,
entretanto, estavam as prioridades não negociáveis de Juscelino, condicio-
nantes das macro e micropolíticas do seu governo: o crescimento, a construção
de Brasília e a decisão de não fazer uma reforma cambial. 4 Afora isso, tudo
era passível de negociação.
Por outro lado, fazia parte do estilo político de Juscelino criar um amplo
consenso em torno das decisões na área da política econômica. Esse consenso
foi tecido com tolerância e arte por meio de três estratég'ias:
a) legitimidade (respeito à legalidade, representatividade, expertise técnica e
prestação de contas);
b) uso da ideologia desenvolvimentista (ênfase no crescimento industrial e no
distributivismo econômico dele decorrente);
c) capacidade de resolver crises via negociação e adiamento de questões
problemáticas. 5 f
Como se verá adiante, essas estratégias foram bem-sucedidas nos primeiros
l três anos do seu mandato presidencial. Em 1959, as dificuldades de conciliar }
inflação com crescimento se tornaram mais claras, os problemas da divida
externa e do balanço de pagamentos se agravaram e cresceu no Congresso e 1
l
na sociedade o protesto das elites nacionalistas contra a internacionalização da 1
economia brasileira.

2. As agências formuladoras da política econômica no governo JK

O governo Kubitschek já encontrou agências estruturadas e com pessoal


qualificado nos núnistérios-chaves da Fazenda e das Relações Exteriores. O
Itamarati, que passara por uma reforma na sua estrutura no período de Horácio
Lafer, contava com quadros bem preparados, com experiência de diagnóstico,
de confecção e acompanhamento de projetos, vinda da Comissão Mista
Brasil-Estados Unidos6 e do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico
(BNDE).
Criado em 1952, o banco era captador de recursos internos (através do
sistema fiscal) e externos, e com eles iria financiar grandes projetos de
infra-estrutura nas áreas de energia, transporte, siderurgia e petróleo. Em
menor proporção, iria apoiar também empreendimentos privados em áreas do
Plano de Metas.7

73
Quanto ao Ministério da Fazenda, Juscelino sabia mais que ninguém que
esse orgão seria um dos centros nevrálgicos da sua política. Deveria ser
ocupado por alguém de sua confiança, dotado de habilidade política, capaz de
-..iabilizar, no âmbito interno e externo, as estratégias prioritárias do crescimen-
to e da construção de Brasília. Caberia ao ministro sair em busca de recursos
para o Plano de Metas junto aos organismos e bancos internacionais, uma vez
que os recursos externos eram fundamentais para viabilizar o cumprimento
das metas e equilibrar o deficitário balanço de pagamentos (ver tabelas 1 e 2).
Ao longo de seu governo, JK iria contar com três ministros, todos do PSD. 8
Vinculadas ao Ministério da Fazenda estavam importantes agências deci-
sórias da política comercial e monetária. O Tesouro era o órgão encarregado
de emitir moeda. O Banco do Brasil, com suas carteiras de Comércio Exterior
(Cacex) e de Câmbio, tinha voz ativa na política comercial e cambial e
participava do Conselho da Sumoc. A Sumoc (Superintendência da Moeda e
do Crédito) era autoridade monetária e cumpria um papel de Banco Central.
Contava com uma equipe técnica importante para o assessoramento do Minis-
tério da Fazenda, além de um Conselho formado pelas principais autoridades
econômicas do governo, a cujas reuniões muitas vezes compareciam, como
convidados, empresários industriais, cafeicultores ou banqueiros. O IBC (Ins-
tituto Brasileiro do Café) estabelecia a ponte entre os cafeicultores e o Minis-
tério da Fazenda e gerenciava para esse ministério o comércio do café nos
mercados externos.
Uma outra agência governamental que iria ganhar grande destaque no
governo JK era o Ministério da Viação e Obras Públicas, antes um órgão
cartorial. Sob a chefia do comandante Lúcio Meira, o ministério seria incum-
bido de viabilizar a meta de transportes, fiscalizar a construção de uma malha
rodoviária que unisse os vários cantos do país, e implantar, até o final do
governo, a indústria de veículos automotores.
Entretanto, os quadros técnicos e as agências já existentes em meados dos
anos 50 não pareciam suficientes para o ritmo de trabalho e o nivel de
eficiência pretendidos por Kubitschek. Criou-se então, já no primeiro dia do
governo, o Conselho do Desenvolvimento, organismo encarregado de coorde-
nar a implementação do Plano de Metas. 9
A estrutura do Conselho do Desenvolvimento lembrava a da Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos, com grupos de trabalho formados por técnicos
especializados em determinados assuntos. Inicialmente foram fonnados 18
grupos de trabalho, e muitos dos técnicos que os compuseram haviam passado
pela Comissão Mista. No caso do grupo que trabalhou com a meta de energia
elétrica, foram recrutados técnicos da Cemig. 10 Característico dos grupos de
trabalho era o fato de que sua atividade se restringia ao estudo de questões, e
não à implementação de políticas. Estas eram objeto dos grupos executivos,
que também faziam parte do Conselho do Desenvolvimento e atuavam conju-
gados ao BNDE.ll

74
Dentre os grupos executivos encarregados da implementação de metas
específicas estavam o Geia (Grupo Executivo da Indústria Automobilística),
o Geicon (Grupo Executivo da Indústria de Construção Naval) - ambos
criados por sugestão do ministro da Viação Lúcio Meira - , o Geimape
(Indústria Mecânica Pesada) e o Geimaq (Indústria de Bens de Capital).
Os grupos executivos representavam um experimento novo na adminis-
tração brasileira, uma inovação que passava ao largo de uma reforma adminis-
trativa, de difícil trânsito pelo Congresso. Eram inspirados nas comissões
conjuntas, formadas por empresários e burocratas no esforço de reconstrução
européia, em especial no Plano Monnet.'2
Nos dois primeiros anos do governo Kubitschek (1956-58), as arenas da
política econômica mais importantes eram, de um lado, o Ministério da
Fazenda e, de outro, o Conselho do Desenvolvimento (organismo coordenador
das metas), atuando em íntima cooperação com o BNDE (implementador das
metas).
Na secretaria geral do Conselho do Desenvolvimento estava Lucas Lopes,
que também presidia o BNDE. Com isto, concentravam-se nas mãos de uma
só pessoa a coordenação e a implementação do Plano de Metas. O poder
decisório de Lucas Lopes poderia fazer dele um superministro sem pasta. Mas
na verdade, o estilo de governo de Juscelino era trabalhar em contato direto e
constante com seus ministros, envolvendo-se em tudo que se ligasse ao Plano
de Metas; um superministro não tinha portanto lugar em seu governo. 13
Em junho de 1958, quando Lucas Lopes foi para o Ministério da Fazenda,
com o afastamento de José Maria Alkmin, 14 alterou-se um pouco a alta
burocracia das áreas cambial e do planejamento. No ministério, Lucas Lopes
desligou-se da condução direta do Plano de Metas e passou a operar com as
rnacropolíticas da área econômica (café, controle da inflação, negociação da
dívida externa), ficando Roberto Campos na presidência do BNDE, res-
ponsável pelo sucesso do Plano de Metas. O Conselho do Desenvolvimento
foi perdendo importância com a saída de Lucas Lopes, uma vez que o órgão
se iden~ificava intimamente com a sua figura. Produziu um relatório sobre o
andamento das metas em 1958, 15 e depois, ao que parece, fundiu-se com a
presidência do BNDE.
As três arenas importantes nessa fase, da gestão Lucas Lopes, eram o
Ministério da Fazenda, o BNDE e a Sumoc. Os constrangimentos externos e
internos direcionaram as politicas do ministro Lucas Lopes para as questões
da estabilização monetária, da negociação da dívida externa (aí incluída a
negociação de empréstimos junto ao FMI) e da política de preço do café. Todas
essas questões passavam pela Sumoc. À sua frente estava nesse período
Garrido Torres.
O afastamento de Lucas Lopes do Ministério da Fazenda, após um enfar..e
em Caxambu em 30 de maio de 1959, levou também à saída de Robe:-.o
Campos e sua equipe do BNDE, cuja presidência passou a Lúcio Meira
Na última fase do governo JK (junho de 1958 a janeiro de 1961), quando
Sebastião Paes de Almeida, vindo da presidência do Banco do Brasil, assruniu
a pasta da Fazenda, os formula dores do Plano de Metas, Lucas Lopes e Roberto
Campos, bem como seus assessores da Sumoc e do BNDE, pennaneceratn
fora do governo. Para o governo Kubitschek e seu ministro Paes de Almeida,
aquele era o momento de concluir as metas propostas, prestar contas dos
trabalhos realizados, gerir a alta do custo de vida que se acelerou a partir de
1959 16 e conter o descontentamento social que a inflação provocava.
A despeito do crescimento da inflação, do descontentamento evidenciado
pelas greves e do desequilíbrio das contas externas, Juscelino manteve sua
determinação de completar a execução das metas e transferir a capital para
Brasilia. Esse talvez tenha sido o momento em que se tornou clara a inviabi-
lidade de, naquela conjuntura, conciliar-se crescimento com estabilidade mo-
netária.
A análise feita nesta seção privilegiou as agências fonnuladoras das
políticas cambial e de planejamento na esfera do Executivo, na época o
principal centro fonnulador das decisões da área econômica. De fato, nos
anos Kubitschek acentuou-se a tendência à centralização das decisões
econômicas nos organismos ligados à Presidência da República . O próprio
Congresso percebeu que estava sendo marginalizado na tomada de decisões
nas áreas cambial (em benefício da Sutnoc) e de planejamento (em benefício
do BNDE), bem como na negociação da dívida externa. Em 1959 houve um
movimento de parlamentares visando ganhar poderes junto ao Executivo,
mas não se chegou a nenhum resultado. Entretanto, é bom lembrar que o
Plano de Metas, a tarifa de 1957 e o Plano de Estabilização Monetária de
-1958 passaram pelo crivo do Congresso, o que evidencia a participação do
Legislativo e dos partidos políticos no processo decisório na área eco-
nômicaY
Quando Brasília foi inaugurada, o Congresso foi transferido pat-a a nova
apitai, mas as principais agências do Executivo (BNDE, Sumoc e Cacex)
ontinuaram no Rio de Janeiro. Esse fato deve ter agravado ainda mais a
eparação entre o Congresso e as áreas das políticas cambial e de planejamento.
\
3. Crescimento, inflação e endividamento: os dilemas das políticas
cambial e industrial do governo JK

Daremos destaque nesta seção às áreas da política econômica de Juscelino


Kubitschek que mais mobilizaram a atenção do governo, seus recursos técni-
cos e suas disponibilidades financeiras: a política dirigida para a consecução
das metas industriais do Plano de Metas e as políticas cambial e de comércio
exterior. Na primeira, o governo foi bem-sucedido, conseguindo consolidar a
infra-estrutura energética, de transportes e de insumos básicos no país, implan-
tando novos setores da indústria pesada e aliviando a importação desses itens.
No setor tia política cambial e comércio externo, contudo, o governo se

76
defrontou com desafios internos e externos, e, a despeito de uma alta eficiência
técnica, não conseguiu resolver o problema do baixo desempenho das expor-
tações, aprofundando assim a escassez de divisas e tendo de recorrer ao
endividamento como forma de captação de recursos para a viabilização do
Plano de Metas.
Essas políticas representam duas faces diversas de um mesmo governo, que,
estando determinado a crescer, teve de abrir mão da sua estabilidade fmanceira
interna e externa.

3.1 Balanço de pagamentos, política cambial e comércio exterior

As expectativas da diplomacia brasileira de uma colaboração entre Estados


Un idos e Brasil logo após a guerra cederam progressivamente lugar a uma
consciência de que tempos difíceis estavam por vir, dada a escassez de dólares
na economia externa, a inconvertibilidade da libra e a priorização da recons-
trução européia e japonesa pelo Departam~nto de Estado norte-americano.
Dificuldades na área econômica internacional trouxeram problemas para o
balanço de pagamentoss do Brasil. Com um saldo de reservas externas superior
à sua dívida, o país poderia estar vivendo uma situação bastante favorável, não
fosse o fato de grande parte dos pagamentos devidos estarem inviabilizados
pela inconvertibilidade das moedas. 18
Os gestores da política de comércio exterior do governo Dutra adotaram
uma postura liberal com relação às importações e à remessa de divisas para
fora do país, desprezando o sistema de licenciamento de importações es-
tabelecido no final do Estado Novo (janeiro de 1945). Exportações feitas entre
1946 e 1948 para países de moeda não conversível em dólares geraram um
déficit de receita cambial, agravado pelo gasto de divisas com importações e
remessas.
Para responder à crise no balanço de pagamentos, o governo estabeleceu
em junho de 1947 um sistema de licenciamento prévio das importações e
exportações. O controle quantitativo das transações comerciais era feito pela
Cexim (Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil), e a taxa
cambial foi mantida num só valor até 1952 (Cr$ 18,00 por dólar).
Sobrevalorizar a taxa cambial representou um favorecimento à indústria,
que pôde importar equipamentos e matéria-prima a um câmbio favorecido, e
não chegou a prejudicar os exportadores de café, pois os preços internacionais
do produto estavam em alta no período. Foram os exportadores de outros
produtos que não o café, que representavam cerca de 40% do setor, os mais
prejudicados por essa política. ·
No final do período Dutra e início do governo Vargas, a política cambial
representou, portanto, um instrumento de proteção à indústria sem prejudicar
o café. Claramente, ela beneficiava a economia do Sudeste em detrimento de
outras áreas do país.
Estudos de história econômica analisaram a proteção cambial à indústria
como resultante das pressões externas sobre a economia brasileira. Esses
trabalhos chamaram a industrialização do período, beneficiada pela proteção
cambial, de "espontânea", "não intencional", para diferenciá-la da indus-
lrialização planejada dos anos JK. 19
Essa abordagem deixou de lado o fato de que a política econômica não é
mera resposta aos desequilíbrios externos, mas resulta da opção dos seus
gestores entre alternativas colocadas pelos setores econômicos internos e a
conjuntura externa. No caso do imediato pós-guerra, a opção ficava entre uma
política de estímulos à industrialização ou a liberação das importações de
produtos concorrentes. 20
O sistema de licença prévia manteve-se até 1953 e foi o principal mecanjs-
mo de proteção à indústria do período, uma vez que a tarifa de 1934, ainda
vigente, não mais cumpria a função de proteger os produtos manufaturados.
Como as importações efetuadas pelas empresas do governo ficavam fora do
sistema de licença prévia, o Estado terminou sendo beneficiado pelo sistema
cambial, não sofrendo assim as restrições quantitativas aplicadas ao setor
privado.
Criado para controlar as importações e equilibrar o balanço de pagamen-
tos, o sistema de licenciamento de divisas teve de conviver com um mercado
cambial paralelo (inicialmente ilegal, mas depois incorporado oficialmente)
e mostrou-se incapaz de contornar situações excepcionais, como à de 1951-
52, quando a demanda de importação cresceu repentinamente com o temor
da eclosão de uma nova guerra mundial a partir do conflito da Coréia. A
Cexim liberou a concessão de licenças pata a formação de estoques de
combustível, matéria-prima e equipamentos industriais. Essa atitude des-
equilibrou a balança comercial e trouxe uma crise de liquidez de divisas no
mercado. Um saldo negativo de 453 milhões de dólares no balanço de
pagamentos, mais as críticas que se acumulavam contra o sistema de licen-
ciamento e sua excessiva burocratização, geraram uma mudança na política
cambial.
O ano de 1953 assistiu a duas grandes alterações. No início do ano o
Congresso aprovou a Lei do Câmbio Livre (Lei nº 1.807, de 7/1/1953), com a
qual se criava um mercado livre de câmbio, visando a desafogar o sistema de
licenciamento, agora reduzido a um elenco menor de itens. Podiam operar no
mercado livre as exportações até então desfavorecidas (cacau, algodão), as
remessas pata pagamentos de serviços e dívida e a remessa de lucros.
Os principais beneficiários dessa mudança cambial foram os exportadores
de produtos primários (exceto de café, setor que protestou contra essa exclu-
são) e os interesses ligados ao capital estrangeiro. A alteração cambial parece
ter melhorado a balança comercial, que passou de um saldo negativo de 109
milhões de dólares em 1951-52 para o superávit de 424 milhões de dólares nq
ano seguinte (ver tabela 1).

78
Tabela 1
Balanço de pagamentos, 1947-55
(US$ milhões)
1947 1948/50 1951/52 1953 1954 1955
Balança comercial 130 285 -109 424 148 320
Serviços -257 -262 -403 -355 -338 -308
Mercadorias e
serviços -127 23 -512 69 -190 12
Transferências
unilaterais -24 -4 -2 -14 -5 -10
Transações correntes -151 19 -514 55 -195 2
Capitais 12 -63 12 59 - 18 3
Erros e comissões -43 29 49 -98 lO 12
Saldo (superávit ou
déficit) - 182 - 15 -453 16 -203 17
Fome: Boletins do Banco Central, apud Carlos Von Doellínger et ai., Política e estrutura das
importações brasileiras (Rio de Janeiro, IPENINPES, 1977), p. 18 e 33.

No segundo semestre de 1953, o novo ministro da Fazenda de Vargas,


Osvaldo Aranha, implementou uma nova mudança cambial. Com a Instrução
70 da Sumoc (de 9/1 0/1953), ratificada pelo Congresso através da Lei n!! 2.145,
de 29 de dezembro de 1953, alterou-se profundamente a politica de controle
das importações e exportações.
No que diz respeito às importações, a nova política cambial estabelecia taxas
múltiplas de câmbio que variavam, de acordo com a classificação das impor-
tações, em cinco categorias. O complexo sistema de leilões de câmbio funcio-
nava a partir de uma taxa de câmbio base para importação, inferior às demais
(e portanto subsidiada), conhecida como custo de câmbio, usada para importar
trigo, papel de imprensa, combustível e alguns bens de capital. Por essa taxa
eram feitas as importações do governo, que tinha assim um câmbio mais
favorecido do que o do setor privado. O restante das importações era feito
através do sistema de leilões de câmbio nas bolsas de valores regionais. A taxa
de câmbio variava conforme cinco categorias de produtos, classificados se-
gundo critério de essencialidade. Ao valor do custo de câmbio acrescentava-se
uma sobretaxa (o ágio) variável, que era reduzida, quando se tratava de
importações fundamentais, e se elevava para produtos supérfluos.21
Se as importações pagavam ágio variável conforme a essencialidade do
produto, as exportações recebiam um bônus, um acréscimo.
A taxa de câmbio para os exportadores correspondia à taxa oficial acrescida
de uma gratificação variável (bônus) de produto a produto, constantemente
reajustada por pressão dos exportadores.22

79
Apa:emememe, a Instrução 70 da Swnoc parecia favorecer os exportadores
que recebiam bônus) em detrimento dos importadores (que pagavam ágio).
Aas a realidade provou que estes últimos, aqui incluídos os industriais, eram
os favorecidos. Também ganhava com essa política cambial o Estado, que
arravés do fundo de ágios captava receitas significativas, que custearam a
política de sustentação do preço do café no período Café Fillio e JK e até
mesmo cobriram gastos com a construção de Brasília.
O regime cambial cwnpria assim uma função fiscal, uma vez que tributava
o importador, dele arrecadando a receita dos ágios. Tributava também o
exportador, que perdia para o governo a diferença entre o valor do dólar no
mercado livre e o dólar exportação.
No governo Café FiU10, o núnistro da Fazenda Eugênio Gudin implemen-
tou, através da Sumoc, uma medida cambial que viria modificar o quadro da
economia brasileira e se tornaria extremamente útil ao Plano de Metas de JK.
A Instrução 113 da Swnoc (janeiro de 1955) autorizava a Cacex (organismo
do Banco do Brasil que sucedeu à Cexim em 1954, com a reforma da Instrução
70) a enútir licenças de importação de equipamentos para a indústria. Esses
equipamentos entrariam no pais sem cobertura cambial, isto é, sem pagamento
de divisas e sem onerar o balanço de pagamentos brasileiro, já que contavam
como capital investido nas empresas. Dessa forma, um investidor estrangeiro
podia trazer para o Brasil equipamentos para formar uma nova empresa ou
ampliar uma já existente. A conversão do capital representado pelos equipa-
mentos importados era feita pela taxa de câmbio livre, o que equivalia a uma
quantidade maior em cruzeiros e constituía, portanto, um claro subsídio ao
capital estrangeiro.
A Instrução 113 representou wn incentivo cambial para companhias es-
trangeiras se instalarem no país, e acelerou o processo de internacionalização
da economia brasileira. Essa medida deu nova direção à política industrial,
reduzindo consideravelmente o protecionismo cambial que desde 1948 favo-
recia a indústria local. No governo JK a Instrução 113 foi largamente utilizada
para favorecer a instalação de grandes complexos industriais, como se verá na
seção seguinte.
Mudava a partir dessa medida o padrão de relação entre indústria local e
governo. A colaboração que existira no segundo governo Vargas entre a
burocracia e o empresariado em organismos como a Comissão de Desenvol-
vimento Industrial (CDI), a Petrobrás, a Subcomissão de Jipes, Tratores e
Automóveis (ligada à CDI) e a Comissão de Tarifas, deixou de existir no
governo Café Filho. O governo JK retomou essa colaboração através dos
grupos executivos e de organismos como o Conselho de Política Aduaneira
(CPA), criado em 1957 para implementar a nova tarifa. Mas como o empresa-
riado mudara a sua estrutura, mudou a relação do tripé: a burguesia industrial
local passou à condição de sócia menor das benesses do desenvolvimento
industrial, tendo crescido em importância e poder as empresas multinacionais
(favorecidas pelos subsídios cambiais, por créditos do BNDE e outros favores

80
l
governamentais) e as empresas estatais (beneficiadas pelo autoprotecionismo
cambial do governo).
A Instrução 113 sofreu críticas dos industriais de São Paulo e da AESP, sua
associação de classe. 23 A despeito delas a medida foi largamente empregada
por Kubitschek, que usou da conciliação, combinando uma estratégia inter-
nacionalizante para o arranjo industrial com um discurso nacional-desen-
volvimentista. 24

Efetivamente, a burguesia local perdia na competição pelo subsídio cambial


representado pela Instrução 113. Mas, por outro lado, ela ganhava com a
dinâmica da industrialização, a tarifa de 1957, a ampliação do mercado interno,
as políticas de crédito do Banco do Brasil e a criação de novos setores
industriais restritos aos empresários locais (o exemplo mais comum sendo o
da indústria de autopeças).

O sistema de taxas múltiplas de câmbio foi mantido no governo Kubitschek


até 1957, tendo as taxas de ágio e de bonificação sofrido sucessivos reajustes
entre 1953 e 1957. Até o advento da nova tarifa, a política cambial foi o centro
nervoso da política econômica, agindo como o principal instrumento de
proteção à indústria e cwnprindo wna série de funções que outras áreas do
governo não eram capazes de desempenhar: função fiscal, função de proteção
tarifária e de controle da inflação.

A tarifa de 1957, elabotada nas dependências da Confederação Nacional da


Indústria, com participação dos industriais, asswniu assim o papel protecionis-
ta antes concentrado na área cambial. A partir de sua aprovação pelo Congres-
so, teve lugar uma simplificação do sistema de câmbio múltiplo, onde as cinco
categorias de importação cederam lugar a duas. 25 A categoria 'geral' reunia as
quatro primeiras categorias do sistema anterior (que envolviam matéria-prima,
bens de capital e produtos essenciais), e a 'especial' correspondia a produtos
supérfluos e tinha uma taxação elevada. O custo de câmbio continuou a ser
usado para a importação de trigo, petróleo e derivados, papel de imprensa e
alguns bens de capital. 26
A simplificação do sistema cambial, com a gradual redução dos controles
(licença prévia, câmbio múltiplo, quotas de importação), respondia em parte
às recomendações do FMI. Por essa época o Fundo estava começando a
financiar programas de estabilização na América Latina, e uma das exigências
da instituição era a simplificação do câmbio.

A despeito das mudanças feitas no sistema de leilões no final de 1957,


seguidas de novas alterações de pequeno porte, os problemas com o desequi-
líbrio externo continuavam (ver tabela 2). As pressões dos exportadores e do
FMI sobre o governo levaram-no a empreender uma série de alterações, em
janeiro de 1959, no sentido de wna liberação cambial, envolvendo ele-..·ação
do custo de câmbio.2 8

Si
Tabela 2
Balanço de pagamentos, 1956-61
(US$ milhões de dólares)
1956 1957 1958 1959 1960 1961
Balança comercial 437 107 65 72 -23 113
Serviços -369 -358 -309 -373 -459 -350
Mercadorias e
serviços 68 -251 -244 -301 -482 -237
Transferências
unilaterais -11 -13 -4 - 10 4 15
Transações correntes 57 -264 -248 -311 -478 -222
Capitais 151 255 184 182 58 288
Erros e omissões - 14 - 171 -189 -25 10 49
Saldo (superávit ou
déficit) 194 -180 -253 - 154 -410 115
Fonte: Relatórios do Banco Central, apud Carlos Von Doellinger et. ai., Política e estrutura
das importações brasileiras, p. 33, 38 e 41.

Em 1958 o ministro da Fazenda Lucas Lopes tentara implementar um Plano


de Estabilização Monetária, elaborado pela equipe Lucas Lopes-Roberto
Campos, e aprovado pelo Congresso. 29 Contudo, sem a sustentação efetiva de
Juscelino, sem a subordinaÇão do Banco do Brasil às normas de contenção de
créditos, e com os aumentos salariais do irúcio de 1959, o plano se inviabilizou,
mostrando mais uma vez as dificuldades de conciliar estabilização com
crescimento econômico no país.
Continuando sua política de liberação progressiva do câmbio, a Sumoc
passou para o mercado de câmbio livre os produtos manufaturados de expor-
tação, e em dezembro de 1959 restringiu seu controle apenas ao café, o cacau,
a mamona e o óleo cru mineral com seus derivados.3°
Com essas medidas, a renda do setor cafeeiro quase duplicou em 1959 (o
câmbio do café passou de Cr$ 37,00 para Cr$ 60,00). Os preços do trigo e do
combustível tiveram majoração em virtude da elevação do custo de câmbio,
forçando uma pressão inflacionária que se agravou naquele ano devido aos
gastos do governo com a política do café e à elevação dos salários mínimo e
do funcionalismo público (ver tabela 3).
Nesse momento complicaram-se as negociações do governo brasileiro com
o Fundo Monetário Internacional. 31 O Brasil buscava junto ao Fundo o aval
para um empréstimo junto aos bancos norte-americanos (100 milhões de
dólares do Eximbank e 58 milhões de bancos privados) e o direito de sacar no
próprio Fundo 74,9 milhões de dólares. 32 Uma equipe do Fundo visitou o
Brasil em março de 1959, e a partir do exame da situação econômica brasileira,
chegou ao seguinte diagnóstico:

82
1. o serviço da dívida brasileira estava muito elevado. Não adiantaria, pois,
emprestar mais ao país, já que a dívida só aumentaria;
2. a extensão do crédito do governo brasileiro ao setor privado era excessiva
e inflacionária;
3. o sistema cambial encontrava-se sob pressão, devido à grande demanda de
divisas. A taxa de câmbio era considerada "irrealista", o sistema cambial não
cumpria uma função anti inflacionária e o balanço de pagamentos encontrava-
se em crônico desequilíbrio.

Tabela 3
Indicadores de inflação, 1953-61
(variação percentual anual)
Custo de vida na
indice Geral de Preços
Guanabara
1953 15 15
1954 27 22
1955 17 24
1956 20 21
1957 14 17
1958 10 15
1959 38 39
1960 29 29
1961 37 33
Fonte: Conjuntura Econômica, apud Raouf Kahil, lnflation and economic developmenl in
Brazil (Oxford, Clarendon Press, 1973), p. 338.

Ao severo diagnóstico do FMI seguiam-se as recomendações da instituição


ao governo brasileiro: rever totalmente as políticas passadas, começando por
realizar uma ampla reforma cambial, que deveria ser parte de um plano de
estabilização abrangente, destinado a pôr fim à inflação. Enquanto tais refor-
mas não fossem feitas, não seria possível dispor dos recursos do Fundo, sendo
recomendável o adiamento das negociações até outubro de 1959.33
Com a saída de Lucas Lopes da pasta da Fazenda, em virtude de um enfarte,
Juscelino assumiu o comando das negociações com o FMI e decidiu entrar em
confronto com o Fundo, negando-se a empreender a reforma cambial reco-
mendada. Montando uma cena dramática, que lhe valeu o aplauso dos
racionalistas que o criticavam pela internacionalização causada por sua política
industrial, pediu o retomo da missão brasileira que negociava com o Fundo
em Washington, e rompeu unilateralmente com o FMI emjunho de 1959.
Em 1960 o desequilíbrio nas contas externas se agravou com o déficit na
balança comercial, a redução do fluxo de capitais privados registrados através

83
6 Instrução 113, e os aumentos nos pagamentos de serviços no exterior (ver
tabela 2). O governo recorreu a empréstimos de curto prazo e restabeleceu
relações com o FMI, dele sacando 47,7 milhões de dólares.34
O governo Kubitschek terminou em janeiro de 1961 com um legado de
sucessos no que diz respeito ao desenvolvimento econômico e à implementa-
ção das metas propostas. Deixou também para os governos seguintes um saldo
de dificuldades no campo da inflação, do endividamento externo e do balanço
de pagamentos. Em 1960 o déficit do balanço de pagamentos chegou a 410
milhões de dólares, inferior apenas ao de 1952, ano da crise nas contas externas
que gerou mudan as no sistema cambial.
O presíden Jânío Qua o que sucedeu a JK, realizou uma proftmda
mudança no sistema cambial com a Instrução 204 da Sumoc, de 13 de março
de 1961, formulada por seu ministro da Fazenda, Clemente Mariani, e por
Octavio Gouveia de Bulhões, diretor executivo da Sumoc.35
O custo de câmbio foi mantido, porém teve uma desvalorização de 100% .
O sistema de leilões foi abolido e as importações foram liberalizadas (à
exceção das importações feitas através do custo de câmbio). A reforma cambial
na verdade se inseria num programa de estabilização que supunha: liberação
do câmbio, desvalorização cambial, corte do déficit público e contenção da
expansão monetária.
..
A reforma cambial afinava-se com as recomendações do FMI, e re-
presentava um sinal do governo brasileiro visando abrir negociações para o
pagamento da dívida brasileira e a obtenção de novos créditos. A comunidade
financeira internacional acolheu favoravelmente o severo programa, e assim
foi possível obter empréstimos junto ao FMI e ao setor privado americano,
com o apoio da administração Kennedy.36
As exportações sob o novo regime cambial tiveram um melhor desempenho,
e o balanço de pagamentos saiu de um déficit de 410 milhões de dólares para
um superávit de 115 milhões em 1961.37
A renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, gerou uma crise política
que inviabilizou sua nova política cambial. O mercado livre do câmbio não
iria durar muito tempo sob o governo Goulart.

3.2 A politica industrial e o Plano de Meras

A expansão industrial nos anos JK foi acelerada, tal como pretendia o Plano
de Metas. Entre 1949 e 1955 a indústria de transformação crescera a uma taxa
média anual de 8,9% . Em 1958 essa taxa atingiu o seu ápice: 16,2%, desace-
lerando em 1959 e 1960 para 11,9% e 9,6% ao ano. 38
O principal instrumento de viabilização desse crescimento industrial foi o
Plano de Metas. Ele continha uma estratégia de dinamização de novos setores
da produção industrial - os bens intermediários e os bens de produção. Para
isto o plano também buscava completar a infra-estrutura energética e de

84
transportes do país, prevendo insumos e benefícios cambiais para a instalação
de um parque industrial mais avançado.
O Plano de Metas embasava-se nos trabalhos e.diagnósticos da Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos e do Grupo Misto CEPAL-BNDE e na experiên-
cia da equipe que o formulou, coordenada por Roberto Campos e Lucas Lopes.
A alocação de maiores recursos para as metas de energia e transportes
mostrava a continuidade da concepção dos formuladores do plano em relação
ao período Vargas, no sentido da necessidade de consolidar e ampliar a
infra-estrutura de suporte ao desenvolvimento industrial.
Na área da indústria de bens intermediários o Plano de Metas abarcou os
setores da siderurgia, alumínio, metais não ferrosos, cimento, álcalis, celulose
e borracha. 39
A meta da siderurgia, que propunha a duplicação da produção de aço em
lingotes e de laniinados, alcançou integralmente seus objetivos. Alumínio e
metais não ferrosos tiveram um desempenho aquém do objetivo original (à
exceção do chumbo e estanho, cuja produção duplicou no período JK).
Cimento, papel e celulose, setores industriais nas mãos de empresas priva-
das, receberam incentivos tarifários para a importação de equipamentos. À
exceção do papel de imprensa, os objetivos esperados em termos de aumento
da capacidade instalada e incremento da produção foram atingidos. O setor de
celulose e papel, uma das metas preferenciais do governo Kubitschek, recebeu
também financiamentos do BNDE e Banco do Brasil. Parte do rápido de-
senvolvimento do Paraná nos anos 50 e da hjstória do grupo Klabin, ali
instalado, se deve ao Plano de Metas.
Os setores de álca lis e borracha sintética ficaram sob a responsabilidade da
Companhia Nacional de Álcalis (afinal concluída em 1960) e da Petrobrás/Rio
de Janeiro, duas empresas estatais que cumpriram os objetivos de produção
estipulados no Plano de Metas. Algumas empresas químicas do setor privado,
envolvidas com a produção de derivados de álcalis, receberam incentivos e
facilidades da Sumoc e da Cacex para investir em planos do setor.
Duas metas que visavam a modernização da agricultura no Plano de Metas
tiveram impacto sobre o desenvolvimento industrial do período: os fertili-
zantes e os tratores. Conseguiu-se aumentar a produção nacional de adubos
nitrogenados de 5% (1955) para 23% (1960), e de adubos fosfatados de 12%
(1955) para 58% (1960). 40
O plano visava inicialmente mecanizar a agricultura, incentivando a impor-
tação de tratores. Essa meta foi depois reconvertida para a produção nacional
de tratores, mas a sua fabricação foi lenta e se deu efetivamente na década de
60.41
Sem dúvida , o grande salto qualitativo da indústria brasileira no período JK
se deveu ao sucesso das metas ligadas à indústria de base, em especiai aos
novos setores que surgiram a partir do Plano de Metas e da ação conjuga6
dos planejadores e empresários. A indústria automobilística. a cons:rução
naval e os setores de mecânica pesada e equipamentos elétricos são o símbolo
dessa nova era industrial brasileira.
Para a implementação desses setores, formaram-se no interior do Conselho
do Desenvolvimento, a agência coordenadora do Plano de Metas, os grupos
executivos.

3.2.1 Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia)

O Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia), sob a coordenação


do ministro Lúcio Meira, reuniu empresários 'das montadoras estrangeiras,
industriais do setor de autopeças já existente e técnicos do governo (Roberto
Campos, do BNDE, Tosta Filho, da Cacex, e, pelo Banco do Brasil e Sutnoc,
Guilherme Pegurier, Sidney Latini (secretário do Geia), América Cury e Eros
Orosco). 42 Como se tratava de uma meta onde as empresas eram todas do setor
privado (à exceção da Fábrica Nacional de Motores, FNM), cabia ao Estado
prover a coordenação dos trabalhos de implantação do setor, fornecer incenti-
vos que atraíssem os investimentos estrangeiros de risco e, por fun, arbitrar
sobre a divisão de tarefas entre o empresariado local (autopeças) e o setor
multinacional (montadoras).
As disputas entre os vários setores no interior do Geia eram acirradas, e se
davam em tomo da nacionalização dos carros a serem produzidos (isto é, a
produção progressiva de todas as partes do veículo no país) e da reserva da
área de autopeças para a indústria local, entre outras questões.43 Eros Orosco
foi capa da revista Ttme, e por ela chamado de "O czar da indústria automobilís-
tica do Brasil", 44 o que evidencia o papel arbitral da burocracia no encami-
nhamento dos trabalhos do Geia.
O Geia elaborou planos para a fabricação de caminhões, jipes, veiculas
utilitários e automóveis. Somadas estas quatro categorias, previa-se a produção
em 1960 de 347 mil veículos. A capacidade de produção naquele ano foi de
321 mil veículos, o que indica o sucesso da meta, dadas as dificuldades de
implantação de um setor novo no país e os conflitos de interesses entre os
setores envolvidos.
As empresas montadoras de autopeças concentraram-se na cidade de São
Paulo e seus arredores (ABC paulista). Em meia década essa região contava
com quase 150 mi I pessoas empregadas no setor, o que sem dúvida representou
um impacto sobre a mão-de-obra local. Os operários da indústria automobilís-
tica foram treinados pelo Senai, e logo se tomaram uma elite dentro do setor.
Essas mudanças em breve se fariam sentir no movimento operário paulista.
As montadoras que se instalaram no país, atraídas pelo Plano de Metas,
foram, no setor de produção de automóveis e utilitários: FNM (Fábrica
Nacional de Motores, empresa estatal), Simca, Toyota, Vemag (grupo brasi-
leiro), Volkswagen e Willys Overland. O número variado de empresas, contu-
do, não é indicador de dispersão de capitais no setor. Na verdade, as montado-

86
ras já surgem no país como um setor oligopolizado, uma vez que a Volkswagen
e a Willys já produziam em 1962 cerca de 70% dos automóveis. 45
Produzindo caminhões havia a FNM, Ford, General Motors, Intemational
Harvester, Mercedes Benz e Scania-Va bis.
A meta da indústria automobilística foi bem-sucedida nos seus objetivos
físicos (número de veículos programados/produzidos) e políticos. O presidente
Kubitschek e seu assessor Lúcio Meira puderam garantir, através do trabalho
do Geia, a reserva do setor de autopeças para o empresariado nacional, o que
supunha uma barganha política, mediada pelo Estado, entre os interesses das
multinacionais e os das empresas locais. O regime de pós-1964 não se
comprometeu com o objetivo inicial dos implantadores dessa meta, e hoje a
indústria de autopeças conta com várias firmas estrangeiras.
Os incentivos dados às empresas que se propuseram fabricar veículos r.o
país foram enormes. A detenninação de Juscelino de dirigir, ainda presid("nte,
o primeiro automóvel brasileiro pela avenida Rio Branco, no Rio de Jandro,47
gerou uma série de facilidades aos empresários estrangeiros: rec;erva de
mercado através da tarifa de 1957, taxa de câmbio preferencial pa•a a impor-
tação de equipamentos fora do regime da Instrução 113, importações de
equipamentos sem cobertura cambial (Instrução 113), facilidades cambiais
para remessas de lucros para o exterior, financiamento do BNDE e iscnçã0
tarifária. A indústria de autopeças obteve bem menos facilidades e protestou,
seja através do seu sindicato (Sindipeças) ou da FIESP. 48
Impacto semelhante ao provocado pela indústria de automóveis sobre o
operariado se fez sentir sobre o empresariado paulista. As empresas montado-
ras formaram em 1956 uma associação paralela (isto é, fora do sistema sindical
vinculado ao Ministério do Trabalho), a Anfavea (Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos e Automotores), enquanto os industriais de autopeças
formaram o Sindipeças (Sindicato da Indústria de Peças para Automóveis e
Similares do Estado de São Paulo). Criado em 1953 e filiado à FIESP no ano
seguinte, o Sindipeças marcou sua atuação inicial como uma instituição
"nacionalista". Seu presidente, Ramiz Gattás, formaria ao lado de outros
industriais nac, •na listas da FIESP (Dils on Funaro, Fernando Gasparian, José
Ermírio de Mora~. Sérgio Ugolini e Oswaldo Palma), um grupo que protestou
na entidade contra a proteção desigual dada ao capital estrangeiro em relação
ao nacional, especialmente através da Instrução 113 da Sumoc. 49

3.2.2 Grupo Executivo da Indústria da Construção Naval (Geicon)

A indústria da construção naval vai ser efetivamente instalada no governo


Kubitschek. O Geicon se estruturou para coordenar o planejamento da ins-
talação do setor, recuperando a frota naval que desaparecera com a Segunda
Guerra. Coordenado pelo ministro da Viação, Lúcio Meira, o Geicon incenti-
vou o reequipamento de 14 antigos estaleiros nacionais de reparos e negociou

81
a instalação de dois grandes estaleiros estrangeiros, com capacidade de pro-
dução superior à dos nacionais. 50
Os incentivos oferecidos a essas empresàs envolviam o recurso à Instrução
113 (importações sem cobertura cambial), financiamento do BNDE, taxas
preferenciais de câmbio para remessa de lucros para o exterior e reserva de
mercado.
Localizado quase que inteiramente no Estado do Rio de Janeiro, o setor da
construção naval, ainda que não tenha tido o incentivo e o crescimento do setor
da indústria de automóveis, acarretou um impacto na economia da Guanabara
e do Estado do Rio (na época separados). O reaparelhamento de estaleiros
existentes e a instalação de dois grandes empreendimentos de construção naval
aumentaram o número de trabalhadores metalúrgicos, que viriam a constituir
alguns anos mais tarde o principal setor operário na área de empresas privadas
do Rio de Janeiro.

3.2.3 Grupo Executivo da Indústria Mecânica Pesada (Geimape)

O Geimape foi criado somente em 1959, visando coordenar a implantação da


meta "mecânica pesada e equipamento elétrico". Tal como acontecera com a
indústria automobilística e a construção naval, esse setor se dinamizou e se
consolidou no país a partir de sua implementação dentro do Plano de Metas.
Até então o Brasil tinha uma incipiente indústria de eletrodomésticos e
equipamentos leves. A montagem da refinaria da Petrobrás e a construção da
Cemig (Centrais Elétricas de Minas Gerais), ainda no período Vargas, já
haviam colocado para o governo a necessidade de o Brasil criar uma indústria
local de bens de capital para atender à demanda das hidrelétricas e refinarias.
Em 1955, havia-se fom1ado a Associação Brasileira de Indústrias de Base
(Abdib), que, sob a liderança do industrial paulista Jorge Rezende, vinha
trabalhando com o governo Vargas, visando o suprimento de bens de capital
leves para a Petrobrás. O governo Kubitschek de inicio não recorreu a esse
incipiente setor, o que levou o industrial Jorge Rezende a queixar-se da
"antipatia" do governo para com os produtos da indústria nacional. Alegava
Rezende que as indústrias de mecânica pesada estrangeiras, através dos
créditos de fornecedores, podiam oferecer seus produtos às empresas do
governo brasileiro com financiamentos de 15 a 20 anos. As indústrias de bens
de capital nacionais não conseguiam assim competir no mesmo nível, pois não
havia qualquer apoio do governo brasileiro (por exemplo, do BNDE) à
comercialização de bens de capital aqui produzidos. Queixava-se o presidente
da Abdib da impossibilidade de se produzir equipamentos no país, uma vez
que esse setor produzia por encomendas, e o principal cliente tendia a ser o
Estado. 5 1 Com a criação do Geilnape, a Abdib passou a fazer parte da coorde-
nação da meta ligada a esse importante setor da indústria de bens de capital.
E algumas empresas locais passaram a contar com o apoio do BNDE, tais como

88
Amo, Cobrasma, Sofunge. Outras empresas que também obtiveram recursos
e se instalaram por essa época foram: AEG, Brown Boveri, lme, Pirelli. 52
O setor da indústria mecânica pesada teve um crescimento da produção real
interna no valor de 93,4% no período 1958-61, enquanto as importações em
dólares do gênero mecânica cresceram no mesmo período 11,7%. Esses dados
apontam para o crescimento da produção doméstica, que começa a suprir o
mercado brasileiro. 53

Tabela4
Participação de setores da indústria de bens de capitais
no total da indústria de transformação
(1949-59) (%)

Valor da
Valor da produção
Setores transformação
1949 1959 1949 1959
1nd. mecânica 1,60 2,85 2,13 3,45
lnd. mat. elétrico e comunicações 1,40 3,98 1,60 3,99
Ind. material de transporte 2 ,30 6,79 2,22 7,59
Fonte: Censos Industriais de 1950 e 1960, apud L. Correa Lago et. ai., A indústria brasileira
de bens de capital, origem, situação receme, perspectivas (Rio de Janeiro,FGV/IBRE, 1979),
p.l15

A tabela 4 mostra o crescimento da participação dos setores de 'mecâniéa ',


'material elétrico e comunicações' e 'material de transporte' na indústria de
transformação dos anos 50. O setor 'material de transporte' ganha maior
dimensão pelo volume de capitais de risco investidos no setor de produção de
caminhões e ônibus. Comparando-se também dados da produção local com
estatísticas de importação de bens de capital em 1959, observa-se que o valor
(em cruzeiros) da produção interna foi superior às importações nesse mesmo
ano (respectivamente 70 bilhões e 41 bilhões de cruzeiros). 54
Tal como aconteceu no caso da indústria automobilística, os empreendimen-
tos que se fonnaram no setor de indústria pesada no período do Plano de Metas
tenderam a ser predominantemente estrangeiros. É o que se pode depreender
de um estudo feito pela Fundação Getulio Vargas, que mostrou que, de uma
amostra de 44 empresas de bens de capital instaladas no período 1956-60, 14
eram nacionais e 30 estrangeiras. 55

3.2.4 Características da política industrial do governo Kubitschek

Podemos agora destacar, de forma sistemática, as linhas básicas da política


industrial dos anos JK:

89
1. um dos traços mais marcantes da política do período foi o planejamento,
isto é, o estabelecimento de metas industriais concretas, bem como a constante
supervisão das metas por novos organismos, nos quais operavam técnkos
preparados. Celso Lafer mostrou muito bem, em seu estudo do plano, que as
metas que foram integralmente cumpridas eram justamente as coordenadas
por esse-núcleo técnico;
2. outro aspecto definidor da política de JK foi o recurso ao capital estrangeiro
privado para acelerar e aprofundar o desenvolvimento industrial (Instrução
113 da Sumoc). Nos setores da indústria de base (automóveis, máquinas e
equipamentos), na indústria química e farmacêutica, em alguns setores de
bens de consumo (fumo e têxtil), indústrias estrangeiras se instalaram ou
reequiparam empreendimentos locais já existentes. No período 1955-61 entra-
ram no país, como investimentos através da Instrução 113, US$ 511 milhões.
Desse capital, 43% provinham dos Estados Unidos e 44,5 de países da Europa,
o que evidencia bem a competitividade entre os campos americano e europeu
na busca de novos mercados. Os investimentos em indústrias de base corres-
ponderam a 74%, enquanto para as indústrias leves ele foi de 26%;56
3. as políticas industriais do Plano de Metas se viabilizaram graças à articu-
lação favorável de três fatores: a) a decisão estatal de planejar o de-
senvolvimento; b) as alterações do capitalismo internacional, com a
recuperação da Europa e do Japão, e o fim da liquidez monetária que caracte-
rizara o período do pós-guerra;57 c) a existência no país de um empresariado
industrial local, cuja ideologia desenvolvimentista encontrou eco no Plano de
Metas e nos organismos neocorporativos do governo JK. Esse mesmo empre-
sariado já atuava na área de bens intermediários e de bens de produção leves,
especialmente em São Paulo, e estava ansioso para inaugurar uma nova fase
industrial, para a qual precisava do auxílio e financi amento governamental;
4. a condução da 'industrialização pesada ', como vem sendo referido o
período industrial que se inicia em 1956,58 se fez com uma significativa
participação do setor público. A contribuição do governo na formação bruta
de capital passou de 25% no período de 1953-56 para 37% no período JK. Se
nesta taxa incluirmos as empresas estatais, a participação governamental se
eleva para 47% no período. 5 9 O Estado forneceu a infra-estrutura energética e
de transportes e os insumos básicos (aço, combustível) para o novo salto
industrial. Produziu o aço, o combustível, o minéri o de ferro, a soda cáustica
e a matéria-prima para a indústria química. Forneceu o crédito industrial ,

I
avalizou empréstimos externos e subsidiou de variadas maneiras o câmbio,
para fazer dele instrumento de proteção industrial e de atração de inves-
timentos;
5. o protecionismo industrial no período se fez de duas maneiras: de 1956 até
agosto de 1957, a proteção foi unicamente cambial, como foi discutido mais
atrás. Após a tarifa de 1957, o protecionismo se fez através das alíquotas sobre
os produtos importados e da taxa de câmbio;

90
6. essa política industrial acelerada se fez com um forte endividamento
externo, uma vez que o balanço de pagamentos, à exceção do primeiro ano do
governo, apresentou sempre um saldo deficitário, gerado pelo fraco desempe-
nho das exportações e pela forte evasão de divisas, seja como pagamento do
serviço da dívida, como remessa de lucros de empresas etc. A dívida externa
brasileira agravou-se no período, passando de US$2 bilhões em 1955 para
US$2. 7 bilhões em 1960. Pelo fato de grande parte da dívida ser de curto prazo,
o pagamento a ser desembolsado pelo Brasil nos três anos seguintes deveria
ser de 70%,fXl um pesado legado de que muito se queixou Jânio Quadros;
7. outro aspecto característico da industrialização da era Kubitschek foi o fato
de o Plano de Metas estabelecer metas articuladas entre si, onde o de-
senvolvimento de um setor provocava um efeito estimulador sobre os demais. 61
Nesse sentido, a indústria de veículos automotores "puxaria" os setores de
autopeças, metalurgia, aço, borracha e metais não ferrosos. A indústria de
mecânica pesada e material elétrico pesado alimentaria as usinas geradoras de
energia elétrica, as refinarias da Petrobrás, a construção de ferrovias, a cons-
trução naval, a pavimentação das rodovias e a mecanização da agricultura;
8. a industrialização do período JK foi caracterizada como tendo por base o
financiamento inflacionário. O Plano de Metas previa uma inflação de 13,4%
ao ano, enquanto a inflação média real no período, foi de 22,6% ao ano. Nem
o Plano de Metas nem a construção de Brasília (ambos empreendimentos de
curto prazo e de alto custo) previram formas de captação de recursos para seu
financiamento. Essa incerteza com relação às fontes de financiamento esteve
presente durante todo o governo JK. Juscelino e os coordenadores do Plano de
Metas julgavam ser possível a captação de boa parte do financiamento através
de empréstimos públicos externos, combinados com investimentos privados
de risco. Estes últimos efetivamente vieram, mas o vulto dos investimentos era
muito alto, exigindo grande envolvimento do Estado como agente financiador.
A conjuntura política não viabilizava a aprovação de uma reforma tributária
no Congresso. E o Banco do Brasil resistia a diminuir sua participação na
concessão do crédito à agricultura e à indústria. Em face desses cons-
trangimentos, o governo encaminhou-se para o financiamento inflacionário do
Plano de Metas: aprofundou o déficit público. A situação inflacionária man-
teve-se relativamente sob controle até 1958, e se elevou em 1959 e 1960,
causando greves e incerteza econômica;
9. o ciclo industrial do período Kubitschek tendeu a aumentar o grau de
concentração industrial no Centro-Sul, especialmente em São Paulo. A parti-
cipação desse estado no valor de transformação industrial passou de 48,8% em
1949 para 55% em 1959, sendo que nas indústrias de bens de produção a
participação no VTI subiu de 69% para 82% no mesmo perfodo. 62 Formaram-
se setores oligopolizados (indústria de automóveis, farmacêutica e de alimen-
tos), que mudaram definitivamente o cenário industrial dessa região e criaram
um novo estilo de relação entre Estado e grande empresa, que iria repercutir
na formulação da política econômica nas décadas futuras.

91
Conclusão

No momento em que vamos avaliar o legado do governo Kubitschek para a


economia e a sociedade brasileiras, é preciso reconhecer a contribuição pessoal
do estadista, que marcou uma era e cuja atuação se caracterizou pela determi-
nação de implementar as metas do seu governo, pela capacidade de se cercar
de quadros técnicos para conduzir suas políticas interna e externa e pelo estilo
negociador, capaz de resolver crises políticas - desde que não estivessem
envolvidas na conciliação as suas prioridades não negociáveis.
Há também que ressaltar a continuidade de vários aspectos do segundo
governo Vargas no período JK, os quais contribuíram para a viabilização do
Plano de Metas. Diversamente da Argentina, onde a transição de Perón a
Frondizi representou profundas mudanças na estratégia econômica, nas
equipes e nos grupos políticos no poder, no Drasil as presidências Vargas e
Kubitschek significaram a continuidade do bloco partidário formado pelo
PSD-PTB no Congresso, e de um projeto de desenvolvimento baseado na
consolidação da infra-estrutura. 63 Continuou também a ênfase no de-
senvolvimento industrial e na viabilização dos projetos sugeridos pela Comis-
são Mista Brasil-Estados Unidos, com a busca das mesmas agências financia-
dotas e dos técnicos e planejadores do B1'-IDE, do Itamarati e da Sumoc.
Quando JK assumiu a presidência e indicou Lucas Lopes para presidir o
BNDE, este obteve junto ao Eximbank os créditos referentes aos projetos da
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos aprovados na era Vargas, mas não
viabilizados naquela ocasião. Este é um bom exemplo da continuidade entre
os dois governos.
Este artigo buscou mostrar as várias faces do governo Kubitschek, através
da análise das políticas econômicas fundamentais do período. A face do êxito
foi mostrada pela implementação de quase todas as diretrizes industriais do
Plano de Metas. O sucesso do plano se dá em meio a um período de estabilidade
política, e repousa, como vimos, na existência de uma base política no
Congresso, de quadros técnicos e de agências que formularam as metas e
acompanharam sua realização. O apoio externo de organismos públicos inter-
nacionais (Eximbank e Banco Mundial) e de capitais de risco privados (via
Instrução 113 da Sumoc) foi também fundamental para a realização das metas.
A estratégia de viabilização de setores industriais importantes, através de
organismos neocorporativos (os grupos executivos dos setores da indústria de
automóveis, construção naval, mecânica pesada e material elétrico pesado),
criou espaços decisórios setoriais que agilizaram a consecução dessas metas.
Em decorrência da própria ênfase obstinada de Juscelino Kubitschek na
industrialização e na transferência da capital para Brasília, algumas áreas da
política econômica brasileira ficaram relegadas a um plano secundário, per-
dendo sempre que se tratava de escolher entre as metas prioritárias e as demais.
Nesse "segundo escalão" de objetivos governamentais na área econômica,
ficaram os setores onde houve um desempenho entre razoável e baixo do

92
governo Kubitschek: as exportações, cujo quantum variou de 100% a 118%
entre 1957 e 1960 (com relação a valores de 1953);64 a inflação, que subiu a
partir de 1959 (ver tabela 3); o déficit no balanço de pagamentos, e o
endividamento externo. Estes dois últimos itens, em especial, representaram
wna fonte de preocupação e de constrangimento para o fmal do governo JK,
pressionado pelos pagamentos de dívidas de curto prazo, numa conjuntura de
escassez de divisas.
A análise que empreendemos permite também concluir que embora a
conjuntura internacional tenha constituído o quadro de fundo das políticas de
crescimento do período 1956-60, ela não é o único fator que explica esse
momento de crescimento. Ainda que o governo JK tenha recorrido aos capitais
de risco, aos empréstimos de bancos públicos e privados estrangeiros, e tenha
se valido das oportunidades surgidas com a recuperação européia, essa era de
desenvolvimento teve grande fmanciamento do Estado, baseado no aprofun-
damento do déficit público e na dinâmica interna gerada pela inflação, que
penalizou o assalariado e alocou parte do lucro das empresas para cobrir as
perdas advindas da elevação do custo de vida.
Foi uma opção do governo JK crescer com a inflação, a despeito das
recomendações do FMI e do Departamento de Estado norte-americano de que
a hora era de desacelerar o crescimento e de tratar da estabilidade monetária e
do equilíbrio das contas externas. Foi também decisão do governo JK adiar
para o governo seguinte a reforma cambial desejada pelo FMI, pondo f1111 ao
câmbio controlado e ao subsídio cambial, que representou durante ~nto tempo
a principal proteção à indústria.
Assim como buscamos relativizar aqui o peso da conjuntura externa sobre
os caminhos da política econômica brasileira, quisemos também enfatizar a
participação das classes sociais na formulação e implementação das políticas
na área econômica. Sem deixar de reconhecer a participação do Estado como
fomentador do desenvolvimento industrial ·do período, procuramos mostrar,
através de estudos de caso de experimentos neocorporativistas (os grupos
executivos), a aliança que se dava entre setores da burguesia industrial e o
Estado, relativizando análises que explicam a supremacia da burocracia técni-
ca sobre setores econômicos "frágeis" nesse período.
Não tratamos neste trabalho de outras formas de pressão de classes sociais
sobre o Estado. O poder de veto dos cafeicultores, por exemplo, demonstrado
no Congresso e nas Marchas da Produção, através das quais a cafeicultura
pressionou o governo a melhorar a taxa de câmbio para o café, é uma evidência
da força do setor junto ao Estado, e reforça nosso argumento de que as políticas
econômicas são feitas com a participação das classes nelas envolvidas. Daí
certas áreas se constituírem em centros nervosos de poder.
Para finalizar a análise do campo da burocracia, chamamos a atenção para
o estilo de JK, de subordinar seus assessores técnicos às suas prioridades não
negociáveis, e colocar no comando dessa assessoria, isto é, no Ministério da
Fazenda, homens do PSD.

93
Se se pode debater quanto ao legado positivo ou negativo das políticas
econômicas do período JK, existe mn consenso na análise do impacto provo-
cado pelos "50 anos em 5" no país.
O desenvolvimento industrial e a construção de Brasília puseram em
evidência novos tipos sociais. Nas grandes cidades surgiram os grã-finos do
"café society", os playboys, os colunistas sociais, e o operário de macacão,
símbolo da indústria de automóveis. No interior, surgia o candango, o migrante
construtor de Brasília. Acompanhando as rodovias que se abriram então,
ligando Brasília a Belém, Belo Horizonte e Fortaleza, iam os pioneiros das
frentes de expansão, os pequenos agricultores que ocuparam o Norte do pais,
como também o Maranhão e o Piauí. As frentes agrícolas dinamizaram também
os estados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Goiás. 65
A geografia política do país mudou após a era Kubitschek. Brasília viabili-
zou a ocupação do Norte e do Centro Oeste. A fronteira agrícola cresceu para
o Sul, que também se beneficiou com o crescimento industrial. Mas foi o estado
de São Paulo o grande beneficiário do govemo JK. A indústria ali se concentrou
ainda mais, especialmente no setor mais dinâmico, de bens de capital.
Poderíamos dizer que a Juscelino Kubitschek coube optar entt·e crescer ou
solucionar o desequilíbrio extetno nas contas do país. O presidente Geisel,
duas décadas depois, também se defrontou com esse dilema, e, tal como
Kubitschek, decidiu-se pelo crescimento com endividamento, a opção que o
ministro Reis Veloso chamou de "o último trem para Paris". O govemo fK ;J
tomou também o último trem daquela era de desenvolvimento. A diferença, .
entretanto, é que esse último trem da era JK levou consigo um passageiro
importante: a democracia. cmtvvtft,u't ~·o

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1
V\ •
mento externo, pelos udenistas (especialmente Carlos Lacerda e Clemente Mariani) e pelos ·
economistas llt'Oliberais (Eugênio Gudin e Octavio Gouveia de Bulhões). A esquerda 1
nacionalista (P.1rtido Comunista Brasileiro e Frente Parlamentar Nacionalista) criticam as ~
medidas cambiais que subsidiaram a internacionalização do parque industrial brasileiro. j''.J ·
Mais recentemente, uma crítica moderada do expansionismo monetário do governo JK
aparece na detalhada análise de Kahil, Raouf. /n.flation and economic developmem in ",(. (\. ~
Brazi/ (/946-1963). Oxford, Clarendon Press, 1973. cap. 8. \ D-J "'.
O Encilh:nnento (1888-92) foi um período de ~raude atividade especulativa no setor
financeiro, especialmente no Rio de Janeiro. Ho~"e uma ativação da Bolsa de Valores do
Rio em resposta a políticas expansionistas dos governos de transição do Império para a
República. Visto inicialmente como um período de pura especulação e endividamento, é
hoje considerado como responsável por um surto de expansão industrial e de crescimento
econômico na região Centro-Sul. Ver Lobo, Eulalia. História do Rio de Janeiro: do capital
comercial ao capital industrial e financeiro. Rio de Janeiro, IBMEC, 1978. v. 2, cap. 4;
Levy, Maria Barbara. História da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
IBMEC, 1977. p. 104-24. Para uma comparação entre o governo JK e os tempos do
Encilhamento, ver a fala do deputado Leuzzi, Miguel, em Anais da Câmara dos Deputa-
dos.(Sessão de 4.12.56), v. 46, p. 63.

94
2
Nos anos 70, duas importantes teses acadêmicas reavaliaram o governo JK do ponto
de vista do seu sucesso em promover o desenvolvimento com estabilidade polltica e
implementar quase integralmente um ambicioso plano de 31 metas. Ambos os trabalhos
enfatizaram a dimensão positiva desse governo, não aprofundando as dificuldades econô-
mic~s que ele enfrentava nem os problemas que legou aos governos e gerações posteriores.
Ver Benevides, Maria Victoria. O governo Kubitschek; desenvolvimento econômico e
estabilidade política. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976 e Lafer, Celso. The p/anning process
and the política/ system in Brazil: a study ofKubitschek's Target Plan, 1956-1961. Ph.D.
Thesis.Comell University, 1970.
Para um depoimento engajado sobre o período Kubitschek, que não esconde críticas ao
expansionismo monetário enquanto estratégia de governo de Juscelinol Kubitschek, ver
Lopes, Lucas. Memórias do desenvolvimento (no prelo). ·
Dentre as análises mais recentes, que contrabalançam os aspectos bem-sucedidos e os
problemas legados pelo governo Kubitschek, estão: Malan, Pedro. Relações econômicas
internacionais do Brasil ( 1945-1964). In: Fausto, Boris, org. O Brasil republicano, v. 4 São
Paulo, Difel, 1986. (História Geral da Civilização Brasileira). p. 51-106; Draibe, Sonia.
Rumos e metamorfoses. Estado e industrialização no Brasil: 1930-1960. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1985. Sola, Lurdes. The política/ and ideological constraints to economic
management in Brazil (1945-1963) Ph.D Thesis. Universidade de Oxford, 1982, cap. 3;
Orenstein Luiz & Sochaczweki. Antonio C. Democracia com desenvolvimento: 1956-
1961. In: Abreu, Marcelo de Paivà, org. A ordem do progresso. Cem anos de política
econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro, Campus, 1989. p. 171-95; Leopoldi,
Maria Antonieta P. Industrial associations and politics in contemporary Brazil (1930-
1931). Ph.D. Thesis. Universidade de Oxford, 1984.
3 Alguns estudos sobre políticas econômicas do período pós-30 têm enfatizado a fragi-
lidade da burguesia industrial, dos exportadores e da cafeicultura frente ao Estado.
Conseqüentemente, os técnicos do governo são vistos como os únicos responsáveis pela
política industrial, pelo planejamento, pelas polfticas de câmbio e de comércio exterior,
acima dos industriais e dos cafeicultores. Ver Martins, Luciano. Pouvoir et développment
economique. Formation et évolution dcs structures politiques au Brésil. Paris, Anthropos,
1976 e Leff, Nathaniel. Polltica econômica e desenvolvimento no Brasil. São Paulo,
Perspectiva, 1977.
4 Consta que numa visita a Portugal, pouco antes de sua posse, JK teria ouvido de Salazar
o conselho de nunca recorrer a uma reforma cambial para não desestabilizar seu governo.
Seu assessor Lucas Lopes referiu-se ao fato de que Juscelino sempre lhe dizia não querer
uma reforma cambial. Ver Lopes, Lucas. op. cit.
, 5 Ver Benevides, M. Victoria. op. cit. cap. 1, e Jaguaribe, Hélio. Desenvolvimento
.fl/\.&1 \ econômico e desenvolvimento político. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.
Jlr..r'~ \
1
6 Formada em 1951, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos reuniu técnicos america-
nos e brasileiros para realizar diagnóstico da economia brasileira e formular projetos
visando ao financiamento do Banco Mundial e do Eximbank. A Comissão funcionou até
1953, tendo produzido 41 projetos, que envolveram investimentos de 387 milhões de
dólares, especialmente nas áreas de transportes e energia elétrica. Cumprindo a função de
assessoramento técnico, que também lhe cabia, a Comissão completou a formação de uma
geração de policy-makers, que participou ativamente das políticas dos anos 50 e 60 (Lucas
Lopes, Roberto Campos, Octavio O. Bulhões, San Tiago Dantas, Alexandre Kafka,
Rômulo Almeida). Da CMBEU um grupo de técnicos passou ao BNDE e ajudou, sob a
coordenação de Lucas Lopes e Roberto Campos, na formulação do Plano de Metas. Ver
Malan, Pedro. op. cit. p. 60-89; Lafer, Celso. op. cit. p. 52-3, Lopes, Lucas. op. cit.
7 Para maiores detalhes sobre o papel do BNDE no governo Kubitschek, ver Lessa,
Carlos. Quinze anos de política econômica. Campinas, Unicamp, 1975.

95
8
Os ministros da Fazenda do governo Kubitschek foram os seguintes: José Maria
Alkmin, PSD{MG (31.1.56 a 24.6.58); Lucas Lopes, PSD (24.6.58 a 30.5.59); Sebastião
Paes de Ahneida, banqueiro paulista, PSD (como ministro interino, substituiu José Maria
Alkmin entre 19.9.56 e 26.10.56, e Lucas Lopes, afastado por doença de 1.6.59 a 3.6.59;
foi ministro efetivo de 4.6.59 a 31.1.61.
9 Criado em 1 de fevereiro de 1956 pelo Decreto n~ 38.744, o Conselho de Desenvolvi-
mento foi o organismo coordenador da formulação e da execução do Plano de Metas. Era
formado pelos ministros, chefes das Casas Civil e Militar, o presidente do Banco do Brasil
e o presidente do BNDE. Seu secretário executivo era Lucas Lopes. Um traço importante
do Conselho era o envolvimento direto de JK nas suas atividades. Dessa forma, o Conselho
de Desenvolvimento se tomava o espaço onde JK dialogava com os coordenadores de cada
meta. No Conselho de Desenvolvimento funcionavam os grupos de trabalho e os grupos
executivos. Ver Lopes, Lucas. op. cit.
10 Ver Lopes, Lucas. op. cit. Para informações sobre os quadros do setor energético, ver
Centro de Memória da Eletricidade no Brasil, Programa de História Oral da Memória da
Eletricidade: Catálogo de depoimentos. Rio de Janeiro, CMEB, 1990.
11 Ver Lafer, Celso. op. cit. p. 135-41.
12 O Plano Monnet, elaborado pelo empresário francês Jean Monnet (1988-1979) em
1945, visava a modernização da indústria francesa no pós-guerra. Esse plano introduziu
um estilo de trabalho que reunia lado a lado burocratas, empresários e líderes sindicais.
Deu origem, nos anos 50, ao Segundo Plano de Modernização e Reequi pamento Industrial
(1954~57), no qual Lucas Lopes se inspirou quando trabalhava na formulação do Plano de
Metas. Ver Lopes, Lucas. op. cit.
13 Ver Lopes, Lucas. op. cit.
14 Oficialmente, o afa.stamento do ministro Alkmin foi explicado pelo fato de que ele iria
concorrer a uma vaga de deputado federal nas eleições de 1958. Na verdade, Alkmin parece
ter-se afastado devido ao desgaste que vinha sofrendo na imprensa em função de sua
política de câmbio e de café. Ver Lopes, Lucas. op. cit.; Hippolito, Lucia. De raposas e
reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira, 1945-1964 . Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1985, p. 181-2.
15 Relatório das ativitúules do Conselho de Desenvolvimento em 1958. Rio de Janeiro,
Jornal do Commércio, 1959.
16 Ver tabela 3 adiante.
17 No Congresso dos anos 50, podem ser destacados parlamentares como Herbert Levy,
Daniel F araco e Bilac Pinto, que sempre acompanhavam as questões da política econômica,
atuavam nas Comissões de Economia e de Finanças e questionavam o Ministro da Fazenda.
Contudo, há poucos estudos que informem sobre o desempenho do Congresso na área da
política econômica. A historiografia nos deve uma boa análise da atuação dos partidos e
do Legislativo nessa área.
18 Dos 730 milhões de dólares em reservas, somente 100 milhões estavam disponíveis em
moeda conversível. Em 1947 o governo britânico bloqueou a convertibilidade da libra, e
o sistema monetário europeu só voltou a conversibilidade plena em 1959. Ver Malan,
Pedro. et ai. Política econômica externa e industrialização no Brasil (1939-1952). Rio de
Janeiro, IpeaflNPESD, p. 152.
19 Ver Lessa, Carlos. op. cit. cap. 2; Malan, Pedro. et al. Política econômica externa e
industrialização no Brasil, op. cit. p. 28-9; Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil.
São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1969. p. 228-31, e Martins, Luciano. op. cit. p. 359-63.

96
20 O argumento de que a reorientação da política cambial em :94- a:~ndia s~­
mente às pressões externas e aos reclamos dos industriais se reforça quando se obsen-a
que os ministros da Fazenda do período foram dois industriais: Manoel Guilherme da
Silveira (1949-51) e Horário Lafer (1951-53), e que durante a gestão de ambos a taxa de
câmbio manteve o cruzeiro desvalorizado, tal como queriam as lideranças industriais.
21 Como exemplo dessa variação da taxa de câmbio, temos para o ano de 1954 o seguinte:
o custo de câmbio valia em média 30 cruzeiros por dólar; pelo sistema de leilões, a categoria
1 (bens essenciais) tinha um dólar médio de 42 cruzeiros; a categoria 2, de 45 cruzeiros;
a 3, de 58 cruzeiros; as categorias 4 e 5, respectivamente, equivaliam a 68 e 111 cruzeiros.
22 A taxa oficial do dólar era de Cr$18,36. O bônus do café, inicialmente estabelecido em
Cr$5,00 por dólar, fazia com que o dólar café correspondesse a Cr$23,36. Para os demais
produtos de exportação, o bônus era de Cr$10,00 por dólar. As Instruções 109 e 112 da
Sumoc (1955) aumentaram o bônus. Ver Rio e Gomes, Sistema cambial: bonificações e
ágios. In: Versiani, F. & Barros, J. F. Formação econômica brasileira. São Paulo, Saraiva,
1978.
23 Para uma análise do impacto da Instrução 113 da Sumoc sobre as associações de classe
dos industriais (FIESP, Firjan e CNI), ver Leopoldi, Maria Antonieta P. op. cít. caps. 7 e
8.
24 Para uma análise das políticas de conciliação de JK em relação aos partidos e aos
militares, ver Benevides, M. V. op. cit.; sobre a estratégia de Juscelino de promover a
conciliação nacional através do discurso nacional-desenvolvimentista, ver Cardoso, Mi-
riam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento: BrasilJK e JQ. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977.
25 Vale a pena notar que enquanto a tarifa foi aprovada pelo Congresso em agosto de 1957
(Lei n 2 3.244), as alterações cambiais que dela decorreram foram introduzidas através de
decreto (Decreto nu 42.820, de 16.12.57). Isto evidencia que a arena cambial, a despeito
do seu grande impacto na economia, passava ao largo da política parlamentar.
26 Segundo Lucas Lopes, Juscelino lhe pediu inúmeras vezes, quando ministro da Fazen-
da, que não retirasse o privilégio cambial do trigo, do petróleo e do papel de imprensa.
Dessa forma JK mantinha o subsídio para o pão e as massas (alimentos dos setores
populares), bem como o transporte público, e não sofria desgaste junto à grande imprensa,
que sem o papel subsidiado se voltaria contra ele. Ver Lopes , Lucas. op. cit.
27 Nas recomendações feitas pelo FMI ao governo brasileiro em 1958 e 1959, como parte
das negociações para a obtenção de recursos, ficava claramente estabelecido que o Brasil
deveria prosseguir no esforço de simplificar as taxas de câmbio, iniciado em 1957, visando
alcançar uma taxa única: "O problema de pagamentos internacionais não pode ser resolvido
apenas através de medidas fiscais e creditícias, e o Fundo, portanto, recomenda em caráter
de urgência, que o Brasil leve a cabo uma reforma geral de seu sistema cambial para ajudar
a restaurar o equilíbrio nó balanço de pagamentos. Entremente, o Fundo se sente impos-
sibilitado de aprovar as taxas múltiplas do Brasil." Recomendações do staff do F undo
Monetário Internacional à diretoria executiva da instituição, referente às consultas de 195'"',
em 22.1.58. Ver também Aide-Memoire Confidencial, FMI 30.4.58; IMF, Brazil -
Stand-by Arrangement and Exchange System, 25!7/1958; IMF, Brazil- Changes in lbe
Exchange System, 8.1.59; Aide-Memoire, IMF, Washington, 10.4.59. Todos esses docu-
mentos do FMI estão no Arquivo Lucas Lopes, doado ao CPDOCjFGV.
28 Em janeiro de 1959 a Instrução 174 da Sumoc simplificou as categorias de expanaçio
em três blocos: 1) café, 2) cacau/mamona e 3) outros produtos agrícolas de expon.ação.
Ela tan1bém incorporou a bonificação ao custo de câmbio (suprimindo, a partir & ~
o bônus flutuante), elevando substancialmente o câmbio de exportação em cruzeirosdes:ses
produtos. A Instrução 175, por sua vez, elevou a taxa do custo de câmbio para CrS102,-
por dólar, aproximando-o do dólar livre (Cr$156,00) e reduzindo o subsidio camW..
29 Ver Ministério da Fazenda. Programa de Estabilização Monetária para o Período de
setembro de 1958 a dezembro de 1959. Rio de Janeiro, 1958. ·
30 Instrução 192, de dezembro de 1959. Ver Doellinger, Carlos von. et ai. Política e
estrutura das importações brasileiras. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1977. p. 39-40.
31 Num comunicado secreto do embaixador Amaral Peixoto em Washington, datado de
12 de fevereiro de 1959, o ministro da Fazenda Lucas Lopes era informado de que o
Departamento de Estado e o Eximbank. se mostravam preocupados com a situação
econômica brasileira, e que o Departamento de Estado aconselhava o Brasil a se entender
com o FMI, buscando uma "fórmula adequada" para obter do Fundo um pronunciamento
favorável. Amaral Peixoto advertia que as negociações com o governo americano deveriam
se tomar mais complexas, e que estavam sendo analisadas a dívida do Brasil com a Europa
e o balanço de pagamentos brasileiro. Ver Comunicado (secreto) da Embaixada do Brasil
em Washington, 12.2.59, Arquivo Lucas Lopes.
32 Ver Folha de S. Paulo, 14.6.1959.
33 FMI, Aide Memoire, Washington, 10.4.59. Arquivo Lucas Lopes.
34 Ver Horsefield, J.K., ed.. The Internationa/ Monetary Fund (1945-1965): twenty years
o f intemational monetary cooperation. Waslúngton, IMF, 1969. v. 2, p. 460-7.
35 Sobre a Instrução 204 da Sumoc, ver Malan, Pedro. Relações econômicas internacionais
do Brasil. op. cit., p. 99-100; ver também A situação financeira do país e a Instrução 204,
exposição do ministro da Fazenda Clemente Mariani à Câmara dos Deputados em
19/4/1961. Imprensa Nacional, 1961.
36 Malan, Pedro. op. cit. p. 99-101. Ver também o depoimento de Clemente Mariani ao
Programa de História Oral, CPDOC/FGV, 1974.
37 Malan, Pedro. op. cit. p. 100.
38Ver Cano, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil (1930-
1970). São Paulo, Global 1985. p. 87, e Kahil, R. op. cit. p. 303-15.
39 Para estas informações estamos nos baseando nas análises de Lessa, Carlos. op. cit., e
Lafer, Celso. op. cit.
40 Ver Lessa, Carlos. op. cit. p. 25.
41 Ver Lafer, C. op. cit., e Stolcke, Verena. Cafeicultura: homens, mulheres e capital
(1850-1980). São Paulo, Brasiliense, 1986. p. 145-50.
42 Ver Lista de membros do Conselho de Desenvolvimento (mirneogr.), Arquivo Lucas
Lopes. Ver também Martins, Luciano. op. cit. p. 417-25.
43 Para o acompanhamento em detalhe dessas disputas, ver o depoimento de um líder
empresarial da indústria de autopeças daquela época: Ramiz Gattás, A indústria
automobiUstica e a segunda revolução industrial no Brasil; origens e perspectivas. São
Paulo, Prelo Editora, 1981.
44 Ver Lopes, Lucas. op. cit.
45 Ver Martins, Luciano. op. cit. p. 424.
46 Dados da CEPAL reproduzidos em Luciano Martins, op. cit., tabela III, p. 424.
47 Ver l\1artins, Luciano. op. cit. p. 418.
48 Ver Oattás, Ramiz. op. cit. e Leopoldi, M. Antonieta. op. cit.
49 Para maiores detalhes sobre a reação dos industriais "nacionalistas" à Instrução 113,

ver Leopoldi, M. Antonieta. op. cit. caps. 7 e 8. Para uma análise do discurso oficial da

98
FIESP com relação à Instrução 113 e ao papel do capital estrangeiro nos anos JK, ver
Trevisan, Maria José. 50 anos em 5. A FIESP e o desenvolvimento. Petrópolis, Vozes,
1986. p. 115-28.
50 A vinda do estaleiro japonês Ishikawagima, instalado na área do Caju, Rio de Janeiro,
foi decidida a partir de negociações iniciadas pelo secretário do Conselho do Desenvolvi-
mento, Lucas Lopes, em viagem ao Japão em 1958. Ver Lopes, Lucas. op. cit.
51 Ver entrevista de Jorge Rezende, presidente da Abdib, à revista Visão, São Paulo,
2l.maio 1965.
52 Ver Lafer, Celso. op. cit., p. 205.
53 Ver Lago, L.C. et ai. A indústria brasileira de bens de capital; origens, situação recente,
perspectivas. Rio de Janeiro, FGVJIBRE, 1979. p. 110.
54 Id. ibid., p .51
55 Id. ibid., p. 51 (Relatório do Grupo de Trabalho Bens de Capital, FGV/IBRE).
56 Dados da Cacex, Banco do Brasil, em Lafer, Celso, op. cit., p.221
57 "A política de atração de capitais privados estrangeiros para o Brasil (... )dificilmente
teria tido o "sucesso" que teve no período Kubitschek não fora a alteração que estava em
curso na alocação internacional do investimento direto, acelerada, a partir de 1957, pelo
surgimento da Comunidade Econômica Européia," Malan, Pedro. Relações econômicas
internacionais do Brasil (1945-1964). op. cit. p. 83.
ss Ver Cano, Wilson. op. cit. p. 84-101 e 104-14.
59 Ver Lessa, Carlos. op. cit. p. 41.
60 Ver Malan, Pedro. op. cit. p. 84.
61 Referimo-nos aqui ao conceito de linkages, usado por Celso Lafer na análise do Plano
de Metas. O conceito é de Hirschman, Albert: The strategy of economic development. New
Haven, 1965, p. 100.
62 Ver Cano, Wilson. op. cit. p. 87.
63 Ver a respeito Kathryn Sikk.ink. Developmentalism and democracy ideas, institutions
and economic policy in Brazil and Argentina (1955 -1962). Ph.D. Thesis. Columbia
University, 1988.
64 Ver Baer, Werner & Kerstenetzky, Isaac. The Brazilian Economy. In: Riordan Roett
ed., Brazil in tire sixties. Nashville, Vanderbilt University Press, 1972. p. 126.
65 Ver Szrnrecsányi, Tamás. O desenvolvimento da produção agropecuária (1930-1970).
In: Fausto, Boris, org. O Brasil republicano, v. 4. São Paulo, Difel, 1986. (História Geral
da Civilização Brasileira) p. 109-207.

99
Juscelino Kubitschek e a política
presidencial*
..
Sheldon Maram**

Há muito tempo os estudiosos de assuntos brasileiros reconhecem a importân-


cia das eleições presidenciais de 1960. Elas deram irúcio a um processo que
culminou nwna ditadura militar que durou 21 anos. Foi só em 1989 que os
brasileiros voltaram a eleger seu presidente pelo voto direto. Não obstante, os
estudos sobre este evento são poucos, e muitas vezes tendem à idéia a -histórica
de que a eleição de Jânio Quadros em 1960 fez parte de um processo
inexorável. Ficam quase inteiramente esquecidos os motivos pelos quais o
maior partido político do país, o Partido Social Democrático (PSD), escolheu
um candidato fraco como o marechal Henrique Teixeira Lott. 1
Está claro que Lott não era membro de nenhuma guarda pretoriana que
tivesse imposto sua candidatura. Muito pelo contrário, o marechal foi um
candidato relutante, que se dispôs a renunciar em outubro de 1959 em prol de
um "candidato de união nacional". 2 Na minha opinião, sua escolha teve pouco
a ver com as ações do próprio Lott, e muito a ver com uma série complexa de
manobras executadas pelo então presidente Juscelino Kubitschek (1956-61).
Para Juscelino, que tinha uma visão altamente personalista do processo polí-
tico, os partidos e os aspirantes à presidência em 1960 não passavam de peões
num tabuleiro de xadrez. Como a Constituição o impedia de tentar a reeleição
de in1ediato, manobrou de início para que seu partido, o PSD, não lançasse
candidato próprio. Tendo fracassado neste intento, mostrou-se no mínimo
ambivalente quanto ao destino do candidato pessedista.
Uma análise das ações e motivações de Juscelino Kubitschek coloca alguns
desafios metodológicos para o historiador. Tradicionalmente, os historiadores
dependem muito da documentação escrita para embasar suas análises de ações
e motivações. Porém, há muitos hiatos na documentação escrita referente ao
período Kubitschek. Em parte, estes hiatos são um problema enfrentado por
todo historiador da era moderna, conseqüência de um paradoxo que é fruto das
comunicações modernas. Por um lado, as comunicações modernas geraram
uma proliferação de materiais impressos de grande valor para o historiador.
• Agradeço à American Philosophical Society os generosos recursos que ajudaram a
fmanciar a pesquisa realizada para a preparação do presente ensaio. Gostaria também de
agradecer ao dr. Jack Coleman, vice-presidente para assuntos acadêmicos da California
State University, por seu estúnulo e pelo apoio fmanceiro fornecido através do órgão por
ele representado. Minha colega, a professora Nancy Fitch, fez observações críticas que
melhoraram muito o resultado de meu trabalho.
** Membro do Departamento de História da California State University, Fullerton.

100
Por outro, os transportes modernos e o telefone facilitaram os encontros
pessoais e a comunicação direta, pemútindo aos políticos trocar idéias sem
deixar qualquer registro escrito. Soma-se a este problema a autocensura que
os líderes políticos muitas vezes exercem em suas cartas e demais documentos
que, segundo imaginam, poderão um dia ser usados para determinar seu lugar
na história. Para compensar esses hiatos na documentação escrita, os his-
toriadores tentam utilizar instrumentos adicionais de pesquisa, entre eles a
história oral.
A necessidade de recorrer à história oral como fonte suplementar de
pesquisa é particulannente óbvia no caso de Juscelino Kubitschek. Juscelino
tinha muita consciência de que a documentação que deixaria viria a ser
utilizada pelos pesquisadores para determinar seu lugar na história. Durante
seu mandato, publicou mais de 80 volumes reunindo seus discursos e docu-
mentos referentes aos atos de seu governo. 3 Para dar instruções a seus asses-
sores e discutir questões políticas, porém, dava preferência à comunicação
verbal, em pessoa ou por telefone. 4 É característico de seu estilo ter ele
preparado suas memórias, que foram publicadas nos anos 70, ditando suas
idéias para um ghostwriter, o qual se encarregou da pesquisa e da redação do
texto. 5
Contudo, embora a história oral seja um instrumento suplementar essencial
para a compreensão de indivíduos como Juscelino Kubitschek, sua utilização
enfrenta limitações concretas, além das que costumam ser mencionadas.
Juscelino gostava de passar a imagem de uma pessoa efusiva, espontânea e
aberta. Esta imagem era sem dúvida coerente com seu estilo como executivo
e administrador. Como executivo, galvanizava sua equipe com a idéia de
modernizar o Brasil e sua disposição de inovar. 6 Porém era cauteloso quando
se tratava de tomar decisões políticas. Embora não relutasse em pedir conse-
lhos, quando se tratava de muitas decisões políticas importantes trocava idéias
apenas com um círculo restrito de assessores mais íntimos. Mas até mesmo
com eles, com relação a decisões políticas cruciais, era evasivo e por vezes
passava mensagens contraditórias. 7 Conseqüentemente, ao estudar Juscelino
Kubitschek somos obrigados a recorrer a impressões de observadores contem-
porâneos, muitas vezes conflitantes, e lançar mão de wna grande variedade de
fontes a fim de extrair inferências de seus atos.
Se Juscelino sentia-se à vontade na arena política, o mesmo não se dava
com o candidato pessedista na eleição de 1960, Henrique Teixeira Lott. Muitos
dos fatores que haviam sido positivos em sua carreira militar pesavam contra
ele no campo da política eleitoral. A trajetória de Lott no Exército fundamen-
tara-se em dois ingredientes básicos. Um deles era o nível aparentemente
elevado de competência técnica que adquiriu como aluno brilhante de diversas
escolas de aperfeiçoamento de oficiais no Brasil, na Europa e nos Estados
Unidos. 8
O outro era sua capacidade de cumprir de modo eficiente as ordens de seus
comandantes militares. Lott tinha um sentimento inflexível do dever e da

101
honra. Temos um bom exemplo disto mun episódio que teria ocorrido no tempo
em que ele era ministro da Guerra do governo Kubitschek. Certa noite,
voltando à sua residência oficial, foi barrado por uma sentinela que se recusou
a deixá-lo passar porque tinha ordens de "não deixar entrar ninguém". Quando
o marechal observou que a sentinela devia conhecê-lo, o soldado retrucou que,
"mesmo que conhecesse", isto em nada mudaria as circunstâncias, "pois na
ordem que recebi não há exceção nem para o senhor" . Lott levou quase uma
hora para poder entrar em casa, mas consta que "gostou da intransigência do
soldado".9
Seja ou não verdadeira a história, o fato é que Lott deixava claro que
considerava sua própria intransigência política uma virtude. Para o marechal,
quando um homem com sua formação e sua experiência disputava um cargo
eletivo, tinha obrigação de informar o público da verdade, fosse ou não
agradável. Se Lott não podia ter certeza de que os eleitores iriam obedécer à
sua orientação, ao menos esperava que respeitassem seus conhecimentos e sua
integridade, e seguissem sua liderança. Quando seus assessores políticos lhe
sugeriam que adaptasse melhor sua mensagem às suas platéias, o marechal
rejeitava tais propostas tenninantemente. Anos depois, uma destas pessoas que
tentou em vão aconselhá-lo declarou: "O general Lott tinha opinião sobre todos
os assuntos de política interna, externa, assuntos econômicos etc.", e formava
tais opiniões sem consultar seus assessores. Na verdade, ele não aceitava uma
assessoria. 10 ·
Os políticos que lhe deram apoio inicialmente sabiam que a obstinação e a
franqueza do marechal criariam obstáculos. Mas não faziam idéia do quanto
elas seriam problemáticas até o dia em que Lott foi lançado candidato numa
entrevista coletiva a que estavam presentes muitos dos principais repórteres
políticos do país. Para levar Lott à presidência, seus partidários pensavam em
armar uma coalizão entre o PSD, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e
outras forças políticas de esquerda, inclusive o Partido Comunista Brasileiro
(PCB), que embora estivesse na clandestinidade ainda tinha influência. Antes
de ir para a coletiva, Lott foi aconselhado por seus assessores a esquivar-se de
uma pergunta que certamente seria feita: se o governo Lott estabeleceria
relações diplomáticas com a União Soviética. Sabiam que, embora muitos de
seus eleitores potenciais fossem a favor desta medida, o marechal era contra.
Logo a primeira pergunta da entrevista tocou na questão. Lott não hesitou.
Diante da multidão de políticos e repórteres, declarou que era firmemente
contrário ao estabelecimento de relações diplomáticas com a União Soviética.
Na opinião dos políticos presentes, a viabilidade política da sua candidatura
só fez despencar ainda mais no decorrer da entrevista. Em seguida, um
jornalista perguntou de que modo Lott reso~veria os problemas econômicos
provocados pela queda dos preços do café no mercado internacional e os gastos
crescentes do governo com a compra e o estoque do produto, já que a venda
teria o efeito de baixar ainda mais os preços. Lott declarou, sem rodeios, que
a solução era eliminar o pequeno produtor. Embora ele próprio aparentemente

102
tivesse ficado satisfeito com aquela resposta decidida, os políticos não gos-
taram. Muitos dos chamados pequenos produtores viviam em regiões, como
Minas Gerais, onde o PSD normalmente conseguiria a maioria dos votos para
seus candidatos. It
Posteriormente, antes de um comício em Recife, pediu-se a Lott, em nome
dos líderes petebistas João Goulart e Leonel Brizola, que não se manifestasse
em público contra a legalização do PCB. Este apelo não surtiu efeito. Durante
o comício, perguntaram a Lott o que ele faria a respeito da legalização do
, Partido Comunista. Um assessor advertiu-o para não responder àquela "pro-
vocação". Lott virou-se para ele e exclamou: "Como não vou responder? [O
Partido Comunista] é um partido estrangeiro, e no meu governo não o permi-
tirei." Essa resposta fez com que Lott perdesse o apoio da esquerda em
Recife. 12
Nada mostra melhor como Lott não estava disposto a fazer o jogo político
tradicional do que o encontro que ele teve com os fabricantes de automóveis
que estavam interessados em contribuir para sua campanha. Depois de explicar
aos industriais como eles deveriam produzir carros, Lott advertiu-os de que, a
menos que baixassem o preço dos carros feitos no Brasil, a indústria
automobilística nacional não poderia sobreviver. Lott não conseguiu o apoio
financeiro destes industriais. Pouco depois Juscelino foi persuadido a conver-
sar com o marechal sobre seu modo de agir. Cautelosamente, o presidente
perguntou-lhe por que ele dissera aquilo aos fabricantes de automóveis. Lott
respondeu que, se fosse para cobrar preços altos pelos carros nacionais, era
"melhor não ter a indústria de automóvel". Ao dizer isso, Lott estava at::~cando
wna indústria que Kubitschek havia promovido pessoalmente e de cujo
desenvolvimento se orgulhava muitíssimo. Não obstante, Juscelino prosseguiu
com toda a calma, perguntando se Lott "não podia ter deixado para falar isso
depois da eleição". Horrorizado, o marechal respondeu que não se importava
de perder as contribuições financeiras de fabricantes que estavam ganhando
"dinheiro demais" com a produção de automóveis.t 3
Se este era o perfi I de Lott como político, logicamente coloca-se a pergunta:
por que foi escolhido candidato? Embora uma análise aprofundada da questão
deva ser mais complexa, e outras razões sejam propostas no decorrer deste
ensaio, não há dúvida de que wn dos motivos foi o papel que Lott desempe-
nhou, primeiro garantindo militarmente a posse de Juscelino e depois manten-
do os militares sob controle ao longo de seu governo. Em 10 de novembro de
1955, quando era ministro da Guerra, Lott foi demitido de seu cargo pelo
presidente interino Carlos Luz. Naquela noite, ele teve a certeza de que sua
demissão era o principio de uma tentativa de anular os resultlldos das eleições
presidenciais de outubro, em que Kubitschek ganhara por estreita margem.
Embora não apoiasse Juscelino, Lott dera sua palavra de que o resultado da
eleição seria respeitado. Após reunir-se com seus assessores militares, der-
rubou o governo Carlos Luz e em seguida serviu como ministro da Guerra no
governo civil provisório que ocupou o poder até a posse de Kubitschek. A

103
pedido deste, continuou no Ministério da Guerra e aí tomou medidas que
ajudaram a minimizar as ameaças militares ao regime. 14 Lott era visto por
aqueles que o apoiavam como um militar que defendia o constitucionalismo
contra as tendências golpistas da oficialidade e seus aliados civis, membros do
principal partido oposicionista, a União Democrática Nacional (UDN).
Antes de examinar o papel desempenhado por Juscelino Kubitschek e os
fatores que o motivavam neste processo, é necessário examinar as forças que
estavam 1 r trás das alianças políticas formadas por ocasião da eleição de
1960. Os dois principais partidos que apoiaram a candidatura de Lott à
presidência, o PSD e o PTB, enfrentavam situações políticas contrastantes no
final dos anos 50. E esse contraste parece ter tido um peso fundamental no que
Jus~Hno fez e deixou de fazer em relação à candidatura Lott.
No fmal dos anos 50, o PSD continuava a ser o principal partido político
brasileiro, posição em que se encontrava desde que fora criado por Getúlio
Vargas, em 1945. Não obstante, em 1958 o partido já estava manifestando
claros sinais de estagnação. Nas eleições de outubro desse ano, só conseguiu
conquistar pouco mais de 28% das cadeiras do Senado, quando em 1954 havia
conseguido 38 %. Esse desempenho contrastava com o de sua rival, a conser-
vadora UDN, que abocanhou 38% do Senado contra 28,5% em 1954. O
desempenho medíocre do PSD contrastava particularmente com o do PTB,
que embora participasse do governo era ao mesmo tempo um rival importante.
Em 1958, o PTB conseguiu conservar a maior parte das importantes conquistas
obtidas no Senado em 1954 e aumentar significativamente sua representação
na Câmara dos Deputados, ganhando aí 10 cadeiras, enquanto a representação
do PSD permaneceu essencialmente a mesma e a UDN perdeu quatro cadei-
ras.ts
O PSD fora criado principalmente para unificar a ampla rede de chefes
políticos no plano nacional e nas cidadezinhas e áreas rurais do Brasil. Embora
no plano nacional suas lideranças pudessem apresentar uma imagem sofis-
ticada e cosmopolita, na sua base o partido estava voltado para o interior. Não
é de surpreender que o estado de Minas Gerais, rico em população e pobre em
desenvolvimento, fosse um dos principais baluartes do PSD. No nível local,
os chefes do partido, embora essencialmente conservadores, não se preocupa-
vam muito com as posições ditas progressistas que as lideranças nacionais às
vezes eram obrigadas a assumir. O que interessava a estes homens do interior
era que as lideranças nacionais barrassem toda e qualquer tentativa de mudar
a estrutura sócio-econômica do campo - opondo-se, por exemplo, aos pro-
gramas de reforma agrária - e distribuíssem empregos, uma prerrogativa vital
para o PSD. Para os chefes locais, seu poder político e sua capacidade de
arrebanhar votos estavam largamente condicionados à sua capacidade de
distribuir empregos e obras públicas à sua clientela. 16
Mas o processo de urbanização que se acelerou no Brasil nos anos 50 estava
diminuindo o impacto do voto rural. Entre 1950 e 1960, enquanto a população
do pais cresceu a um índice anual médio de 3%, o índice médio de crescimento
urbano foi de 6%. Embora continuasse a ser um componente essencial da
economia, a agricultura perdeu sua importância econômica durante a década.
Em 1956, a indústria já havia ultrapassado a agricultura como o principal
componente do produto nacional líquido (PNL). Esta tendência se acentuou
durante o governo Kubitschek, que lançou um ambicioso programa de desen-
volvimento visando melhorar a infra -estrutura industrial e expandir a produção
de bens intermediários e de capital no Brasil. Em 1960, a indústria já era
responsável por 31% do PNL, enquanto a participação da agricultura era de
23%.17
Desde o momento em que passou a trabalhar a sério para se eleger presi-
dente, Juscelino Kubitschek, com seu estilo e seu programa, foi visto como
uma ameaça à base clientelista do PSD. Os tradicionais chefes do· partido se
opuseram à sua candidatura, fazendo pouco de seu programa
desenvolvimentista, que julgavam mais adequado a um político local do que
a um líder nacional. Como afirmou Gustavo Capanema, "se Juscelino for
eleito, o Brasil vai ter o seu maior prefeito!" 18 Embora votassem obediente-
mente no Congresso a favor do programa de Kubitschek, as lideranças pes-
sedistas jamais aceitaram completamente a ênfase dada pelo presidente ao
desenvolvimentismo. Homens como Capanema sabiam muito bem que Jusce-
lino usava a distribuição de cargos de modo altamente personalista, com o fun
de construir uma base de apoio para si próprio e para seu programa. Manifes-
tava pouco interesse em utilizá-la para fortalecer o partido, a menos que isto
lhe rendesse dividendos políticos diretamente. Esta tendência já se manifestava
com clareza no tempo em que Kubitschek era governador de Minas Gerais, no
início dos anos 50, quando os políticos locais do PSD constataram que ele não
se interessava em participar de discussões referentes a nomeações de chefes
de policia e juízes, que julgavam necessárias pata lubrificar a máquina política.
Juscelino jamais se considerou um militante do partido. Como ele próprio
observou em suas memórias, sua primeira filiação partidária deveu-se a
ligações de amizade, e não a considerações ideológicas, e seus primeiros atos
políticos consistiram em cumprir as ordens do chefe político. O que Kubitschek
não disse foi que sempre entrou para o partido dominante em seu estado natal
de Minas Gerais.'9
Não que, como presidente, Kubitschek se negasse a atender pedidos, feitos
por políticos pessedistas, de estradas ou represas consideradas necessárias para
garantir sustentação ao partido. Ele gostava de ser visto como uma pessoa
agradável e simpática, e quase sempre prometia apoio. Porém usava sua equipe
como um escudo para proteger-se dos pedidos de favores em que não via
dividendos diretos para seus próprios planos. Os arquivos da Secretaria da
Presidência estão cheios de reclamações de políticos, acusando os assessores
de não lhes haver fornecido a ajuda prometida por Kubitschek. Numa carta
datada de novembro de 1959, o deputado Adelmar Costa Carvalho lembrava
que, embora tivesse sido eleito originalmente na legenda da UDN, em 1958
concorrera pelo PSD, conforme o prometido, a uma cadeira de deputado

1.05
federal por Pernambuco. Carvalho queixava-se, porém, de que a promessa do
presidente de conseguir um posto para seu irmão não se ·c oncretizara, e de que
os dois cargos na Alfândega de Recife que, segundo Kubitschek lhe garantira,
seriam entregues a candidatos seus, acabaram nas mãos de outros. 2o A utiliza-
ção da assessoria para esquivar-se de pedidos também é visível no acordo tácito
que Kubitschek fez com Lúcio Meira, seu ministro da Viação e Obras Públicas
de 1956 a julho de 1959. Quando um político o procurava a fim de pedir apoio
para um projeto, Kubitschek, com seu jeito simpático e extrovertido, muitas
vezes prometia ajudá-lo e o encaminhava a Meira, com um bilhete. Com o
bilhete na mão, o político ia falar com Meila, que por seu lado prometia que o
projeto seria implementado assim que o ministério dispusesse de tempo e
verbas. Na maioria das vezes, a pr:-oposta morria nos recessos da burocracia. 21
Kubitschek, que via sua base política como algo mais amplo que um partido,
mostrava pouco interesse em usar a política clientelista apenas para fortalecer o
PSD. Não obstante, o chefe do PTB, João Goulart, que sentia que sua fortuna
política estava vinculada ao sucesso de seu partido, usava e abusava do empre-
guismo para fortalecer o PTB. As oportunidades de Goulart como distribuidor de
cargos aumentaram graças a um acordo fumado com Kubitschek em 1955.
Percebendo a necessidade de unir o eleitorado rural do PSD aos eleitores urbanos
do PTB para conquistar a presidência em 1955, Kubitschek conseguiu convencer
o PSD, apesar da relutância do partido, a fazer um acordo político com Goulart e
o PTB. Segundo os termos do acordo, os dois partidos apoiariam a chapa de
Kubitschek para presidente e Goulart para vice-presidente. Ao ser eleito, Kubits-
chek cumpriu a outra parte do trato, nomeando petebistas para chefiar os minis-
térios do Trabalho e da Agricultura, que eram conhecidos como verdadeiros
cabides de emprego. Tendo aumentado a influência de seu partido nestas pastas-
chave, Goulart efetivamente usou sua posição de vice-presidente para supervisio-
nar a distribuição de cargos e benefícios de modo a fortalecer o PTB nas áreas
urbanas e penetrar em baluartes pessedistas nas áreas turais.22
Juscelino percebia que o PSD, tal como estava constituído nos anos 50, não
era um veículo eficaz para suas ambições políticas e seus programas de
desenvolvimento. Quando figuras centrais do partido de início se opuseram à
sua candidatura, Juscelino procurou e conseguiu o apoio de um grupo de
homens na faixa dos trinta, quarenta anos, que formavam a chamada Ala Moça
do PSD. Embora oriundos das máquinas oligárquicas de seus respectivos
estados, os membros da Ala Moça acreditavam que o partido precisava
modernizar seu programa e seus métodos para continuar sendo o maior partido
de uma nação em que o meio político estava se tomando cada vez mais
complexo em conseqüência da urbanização e da industrialização. A Ala Moça
via o programa de desenvolvimento de Kubitschek e seu estilo pessoal sedutor
como excelentes veículos para efetuar a modernização do partido. 23
Membros da Ala Moça trabalharam intensamente em prol da candidatura
Kubitschek, e quando ele foi eleito ganharam as principais posições de
lideranÇa na Câmara dos Deputados, inclusive a presidência da casa e os postos

106
de líder e vice-líder da maioria. Tomaram-se também presijentes das mais
importantes comissões parlamentares. Foi um feito extraordinário. Jamais
houve mais de nove deputados federais que se identificassem como membros
da Ala Moça durante o governo Kubitschek, quando havia mais de cem
deputados pessedistas. Em parte, este sucesso deveu-se a causas óbvias. A Ala
Moça defendera o candidato que acabou ganhando, e Kubitschek usou seu
prestígio para recompensar seus partidários. Por outro lado, Kubitschek pre-
tendia usar a Ala Moça pata rejuvenescer o PSD e tomá-lo mais receptivo ao
seu programa de desenvolvimento e suas ambições políticas. 24 Mas havia
também uma outra causa: o que os líderes pessedistas tradicionais julgavam
ser a fragilidade do governo Kubitschek nos seus primeiros meses, quando
havia a preocupação real de que ele fosse derrubado por um golpe militar. Os
líderes tradicionais acharam mais prudente deixar que outros se expusessem
como defensores ostensivos do governo na Câmara.25
Porém a Ala Moça mostrou não estar à altura da missão que assumiu e do
papel que Kubitschek esperava que desempenhasse. Em 1958, ela já havia
perdido praticamente todos os seps cargos de liderança na Câmara e fracassado
em sua tentativa de fortalecer sua participação no partido em nível local, ou
seja, de garantir a seus membros a indicação do PSD para cargos governamen-
tais em estados-chave. Essa derrota da Ala Moça representou em parte wn
contra-ataque da liderança tradicional, que dispunha de votos suficientes para
desbancar os novatos se Kubitschek não interferisse.
Se Kubitschek não defendeu a Ala Moça com mais vigor, foi por dois
motivos. Como a Constituição o impedia de tentar a reeleição para o período
seguinte, em 1958 Juscelino já estava pensando em voltar a se candidatar em
1965. Precisava da máquina tradicional do partido para obter a base partidária
necessária para tentar esta segunda eleição. Além disso, Juscelino aparente-
mente se decepcionou com os membros da Ala Moça. Embora apoiassem com
toda a lealdade seus projetos desenvolvimentistas, eles também defendiam
programas que eram inaceitáveis para Kubitschek, entre os quais a reforma
agrária. 26 Juscelino terminou por questionar o tino político e a maturidade da
Ala Moça, que manifestava uma tendência a entrar em conflitos políticos na
hora errada. 27
Com a saída de José Maria Alkmin do Ministério da Fazenda em junho de
1958, ficou evidente que a Ala Moça, que havia provado o poder político tão
cedo, fracassara em sua tentativa inicial de modernizar o PSD, e perdera sua
influência sobre os círculos do poder no governo Kubitschek. No início de
1959, a Ala Moça tentou se recuperar promovendo a candidatura do marechal
Lott para a presidência. Seus membros viam em Lott um militar que defenderia
o processo constitucional. Além disso, Lott era considerado um nacionalista,
disposto a endossar muitas das propostas da Ala Moça, como a limitação das
remessas de lucros dos investidores estrangeiros, o voto do analfabeto, a
reforma agrária e outras medidas sociais. Pressionando as lideranças pessedis-
tas para que aceitassem a candidatura Lott, os membros da Ala Moça es-

107
peravam retomar aos círculos de influência. Se Lott fosse eleito - o que
muitos deles duvidavam - poderiam reconquistar posições de poder dentro
do partido. 28 O que tomava este plano viável era o fato de que Juscelino, após
o desempenho decepcionante do PSD nas eleições parlamentares e estaduais
de 1958, começara a tomar medidas no sentido de impedir que o partido
lançasse candidato próprio à presidência em 1960.
Os primeiros resultados da contagem de votos em 1958 assustaram os
líderes pessedistas, que pensaram que a perda de popularidade do partido era
maior do que os resultados nacionais finais vieram demonstrar. Supostamente
a fim de examinar este problema, após as eleições Kubitschek criou um Grupo
de Ação Política (GAP), composto por um pequeno grupo de líderes do partido
no Congresso, assessores pessoais do presidente, o secretário-geral do partido,
Eurico Sales, e o deputado federal Renato Archer, ligado à Ala Moça.
Teoricamente, caberia ao GAP examinar a atividade das seções estaduais
, do PSD nas áreas em que o partido não tivera sucesso, e sugerir maneiras de
remediar as deficiências. Mas o que parece ter sido o verdadeiro motivo para
Kubitschek formar o grupo veio à tona numa reunião a portas fechadas para a
qual o presidente convocou Eurico Sales e Archer pouco depois da criação do
GAP. Conforme Archer relembrou depois, Juscelino, numa conversa longa e
indireta, insinuou que não só o PSD não tinha um candidato capaz de vencer
em 1960, como seria melhor que o próximo presidente não fosse pessedista.
Surpresos, Eurico Sales e Archer, após esta conversa com Kubitschek, resol-
veram consultar Alkmin, que já fora o principal assessor político de Juscelino,
a respeito do que o presidente estaria planejando. Alkmin estava afastado de
Kubitschek desde que pedira demissão do Ministério da Fazenda, mas mesmo
assim reagiu com cautela. O presidente era seu parente por afinidade e amigo
de juventude. Não obstante, com base no que Alkmin se dispôs a dizer, Eurico
Sales e Archer concluíram que Juscelino queria que o líder da UDN, Juracy
Magalhães, fosse o candidato udenista e, com seu apoio tácito, se elegesse
presidente. 29
Não estavam enganados. Anos depois, Juracy Magalhães relembrou que
Juscelino o havia incentivado a candidatar-se, por ocasião de uma viagem
oficial à Bahia em 1959.30 Em suas memórias, Juscelino comenta que, a fun
de estimular o processo democrático no Brasil, em "diversas conversações"
incentivou Juracy Magalhães a se candidatar. De acordo com sua explicação
nada convincente, tanto o PSD quanto o PTB já haviam conseguido conquistar
a presidência, o PTB através de Vargas e o PSD através do próprio Kubitschek.
Agora era a vez da UDN. Além disso, ele queria que Juracy fosse um candidato
de união nacional para "evitar o tumulto de uma campanha eleitoral muito
disputada". 3 '
A memória seletiva é uma característica típica dos políticos hábeis. Quando
terminou suas memórias, nos anos 70, Kubitschek talvez preferisse acreditar
nessa explicação, mas ela é simplesmente inaceitável. Afinal, em nome da
democracia ele se recusara em 1955 a abandonar a disputa presidencial e lutara

108
contra a criação do "candidato de união nacional" proposto pelas forças civis
e militares, que argumentavam que o tumulto de uma eleição muito disputada
teria um efeito perturbador sobre a nação. Além disso, Kubitschek estava longe
de serúm purista quando se tratava de defender a democracia. Em 1955, ficara
furioso com seu principal porta-voz político e amigo, Alkmin, quando este
concordou em defender uma medida que visava diminuir a fraude eleitoral.
Alkmin aceitara a incumbência a fun de obter do general Lott, na época
ministro da Guerra de Café Filho, a garantia de que as eleições se realizariam.
Kubitschek, pragmático como sempre, achou que uma medida destinada a
reduzir a fraude poderia reduzir também os votos que o PSD era capaz de
conseguir para sua candidatura. 32 Embora seu governo tenha sido um dos mais
democráticos da história do Brasil, Kubitschek não deixou de permitir que seus
assessores utilizassem o poder do Estado para silenciar inimigos perigosos.
Em 1956, o Ministério da Viação e Obras Públicas baixou uma decisão
administrativa que foi usada para impedir que Carlos Lacerda e outros adver-
sários udenistas tivessem acesso ao rádio e à televisão até 12 de setembro de
1958, quando o Tribunal Superior Eleitoral derrubou esta censura adminis-
trativa.33 Além disso, é altamente questionável considerar que o segundo
governo Vargas tenha sido um governo do PTB. Vargas usou o PTB, assim
como o PSD criado por ele em 1945, como um veículo para sua campanha
política. O PTB era um partido.relativamente fraco quando Vargas se elegeu
em 1950, e apenas um ministério foi entregue aos petebistas durante seu
governo.
Por que Kubitschek não queria que o PSD apresentasse candidato próprio
à presidência? Podemos encontrar algumas pistas nos depoimentos de dois
participantes das manobras políticas em torno da eleição de 1960. Os depoi-
mentos diferem quanto a alguns detalhes, mas ambos indicam que Kubitschek
achava melhor para seu futuro político que o PSD não apresentasse candidato.
Um desses depoimentos é o relato feito por Renato Archer da conversa que ele
e Eurico Sales tiveram com Juscelino antes da segunda reunião do GAP.
Segundo Archer, Juscelino, com o jeito indireto e oblíquo típico do estilo do
político mineiro, deu a entender que seria melhor que o PSD não ganhasse a
eleição porque o próximo presidente teria de implementar wn programa de
consolidação econômica e "de restrições financeiras, para tentar estabilizar a
economia". O presidente seria muito impopular. Assim, em 1965 Kubitschek
poderia defender em sua campanha uma plataforma de volta ao desenvolvi-
mento e à prosperi?ade. 34
Sem dúvida, Juscelino tinha consciência dos problemas econômicos que
poderiam surgir. Seus principais assessores econômicos na segunda metade de
1958 e inicio de 1959, Lucas Lopes e Roberto Campos, advertiram-no de que
o governo estava perdendo o controle sobre seus gastos e que era necessário
controlá-los. Preocupava-os em particular a construção de Brasília, a nova
capital, que estava sendo erguida num lugar tão remoto que no início os
materiais de construção tinham que ser lançados de aviões. Mesmo depois, até

109
r

que fossem construídas estradas ligando a cidade a outras regiões do pais, os


materiais de construção, cimento ou máquinas, continuaram a ser trans-
portados por via aérea até o local. Para construir a nova capital, estima-se que
Kubitschek mobilizou, ao todo, de 2 a 3% do P!B.35 Roberto Campos sempre
foi contra a construção da nova capital, enquanto Lucas Lopes achava que ela
estava sendo feita de modo demasiadamente apressado e dispendioso. 36 Não
havia dúvida de que os gastos governamentais estavam se acelerando rapida-
mente. Tomando por base o ano de 1956, o primeiro do governo Kubitschek,
percebe-se que o total das despesas do governo federal subiu 14,8% em 1957,
um aumento relativamente modesto. Mas no ano seguinte as despesas foram
76,2% maiores do que as de 1956.37
O que a conversa de Juscelino com Atcher e Eurico Sales indica é que o
presidente não estava inclinado a seguir os conselhos de seus assessores
econômicos conservadores, nem os do Fundo Monetário Internacional, no
sentido de reduzir os gastos. Kubitschek havia construído toda a sua carreira
política em cima de seus programas de obras. A redução de gastos no inicio de
1959 significaria provavelmente o fim de seu maior projeto, o da construção
de uma nova capital no interior do Brasil, ao mesmo tempo símbolo de uma
nova e moderna nação e um monumento permanente a seu criador. As obras
de Kubitschek eram um prolongamento de sua personalidade e de suas
aspirações. Austeridade econômica, para ele, era simplesmente impensáveJ.3 8
O outro depoimento é o de Armando Falcão, que atuou como líder da
maioria na Câmara durante uma parte do governo Kubitschek, e como ministro
da Justiça de julho de 1959 até o fim. Fica claro pelo seu depoimento, como
também pelo de outros personagens, que Falcão foi um dos protagonistas das
manobras em tomo da eleição de 1960.39 Segundo Falcão, no inicio de 1959
Kubitschek já estava propondo a seus confidentes a candidatura de união
nacional de Juracy Magalhães. Dizia ele que suas chances de voltar à presi-
dência seriam prejudicadas se um candidato pessedista concorresse e fosse
eleito em 1960. Juscelino argumentava que se seu sucessor fosse do PSD, em
1965 ele estaria tentando ser o terceiro numa sucessão ininterrupta de presi-
dentes pessedistas, o que, afirmava ele, era a'lgo pouco provável de se concre-
tizar.40
Porém tudo indica que não era só isso que Kubitschek tinha em mente. Ele
parecia estar cada vez mais preocupado com o que era percebido como uma
guinada da política brasileira em direção à esquerda. Seus atos indicam que
ele queria estimular a formação de uma coalizão de centro-direita, associando
o PSD à UDN a fim de contrabalançar a força crescente da esquerda.41 A
candidatura Juracy Magalhães seria o primeiro passo em direção ao que
Juscelino esperava ser a construção dessa coalizão, que ajudaria a reelegê-lo
em 1965.
Kubitschek jamais teve qualquer dificuldade em trabalhar com a esquerda,
tanto com grupos como com indivíduos - desde que estes o apoiassem e
estivessem claramente subordinados a ele. Oscar Niemeyer, membro do PCB,

110
era o arquiteto responsável pelos projetos monumentais de Juscelino. Nie-
meyer trabalhou periodicamente com ele desde os anos 40, quando Juscelino,
então prefeito de Belo Horizonte, o incumbiu do projeto da Pampulha, até os
anos 50, quando o presidente o encarregou de projetar os principais edifícios
públicos de Brasília. Juscelino mostrou-se bastante interessado no apoio do
PCB na disputa da eleição presidencial de 1955. Não o incomodaram nem um
pouco os elogios que recebeu do líder comunista Luís Carlos Prestes quando,
em meados de 1959, anunciou o rompimento das negociações_com o FMI.
Porém em 1959 havia um clima de intranqüilidade no país que indicava que a
esquerda estava emergindo como uma força poderosa e independente. No Nordes-
te, as ligas camponesas cresciam e exigiam a reforma agrária. No Brasil urbano,
os sindicatos, antes dóceis e tutelados pelo Estado, agora controlados por forças
esquerdistas e nacionalistas, começavam a mostrar sinais de interesse não apenas
em melhores salários e condições de trabalho, mas também em questões políticas.
A Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), aliança pluripartidária das forças ditas
nacionalistas no Congresso, incluindo a Ala Moça, nos primeiros anos do governo
Kubitschek praticamente se limitara a apoiar o programa desenvolvimentista do
presidente. Agora, porém, cada vez mais defendia programas que Kubitschek
julgava perturbadores, como a reforma agrária e a limitação da remessa de lucros
dos investidores estrangeiros, dos quais Kubitschek dependia para financiar seu
programa de desenvolvimento.42 O presidente via na liderança da FPN um desafio
potencial à sua volta ao poder em 1965. Esta suposta ameaça da esquerda chegou
a levar Kubitschek em 1960 a agir de um modo que na verdade fortaleceu a
candidatura de seu arquiininúgo, o veemente jornalista e líder udenista Carlos
Lacerda, ao governo do recém-criado Estado da Guanabara. Aparentemente,
Juscelino se sentiu mais diretamente ameaçado não pela direita e pela candidatura
de Lacerda, e sim pela esquerda e pela candidatura ao governo estadual de Sérgio
Magalhães, um dos líderes da FPN.43
Sérgio Magalhães era também membro do PTB, cuja força política cres-
cente preocupava especialmente Kubitschek. Já durante seu governo, Jusceli-
no fora obrigado a empreender manobras com o funde contornar conflitos por
questões políticas com o PTB, que participava minoritariamente de seu gover-
no. As eleições de 1958 deixaram claro que o PTB estava aumentando sua
força política. Seus ganhos na Câmara dos Deputados eram um sinal de que
sua importância crescia. Talvez o que mais preocupasse Kubitscheck fosse o
crescimento do PTB nas assembléias estaduais, o que indicava que o partido
representava uma ameaça porque estava desenvolvendo em sua base uma
máquina política mais sofisticada e eficiente. O que provavelmente mais
mortificava Juscelino era ver que o PTB ampliara suas bases utilizando os
ministérios que ele próprio entregara ao partido como instrumento de dis-
lribuição de cargos. 44 Claramente, desde o início do governo Kubitschek os
lideres pessedistas estavam cada vez mais preocupados com o crescimento do
PTB e com o fracasso do PSD em capitalizar os programas de desenvolvimento
do governo. 45

111
Juscelino certamente deve ter previsto a possibilidade de que o PTB, em
ascensão, lançasse um candidato próprio contra ele em 1965, um candidato
que pudesse representar uma aliança política com a esquerda. Mesmo que não
tenha feito esta previsão, Juscelino, com sua malÍcia política, certamente deve
ter pensado que um PTB fortalecido exigiria muito mais do que o que havia
recebido em 1955 para apoiar sua candidatura. O preço talvez incluísse o apoio
a programas do partido que Kubitschek considerava demagógicos, irrealistas
e prejudiciais a seu projeto desenvolvimentista. Em suma: o PTB representava
uma ameaça a seu plano de voltar à presidência com poder suficiente para
concretizar sua visão do futuro do Brasil.
À primeira vista, pode parecer improvável que Kubitschek estivesse pen-
sando em trabalhar no sentido de uma coalizão entre elementos dá UDN e do
PSD, pois desde sua criação os dois partidos eram inimigos mortais. Mas os
dois partidos, como um todo, tinham poucas diferenças ideológicas, embora
existissem diferenças entre segmentos específicos de cada um. Além disso, os
membros da ala conhecida como "chapa branca" da UDN já haviam manifes-
tado disposição em trabalhar com o governo Kubitschek em troca de empregos
e obras públicas nas regiões que representavam. 46Com a ascensão da esquerda,
a UDN e o PSD estavam começando a se reconhecer como partidos conserva-
dores que enfrentavam uma radicalização crescente na sociedade brasileira. A
UDN, como principal partido de oposição, muitas vezes fizera críticas violen-
tas ao governo, mas também apoiara muitos dos programas básicos de mo-
dernização de Kubitschek. 47 Por fim, a idéia de uma coalizão UDN-PSD estava
longe de ser nova. Já havia acontecido antes em eleições estaduais e munici-
pais. E embora as circunstâncias fossem diferentes, fora tentada por Eurico
Gaspar Dutra em seu governo nos anos 40, e até mesmo por Vargas no início
dos anos 50. 48
De início, Juracy Magalhães deve ter parecido a Juscelino o candidato
perfeito em sua tentativa de construir uma coalizão de centro-direita. Político
experiente e respeitado, Juracy já fora presidente nacional da UDN e, como
líder dos pragmáticos "chapa branca", apoiara muitas das iniciativas de Ku-
bitschek no Congresso. 49 Além disso, é provável que Juscelino, para quem a
ingratidão era o "pecado mais feio", acreditasse que Juracy Magalhães, embora
ambicioso, não seria um obstáculo em seu caminho quando tentasse voltar à
presidência, e até mesmo o ajudaria a formar a coalizão. 5° Afinal, Juracy não
se furtava a demonstrar sua amizade e seu apoio a Kubitschek, tendo mesmo
chegado, em 1959, a se desculpar publicamente por seus ataques anteriores ao
presidente, desfechados na qualidade de presidente da UDN. 51 Mas também
pode ter havido algo de pessoal na manobra de Juscelino em favor de Juracy.
Juscelino gostava de Juracy. Juscelino sempre se orgulhou de sua capacidade
de encantar as pessoas e conquistar seu afeto, principalmente no caso de
antigos adversários. Embora como político pragmático trabalhasse com quem
fosse necessário trabalhar, tinha uma necessidade extraordinária de viver
cercado de pessoas de quem gostasse e que retribuíssem seu afeto.s2 Não é

112
absurdo pensar que sua aversão a programas econônúcos que limitassem a
generosidade do Estado e restringissem os monumentais programas de obras
associados à sua imagem estava ligada a seu desejo pessoal de agradar e ser
elogiado. Em suas memórias, ele fez questão de relembrar os elogios que
recebeu aparentemente de todo mundo, desde sua mãe até membros da realeza
européia. 53 ·

Seja como for, em 1959 tornou-se claro que Kubitschek estava fazendo o
possível para boicotar qualquer aspirante forte a candidato do PSD, arranjando
as mais variadas desculpas para não apoiar candidatos potenciais, principal-
mente os que pareciam estar criando uma base de poder independente da sua.
Vários candidatos potenciais desistiram, ou porque estavam sendo boicotados
pelo presidente ou porque achavam que sem seu apoio suas possibilidades
eram remotas. Emâni do Amaral Peixoto é o exemplo clássico. Genro de
Vargas, Amaral Peixoto fora governador do Estado do Rio de Janeiro e desde
1951 era o presidente nacional do PSD. Como chefe do partido, tinha boas
relações com os líderes tradicionais e com a Ala Moça. Ainda que o utilizasse
como mediador quando surgiam disputas entre o PSD e o PTB, Juscelino
manteve-o à distância durante três anos como embaixador nos Estados Unidos,
a despeito de seus esforços aparentes, em 1957 e 1958, para voltar à sua base
política. A oposição de Juscelino à sua candidatura impediu Amaral,Peixoto
de postular seriamente a indicação do PSD. 54 Foi neste vácuo que entrou a Ala
Moça, com o apoio da FPN, propondo a candidatura Lott, a que as lideranças
do PSD opuseram apenas "resistências passivas". 5 5
De início, Kubitschek não fez nenhuma tentativa direta de bloquear a
candidatura Lott. Muito provavelmente, naquelas circunstâncias o marechal
pareceu-lhe o candidato ideal. Lott poderia servir para desestimular o apare-
cimento de outros aspirantes mais fortes a candidato do PSD. 56 Além disso,
depois de quatro anos difíceis de trabalho com o marechal, o agitado presidente
não conseguira fazê-lo abandonar sua postura circunspecta. Estava convencido
de que a personalidade fechada de Lott era totalmente desprovida do appeal
político necessário à campanha.57 Por fim, Juscelino conhecia pessoalmente a
franqueza de Lott, que prenunciava as gafes da campanha pelas quais sua
candidatura se tornou famosa. Ao aceitar o posto de núnistro da Guerra no
início de 1956, por exemplo, Lott alertara o novo presidente contra a "cor-
rupção e a covardia". Diante de sua franqueza costumeira, Lott provavelmente
achou que havia dado seu recado de modo educado.5 8 Em suma: Lott era um
candidato fadado a perder, e como sua candidatura estava sendo sustentada
pela FPN, talvez sua derrota representasse também a derrocada da Frente.
Se de itúcio Juscelino não tentou bloquear a candidatura Lott, uma vez
descartadas definitivamente as candidaturas dos principais líderes pessedistas,
começou a trabalhar a sério no sentido de lançar Juracy Magalhães como
candidato de união nacional. Antes de mais nada, começou a sondar cuidado-
samente o meio político forà de seu círculo imediato de confidentes a respeito
da idéia de um candidato de união nacional. Uma dessas sondagens foi descrita

113
numa carta datada de junho de 1959 que o líder petebista SanTiago Dantas
enviou a Goulart, relatando uma reunião que acabara de ter com Juscelino e
Bias Fortes, o governador pessedista de Minas Gerais. Durante a reunião,
discutiram-se exaustivamente os problemas que havia com vários candidatos
potenciais. Bias Fortes sugeriu então que eles - o PSD e o PTB - fizessem
um esforço em prol de um candidato de união nacional. Quando San Tiago
reagiu à proposta de modo positivo, ainda que cauteloso, Kubitschek fez sua
jogada: sem maiores rodeios, perguntou-lhe se o PTB participaria desse
esforço. San Tiago respondeu de forma evasiva. Em sua carta a Goulart, ele
explicava que temia que uma resposta positiva pudesse minar a candidatura
Lott, que o PTB estava disposto a apoiar, e não gerasse nenhum resultado
concreto. Mas afirmava também que sabia que estava acima de sua autoridade
rejeitar a idéia de urna candidatura de união nacional. Embora Juscelino
também tivesse sido cauteloso no modo como colocou a questão, era claro que
ele esperava que o apoio a um candidato de união nacional resultasse na
retirada das candidaturas tanto de Jânio Quadros como do marechal Lott. 59
Com seu fino sentido de avaliação psicológica, Juscelino provavelmente
imaginava que Lott não seria um obstáculo a este plano. Por experiência
própria, sabia que seria possível pedir a Lott que pusesse de lado suas ambições
pessoais em nome dos interesses da nação. Lott reagiu tal corno ele previra,
em outubro de 1959. Depois que Juscelino lhe enviou um emissário, o
marechal dispôs-se publicamente a retirar sua candidatura em favor de Juracy
Magalhães, se este se tomasse o candidato de união nacional.60
A declaração de Lott desencadeou uma série de reuniões que envolveram o
próprio Lott, Juracy Magalhães e outras figuras-chave, como Armando Falcão,
Amaral Peixoto e San Tiago Dantas. Esses encontros culminaram com urna
reunião no Rio, convocada por Kubitschek, em 3 de novembro de 1959. Nesta
reunião, Lott perguntou a San Tiago se o PTB apoiaria um candidato de união
nacional. SanTiago respondeu que seu partido estava satisfeito com a candi-
datura Lott, mas urna vez que o próprio marechal se pronunciara publicamente
em favor de um candidato de união nacional, o PTB estava disposto ·a pensar
na proposta. Lott deixou claro que não partiria dele nenhuma inkiativa no
sentido de levar a idéia adiante. Amaral Peixoto afirmou então que o PSD
também não poderia liderar o movimento, pois se o fizesse estaria enfraque-
cendo Lott, seu próprio candidato. San Tiago, por sua vez, disse que o PTB
não assumiria a iniciativa. Num relatório que enviou a Goulart, San Tiago
concluía que a idé ia de um candidato de união nacional era inviável, e que o
partido deveria trabalhar para urna "revitalização" da candidatura Lott. 61
Esta reunião foi um revés para Kubitschek, mas ele já esperava encontrar
resistências. O que Juscelino precisava era que Juracy Magalhães garantisse o
apoio à sua própria candidatura dentro da UDN. 62 E foi o fracasso de Juracy
que pôs o plano a perder. Sabendo que Carlos Lacerda era o líder dos udenistas
que se opunham intransigentemente ao governo Kubitschek, Juracy encon-
trou-se com ele e tentou conquistar seu apoio, com urna oferta capciosa de

114
apoiá-lo na escolha do candidato presidencial da UDN. Como Juracy certa-
mente já esperava, Lacerda não aceitou a proposta. Juracy pediu então o apoio
de Lacerda à indicação da UDN, argwnentando que ele, Juracy, tinha o apoio
do presidente. Indignado, Lacerda perguntou retoricamente como a UDN
poderia deixar que Kubitschek detertninasse seu candidato, quando o partido
vivia dizendo que seu governo "é corrupto (... ), está inflacionando o país" e
representava uma volta à ditadura de Vargas. 63
Depois da reunião, Lacerda redobrou seus esforços para que a UDN escolhesse
como candidato a figura popular e carismática de Jânio Quadros. Posteriormente,
,
Lacerda afirmou que não confiava em Jânio, mas acreditava que ele fatalmente
se elegeria presidente em 1960, quer como candidato da UDN, quer do PTB, o
partido a que estava filiado quando concorreu com sucesso à Câmara dos
Deputados em 1958. Com o apoio de Lacerda, Jânio derrotou Juracy fragorosa-
mente, sendo escolhido candidato da UDN.64 Lott continuou como candidato
oficial do PSD e do PTB, tendo como companheiro de chapa João Goulart.
Após o fracasso da candidatura Juracy, o astucioso Juscelino deixou os
observadores políticos confusos, sem saber se ele via em Jânio Quadros mn
substituto de Juracy que se enquadraria em seu projeto. Alguns captaram sinais
de que ele encarava com simpatia a candidatura de Jânio; outros, de que se
opunha a ela. 65 Durante a campanha presidencial, Juracy Magalhães, na época
governador da Bahia, recebeu uma comunicação de um membro de sua equipe
a respeito de uma mensagem que fora transmitida por alguém que aparente-
mente era visto como um emissário confiável de Kubitschek. Segundo a nota,
o emissário dava a entender que "Juscelino autorizou-o a mandar dizer ao
Juracy que se o Jânio assumir, diante de um homem de sua responsabilidade
e autoridade, compromisso solene de não promover perseguição alguma contra
o JK, este também se compromete a não dar um só passo em prol" do candidato
pessedista à presidência. 66 Enquanto a campanha de Lott seguia aos trancas e
barrancos em 1960, prejudicada pela falta de fundos e pela inadequação
política de sua candidatura, Kubitschek deixou claro que estava resistindo a
todos os pedidos no sentido de usar a máquina do governo em favor do
marechal. Sua postura, Juscelino afirmou mais tarde, era a de que, como "chefe
de governo, competia-me manter a mais irrestrita neutralidade em face das
eleições".67 Se Lott nunca pareceu estar plenamente consciente das manobras
de Juscelino em tomo das eleições de 1960, parece ao menos ter captado a
mensagem básica. Quando, anos depois, perguntaram-lhe a respeito da atitude
de Kubitschek em relação à sua candidatura, respondeu: "Pode ser que eu esteja
sendo injusto com ele, mas tenho a impressão de que o dr. Juscelino não tinha
muita vontade que eu fosse presidente da República. Tendo eu trabalhado para
a ida de Kubitschek para a Presidência( ... ) caso o sucedesse, ele não se sentiria
à vontade para se candidatar novamente. Tenho a impressão de que, para ele,
seria melhor que fosse um outro cidadão qualquer." 68
Assumindo a posição de chefe máximo e imparcial da nação, Kubitschek
dedicou-se em 1960 à tarefa de concluir suas "grandes obras" e mostrar ao

115
público nacional e internacional sua maior realização, a criação de wna nova
e futurista capital no interior do Brasil. Foi neste ano que recebeu a aclamação
que há tanto tempo desejava. Suas ações pareciam indicar que ele passara a se
ver como indispensável para o progresso futuro da nação. 69
As ações e manobras políticas de Kubitschek traem utna sensação de
invulnerabilidade. Como já vimos, nwn certo momento Juscelino julgou que
seria capaz de fazer com que tanto os partidos políticos que tinham apoiado
seu governo quanto os que lhe haviam feito oposição aceitassem sua escolha
para o próximo presidente. Além disso, Juscelino mostrava-se pouco preocu-
pado com o fato de que o ritmo febril com que concluía suas inúmeras obras
contribuía enormemente para o crescimento dos déficits orçamentários, tra-
zendo como efeito deletério o awnento do índice de inflação. Em 1959, o total
de gastos do governo federa I foi 138,1% maior do que em 1956, e em 1960, o
último ano completo do governo Kubitschek, 234,8% maior. O custo de vida
estava chr:~mente subindo. Considerando-se a cidade do Rio de Janeiro e
tomando-se 1953 como ano-base, verifica-se que os índices de custos de
alimentos e roupas eram de 234 e 201, respectivamente, em janeiro de 1958.
Em janeiro do ano seguinte haviam subido para 275. e 248, e em janeiro de
1960 chegaram a 444 e 340. 70 Apesar destes indicadores econômicos, pouco
antes da inauguração de seu maior e mais dispendioso projeto, Brasília,
Kubitschek anunciou à imprensa que seu governo iria abrir utna estrada de
Brasília ao Acre, wna distância de mais de 3 mil quilômetros que atravessava
mil quilômetros de floresta tropical. Quando wn repórter questionou a viabi-
lidade do projeto, Juscelino respondeu: "Não só vou construir, mas também
inaugurá-la, antes de deixar o Governo." Ato continuo organizou uma força-
tarefa e mobilizou recursos de modo a poder concluir as obras iniciais da
estrada antes da posse de Jânio. 71
Em 1960, Juscelino estava confiante em que o povo brasileiro o elegeria
presidente pela segunda vez em 1965. Sua confiança baseava-se naquilo que
ele percebia como sua ampla popularidade. Esta percepção baseava-se em
parte na cobertura da imprensa, que ele próprio ajudara a fabricar. Em 1960,
Kubitschek já havia praticamente resolvido o que fora um dos problemas
fundamentais de sua campanha presidencial em 1955 - a oposição dos
principais meios de comunicação do país. Ele conhecia melhor do que ninguém
o poder da imprensa; como governador de Minas, criou o primeiro serviço de
relações públicas do governo do estado. Como presidente, valeu-se de seu
charme pessoal, do impacto de seu programa e da utilização judiciosa de
favores pessoais para conquistar os proprietários de boa parte dos meios de
comunicação. 72 Não há dúvida de que Juscelino contava com seu apoio ein
1965.
O apoio mais visível - e talvez o mais útil - que Juscelino recebeu da
imprensa foi o da Manchele, revista semanal fundada em 1952 que seguia o
modelo de Paris Match e, com wn trabalho gráfico e fotográfico de primeira
ordem, cobria concursos de misses e publicava artigos comp11ctos sobre política,

116
esporte, estrelas de cinema, moda feminina e mexericos. Nwna época em que a
televisão brasileira ainda engatinhava, eram as revistas de fotorreportagem como
Manchete que apresentavam ao público as imagens visuais de seu país em
transformação. Em 1958, Adolfo Bloch, o ambicioso proprietário de Manchete,
viu que sua revista estava em condições de disputar com sua principal concorrente,
O Cruzeiro, a posição de revista mais vendida do Brasil.
Nesse ano, dois importantes assessores presidenciais tentaram fazer com
que O Cruzeiro publicasse wna reportagem com fotos a respeito das reali-
zações do governo Kubitschek. O dono da revista estava disposto a atendê-los
desde que o governo lhe pagasse uma quantia "fabulosa". Os assessores
procuraram então Adolfo Bloch. Embora relutasse de início, quando tomou
conhecimento das impressionantes realizações do governo, Bloch ficou entu-
siasmado com a atuação dinâmica e modernizadora de Kubitschek. Além
disso, foi sagaz o bastante para perceber que a Manchete teria muito a ganhar
se enfatizas~e as imagens dramáticas e de grande impacto visual que estavam
sendo geradas pelos programas de Kubitschek: estradas que atravessavam
selvas, usinas hidrelétricas e fábricas gigantescas e, naturalmente, Brasília.
hnediatamente designou wn editor para trabalhar junto com os assessores do
presidente.73
A aliança entre Kubitschek e a Manchete foi proveitosa para ambos. A
equipe da revista, com a ajuda extra-oficial dos assessores presidenciais, deu
irúcio a uma série atípica de artigos longos, ilustrados com fotos em preto e
branco e em cores, que revelavam o que era descrito como o Brasil realizando
seu potencial. Em 1960, a revista já estava dedicando diversos númer"-"lS às
realizações do governo Kubitschek. Esta tática foi altamente benéfica para a
revista. Particulannente quando o assunto era Brasília, muitos desses números
se esgotavam, tomando-se necessário tirar edições especiais para atender à
demanda. Em 1960, a Manchete já suplantara O Cruzeiro como a maior revista
do país. Conforme Bloch observou mais tarde, a Manchete cresceu junto com
Brasília e as outras "grandes obras" do governo Kubitschek. 74
Em 1960, a imaginação do público estava de tal modo fascinada pela
construção de Brasília que até mesmo jornais que eram normalmente hostis
aos programas de Juscelino passaram a dar wna cobertura ampla - e, de modo
geral, favorável - às preparações para a inauguração da nova capital. O
Estado de S. Paulo, por exemplo, publicou mais de mil matérias sobre o tema.
Com toda esta cobertura jornalística, e dada sua visão fundamentalmente
otimista, não admira que Kubitschek visse wn futuro risonho para o Brasil e
para sua própria carreira, que para ele estavam intimamente interligados. Ele
certamente não previa que Jânio Quadros renunciaria à presidência após sete
meses de governo, criando uma crise que culminaria, em 1964, com os
militares tomando o poder e impedindo-o de concorrer novamente a wn cargo
público.
Nas eleições presidenciais de 1960, Kubitschek tentou de início dar os
primeiros passos no sentido de formar wna coalizão de centro-direita que,

117
segundo ele esperava, mais tarde o ajudaria a voltar à presidência. Porém sua
principal preocupação, ao que parece, não foi construir um partido ou uma
coalizão, e sim criar apoio para si próprio e para seu programa. O modo como
Kubitschek tentou desenvolver os vínculos entre o povo e o presidente só
diferiu do que Vargas fez antes e do que Jânio viria a fazer depois quanto ao
estilo. Sua forma personalista de liderança foi ao mesmo tempo sintoma e causa
da fraqueza da estrutura política da sociedade civil.

tradução de Paulo Henriques Britto

Notas
1 Para fugir a esta regra, ver Hippolito, Lucia. De raposas e reformistas: o PSD e a
experiência democrática brasileira (1945-64). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. p.
199-210.
2 Ralph Burton, cônsul norte-americano em São Paulo, para o Departamento de Estado
dos EUA., Washington, D.C., no. 732.521/10-259, Records of the Departrnent of State
Relating to Internai Political and National Defense Affairs ofBrazil, 1955-1959, National
Archives MicroflJ.rn Publications, Roll 8; Embaixada dos Estados Unidos, Rio de Janeiro,
para o Departamento de Estado, Washington, D.C., 732.00/10-2359, Roll3; Costa, Joffre
Gomes da. Marechal Henrique Lott. Rio de Janeiro, sfed., 1960. p. 423; Falcão, Armando.
Tl.uio a declarar. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 189-90.
3 Francisco de·Assis Barbosa. Entrevista ao autor. Rio de Janeiro, 4.8.89.
4 Affonso Heliodoro, entrevista ao autor, 6.6.89, Brasflia; José Sete Câmara, entrevista
ao autor, 11. 8.89 Rio de Janeiro; Lúcio Martins Meira, entrevista ao autor, 18.7.89, Rio
de Janeiro.
s Carlos Heitor Cony, entrevista ao autor, 18.8.89, Rio de Janeiro; Sara Kubitschek,
entrevista ao autor, 16.8.89, Rio de Janeiro.
6 Ver nota 4.

7 Sara Kubitschek, entrevista de 16.8.89; Lucas Lopes, entrevista ao autor, 14.8.90, Rio
de Janeiro; Armando Falcão, entrevista ao autor, 23.8.90, Rio de Janeiro.
8 Costa, Joffre Gomes da. op. cit. p. 59, 120-1, 126, 162, 195.

9 Manchete, p. 12, 9 jan. de 1960.


10 Archer, Renato. Renato Archer (depoimento; 1977-78). Rio de Janeiro, FOV/CPDOC
- História Oral, p. 254.
ll lbid., p. 255-6.

12 Lima Filho, Osvaldo. Osvaúio Lima Filho (depoimento; 1978-79). Rio de Janeiro,
FOV/CPDOC- História Oral, p. 90-1.
13 Abreu, Ovídio de. Ov{dio de Abreu (depoimento; 1977). Rio de Janeiro, FOVfCPDOC
- História Oral, p. 17-9. A indústria automobilística "nacional" consistia em companhias
estrangeiras obrigadas e incentivadas pelo governo a fabricar carros no Brasil, usando urna
percentagem de peças produzidas no país, e companhias brasileiras que haviam surgido
para atender à nova demanda de peças e acessórios para automóveis.
14 Dulles, John W. F. Unrest in Brazi/: political-rnilitary crisis 1955-1964. Austin, Uni-
versity ofTexas Press, 1970, p. 20, 22, 26,32-47,53-58,65, 79; Benevides, Maria Victoria.

118

......
O governo Kubtschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política. 3.ed. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1979. p. 149 e passim.
15 Benevides, Maria Victoria. op. cit. p. 114-5; Hippolito, Lucia. op. cit. p. 56-8,260-71,
276-283.
16 Bastos T. A. & Walker, Thomas W. Partidos e forças políticas em Minas Gerais. Revista
Brasileira de Estudos Políticos, p. 128-38, 150-4, 31.maio 1971; Ttme: LatinAmerican
Edition, p. 22-7,13 fev. 1956; Hippolito, Lucia. op. cit. p. 35, 45-7; Benevides, Maria
Victoria. op. cit. p. 65-6, 70, 111-13.
17 Lafer, Celso. The planning process and the political system in Brazil: a study of
Kubitschek's target plan- 1956-1961. Ph.D Thesis. ComeU University, 1970, p. 23-4
Goodman, David E.lndustrialization and economic policy in Brazil in the post-war period
Ph. D. Thesis. Berkeley, University of California, 1967, p. 87-8, 94.
18 Archer, Renato. op. cit. p. 45.

19 ld. ibid. p. 68, 159 e 265; Renato Archer, entrevista ao autor, 25.7. e 12.8.89, Rio de
Janeiro; Jurema, Abelardo. Abelardo Jurema (depoimento; 1977). Rio de Janeiro,
FOV/CPDOC - História Oral. p. 200; Kubitschek, Juscelino. Meu caminho para Brasília.
v. 1: A experiência da humildade. Rio de Janeiro, Bloch, 1974. p. 232, 268-9.
°
2 Carvalho Adelrnar Costa. IKI58, Secretaria da Presidência da República, Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro.
21 Lúcio Meira, entrevista ao autor.

22 Archer, Renato. op. cit. p. 250.


23 Hippolito, Lucia. op. cit. p. 145-50; Manchete , p. 30, 20 set. 1958.
24 Archer, Renato. op. cit. p. 195; Hippolito, Lucia. op. cit. p. 161-2, 170-l; Renato Archer,

entrevista de 12.8.89.
25 Archer, Renato. op. cit. p. 101; Manchete, p. 30,20 set.58.

26 Hippolito, Lucia. op. cit. p. 161, 170-80; Archer, Renato. op. cit. p. 32; Renato Archer,
entrevista de 12.8.89.
27 Por exemplo, Renato Archer, membro da Ala Moça, envolveu-se no início do governo
Kubitschek numa disputa pública com o general Juarez Távora, o adversário udenista de
Juscelino na eleição de 1955. Neste debate, Archer estava defendendo o governo, mas
Juscelino achou uma total imprudência atacar Távora, que era muito popular entre os
oficiais, numa época em que o governo temia um golpe militar. Archer, Renato. op. cit. p.
149-59, 1.92. -
28 Hippolito, Lucia. op. cit. p. 181-2, 204-5; Bezerra de Melo, José Joffily. José Joffily

Bezerra de Melo (depoimentos; 1977-78). Rio de Janeiro, FGV/CPDOC- História Oral.


p. 177, 180-1, 181; Archer, Renato. op. cit. p. 253; Costa, Joffre Gomes da. op. cit. p. 411.
2 9 Archer, Renato. op. cit. p. 251-4.

30 Magalhães, Juracy. Minhas memórias provisórias: depoimento prestado ao CPDOC,


coord. de Alzira Alves de Abreu. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982. p. 143.
31 Kubitschek, Juscelino. Meu caminho para Brasília: 50 anos em 5. Rio de Janeiro,
Bloch, 1978, v.3. p. 285.
32 Archer, Renato. op. cit. p. 48.

33
Cleanto de Paiva Leite, entrevista ao autor, 10.8.89, Rio de Janeiro; Diário Carioca,
Rio de Janeiro, 1.fev.1957; Embaixada dos Estados Unidos, Rio de Janeiro, para o
Departamento de Estado, 732-00/99-858, Rol! 2.
34 Archer, Renato. op. cit. p. 252.

119
35
Lucas Lopes, entrevista ao autor, 27.7.89, Rio de Janeiro; Roberto Campos, entrevista
ao autor, 24.8.89, Rio de Janeiro; Sara Kubitschek, entrevista ao autor, 1 e 16 de agosto de
1989, Rio de Janeiro; Lafer, 210; Oosling, David. Brasilia, Third World Pkmning Review,
1979, p. 44.
36 Entrevista com Lucas Lopes; entrevista com Roberto Campos. Tanto Lucas Lopes
quanto Roberto Campos deixaram o governo Kubitschek depois que Lucas Lopes teve um
infarto e Juscelino abandonou um efêmero plano de estabilização econômica.
37 Contas nacionais do Brasil, 1947-1965. Revi.sta Brasileira de Economia, 20(1):82-3,
mar.l966. Estes dados referem-se a todos os órgãos do governo, com exceção das empresas
de economia mista.
38 Estes temas são abordados em Maram, Sheldon. Juscelino Kubitschek and the politics
of exuberance, 1956- 1961. Luso-Brasilian Review, 27(1):42-3, Summer 1990.
39 Ver, por exemplo, o relato de SanTiago Dantas, de 3.11.59, a respeito de uma reunião
fechada a que estavam presentes Kubitschek, assessores e políticos importantes e Lott, a
ftm de discutir a possibilidade de um candidato de união nacional, em Relatório para o Sr.
João Ooulart, AP47-1, Arquivo de Francisco Clementino de SanTiago Dantas (ASTD),
AN.
40 Armando Falcão, entrevista de 24.8.90. É importante observar que Amaral Peixoto usou
argumento semelhante para explicar porque Kubitschek se opunha a um candidato presi-
dencial fortemente identificado com o PSD, em Artes da política: diálogo com Amaral
Peixoto, org. de Aspásia Camargo et al. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. p. 429.
41 A respeito dos pontos de convergência e conflito entre a UDN e o PSD, ver Benevides,
Maria Victoria. O governo Kubitschek, op. cit. p. 132-9 e A UDN e o udenismo: ambigüi-
dades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, p. 107.
42 Para uma excelente análise sumária das mudanças políticas ocorridas na década de
1950, ver Skidrnore, Thomas E. Policies in Braúl, l930-l964:.an experiment in democracy.
London, New York, Oxford University Press, 1967, p. 166-86.
43 Wainer, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. Augusto Nunes org.,
lO.ed. Rio de Janeiro, Record, 1988. p. 222-3.
44 Jurema, Abelardo. op. cit. p. 202; Hippolito, Lucia. op. cit. p. 198; Manchete, p.72, 4.
out. 1958; Archer, Renato. op. cit. p. 250.
45 Ver, por exemplo, a correspondência em EAP55.12.27 (Código Provisório), AN, Pastas
1-2, Arquivo Ernâni do Amaral Peixoto (AEAP), FOV/CPDOC, Rio de Janeiro.
46 Hippolito, Lucia. op. cit. p. 144.

47
Ver a análise das votações no Congresso feita por Maria Isabel Valadão de Carvalho.
A colaboração do Legislativo para o desempenho do Executivo durante o governo JK. Tese
de mestrado, IUPERJ, 1977. p.49-52; Hippolito, Lucia. op.cit. p.72-4. Com relação à
convergência filosófica entre PSD e UDN no final do governo Kubitschek, ver Benevides,
Maria Victoria.A UDN, op. cit. p. 107.
48 Benevides, Maria Victoria. O PTB e o trabalhismo: partido e sindicato em São Paulo
(1945-1964). São Paulo, Brasiliense, 1989. p.35-6; D'Araújo, Maria Celina Soares. O
segundo governo Vargas, 1951-1954: democracia, partidos e crise política. Rio de Janeiro,
Zahar, 1982. p. 104-13.
49 Juracy Magalhães, entrevista ao autor, 14.8.90, Rio de Janeiro.

°
5 Kubitschek, Juscelino. Di.scursos proferidos no segundo ano do mandato presidencial,
1957. Rio de Janeiro, hnprensa Nacional, 1958. p. 266.
51 Magalhães, Juracy. op. cit. p. 143. Juracy foi presidente da UDN de 1957 a 1959. Os
elogios a Kubitschek e seu programa continuaram m esmo depois que os esforços para
lançar a candidatura de Juracy fracassaram. Ver, por exemplo, a transcrição datilografada
da entrevista em que ele elogia Kubitschek por modificar velhos padrões de ação gover-

120
namental e por seu pioneirismo, em 1M p. i. 60.03.00, Arquivo Juracy Magalhães (AJ M],
FGV/CPDOC, Rio de Janeiro.
52 Kubitschek. Juscelino. A experiência, op. cit. p. 16; Affonso Heliodoro, entrevista de
6.6.89; João Pacheco Chaves, João Pacheco Chaves (depoimento; 1977-78) Rio de
Janeiro, FGV/CPDOC- História Oral. p. 38. .
53 Ver Matam, Sheldon. op. cit. p. 42-3.
54 Archer, Renato op. cit. p. 256-7; Artes d,a política: diálogo com Amaral Peixoto, op.
cit. p. 428; Hippolito, Lucia. op. cit. p. 200-3; Alzira Vargas do Amaral Peixoto, entrevista
ao autor, 16.8.90, Rio de Janeiro. A respeito das tentativas de retomo, ver carta de Ulysses
Guimarães a Amaral Peixoto, de 13.6.57, EAP 55.12.27, AN, Pasta 2, e carta de Amaral
Peixoto a José Maria Alkmin, de 6.3.58, EAP, Emb, AEAP.
55 Joffily, José. op. cit. p. 180; Costa, Joffre Gomes da. op. cit. p. 411-2, 414.
56 Hippolito, Lucia. op. cit. p. 205.
57 Lacerda, Carlos. Depoimento, 3.ed. rev. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987, p. 253;
Sara Kubitschek. entrevistas de 1 e 16.8.S$1. Sara, esposa de Juscelino, achava que, apesar
de sua personalidade "fechada", o marechal daria um excelente presidente.
58 Falcão, Armando. op. cit. p. 109-10.
59 Carta de SanTiago Dantas a João Goulart, 10.6.59, AP47-1. ASTD.
60
Ver nota 2.
6! "Relatório", 3.11.59,AP47-1, ASTD.

62 Juscelino Kubitschek, 50 anos em 5. op. cit. p. 285.


63 Lacerda, Carlos. op. cit. p. 236.
64 ld. ibid.. p. 247.
65 Cid Carvalho, Cid Carvalho (depoimentos; 1977) Rio de Janeiro, FGV/CPDOC-
História Oral, p. 37; Archer, Renato op. cit. p. 262.
66 "Gabinete do governador", JM 59.06.02 cgb, A.J.M.
67 Juscelino Kubitschek. 50 anos em 5, op. cit. p. 388.
68Lott, Henrique Teixeira Henrique Teixeira Lott (depoimento; 1978). Rio de Janeiro,
FOV/CPDOC - História Oral. p. 175-6.
69 Carvalho, Cid. op. cit. p. 32; Dulles, John W.F. op. cit. p. 106.
70 Ver nota 35; Retrospecto do custo de vida 1944/1963, Conjuntura Econômica, 19
(8):119-23, ago. 1963.
71 Kubitschek. Juscelino. 50 anos em 5, op. cit. p. 324; Manchete, p. 72. 28.jan.1961.
72 Wainer, Samuel. op. cit. p. 222.
73 Affonso Heliodoro, entrevista ao autor, 6.6 e 4.7 .89, Brasilia; entrevista de Cony de 18
de maio de 1989; Adolfo Bloch, O pilão. v. 2. Rio de Janeiro, Bloch, 1988. p. xxxi.
74 Entrevista de Cony de 18.5.89; Adolfo Bloch, op. cit. p. xxxi; para exemplos típicos da
cobertura, ver Manchete, 31jan. 1959, p. 42-51; 7 fev. 1959, p. 6-11; 6 fev. 1960, p. 30-73;
20 fev. 1960, p. 16-3 1.

121
A dupla face de Jano: romantismo
e populismo
Mônica Pimenta Velloso*

1. Os anos dourados•.•

Em março de 1950, estréia no Teatro João Caetano a revista Bonde do Catete.


O cenário inicial é a própria praça Tiradentes, onde um bonde transporta. a fina
flor da política da época. Dutra é o motomeiro. O detallie curioso é o percurso:
do Estado Novo ao Catete. Outro fato que chama a atenção são as duas
passageiras que se misturam aos políticos: uma delas viaja meio às escondidas,
a Censura; já a sua companheira, uma senhora gorda e risonha, vai no estribo
do bonde se exibindo aos ollios de todos, a Democracia. 1 É clara a alusão ao
nosso continuísmo político e ao caráter precário da democracia.
Findo o período do Estado Novo, a sátira política volta à cena. Ao longo
dos anos 50, o teatro de revista vai documentar os momentos mais emocio-
nantes da vida política brasileira. Contracenando com as plumas e paetês das
nossas vedetes - Mara Rúbia, VIrgínia Lane, Dercy Gonçalves - , que
apresentam temas exóticos e insinuantes, a política toma-se então personagem
obrigatória.
.l
-
\ ra
De modo geral, reina utn clima de euforia. No cenário mundial do pós-guer-
vive-se a vitória da democracia. Entre nós comemora-se o fim da ditadura 1
estadonovista. Busca-se recuperar o tempo perdido. Não é à toa que o slogan
consagrado pelo governo JK propõe "cinqüenta anos em cinco". Nessa corrida
contra o tempo, a grande meta a ser atingida é o desenvolvimento econôrrúco.
1 O resto viria como conseqüência... Crescer para depois dividir, esta era a
_questão.
Nesse contexto, toma força a utopia nacionalista que dá por fmdo o ciclo
do atraso. Industrialização, urbanização e tecnologia são as palavras de ordem

r1
do momento. Até mesmo os intelectuais mais radicais depositam as suas
esperanças no populismo. Esse estado de espírito já se fazia presente no I
Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950. Reavaliando o congresso,
) Abdias do Nascimento reconheceria o seu caráter "conciliador e
"' capitulacionista".2 Quase todos os grupos sociais são tomados pelo espírito
ufanista da época. Quase todos esquecem os conflitos para falar em união d~
forças. Ao longo dos anos 50, partidos políticos, sindicatos e imprensa cerram
fileiras em tomo do projeto nacional-desenvolvimentista, que tem no Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) uma de suas fontes_inspiradoras. 3

* Pesquisadora do CPDOC e autora, entre outras obras, de As tradições populares na


belle époque carioca.

122
As grandes linhas da análise isebiana já sã~ por demais conhecidas: caberia
à burguesia nacional liderar o nosso processo de desenvolvimento, mobilizan-
do os demais setores da sociedade. Identificando os interesses agrários com o
capital estrangeiro e os industriais com os da nação, os intelectuais isebianos
traçam wna linha divisória entre o que seria a nova e a velha sociedade. A nova
sociedade aparece diretamente comprometida com a nação, o progresso e o
desenvolvimento industrial. Estas metas são altamente mobilizadoras na épo-
ca: procurar saídas para o subdesenvolvimento, integrar as camadas populares,
criar uma arte de acordo com a "nova" realidade. Há um interesse unânime
entre os nossos intelectuais por estas questões.
O espirito do "novo" e, principalmente, a vontade de mudança são viven-
ciados intensamente. O design arrojado e o concretismo, nas artes plásticas e
na poesia, são a marca dos anos 50. No final da década começam a surgir
manifestações que a seguir tomariam corpo nos movimentos da Bossa Nova,
Cinema Novo, Teatro do Oprimido e música de protesto. Buscam-se, enfun,
novas formas de expressão artística capazes de integrar cultura, modenúdade
e desenvolvimento.
(_ Entretanto, não é só a abertura política que explica toda essa efervescência
cultural. A formação de um público urbano e a emergência de uma cultura de
massa iriam modificar substancialmente a sociedade brasileira. Entramos no
"tempo cultural acelerado", onde os signos se multiplicam visando o consumo
_ imediato. Começam a ter grande circulação os gibis como O Pato Donald e as
fotonovelas tipo Sétimo Céu e Capricho; fazem sucesso as radionovelas e
teleteatros.
Os programas de auditório das rádios são cada vez mais concorridos. César
de Alencar estoura o ibope, conseguindo levar vinte mil pessoas ao
Maracanãzinho. Na Rádio Nacional trava-se uma verdadeira guerra de es-
trelas, onde reis e rainhas disputam o cetro da música popular brasileira.
Orlando Silva, Etnilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira e Ângela Maria,
com os seus boleros e baladas românticas, causam verdadeiro delírio nas
platéias. Através dos programas de auditório e dos tã-clubes, as camadas
populares buscam, mesmo que no plano simbólico, seus canais de participação.
O mito da mobilidade social e da felicidade oferecido pelos ídolos causa forte
impacto nos tãs.4 .
São também desse período as famosas chanchadas da Atlântida, que acaba-
riam identificando todo um espírito de época. Inspirando-se nos teatros de
revista e estrelas da mídia, principalmente as da Rádio Nacional, as chanchadas
têm público certo. Misto de show e comédia, alcançam popularidade inédita,
pois falam de assuntos diretamente ligados ao cotidiano da platéia.
De modo geral, os personagens das chanchadas - camelôs, donas de
pensão, barbeiros, empregadas domésticas - fogem ao padrão burguês do
desenvolvimento industrial. Dentro desse universo marginalizado predomi-
nam os códigos de honra, muitas vezes calcados em valores tradicionais e até
mesmo rurais, conforme veremos mais adiante. Mas apesar de destoar dos

123
padrões vigentes, a chanchada não passaria imune ao espírito ufanista do
período JK. Em Garota enxuta (1959), Grande Otelo defende a fabricação do
DKW: "O carro nacional não precisa de gasolina, anda só com o cheiro e ritmo
do samba." Já em Alegria de viver e Batedor de carteira as classes sociais se
confraternizam. A fé no futuro do Brasil está presente em quase todas as
comédias musicais do período. 5
Para um público mais sofisticado, havia os famosos shows de Carlos
Machado. Em depoimento concedido anos depois, Machado conta "que bas-
tava ter a idéia de um show para executá-lo. A orquestra, os artistas e a verba
estavam sempre à disposição. Era comutn ir a Paris para contratar estrelas,
notadamente as do Folies Bergere".6
A época é, portanto, de festa, euforia e ilusão. Em Essa vida é um carnaval
fica claro o espírito festivo e a crença no self-made man. Grande Otelo faz o
papel de utn sambista que vivia de rádio em rádio, lutando para divulgar o seu
trabalho. Até que um dia tem a sorte grande: consegue chegar ao Cassino da
Urca. Lá encontra um americano - possivelmente Orson Welles - que gosta
do seu trabalho e resolve divulgá-lo. O sambista vira, então, sucesso interna-
cional.
Através da arquitetura, feiras industriais e exposições, o Brasil busca superar
o atraso técnico, mostrando que nada fica -;devetàs grandes na-Ções. A década
de 50 é conhecida pelaSSuas momunentais exposições industriais e art~ticas.
e
IJ:iauguram-se os prune1tos sa1ões aeprõpaganda a Bienal de São Paulo;
taffibê1ll são realizadas exposições no exteriorâestinadas ã divulgar a imagem
dõnosso desenvolvimento. É o chamado "eteitõ de vitrúle", onde se encena a
urbãillclaae:-cidade e metrÓ_J>O e. O r ~cnico=científlco, erigido em valor
supremo, precisa ser ex~t~ demoostrado, projetado.7_Assim, a apo ogia do
_ruturo, coroado pelo êxito da tecnologia, torna-se objeto de inúmeras matérias
na impreQ§_a. Vive-se a crença no "progresso IDdefmido". :En-1 "Você_e o mundo
futuro", a Revista da S!!_mana publica uma série de artigos on~e faz previ~
verdadeiramentefimtásticas patãadécadã ôe- f980: utn mundo de comunicação
interplanetária, onde reinariàO progre.Sso e a hannonia sociaC -
·~ncia-se o impacto provocado-~lo c~ema, cujas imagens produzem
verdadeira vertigem nos sentidos. No registro abaixo é visível o fascínio do
"simulacro" temporal e espacial:

~As nuvens se dissipam na sua frente e Já surge, em terceirissima dimensão, o próprio, o


impossível Rio de Janeiro. A música vai aumentando. Os edifícios de Copacabana se
aproximam. De repente você está dentro de um automóvel, em plena avenida Atlântica, com
os barulhos característicos do mar à direita e à esquerda a buzina dos automóveis. No fundo
musical sempre o samba ... É o Rio dentro da Broadway transformado pelo cinerama em uma
das sete maravilhas do mundo ... Ms

Se a "civilização da imagem" produz realidades fantásticas, integrando o


Rio de Janeiro à Broadway, ela também traz problemas sérios: ao ampliar o
seu circuito de consutnidores, a arte não acabaria se degradando? Esta polê-

124
mica, que opõe o erudito e o popular, o sublime e o vulgar, remonta aos
primórdios da modernidade. Entre nós, ao longo da década de 50, ela está na
ordem do dia: como integrar as camadas populares na indústria cultural?

2. A intelligentsia entra em cena: contra o "mau gosto" e a alienação

A idéia da cultura como lazer e diversão, desvinculada de um projeto político,


decididamente não era vista com bons olhos. A intelligentsia protesta. De
imediato surgem os que se colocam contra o que denominam a "degradação"
da arte. Para atender à demanda do grande público, a arte acabaria fatalmente
se degradando, porque o "povão" se caracterizaria pela falta de cultura e mau
gosto. Em outras palavras: a arte deixaria de ser objeto de prazer estético para
se converter em mero objeto de consumo. É a argumentação típica dos críticos
da cultura de massa ...
Na década de 50, é possível reconstituir este discurso através de um tema
que se toma altamente polêmico: a chanchada e o teatro de revista. A chancha-
da, tanto no cinema como no teatro, mobiliza intensamente os nossos intelec-
tuais, despertando quase sempre conflitos de opinião e acusações. A discussão
mostra-se extremamente interessante, se considerarmos que por trás dela está
sempre em jogo uma detenninada concepção do popular.
Desde a década de 40, quando surge a Atlântida, as chanchadas de-
sencadeiam intensa polêmica no meio intelectual. Partindo da oposição "teatro
de arte" x "teatro para rir", os críticos classificam a chanchada como a espécie
mais degradada do segundo gênero. Assim, ela é desqualificada como uma arte
inferior. Critica-se sua produção rápida, improvisação, pobreza de cenografia
e indumentária. 9 Enfim, é como se essa arte não preenchesse os requisitos
básicos para ser considerada como tal.
É sintomática, nesse sentido, a polêmica desencadeada em tomo da atriz
Bibi Ferreira por ter aceito participar do espetáculo Escândalos 1950. Por essa
época, a atriz já dispunha de sua própria companhia teatral, que era altamente
considerada pela crítica. Esse fato é que parece ter chocado uma determinada
ala da imprensa: como uma atriz de "gabarito", representante do "teatro sério",
poderia se "rebaixar" ao teatro de revista? Contracenando com Mata Rúbia e
Jardel Filho no Teatro Carlos Gomes, Bibi despertou verdadeira celeuma,
chegando a ser acusada de estar prostituindo a arte. 10
Por que tamanha desqualificação do teatro de revista? Que argumentos
levaram a maioria dos nossos intelectuais a se colocar contra essa forma de
manifestação artística? A resposta é complexa. Comecemos por um aspecto
mais ou menos consensual: a "baixa qualidade" atribuida ao teatro de revista.
N a dicotomia "teatro sério" x "teatro para rir" está subentendida a idéia de
qualidade. Assim, na primeira série estão incluídas a cultura, a arte, as elites.
• •a outra, a barbárie, a diversão, o povo. Há uma lógica topográfica que cinde
a realidade em dois planos: superior e inferior. Este fato é claramente ilustrado
quando, no debate intelectual da época, a chanchada é comparada às "vísceras"

125
da sociedade, enquanto o chamado ••teatro sério" representaria a cabeça e a
inteligência. 11 Poderia haver metáfora mais precisa para expressar a idéia de
"rebaixamento", de inferioridade?
Desde a Idade Média e o Renascimento a materialidade se constitui em um
dos princípios organizadores da cultura cômica popular. Contrapondo-se à
cultura dominante, a cultura popular realizaria o ··rebaixamento", tanto no
sentido cósmico (terra, absorção) quanto no sentido corporal (órgãos genitais
e ventre em contraste com o rosto, cabeça, inteligência). Nesse contexto, a
idéia de ..rebaixamento" é que garante a possibilidade de convívio com as
diferentes situações. Assim, rebaixar significa trazer para perto, unir o que é
dado como oposto. O termo ••baixo" adquire o significado de ••inferior positi-
vo".I2
Esse sentido unificador da cultura perdeu-se completamente na moderni-
dade. Entre nós-a chanchada passa a ser desqualificada justamente pela
valorização do .. baixo". Mais ainda: pela inversão de situações que faz com
que o ••baixo" tenha preponderância sobre o ..alto". O carnaval é que propicia
essa inversão de valores. Já se sabe que um dos motivos inspiradores das
chanchadas são as situações carnavalescas. É justamente sobre esse aspecto
que os nossos intelectuais constroem a sua argumentação. Pelo fato de ser uma
situação de exceção, o carnaval não deve ser considerado: é momentâneo,
pertence ao domínio do efêmero. Logo, não faz sentido que ele adquira
expressão cultural, além dos dias previstos pelo calendário.
Estamos em pleno domínio da .. ideologia da seriedade", que interpreta o
cômico e o riso como mera inconseqüência, irrelevância e, sobretudo, momen-
taneidade...Muito riso, pouco siso",já dizia o nosso Macunaúna. Confunde-se,
assim, arrogância e sisudez com responsabilidade. A seriedade é sempre
identificada com maturidade, enquanto o cômico aparece como o espaço da
criança e do louco. 13 Nada se pode esperar de um ••povo-criança" a não ser a
alegria inconseqüente, a diversão pela diversão. Daí é fácil imaginar a trans-
posição: povo-criança = diversão, carnaval, chanchada. A diversão é vista
como algo à parte, momento, enfim, um aspecto que corre à margem da
dinâmica social.
Aqui a desqualificação da chanchada se dá pelo seu caráter cômico. Daí o
tom irônico da pergunta: .. Quando será que os donos da praça Tiradentes e
filiais tomarão juízo?"I4
Retomando a distinção que opõe alto e baixo, temos ainda um outro aspecto
interessante: a hierarquização do espaço público. Explicando melhor: cons-
trói-se uma espécie de topografia da cidade, onde se delimita o espaço a ser
ocupado pelo ••baixo" e pelo .. alto". Na realidade a elaboração sistemática
dessa ideologia data do começo do século, período que se denominou de belle
époque, quando estava em jogo a urbanização do Rio de Janeiro segundo o
modelo parisiense. 15 A partir daí essa ideologia vai num crescendo até incor-
porar-se de tal forma ao nosso cotidiano que custamos a vê-la como fruto de
uma elaboração política.

126
Na década de 40, sugere-se que o Teatro Rival, na Cinelândia, seja remo-
delado, afastando-se de lá a chanchada "grosseira". O bairro da Pavuna
(identificado como "baixo") é apontado como o local mais indicado para esse
tipo de espetáculo. O mesmo argumento é usado quando Carlos Machado lança
em 1956 ~o Copacabana Palace o show Humoresque. Lamenta-se que um
espaço tão respeitado - nonnalmente freqüentado por um público estrangeiro
-sirva a um espetáculo dessa categoria. "Boas pernas, lindos rostos e malícia"
são identificados com o "baixo teatro", que se deveria restringir exclusiva-
mente aos subúrbios.l6
Essa hierarquização do espaço estava diretamente ligada à oposição que se
pretendia estabelecer entre a chamada arte "espiritual" e a arte "sensorial". A
primeira pertenceria ao alto dorrúnio - incluindo-se ai os artistas e os
intelectuais - , enquanto a segunda era alocada no "baixo", no puramente
corporal, que diz respeito ao mundo da matéria (pernas, rostos, malícia).
Nesse mundo da matéria é que se opera o "rebaixamento" da arte. Um
mundo caótico onde as massas "se contorcem e urram nos estádios de futebol",
onde reina a vulgaridade e a obscenidade. Esses argumentos são de Paulo
Francis que, na época, escreve uma série de artigos criticando a "baixa
qualidade" do teatro de revista. Segundo ele, essa baixa qualidade se deve aos
interesses comerciais que corrompem a verdadeira arte. Logo, conclui, explo-
ram-se os preconceitos, sentimentalismo, insuficiência de gosto e mentalidade
das massas. 17
Esse ponto de vista é compartilhado por vários artistas e pessoas ligadas ao
mundo teatral - notadamente ao grupo dos Comediantes, que são entrevis-
tados por Francis. 18 Quase todos associam o teatro de revista à obscenidade,
analfabetismo, vendo-o como verdadeiro sintoma de nossa decadência cultu-
ral. Aponta-se o desrespeito às técnicas de dirigir e representar (que gera o
vedetismo) e o desrespeito ao público (busca-se sempre uma receita de
sucesso) como os grandes problemas desse tipo de espetáculo. Declara-se: o
teatro da praça Tiradentes vende-se ao povo sem intermediários!
Quem seria esse intermediário? De modo geral, sempre se deixa trans-
parecer uma certa expectativa de que este papel seja exercido pelo Estado.
Mas, se a arte" comercial" é desqualificada porque se apresenta ao povo apenas
como objeto de consumo, também se critica o chamado teatro experimental
popular. A educação das massas, argumenta Francis, acaba favorecendo a
subliteratura e a mediocridade. No intuito de tornar o texto acessível às
camadas populares, os intelectuais populistas acabam menbsprezando a cul-
tura e o refinamento da sensibilidade.l9
Intelectuais da praça Tiradentes, subliteratura, vocabulário de cozinheiras,
licenciosidade, analfabetismo, vulgaridade, achlncalhe, sujeira (dentro e fora
do palco), estes são alguns dos epítetos que desqualificam o teatro de revista
enquanto expressão cultural.
Nem os empresários teatrais, nem os intelectuais populistas ("arte para o
povo") estariam capacitados para dirigir o nosso teatro. Ambos acabariam

127
"rebaixando" a cultura: os primeiros porque visariam apenas o lucro; os
segundos porque prejudicariam a própria evolução do teatro. Nesse sentido,
Francis argumenta contra a inviabilidade de se educar as massas através do
teatro, pois ainda "engatinhamos" nessa arte. O raciocínio é mais ou menos o
seguinte: deixar o teatro crescer, para depois integrar a ele essa parte proble-
mática da sociedade que são as camadas populares.
Seguindo ainda essa linha de argumentação que opõe artejnão arte, há uma
idéia que chama a atenção: o esforço de definir o teatro como arte, dis-
tinguindo-o do espetáculo. Por que essa distinção? Que incompatibilidade
existiria entre teatro e espetáculo? Por que, afinal, o teatro não cabe na
categoria de espetáculo?
Normalmente o espetáculo é identificado ao mundo do circo, onde há flores,
música, alegria, palhaços. Já o teatro se situaria em uma outra esfera mais
elaborada: é texto, interpretação, direção.20 De modo geral o circo é definido
como um "espetáculo para os olhos", levando a emoções fáceis, enquanto o
teatro visaria o espírito, a fruição estética. De onde se deduz: o espectador do
circo é a criança (camadas populares); o do teatro é o adulto (elites).
Toda essa preocupação em estabelecer diferenças entre teatro e espetáculo
tem muito a ver. O que está sendo posto em cheque mais uma vez é a
chanchada, identificada como espetáculo. De fato, o imaginário circense foi
de fundamental importância na montagem das chanchadas. As suas grandes
estrelas - Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves - começaram a vida
artística no picadeiro do circo. De lá trouxeram a sua linguagem, valores,
enfim, toda uma forma de comunicação extremamente popular. 21
Ocorre que é justamente esse tipo de comunicação, esse código cultural que
está sendo posto em questão. O circo e conseqüentemente as chanchadas estão
fortemente calcados em valores da nossa cultura popular oral. E a integração
dessa cultura é altamente problemática. Historicamente, entre nós, existe uma
espécie de fosso separando duas línguas - uma pública e de aparato, e a outra
popular e cotidiana. A primeira pertencente à "cidade das letras", a segunda à
cultura oral que se desenvolve quase sempre alheia ao círculo dos letrados. Daí
o conflito entre essas duas ordens. Já no início do século, João do Rio chamava
a atenção para essa nossa dissonância cultural que cavava um fosso entre a
linguagem dinâmica das ruas e a rigidez dos dicionários.22
Na década de 50 os nossos intelectuais estão às voltas com o mesmo
problema: a integração da linguagem popular. Grande parte da discussão
cultural passa por esse ponto.
Indaga-se sobre a legitinúdade da gíria: mera válvula de escape para os
desajustamentos sociais? Seria obrigatoriamente marginal e irreverente? Lin-
guagem típica dos estratos inferiores? Os intelectuais da Academia Brasileira
de Letras, cuja proposta era elaborar um "dicionário de brasileirismos",
argumentam que a gíria só deverá ser integrada quando abonada pela própria
Academia. Mais uma vez fica clara a cisão entre as duas línguas. José de
Alencar, Euclides da Cunha, Coelho Neto são apontados como os grandes

128
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mestres que fizeram o inventário da nossa língua.23 O popular deve ser


abonado a partir deles. É sempre o documento que dita o rumo da realidade...
Dentro desse contexto, a "arte séria" se transforma em um argumento
recorrente. Fazendo um balanço da evolução do nosso cinema, Alex Viany, em
1976, observa o quanto esse argumento nos foi prejudicial. Em nome do "filme
sério" muitos dos nossos intelectuais passaram a desprestigiar o linguajar
popular, alegando que a língua brasileira não prestava para diálogos cinema-
tográficos. Viany contra-argumenta, mostrando que a chanchada veio jus-
tamente acabar com esse preconceito, usando no cinema a língua corriqueira
e a giria. 24
Na tentativa de se alcançar uma arte "séria", confunde-se, mais uma vez,
seriedade com rigidez, erudição e documento. Nesse circuito, as camadas
populares são sempre afastadas: sua cultura e visão de mundo são fatalmente
infantilizadas, localizadas no inconsistente terreno do efêmero. É como se a
expressão cultural só passasse a existir depois do seu registro por escrito.
Nessa perspectiva, a chanchada comporia uma ••arte menor", ou melhor, a
··não arte", porque seria mero espetáculo para os sentidos. Movimento, ilumi-
nação e cor são vistos como acessórios, que se destinam a um público iletrado.
O texto escrito é o referencial da arte legítima. No teatro de revista, verifica-se
o contrário: a capacidade de improvisação dos atores é que comanda o
espetáculo. A propósito, observa Dercy Gonçalves: "No teatro de revista você
deixa de declamar e aprende na porrada." 25
Na época, a improvisão dos atores de chanchada era combatida sob o
argumento de que desvirtuaria o texto.26 A arte que extrapola a esfera do texto
é desqualificada como "vedetismo", perfume barato.
Como se vê, a questão da integração do popular é complexa e extremamente
conflituosa. Ao longo de toda essa discussão, uma idéia fica clara: a arte não
deve atender à demanda popular, pois isso a levaria a "nivelar por baixo". A
••arte-entretenimento", que tem como proposta chegar ao povo, acaba se
corrompendo quando entra no circuito comercial. Esse ponto de vista era quase
unânime na época. Insistia-se na preservação da aura artística. A indústria
cultural era execrada porque identificada com o império da ignorância e
analfabetismo.
A integração do cinema no circuito da indústria cultural ilustra bem essa
problemática, deixando entrever o quanto ela foi conflituosa para os nossos
intelectuais. Desde a década de 30, o cinema sonoro vinha sendo objeto de
polêmica. A intelligentsia cinematográfica carioca se organizou em O Fã,
órgão do Chaplin-Club, defendendo o cinema mudo como essência da arte. O
elemento sonoro era visto como interferência indesejável, ocasionando a
vulgarização da arte cinematográfica. 27 Durante os anos 50 persistiria a discus-
são. Indaga-se até que ponto o cinema sonoro é ou deixa de ser arte. Publicam-
se várias enquêtes que apresentam a opinião dos intelectuais sobre o assunto.
Algumas vezes o resultado surpr~nde pela sua tônica de consternação. La-
menta-se o funde um tempo calmo, substituído pela vertigem cinematográfica.

129
Em letras garrafais a manchete anuncia: "As praças do interior estão desapa-
recendo com o advento da tela panorâmica." O artigo noticia a modificação
dos hábitos que o cinema provocou numa cidadezinha do interior. A instalação
de telas nos "cine-teatros", argumenta-se, prejudica a montagem de peças
teatrais! É a sedução pelo cinema que faz o povo abandonar as praças, e é esta
mesma sedução pelo movimento e a sonoridade que leva os habitantes da
cidadezinha a preferir o cinema em vez do teatro.2s
Esta é a questão que está por trás de tudo: a substituição do teatro pelo
cinema. Entende-se o teatro como arte verdadeira, o cinema como vulgar. Daí
o tom nostálgico da manchete que anuncia um tempo que está prestes a
desaparecer, levando com ele a "verdadeira" arte... No caso, temos a "última
sessão de teatro" ...
No título do artigo mencionado fica clara a idéia apocalíptica: "O cinemas-
cope matando o teatro." Entre nós, a modernidade constantemente se reveste
desse aspecto fatalista- e mesmo trágico-, conforme veremos adiante. A
evolução da indústria cultural é vista com temor, como se desse irúcio a um
círculo vicioso onde o cinema mataria o teatro, a televisão mataria o rádio,
enfim: a longo prazo morreria a própria arte! Villa Lobos, por exemplo, declara
que a arte brasileira só será salva se for endereçada a um público mais refmado.
A "arte ao alcance do povo" é wn slogan suicida, que declara sua própria
sentença de morte! 29 Nos escritos dos nossos intelech1ais é visível o fantasma
da decadência da cultura associada geralmente ao analfabetismo. Todas as
vezes que a cultura letrada sente abalados os seus domínios, reedita-se essa
idéia. Nos anos 50 trava-se uma verdadeira polêmica sobre o sentido da
chamada "civilização da imagem". Destronando as letras, a i..tnagem invade
todos os domínios da cultura e da vida privada. Tudo é dito de forma telegrá-
fica. Não existe mais elaboração. Reinam o empobrecimento e a vulgaridade.
Encena-se a pergunta atônita "Será acaso o tempo dos escritores mudarem de
profissão?"30
É visível, portanto, a preocupação de preservar a cultura letrada contra a
ameaça da mídia. A idéia é clara: livro versus imagem. É uma guerra onde a
vitória de um determina o fnn inexorável do outro. Daí a visão apocalíptica e
trágica que os nossos intelectuais constroem acerca da indústria cultural.
Entretanto, esse ponto de vista não é unânime. Nos anos 50, há os que indagam
se a cultura popular deveria ou não ser isolada dos meios de comunicação. Há
os que pensam justamente o contrário: utilizar a mídia como veículo de
incorporação das massas na modernidade, através de sua conscientização
política.
Ocorre que o desenvolvimento elevou o poder aquisitivo das camadas
populares, tomando-as, de certa forma, disporúveis para o mercado cultural.
Justamente aí é que residiria o problema. Para alguns setores da intelligentsia,
o povão assediado pela mídia acabava por reproduzir valores que não eram os
seus. Em swna: alienava-se. O que significa dizer que ele perdia a consciência
do seu papel na construção da nação. Assim, a idéia da cultura como elemento

130
de simples 'lazer seria no mínimo inescrupulosa. Fazer cultura se transforma
em fazer política. A cultura é identificada à conscientização, jamais à diversão.
É no bojo do projeto populista que começa a se formar uma tradição mais
• politizada da cultura. Essa tradição é complexa pois agrupa intelectuais das
mais diversas correntes de pensamento. Se as propostas desses grupos são
diferentes, o alvo de ação é comwn: desenvolver a nação via povo. No final
da década de 50 e irúcio dos anos 60 o povo torna-se o ator social mais
requisitado. É ele que aparece como base de sustentação dos vários projetos
políticos como os do ISEB, de cunho mais reformista; dos Centros Populares
de Cultura (CPCs), de orientação marxista, e dos movimentos de cultura
popular no Nordeste e de alfabetização, inspirados nos grupos católicos de
esquerda. 31

3. Povo: a eterna inspiração!

"Quando derem voz ao morro toda a cidade vai cantar. .. "

Em 1955 o Cinema Novo se anuncia com o filme Rio 4r.J> de Nélson Pereira
dos Santos, em que faz sucesso a canção de Zé Kéti Voz do morro. Quem sobe
o morro alcança os verdadeiros problemas da nacionalidade, fazendo com que
o país celebre o encontro consigo mesmo. Quase todos os movimentos cultu-
rais vão apresentar o intelectual enquanto porta-voz do povo, encarregado da
sua conscientização política. A incógnita - quem é o povo no Brasil? - já
tem pronta a sua resposta: todos os grupos sociais envolvidos no desenvol-
vimentismo "progressista" e "revolucionário". 32
A homogeneização da categoria resolve o problema. Identificadas como
parte integrante do povo, as vanguardas intelectuais da classe média vão
assimilar e reelaborar elementos da cultura popular e folclórica. O morro e as
favelas se transformam em cenários obrigatórios dos filmes, peças de teatro,
romances e música. Do repertório da época constam músicas que iriam se
tomar clássicas na nossa 1\.fPB: Lata d'água, Voz do morro, Mulher rendeira,
todas elas poetizando a maneira de viver das camadas populares.
O filme Orfeu negro, co-produção francesa que reencena a lenda grega no
morro carioca, alcançaria a Palma de Ouro em Cannes. Mareei Camus, o
: diretor, realizou passeios pelas nossas favelas, registrando impressões exóticas
sobre a cultura popular carioca. Na literatura, assistimos ao retomo da temática
regionalista, através da obra de João Cabral de Melo Neto que lança, em 1955,
Morte e vida severina. Em 1956, é a vez de Guimarães Rosa com Grande
sertão: veredas. O sertão se impõe à consciência do artista revolucionário. 33
Era necessário dar voz às "vidas severinas", registrar sua história até então
obscurecida. Toda essa ideologia destinada à valorização do popular de-
senvolve-se em estrita consonância com a idéia de brasilidade. Na ficção,
incentiva-se, mais uma vez, a tendência docwnentalista: tipos, paisagens,
costumes, cenas do real. Nada deve escapulir à observação do artista.

131
Nas artes plásticas, a xilogravura é consagrada como manifestação artística
por excelência porque seria veículo de maior comunicação popular. Ins-
pirando-se nos princípios da arte popular mexicana, no Atelier d 'Art Politique
do Partido Comunista Francês e nas doutrinas do realismo socialista, os nossos
artistas fundam vários clubes de xilogravura. O objetivo desses clubes era dar
um sentido "realista" à arte, utilizando-a de fonna didática. Naturalmente o
povo é que seria o destinatário dessa mensagem, inspirada em motivos folcló-
ricos regionalistas.
Quem não se lembra das famosas xilogravuras de Poty, ilustrando, com
motivos regionais, os nossos manuais e atlas escolares? E os desenhos de
Carybé sobre os costumes baianos?
"A arte não é privilégio, deve viver ao sol, nas praças, entre o povo." Esse
lema da Oficina de Arte em São Paulo ( 1952) é compartilhado por quase todos
os movimentos inLelectuais. 34 Peças relâmpago são encenadas nas praças
públicas, comícios e debates são realizados nas ruas, documentários são
exibidos, destinados à "conscientização das massas".
As críticas ao projeto populista são conhecidas, notadamente no que se
refere à sua proposta de conscientização. Fazendo uma crítica ao Cinema
Novo, Jean Claude Bemardet argumenta que o povo acaba se transformando
em mero espectador, encontrando-se diante de um circuito fechado. Se a
realidade é problematizada, já se tem a priori a solução. Esse circuito fechado
em que o povo sempre fica de fora não diz respeito apenas ao cinema. Ele
marca todo o projeto cultural populista. A famosa palavra de ordem "Cultura
para o povo" denota bem a atitude paternalista dos intelectuais:

"E patemalisticamente, o cinema brasileiro vai tratar dos problemas do


povo. Proletários sem defeito, camponeses esfomeados e injustiçados, hedion-
dos latifundiários e devassos burgueses invadem a tela: a classe média vai ao
povo.(...) uma ida ao povo quase nos moldes dos populistas russos do fundo
século passado como Lavrov. Os românticos franceses se entusiasmaram com
esses operários-poetas... "35

Essa visão idealizada do popular requer uma ação também idealizada.


Explicando melhor: o popular aparece como matriz da nacionalidade brasilei-
ra, uma espécie de espelho capaz de decifrar e/ou refletir a sua imagem. Ocorre
que essa essência da brasilidade (o povo) está carente de cuidados, mas, se
educado e esclarecido pelo saber das elites, poderá adquirir a "boa consciên-
cia", alcançando assim a nação a sua autêntica imagem.
Tomada pelo afã desenvolvimentista, a intelligentsia se proclama manda-
tária dessa missão: a de conscientizar o povo brasileiro. Nesse contexto, em
que o objetivo pedagógico povo é idealizado, a educação forçosamente deve
sê-lo também. Educar significa, então, entrar em contato com a própria "alma"
da nação. Tarefa metafís~ca, que requer uma espécie de transe mediúnico...

132
Estamos em pleno domínio do Volksgeist. Justo nesse ponto é que se
estrecruzam romantismo e populistno. É na ida ao povo, enquanto fonte
inspiradora da nação, que essas duas vertentes de pensamento vão se encontrar.
• As antinomias que caracterizam tradicionalmente essas correntes - particu-
larismo x universalismo, emoção x razão - tendem a ser sobrepujadas pela
idéia de pertencimento a um grupo ou cultura. 36 O" espírito do povo" é o grande
referencial, a pedra de toque capaz de desvendar a nacionalidade. Isto é
verdade tanto para os românticos quanto para os populistas. Entre nós essas
& duas vertentes interpretativas são coexistentes. Na década de 50, a vertente de
origem romântica, inspirada em Herder, pode ser representada pelos intelec-
tuais da Academia Brasileira de Letras (ABL). Já a populista, inspirada
sobretudo em Hegel, é incorporada pelos intelectuais do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB). Apesar de defenderem ideais diferentes, essas
duas correntes acabam se encontrando. Como entender essa fusão de valores
aparentemente tão distintos? Como é que a concepção populista convive com
o conceito metafísico-romântico de Kultur? Como, enfim, os nossos intelec-
tuais conseguem incorporar essa visão de mundo que inclui o pragmático e o
metafísico? ·

\ A análise de Richard Morse37 pode nos oferecer uma pista. Falando sobre
nossa formação histórica, o autor chama a atenção para um aspecto: o caráter
complexo da tradição filosófica ibero-americana. No interior dessa tradição,
argumenta ele, coexistiram duas correntes filosóficas radicalmente distintas:
o tomismo e o maquiavelismo. Surgiria daí a tensão extrema entre valores. Ora
se pensa em termos de bem comum, ora em cálculo do poder; o Estado pode
aparecer como "todo orgânico" ou simplesmente como artifício, da mesma
fonna que a política tanto pode ser vista como "missão" quanto "arte e ciência".
Em suma: vivemos conflituados entre a tradição renascentista (via Maquiavel)
e a da Contra-Reforma (via são Tomás de Aquino). 38
Já se sabe que nos países periféricos europeus -notadamente em Portugal
e Espanha - o pensamento da Contra-Reforma teve uma influência bastante
marcante. Como periferia da periferia européia, o Brasil também absorveria
muito dessa ideologia, efetuando, é verdade, adaptações e interpretações. É
por isso que, entre nós, se tomou quase que inconcebível a visão do mundo
político desvinculada da tradição católica e da fé. Daí prevalecer a concepção
do Estado como um todo orgânico, a idéia da política como missão e a visão
da sociedade como uma espécie de corpo místico. Mesmo as análises que se
pretendem racionalistas, como as do ISEB, por exemplo, não conseguem fugir
de certo viés metafísico do tipo ser nacional, alma da nação, espírito do povo
etc ...
Nos anos 50, a idéia do povo enquanto essência da nacionalidade está
subjacente às mais variadas correntes de pensamento. Mas é entre os intelec-
tuais da Academia Brasileira de Letras que vamos encontrar maior sis-
tematização dessas idéias. Esses intelectuais são os representantes de uma

133
tradição que se tem mostrado extremamente sólida ao longo de nossa trajetória
política.

4. Os artífices da nação

Pata os intelectuais da ABL, o conceito de povo só adquire sentido no mundo


do folclore. Este é visto como o saber mais competente e o único capaz de
construir um discurso sobre o povo e a nação. Mais do que isso: o folclore
permite a própria redenção do povo. Ameaçado pelos avanços tecnológicos
da modernidade, o saber popular só encontraria refúgio e proteção nos museus
folclóricos.
O homem brasileiro é visto como uma espécie em extinção, da qual os
intelectuais teriam obrigação de garantir a sobrevivência. É dentro desse
contexto que é avaliado o trabalho etnográfico de Roquette Pinto no Museu
Nacional. Esse teria o mérito de lembrar que o sertanejo existe!
É a partir da docmnentação que o objeto (povo) adquire contornos visíveis.
Ou seja: a cultura popular só é reconhecida enquanto documento que fala sobre
a nação. Transformada em peça, ela é salva, recolhida, catalogada e observada
nos museus e exposições. Assim, essa cultura se converte em mna espécie de
objeto mágico, fetiche, pedaço de lústória a ser contada para as crianças e os
curiosos. 39
Essa questão da lústória merece mna análise mais cuidadosa. Os intelectuais
da ABL fazem uma distinção entre o que seria o "fato lústórico" e o "fato
folclórico". Se ambos contam a hlstória, o fazem de maneira diferente. En-
t
quanto a história se preocupa apenas com a recuperação do passado o folclore
iria mais fundo, buscando sua i11serção na dinamicidade do presente. Por que
o folclore teria maior raio de ação, conseguindo unir passado e presente? A
explicação é incisiva: o folclore estuda o povo. Mais uma vez temos presente
a idéia do povo como entidade metafísica que escapole à temporalidade
lústórica para se transformar em alma e essência. Ainda buscando reforçar sua
distinção em relação aos historiadores, os folcloristas vão conferir importância
fundamental às fontes primárias. Neste sentido, argumentam que o folclore é
saber dinâmico porque centrado na observação direta, enquanto a lústória seria
"ciência enfatuada", lavrando sobre um passado morto. 40
O folclore é resgatado, então, como a história viva do povo. Prediz-se que .. -
ele deverá substituir a própria história, que até agora só teria se preocupado
em fazer a biografia dos soberanos. Estes são os argmnentos apresentados por
Afrânio Peixoto que, em 1928, discursava na ABL defendendo a idéia do
folclore como documento da nação. 4 1
No fmal da década de 50, Gustavo Barroso42 é resgatado como exemplo de
um novo tipo de lústoriador, capaz de unir as duas histórias (povo-soberano).
Assim, ele teria o mérito de narrar não apenas os acontecimentos políticos,
sociais ou militares, mas também os costumes e tradições religiosas, captando
a "alma do povo". Esses valores estariam diluídos nos acontecimentos secre-

134
tos, anedotas, fábulas e contos. É um trabalho de ourivesaria, onde os olhos
atentos do joalheiro (no caso, o folclorista) nada perdem. Os mínimos detalhes
são captados, enquadrados na memória e narrados com graça. Rememorando
os dotes desse hlstoriador, Austregésilo de Athayde observa: "O poder de sua
memória era admirável. Guardava acontecimentos históricos, acontecimentos
secretos, anedotas, fábulas, contos folclóricos e narrava-os como nenhum
outro... " E mais adiante conclui: "O que fica nos livros é apenas uma parte do
mundo das coisas que a sua memória guardava. " 43
Memória prodigiosa, informações as mais variadas possíveis, meticulosi-
dade, dom da narrativa. Estes também são os atributos dos "antiquários", que
seriam os nossos primeiros historiadores, no século XVIII. Eles se interes-
savam notadamente pela cultura popular, procurando reconstituí-la nos seus
mínimos detalhes. Espécie de colecionadores, dedicavam-se aos pormenores
do fato, reconstituindo-os pacientemente. O seu universo de conhecimento é
sempre extenso, ou melhor, incomensurável. 44 Gustavo Barroso é lembrado
como um "cabedal vivo de conhecimentos que nunca se exauria e como que
aumentava quanto mais U1e era tirado". Assim, ele é o homem que tudo sabe:
"Sabia até o nome das coisas, das árvores e dos bichos, o que é raro entre os
brasileiros." Ele também sabe dos "heróis e bandidos", se interessa pela
"história pátria" e pela "lústória do povo"; é um gentleman e um "João do
Norte",45 preocupado que estava com o nosso sertanejo.
Na década de 50, wna das tendências do pensamento social brasileiro vai
estar calcada lla vertente étnico-cultural. A maioria dos nossos intelectuais
defendia a integração do negro e do índio, vistos como portadores dos tempos
passados. O passado já não é um fardo, mas força que esclarece sobre o
' presente. Dentro desse contexto, o folclore aparece como área que permite
entrar em contato com a nossa sobrevivência cultural, enfim, com a própria
brasilidade.46 Datam dessa época os nossos primeiros congressos de folclore;
organizam-se entidades, museus e exposições destinados à preservação da
cultura popular. O folclore estava, portanto, na ordem do dia.
A ABL se insere nesse campo de preocupações. Não é por acaso que no
suplemento literário Lecras e Arces, do jornal A Manhã, os acadêmicos abrem
uma seção especialmente dedicada aos trabalhos folclóricos. Renato de Almei-
da, Artur Ramos e Manuel Diégues escrevem assiduamente, defendendo a
importância dos estudos folclóricos na constituição da nacionalidade.
Já são conhecidas as vinculações do discurso folclórico com o pensamento
romântico, devido à identificação que fazem entre o nacional e o popular.
Dentre as várias retomadas românticas há uma particulannente que chama a
atenção: a distinção entre o popular-rural, visto como positivo, e o popular-ur-
bano, visto como negativo. Entre os intelectuais da ABL essa polarização é
clara. A área rural, o Íllterior do país, aparece como o espaço ideal para se
desenvolver as pesquisas folclóricas. Lá estariam as nossas tradições mais
puras, nossas relações mais estreitas com o passado. Já nas cidades, observa-se

135
justamente o contrário: a dispersão das energias nacion<~is, o abandono do
passado.
Nos escritos acadêmicos a influência do pensamento romântico também
aparece na idéia que priorizao camponês como testemunho histórico (George
Sand), ou na que valoriza a geografia como organismo vivo da nação, capaz
de moldar o seu povo (Vida! Lablanche, Romain Rolland). 47
Resgata-se a grandeza lírica e épica dos autores românticos, sobretudo o
"amor sincero" que dedicam ao povo. Este é um ponto de fundamental
importância: a questão do sentimento. Freqüentemente ele se converte em um
atributo que se exige do folclorista. Se o seu trabalho é reconhecido pela
orientação científica, esta simplesmente deixa de terva lorse não vier reforçada
pelo aspecto afetivo. Assim o folclorista deve integrar-se ao seu objeto de
estudo, de forma a confundir-se com ele. Deixar transbordar a emoção entran-
do em sintonia com a natureza , que seria a única ling uagem capaz de revelar
a "a lma" da "nação".4K
Nesse contexto o popular passa a ser compreendido como essência da
nacionalidade a ser captada pelos intelectuais. Mas essa visão idealizada não
se s ustenta o tempo todo. A cultura popular é comparada a uma pedra bruta
que só a mão hábil do <~rt i sta pode lransfonnar ern jóia. Segundo essa visão, a
";~ ltna popular" oscilaria entre a sens ibilidade lírica e os impulsos des-
truidores49 Assim, cabe aos artífices d<~ n<~ ção rea Iizar a metamorfose, fazendo
prevalecer a beleza e o lirismo popular.
Na década de 50, os intelectuais da ABL de modo geral vão se manter à
margem do debate político que associa fato cultural a fato político. O famoso
slogan "Ati e p<~ra o povo", que vinha mobilizando grupos intelectuais das mais
diversas tendências, não é endossado pelos acadêmicos. Argumentam eles que
o povo não está absolutamente interessado em arte, pois só pensa na sua
sobrevivência. Assim as camadas populares não teriam capacidade nem dis-
ponibi lidade para apreciar a estética. Aos seus olhos ingênuos, a arte não
passaria de "uma paisagem calma de uma folhinha de annazém". 50
Ocorre que essa ingenuidade e pureza do popular deve ser preservada na
modemidade, pois é ela que vai assegurar a "continuidade" da alma nacional.
Esta idéia do popular enquanto revelação efou essência da nação não é criação
exclus iva dos folcloristas. Ela L1mbém vai estar subjacente às reflexões do
ISEB e até mesmo às análises dos CPCs. Na década de 50 o povo é o grande l
eleito: seja como portador da tradição, da transformação ou da contestação ...5 1
Assim, ele é o referencial visado pelas mais diversas correntes de pensamento.

5. A dupla face de Jano

Na mitologia romana, o deus Jano nparece associado à idéia de princípio,


origem. Mas o que clmma a atenção é o fato de possuir duas faces opostas, o
que lhe pem1ite olhnr simultaneamente para várias direções e temporali-
dades.52 Essas idéias tomam esta figura interessante para uma reflexão sobre

136
a nacionalidade brasileira. Pensar (ou imaginar) o Brasil tem sido uma espécie
de desafio obrigatório para os nossos intelectuais. "República dos bruzundan-
gas" (Lima Barreto), "Geléia geral" (Décio Pignatari), "Samba do crioulo
doido" (Sérgio Porto), "Brasil: aos trancas e barrancos" (Darcy Ribeiro). Essas
imagens traduzem o quanto tem sido difícil encontrar uma definição para o
contraditório objeto Brasil. No tom jocoso, é visível a perplexidade e a falta
de respostas. Ainda hoje permanece o desafio: "Brasil, mostra a tua cara!" Que
cara é esta?
Entre nós ocorre um trágico desencontro entre o regime político e a
sociedade civil. Mário de Andrade constrói uma imagem genial a respeito
dessa "dissintonia", quando compara a sociedade com o elemento ar e o Estado
com o sólido. A falta de composição entre esses elementos é que iria gerar o
eterno desencontro entre a sociedade e o Estado. Em contraposição, Mário cita
o exemplo da Europa (mais pat1iculannente a Alemanha) que representaria o
elemento terra; temos, então, solidez de raízes, consistência, profw1didade. 53
Resumindo: o Brasil é vólatilização, fragmentação, enquanto a Alemanha
representa o compacto e a unidade.
Essa ênfase às raízes e esse anseio por um "mundo de fixidez" (entendido
aqui como realidade) têm sido argumento recorrente entre os nossos intelec-
tuais, quando se trata da temática do desenvolvimento. A terra é sempre
associada à idéia de pátria, energia criadora, enfim, à própria construção da
identidade nacional. Num país como o nosso, onde essa identidade é altamente
problemática, o imaginário "terra" adquire força inusitada. Como disse Otávio
Paz: a orfandade nos condena à busca incessante das origens, levando-nos a
imaginá-la todo o tempo.
Na versão tupiniquim, o Fausto de Goethe se transfonna em "uma espécie
de "sertanista" que vai levar o desenvolvimento ao interior do país. Realiza-se,
então, a epopéia da integração dos "dois brasis" através de Euclides da Cunha
e Roquette Pinto. Curiosamente, a concepção fáustica de mundo c a idéia de
desenvolvimento trágico acabam fundamentando a nossa vertente de pensa-
mento ruralista. Euclides e Roquette Pinto, como Fausto, sintetizam a figura
do poetll, do cientista e do herói. Da mesma fonna que o personagem de
Goethe, eles realizam um "pacto" coma len·a para que ela se revele ao homem.
Essa identificação dos nossos autores com a figura do Fausto é construída
na década de 50 notadamente por Roquette Pinto. É ele quem vai criar a relação
entre Euclides da Cunha e Goethe sugerindo ser ele próprio o continuador
dessa trajetória luminosa. Assim, todos os ocupantes da sua cadeira na ABL,
passando por José Hipólito da Costa, Sílvio Romero, Euclides, teriam o dom
de serem homens à frente do seu tempo. 54 A sintonia com o Brasil aparece
como uma espécie de pacto, dom mediúnico. Assim, é a .. aimil da nação" que
inspira esses autores com a sua sabedoria milenar. Não é um homem que fala,
mas a própria alma da nação, argumenta-se. Daí o caráter "atemporal" dessas
obras: fora do tempo, fora do ser e por isso em sintoni a com a nação. Esses

137
traços são típicos da narrativa mítica que se propõe, segundo a visão de Platão,
superar o empírico e o temporal na busca da verdade. 55
Esse prisma romântico que delega ao herói (intelectual) a missão do
desenvolvimento é uma das afinidades que os nossos autores buscam na obra
de Goethe.
A idéia de desenvolvimento rápido e heróico também é uma outra afinidade
sensível. Berman56 chama a atenção para o fato, mostrando que nos países
subdesenvolvidos essa utopia desfruta de grande aceitação. Procurando quei-
mar etapas para alcançar o estágio de desenvolvimento industrializado, esses
países se lançam numa verdadeira corrida contra o tempo. Na década de 1950
essa idéia aparece claramente no famoso slogan "50 anos em 5". Poderia haver
metamorfose mais heróica do que a proposta pelo govemo JK?
O outro traço capaz de sugerir semelhanças é a questão do componente
trágico do desenvolvimento. A rapidez do processo não mede conseqüências.
Há sempre os que ficam para trás. Esses são muitas vezes brutalmente
sacrificados. São os famosos "heróis anônimos". Dentro desse contexto, o
Brasil aparece como um imenso canteiro de obras que força os seus habitantes
a se mudarem para as famosas frentes de trabalho. Como não lembrar dos
"candangos" que acorreram em massa para trabalhar na construção de Brasí-
lia? Da noite para o dia foi produzida tuna cidade arrojadamente moderna. E
bem no coração do Brasil...
Em Os anos JK, Sílvio Tendler explora bem o caráter simbólico de que se
revestiu a fundação de Brasília. Na ocasião o próprio presidente se metamor-
foseou em pioneiro, comandando uma verdadeira caravana que ia fundar a
nossa capital. Reeditava-se a famosa epopéia bandeirante! Só que desta vez a
caravana ia motorizada, numa verdadeira frota de DKWs. Essa trajetória
heróica em direção ao interior inclui Euclides da Cunha, Roquette Pinto e JK. ..
Finalmente, há um terceiro elemento que decididamente parece ter seduzido
os nossos intelectuais: a síntese fáustica entre pensamento e ação. O
descompasso entre essas esferas é típico dos países subdesenvolvidos, onde o
intelectual nonnalmente se encontra isolado da vida política e social. Fausto
representa a exceção. Na sua terceira metamorfose, ele consegue finalmente
unir os rumos de sua vida pessoal às demais forças sociais. Entrando em
comunhão com a sociedade, projetando os seus sonhos nela, Fausto deixa o
seu pequeno mundo solitário por horizontes mais amplos. Essa questão é
particularmente sensível aos nossos intelectuais. Historicamente eles sempre
se propuseram superar a cisão entre vida intelectual e política, auto-elegendo-
se como "intérpretes" da nacionalidade. As idéias de missão e de sacrifício
quase sempre estão subjacentes a essas reflexões.
Na década de 50 isso é claro. Os intelectuais aparecem como elementos
destinados, ou melhor, predestinados a conduzir o país ao desenvolvimento.
Já vimos como isso ocorre. É através do engajamento político que é feita a
conscientização das massas. Sacrificando seus interesses pessoais e até mesmo

138
seus dons "superiores", o intelectual se submete à causa nacional. Esta causa
é o povo ...
Dentro desse contexto, o povo passa a encarnar a categoria da autenticidade,
que pode ser situada ou num passado mítico - conforme os intelectuais da
ABL -,ou no futuro glorioso- conforme a análise isebiana. Já vimos que
essa idealização do popular não se sustenta no cotidiano. Da mesma forma que
a utopia desenvolvimentista dos anos 50 vai se inspirar em grande parte no
romantismo goethiano (desenvolvimento rápido, heroísmo, tragédia), também
a concepção do popular será romântica. Assim, ela aparece sempre associada
à idéia de essência, pureza, alma. Na realidade, a década de 50 se caracteriza
por uma profunda ambigüidade no que se refere à relação entre o rural e o
urbano. O projeto fáustico com as suas maquetes grandiosas, indústrias fume-
gantes, anéis rodoviários, tende a ver o rural como mero enclave no desenvol-
vimento. Entretanto, esse pequeno mundo continua a ser idealizado como
matriz e essência da nacionalidade.
Para se falar dessa essência, a metafísica é o discurso mais adequado.
Roquette Pinto não encama ele próprio a alma da nação? Não é com base na
fundamentação mítica que os nossos autores buscam dar um caráter "atempo-
ral" às suas obras?
Estamos em pleno domúúo do discurso mítico, do tempo primordial, enfim,
das origens metafísicas da nação. O nosso interior- a mãe pátria - é esse
espaço primordial que vai abrigar a alma da nação. Distanciando-se do solo
histórico, erigindo-se em natureza, é possível, então, encontrar a essência da
nação, a sua face verdadeira e pura.
Já a outra face- o urbano- representa a aparência, o grotesco. Lembre-
mos da discussão sobre a validade do teatro de revista. Nela, o popular aparece
sempre como elemento destoante, que viria prejudicar a construção de um
"teatro sério" e de uma "dramaturgia do homem brasileiro". Que homem é
esse? Sem dúvida, trata-se de uma entidade metafísica, já que é composto de
alma, espírito e intelecto.
Ao trazermos esta discussão sobre a chanchada, o nosso objetivo não foi
simplesmente vê-la como canal de contestação à ordem vigente. Seria uma
visão no mínimo ingênua, considerando-se a ambigüidade de que se reveste a
comicidade. Se a chanchada pôs em cheque alguns valores consagrados na
época, ela também reforçou outros ligados ao poder, conforme já foi visto. A
questão que chama a atenção em toda essa polêmica é a dificuldade de integrar
o popular, visto sempre como ameaça de retrocesso. É clara a cisão entre o
espaço cotidiano e o espaço acadênúco, atiístico, político. É como se essas
esferas não pudessem se tocar sob o l"isco de provocar uma catástrofe. Há uma
linha divisória tentando ordenar a "cidade das letras" (teatro sério, cultura
superior, elites, dramaturgia nacional) e a "cidade real" (teatro-diversão,
barbárie, povão, achincalhamento). A expressão "intelectuais da praça Tiran-
dentes", no seu tom jocoso, denota claramente a idéia de invasão de espaços.

139
Afinal de contas, quem são essas pessoas que se metem a "fazer arte" para o
povo?
Esta nossa cisão cultural e a dificuldade de absorver as "alteridades" é uma
questão que pede uma reflexão mais cuidadosa. Há pouco tempo um fato nos
mostrou o quanto essas idéias ainda são correntes. A reaparição de Dercy
Gonçalves, num especial da TV Globo, reencenando a chanchada, deu margem
a uma verdadeira polêmica na imprensa. O que estava em discussão era o lugar
do palavrão e da pornografia. Subjacente a essas questões estava uma outra: o
que é arte lícita, o que deixa de sê-lo? Dentre os depoimentos, há um particu-
larmente interessante: o de uma mulher que se mostra revoltada pelo fato de a
pornografia ter invadido o vídeo. Até ai nada demais. O que chama a atenção
é a sua conclusão enfática: "O obsceno deve flcar restrito ao Cinema Vitória
ou à praça Tiradentes. "57
Mais uma vez comparece o argumento da cisão cultural: arte versus não
arte, teatro sério versus teatro diversão, elites versus povão, centro versus
periferia.
No final da década de 60, o Teatro Oficina, encenando O rei da vela, tenta
reavaliar essa questão. 58 O grupo se propõe fazer uma "arte sintese de todas as
artes e não artes", incluindo circo, show, teatro de revista etc... Através do
humor grotesco, da "esculhambação", do "antiteatro", o Oficina tenta expres-
sar a nossa "chacrissima realidade nacional". Realidade esta cheia de contra-
dições, onde não há mais lugar para a utopia de um país futuro, conforme
profetizavam os dourados anos 50. A visão romântica do popular nos empurra
para a ausência fantasmagórica, verdadeiro vácuo no tempo:

"Os fazendeiros do ar... eles semeiam roças de pura ausência e o estranho gado que pela
noite adentro ainda campeiam é um lembrar do futuro, já passado." 59

Notas
1 Nosso século, 1945/1960. São Paulo, Abril Cultural, 1980.
2 Nascimento, Abdias do. O negro revoltado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. p.
9-12.
3 O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) foi criado em julho de 1955 como
órgão do Ministério da Educação e CUltura. Foi um dos núcleos mais importantes da
elaboração da ideologia nacional desenvolvimentista que marcou a política brasileira desde
a morte de Getúlio Vargas (1954) até a queda de João Goulart (1964). Entre os formuladores
dessa ideologia estão Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos,
Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré. Ver Dicionó.rio histórico-
biográfico brasileiro: 1930-1983, Beloch, Israel & Abreu, Alzira Alves de. coord. Rio de
Janeiro, Forense-Universitária; CPDOC/FINEP, 1984, v. 2.
4 Goldfeder, Miriam. Por túís das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1980. p. 56-7.
5 Ver Catani, Afrânio M. & Souza, José I. de Melo. A chanchacla no cinema brasileiro.
São Paulo, Brasiliense, 1983. v. 76: Tudo é história; e Nosso século, 1945/60. São Paulo,
Abril Cultural, 1980.

140
6 Machado, Carlos. Depoimento Rio de Janeiro, SNT, 1977. v.3.
7 Sodré, Muniz. A máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. Rio de
Janeiro, Achiamé, 1983. p. 21.
8 Amádio, José. Cine-revista. O Cruzeiro, p. 128, 12 maio 1956.
9 Sobre o assunto, ver Pereira, Victor Hugo Adler. Momento teatral - cultura e poder
nos anos quarenta. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro, PUC, 1981. p. 54; e Catani,
Afrânio. op. cit. p. 57.
10 Michalski, Yan. Teatro. 1950 Almanaque. Rio de Janeiro, lndex, 1985. p. 198.
li Pereira, Victor Hugo Adler. op.cit. p. 70.
12 Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo, Hucitec, 1987. p. 17-9
13 Neves, Luiz Felipe Baeta. O paradoxo do curinga e jogo do poder & saber. Rio de
Janeiro, Ach.iamé, 1979. p. 47.
14 Francis, Paulo. Entrevista a Gustavo Dória. Revista da Semana, p. 42-3,29 jun. 1957.
15 Ver, a propósito, Velloso, Mônica Pimenta. As tradições populares na belle époque
carioca. Rio de Janeiro, Funarte, 1988.
16 A propósito consultar Pereira, Victor Hugo Adler. op. cit. p. 54, e Lobo, Fernando.
Humoresque. Revista da Semana, p. 19. 8 set.1956.
17 Francis, Paulo. Teatro popular e teatro popularesco, Revista da Semana, p. 46-7,6 abr.

1957.
18 Consultar, a propósito, as entrevistas publicadas em 9 fev. 1957, 16 fev. 1957, 15 jun.
1957, 29 jun. 1957 e 8 jun. 1957 na Revista da Semana.
19 Paulo Francis polemiza com Pascoal Carlos Magno que defende a importância do teatro
experimental brasileiro. Ver Revista: teatro para o povo. Revista da Semana, 30 mar. 1957.
20 O teatro de equipe no banco dos réus. Revista da Semana, p. 40-1,21 jan. 1956.
21 Catani, Afrânio. op.cit. p . 78-9.
22 Rama, Angel. A cidade das letras. São Paulo, Brasiliense, 1985, p.56; e Rio, João do.
A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro, Secretaria Murucipal de Cultura, 1987.
2 3 Sobre o assunto, ver Forte, Herbert Parentes. Psicologia da gíria, Letras e Artes, p. 7,

jul. 1951; e o Dicionário de brasileirismos. Revista da Academia Brasileira de Letras, v.81.


jan./jun. 1951.
24 Vianny, Alex. Ciclo de debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro, Inúbia, 1976,
p. 29. Coleção Opinião.
25 Entrevista à TV Bandeirantes em 19maio 1991.
26 Pereira, Victor Hugo Adler. op. cit. p. 97.
27 Catani, Afrânio. op. cit. p. 24-5.
28 O cinemascope matando o teatro ... , A Noite , 3 jan. 1956.
29 A arte ameaçada de desaparecer - diz Villa-Lobos. Letras e Artes, p. 6-7, 8 abr. 1951.
30 Leite, J.R. Teixeira. Livro versus imagem. Revista da Semana, p. 30, 28 abr. 1956.
31 A propósito, consultar o trabalho de Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira;
cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1988. ·

141
-----------------------·
32
Bemardet, Jean Claude. Brasil em tempo de cinema; ensaio sobre o cinema brasileiro
de 1958 a 1966. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967. p. 30.
33 Cândido, Antônio. Os brasileiros e a literatura latino-americana. Novos Estudos Cebrap,
p. 58-68. dez. 1981.
34 A propósito, ver Bardi, Pietro Maria. Artes plásticas. 1950 Almanaque. Rio de Janeiro,
Index, 1985. p. 26-64.
35 Bernardet, Jean Claude. op.cit. p. 31. O destaque é do próprio texto.
36 Berlin, Isaiah. Herdereo iluminismo. In: J!ictore Herder. Brasília, UnB, 1982. p. 142-3.
37Morse, Richard. O espelho de Próspero; cultura e idéias nas Américas. São Paulo,
Companhia das Letras, 1988.
38 Id ibid. p. 53-9.
39 Lira, Marisa. Museu de Artes Populares. Letras e Artes, p. 9, 19 ago. 1951, e Baeta
Neves, Luíz Felipe. Uma caçada ao zôo - not:1s de campo sobre a história e o conceito
de arte popular. In: O paradoxo do curinga e o jogo do poder & saber. op. ciL p. 40-6.
40 Almeida, Renato de. Enigmas populares. Letras e Artes, p. 4. 6 ago. 1950.
41 Peixoto, Alcione Fernandes. O povo capturado na apreensão do Brasil - urna releitura
dos estudos brasileiros do folclore 1945-64. Dissertação de mestrado. Niterói, UFF, 1985.
42 Gustavo Barroso entra para a ABL em 1923, morrendo em 1959. A sua produção
intelectual destaca-se inicialmente por um caráter marcadamente anti-semita. Só mais tarde
é que vai se dedicar aos escritos folclóricos.
43 Adeus da Academia Brasileira a Gustavo Barroso. Revista da Academia Brasileira de
Letras, v. 98, p. 103-6.jul.fdez. 1959,
44 Momigliano, Arnaldo. L'histoire ancienne et I' antiquaire. In: Problemes de l'his-

toriographie ancienne et moderne. Paris, Gallimard, 1983. A relação entre os intelectuais


folcloristas e antiquários também é feita por Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro
& Vilhena, Luis Rodolfo da Paixão. Traçando fronteiras: Florestan Fernandes e a margi-
nalização do folclore. Estudos Históricos, n. 5, 1990 (História e Ciências Sociais).
45 Este é o pseudônimo através do qual Gustavo Barroso assina uma coluna no Correio
Paulistano na década de 20. Possivelmente para contrapor-se ;l figura de João do Rio (Paulo
Barreto),já que as suas idéias contrastam visivelmente com as daquele autor. João do Norte
sempre defende o interior do país como a matriz da nacionalidade brasileira.
46 Boas, Gláucia Vi lias. Visões do passado: comentário sobre as ciências sociais no Brasil
de 1945 a 1964. Trabalho apresentado no IX Encontro Anual da ANPOCS, 1987.
47 Sobre o assunto, ver O rom:~ntismo alemão. Letras e Artes, p. 10, 13 jan. 1952; Maurois,
André. Por que escrevi a vida de George Sand. Letras e Artes, p.4, 24 ago. 1952; Le joumal
de Roma in Rolland. Letras e Artes, p.6, 4 jan. 1953; Sousa, Arlindo de. Simbolismo de
fundo religioso pré-cristão. Letras e Artes, p.lO, 13 jan. 1952, e Almeida, Renato de.
Folclore, disciplina de amor. Letras e Artes, p.4, 20 ago. 1950.
48 Essa ideologia que associa sentimento-nação via geografia constitui urna tradição no
nosso pensamento político. Sistematiznda pelo gmpo modernista Verde-Amarelo, ela é
incorporada e efetivada pelo regime autoritário do Estado Novo (1937-45). Consultar, a
propósito, Velloso, Mônica Pimenta. O mito da originalidade brasileira; a trajetória
intelectual de Cassiano Ricardo dos anos 20 ao Estado Novo. Rio de Janeiro, 1983.
Dissertação de mestrado. Ver também de minha autoria, A brasilidade verde-amarela;
nacionalismo e regionalismo paulista. Rio de Janeiro, Textos CPDOC, 1987.
49 Almeida, Renato. O folclore em Alngoas. Letras e Artes, p.ll. 16 abr. 1950.

142
50 Exposição-debate na ABI. Letras e Artes, p. 4. 7 jun. 1953.
51 Batista, Alcione Fernandes. O povo capturaao na apreensão do Brasil: uma releitura
dos estudos brasileiros de folclore: 1945-64. Dissertação de mestrado. Niterói, UFF, 1985.

52 Harvey, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e Últina. Rio de Janeiro,
Zahar, 1987.
53 Sandron.i, Carlos. Mário contra Macunaíma. Rio de Janeiro, Vértice, 1988.

54 A propósito do assunto, consultar Recepção do sr. Álvaro Lins. Discursos acadêmicos


- 1955-56. Rio de Janeiro, 1962. v.l4, p.I99-225; Lima Sobrinho, Barbosa. Roquette e
Euclides da Cunha. Revista da Acaaemia Brasileira de Letras, 88: 154, 1954.
55 Pessanha, José Américo Motta. História e ficção: o sono e a vigília. In: Narrativa -
ficção e história. Rio de Janeiro, Imago, 1988, p. 282-301.
56 Bennan, Marshall. O Fausto de Goethe: a tragédia do desenvolvimento. In: Tudo que
é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p . 37-71.
57 Vale tudo na TV. Jornal do Brasil, 28 set. 1988, p. 1.

58O rei da vela: manifesto do Oficina, setembro de 1967. In: Dionysos. Rio de Janeiro,
SNT, 1982. p. 149-53.
59 Andrade, Carlos Dnunmond de. Viow de bolso. 1955.

143
Utopias de cidade: as capitais
do modernismo
Helena Bomeny*

Mais do que referência historiográfica, os anos JK acabaram se transformando


em uma expressão popular no Brasil. Tempo de cultura, do teatro de revista,
dos bailes e do otimismo ao redor de uma idéia de nação, os "anos dourados",
fonte de nostalgia, inspiraram até seriados de TV. A recuperação dessa magia
no senso comum através de idéias soltas, frases irrefletidas, e mesmo
convicções sobre aquele momento é uma estratégia interessante se queremos
retomar dimensões de projetos que se integraram à vida nacional. O próprio
fato de encontrarmos disponível um inventário de lembranças é indicativo da
importância que o conjunto da sociedade atribui àquela conjuntura. Os anos
JK certamente tiveram este privilégio na cultura brasileira. Passaram para a
memória social como expressão de liberdade, de humor, de florescimento
cultural, de desenvolvimento nacional, de democracia. Tempos de boa recor-
dação - a despeito de todas as acusações que envolveram o acelerado
processo inflacionário -, especialmente pelo que a eles se seguiu, com o
cerceamento da liberdade política e intelectual decorrente do autoritarismo
imposto ao Brasil e a outros países da América Latina pelos sucessivos golpes
militares de direita. Os anos sombrios da ditadura acabaram realçando, por
contraste, o brilho dos anos JK.
No entanto, faz parte da imaginação sociológica suspeitar não só do senso
comum, como dos discursos racionais, teóricos, formuladores e justificadores
de projetos e práticas sociais. Do senso comum, porque a coerência das frases
irrefletidas acaba sendo resultado de atribuição conferida pelos sujeitos ao
sabor de suas vontades particulares, interesses parciais e lógicas de conveniên-
cia. Dos discursos, porque na maioria das vezes seu compromisso com a
coerência sacrifica a compreensão de que a própria coerência de modelos
implica tensões, obrigando-nos a repensar o suposto da harmonia e do consen-
so teóricos. Ou seja, limita-nos o entendimento de que o conjunto articulado
de categorias está sujeito aos efeitos de conseqüências não antecipadas. Ao
primeiro apelo, às atribuições do senso comum, as análises acadêmicas res-
pondem com contrafaces críticas, além de formulação de questões que se
destinam a embaraçar o que vulgarmente se tem como alinhado. Quanto ao
discurso teórico, as análises mais empíricas podem contribuir para problema-

*Socióloga, pesquisadora do CPDOC e professora da UERJ.

144
tizá-lo. As observações sobre as capitais têm, neste texto, esta intenção de
depuramento conceitual.
As análises contidas neste livro fundamentam em dimensões distintas o
sentido dessas linhas de memória, relativizando-as, contrapondo-as a laterais
outras que não as de otimismo ou fortalecendo-as de acordo com as exigências
do procedimento acadêmico. Este texto retoma uma das chamadas do senso
comum a respeito dos anos JK. Os simbólicos "50 anos em 5" tiveram uma
cidade como materialização histórica: Brasília, a capital inaugurada em 21 de
abril de 1960. Simboliza esta cidade o tom que o presidente da República
imprimiria ao país-dinamismo, coragem, tenacidade, pioneirismo desbravador
e audácia, fruto da vontade política associada ao espírito de aventura. As
imagens de época são fonte privilegiada de alimento a este conjunto de valores.
JK se misturava aos candangos, empoeirava-se, inspirava letras de música,
estimulava socialmente o sonho que se tornara seu da ousadia do desenho
arquitetônico moderno. É possível ultrapassar barreiras se a bússola da ação
política são a vontade e a crença na utopia.
Em sua utopia, Brasília faria a ponte entre o projeto moderno de Juscelino
Kubitschek de Oliveira e o modernismo mineiro dos anos 20. Foi daquela
geração de intelectuais mineiros que saíram expoentes da burocracia nacional
como Gustavo Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drum-
mond de Andrade, que tiveram no Estado pós-30 oportunidade única de
institucionalização da experiência vanguardista, tudo com o beneplácito do
Estado varguista. Nunca é demais lembrar que é por indicação de Rodrigo
Melo Franco de Andrade ao então titular da pasta da Educação em 1931,
Francisco Campos, outro mineiro, que o arquiteto Lúcio Costa entra em
contato com projetos que seriam desenvolvidos pelo Estado, e que seriam por
ele, Lúcio Costa, assinados. E Oscar Niemeyer deixa marcada sua presença
nos projetos desenvolvidos pelo Estado por um convite que lhe foi feito pelo
então minisro da Educação, Gustavo Capanema, em uma gestão iniciada em
1934. A cidade capital, construída nos anos 50 com as linhas da arquitetura
moderna, nos leva de volta às heranças de Minas Gerais que, traduzidas no
final do século com a construção de Belo Horizonte, ganham com JK fórum
nacional. O discurso dos republicanos mineiros a respeito da mudança da
capital do estado no final do século passado, e a mística do "economismo" que
. caracterizou o governo do republicano histórico João Pinheiro na primeira
década deste século, têm sua atualização e dimensão nacional com a cons-
trução de Brasília, e com a consagração da mística do "desenvolvimentismo"
de JK. Em outras palavras, a utopia urbana concebida no sonho de Brasília nos
traz de volta a modernidadejmineiridade de JK. 1
Ainda do inventário do senso comum, é preciso salientar outras ligações.
JK cumpriria uma profecia de indiscutível força na recuperação de uma
tradição histórica e política. Ele faria, com uma habilidade incomum, a ponte
entre o velho e o novo Brasil. Seus ··so anos em 5", de que a construção de
Brasília é paradigma, incorporariam o folclore do "Peixe vivo" do acervo

145
cultural da Diamantina mineira, sustentando uma fórmula, nem sempre ob-
servada, seglllldo a qual a cultura se faz pela incorporação, e não pela recusa
da tradição. É possível que esta fórmula tenha sido responsável pela perma-
nência lendária da idéia de estabilidade do governo e da era JK. Aos analistas
não escapou este traço de Juscelino Kubitschek, de mna habilidade que se
estendia à órbita das conexões partidárias, das relações internacionais, e do
cruzamento de forças conservadoras com demandas da oposição. 2
Mas Juscelino Kubitschek selaria o conjunto de atributos a ele conferido
pelo imaginário cultural com a criação da nova capital do país. Brasília viria
l.
como "meta-síntese" das 30 metas iniciais com as quais acenava para a nação
em campanha eleitoral. Em suas memórias, JK atribui ao projeto da capital um
acaso político no episódico comício de Jataí, quando respondia a um virtual
eleitor goiano que o inquiria sobre o cumprimento da promessa de observar na
íntegra a Constituição. Um dos itens da Constituição dizia respeito à transfe-
rência da capital da República para o planalto goiano. "Acabo de prometer que
cumprirei, na integra, a Constituição, e não vejo razão para ignorar esse
dispositivo. Durante o meu qüinqüênio, farei a mudança da sede do Governo
e construirei a nova capital", respondia JK ao aparteante. 3 A nova capital daria
forma ao grande projeto de integrar o país ao mundo moderno em suas linhas
leves e flutuantes que, nas palavras de Niemeyer, manteriam "os palácios como
que suspensos, leves e brancos, nas noites sem fundo Planalto".4 O aparteante
goiano ganhava a tonalidade de uma fala encomendada, pois parece haver uma
sintonia indiscutível entre o ideal desenvolvimentista de JK e a matca urbana
de uma cidade voltada para o futuro, planejada para um tempo infinito em suas
linhas retas e seu traçado racional.

Prefeito de Belo Horizonte entre 1940 e 1945, Juscelino Kubitschek dá


mostras de sua afinidade com projetos urbanísticos ousados e modernos. Deixa
sua marca na construção da Pampulha. JK encomenda ao arquiteto Oscar
Niemeyer um projeto para a construção no bairro da Pampulha de uma área
de lazer de luxo compreendendo um clube náutico com cassino, sala de dança
e uma capela. Já naquele experimento ficaria marcada a ruptura ou a"libera-
ção" de Niemeyer da influência deLe Corbusier e da arquitetura "ortogonal"
do movimento moderno. 5 Este ensaio de ruptura traduziu-se mais tarde em
outro ponto de mediação que fortaleceria o projeto JK. O plano "ortogonal"
de Lúcio Costa para Brasília acolheria as "curvas" de Niemeyer, ou seja, ao
modelo racionalista do desenho urbano misturavam-se a monumentalidade e
a explosão dinâmica dos volumes à maneira de Niemeyer, o que vale dizer, a
dimensão barroca do arquiteto moderno. 6 Mário Pedrosa se refere assim a esta
particularidade de Niemeyer: "As velhas igrejas barrocas de Minas têm algum
sentido no amor de Niemeyer pela forma curva. " 7 A conexão PampulhafBra-
sília estreitaria os nexos entre os dois tempos do modernismo mineiro. Mais
do que esta singularidade, firmaria a importância do modernismo mineiro no
estabelecimento de políticas arquitetônicas no Brasil.

146
A utopia da sociedade moderna enraizada na utopia de uma cidade moderna
vinha de antes: datava, como registro, da Constituição de 1891. Mas desde
muito antes o distante sertão de Goiás entrara na cogitação de Francisco Adolfo
de Varnhagen, historiador e diplomata nascido em São Paulo, depois tomado
Visconde de Porto Seguro, que trabalhou com afmco sobre a idéia de fundar
a nova capital no planalto central do país. Era ·u ma altemativa possível e
atraente de ligar a nação pelo interior. A retomada no século XIX fortalecia
uma tradição mítica de séculos anteriores, de resplandecimento, de imagens
paradisíacas que a região voluptuosamente oferecia pelos rios, lagoas e flores-
tas selvagens. O Planalto Central, além da mítica tradição, era lembrado como
ponto estratégico para a nova capital pela possibilidade de unificar o país de
dispersão e dimensões continentais.
Estudos sobre a transferência da capital recuperam da historiografia, dos
relatos dos viajantes e dos discursos parlamentares os momentos onde mais
calorosamente travou-se o debate, além de resgatar os argumentos utilizados
para justificar o projeto. Desde 1750, a mudança da capital do Brasil para o
interior foi objeto de lentos, exaustivos e repetidos debates e decisões. Benício
Schmidt sintetiza os passos mais notáveis deste trajeto. 8 Antes mesmo da
mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763, a preocupação
com a interiorização do país estava já registrada. Na agenda dos inconfidentes
mineiros a idéia da nova capital se ligava à utopia revolucionária de inde-
pendência e autonomia frente à Corte portuguesa. Legitimava-se também pelo
ideal civilizatório de elevação dos padrões educacionais e de riqueza da nação.
Aos motivos e ideais revolucionários acrescia-se um conjunto de argumen-
tos políticos de forte impacto. A referência aqui são os trabalhos de Varnhagen,
especialmente A questão da capital: marítima ou interior?, publicado em
1877. No centro das preocupações, sublinhava-se a vulnerabilidade do litoral
frente a possíveis invasões estrangeiras. As capitais seguras deveriam estar
localizadas ao longo dos rios, e não nas costas marítimas. 9 Contra o Rio de
Janeiro, mais este argumento imbatível! Havia outros ainda. Também o clima
tropical ampliava o leque de inconveniências que o então Distrito Federal
exibia ao país. E não bastassem esses dois argumentos tão defmitivos e
impactantes contra o Rio de Janeiro, tinha ainda a capital federal que se

- explicar diante da nação pela imagem negativa com que aparecia aos olhos do
país.
Os republicanos de 1889 tinham razões de sobra para a retomada do mito
paradisíaco de uma capital interiorana. Uma delas era a imagem de turbulência
e incontida irreverência da capital do país, o irrefreável e moralmente suspeito
ambiente urbano do Rio de Janeiro, de permanente agitação e desobediência
de uma população incontida, desordenada e agitada. 10 O século XIX, da ciência
e da higiene, do progresso e da indústria, da República e da razão, olhava com
suspeita o desordenamento do Distrito Federal, desconfiando também dos
limites impostos pela obscura e barroca Ouro Preto.

147
A República tratou de registrar a utopia em sua primeira Constituição, e
Minas Gerais cuidou de lhe dar concretude com a criação de Belo Horizonte
em 1897, cidade filha única da República proclamada em 1889. A estrada que
liga Belo Horizonte a Brasília é também aquela que liga dois tempos modernis-
tas a uma origem comum. Recuperar Brasília, portanto, é não só recuperar a
utopia de uma sociedade moderna, mas também retomar da realização moder-
na raízes de uma tradição mais antiga que se atualiza em leituras e projetos
posteriores, mantendo acesa a suspeita de que são inesperados, conflitivos, e
por vezes anteriores os traçados arquitetônicos da modernidade. 11

1. As cidades-irmãs no modernismo

Belo Horizonte e Brasília transformaram-se em bons pretextos para análises e


interpretações sobre o universo urbano produzidas no Brasil e no exterior. O
catálogo de teses sobre cidades tem em um de seus capítulos um conjunto de
reflexões sobre esses experimentos urbanos modernos. Uma avaliação super-
ficial do conjunto chama a atenção para a convergência não só de um apelo
interpretativo marcado por uma espécie de desapontamento, como para a
recorrência de ênfase na categoria espaço como ponto irradiador de incursões
antropológicas, sociológicas e políticas. 12 Das teses sobre Brasília, uma em
especial me chamou a atenção por um dos argumentos do autor que se afma,
a meu ver, com as linhas desta reflexão. Trata-se da obra de James Holston,
The modemist city: architecture, politics, and society in Brasilia. 13 Holston
acompanha de forma minuciosa e densa o processo de realização histórica da
"utopia igualitária" que motivou e fundamentou ideologicamente o projeto dos
modernistas para a construção de Brasília. O estudo que fez das transformações
por que passou a cidade mostrou que seus idealizadores estavam motivados
pela intenção de criar um sistema igualitário de relações de propriedade e de
distribuição dos serviços e vantagens na nova capital. No entanto, o traçado
arquitetônico que retirava da vida urbana o trajeto pelas ruas, o espaço público
das ruas, o encontro dos desiguais em um espaço democrático que a rua
historicamente representa, enfim, nas palavras do autor, "the <death of the
street> revealed fundamental contradictions between the architectural forms of
the modernist city and its egalitarian intentions". 14 Brasília acabaria sendo
prova de uma dupla traição. Nem corresponderia a uma cidade que, desorde-
nada mas gradativamente, ia encontrando suas formas próprias e familiares de
estruturar uma tradição, nem corresponderia ao que os arquitetos haviam
imaginado. A própria concepção do projeto moderno adultera, e até repudia,
valores convencionais a respeito das cidades, concepções tradicionais sobre a
vida urbana. O plano de funcionalidade e de rompimento de hábitos pessoais
e associações coletivas acaba engrossando o rol dos desapontamentos dos seus
habitantes. Os depoimentos recolhidos da primeira geração de brasilienses
conduziu o autor à interpretação de que a utopia moderna teria sucumbido em
uma espécie de efeito perverso, revelando-se no seu oposto.

148
What they rejected in the city's design was its negation of familiar patterns of urban
life.(...) they considered that the standardization of residential architecture produced
anonyrnity among residents, not "equality" as intended. 15

.. James Holston nos traz de volta mn tema já clássico no pensamento


sociológico. A cidade ocidental moderna marca historicamente a primeira
experiência de "igualdade" no sentido em que garante em seu traçado público
a manifestação das diferenças econômicas, dos estilos sociais e das convicções
políticas, além de ser o espaço legítimo da competitividade entre os indivíduos.
É no espaço urbano que ganha universalidade o sentido da cidadania. É na
cidade portanto que se discute, se critica e se vivenda a experiência da
modernidade.
Das múltiplas e nem sempre sonantes expressões da modernidade, a cidade
condensa em seu espaço a soma dos paradoxos, das representações mentais,
das estruturas de relações sociais, jurídicas e políticas referidas ao universo
típico do mundo moderno. O tema da cidade esteve desde sempre associado à
construção da sociedade moderna, ainda que não seja ele restrito ao cenário
das sociedades modernas. Esta referência sociológica tem sua contrapartida
na teoria, e a tipologia weberiana, por exemplo, constrói-se exatamente no
contraste entre experiências distintas: cidades orientais e cidades ocidentais
são pares importantes no conjunto do pensamento sobre cidade. São exem-
plares porque dizem respeito ao maior ou menor grau de desenvolvimento
tecnológico, de racionalização das relações jurídicas, e do grau de autonomia
e universalidade no estabelecimento do pacto regulador das transações urba-
nas, nos campos de atividade próprios do mundo do mercado burguês. Os
textos clássicos sobre cidade nos lembram sempre a categoria cidade antiga,
já consagrada na literatura por Fustel de Coulanges, referência de onde se
construiu a antinomia também clássica na literatura sociológica entre cidade
antiga e cidade moderna. Assim, se a pólis grega de um lado nos lembra o ideal
de democracia no exercício da cidadania, de outro nos remete a mn universo
de vida urbana ainda movido segundo regras próprias de uma cidade pequena,
em certo sentido distanciada do ideal universalista, impessoal e anônimo das
grandes metrópoles individualistas modernas. 16 A pólis grega não se inclui no
ideal "igualitário" que presidiria o projeto político das cidades ocidentais
caracterizadas como espaço público de exercício da cidadania. O ideal de
cidade moderna constrói-se sobre um princípio de autonomização de relações,
e inclusive no fato de que seu habitante é um homem que não supre suas
necessidades com o cultivo próprio. Por esta razão, a extensão das vantagens
urbanas aos cidadãos e o acesso dos indivíduos aos múltiplos bens e serviços
da cidade, mais do que ideologia, são pré-requisitos à realização da moderna
concepção de cidade ocidental. O mercado o intercâmbio regular, a racionali-
zação de procedimentos são dimensões importantes integrativas ao moderno
conceito de cidade, e por extensão, à própria concepção de modernidade.
Tendo em mente esta referência, é possível concordar com a afirmação de
Mário Pedrosa de que Brasília seria o produto "mais acabado de uma época

149
prevista pelo historiador Henri Pirelllle, que viria coroar a evolução dessa
entidade histórica que é a cidade, desde a pólis grega e a comuna medieval". 17
Pedrosa está se referindo ao fenômeno histórico de poder ser a cidade produto
de uum fato da natureza" ou da intervenção da agência humana com o
planejamento e a construção. Brasília comporia a"época mais avançada" onde,
através do método, o homem avança sobre o controle da natureza, marcando-a,
redefmindo-a com paisagem inteiramente nova, objeto da criação humana,
malgrado as desvantagens de clima e de solo. Uma decisão do espírito de
empreendimento que registra na paisagem virgem a mão do homem.
Brasília seria portanto exemplo de uma moderna concepção de cidade no
que tal concepção corresponde à intencionalidade racional do homem na sua
relação com a natureza. A moderna cidade ocidental, no entanto, chega também
à estatura de conceito sociológico por outras injunções, que em certo sentido
guardam correspondência com a dimensão acima sublinhada. A concepção
moderna de cidade esteve comprometida com o ideal da burguesia de criar um
código racional de administração que, atravessando fronteiras, ligasse cida-
dãos em tomo de princípios universais que os igualassem juridicamente como
cidadãos na relação uns com os outros, e não através da mediação das castas,
clãs ou grupos. A capacidade da burguesia de construir relações inteiramente
novas e independentes das estruturas vigentes de dominação fez com que Max
Weber se referisse à relação de dominação que daí resultou como dominação
ilegítima, ou seja, fora da constelação de legitimidade definida segundo a
estrutura de poder vigente. Esta é a particularidade da cultura ocidental, e a
novidade que a cidade medieval apresenta como acontecimento único. A
cidade moderna exprime de forma paradigmática a mudança que se opera no
mundo das relações sociais na direção do individualismo, da raciona tização,
da diferenciação do universo das profissões, da abertura de caminhos e
interações econômicas, sociais e políticas.
Portanto, dizer que os homens que estiveram às voltas com um projeto
modernizador retomaram o cenário da cidade é dizer quase o óbvio, dada a
vinculação estreita que as tradições intelectual e política revelam entre moder-
nidade e ambiente urbano. Os políticos do final do século XIX foram por certo
testemunhas vivos e artífices desta vinculação. As reformas urbanas a que
procederam entraram em nossa memória social como projetos de repercussão
aguda. Cidades são expressão de estágios de modernidade. Se sujas, sinuosas,
apertadas, em caracóis (e por que não dizer barrocas?), revelam o quão
distantes podem estar do ideal de infinitude e universalismo próprio dos
centros metropolitanos. A rarionale das reformas encontrava repouso e reforço
no próprio senso comum, na medida em que recorrentemente se estabelecem
correspondências entre estrutura urbana e grau de modernidade. E os exemplos
de grandes reformas ocuparam significativo espaço na literatura. A Viena dos
arquitetos Sittee e Wagner, a Paris de Haussmann, a São Petersburgo de Pedro,
o Grande, e a Amsterdã de Berlage são famosas experiências de vanguarda
realizadas graças ao envolvimento maciço do setor público. 18 São ainda as

150
nobres ante-salas daqueles ensaios reformadores e modernistas do terceiro
mundo onde se incluem o Rio de Janeiro de Pereira Passos, a Belo Horizonte
de Aarão Reis, e a nova capital do Brasil, Brasília, de Lúcio Costa e Oscar
Ni'emeyer. Esses exemplos têm-se constituído em motivos de análises compa-
rativas entre versões que disputaram a primazia no estabelecimento de projetos
para a sociedade moderna. Em algwna dimensão ambicionaram emparelhar-se
aos clássicos exemplos de Paris, Londres, Nova Iorque, Berlim, Viena e São
Petersburgo, caixas de ressonância de espetáculo e pobreza, de liberdade e
anomia, centros irradiadores de política, economia e cultura.
A associação entre construção/reconstrução urbana e modernização pros-
segue em análises mais contemporâneas. Marshall Berman se refere à cons-
trução de São Petersburgo como "o exemplo mais dramático, na lústória
mundial, de modernização draconiana concebida e imposta". 19 Uma cidade
que deveria funcionar como uma "janela para a Europa", descartando Moscou
como capital, com todos os seus séculos de tradição e aura religiosa, São
Petersburgo foi planejada, projetada e organizada inteiramente por arquitetos
e engenheiros estrangeiros vindos da Inglaterra, França, Holanda e Itália. Seu
desenho era geométrico e retilíneo, "padrão de planejamento urbano ocidental
desde a Renascença porém sem precedentes na Rússia, cujas cidades eram
aglomerações, sem qualquer planejamento, de ruas medievais, tortas e sinuo-
sas".20
Angél Rama também se ocupou com o lema das cidades, agora no contexto
latino-americano. O sonho de razão que embalou as iniciativas de moder-
nização urbana teve sua tradução no Brílsil com nossas duas cidades planeja-
das, e por isso Belo Horizonte funcionaria como experimento mental e his-
tórico da realização futura da Brasília de Juscelino Kubitschek. A mudança da
capital do estado de Minas Gerais com a construção de Belo Horizonte
mobilizou os republicanos mineiros do final do século passado. Entre os
políticos que defendiam a mudança da capital encontramos João Pinheiro com
o projeto de modernizar c industrializar Minas Gerais, centralizando racional-
mente sua administração e unificando política e culturalmente o estado mar-
cado pelo divisionismo de grupos que ameaçavam aquela unidade da recém-
proclamada República com o separatismo, um fantasma político que marcou
a conjuntura do século XIX. 2 1 A nova c<~pital representaria um novo centro
econômico, e sua localização poderia significar a vitória de um dos setores da
oligarquia mineira. Enquanto as forças políticas tradicionais das regiões norte
e centro se organizavam para manter o poder, a região sul e a Mata, com o
argumento da virtual força do café para a economia mineira e insatisfeitas com
a marginalização imposta pelos grupos dominantes de Ouro Preto, não escon-
diam mais a intenção de assumir o controle político do estado de Minas Gerais.
O café, em sua fase de ascensão, dava novo impulso à economia mineira,
agravando ao mesmo tempo o isolamento da tradicional Ouro Preto. Em 1894,
Afonso Pena, governador do estado, nomeou o engenheiro Aarão Reis, resi-
dente no Rio de lilneiro e procedente do P<~rá, para chefiar a comissão de

151
construção da nova capital. Aarão Reis é sempre lembrado por sua formação
positivista, à qual se atribui o estilo centralizador impresso no desenho arqui-
tetônico da cidade. Afinal, não seria a prova de que a ciência deve e pode mudar
o mundo? Não seria evidência de que, pela ciência, seria possível controlar as
desordens e os conflitos entre desiguais em interação nos espaços misturados
das tradições urbanas convencionais?
A nova cidade seria construída onde antes existia o povoado de Belo
Horizonte, antigo Curral Del-Rei. A planta dividia a cidade em três setores: o
primeiro, urbano, tinha avenidas largas, lotes e quarteirões bem planejados,
infra-estrutura sanitária, e era cercado fisicamente pela avenida do Contorno;
o segundo, suburbano, era traçado em ruas estreitas e quarteirões irregulares,
e ao terceiro, fmalmente, reservava-se a periferia, destinada à pequena lavou-
ra.22 A construção da cidade trazia manchas que a sociedade teria que assimilar.
Despossuídos de toda ordem, desclassificados de toda espécie compunham o
conjunto dos milhares de operários da construção civil a serviço do projeto
moderno.
De fato, o projeto da cidade trazia de início a marca do que se chamaria
"cidade espetáculo", com o predomínio do princípio da segregação físico-es-
pacial a criar barreiras à participação e uso do ambiente urbano por camadas
da população que para ali se dirigia. O desenho parecia não responder his-
toricamente aos desafios de um ambiente de moradia. E Belo Horizonte parecia
não.selivratmuito cedo de seu pecado original. Foi, de úúcio, e pot um tempo
não desprezível, um "aglomerado de imigrantes". Um desafio que respondia
com coerência à dupla função com a qual fora construída: constituir-se no
centro politico unificador de um estado marcado, no século XIX, pelo espectro
do separatismo e, simultaneamente, ser o centro intelectual de onde se ir-
radiaria, corno capital, o caldo cultural destinado a ser a síntese de toda uma
região. Não por acaso, foi batizada originalmente Cidade de Minas. Fatia
confluir culturalmente, em forma de unidade, a diversidade que historicamente
acompanhou a região. O papel unificador de Belo Horizonte, cidade criada por
artifício da razão, corresponderia simbolicamente ao discurso de apelo à voz
uníssona de Minas no cenário nacional. O ideário de uma região poderia ser
estendido para toda a Federação. A mineiridade se libertava das cercas do
provincianismo regional e extrapolava em um projeto universal, de cunho
cosmopolita, sustentado no ideário urbano moderno próprio dos centros difu-
sores de cultura e política. A idéia de síntese foi concebida junto com o projeto
da capital não por casualidade, mas sim em resposta às antinomias e conflitos
que uma tradição de diversidade de povoamento, de interesses e influências
legou ao estado de Minas Gerais.23
Nascida da confiança iluminista nas operações racionais, Belo Horizonte
veio a se transformar em evidência do que Angél Rama chamaria de "cidade
letrada" - o "sonho de uma ordem", o modelo concebido pela "inteligência",
na convicção de que o processo da razão seria capaz de impor medida e ordem
a todas as atividades humanas. 24 Uma idéia de que pela ordem, traduzida no

152
contexto urbano por planejamento, era possível alcançar o princípio e a
estrutura da modernidade na vereda da ciência. O contraste com o projeto
infmito da razão científica do planejamento estaria em Ouro Preto, com suas
ruelas estreitas e sinuosas, com a falta de perspectiva pelo traçado desigual das
ladeiras. Além disso, Ouro Preto não estava sendo capaz de concentrar o fluxo
de negócios que o estado produzia, dispersa e assistematicamente. As ligações
se faziam entre os núcleos fragilmente unificados por um setor externo e
cidades outras que não a capital. Se um consenso havia entre os políticos e
administradores, dizia respeito ao esgotamento da velha capital para responder
aos impulsos dinamizadores dos setores da produção em Minas.
Belo Horizonte marcava também o contraponto a uma tradição rural recor-
tada pelos sítios, fazendas e roças das minas e sertões dos Gerais. Um sonho
urbano de razão segundo o qual, pela razão científica, seria possível o aperfei-
çoamento social. Mas o sonho não pararia aí. Poderia ainda ser a tentativa de
conciliar divergências, "atraindo para mn centro de gravidade neutro as áreas
mais diversificadas",25 na medida em que o plano original de integração era
desafiado permanentemente pela realidade distinta das Minas e das Gerais. A
rede viária de transportes que servia ao estado denunciava isso. Ela buscava o
exterior e não confluía para o seu centro político, administrativo e geográfico:
buscava o caminho para o mar, nos adverte Sylvio de Vasconcelos, visando o
Rio de Janeiro. As comunicações correspondiam ao status local: as Minas
ligadas ao Rio, as Gerais centripetamente interessadas nos estados vizinhos,
mais precisamente, nos sertões que faziam divisa com outros estados - o
sertão de Paracatu na fronteira com Goiás; o sertão de Jequitinhonha na
fronteira com a Bahia; e o sul de Minas Gerais com o sertão da serra do Mar,
Rio de Janeiro. Belo Horizonte nasceu com esta missão integradora do próprio
estado de Minas Gerais.
A transferência da capital do país foi igualmente legitimada pelo ideal de
integração. Também aqui o argmnento se sustentava pelo contraste, desta feita,
com o Rio de Janeiro. Desde muito antes, a utopia de integração embalava o
projeto de transferência da capital. Procurava-se um lugar central,"neutro" e
distinto da tmnultuada Rio de Janeiro, Distrito Federal no final do século, pólo
da gravitação política nacional. Também como no caso da capital de Minas
Gerais, a mudança da capital do Brasil esteve de início associada ao de-
senvolvimento do projeto republicano. E a dimensão geográfica contida nos
projetos respondia em ambos os casos ao argumento de unidade territorial,
quer na Belo Horizonte de fim de século, quer na Brasília dos anos 50-60.
Compreende-se portanto a recorrência à categoria espaço, chave nas interpre-
tações contemporâneas de matizes diversos, antropológico, sociológico, polí-
;:ico,demográfi.co.
As utopias urbanas criadas sob o caldo de cultura político da integração, da
criação da nacionalidade, funcionavam ainda como recurso estratégico para
manter na República dispersa o ideal de centralidade e unidade que estabilizou
o império. Os debates parlamentares travados no Congresso Nacional na

153
década de1890 são ilustrativos da força do argumento da "civilização irradiada
de um centro".26 A estabilização da República em 1894 arrefeceu a urgência
da transferência da capital do país. E porque menos conflituada, a capital do
país recuperou a imagem de paraíso de beleza natural que a caracterizou dentro
e fora do país na combinação extravagante e rara de mar, montanha e floresta
dentro do espaço urbano. 27 E como apropriadamente indica Edgard Ferreira
Neto, a política de Campos Sales de redistribuir o poder para os estados,
retirando do Distrito Federal a atenção até então concentrada, apaziguou
momentaneamente os ânimos que se insurgiam contra o ambiente poluído e
amoral do Rio de Janeiro. Se o debate sobre a mudança da capital se secunda-
rizou, seu lugar na agenda foi ocupado pelo projeto da reforma de Pereira
Passos - a ciência a serviço da modernização da "maravilhosa" mas velha e
contaminada capital do país. O resultado da reforma confirmou a permanência
do Distrito Federal na "Cidade Maravilhosa", agora com sinais modernos e
civilizadores das largas avenidas modeladas segundo padrões de urbanidade
parisiense. A capital se manteve até que outro sonho ousado, de indiscutível
modernidade, se impôs pelas mãos e rédeas do governo JK. Minas Gerais
voltaria a desempenhar no urba1úsmo o papel que desempenhara na política
educacional. Viriam daquele estado lideranças políticas e intelectuais que
sistematizariam e implementariam o que por dois séculos se dispersava nas
múltiplas falas da política, do parlamento, da modernidade arquitetônica. O
papel estratégico que a política mineira desempenhou na institucionalização
do Estado Nacional pós-30 seria atualizado nos anos 50 com os apelos e a
política de abrir o país para o mercado internacional. O passaporte pata esta
viagem tinha enquadrada como foto a ambiciosa construção de uma cidade, e
como fato a troca definitiva do endereço para onde seria enviada a corres-
pondência do governo.

2. Descaminhos da igualdade: de volta a Tocqueville

Nossas utopías urbanas nos deixaram como herança curiosidades intelectuais,


através das quais podemos estabelecer conexões sociológicas interessantes.
Um dos paralelos possíveis nos é indicado por Holston nos depoimentos
críticos da primeira geração de brasilienses. A "cidade da igualdade" havia
produzido o isolamento, a hierarquização, a dificuldade de usufruir das van-
tagens modernas pelas quais seus habitantes foram seduzidos. Brasília naufra-
garia, aos olhos de sua primeira geração, no efeito perverso da traição, do
adulteramento da utopia. Uma"cidade sem gente" porque, do confronto origi-
nal entre o discurso igualitário de seus fundadores e o discurso de elite dos
tecnocratas do governo,28 sobrepuseram-se, como cotidiano, o isolamento
burocrático, a hierarquização por cargos e funções na máquina governamental
e o segregacionismo dos brasilienses, resultado de um "desvio real" da
intenção ideal de criar, no desenho arquitetànico das superquadras, a sociali-
zação e o conforto social a que a população teria direito. Na concepção ~deal,

154
conduzir ao restabelecimento da rigidez das hlerarquias e de estruturas de
privilégios conferidos pelos cargos e funções burocráticas.
Esta motivação central da reflexão tocquevilliana tem sua correspondência
teórica na eleição feita por Max Weber da racionalidade como dimensão crucial
nas modernas sociedades ocidentais. Uma dimensão que, originada na esfera
das relações econômicas, estende-se como valor às outras regiões da vida
cotidiana. A racionalização como valor pode resultar empiricamente na "jaula
de ferro", ou seja, na irracionalidade de interações movidas segundo procedi-
mentos formais distanciados dos fms para os quais são construídas, e segundo
os quais deveriam ser balizadas.
A referência de Tocqueville é a experiência francesa, e o contraponto
modelar viria com a Inglaterra, modelo que de tão particular acaba sendo mais
exceção do que recorrência.30 Em Max Weber não há propriamente um
contraponto hlstórico empírico que tenha sido bem-sucedido, mas há o alerta
sobre a convivência permanente e tensa entre racionalidade substantiva e
racionalidade instrumenta/. 31 Mantém-se também em Weber como ousadia no
mundo contemporâneo balancear as tendências entre esses dois móveis da ação
social moderna.
Não foi gratuita a referência à dimensão espacial neste texto. É ela quem
nos traz a chave com a qual estabeleceremos as correspondências teóricas
prometidas. É Mário Pedrosa quem anuncia a primeira evocação, o sentido
geral moderno da utopia que inspirou a Nova Cidade capital do Brasil:

"A cidade ideal moderna não se coaduna mais nem com a centralização militar do poder
à la barroca, nem com o gosto pequeno-burguês do subúrbio, nem com o desenvolver
aos deus-dará do liberalismo. Ela quer tuna estrutura humana através da qual expandir-
se e restaurar a coesão social perdida. Sonha por isso em conciliar a ordem, a técnica
urbanística mais avançada, um desenvolvimento planejado, com o calor humano e o
convívio social direto de seus habitantes, como na época da comuna. " 32

Os qesafios se aproximam daqueles anunciados por Tocqueville e Weber.


O sentido moderno da arquitetura, o desafio moderno consiste em conciliar
arte e técnica (liberdade e igualdade?), arte e funcionalidade. É provável que
a equação arquitetônica das capitais modernistas tenha pendido a favor do
desequilíbrio, o que confere legitimidade às dezenas de interpretações críticas
do resultado da utopia traída, frustrada. Mas não é razoável, nem conceitual-
mente sustentável, retirar dos projetos e das experiências das capitais
modernistas o sentido e o selo de modernidade que carregam. Nossa época é
uma época em que as utopias se transformam em planos, diz Mário Pedrosa.
Nossa época viu crescer o argumento de que a ciência seria a única alternativa
para sistematizar, institucionatiz{r sonhos e ideais dispersos. Os modernistas
mineiros foram protagonistas, no Estado pós-30, desta engenharia na área da
política cultural, cujas linhas se espalhavam assistematicamente nos anos 20
nos inúmeros projetos de reformas assinados por educadores ilustres. O
governo JK, em direção semelhante, seria o artífice do plano que daria unidade

156

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e concretude histórica a uma idéia que esparsa e erraticamente irrompia em
conjunturas diversas da vida política do país desde a Colônia.
Dos tempos de Capanema sobrou-nos uma pesada estrutura formal, "igua-
litária" e pouco afeita às diferenças, à liberdade portanto.33 Dos anos JK
herdamos o emblema da utopia urbana que, em sua incompletude; denuncia e
cumpre a profecia tocquevilliana para as sociedades modernas. E os tempos
JK, tão celebrados na lembrança democrática, plural e por isto política, nos
deixam, paradoxalmente, como símbolo uma cidade capital, campo privilegia-
do da ação autoritária. A capital do isolamento dos governantes do resto do
país, a "ilha da fantasia", é também a capital da segurança nacional entendida
como segurança do Estado forte e autoritário. Ou por outra, a nova capital,
nascida da iniciativa, da ousadia, da tenacidade de homens públicos, da
política, seria hoje o paraíso, senão da igualdade, da tecnocracia, filha dileta
do planejamento como valor, filha bastarda da política como fim.
Mas o sentido destas lembranças é outro. Se é inegável a constatação das
"traições" sucessivas do ideário utópico de realização moderna, quer nos
processos de autonomização pela educação (de que se ocuparam nossos
modernistas no poder), quer na instituição do espaço urbano da igualdade
(desafio que se puseram os políticos e artistas de nosso século), uma observa-
ção precisa ser aí acrescentada. A estrutura educacional, a institucionalização
do sistema educacional que se mantém até hoje no país vêm daquele momento
de fundação do Estado nacional, e as cidades nascidas do "sonho de razão"
urbana atravessam décadas, chegando a primeira, Belo Horizonte, a ser clas-
sificada como uma das mais bem-sucedidas no que diz respeito à qualidade de
vida, integração populacional e produção industrial. E a segunda, a despeito
de todas as fundadas e legítimas críticas, redimensionou geográfica e politica-
mente um país desafiado desde o início pela dispersão e extensão continentais.
Belo Horizonte consolidou-se no papel de terceira cidade mais importante do
Brasil, devendo se tornar em breve, como adianta Schmidt, "o segundo centro,
suplantando o Rio de Janeiro".34 Brasília tem sido responsável pelo redirecio-
namento da migração interna dentro do país, influindo decisivamente na
efetiva ocupação da região Centro-Oeste. As experiências modernas precisam
ser lidas como tais, ou seja, como projetos incompletos, permanentemente
submetidos ao rigor e rediscussão crítica. O sistema educacional precisa ser
repensado em sua dinâmica que, projetada em 1930, é inteiramente inadequada
ao país do final do século XX. A capital do país precisa ser avaliada com os
critérios de reflexão adequados ao momento contemporâneo. Concebida no
meio do século, precisa passar pela reflexão que envolva os problemas que o
mundo contemporâneo vem impondo aos grandes centros metropolitanos. O
fato é que Mário Pedrosa tem razão quando diz que estamos, como americanos,
~condenados ao moderno" por sermos países construídos a partir de categorias,
procedimentos, informações e modelos que integram o rol das conquistas do
mundo capitalista burguês às quais, ao que tudo indica, resistiremos enorme-
mente a renunciar.

157
No diagnóstico nada utópico tanto de Tocqueville quanto de Weber, encon-
tramos uma brecha a partir da qual seria possível reler esta reflexão. Tanto utn
como outro deixaram registrada a possibilidade de intervenção dos atores no
sentido de restaurar, ainda que provisoriamente, o balanço mais favorável entre
ação e procedimentos. Os arquitetos supunham que a arquitetura seria capaz
de transformar aquele mundo urbano, restaurando uma prática social mais
interativa e igualitária. Seria um equívoco negar à arquitetura o poder de
transformação que, sem dúvida, é capaz de provocar. Mas seria ingênuo supor
que a configuração espacial isolada da ação política respondesse por funções •
interativas que se constroem na prática social cotidiana. A elite social e política,
neste caso, acaba sendo responsável pelo enquistamento ou pela socialização
mais extensiva de benefícios e vantagens que a vida urbana pode propiciar aos
homens seus habitantes. O projeto arquitetônico de Brasília serviu modelar-
mente a um projeto de elite tecnocrática, segmentando a população excluída
das hostes de poder, deixando inclusive inconcluso o projeto original de
planejamento arquitetôrúco. A crítica contemporânea dessa experiência urbana
moderna deve incluir em seu fundamento a relação entre espaço e poder,
recolocando na dimensão prática das relações sociais um segmento que se
cristalizou no insulamento burocrático, artificial e perverso. Concentrar a
critica nas linhas da arquitetura moderna, ou no projeto dos modernistas é
retirar dos homens püblicos a responsabilidade que têm, e pela qual devem
responder, na condução da vida política e social do país. Neste sentido, a
conclusão de Holston nos deixa pouca chance de intervenção. ''A questão é
que a arquitetura moderna de Brasília nunca poderia ser outra coisa senão de
elite. A questão é que essa arquitetura é dedicada à preservação de status e
desigualdade."35 Se isto é verdade, é verdade também que a população brasi-
liense não sacralizou este princípio. Vem crescente e ininterruptamente ocu-
pando, pela transgressão, espaços que não lhe foram destinados no projeto
original. Alguma semelhança com os amontoados de residências e comércios
ilegais que se avohunam nos cantos, periferias e zonas nobres das cidades e
grandes centros cosmopolitas tradicionais? E das suspeições da imaginação
sociológica, uma nos fica como alerta e diz respeito aos anos JK. Lembrado
sempre pela cor e brilho que retirou da política, o governo Juscelino Kubits-
chek talvez seja exemplo bem acabado de um sentido de ação que facilita
desdobramentos imprevistos, ou melhor, indesejados. Teoricamente, uma
conseqüência lógica da eleição de certas premissas. Vulgarmente, uma "trai-
ção" da mineiridade modernista atualizada e revivida nos anos dourados do
Brasil de JK?

Notas

1 Para uma leitura sociológica da mineiridade na perspectiva que estou propondo neste

artigo, ver Bomeny, Helena. Mineiridade dos modernistas. A República dos mineiros. Tese
de doutorado apresentada ao IUPERJ, Rio de Janeiro, 1991.

158
2
Ver, entre outros, Lafer, Celso. The planning process and the political system in Brazil:
a study on Kubitschek's target plan. Ph.D Thesis. Comell Urúversity, 1970; Benevides,
Maria Victoria. O governo Kubitschek. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; e Nunes, Edson
de Oliveira. Burocratic insulation and clientelism in contemporary Brazil. Ph.D Thesis.
.. Berkeley, Urúversity of Califorrúa, 1984.
3 Citação retirada de Nosso Século 1945/1960. A era dos Partidos. São Paulo, Abril
Cultural, 1980 p.207. .
4 Id. ibid.
s Ver a interessante análise de Durand, José Carlos. Negociation politique et renovation
de l'architecture: Le Corbusier au Brésil. Actes de la Recherche, Paris, n.88, juin. 1991.
Versão em português deste artigo será publicada na Revista Brasileira de Ciências Sociais,
n.16, 1991. As ligações deLe Corbusier com o Brasil estão registradas em uma extensa
correspondência publicada por Santos, Cecília Rodrigues dos et alii. Le Corbusier e o
Brasil. São Paulo, Tessela: Projeto Editora, 1987. Agradeço a Licia Valadares a oportuni-
dade de conhecer esta obra.
6 Cf. Coelho, Marcelo. O lugar das ilusões - Brasília e os paradoxos do de-
senvolvimento, Lua Nova, n.23, mar. 1991.
7 Pedrosa, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo, Pers-
pectiva, 1981. p.263.
8 Schnúdt, Betúcio Viero. A modernização e o planejamento urbano brasileiro no século
XIX, Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 24, n.3, 1981.
9 ld. ibid.
10 Vem crescendo na produção intelectual o número de trabalhos sobre a cidade do Rio
de Janeiro, especialmente as interpretações que cuidam da imagem, freqüentemente
negativa, com que a cidade-capital era identificada. Ver, entre outros: Carvalho, José
Mutilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo,
Companhia das Letras, 1987.
11 A ligação entre as cidades Belo Horizonte e Brasília tem já lugar consagrado na
produção intelectual sobre cidades. São visíveis e óbvias as associações. Duas cidades
planejadas e pensadas segundo critérios modernos de arquitetura urbatústica; duas cidades
criadas para serem capitais; especialmente, duas cidades concebidas a partir de Minas
Gerais. Em certo sentido, Belo Horizonte acaba sendo um experimento que fortaleceria a
concretização da outra aventura urbana tempos mais tarde, com Brasília.
12 Da listagem de teses defendidas sobre o Brasil urbano, algumas lembranças podem ser
ilustrativas. Cf. Carrozza, Maria Lufza. Brasília: a utopia frustrada. Dissertação de mes-
trado em planejamento urbano. Rio de Janeiro, 1984; Gonzales, Suely Franco Neto. A
estratificação residencial urbana: o caso de Brasília. Dissertação de mestrado em plane-
jamento urbano e regional. Porto Alegre, 1979; Campos, Luis Alberto de. Brasília capital
do controle e da segregação social: uma avaliação da ação governamental na área de
habitação do Distrito Federal. Dissertação de mestrado em planejamento urbano. Brasília,
1988; lwakami, Luíza Naomi. Espaço urbano em Brasília e a trajetória da resistência
popular na vila Paranoá. Dissertação de mestrado em planejamento urbano, Brasília,
1988; Paviani, Aldo. Mobilidade intra-urbana e organização espacial: o caso de Brasília.
Tese de livre-docência em geografia. Belo Horizonte, 1977. Outros títulos na mesma
direção podem ser encontrados em 1001 teses sobre o Brasil urbano. Catálogo bibliográ-
fico 1940/1989. Rio de Janeiro, IUPERJ/ANPUR- URBANDATA, 1991 . Além das teses,
os artigos nacionais e estrangeiros são amostra curiosa da forma como através da categoria
espaço se articulam as interpretações de cunho sociológico, antropológico e político.

159
13 Holston, James. TM modemist city: architecture, politics, and society in Brasília. Ph.D
Thesis. Yale University, 1986. Uma versão mais condensada deste trabalho foi publicada
em forma de artigo no Anuário Antropol6gico do Museu Nacio11Lll. Rio de Janeiro, 1980,
Edições Tempo BrasileirofUFCE, sob o título A linguagem das ruas: o discurso Político
em dois modelos de urbanismo.
14 Holston James. op. cit. p.434.
1S ld. ibid. p.432.
16 Simmel, Oeorg. A metrópole e a vida mental. In: Velho, Otávio, org. O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
17 Pedrosa, Mário op.cit. p.345.
IS Cf. Schorske, Carl. Me11Ll fin-de-siecle. São Paulo, Companhia das Letras, 1988;
Bennan, Marshall. Thdo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Rio
de Janeiro, Companhia das Letras, 1986.
19 Berman, op. cit. p.l71.
20 Id. ibid.

21 Em 1862, 1866 e 1884 houve tentativas de criar Minas da Sul independente; na década
de 1870 a região do Triângulo Mineiro reivindicou independência de Ouro Preto; em 1873
o Imperador endossou um projeto de criação de uma nova província no Vale do Rio São
Francisco, de Montes Claros ao sul de Pemambuco. Estas indicações bem apontadas por
Schmidt são reveladoras de que ao discurso de unificação correspondia uma realidade em
franco processo de desagregação.
22 Andrade, Luciana de. Aventureiros e vadios Papéis Avulsos, Rio de Janeiro, FCRB,
n.1, maio 1986; Guimarães, Berenice. Cafuas, barracos e barracões: Belo Horizonte,
cidade planejada. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, IUPERJ, 1991.
23 As análises sobre a mudança da capital mineira, e também as interpretações sobre a
política mineira reforçam a tese da necessidade de controlar conflitos entre grupos
oligárquicos regionais. Ver, entre outros, Ozorio, Paulo Henrique. La création de Belo
Horizonte. Jeu et enjeu politiques. Université des Sciences Sociales de Grenoble, Doctorat
3eme cycle, avr. 1981; Resende, Maria Efigênia Lage de. Uma interpretação sobre a
fundação de Belo Horizonte, Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.39, jul. 1974. Ver
também Bomeny, Helena. A Mineiridade dos motúrnistas, op.cit.
24 Rama, Angél. A cidade dns letras. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.26.

2s Ver Vasconcelos, Sylvio de. Mineiridade. Ensaio de caracterização. Belo Horizonte,


Imprensa Oficial, 1968.
26 O acompanhamento do debate sobre a transferência da capital nos Anais do Congresso
Nacional pode ser encontrado na dissertação de mestrado de Edgard Ferreira Neto, O
improviso da civilização. Niterói, UFF, 1989.
27 Ver o estudo de Evenson, Norma. Two brazilian capitais. Architecture and urbanism in
Rio de Janeiro and Brasília. New Haven and London, Yale University Press, 1973. A autora
analisa a influência de Le Corbusier, a reforma Pereira Passos e o grande projeto de
arquitetura moderna com a construção de Brasília, sublinhando particularmente a tradução
particular e o sentido moderno propriamente brasileiro que envolveu essas duas experiên-
cias urbanas.
28 Holston, James. A linguagem das ruas: o discurso político em dois modelos de
urbanismo. Anuário Antropológico da Museu NacioMI, Rio de Janeiro.

160
29 Jasmim, Marcelo. Individualismo e despotismo: a atualidade e Tocqueville. Presença,
p.47.
30 A tese de Alex.is de Tocqueville está registrada em suas duas obras clássicas: Democra-
cia na América e em O antigo regime e a revolução.
31 Ver, entre outros: Brubaker, Rogers. The limits of rationality. An essay on the social
and moral thought ofMax Weber. London, George Allen & Unwin, 1984; e ainda Hollis,
Martin. The cunning ofreason. Cambridge University Press, 1987.
32 Pedrosa, Mário op.cit. p.299.

33 Cf. Schwartzman, Simon; Bomeny, Helena e Costa, Vanda Ribeiro. Tempos de Capa-
nema. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
34 Schmidt, op.cit. p.368.
35 Holston, James. A linguagem das ruas, op. cit. p.176.

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