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Crianças com câncer

CRIANÇAS COM CÂNCER: DESVELANDO O SIGNIFICADO DO


ADOECIMENTO ATRIBUÍDO POR SUAS MÃES

CHILDERN WITH CANCER: UNVEILING THE MEANING OF TO BECOME


SICK ATTRIBUTED FOR THEIRS MOTHERS

NIÑOS CON CÁNCER: DESVELANDO EL SIGNIFICADO DEL


ADOLECIMIENTO ATRIBUIDO POR SUS MADRES

Lígia Maria Pinto dos SantosI


Leila Luíza Conceição GonçalvesII

RESUMO: Este estudo de abordagem fenomenológica teve como objetivo desvelar o significado do adoecimento de
RESUMO
crianças por câncer atribuído por suas mães. A entrevista fenomenológica foi norteada pelo questionamento: Qual o
significado do adoecimento do seu filho para a senhora? A pesquisa foi realizada em Aracaju-SE, com 10 mulheres, cujos
filhos eram crianças assistidas pelo Grupo de Apoio à Criança com Câncer, em 2006. O significado do câncer foi des-
velado como sendo algo perigoso, incurável devido à possibilidade de morte; impactante, emergindo sentimentos de
negação e resignação; que a aproxima de Deus ou fortalece o vínculo com o Divino; que altera o cotidiano e demanda
preocupar-se com o outro e ocupar-se de si. Assim, cabe aos profissionais da saúde compreender esses significados e
perceber que o cuidado dispensado não deve ser exclusivo à criança, mas extensivo à mãe, àquela que vivencia tão
intensamente cada momento.
Palavras-chave: Câncer infantil; enfermagem oncológica; fenomenologia; saúde da criança.

ABSTRACT
ABSTRACT:: The phenomenological approach of this study aimed at unveiling the meaning mothers donate to their
children’s falling ill of cancer. The phenomenological interview has been guided by following question: what is the
meaning of your child’s cancer to you? This piece of research was done in Aracaju, SE, Brazil with 10 women, whose
children were supported by the Grupo de Apoio à criança com Câncer (GACC)/ Support Team to Children with Cancer,
in 2006. The meaning of the child’s cancer to the mother was characterized as dangerous, incurable, on account of the
possibility of death; it gave rise to striking feelings of both denial and acceptance; it either made her feel closer to God or
strengthened her bond with the divine; it changed her everyday life and required dedication to the other and self care
taking. Therefore, it is the responsibility of health care professionals to understand these meanings and to realize, in this
context, the care offered must not be restricted to the child, but must be extensive to the mother, to the one who goes
through each moment so intensely.
Keywords: Child’s cancer; oncology nursing; phenomenology; child’s health.

RESUMEN: Este estudio de abordaje fenomenológico tuvo como objetivo des-velar el significado del adolecimiento de
RESUMEN
niños por cáncer atribuido por sus madres. La entrevista fenomenológica norteada por el cuestionamiento: ¿Para usted,
cuál el significado del cáncer de su hijo?. La investigación fue realizada en Aracaju-SE – Brasil, con 10 madres, cuyos hijos
eran niños asistidos por el Grupo de Apoyo al Niño con Cáncer, en 2006. El significado del cáncer fue des-velado como
siendo algo peligroso, incurable debido a la posibilidad de muerte; impactante, de que emergen sentimientos de
negación y resignación; que la acerca de Dios o fortalece el vínculo con el Divino; que altera el cotidiano y demanda
preocuparse con el otro y ocuparse de si. Siendo así, cabe a nosotros, profesionales de la salud, comprender esos
significados y percibir que el cuidado dispensado por nosotros no debe ser exclusivo al niño, pero, principalmente, a la
madre, a la aquella que vive tão intensamente cada momento.
Palabras Clave: Cáncer infantil; enfermería oncológica; fenomenología; salud del niño.

INTRODUÇÃO
Este artigo foi baseado na monografia de conclu- que o câncer infantil é um acontecimento extrema-
são de curso, requisito para obtenção do título de mente devastador, capaz de provocar mudanças e re-
Bacharel em Enfermagem. O interesse em desenvol- ações inesperadas, não apenas na vida de quem o
ver este estudo partiu da minha experiência como possui, como também na vida de seus familiares, prin-
voluntária, há mais de 5 anos, de um grupo de apoio cipalmente a mãe, por ser a pessoa mais próxima, a
à criança com câncer. Essa vivência fez-me perceber mais envolvida nos cuidados com o próprio filho.

Acadêmica do 9º período do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Sergipe.


I

Enfermeira, Mestre em Enfermagem, Prof.ª do Departamento de Enfermagem e Nutrição, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade
II

Federal de Sergipe. E-mail: leilaluiza@globo.com.

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Foi a partir dessa vivência que emergiu o se- um segundo plano na relação entre a mãe e a crian-
guinte questionamento: Qual o significado do ça afetada pelo câncer3.
adoecimento de seu filho para a senhora? Nesse senti- Logo, torna-se relevante, tanto para a enferma-
do, tem-se como objetivo des-velar este significado gem como para os demais componentes da equipe de
a partir daquela que vivencia tal fenômeno. saúde, saber qual o significado do câncer para a mãe
O câncer infantil é um evento que possui da- de uma criança com tal patologia. Através da com-
dos estatísticos significativos. No Brasil, segundo es- preensão desse significado, é possível o desenvolvi-
timativas do Instituto Nacional de Câncer¹, esse tipo mento de uma assistência humanizada e integral, vol-
de neoplasia atinge entre 12 e 13 mil crianças anu- tada não somente para a criança, mas para a família,
almente, e, apesar da maioria dos casos (70%) serem dando destaque à mãe, a qual vivencia de maneira
curáveis, a doença ainda registra números relevan- intensa, na maioria das vezes, as transformações no
tes, representando a terceira causa de mortalidade cotidiano oriundas da evolução clínica de seu filho.
em crianças entre 01 e 14 anos de idade.
O diagnóstico dessa patologia é um aconteci- METODOLOGIA
mento que atinge todos os membros da família, ocor-
rendo grande impacto emocional e psicológico no O presente estudo buscou des-velar o significado
binômio mãe-filho, tendendo este a ser o principal do câncer para a mãe de uma criança com tal patolo-
grupo de risco psíquico². gia, considerando a dimensão existencial, isto é, a sua
vivência no âmbito emocional, físico e social. Para
Corroborando este pensar, vale ressaltar que:
desenvolvê-lo, utilizei a abordagem fenomenológica,
Na maioria dos casos, desde o início do trata- que, segundo Schneider7, é o método mais adequado
mento, é a mãe quem assume a rotina das idas à interrogação proposta, por mostrar-se sensível às
ao hospital, internações, cuidados, horários de
remédios entre outras intercorrências. O pai, características humanas.
quando presente, sente mais dificuldade em li- A instituição de escolha para o desenvolvimen-
dar com a situação, preferindo não interferir no to do estudo foi o Grupo de Apoio à Criança com
tratamento, ou ausentar-se quando a criança pa- Câncer (GACC) de Sergipe, situado em Aracaju. A
rece grave3:326.
coleta de dados ocorreu no período de junho a se-
Como toda doença grave, o câncer leva a cri- tembro de 2006, após a aprovação do projeto pela
ança e sua família ao sofrimento, à angústia, à dor e Comissão de Ética em Pesquisa do referido GACC.
ao medo constante da possibilidade de morte, acar- As participantes deste estudo foram 10 mães,
retando, desse modo, grandes transformações em suas cujos filhos, crianças portadoras de câncer, tinham
vidas. Essas transformações na vida do paciente e da idade inferior ou igual a 10 anos, cadastradas no
família não são oriundas somente da evolução da GACC, e se encontravam em tratamento
patologia, mas, sim, de um contexto mais amplo, quimioterápico por um período inferior ou igual a 2
considerando os aspectos sociais, emocionais, anos. As mulheres foram questionadas previamente
afetivos, culturais e espirituais4,5. quanto a sua possível participação no estudo, e infor-
De acordo com Deitos e Gaspary6, vivenciar madas sobre os objetivos e as questões éticas da pes-
o câncer é mais doloroso para os clientes e suas fa- quisa, sendo assim firmado, em caso de concordân-
mílias do que qualquer outra doença. Pois, de ma- cia, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
neira singular, a neoplasia suscita vários sentimen- Em busca de uma maior aproximação com a
tos negativos em qualquer um dos seus estágios: o mãe e a vivência do adoecimento do seu filho em
choque do diagnóstico, o medo da cirurgia, a in- tratamento, mediante entrevista fenomenológica,
certeza do prognóstico e recorrência, os efeitos da foram realizados três questionamentos prévios à ques-
quimio e radioterapia, o medo e a possibilidade de tão norteadora, descrita anteriormente, os quais fo-
morte. ram: Como a senhora descobriu que o seu filho (a) esta-
Nesse contexto, a doença e o tratamento im- va com câncer ? Como a senhora chegou a esta institui-
plicam uma redefinição do papel da mãe dentro da ção? E o que a senhora sabe sobre a doença do seu filho
família: as tarefas domésticas são deixadas de lado (a)? Tais questionamentos foram utilizados unica-
em virtude das muitas idas ao hospital; a atenção mente com o intuito de iniciar a entrevista, logo não
antes voltada para os outros filhos agora se concen- fazem parte do objetivo da pesquisa.
tra no filho doente; o papel de mãe é priorizado em Após a realização de cada entrevista, a mesma
relação ao de esposa. Assim, pais e filhos ocupam foi transcrita na íntegra e, em seguida, leitura e

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releituras foram feitas com a finalidade de identifi- pessoa não tiver os cuidados certos, pode, a qualquer
car o alcance do fenômeno estudado. Esse alcance momento, correr o risco de ser fatal (Jasmim)
foi percebido ao passo que houve congruência de res- [...] É uma doença que pode se espalhar no corpo todo
postas dadas ao questionamento, observado na dé- e depois morrer. Se espalhar no pulmão dele porque
cima entrevista. ele está fraco, depois pode ir para outro lugar. (Rosa)
No primeiro momento, os discursos coletados De acordo com as falas anteriormente desta-
foram transcritos em sua íntegra e, posteriormente, cadas, a possibilidade de morte parece ser bastante
foi feita uma análise dos mesmos através de sucessi- amedrontadora. Tal situação é peculiar do humano,
vas releituras em busca das unidades de significação. pois este, na maioria das vezes, não pensa sobre a
Des-velado esse significado, o passo seguinte limitou- única certeza da vida, a morte. Essa certeza é menos
se à compreensão vaga e mediana do fenômeno ainda cogitada por uma mãe, a qual possui em seu
vivenciado e falado por alguém que o experienciou. imaginário o desejo de ver concretizado, no futuro,
Para a compreensão de tal fenômeno, utilizei relatos todos os sonhos idealizados para seu filho.
literários da área em estudo1-12, destacando os auto- Esta possibilidade próxima de morte da crian-
res de enfermagem. ça demanda acreditar que um intenso cuidado pos-
As Unidades de Significação e Compreen- tergará a vida, e, mesmo sabendo que existe a possi-
bilidade da cura, a noção de perigo prevalece como
são Vaga e Mediana
o expressado por Margarida.
De posse das entrevistas transcritas, e após a
[...] é uma doença muito perigosa porque pode até
obtenção do sentido, procedeu-se à construção das
tirar a vida das pessoas. O médico falou que a gente
unidades de significação, caracterizando a redução tem que ter coração... [...] a médica falou que a
eidética. Esta etapa emerge dos discursos dos sujei- doença dele é muito grave e muito complicada e aí
tos, constituindo a compreensão vaga e mediana de eu fico ali sempre cuidando dele e aí quando ele tem
acordo com a fenomenologia heideggeriana. Os ele- uma febre eu já penso o pior. (Margarida)
mentos discursivos apresentados nessas unidades se Corroborando o último depoimento, Teles8 afir-
encontram em congruência. Logo, foram construídas
ma que, no momento do diagnóstico, é o medo da
4 unidades de significação, as quais representam os morte do filho que se apresenta à mulher, perdurando
significados do câncer do filho, atribuídos por estas por todo o tratamento. Esse medo é a motivação para
mulheres que vivenciam tal fenômeno.
os atos, os pensamentos e sentimentos da mãe no seu
Para resguardar o anonimato das mulheres cotidiano. A possibilidade de morte do filho traz para
(mães), foram atribuídos a elas nomes de flores. a família a perda de planos futuros e esperança. E di-
ante dessa descoberta, a mãe sofre, antecipadamente,
RESULTDADOS E DISCUSSÃO a perda de possíveis experiências consideradas rele-
vantes como formatura, casamento e netos.
A fim de evidenciar as unidades de significação, Nessa situação, cabe à equipe de saúde ofere-
foram selecionados trechos de falas das mulheres em
cer apoio emocional aos pais. Em algumas institui-
sua forma originária.
ções são feitas, atualmente, atendimentos individu-
Nesse sentido, para as mães, o câncer do seu ais ou coletivos por parte dos psicólogos. Nesses aten-
filho apresenta os significados analisados a seguir. dimentos, os pais e as crianças falam sobre a doença,
si mesmos, o tratamento e suas necessidades9.
Algo perigoso, incurável devido à possibili-
dade de morte. Algo impactante, emergindo sentimentos de
O câncer, como já foi colocado anteriormente, negação e resignação
é por si só uma patologia que amedronta e carrega A revelação do diagnóstico de câncer gera em
consigo o estigma, socialmente criado, de sentença muitas mães uma avalanche de sentimentos, inicial-
de morte. Na infância, a morte é revestida de espe- mente inexplicáveis e caracterizados pelo choque,
cial crueldade, pois criança é sinônimo de alegria, desespero, surpresa e medo. Algumas dessas emoções
crescimento e futuro. É isso que o câncer significa podem ser observadas nos trechos seguintes:
para a mãe de uma criança com tal patologia, como
No começo eu lhe digo que fiquei assustada... Ago-
pode ser evidenciado nas seguintes falas:
ra não, eu já estou mais acostumada com a idéia,
É uma doença muito perigosa, mas que tem cura, mas foi uma barra muito difícil. (Tulipa)
não é. [...] é uma doença que pode até matar. Se a

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[...] tomei um choque maior quando o médico diag- A gente sente muita tristeza, não pode fazer nada pra
nosticou que era leucemia. Eu não agüentei. (Jasmim) passar a dor. Ele diz que tá sentindo dor, sentindo
De acordo com Silva10, o estado de choque é a dor, a gente procura um jeito mas não pode passar a
dor. (Rosa)
primeira reação do paciente e/ou do familiar à revela-
ção do câncer. Este é definido como um entorpeci- Pra mim é uma coisa muito dolorosa, uma tristeza
mento, em que os atores envolvidos, paciente e famí- muito grande, porque ver o meu filho que eu amo
lia, não percebem realmente o que está acontecendo tanto e saber que ele tá com isso e não poder dar
jeito. (Margarida)
ao seu redor, ou seja, esta é uma realidade impactante,
sendo necessário, a principio, ser negada, ante a sua Nesse sentido, as mães sentem-se impotentes
crueldade e difícil aceitação. Portanto, resta a eles, ante ao sofrimento que vêem os seus filhos passa-
como alternativa, o recurso da negação. rem. Daí resulta o aparente aceitar ou conformismo,
Ao receber o diagnóstico, a vida perde o senti- pois, no íntimo, o que prevalece é a angústia de se
do, tudo parece irreal e inacreditável e, por isso, a perceberem impotentes diante de algo que não têm
doença passa a ser negada pelas mães. Porém, é che- o poder de modificar. Tamanho é o sofrimento que,
gado o momento em que elas precisam reagir, serem por amor, seriam capazes de doar a própria vida por
fortes e, apesar do sentimento de tristeza mostrar-se eles, mesmo isso não sendo possível.
infinito, é percebido que mais nada pode ser feito
Algo que altera o cotidiano e demanda pre-
para contornar a situação. Na tentativa de adapta-
ocupar-se com o outro e ocupar-se de si e
rem-se à nova realidade, algumas mães demonstram
conformismo, apesar de não aceitá-la, como pode dos demais familiares
ser observado nas falas anteriores. Todavia, outras Com a descoberta do câncer do filho, até então
continuam negando ou não aceitando o fato, como uma experiência não vivenciada, muitas mulheres
é explicado na fala a seguir. vêem-se obrigadas a deixar para trás tudo aquilo que
lhes era prazeroso e fazia parte da sua rotina. Traba-
[...] é uma coisa com que ainda não me acostu-
mei, não me adaptei ainda hoje não me acostumo, e lhar, ir a festas, passear, estar com outras pessoas em
acho que não vou me acostumar nunca com esse momentos de lazer são umas das atividades que dei-
tipo de doença. (Gardênia) xam de fazer parte das suas vidas. A rotina limita-se a
A aceitação da doença, após o diagnóstico, é cuidar do filho com câncer. A moradia dessas mães
de fundamental importância para o tratamento ade- passa a ser o hospital e a casa de apoio, ambientes
quado e cura do indivíduo. Percebeu-se nas falas das estes que reforçam a perda da individualidade. Coisas
mães entrevistadas a unanimidade em negar enfati- comuns que eram de suas responsabilidades agora
camente a doença, inicialmente. Porém, após o iní- perdem espaço no cotidiano já que todo ou boa par-
cio do tratamento, apesar de ainda não aceitarem o te do tempo particular agora é dedicado às constantes
câncer, algumas mães demonstraram que estavam idas ao médico, juntamente com os filhos. O depoi-
conformadas ou acostumadas com a nova realidade. mento, a seguir, traduz esse pensamento.
De acordo com estudos da Unidade de A primeira coisa que mudou foi que eu deixei de
Oncologia Pediátrica do Hospital de Clínicas de Por- trabalhar, porque eu trabalhava numa empresa...
Outra coisa que mudou, também, [...] as festas que
to Alegre, após o diagnóstico de câncer do filho, as
eu sempre gostei de ir e não posso ir, mas é assim,
mães têm sentimentos de desorientação, impotência eu me dediquei só a ele... (Margarida)
e perda de controle. Em geral, sentem-se culpadas e
com muitas dúvidas em relação ao tratamento11. Sobre essa temática, Silva10 ressalta que uma
crise vital é sempre desencadeada por um diagnósti-
Algo que gera, na maioria das vezes, senti- co sombrio, como é o do câncer. Tal situação de-
mentos de tristeza, dor e impotência. manda, ao indivíduo e familiares, mudanças no seu
Gestar uma criança, amamentá-la, cuidá-la, ser cotidiano, nas funções, comportamentos, papéis de-
responsável e referencial de proteção e carinho são sempenhados por cada um e tempo suficiente para
algumas das características do ser mãe. Todavia, dian- que esses se adaptem às mudanças.
te do câncer, sentimentos de fragilidade e tristeza Ainda de acordo com esta unidade de signifi-
afloram, na maioria das vezes, quando as mães não cação, a lembrança das mães em como eram antes
encontram formas de aliviar a dor sentida e manifes- traz saudades, sofrimento, angústia e dor, e implici-
tada por seus filhos, como expressam os depoimentos: tamente revela um sentimento de privação e de per-
da da liberdade. Porém, na escala hierárquica, tais

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sentimentos perdem a sua posição para aquele que mulher que assiste seu filho doente. Pois, diante do
de longe parece ser o maior de todos – o amor ma- câncer que acometeu sua criança e da nova realida-
ternal, como pode ser observado no trecho a seguir: de, é a única coisa que pode fazer.
Quando meu filho não era doente, eu tinha alegria, Ainda no que concerne ao fenômeno em estu-
[...] Nós íamos passear [...] mas, agora, com ele do, o câncer remete essa mãe a uma alteração nas
doente, não se pode fazer nada, só cuidar dele, por- formas de pensar e considerar determinados aspec-
que quem tem um filho com essa doença em casa tos e medos. Agora ela vivencia situações antes dis-
não tem alegria pra nada, tem que viver só essa do- tantes, das quais ela apenas ouvia falar, sem, no en-
ença, não tem jeito. (Orquídea)
tanto, entender a real dimensão do problema.
Além das mudanças no cotidiano, as mães têm
Assim, sob o olhar fenomenológico, cabe aos
o seu papel no seio familiar alterado sobremaneira,
profissionais da saúde compreender esses significa-
negligenciando, ante o filho com câncer, o cuidar
dos, sem pressupostos e preconceitos. Nesse contex-
de si, dos demais filhos e do esposo, como também o
to, o cuidado dispensado por eles não deve ser ex-
relacionamento com os mesmos, como de fato pode-
clusivo à criança, mas também a seus familiares, prin-
se observar na fala seguinte:
cipalmente àquela que vivencia tão intensamente
[...] eu me dediquei só a ele... Mas acredito que to- cada momento. Deve-se atentar para que essa assis-
das as mães que passam por essa experiência se dedi- tência seja de preocupação, solicitude e ajuda, de
cam exclusivamente só a ele [o filho], de cuidar dele e maneira compreensiva e compartilhada, e não como
deixam até de cuidar de si mesmas. Na época eu
mais alguém a se ocupar.
tinha uma menina com dois anos quando começou o
tratamento e ela mamava e eu a deixava com o pai Afinal, cuidar é algo próprio do humano, sen-
porque eu passava a semana toda aqui, em Aracaju. do necessário considerar, nesse ato a totalidade do
Então mudou demais com relação a isso. (Tulipa) ser. O conhecimento técnico-científico não é sufi-
Nesse movimento, a mãe cuida do filho, preo- ciente para cuidar, é preciso compreender e compar-
cupa-se com ele e ocupa-se de si e dos outros famili- tilhar a vivência do outro12: 540.
ares em segundo plano. Dessa forma, atribui a ela Dessa forma, os enfermeiros, ao se colocarem
própria e aos outros uma menor importância diante no lugar do outro, podem prestar informações cla-
da situação em que se encontra, por vezes não se ras, amenizar o medo e a angústia de seus clientes e
permitindo expressar determinados sentimentos ao gerar oportunidades em que sentimentos, lágrimas e
outro, como é relatado a seguir: desabafos sejam expressos. Ao compreender essa
Tem que ficar forte na frente dele, não pode ficar vivência, será possível cuidar de ambos, mãe e filho,
chorando na frente dele, tem que tratar ele como se com dedicação genuína, tornando seu jugo menos
fosse uma criança comum para ele não perceber. difícil para o enfrentamento do inevitável.
[...] Porque muda tudo e na família toda. [...] há
medo de que fique gripado porque tudo pode levar a
um internamento. (Girassol) REFERÊNCIAS
Nesse contexto, a doença e o tratamento impli- 1. Ministério da Saúde (Br). Instituto Nacional do
cam uma redefinição do papel da mãe dentro da fa- Câncer. [site de internet] Estimativas da incidência
mília. Essa redefinição demanda da mãe negligenciar de câncer no Brasil-2006 [citado em 20 mar 2006]
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doente e a rotina que este impõe com as freqüentes 2. Ortiz MCM. À margem do leito: a mãe e o câncer
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filho doente em detrimento dos demais, e a priorização Latino-am Enfermagem. [Scielo-Scientific Eletronic
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e filhos ocupam um segundo plano na relação entre a 333. Disponível em: http://www.scielo.br/prc.
mãe e a criança afetada pelo câncer3. 4. Bessa LCL. Famílias de crianças com câncer. Rev
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5. Lima RAG. A enfermagem na assistência à criança
CONCLUSÃO com câncer. Goiânia (GO): AB Editora; 1995.
6. Deitos TFH, Gaspary JFP. Efeitos biopsicosocias e
O cuidado, característica mais própria do ser hu- psiconeuroimunológicos do câncer sobre os clientes e
mano, é acrescido, neste estudo, pelo sentimento seus familiares. Rev Bras Cancerol. 1997; 2: 117-23.
maternal, tomando uma dimensão singular para cada 7. Schneider JA. O método fenomenológico na pes-

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Santos LMP, Gonçalves LLC

quisa em enfermagem psiquiátrica. Rev Gaúcha lia. São Paulo: Anablume Editora; 2000.
enferm. 1996;2:100-8. 11. Gregianin LJ, Pandolfo AC. Atendimento
8. Teles SS. Câncer na adolescência: enfrentamento interdisciplinar da doença criança com câncer e sua
familiar [monografia de conclusão do curso]. Aracaju família. In: Cecin RB, Carvalho PA, organizadores.
(SE): Universidade Federal de Sergipe; 2000. Criança Hospitalizada: atenção infantil como escuta
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Recebido em: 11.09.2007


Aprovado em: 10.01.2008

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