Você está na página 1de 333

DANIEL

ACADÊMICO
BEACON
COMENTÁRIO BÍBLICO

DANIEL
JIM EDLI N
GERÊNCIA EDITORIAL Daniel New Beacon Bible Commentary / Jim Edlin / © 2009
Published by Beacon Hill Press of Kansas City, A division of Nazarere ^ jo c s m g
E DE PRODUÇÃO
House. Kansas City, Missouri, 64109 USA. This edition published by a -a rja re n t
Jefferson Magno Costa
with Nazarene Publishing House. All rights reserved.
Copyright © 2015 por Editora Central Gospel.

COORDENAÇÃO
EDITORIAL
Michelle Candida Caetano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

COORDENAÇÃO
DE COMUNICAÇÃO Autor: EDLIN, Jim.
E DESIGN Título em português: Novo Comentário Bíblico Beacon: Daniel
Regina Coeli Título original: Daniel New Beacon Bible Commentary
Rio de Janeiro: 2015
336 páginas
TRADUÇÃO ISBN: 978-85-7689-428-5
Beth Dias 1. Bíblia - Teologia I. Título II.

REVISÃO
Queila Memória

CAPA E PROJETO É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quaisquer
GRÁFICO meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc.), a não ser em
Eduardo Souza citações breves, com indicação da fonte bibliográfica. Este livro está de acor­
do com as mudanças propostas pelo novo Acordo Ortográfico, que entrou em
vigor a partir de janeiro de 2009.
DIAGRAMAÇÃO
André Faria Nota do editor no Brasil: Com o objetivo de facilitar a compreensão do
comentário original, em alguns casos, a Central Gospel fez traduções livres
de termos e palavras em inglês que não encontram equivalência nas versões
IMPRESSÃO E oficiais do texto bíblico traduzido para o Português. Ressalte-se, todavia,
ACABAMENTO que foram preservadas a ideia e a estrutura textual idealizadas pelo
Rotaplan autor.

1a edição: Outubro/2015

Editora Central Gospel Ltda


Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara
Cep: 22.713-001
Rio de Janeiro - RJ
TEL: (21)2187-7000
www.editoracentralgospel.com
EDITORES DO COMENTÁRIO
Editores gerais
Alex Varughese George Lyons
Ph.D., Drew University Ph.D., Emory University
Professor de Literatura Bíblica Professor do Novo Testamento
Mount Vernon Nazarene University Northwest Nazarene University
Mount Vernon, Ohio Nampa, Idaho
Roger Hahn
Ph.D., Duke University
Reitor do Corpo Docente
Professor do Novo Testamento
Nazerene Theological Seminary
Kansas City, Missouri
Editores secionais
Joseph Coleson Kent Brower
Ph.D., Brandels University Ph.D., University of Manchester
Professor do Antigo Testamento Vice-reitor
Nazarene Theological Seminary Palestrante sênior de estudos bíblicos
Kansas City, Missouri Nazarene Theological College
Manchester, Inglaterra
Robert Branson
Ph.D-, Boston University George Lyons
Professor Emérito de Literatura Bíblica Ph.D., Emory University
Olivet Nazarene University Professor do Novo Testamento
Bourbonnais, Illinois Northwest Nazarene University
Nampa, Idaho
Alex Varughese
Ph.D., Drew University Jeanne Serrão
Professor de Literatura Bíblica Ph.D., Claremont Graduate University
Mount Vernon Nazarene University Reitor da Escola de Teologia e Filosofia
Professor de Literatura Bíblica
Mount Vernon, Ohio Mount Vernon Nazarene University
Jim Edlin Mount Vernon, Ohio
Ph.D., Southern Baptist Theological Seminary
Professor de Literatura Bíblica e Línguas
Coordenador do Departamento
de Religião e Filosofia
MidAmerica Nazarene University
Olathe, Kansas
SUMÁRIO

Prefácio dos editores gerais .................................................................................................. 9


Agradecimentos..................................................................................................................... 11
Abreviações............................................................................................................................13
Bibliografia.............................................................................................................................17
INTRODUÇÃO.................................................................................................................23
A. Interesse por Daniel................................................................................................23
B. Características literárias especiais........................................................................... 25
C. Autoria.................................................................................................................... 27
D. Data de escrita.........................................................................................................29
E. Daniel, o profeta estadista.......................................................................................33
F. Público original........................................................................................................35
G. Estrutura do livro.................................................................................................... 37
H. Versões gregas de Daniel.........................................................................................38
I. Questões hermenêuticas..........................................................................................39
J. Abordagem deste comentário.................................................................................. 43
K. Teologia do livro..................................................................................................... 44
1. A absoluta soberania de Deus, e não o dualismo................................................45
2. O livre-arbítrio responsável dos homens, e não
o fatalismo...............................................................................................................46
3. O otimismo esperançoso para o povo de Deus, e
não o pessimismo.................................. 47
COMENTÁRIO................................................................................................................. 51
I. Histórias de uma terra estrangeira (1.1—6.28)........................................................51
A. A contaminação alimentar: o primeiro teste de fidelidade (1.1-21)......................52
1. O contexto (1.1-7)..............................................................................................59
2. O teste (1.8-14).................................................................................................. 65
3. O resultado (1.15-21)........................................................................................ 68
B. O sonho da estátua: o primeiro teste de sabedoria (2.1-49)..................................75
1. Cena 1: o rei e os seus sábios (2.1 -13)................................................................ 84
2. Cena 2: Daniel, Arioque e o rei (2.14-16).........................................................88
SUMÁRIO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3. Cena 3: Daniel diante de Deus (2.17-23)..........................................................89


4. Cena 4: Daniel, Arioque e o rei (2.24,25)..........................................................91
5. Cena 5: o rei e os seus sábios (2.26-49)..............................................................92
C. A fornalha em chamas: o segundo teste de fidelidade (3.1-30).............................103
1. O contexto (3.1-7)...............................................................................................108
2. O teste (3.8-23)................................................................................................... 111
3. O resultado (3.24-30)..........................................................................................116
D. O sonho da árvore: o segundo teste de sabedoria (4.1-37)...................................124
1. A confissão inicial (4.1-3)................................................................................... 131
2. O sonho perturbador (4.4-18)...........................................................................133
3. A interpretação do sonho (4.19-27).................................................................. 137
4 .0 cumprimento do sonho (4.28-33)................................................................. 140
5. A confissão final (4.34-37)................................................................................. 142
E. A inscrição na parede: o terceiro teste de sabedoria (5.1-31)................................149
1. A crise do rei (5.1-9)............................................................................................ 156
2. A esperança do rei (5.10-16)................................................................................159
3. A mensagem de Deus para o rei (5.17-28)..........................................................162
4. O cumprimento da mensagem de Deus (5.29-31)..............................................167
F. A cova dos leões: o terceiro teste de fidelidade (6.1-28).........................................172
1. A conspiração (6.1-9)...........................................................................................180
2. A ofensa (6.10-15)...............................................................................................183
3. A execução (6.16-18)...........................................................................................185
4. O livramento (6.19-23).......................................................................................186
5. A conclusão (6.24-28)......................................................................................... 188
II. Visões de uma terra estrangeira (7.1—12.13).............................................................195
A. A visão das quatro bestas (7.1-28)........................................................................... 196
1. Introdução (7.1)..................................................................................................200
2. O relato das imagens (7.2-14).............................................................................201
3. A interpretação das imagens (7.15-27)............................................................... 209
4. Conclusão (7.28)................................................................................................ 219
B. A visão das duas bestas (8.1-27)...............................................................................224
1. Introdução (8.1).................................................................................................. 230
2. O relato das imagens (8.2-14).............................................................................231
3. A interpretação das imagens (8.15-26)............................................................... 238
4. Conclusão (8.27)................................................................................................ 245
C. A visão das Setenta semanas (9.1-27)......................................................................249
1. O insight sobre Jeremias (9.1,2)..........................................................................254
2. A oração de confissão (9.3-19)............................................................................256
3. A chegada do mensageiro celestial (9.20-23)............................................. 263
4. Uma mensagem do céu (9.24-27)......................................................... 264
D. A visão de uma grande guerra (10.1 —12.13).................................. 2""'9
1. O contexto da visão (10.1 —11.1).....................................................................
6
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON SUMÁRIO

a. As circunstâncias de Daniel (10.1-4)..............................................................283


b. A chegada de um ser celestial (10.5-9)........................................................... 285
c. O diálogo com o ser celestial (10.10—11.1).................................................. 286
2. A mensagem da visão (11.2— 12.4)................................................................... 293
a. Uma visão geral do Império Persa (11.2)........................................................ 301
b. A ascensão e a queda de um rei poderoso (11.3,4)..........................................302
c. Os conflitos entre os reis do sul e do norte (11.5-20)..................................... 302
d. O reinado de um ser desprezível (11.21—12.4)............................................. 304
3. Esclarecimentos finais (12.5-13).........................................................................326
a. A primeira pergunta (12.5-7)..........................................................................327
b. A segunda pergunta (12.8-10)........................................................................ 328
c. Uma recapitulação final (12.11 -13).................................................................330

7
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS

O propósito do N ovo C om en tário B íb lico B ea con é tornar disponível a


pastores e alunos um comentário bíblico do século 21 que reflita a melhor
cultura da tradição teológica wesleyana. O projeto deste comentário visa tor­
nar essa cultura acessível a um público mais amplo, a fim de auxiliá-lo na
compreensão e na proclamação das Escrituras como Palavra de Deus.
Os escritores dos volumes desta série, além de serem eruditos na tradição
teológica wesleyana e especialistas em suas áreas de atuação, têm também um
interesse especial nos livros designados a eles. A tarefa é comunicar claramente
o consenso crítico e o amplo alcance de outras vozes confiáveis que já comen­
taram sobre as Escrituras. Embora a cultura e a contribuição eruditas para a
compreensão das Escrituras sejam as principais preocupações desta série, esta
não tem como objetivo ser um diálogo acadêmico entre a comunidade erudita.
Os comentaristas desta série, constantemente, visam demonstrar em seu traba­
lho a significância da Bíblia como o Livro da Igreja e, também, a relevância e a
aplicação contemporânea da mensagem bíblica. O objetivo geral deste projeto
é tornar disponível à Igreja e ao seu serviço os frutos do trabalho dos eruditos
que são comprometidos com a fé cristã.
A Nova Versão Internacional (NVI) é a versão de referência da Bíblia usa­
da nesta série; entretanto, o foco do estudo exegético e os comentários são o
texto bíblico em sua linguagem original. Quando o comentário usa a NVI, ele
é impresso em negrito. O texto impresso em negrito e itálico é a tradução do
autor. Os comentaristas também se referem a outras traduções em que o texto
possa ser difícil ou ambíguo.
A estrutura e a organização dos comentários nesta série procuram
facilitar o estudo do texto bíblico de uma forma sistemática e metodológica.
O estudo de cada livro bíblico começa com uma I n tr o d u çã o , que fornece
uma visão panorâmica de autoria, data, proveniência, público-alvo, ocasião,
propósito, questões sociológicas e culturais, história textual, características
literárias, questões hermenêuticas e temas teológicos necessários para
entender-se o livro. Essa seção também inclui um breve esboço do livro e
uma lista de obras gerais e comentários padrões.
A seção de comentários para cada livro bíblico segue o esboço do livro
apresentado na introdução. Em alguns volumes, os leitores encontrarão súmulas
PREFÁCIO DOS EDITORES GERAIS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

seccionais de grandes porções da Bíblia, com comentários gerais sobre sua


estrutura literária global e outras características literárias. Uma característica
consistente do comentário é o estudo de parágrafo por parágrafo dos textos
bíblicos. Essa seção possui três partes: P o r trá s d o tex to, No tex to e A p a r tir d o
texto.
O objetivo da seção P o r trá s d o tex to é fornecer ao leitor todas as
informações relevantes necessárias para a compreensão do texto. Isso inclui
situações históricas específicas refletidas no texto, no contexto literário do
texto, nas questões sociológicas e culturais e nas características literárias do
texto.
N o tex to explora o que o texto diz, seguindo sua estrutura, versículo por
versículo. Essa seção inclui uma discussão dos detalhes gramaticais, dos estudos
de palavras e da ligação do texto com livros/passagens bíblicas ou outras partes
do livro em estudo (o relacionamento canônico). Além disso, fornece transli-
terações de palavras-chaves em hebraico e grego e seus significados literais. O
objetivo aqui é explicar o que o autor queria dizer e/ou o que o público-alvo
teria entendido como o significado do texto. Essa é a seção mais ampla do co­
mentário.
A seção A p a r t ir d o tex to examina o texto em relação às seguintes áreas:
significância teológica, intertextualidade, história da interpretação, uso das ci­
tações do Antigo Testamento no Novo Testamento, interpretação na história,
na atualização e em aplicações posteriores da Igreja.
O comentário fornece a n o ta çõ es co m p lem en ta res sobre tópicos de interesse
que são importantes, mas não necessariamente fazem parte da explanação do
texto bíblico. Esses tópicos são itens informativos e podem conter questões
históricas, literárias, culturais e teológicas que sejam relevantes ao texto bíblico.
Ocasionalmente, discussões mais detalhadas de tópicos especiais são incluídas
como d igressõ es.
Oferecemos esta série com nossa esperança e oração, a fim de que os
leitores a tenham como um recurso valioso para a compreensão da Palavra de
Deus e como uma ferramenta indispensável para um engajamento crucial com
os textos bíblicos.
Roger Hahn, Editor-geral da Iniciativa Centenária
Alex Varughese, Editor-geral (Antigo Testamento)
George Lyons, Editor-geral (Novo Testamento)

10
AGRADECIMENTOS

Daniel é um daqueles livros que ao mesmo tempo atrai e repele. Suas


histórias simples atraem a atenção dos leitores, mesmo na infância, para mundos
e mensagens que podem ser facilmente entendidas e aplicadas na vida de
fé. Suas visões, contudo, são outra história. Suas imagens crípticas confundem
os leitores e deixam-nos perplexos quanto ao que deveria ser feito com esse
material. Muitas pessoas presumem que as visões são relevantes apenas para os
prognosticadores que detêm as chaves para desvendar esses mistérios. Portanto,
o leitor mediano das Escrituras talvez se detenha nas histórias, mas faça uma
leitura superficial das visões, se é que ele ao menos as lê.
Eu confesso que, durante anos, essa foi a minha abordagem de Daniel.
Quando criança, minha vitrola tocava uma música sobre Sadraque, Mesaque e
Abede-Nego na fornalha em chamas e meus professores da Escola Dominical
desafiavam-me com a determinação de Daniel na cova dos leões. Anos mais
tarde, eu li ou ouvi falar sobre as previsões desconcertantes de eventos futuros
baseadas em passagens que grande parte das vezes vinham de Daniel. Em
algumas dessas ocasiões, eu ouvi dizer que Daniel falou diretamente sobre
pessoas e eventos no mundo atual onde eu vivia. Esses cenários, às vezes,
faziam sentido; outras vezes, não. Eventualmente, eu percebi que muitas das
interpretações de Daniel eram parciais. Então, decidi limitar-me às histórias e
deixar as visões de lado. Isso parecia ser o suficiente para mim.
Anos atrás, minha atenção foi novamente atraída para o livro de Daniel
em virtude de um material da série WordAction utilizado na Escola Dominical
para adultos, o qual incluía tarefas escritas sobre o livro de Daniel e um livro
introdutório intitulado D iscoverin g th e O ld T estam ent. Fiquei fascinado pelo
estilo artístico e literário do livro e embarquei numa exploração do mundo de
Daniel que foi incluída neste comentário. Descobri, pelo menos em parte, por
que as histórias cativam tanto os leitores: tratam-se de composições primorosas
que empregam técnicas literárias criativas e efetivas para expressar mensagens
profundas. Essas histórias convidam-nos a imaginar a nós mesmos ao lado de
Daniel, vivendo uma vida de fé inabalável.
Mais do que isso, eu cheguei a uma apreciação profunda das visões do livro.
Elas também demonstram qualidades literárias excepcionais que as permitem
comunicar mensagens significativas. Seus efeitos especiais deslumbrantes criam
AGRADECIMENTOS NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

um mundo de fantasia que permite a participação de uma grande dramatização


sem que isso implique um risco de consequências diretas. Esse tipo de incursão
no mundo surreal não é muito diferente dos vid eoga m es modernos. Embora as
ambiguidades do texto ainda produzam frustração, o valor da teologia dessas
visões tem um peso muito maior do que a sua inconveniência. Descobri que
essas visões falam mais sobre realidades presentes do que passadas ou futuras.
Elas revelam um drama entre dois domínios que existem paralelamente no
universo: os reinos deste mundo e o Reino de Deus. Por meio dessas visões, eu
tenho sido cada vez mais encorajado a descobrir que o Reino de Deus jamais
está ausente deste mundo. Ele sempre suplanta e sobrevive a todos os domínios
da terra, e, um dia, ele o fará completamente.
Muitas pessoas convergiram em minha vida para encorajar-me neste
projeto. Sou grato à liderança da Beacon Hill Press pela realização deste projeto
e por ter-me oferecido uma oportunidade de contribuir. Meu amigo e colega
da Mount Vernon Nazarene University, Alex Varughese, leu cuidadosamente
o manuscrito e fez sugestões significativas que resultaram num produto final
melhor. Estudantes da MidAmerica Nazarene University participaram comigo
do estudo de Daniel e da literatura apocalíptica, enquanto a universidade
graciosamente providenciou uma licença para que eu pudesse trabalhar neste
livro.
O apoio amoroso da minha família inspira-me mais do que meus familiares
possam imaginar. Sou muito grato à minha esposa, Jo; às nossas duas filhas,
Julie e Janelle, e aos seus maridos Eric e Matt; ao nosso filho, Jon, e à sua
esposa Mindy; e aos nossos netos Jacob, Daniel e Addison. Meus pais, Glen
e Ida Edlin, assim como meus sogros, Lawrence e Hazel Goodman, também
investiram grandemente em minha vida.
Finalmente, preciso reservar minha gratidão mais profunda ao “Ancião
de Dias” que se assenta entronizado sobre todos os seres viventes. Além de
ser uma empreitada acadêmica, este projeto tem sido uma jornada espiritual
profunda. Sem a mão graciosa e soberana de Deus em minha vida, nenhuma
palavra de valor poderia ser escrita. A Ele seja dada toda a honra e glória para
sempre, porque o “seu domínio é um domínio eterno que não acabará, e seu
reino jamais será destruído” (Dn 7.14).
James Oliver (Jim) Edlin

12
ABREVIAÇÕES

Com algumas exceções, essas abreviações seguem as do The SBL Handbook of Style
[Manualde estilo SBL] (Alexander, 1999).
Geral
a.C. antes de Cristo
A.E.C. antes da Era Comum
AT Antigo Testamento
BDB Léxico Hebraico em Inglês do Antigo Testamento
BHS Bíblia Hebraica Stuttgartensia
cap. capítulo(s)
cf. compare
d.C. depois de Cristo
E.C. Era Comum
esp. especialmente
etc. et cetera, e o restante
por exemplo
id est, isto é
lit. literalmente
LXX Septuaginta
MS manuscrito
MSS manuscritos
nota
nn. notas
NT Novo Testamento
s.d. sem data
s .l. sine loco (sem lugar, sem editora, sem página)
sub verbo, sob a palavra
e os seguintes
TM Texto Massorético (do AT)
v. versículo(s)
Versões bíblicas
ACRF Almeida Corrigida e Revisada Fiel
ARA Almeida Revista e Atualizada
ARC Almeida Revista e Corrigida
ESV English Standard Version
JPS Hebrew-English Tanakh
KJV Kingjames Version
NASB New American Standart Bible
NIV New International Version
NLT New Living Translation
NRSV New Revised Standard Version
NTLH Nova Tradução na Linguagem de b
NVI Nova Versão Internacional
REB Revised English Bible
ABREVIAÇÕES NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

RSV Revised Standard Version


TNIV Today s New International Version
Por trás do texto: Informações históricas ou literárias preliminares que os
leitores medianos podem não inferir apenas pela leitura do
texto bíblico.
No texto: Comentários sobre o texto bíblico, palavras, gramática, e
assim por diante.
A partir do texto: O uso do texto por intérpretes posteriores, relevância
contemporânea, implicações teológicas e éticas do texto,
com ênfase especial nas questões wesleyanas.
Apócrifos
Cant. Jov. Cântico dos três jovens
O. Aza. A Oração de Azarias
Sir. Sabedoria de Siraque, Eclesiástico ou Sirácida
1—2 Mac. 1—2 Macabeus
2 Bar. 2 Baruque
Tob. Tobias
Sus. Susana
Bei. Bei e o dragão
SS Sabedoria de Salomão
Pseudoepígrafos do AT
Jub. Os Jubileus
S. Sal. Os Salmos de Salomão
1 En. 1 Enoque (Apocalipse Etiópico)
Josefo
Cont. Ap. Contra Apião
Ant. Antiguidades Judaicas
Transliteração do grego
Grego Letra Transliteração
a alfa a
ß beta b
7 gama g
7 gama nasal n (antes de y,x,^,g)
S delta d
£ epsílon e
1 zeta z
n eta è
9 teta th
1 iota i
K capa k
lambda I
V mu/mi m
V nu/ni n
1 csi X

14
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON ABREVIAÇÕES

0 omicron 0
7T pi P
P rô r
P rô (em inicio de palavra) rh
ç sigma s
T tau t
lí upsilon y
lí upsilon u (em ditondos: au,
eu, êu, ou, ui)
4> fi ph
X chi ch
Ÿ psi ps
00 ômega Õ
respiração elaborada h (antes de vogais
iniciais ou ditongos)
Transliteração do hebraico
Hebraico/Aramaico Letra Transliteração
X dlef *
3 bêt b; v (fricativa)
guimel g
7 dâlet d
n he h
1 vav Vo u w
T zain Z

n hêt h
o têt t
* iode y
3 caf k
b lâmed i
a mem m
3 nun n
0 sâmeq s
tf din
s pê p \f{ fricativa)
X tsade s
p cof q
7 rêsh r
ttf sin s
shin s
tau

(Nota: A numeração de capítulo e versículo no TM e na LXX geralmente difere em com­


paração com as Bíblias em inglês/português. Para evitar confusão, todas as referências bí­
blicas seguem a numeração de capítulo e versículo das traduções para o português, mesmo
quando o texto TM e LXX está em discussão).
15
BIBLIOGRAFIA

Comentários
ANDERSON, Robert A. Signs and Wonders: A Commentary on the Book of Daniel.
International Theological Commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 1984.
ARCEIER, Gleason L., Jr. “Daniel.” The Expositor’s Bible Commentary. Volume 7. Grand
Rapids: Eerdmans, 1985.
BALDWIN, Joyce G. Daniel. Tyndale Old Testament Commentaries. Downers Grove,
111.: Inter-Varsity Press, 1978.
BEHRMANN, G. Das Buck Daniel. Gottingen: Vandenhoeck, 1894.
BEVAN, A. A. A Short Commentary on the Book of Daniel. Cambridge: Cambridge
University Press, 1892.
CALVIN, John. Commentaries on the Book o f the Prophet Daniel. Reprint, Grand Rapids:
Eerdmans, 1948
CHARLES, Robert H. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel.
Oxford: Clarendon Press, 1929.
COLLINS, John J. Daniel: W ith an Introduction to Apocalyptic Literature. Forms of
Old Testament Literature. Grand Rapids: Eerdmans, 1984.
_____ . Daniel: A Commentary on the Book of Daniel. Hermenia. Minneapolis: Fortress
Press, 1993.
DAVIES, Philip R. Daniel. Old Testament Guides. Editado por R. N. Whybray. Sheffield:
JSOT Press, 1985.
DOUKHAN, Jacques B. Daniel: The Vision of the End. Edição revisada. Berrien Springs,
Mich.: Andrews University Press, 1989.
_____ . Secrets of Daniel: Wisdom and Dreams of a Jewish Prince in Exile. Hagerstown,
Md.: Review and Herald Publishing, 2000.
DRIVER, S. R. The Book of Daniel: W ith Introduction and Notes. The Cambridge Bible
for Schools and Colleges. Cambridge: University Press, 1900.
DUGUID, Iain M. Daniel. Reformed Expository Commentary. Phillipsburg, N.J.: P and
R Publishing, 2008.
FEWELL, Danna Nolan. Circle o f Sovereignty: Plotting Politics in the Book of Daniel.
Nashville: Abingdon, 1991.
GANGEL, Kenneth O. Daniel. Holman Old Testament Commentary. Volume 18.
Nashville: Broadman and Holman Publishers, 2002.
GOLDINGAY, John E. DanieLWorà Biblical Commentary. Volume 30. Dallas: Word,
1989.
GOWAN, Donald E. Daniel. Abingdon Old Testament Commentaries. Nashville:
Abingdon Press, 2001.
BIBLIOGRAFIA NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

HAMMER, Raymond. The Book o f Daniel. Cambridge Bible Commentary on the English
Bible. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.
HARTMAN, Louis F.; LELLA, Alexander A. Di. The Book o f Daniel. Anchor Bible
Commentary. Volume 23. Garden City, N.Y.: Doubleday, 1978.
HEATON, Eric W. The Book of Daniel. Torch Bible Commentary. London: SCM Press,
1956.
HUEY, F. B., Jr. Ezekiel, Daniel. Laymans Bible Book Commentary. Volume 12. Nashville:
Broadman and Holman Publishers, 1984.
JEFFREY, Arthur. “The Book of Daniel.” The Interpreter’s Bible. Volume 6. Nashville:
Abingdon Press, 1956.
JEROME. Jerome’s Commentary on Daniel. Traduzido por Gleason L. Archer, Jr. Grand
Rapids: Baker Book House, 1958.
KEIL, C. F. “Biblical Commentary on the Book of Daniel.” In: Commentary on the Old
Testament de C. F. Keil e F. Delitzsch. Traduzido por M. G. Easton. Reedição, Grand
Rapids: Eerdmans, 1973.
KOCH, Klaus. Daniel: Kapitell 1,1-4,34. Biblischer Kommentar Altes Testament 22.1.
Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 2005.
LACOCQUE, Andre. The Book o f Daniel. Atlanta: John Knox Press, 1979.
LONGMAN, Tremper, III. Daniel. NIV Application Commentary. Grand Rapids:
Zondervan, 1999.
LUCAS, Ernest. Daniel. Apollos Old Testament Commentary. Volume 20. Downers
Grove, 111.: InterVarsity Press, 2002.
MILLER, Stephen R. Daniel. The New American Commentary. Nashville: Broadman
and Holman Publishers, 1994.
MONTGOMERY, James K. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel.
International Critical Commentary. Edinburgh: T & T Clark, 1927.
OWENS, J. J. “Daniel.” Broadman Bible Commentary. Volume 6. Nashville: Broadman
Press, 1971.
PORTEUS, Norman W. Daniel. Old Testament Library. Filadélfia: Westminster Press,
1965.
REDDIT, Paul L. Daniel: Based on the New Revised Standard Version. New Century
Bible Commentary. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999.
RUSSELL, D. S. Daniel. Daily Study Bible: Old Testament. Filadélfia: Westminster Press,
1981.
SEOW, C. L. Daniel. Westminster Bible Companion. Filadélfia: Westminster John Knox
Press, 2003.
SLOTKI, J. J. Daniel-Ezra-Nehemiah. London: Soncino Press, 1978.
SM ITH-CHRISTOPHER, Daniel L. “Daniel.” The New Interpreter’s Bible. Volume 7.
Nashville: Abingdon Press, 1996.
STEVENSON, Kenneth; GLERUP, Michael (fdd).Ezekiel DanieL Old Testament. Volume 13. The
Ancient Christian Commentary on Scripture. Downers Grove, DL: InterVarsity Press, 2008.
18
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON BIBLIOGRAFIA

SWIM, Roy E. “The Book of Daniel.” Beacon Bible Commentary. Volume 4. Kansas City:
Beacon Hill Press of Kansas City, 1966.
TOW NER, W. Sibley. Daniel. Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and
Preaching. Atlanta: John Knox Press, 1984.
WALLACE, Ronald S. The Message o f Daniel. The Bible Speaks Today. Downers Grove,
111.: Inter-Varsity Press, 1984.
WALTON, John H.; MATTHEWS , Victor H.; CHAVALAS, Mark W. The IVP Bible
Background Commentary: Old Testament. Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 2000.
WALVOORD, John F. Daniel: The Key to Prophetic Revelation. Chicago: Moody Press,
1971.
WESLEY.John.yo/j« Wesley’s Commentary on the Bible. Editado por G. Roger Schoenhals.
Grand Rapids: Francis Asbury Press, 1990.
W HITCOM B, J. C.,Jr.Daniel. Chicago: Moody Press, 1985.
W OOD, Leon. A Commentary on Daniel. Grand Rapids: Zondervan, 1973.
YOUNG, E. J. The Prophecy of Daniel. Grand Rapids: Eerdmans, 1949.
ZOCKLER, Otto. “The Book of the Prophet Daniel.” In: Lange’s Commentary on the Holy
Scriptures, Volume 13. Traduzido por Philip Schaff. Reprint, Grand Rapids: Zondervan,
1960.
Outras fontes
BEALE, G. K. The Use o f Daniel in Jewish Apocalyptic Literature and in the Revelation of
St.John. Lanham, Md.: University Press of America, 1984.
BURY, J. B.; COOK, S. A.; ADCOCK, F. E. (Ed.). The Cambridge Ancient History.
Volume IV. The Persian Empire and the West. Cambridge: University Press, 1969.
CAREY, Greg. Ultimate Things: An Introduction to Jewish and Christian Apocalyptic
Literature. St. Louis: Chalice Press, 2005.
CHARLES, Robert H. Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English:
W ith Introduction and Critical and Explanatory Notes in Several Books. 2 Volumes.
Oxford: Clarendon Press, 1969.
CHARLESWORTH, James H. The Old Testament Pseudepigrapha. 2 Volumes. Nova
Iorque: Doubleday, 1983-1985.
COLLINS, John J. (Ed.). Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14. Atlanta:
Society of Biblical Literature, 1979.
_____ . The Apocalyptic Imagination: An Introduction to the Jewish Matrix of Christianity.
Nova Iorque: Crossroads, 1984.
_____ . (Ed.). The Encyclopedia o f Apocalypticism: Volume 1, The Origins of Apocalypticism
in Judaism and Christianity. Nova Iorque: Continuum, 1999.
COOK,J. M. The Persian Empire. Nova Iorque: Schocken, 1983.
COOK, Stephen L. Prophecy and Apocalypticism: The Postexilic Social Setting.
Minneapolis: Fortress Press, 1995.
_____ . The Apocalyptic Literature. Interpreting Biblical Texts. Nashville: Abingdon Press,
2003.
19
BIBLIOGRAFIA NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

COOK, S. A.; ADCOCK, F. E.; CHARLESWORTH, M. P. (Ed.). The Cambridge


Ancient History. Volume VII. The Hellenistic Monarchies and the Rise of Rome. Cambridge:
University Press, 1954.
GAMMIE, J. G. Daniel. Knox Preaching Guides. Atlanta: John Knox Press, 1983.
GRAYSON, A. K. Assyrian and Babylonian Chronicles. Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns,
2000.
HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological Roots of
Jewish Apocalyptic Eschatology. Edição revisada. Filadélfia: Fortress Press, 1979.
_____ . “Apocalyptic Literature.” In: The Hebrew Bible and Its Modern Interpreters. Editado
por Douglas A. Knight e Gene M. Tucker. Filadélfia: Fortress Press, 1985.
HELLHOLM, David (Ed.). Apocalypticism in the Mediterranean World and the Near
East: Proceedings of the International Colloquium of Apocalypticism. Uppsala, August
12-17,1979. Tubingen: Mohr-Siebeck, 1983.
MEADOWCROFT, T. J. Aramaic Daniel and Greek Daniel: A Literary Comparison.
Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series 198. Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1995.
MOLTMANN, Jurgen. Theology of Hope. Traduzido por J. W. Leitch. Nova Iorque:
Harper and Row, 1967.
MORRIS, Leon. Apocalyptic. Grand Rapids: Eerdmans, 1972.
MOWINCKEL, Sigmund. He That Cometh. Traduzido por G. W. Anderson. Nova
Iorque: Abingdon Press, 1954.
MURPHY, Fredrick J. “Introduction to Apocalyptic Literature.” In: The New Interpreter’s
Bible. Volume 7. Nashville: Abingdon Press, 1996.
OSWALT, John N. “Recent Studies in Old Testament Apocalyptic.” In: The Face o f Old
Testament Studies: A Survey of Contemporary Approaches. Editado por David W. Baker
e Bill T. Arnold. Grand Rapids: Baker, 1999.
PRITCHARD, James B. Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. 3rd
Edition. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1969.
REDDISH, Mitchell G. (Ed.). Apocalyptic Literature: A Reader. Nashville: Abingdon
Press, 1990.
ROWLAND, Christopher. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and
Early Christianity. Nova Iorque: Crossroad, 1982.
ROWLEY, H. H. The Relevance of Apocalyptic: A Study of Jewish and Christian
Apocalypses from Daniel to Revelation. London: Lutterworth Press, 1944.
RUSSELL, D. S. The Method and Message of Jewish Apocalyptic. Old Testament Library.
Filadélfia: Westminster Press, 1964.
_____ . Divine Disclosure: An Introduction to Jewish Apocalyptic. Filadélfia: Fortress
Press, 1992. SANDY, D. Brent. Plowshares and Pruning Hooks: Rethinking the Language
of Biblical Prophecy and Apocalyptic. Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 2002.
SHEA, William H. Daniel: A Reader’s Guide. Nampa, Idaho: Pacific Press Publishing
Association, 2005.
20
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON BIBLIOGRAFIA

STEFANOVIC, Zdravko. The Aramaic o f Daniel in Light of Old Aramaic. JSOT


Supplement Series 129. Sheffield: JSOT Press, 1992.
W HITCOM B, John C., Jr. Darius theMede: A Study in Historical Identification. Grand
Rapids: Eerdmans, 1959.
WISEMAN, D. J.; MITCHELL, T. C.; JOYCE, R.; MARIN, W J.; KITCHEN, K. A.
Notes on Some Problems in the Book of Daniel. London: Tyndale, 1965.
WISEMAN, D. J. Nebuchadrezzar and Babylon. Oxford: Oxford University Press, 1985.
W OUDE, A. S. van der. (Ed.). The Book of Daniel in the Light of New Findings. Leuven:
University Press, 1993.
YAMAUCHI, Edwin M. Persia and the Bible. Grand Rapids: Baker, 1996.

21
INTRODUÇÃO

O livro de Daniel transmite uma mensagem nova a cada geração. Ele tem
feito isso nos últimos dois milênios. O livro convida seus leitores a viverem
dentro de uma história maior do que a sua própria vida. Ele oferece-lhes um
vislumbre da abrangência ampla da história do homem e das proporções
universais dos propósitos de Deus. À luz de certezas sobre o destino final deste
mundo, esse livro desafia os crentes a arriscarem-se a exercer uma fé radical em
Deus dentro do contexto de um mundo hostil.
Essa mensagem tem sido especialmente relevante para aqueles indivíduos
e comunidades que se sentem desiludidos pela presente realidade. Enquanto os
sistemas políticos e sociais desapontam, Daniel traz esperança. Em contextos
caracterizados por governos opressivos e até mesmo hostis ao Senhor, Daniel
inspira coragem. Quando as fortes correntes dos valores seculares confundem-nos,
Daniel desafia-nos a fazer escolhas claras. Quando a canção da sereia da
concessão cultural seduz-nos, Daniel dá-nos razão para exercer o autodomínio.
Século após século, as páginas de Daniel têm fortalecido os fiéis.

A. Interesse por Daniel


Embora a mensagem central de Daniel continue a alimentar a fé para a vida
cotidiana, muito da atenção dada ao livro tem sido motivada por outro fator.
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Daniel tem gerado interesse ao longo dos séculos por causa de seu aparente
foco nos últimos dias da história do homem. Como revela uma pesquisa de
interpretação, grupos dentro de cada nova geração tendiam a associar seu
contexto contemporâneo com o fim dos tempos (veja Goldingay, 1989, p. xxi-
xxxviii). De um jeito ou de outro, as pessoas sentiam que podiam identificar-se
com os personagens e imagens apresentadas no livro. Esse sentim ento
tem estado presente nas comunidades judaicas e cristãs desde os tempos mais
antigos até os dias de hoje.
A comunidade judaica responsável pelos Manuscritos do mar Morto nas
cercanias de Qumrã, por exemplo, aplicaram as profecias de Daniel ao seu
contexto particular. Fragmentos de pelo menos oito manuscritos do livro e
vários outros documentos testificam sobre a importância do livro de Daniel
dentro dessa comunidade. Tendo vivido pouco antes e ao longo dos primeiros
anos da era cristã, esse grupo desenvolveu características importantes do
seu autoentendimento por intermédio do livro de Daniel. Eles esperavam o
cumprimento das profecias de Daniel na sua época, o que incluía a vinda de
um messias e a derrota da autoridade romana (veja Collins, 1993, p. 72-79).
Os primeiros cristãos valorizavam Daniel por razões semelhantes, mas
também por outros motivos. Sem dúvida, Jesus foi um pioneiro ao chamar
a atenção para o livro. Seus ensinamentos sobre os últimos dias em Mateus
24 basearam-se, consideravelmente, nas imagens e no vocabulário de Daniel.
Suas constantes referências a si mesmo como “Filho do homem” em Marcos
2.10, 8.38 e em outras passagens remetiam a Daniel 7.13,14, fornecendo
uma interpretação da Sua identidade como o Messias de Deus. O fato de os
escritores dos Evangelhos terem selecionado esse material para incluir em seus
livros, indica a importância de Daniel entre aquelas primeiras comunidades
que eles representavam.
Outros escritores do Novo Testamento também se referiram a Daniel.
E evidente que as visões em Daniel 7— 12 moldaram as exposições de
Paulo sobre a ressurreição e o retorno de Cristo em 1 Tessalonicenses
4;5, 2 Tessalonicenses 2 e 1 Coríntios 15. Lucas e o escritor de Hebreus
demonstram influências semelhantes em um grau menor. Contudo, o maior
impacto de Daniel no Novo Testamento encontra-se no livro de Apocalipse.
As visões que João teve de Cristo e das regiões celestiais ao longo desse
livro, incluindo a besta e as suas atividades, refletem repetidamente a
linguagem de Daniel. (Veja um excelente artigo de Adela Yarbro Collins,
“The Influence of Daniel on the New Testament”, em Collins, 1993, p. 90-
112 .)
24
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Desde a era do N T até o presente, os cristãos têm se voltado para Daniel para
obter uma perspectiva do mundo em que vivem (veja a coleção de comentários
dos primeiros cristãos sobre Daniel em Stevenson e Glerup, 2008). A obra
de Hipólito sobre Daniel no terceiro século foi o primeiro comentário longo
sobre um livro do AT. Entre aqueles que estudaram o conteúdo de Daniel no
passado, encontram-se Orígenes, Crisóstomo, Jerônimo, Lutero e Calvino. Em
todas as épocas, Daniel tem oferecido esperança e clareza para uma vida de
fidelidade em tempos difíceis.

B. Características literárias especiais


Daniel destaca-se entre os livros proféticos do AT por causa do seu
relacionamento com o apocaliticismo - uma visão de mundo específica
refletida por intermédio de um tipo de literatura que ganhou popularidade
entre 300 a.C. e 200 d.C. em certos círculos judaicos e cristãos. Embora os
estudiosos debatam algumas obras, elementos apocalípticos são geralmente
reconhecidos entre escritos judaicos tais como o 1 E noque , os Ju b ileu s, o
A pocalipse d e A braão, 2 B a ru q u e e 4 Esdras. Entre fontes cristãs, existem o
P astor d e H errnas, o A pocalipse d e P edro, A scensão d e Isaías e o A pocalipse d e
Paulo. Em diversas instâncias, os cristãos adaptaram os escritos apocalípticos
judaicos aos seus propósitos.
No AT, esse tipo de escrito é refletido em porções de Isaías, Joel, Ezequiel e
Zacarias, além de Daniel. O livro de Apocalipse é o principal representante da
literatura apocalíptica no NT.
Essa família de textos exibe uma considerável variedade de forma e
conteúdo. Contudo, um número suficiente de atributos comuns pode ser
observado para identificar uma categoria de literatura que os estudiosos
chamam de literatura apocalíptica. O termo vem do vocábulo grego apocalypsis,
que significa “revelação” ou “desvendamento”. A palavra sugere uma revelação
dos mistérios divinos. O termo ocorre na primeira frase de Apocalipse como
um indicador da natureza do material daquele livro.
Uma definição geralmente aceita do gênero identifica um apocalipse
como “um gênero de literatura revelatória com uma estrutura narrativa na
qual a revelação é trazida por um ser sobrenatural a um recipiente humano,
desvendando uma realidade transcendental que é ao mesmo tempo temporal,
na medida em que ela aborda a salvação escatológica, e espacial, na medida em
que ela envolve outro mundo - o sobrenatural” (Collins, 1979, p. 9). Duas
25
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

subcategorias têm-se distinguido dentro desse gênero: as que contêm uma


jornada sobrenatural e as que não o fazem (Collins, 1984, p. 6-24).
Como indica a definição, o foco da literatura apocalíptica é a “revelação de
uma realidade transcendente”. Ela busca desvendar os planos de Deus para o
futuro, particularmente para o fim do mundo. A visão de mundo apocalíptica
é caracterizada por dualismos temporais, espaciais e morais. O presente mundo
mau dará lugar a um mundo onde a justiça de Deus é plenamente manifestada.
Em geral, essa mensagem é transmitida por “um ser sobrenatural a um recipiente
humano”, usando imagens fantásticas e linguagem figurativa.
Um resumo das características tipicamente encontradas nessa literatura
inclui: (1) linguagem simbólica e imagens surreais, (2) visões celestiais guiadas
por anjos, (3) uma forte distinção entre a presente era maligna e a futura era
benigna, (4) a previsão de um clímax caracterizado pela intervenção de Deus
na história do homem, (5) a autoria falsamente atribuída a um personagem
de fé famoso, e (6) uma história escrita como se fosse profecia. Esses são os
elementos mais frequentes na literatura. Entretanto, nem todos os escritos
apocalípticos contêm todas essas características.
O efeito da literatura apocalíptica é permitir que as pessoas adquiram uma
perspectiva mais clara do seu mundo ao vislumbrarem as realidades das regiões
celestiais. Os leitores conseguem contemplar o seu lugar no drama decorrente
da história. Eles passam a ver suas lutas com o mal no contexto de uma história
muito maior. A esperança nasce a partir da descoberta de que Deus e a Sua
bondade hão de triunfar no final.
Muitas das características da literatura apocalíptica também podem ser
encontradas em outros livros proféticos do antigo Israel. Linguagem simbólica,
relatos de visões, um interesse no final dos tempos e o triunfo final de Deus
sobre o mal são todos característicos de métodos e preocupações proféticas.
Em geral, a literatura profética tende a buscar a salvação de Deus na história,
enquanto a literatura apocalíptica vê o seu cumprimento no final dos tempos.
Essa conexão com a literatura profética indica que, num certo sentido,
o apocaliticismo foi um desenvolvimento ou uma extensão do movimento
profético em Israel. Imagens e conceitos usados na literatura apocalíptica
estão profundamente enraizados na tradição profética de Israel. Escritos
apocalípticos também demonstram conexões com a tradição israelita de
sabedoria e com fontes não israelitas. Influências do pensamento babilónico,
persa, egípcio e grego podem ser detectadas nos escritos apocalípticos.
Daniel, claramente, classifica-se dentro da tradição do apocaliticismo
judaico. O sonho no capítulo 2 e as visões nos capítulos 7 a 12, em particular,
26
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

empregam técnicas e ideias comumente usadas por escritores apocalípticos.


Seres sobrenaturais guiam Daniel em uma visão das regiões celestiais,
revelando coisas que estão no futuro. Daniel vê a história desdobrando-
se em períodos e relata alguns eventos bastante específicos envolvidos nessa
história. Ele faz referência a batalhas universais, à ressurreição e ao julgamento
escatológico. Todas essas características ocorrem com frequência na literatura
dos apocalipses.
Os estudiosos concordam, no entanto, que, embora Daniel compartilhe
muitas das características dos livros apocalípticos, ele não segue todos os
elementos formais do gênero apocalíptico. Daniel tende a desviar-se dos padrões
dos escritos apocalípticos, incorporando elementos que não são encontrados
em outros apocalipses. Em geral, Daniel exibe menos imagens extravagantes
e fantásticas do que outras obras apocalípticas e vê a salvação mais no âmbito
da história do homem do que além dela. Daniel parece ter tido um papel
transicional no movimento que levou da literatura profética à apocalíptica no
judaísmo antigo. Alguns estudiosos têm designado as seções apocalípticas de Isaías,
Zacarias e Ezequiel como “protoapocalípticas”, baseados em seu caráter. Daniel
reflete desenvolvimentos que vão além desses livros; no entanto, ele não possui
as características encontradas em obras apocalípticas posteriores.

C. Autoria
O caráter apocalíptico de Daniel sugere a possibilidade de que o livro
seja pseudônimo. Isso quer dizer que uma pessoa diferente de Daniel teria
escrito o livro, posando como o famoso profeta visionário. Tal prática era
amplamente empregada no mundo helenístico, e a maioria dos apocalipses
foi escrita dessa forma. Tanto escritores apocalípticos judeus como cristãos
costumavam atribuir suas obras a antigos heróis da fé, como Enoque, Abraão,
Moisés, Baruque, Esdras ou Paulo. Como resultado disso, a maior parte das
profecias em seus livros, na verdade, não eram previsões. Elas eram lembranças
históricas. As profecias parecem ser muito exatas, porque elas, na verdade,
foram dadas depois dos fatos. Em geral, no final dessas pseudoprofecias, que
familiarizavam os leitores com situações contemporâneas ao autor, eram feitas
algumas previsões sobre o futuro imediato.
O propósito dessa técnica era dar credibilidade à obra. O objetivo não
era tanto enganar como enfatizar a mensagem teológica do livro. Ao usar um
pseudônimo, os autores aparentemente buscavam identificar-se com o autor
antigo e afirmá-lo. Eles eram parte de uma venerável tradição de fé.
27
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Entretanto, nem todos os estudiosos concordam que Daniel seja


pseudônimo. Muitos acreditam que o livro seja singular entre os apocalipses,
e que o herói do livro tenha sido o seu autor. Há muito pouca evidência de
que interpretadores antigos, tanto judeus como cristãos, tenham entendido
que Daniel era pseudônimo. Os comentários da comunidade de Qumrã, os
rabinos e até mesmo outros escritores apocalípticos sugerem que eles pensavam
que Daniel era o verdadeiro autor. Escritores do NT, Josefo, Jerônimo e outros
cristãos indicam o mesmo. A afirmação de Jesus em Mateus 24.15 parece indicar
que Ele via Daniel como o autor do livro ou, pelo menos, como o originador
das palavras proféticas que este continha. Nessa passagem, ele refere-se ao
sacrilégio terrível, do qual falou o profeta Daniel.
Para a mente moderna, a lógica da obra pseudônima é difícil de aceitar.
A credibilidade de uma obra parece ser debilitada pela autoria falsa. As visões
do livro sugerem claramente que Daniel, realmente, as teve em momentos
específicos do sexto século a.C.. Se Daniel, na verdade, não teve essas visões
e registra profecias verdadeiras sobre o futuro, então a validade da mensagem
central do livro sobre a soberania de Deus parece enfraquecida. Isso, por sua
vez, parece diminuir o efeito desejado pelo livro, que é induzir a fé no Deus de
toda a história.
A posição de uma pessoa sobre essa questão não a classifica necessariamente
como liberal ou conservadora. Embora alguns dos indivíduos que veem o livro
como pseudônimo possam negar a possibilidade da existência de profecias
genuinamente preditivas, outros não o fazem. Alguns dos estudiosos que têm
uma visão elevada da inspiração bíblica acreditam que Daniel era pseudônimo
(ex., Goldingay, 1989, p. xxxix). Eles entendem a pseudonímia simplesmente
como outro método pelo qual Deus comunicou Sua mensagem a um público
antigo.
O efeito de aceitar Daniel como pseudônimo é diminuir o elemento da
profecia preditiva no livro. Ele não é totalmente eliminado, contudo, já que
algumas previsões são feitas para além da época do autor. A ideia da previsão
detalhada de eventos no futuro, contudo, é diminuída. Isso alinha Daniel a
outros profetas de Israel que preferiam falar do futuro em termos mais gerais.
Além disso, o sentido da soberania de Deus sobre a história do homem ainda é
preservado em um escrito pseudônimo. O relato de eventos nas pseudoprofecias
tende a enfatizar o controle de Deus sobre este mundo.

28
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

D. Data de escrita
Se Daniel é pseudônimo, então ele deve ser datado de um período posterior
à vida do profeta. A opinião atual predominante entre muitos biblicistas é
de que Daniel foi escrito no segundo século a.C., na época da Revolta dos
Macabeus. Em geral, considera-se que a data precisa da sua composição seja
entre 167 e 164 a.C., aproximadamente.
De acordo com essa teoria, o livro é o resultado de uma tradição crescente
que toma sua forma final no segundo século. Exatamente como e onde as
diversas camadas foram adicionadas é uma questão para debate acadêmico.
Porém, o esboço essencial é de que as primeiras histórias sobre Daniel nos
capítulos 1 a 6 eventualmente tenham sido acopladas às visões dos capítulos 7
a 12 (Collins, 1993, p. 24-38).
Um filósofo não cristão chamado Porphyry (233-304 d.C.) foi o primeiro
a propor os elementos essenciais dessa teoria no terceiro século a.C.. Seus
argumentos são conhecidos porque Jerônimo (331-420 d.C.) respondeu
sistematicamente a eles em seu comentário sobre Daniel. Durante os séculos 17
e 18, biblicistas começaram a reafirmar esse ponto de vista. Ele ganhou ampla
aceitação entre acadêmicos ao longo dos séculos seguintes, mas de modo geral
não entre estudiosos conservadores ou a laicidade da igreja.
Uma teoria alternativa sobre a data da composição do livro é o sexto século
a.C.. Um período sugerido equivale ao final da vida de Daniel ou pouco depois,
em torno de 530 a.C. (Miller, 1994, p. 23). Essa teoria vê o material como
tendo sido compilado por Daniel ou um dos seus discípulos. Em qualquer
dos casos, tanto as histórias como as visões são entendidas como composições
autênticas derivadas de Daniel no sexto século a.C., e não pseudônimas.
O debate entre essas duas teorias envolve diversas questões. Algumas das
mais importantes são as seguintes:
(1) No coração da discussão, está o fato de que um dos focos do livro é
a perseguição dos judeus sob Antíoco IV Epifânio entre 167 e 164 a.C., o
que provocou a Revolta dos Macabeus em Judá. Com detalhes cada vez mais
precisos, os eventos do livro movem-se em direção ao seu clímax no capítulo
11. Como o comentário irá demonstrar, a correspondência entre essa profecia
e os eventos decorridos durante a Revolta dos Macabeus é notável.
As obras apocalípticas judaicas, muitas vezes, revelam sua data de
composição dessa maneira. Elas familiarizam o leitor com o contexto
contemporâneo antes de prever um resgate divino no final. Se Daniel é
pseudônimo e segue as convenções regulares da literatura apocalíptica, então a
29
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

datação do segundo século é a conclusão lógica. Os estudiosos que veem Daniel


dessa maneira reconhecem que uma parte do material do livro teve sua origem
no contexto do sexto século. Eles acreditam, no entanto, que esses trechos
foram transmitidos pela comunidade de fé a um autor do segundo século que
finalmente compôs o livro.
Esses estudiosos também observam que a mensagem de Daniel parece,
particularmente, apropriada para as pessoas que estavam vivendo durante
a perseguição selêucida e concomitante Revolta Macabeia. O desafio de
permanecer firmes face à opressão estrangeira é exatamente o que os judeus que
estavam vivendo essas crises precisavam ouvir. Ser lembrado do reino soberano
de Deus sobre a história do homem certamente teria encorajado a perseverança
durante a resistência macabeia aos selêucidas.
Outros estudiosos também reconhecem que grande parte do material está
relacionada à perseguição ao judaísmo no segundo século, mas acreditam que
o livro foi composto no sexto século. Eles argumentam que, como um todo,
Daniel está falando primariamente aos judeus do sexto século. As mensagens
de Daniel, observam esses estudiosos, ecoam entre aqueles que estavam
lutando para reconstruir Judá em meio a um ambiente hostil e ao progresso
desapontador depois do exílio. O povo que vivia sob o domínio persa também
precisava ouvir as palavras encorajadoras de Daniel.
Esses estudiosos observam que, embora Daniel reflita muitas das
características da literatura apocalíptica clássica, ele não segue todas elas
rigidamente. Em particular, suas visões são menos surreais, e a salvação ocorre
dentro da história, o que se assemelha mais às seções apocalípticas de Isaías,
Ezequiel e Zacarias. Portanto, o livro poderia ser excepcional de outras formas.
Com isso, sugerem esses estudiosos, ele talvez não seja pseudônimo, e suas
visões podem muito bem ser previsões genuínas de coisas que estavam por vir.
Portanto, estudiosos de ambos os lados reconhecem que Daniel revela
conexões com contextos tanto do sexto como do segundo século. Se o livro
segue de perto as convenções dos gêneros apocalípticos clássicos, então ele
provavelmente acabou de ser composto no segundo século a.C.. Contudo, se
ele se destaca como um produto singular entre os apocalipses, então ele poderia
ser primariamente uma composição do sexto século.
(2) Outra área de discussão gira em torno de certas referências históricas aos
períodos babilónico e persa. As mais problemáticas são a invasão de Jerusalém
por Nabucodonosor no terceiro ano de Jeoaquim (1.1) e a identificação
de Dario, o medo, como conquistador da Babilônia (5.31). Essas e outras
incongruências históricas aparentes serão discutidas com mais profundidade
30
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

no comentário. Seu acúmulo sugere que o autor não estava bem informado
sobre o sexto século ou simplesmente não tinha interesse nesses detalhes. Se
os materiais foram compostos no segundo século, essa confusão e falta de
interesse talvez sejam mais compreensíveis.
Alguns comentaristas veem essas notações históricas simplesmente como
recursos literários. Todas as referências aos reinados de reis, por exemplo,
limitam-se aos três primeiros anos. Isso talvez seja uma forma de indicar que
os eventos nas histórias ou visões ocorreram perto do início do reinado desses
reis, o que em cada caso representava um momento significativo na história
judaica (Goldingay, 1989, p.14,15). A intenção talvez não tenha sido localizar
o material dentro de um ano específico, mas apenas com referência a um
período de tempo genérico.
Os estudiosos observam, no entanto, que, às vezes, Daniel demonstra um
conhecimento notável das culturas babilónica e persa. Algumas informações
poderiam ser esperadas apenas de um escritor do sexto século, e não de um
período posterior. Alguém que estivesse escrevendo muito depois do sexto século,
provavelmente, não teria sabido que Nabucodonosor, por exemplo, foi o principal
construtor da Babilônia e que Belsazar era o governante daquela cidade quando ela
caiu. Esse tipo de informação, contudo, talvez indique apenas que essas porções do
livro vieram do sexto século, e não necessariamente a composição toda.
Aqueles que argumentam a favor da confiabilidade histórica de Daniel
observam que o tipo de confusão presumida não parece provável. Em vista
da ampla familiaridade com os relatos históricos de Heródoto e Xenofonte,
parece incrível, por exemplo, que o autor não soubesse que Ciro conquistou a
Babilônia. Portanto, outra explicação para a referência a Dario, o medo, deve
ser buscada. Assim, as referências históricas que parecem confusas, talvez,
não o sejam, argumentam eles. De acordo com esses estudiosos, informações
adicionais podem substanciar, ou ao menos tornar possível, a exatidão do texto
final (veja Baldwin, 1978, p. 19-29 e Archer, 1985, p. 12-26).
(3) As línguas usadas no texto original de Daniel, algumas vezes, entraram
na discussão sobre a data do livro. Aramaico é a língua usada de 2.4—7.28,
enquanto o restante do livro está em hebraico. Os estudiosos oferecem diversas
teorias para explicar essa característica (veja Por trás do texto no cap. 2). Em
geral, contudo, essa característica fornece evidências mistas sobre a data.
O uso do hebraico e do aramaico pode ser analisado para apoiar tanto a datação
do sexto como a do segundo século. Alguns estudiosos determinaram que o
texto reflete um vocabulário e formas utilizadas muito depois do sexto século
(Collins, 1993, p. 12-23). Outros argumentaram que há mais em comum com
o sexto do que com o segundo século (Wiseman e outros, 1965, p. 34-50).
31
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Empréstimos linguísticos estrangeiros no texto de Daniel também


fornecem resultados mistos. A presença de palavras acadianas e gregas pode
ser esperada tanto no período persa como no helenístico. As palavras persas,
contudo, reforçam o argumento em favor de uma data anterior. Os tradutores
da Septuaginta não entenderam o significado de muitos desses termos. Como
a tradução grega de Daniel foi feita no meio ou no final do segundo século
a.C., esse fato talvez sugira uma datação do sexto século para a composição,
mas apenas para aquelas seções nas quais as palavras persas ocorrem. Isso não
significa que toda a composição precisa ser datada de um período anterior.
(4) A última área de discussão desenvolve-se em torno do relacionamento
de Daniel com outros escritos judaicos canônicos e religiosos. A localização
de Daniel no cânone hebraico levanta algumas questões. Ele foi colocado
entre os Escritos, e não entre os Profetas. Essa localização poderia indicar que
Daniel não estava disponível para ser incluído entre os Profetas na época em
que esses livros foram reconhecidos como um corpo de Escrituras oficiais.
Embora alguns estudiosos datem esse desenvolvimento de um período anterior
ao segundo século a.C., o processo de canonização continuou até o primeiro
século d.C.. A localização de Daniel entre os Escritos talvez indique apenas
a sua associação com outros escritos pós-exílicos e livros de sabedoria, assim
como as suas diferenças com relação aos livros proféticos clássicos.
De acordo com alguns estudiosos, a omissão de Daniel no livro de Eclesiástico,
uma obra do início do segundo século a.C., aponta para uma data posterior.
Eclesiástico faz referências específicas a Isaías, Jeremias, Ezequiel e aos 12 profetas
menores, mas não a Daniel. Contudo, essas referências são a pessoas e não a livros.
Eclesiástico não menciona outras pessoas notáveis como Esdras e Ester.
Os estudiosos observam que o impacto do livro de Daniel sobre outras
obras apocalípticas e sobre a comunidade de Qumrã foi significativo. Alguns
dos textos de Qumrã relacionados a Daniel vieram do final do segundo século.
Tais referências a um texto nessa data pareceriam surpreendentes se Daniel
fosse uma composição do segundo século. Uma afirmação semelhante poderia
ser feita com respeito às alusões a Daniel encontradas em alguns dos primeiros
escritos apocalípticos. Talvez a popularidade de Daniel em Qumrã e entre os
apocalipses faça mais sentido se ele tiver vindo do sexto século. Isso, no entanto,
não elimina a possibilidade de que Daniel pudesse ter exercido um impacto
amplo pouco depois da sua composição, como aconteceu aos livros do NT.
O resumo desse debate ilustra que as evidências não são conclusivas em
nenhuma direção. Argumentos válidos podem ser feitos a favor de cada teoria.
Portanto, uma pessoa pode escolher qualquer uma dessas duas posições e
32
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

manter sua integridade acadêmica. Uma decisão quanto a essa questão não
indica necessariamente que alguém seja conservador ou liberal. A inspiração
divina de Daniel pode ser afirmada ou negada em ambos os casos.

E. Daniel, o profeta estadista


Independente da posição que uma pessoa tenha quanto à autoria, o herói
do livro é claramente um homem chamado Daniel. Ele é descrito como um
interpretador de sonhos, um visionário e um exemplo de vida piedosa. O livro,
contudo, não é tanto sobre Daniel, como é sobre Deus. Os sonhos, visões e
histórias da vida de Daniel e dos seus amigos servem principalmente para
revelar o Senhor e os seus propósitos.
Tradicionalmente, Daniel é chamado de profeta, embora o livro, na
verdade, nunca o chame como tal. Ele não fala sobre um chamado para o
ministério profético nem emprega regularmente o gênero oratório típico dos
profetas. Contudo, ele entrega mensagens contra reis (5.22-24), chama ao
arrependimento (4.27) e recebe visões de Deus como outros profetas (cap.
7— 12). O livro compartilha claramente uma visão de mundo profética e
faz alusões constantes a outros livros proféticos. A oração no capítulo 9 em
particular reflete uma linguagem e um pensamento profético típico. Portanto,
tanto rabinos como escritores cristãos referem-se, consistentemente, a ele como
um profeta. O próprio Jesus chamou Daniel de profeta em Mateus 24.15, e os
cânones cristãos localizam Daniel entre os livros proféticos.
Com base nas informações que o livro nos dá sobre Daniel, ele era um
contemporâneo mais jovem dos profetas do AT Habacuque, Jeremias e
Ezequiel. Ele, provavelmente, nasceu em torno de 620 a.C. durante um período
de avivamento nacional e religioso sob Josias. Quando Daniel ainda era jovem,
Josias foi morto em 609 a.C., e os sonhos de um novo Israel foram despedaçados.
Depois de uma breve imposição do domínio egípcio, os babilônios tomaram o
controle da região de Judá em 605 a.C.. Naquele momento, Daniel foi levado
para a Babilônia junto a outros jovens promissores de famílias proeminentes
em Jerusalém. Josefo sugere que Daniel e seus três amigos tenham sido parentes
de Zedequias (A nt. 10.10§1). Se isso é ou não verdade, com base em Daniel
1.4, ele certamente vinha de uma família privilegiada.
Na Babilônia, Daniel recebeu um avançado treinamento que o capacitaria
a ajudar na administração do Império Babilónico em expansão. Seu dom
de sabedoria e de interpretação de sonhos conferiu-lhe status entre os seus
companheiros. Ele ascendeu rapidamente nas fileiras da liderança do estado.
33
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Ao longo de sua carreira, ele ocupou várias posições, incluindo a de governador


da província da Babilônia (2.48), chefe supremo dos sábios da Babilônia
(2.48), terceiro dominador do Império Babilónico (5.29) e um dos três maiores
príncipes do Império Persa (6.2).
Os ventos políticos no Oriente Médio mudaram dramaticamente durante
a vida de Daniel. Impérios surgiram e caíram ao longo do Crescente Fértil. O
Império Assírio de 100 anos já estava decompondo-se quando Daniel nasceu.
Nínive caiu em 612 a.C. quando Daniel ainda era menino. Os babilônios
causaram a sua ruína e estabeleceram o seu próprio império do Egito ao Elam.
Nabucodonosor, um dos reis famosos do mundo antigo, liderou os babilônios
ao ápice do seu poder e influência. Ele ocasionou um momento marcante na
história nacional de Israel ao destruir Jerusalém e o seu templo em 587 a.C.
Cinquenta anos depois, contudo, a Babilônia deu lugar à Pérsia. Em 539 a.C.,
Ciro, o Grande, conquistou a cidade e começou a trazer de volta os judeus e
outros refugiados às suas terras de origem.
Daniel testemunhou esses momentos instáveis. A última data dada no
livro é o “terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia”, em torno de 535 a.C. (10.1). Se
Daniel tiver morrido logo depois disso, ele teria vivido mais de 80 anos, uma
vida excepcionalmente longa para aquela época.

Daniel em Ezequiel
Os estudiosos debatem se Daniel é ou não m encionado no livro
de Ezequiel. Três versículos m encionam uma pessoa cham ada Daniel.
Ezequiel 14.14 e 20 incluem uma pessoa cham ada Daniel em uma lista
de três lendários hom ens justos ao lado de Noé e Jó. Ezequielta m b ém
se refere a um a pessoa cham ada Daniel em 28.3, onde ele faz uma
pergunta retórica: "Você é m ais sábio que Daniel?". Como Noé e Jó são
personalidades m u ito antigas, uma referência a Daniel, contem porâneo
no sexto século, parece descabida. Também seria incom um que um
profeta judeu obtivesse ta l status entre os seus colegas em vida.
Alguns estudiosos sugerem que Ezequiel esteja pensando em uma
pessoa desconhecida para nós ou em um personagem e xtrabíblico da
história ugarítica de Aqhat. Na lenda ugarítica, Daniel é um rei, pai de
Aqhat. A desvantagem dessa teoria é que nem a justiça nem a sabedoria
são centrais ao ca rá te r desse Daniel.

34
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

F. Público original
A forma como uma pessoa vê a autoria de Daniel afetará o seu entendimento
do público original. As circunstâncias no final do sexto século a.C. eram
diferentes das do segundo. Mais de 300 anos separam as datas de 535 a.C. e
165 a.C.. Entretanto, várias semelhanças podem ser observadas entre essas
duas épocas. As complicações de uma vida como servos fiéis a Deus durante
períodos de dominação estrangeira são comuns a ambas. Os detalhes talvez
sejam diferentes, mas a luta era semelhante. Em ambas as épocas, a mensagem
de Daniel transmitiu uma profunda palavra de esperança.
Um público no final do sexto século a.C. teria vivido durante um período
significativo de transição. Os persas estabeleceram um vasto império ao longo
do Oriente Médio durante esse período, sob a liderança de Ciro, o Grande,
(550-530 a.C.), Câmbises II (530-522 a.C.) e Dario, o Grande, (522-486
a.C.). Dario levou o império à sua maior grandeza e organização. Ele ampliou
as fronteiras em direção ao oeste, chegando até a moderna Turquia, e ao leste,
chegando ao rio Indo. Tratava-se do império mais extenso que o mundo já
havia visto até então.
Com a queda da Babilônia para os persas em 539 a.C., os anos
desesperadores do exílio de Israel chegaram ao fim. Um governante persa
mais benevolente tomou o lugar da tirania babilónica. Aqueles que haviam
sido deslocados sob o regime anterior foram convidados a voltar às suas terras
natais. Embora muitos tenham ficado para trás nos ambientes familiares da
Babilônia, Egito e outros locais, um número significativo de israelitas fez a
jornada para Jerusalém e para as regiões circunvizinhas.

O cilindro de Ciro
O cilindro de Ciro preserva a política de Ciro em 539 a.C., a qual
p erm itiu que as pessoas que haviam sido exiladas pelos babilônios
retornassem às suas terras natais e reconstruíssem seus tem plos. Ele está
escrito em aram aico, usando a escrita cunéiform e. Parte do te x to diz: "Até
Assur e Susa, Agadé, Eshnunna, as cidades de Zam ban Me-Turnu e Der,
assim com o santuários que estiveram em ruínas d urante m uito te m p o, as
im agens que viviam dentro deles e estabeleci santuários perm anentes.
Reuni [ig u a lm e n te ] todos os seus habitantes [a nterio res] e devolvi [-lhes]
as suas habitações" (Pritchard, 1969, p. 316).

35
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

De acordo com Esdras 1, Sesbazar liderou um grupo inicial da área da


Babilônia em aproximadamente 538 a.C.. Os primeiros grupos de israelitas
que voltaram a Jerusalém reconstruíram o altar e assentaram o alicerce para
o templo. Contudo, uma dura realidade econômica e a oposição dos povos
vizinhos interromperam a obra por mais de 15 anos. Em 520 a.C., o templo
foi finalmente completado e dedicado. Seu projeto e artefatos modestos
denunciavam a desilusão daquela época. A visão esperançosa que os profetas
haviam projetado para o retorno de Judá à sua terra não transcorreu. Seu povo
precisou lutar com uma economia pobre, vizinhos hostis, dissensão dentro
da comunidade e submissão a governos estrangeiros. Judá não passava de
uma entidade pequena localizada num canto de um vasto Império Persa, um
jogador insignificante no esquema da história mundial.
Para um público como esse, as histórias e visões de Daniel poderiam ins­
pirar uma esperança renovada para o futuro e fornecer perspectiva e direção
para o presente. As palavras de Jeremias e de outros profetas são esclarecidas.
O cumprimento pleno das promessas de Deus se dará no futuro, parte dele no
final dos tempos, quando houverem cessado a ascensão e a queda de nações.
Enquanto isso, os fiéis podem prosperar, e o Reino de Deus pode manifestar-se
em um mundo sob domínio estrangeiro. O poder da Pérsia não se compara à
providência de Deus que opera entre o Seu povo.
Uma mensagem similar seria transmitida a um público no segundo século
a.C., embora os personagens e as circunstâncias específicas tivessem mudado.
Em 165 a.C., as autoridades selêucidas substituíram suas contrapartes
babilónica e persa. As lutas dos fiéis incluiriam a corrupção no alto sacerdócio,
assim como uma ameaça direta à sobrevivência por meio da perseguição de
Antíoco IV.
Quando os selêucidas conseguiram tomar Judá dos ptolomeus em 198
a.C., eles deram início a um período de tumulto sem precedentes. A pressão
para que fossem adotados os costumes da cultura grega aumentavam enquanto
os sacerdotes lutavam pelo controle do templo. Em 167 a.C., Antíoco IV
suprimiu a prática do judaísmo, saqueou o templo em Jerusalém e dedicou-o
novamente a Zeus, martirizando todos aqueles que não obedecessem a suas
ordens. De acordo com 2 Macabeus 6.5,6, “O próprio altar estava repleto das
oferendas proibidas, reprovadas pelas leis. Não se podia celebrar o sábado,
nem guardar as festas tradicionais, nem simplesmente se declarar judeu”. Tais
eventos provocaram uma revolta em grande escala e um movimento ousado de
guerrilha liderado por Judas Macabeu e sua família de descendência asmoneu.
A vantagem dos selêucidas era avassaladora.
36
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Em meio a essas circunstâncias, o livro de Daniel poderia inspirar coragem


à resistência judaica. A recusa de Daniel de comprometer suas convicções
religiosas, sua visão da ascensão e da queda de nações e suas previsões da vitória
final de Deus forneceriam a perspectiva e o encorajamento necessários para os
rebeldes macabeus.

G. Estrutura do livro
O livro de Daniel é uma unidade literária. Diversos dispositivos criativos e
estruturais foram empregados para manter um sentido de coesão entre os vários
componentes do texto. Quer a pessoa veja Daniel como um produto de uma
tradição crescente ou como uma composição singular, ele hoje é consagrado
como uma união bem planejada de materiais.
O equilíbrio é conseguido, primeiramente, por meio de gêneros literários
e sequências históricas. Os capítulos de 1 a 6 contêm histórias, enquanto os
capítulos 7 a 12 consistem de visões. Ambas as seções progridem historicamente,
da data mais antiga à mais recente. Temas comuns são entretecidos ao longo de
cada capítulo, unindo as duas partes do livro.
Os primeiros seis capítulos consistem em dois tipos de histórias que
foram arranjadas de modo a aumentar o seu impacto. Três histórias são testes
de fidelidade, e três são testes de sabedoria. Esses dois tipos de histórias são
apresentados alternadamente. O capítulo 1 é a história de um teste de fidelidade
seguida da história de um teste de sabedoria no capítulo 2. Os capítulos 3 e 4
formam uma parelha similar. Os dois últimos capítulos revertem a ordem da
apresentação. O capítulo 5 é a história de um teste de sabedoria, enquanto o
capítulo 6 é um teste de fidelidade.
Os seis últimos capítulos de Daniel são relatos de visões. Eles são arranjados
em ordem cronológica e fornecem cada vez mais detalhes dos eventos futuros.
O resumo da ascensão e da queda dos reinos no capítulo 7 é expandido nos
capítulos subsequentes. As últimas três visões tornam-se progressivamente
mais longas, sendo que a última nos capítulos 10 a 12 é acima de três vezes
mais longa do que as outras.
Um sumário simples dos materiais seria o seguinte:
I. Histórias de uma terra estrangeira (cap. 1—6)
A. A contaminação alimentar: o primeiro teste de fidelidade (cap. 1)
B. O sonho da estátua: o primeiro teste de sabedoria (cap. 2)
C. A fornalha em chamas: o segundo teste de fidelidade (cap. 3)
D. O sonho da árvore: o segundo teste de sabedoria (cap. 4)
37
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

E. A inscrição na parede: o terceiro teste de sabedoria (cap. 5)


F. A cova dos leões: o terceiro teste de fidelidade (cap. 6)
II. Visões de uma terra estrangeira (cap. 7— 12)
A. A visão das quatro bestas (cap. 7)
B. A visão das duas bestas (cap. 8)
C. A visão das Setenta semanas (cap. 9)
D. A visão de uma grande guerra (cap. 10— 12)
Uma característica singular e enigmática do livro é uma seção de material
em aramaico de 2.4—7.28. Sua estrutura quiástica empresta uma forte coesão
à unidade. Os capítulos 2 e 7 são paralelos, assim como os capítulos 3 e 6. Os
capítulos 4 e 5 funcionam como um par, formando o fulcro da seção. O efeito
dessa seção é unir as histórias e as visões. Organizando as coisas desse modo,
o autor sugeriu que as duas seções do livro devem ser entendidas à luz uma da
outra.
H. Versões gregas de Daniel
As versões gregas de Daniel variam consideravelmente com relação à versão
hebraica/aramaica preservada pela tradição massorética. A diferença mais
acentuada consiste nas três adições encontradas nos textos gregos. Essas são
incluídas ao longo do livro de Daniel nos cânones católico romano e ortodoxo
das Escrituras. A igreja anglicana coloca-as em uma seção separada conhecida
como apócrifos ou livros deuterocanônicos. Elas são intituladas: (1) A Oração
de Azarias e o Cântico dos três jovens; (2) Susana: e (3) Bei e o dragão.
A Oração de Azarias e o Cântico dos três jovens fornecem detalhes
adicionais à história da fornalha de fogo ardente em Daniel 3. O material
contém 68 versículos e encaixa-se entre Daniel 3.24 e 25 no texto hebraico/
aramaico. Ele relata uma oração e um cântico entoado pelos três amigos de
Daniel enquanto estes estavam na fornalha. O trecho começa com um lamento
de Azarias, também conhecido como Abede-Nego. Ele confessa os pecados da
nação e pede a Deus pelo livramento. Depois disso, os três homens entoam um
cântico que convida toda a criação a louvar a Deus. O trecho termina com uma
declaração de louvor dos três pelo livramento.
O livro de Susana é a história de uma mulher virtuosa erroneamente
acusada de adultério. Daniel resgata-a quando desvenda o plano ardiloso dos
seus acusadores e leva-os a revelar a sua iniquidade. A sabedoria superior de
Daniel é enfatizada mais uma vez. Nos antigos manuscritos gregos, a história
foi encaixada antes do restante do livro de Daniel, mas acabou sendo incluída
como capítulo 13 na Vulgata e nas Bíblias católicas romanas modernas.
38
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Bei e o dragão está localizado no final do livro. O trecho conta a história de


como Daniel confrontou a adoração a ídolos. Por meio de meios inteligentes,
ele prova que nem Bei nem o dragão (ou serpente) eram verdadeiramente
divinos. Isso deixou alguns oficiais irados, os quais mandaram jogá-lo em uma
cova de leões. Assim como em Daniel 6, ele é miraculosamente salvo de ser
comido.
Cada um desses trechos parece ser uma adição posterior ao texto mais
original em hebraico/aramaico, embora isso tenha sido debatido. Esses
materiais não foram reconhecidos como parte do cânone pelo judaísmo, nem
portanto pela maioria das igrejas protestantes.
Outras diferenças entre as versões grega e a hebraica/aramaica ocorrem ao
longo do livro. As variações mais significativas estão localizadas nos capítulos
3 a 6. Das diversas versões gregas, a do grego antigo (Septuaginta) acrescenta
e omite materiais mais livremente do que as outras. Talvez, seja por isso que
Teodócio, que segue de perto o TM, tenha substituído o grego antigo para o uso
cristão no tempo de Jerônimo. As diferenças entre o grego antigo e o TM são
difíceis de avaliar. Enquanto a tradição massorética tem sido costumeiramente
considerada mais original, alguns estudiosos argumentam em favor da
anterioridade do grego ou sugerem que ambas as versões basearam-se em
um texto ainda mais antigo, o qual não chegou até nós. Em qualquer caso, os
pontos em que o antigo grego diverge do TM reformulam significativamente
as histórias do livro, particularmente nos capítulos 4 e 5. (Para uma discussão
mais aprofundada, veja Hartman e Di Lella, 1978, p. 76-84 e Meadowcroft,
1995, p. 278-280.)

I. Questões hermenêuticas
Assim como com toda literatura, as interpretações dependem de como a
pessoa entende a natureza do material. No livro de Daniel, prevalecem dois
pontos de vista básicos. Um deles considera o material como uma literatura
ficcional criada para um contexto particular do segundo século a.C.. O
outro vê-o como um relato de experiências verdadeiras que emergiram de
um contexto do sexto século a.C.. O primeiro enfatiza o caráter imaginário
do texto, enquanto o último defende uma qualidade mais histórica. Ambos
reconhecem a criatividade literária tanto das histórias como das visões.
Proponentes da primeira teoria acreditam que o livro baseia-se em lendas
anteriores, adicionando criativamente outros materiais para transmitir uma
mensagem a um público posterior. A narrativa projeta a si mesma como sendo
39
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do sexto século a.C. para fornecer uma perspectiva durante uma crise de fé
no segundo século a.C.. A precisão histórica não é um interesse essencial
nesse cenário, portanto o interpretador não deveria preocupar-se muito com
essas questões. O autor não teve a intenção de escrever um relato histórico e,
às vezes, parece confuso quanto a esses detalhes. As previsões proféticas não
têm uma grande relevância tampouco. Embora o livro pretenda projetar
eventos futuros, a maioria das profecias pode ser melhor entendida como uma
repetição do passado. Apenas a previsão da vitória final de Deus e do Seu povo
permanece no futuro.
A segunda abordagem básica do livro considera as referências históricas e
proféticas de forma mais literal. Seus proponentes acreditam que o material é um
registro histórico preciso e faz previsões genuínas sobre eventos futuros, alguns
dos quais já se cumpriram, e outros, não. O livro é visto como um produto do
sexto século a.C. designado para comunicar-se com um público daquele período,
a respeito de coisas presentes e coisas que ainda estavam por vir.
Dentro da estrutura dessa segunda abordagem básica, diversas rotas de
interpretação já foram exploradas. Alguns enfatizam o elemento preditivo,
[como se o livro] incluísse uma espécie de plano para eventos futuros. Eles
veem o desenho de um mapa bastante preciso dos eventos do fim dos tempos.
Outros são mais comedidos na identificação do significado do simbolismo. Eles
consideram que as imagens transmitem verdades mais genéricas sobre Deus e
os Seus propósitos, sem a intenção de especificar cada detalhe do futuro. Entre
esses dois polos, existe uma variedade de posições sobre como lidar com as
diferentes passagens do livro.
Independente de como os interpretadores abordem Daniel, eles precisam
manter em mente que, nas tradições judaica e cristã, o livro foi separado como
escritura sagrada. Portanto ele tem sido visto como impositivo para a fé e prática
dessas comunidades. O livro fala dos propósitos de Deus para este mundo por
meio de histórias dominadas por narrativas e visões dramáticas que refletem um
estilo de escrita apocalíptica. Cada um dos elementos das seguintes descrições
do livro afeta a sua interpretação. Para esclarecer, o livro precisa ser entendido
como escritura, como uma obra literária, como um documento teológico e um
material de cunho histórico.
Como escritura, o livro de Daniel deve ser lido em seu contexto canônico.
Inicialmente ele era parte das Escrituras hebraicas. Nesse contexto, Daniel
está localizado entre os escritos, os quais contêm obras de sabedoria e escritos
pós-exílicos com as quais Daniel compartilha diversas conexões. Os
inter-relacionamentos entre Daniel e esses tipos de livros no cânone hebraico
40
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

deveriam fornecer-nos uma perspectiva para a interpretação. Daniel também


se baseia em temas, ideias centrais, cenários e outros elementos de outros
livros nas Escrituras hebraicas. Essas relações também deveriam ser levadas em
consideração pelo interpretador.
O livro também funciona como parte do cânone cristão. Nesse contexto,
ele está localizado entre os livros proféticos. Sua ligação com esses livros
fornece um in sigh t adicional quanto às ideias centrais, aos temas e à estrutura
de Daniel. Além disso, como escritura cristã, Daniel precisa ser lido com
referência ao N T e à tradição cristã. As formas como tanto os escritores do
N T como os interpretadores cristãos têm entendido e reaplicado a mensagem
do livro deveria guiar os interpretadores modernos. Devemos atribuir um peso
maior às interpretações dos escritores do NT, já que não se trata simplesmente
de mais uma opinião, mas sim de escrituras inspiradas.
Às vezes, o uso que o NT faz de Daniel pode indicar o cumprimento de
previsões específicas sobre Jesus assim como confirmar projeções sobre eventos
futuros que ainda estão por vir. Em outras ocasiões, entretanto, as imagens
de Daniel podem simplesmente fornecer padrões de atividades humanas e
divinas. Nesses casos, Daniel não previu fatos messiânicos ou relativos ao fim
dos tempos, mas forneceu imagens que podem ser empregadas para descrevê-
-los ou explicá-los. Muitas das profecias que foram cumpridas dentro de um
contexto do segundo século a.C. podem ser reaplicadas a eventos posteriores.
Assim como acontece com outros livros proféticos, Daniel nem sempre distin­
gue claramente as camadas de tempo no futuro. Nesses casos, é possível que ele
esteja vendo juntos eventos que, na verdade, são separados.
De acordo com a sua própria natureza, as Escrituras têm como objetivo
instruir. Primeiramente elas ensinam sobre Deus e, então, instruem sobre como
os homens podem viver em relacionamento com Ele. Embora precisemos ser
cautelosos ao tomarmos o comportamento de Daniel como normativo para os
cristãos modernos, esse é um uso legítimo do texto. As Escrituras têm como
intenção oferecer uma direção prática, assim como alicerces teológicos para a
vida. Daniel e os seus amigos são modelos de fidelidade. À medida que o inter­
pretador cria uma ponte entre os séculos, contudo, as dinâmicas dos contextos
correspondentes precisam ser cuidadosamente analisadas.
Como obra literária, o livro de Daniel deveria ser analisado de acordo
com os tipos de sinais que o seu autor envia aos leitores para transmitir
significados. Seja quem for o autor do livro, ele certamente intencionou
comunicar certas coisas por meio do conteúdo e das formas empregadas em
seus escritos. As narrativas na primeira parte do livro são bem desenvolvidas
41
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

na arte de contar histórias. Os interpretadores devem ponderar as técnicas


de desenvolvimento dos personagens e das tramas, assim como as referências
contextuais. Jogos de palavras, recursos estruturais, cenários, imagens e um
número de outros recursos literários devem ser examinados quanto ao efeito
que têm sobre a mensagem do material. O interpretador deve ter o cuidado de
escutar por intermédio dos ouvidos de um público judaico. Embora as tramas
sejam bem conhecidas de públicos antigos, os israelitas viram-no desenrolar-se.
Seus finais são finais felizes para a comunidade judaica.
As visões de estilo apocalíptico constituem um desafio especial para o
interpretador moderno. A natureza altamente imaginativa e simbólica do
material deve ser sempre mantida em mente. A linguagem figurativa não deve
ser tomada literalmente, da mesma forma que nem todo detalhe pode encontrar
uma analogia específica com a realidade. Parte do poder de um apocalipse está no
seu mistério. Seus símbolos não intencionam ser inteiramente transparentes. Se
todos os números e imagens forem explicados, algo se perde. Portanto, a maior
parte dos números deve ser entendida simbolicamente. Afinal, nenhum cálculo
de nenhum dos números em Daniel satisfaz totalmente referências históricas
específicas. O mesmo aplica-se às imagens que representam reinados terrenos. A
correspondência entre essas imagens e entidades históricas jamais é completa.
Os interpretadores podem fazer uma leitura frutífera de Daniel relacio­
nando-o à família de antigos textos apocalípticos dos quais ele faz parte. Para­
lelos dos apocalipses judaicos e cristãos são instrutivos. Entretanto, eles não são
inteiramente determinantes. As imagens e ideias centrais que prevalecem nesse
tipo de material poderiam facilmente depender de Daniel como reflexivas de
um estilo ou visão de mundo comum. O interpretador deve lembrar-se de que
Daniel é um livro singular em muitos aspectos, e de que ele não apresenta todas
as características encontradas nessas outras obras.
Como obra teológica, Daniel deve ser examinado pelo que tem a dizer
sobre Deus. O texto é, primariamente, uma revelação de Deus. Portanto,
isso deve ser o foco central dos interpretadores das Escrituras. O propósito
principal de Daniel, assim como de toda Escritura cristã, é comunicar algo
sobre Deus e Sua forma de lidar com a criação. Em cada conjuntura do texto,
a principal pergunta do interpretador deve ser: “O que está sendo dito sobre
Deus?”
Sob o aspecto de documento de cunho histórico, o material deve ser lido
com relação aos contextos particulares apresentados no texto. O autor fornece
contextos históricos específicos tanto para as histórias como para as visões do
livro. Quer o interpretador julgue tais contextos exatos ou não, eles devem ser
42
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

levados em consideração. As histórias narram intervenções notáveis de Deus


nos contextos babilónico e persa da história antiga de Israel. As visões colocam
experiências visuais incomuns do personagem principal dentro desses mesmos
contextos. Esse é o primeiro contexto no qual deveríamos ler o texto.
Dizer que o material tem cunho histórico não necessariamente
afirma a sua historicidade. Como notamos acima, os elementos incríveis e
incongruentes do livro sugerem a muitos estudiosos que as histórias e visões são
primariamente fictícias. Eles acreditam que as histórias são contos tradicionais
recontados e elaborados ao longo dos anos, e que as visões são essencialmente
pseudoprofecias. Muitos estudiosos, contudo, acreditam que as histórias
do livro são historicamente autênticas e que suas visões são genuinamente
proféticas. A posição de uma pessoa com relação a essas questões afeta a sua
interpretação, principalmente quanto à aplicação contemporânea. Embora a
mensagem essencial do texto não mude, seu impacto muda. Em geral, ações
que realmente ocorreram têm mais peso do que aquelas que foram apenas
imaginadas. Embora tanto a ficção como a não ficção possam comunicar
verdades, as verdades transmitidas por meio de eventos reais, normalmente,
são mais convincentes e atraentes do que aquelas que emergem da imaginação.
Por outro lado, aqueles que veem o livro como uma criação imaginária estão
livres da necessidade de explicar as incongruidades e elementos fantásticos do
texto. Eles estão livres para examinar o material e encontrar nele os significados
que ele intenciona transmitir ou que evoca.
A forma como alguém vê a proveniência do livro também afeta a sua
interpretação. À medida que os interpretadores tentam esclarecer significados
com relação ao público original, sua opinião quanto a esse ponto influencia o
sentido de certas imagens, alusões ou até mesmo de palavras. Uma das questões
principais a essa altura é a natureza da previsão profética. Uma datação do sexto
século a.C. tende a exacerbar esse elemento, enquanto uma datação do
segundo século a.C. o diminui.

J. Abordagem deste comentário


Duas características dos comentários de Daniel tendem a distrair-nos
do pleno impacto da mensagem do livro. De um lado, temos o interesse
indevido em mapear os eventos do fim dos tempos. Essa abordagem leva a
conclusões altamente especulativas e, às vezes, bizarras. Os proponentes desse
método acabam envolvidos em discussões que, provavelmente, não fazem
parte do objetivo do material. A própria natureza dos apocalipses sugere que
43
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

essa é uma abordagem errônea do livro. O uso de imagens nesses materiais é


impressionista, e não preciso. Sua intenção é evocar conceitos gerais em vez de
detalhes particulares. Tomar as imagens de Daniel como marcos específicos de
um cronograma para o fim da história do homem é entender mal suas funções
simbólicas. (Para uma discussão mais aprofundada, veja Longman, 1999, p.
176-179, e Sandy, 2002, p. 103-128.)
A outra distração é o debate sobre a data da composição. Embora uma
posição sobre essa questão influencie alguns aspectos da interpretação, ela não
é determinante com relação à maior parte da mensagem do livro. Questões
sobre o autor original, o público e o desenvolvimento composicional não são
extremamente significativas para o entendimento das proposições teológi­
cas de Daniel. Uma preocupação constante com questões históricas e críticas
tende a impedir que os comentaristas enfoquem o texto. Os interpretadores
extrairiam muito mais do livro se colocassem essas questões de lado e simples­
mente entrassem no mundo do texto da forma que este lhes foi dado. Os temas
principais do livro ecoam na vida de pessoas de todas as idades e comunicam
verdades que independem do contexto específico do público original.
Essas duas questões são preocupações legítimas. Como o mundo
irá acabar e quando o livro foi escrito são questões importantes a serem
exploradas. Contudo, não deveríamos permitir que elas obscurecessem
o propósito primário do texto bíblico, que é revelar Deus. Portanto, este
comentário tentará enfocar as mensagens teológicas encontradas em Daniel.
O que o texto tem a dizer sobre Deus, as pessoas e a interconexão entre eles
será nosso principal interesse. O comentário irá explorar essas dimensões
por meio de um exame do mundo do texto conforme este se apresenta. Ele
usará a análise literária e gramatical para elucidar o texto. Informações sobre
o contexto das referências históricas do texto também nos auxiliarão nessa
tarefa. Debates sobre detalhes de eventos futuros e a data de composição
do livro serão reconhecidos, mas não abraçados. Sobre tais questões, o
comentário registrará várias posições, direcionando o leitor a outras fontes
onde a discussão é mais aprofundada.

K. Teologia do livro
O livro de Daniel é um estudo intensivo da soberania de Deus e de suas
implicações para os cristãos. A principal mensagem teológica do livro é clara.
O Senhor prevalece sobre os governantes deste mundo. Portanto, o povo de
Deus pode arriscar-se a viver fielmente, porque a vitória final está garantida.
44
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Os destaques teológicos do livro podem ser discutidos em comparação


a três visões de mundo descreditadas por ele: o dualismo, o fatalismo e o
pessimismo. Embora cada uma dessas posições fosse prevalecente no mundo
antigo, elas persistiram ao longo da história do homem, chegando até o
presente. Isso explica em parte o valor duradouro do livro. Ele proclama (1) a
absoluta soberania de Deus, e não o dualismo; (2) o livre-arbítrio responsável
dos homens, e não o fatalismo; e (3) o otimismo esperançoso para o povo de
Deus, e não o pessimismo.

1. A absoluta soberania de Deus, e não o dualismo


Daniel proclama que não existe dualismo no domínios espirituais. O Deus
de Daniel não tem igual. O seu Deus “é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis”
(2.47), o “Deus Altíssimo” (3.26; 4.2; 5.18,21), ou simplesmente “o Altíssimo”
(4.17,24,25,32,34; 7.18,22,25,27). Ele também é conhecido como “o Rei dos
céus” (4.37), o “Senhor dos céus” (5.23) e o “Deus dos céus” (2.18,19,37,44).
Em suma, de acordo com o livro de Daniel, todo o céu e a terra, todas as nações
e reis, toda a sabedoria e o conhecimento, toda a história do homem e os
negócios do Seu povo estão sob o controle de Deus.
O domínio de Deus inclui todas as entidades conhecidas aos homens. Deus
“age como lhe agrada com os exércitos dos céus e com os habitantes da terra”
(4.35). Em contraste com os reinos deste mundo que estão constantemente
se levantando e caindo, “O seu reino é um reino eterno; o seu domínio dura
de geração em geração” (4.3). Ele “não será destruído, o seu domínio jamais
acabará” (6.26). Ele possui uma autoridade indisputável para dar a “alguém
semelhante a um filho de homem, vindo com as nuvens dos céus (...) autoridade,
glória” e poder soberano para estabelecer um reino que é “um domínio eterno
que não acabará e (...) jamais será destruído” (7.13,14). O Reino de Deus
permanece sempre. Jamais há um período em que o Reino de Deus não exista
no céu ou na terra.
Deus possui, portanto, autoridade absoluta sobre tudo o que ocorre
na terra, tanto no presente como no futuro. O Senhor ordena que todas as
autoridades humanas compareçam diante do Seu trono e julga-as (7.9-13). Ele
“destrona reis e os estabelece” (2.21). Dessa forma, a história do homem e a
sabedoria para entendê-la e lidar com ela estão nas mãos do Senhor. Deus é
“aquele que revela os mistérios” sobre este mundo (2.47), pois Ele “conhece o
que jaz nas trevas” (2.22). Ele envia visões e anjos para mostrar “o que acontecerá
no futuro” (2.45; 10.14). Com detalhes que apenas Deus poderia saber, Seus
45
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

agentes revelam exatamente como a história do homem irá desenrolar-se em


períodos específicos. Deus é soberano sobre todo este mundo e orquestra todos
os seus negócios.

2. O livre-arbítrio responsável dos homens, e não o


fatalismo
Embora Daniel proclame a soberania absoluta de Deus, ele não afirma o
fatalismo. Os destinos humanos não são predeterminados. Embora Deus possa
saber como a história do homem irá desenrolar-se, isso não significa que os
eventos sejam preordenados. As escolhas das pessoas determinam o curso dos
eventos humanos.
Deus sabe que a experiência humana será cheia de conflitos e de sofrimentos.
De acordo com o livro de Daniel, os reinos terrenos são como bestas horrendas
que se levantam de um mar de caos e causam a destruição (7.3-8). Um rei, e
depois outro, e mais outro se levantará para invadir e conquistar (8.3-12; 11.2-
45). Cada um deles infligirá seu próprio estilo de sofrimento sobre este mundo
e, principalmente, sobre o povo de Deus. Entretanto, o Senhor não é o autor
dessa confusão. De acordo com Daniel, a vontade humana, e não a vontade
divina, produz um mundo violento. A busca dos homens pela autossoberania
perpetua o caos. Os reis terrenos exaltam-se “acima do Senhor dos céus” (5.23;
8.11) e constroem monumentos à sua própria glória (3,1-6; 4.31). Eles exaltam
e magnificam a si mesmos (l 1.36) em vez de honrarem “o Deus que sustenta
em suas mãos” as suas vidas (5.23; 11.36-39). Homens arrogantes são a razão
de um mundo em guerra consigo mesmo.
Deus responsabiliza essas autoridades impiedosas por suas ações. “No
tempo determinado” os reinados dos reis e tiranos maus chegará ao fim. Deus
determina quando “o tempo da ira” se completará (8.23; 11.27,35,36; 12.7).
Ele humilha reis incrédulos como Nabucodonosor, Belsazar e Antíoco por
ignorarem a Sua autoridade. Ele também restaura aqueles que estão dispostos a
reconhecer “que os Céus dominam” (4.26). No final, todos os poderes terrenos
comparecem diante do trono de Deus, ouvem o relato dos seus atos e recebem o
julgamento apropriado. Alguns deles são mortos e têm seus corpos destruídos,
enquanto outros têm sua autoridade removida (7.11,12).
De acordo com Daniel, o povo de Deus pode esperar sofrer em um mun­
do assim. As autoridades terrenas forçam-no a viver em ambientes hostis e
tentam-nos a ceder às suas culturas estrangeiras (1.1-6). Eles ameaçam o povo
de Deus com a morte se eles não se conformarem (3.15; 6.7-9). Esses poderes
46
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

pagãos tiram do povo os meios necessários para honrar a Deus e estabelecem


uma alternativa horrenda que só pode ser descrita como um “sacrilégio terrível”
(8.11-13; 9.27; 11.31). E como se “os santos” fossem “entregues” aos desígnios
de homens maus (7.25).
Entretanto, os servos de Deus não são apenas vítimas em um mundo
enlouquecido. Eles também são responsáveis pelo estado das coisas. Daniel
confessa que o povo da aliança pecou e é culpado (9.5). Eles não deram
“ouvidos” ao Senhor nem obedeceram “às [Suas] leis” (9.10). Portanto, Deus
liberou o poder de tiranos maus e “não hesitou em trazer desgraça” sobre eles
(9.14). Por causa da desobediência contínua, Deus pode estender o julgamento
até “Setenta semanas” a fim de “acabar com a transgressão”, “dar fim ao pecado”,
“expiar as culpas” (9.24). Assim, as escolhas do povo de Deus contribuem
para o curso dos eventos neste mundo. O Senhor responde à resposta das
pessoas. Aflições terríveis sobrevêm ao povo de Deus por causa daqueles que
abandonaram e violaram a santa aliança (11.30,32). No fim, uma distinção é
feita entre aqueles que escolhem servir a Deus e aqueles que não o fazem. Na
ressurreição, alguns acordarão “para a vida eterna” e outros “para o desprezo
eterno” (12.2).
Porque as escolhas humanas têm consequências tão pesadas, o livro
propõe um grande desafio aos seus leitores. Ele encoraja-os a serem sábios
como Daniel e os seus três amigos em meio a um mundo hostil e caótico. Eles
devem determinar-se a não se tornarem “impuro[s]” (1.8), a permanecerem
firmes mesmo que sejam “atirados na fornalha em chamas” (3.17) e a continuar
“orando, pedindo ajuda a Deus”, ainda que isso seja proibido pelas autoridades
terrenas (6.11). Aqueles que são sábios devem estar prontos para desafiar a
ordem do rei e dispostos a “abrir mão de sua vida [em lugar de] prestar culto
e adorar a outro deus que não [seja] o seu próprio Deus” (3.28). Em meio à
perseguição, eles precisam conhecer “o seu Deus” e resistir “com firmeza” a
qualquer concessão com relação ao mundo que os cerca (11.32).

3. O otimismo esperançoso para o povo de Deus, e não o


pessimismo
De acordo com o livro de Daniel, uma vida fiel traz recompensas. Os sábios
são recompensados pela sua perseverança em meio à aflição. Portanto, Daniel
oferece uma profunda palavra de esperança que dissipa o mito do pessimismo.
O mal não vence. No fim das contas, Deus e o Seu povo são aos vencedores
tanto neste mundo como no final dele.
47
INTRODUÇÃO NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A promessa de Daniel é que aqueles que são sábios serão “liberto [s]”,
seja neste mundo ou no mundo vindouro (12.1). Deus pode libertar [o Seu
povo] da contaminação, de uma fornalha em chamas ou de uma cova de leão
(1.15,16; 3.26; 6.23). Embora o povo de Deus sofra, ele recebe recompensas
por uma vida bem vivida. Suas aflições levam-no a uma profundidade de
relacionamento espiritual que só pode ser obtida por meio de experiências
assim. Eles são “refinados, purificados e alvejados” por suas provações (11.35).
Quando o seu sofrimento alcançar uma intensidade indizível e o seu poder é
“finalmente quebrado”, eles tornam-se livres para confiar somente na soberania
de Deus (12.7). Quando isso acontecer, aqueles que são “sábios entenderão” o
que os ímpios não podem entender (12.10). O mundo violento no qual eles
vivem ainda terá significado e propósito. Eles perceberão que Deus permanece
no controle, e não os homens, e confiarão no Seu poder soberano.
Daniel entende que a salvação não é conquistada ou merecida. O livra­
mento divino é um ato de graça. Deus não intervém em favor do Seu povo por­
que os israelitas são muito justos, mas por causa da Sua “grande misericórdia”
(9.18).
Daniel, no entanto, admite que Deus talvez não os livre neste mundo
presente. Alguns perecerão no calor da batalha. Eles “cairão à espada e serão
queimados, capturados e saqueados” (11.33). Porém, aqueles “que dormem no
pó da terra acordarão” no dia da ressurreição, e, então, o valor de uma vida
sábia será comprovado (12.2). Eles acordarão “para a vida eterna” e “reluzirão
(...) como as estrelas, para todo o sempre” (12.2,3). Na ressurreição, Deus fará
justiça na vida dos sábios, e os crentes receberão “a herança que” lhes “cabe” da
parte de Deus (12.3,13).
De acordo com o livro, a manifestação plena do governo absoluto de Deus
espera pela consumação final da história do homem. Então, Deus julgará as na­
ções e exercerá total autoridade sobre este mundo (7.11-14,26,27). Contudo,
a esperança de Daniel enfoca mais a presente realidade do governo de Deus,
e não o seu futuro. Deus está trabalhando neste mundo, humilhando reis e
libertando os fiéis (3.26; 4.31; 5.30; 6.23). As forças dos céus levantam-se para
proteger e defender o povo de Deus (1.9; 10.14; 12.1). O Senhor responde às
orações dos fiéis e revela os Seus planos a eles (2.20-23; 6.22; 9.23; 10.12-14).
Em meio às provas, Seus fiéis são purificados e recebem entendimento (12.10).
Portanto, os seguidores fiéis do Senhor não precisam esperar até a
consumação de todas as coisas para conhecer o domínio soberano de Deus. O
Senhor está trabalhando no mundo agora mesmo, efetuando “tanto o querer
quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (Fp 2.13). O Reino de
48
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON INTRODUÇÃO

Deus jamais está ausente deste mundo, porque “o seu domínio dura de geração
em geração” (Dn 4.3). “Seu domínio é um domínio eterno que não acabará, e
seu reino jamais será destruído” (7.14).

49
COMENTÁRIO

1. HISTÓRIAS DE UMA TERRA ESTRANGEIRA ( 1 .1 - 6 .2 8 )

Panorama geral
A primeira parte de Daniel relata histórias dos cativos judeus em uma
terra estrangeira. Todas as seis histórias falam da vida em um ambiente hos­
til para os fiéis do Senhor. Essas histórias podem ser chamadas de contos da
corte, já que seus personagens principais são reis e seus atendentes. Daniel é
um dos principais protagonistas em todas essas histórias, exceto por uma. No
capítulo 3, três amigos com quem Daniel está intimamente ligado ocupam o
centro do palco.
Cada uma das histórias do capítulo 1 ao 6 tem a ver com um teste. As três
narrativas nos capítulos 1, 3 e 6 são testes de fidelidade, enquanto os capítulos
2, 4 e 5 relatam testes de sabedoria. Lendo-as a partir de uma determinada
perspectiva, elas poderiam enfatizar a excepcional sabedoria, perseverança e
fidelidade de Daniel. Se as histórias são mais sobre Deus do que sobre Daniel,
contudo, a ênfase muda. Essas histórias tornam-se testes da sabedoria e da fi­
delidade de Deus. O resultado final em cada uma dessas histórias é o mesmo.
Deus prova ser confiável e onisciente, Seus servos são vingados, e os monarcas
mais poderosos do mundo reconhecem a soberania do Deus de Judá.
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essas histórias preparam o leitor para as visões que vêm na segunda


parte do livro. Elas não apenas estabelecem a credibilidade de Daniel como
um visionário, mas também apresentam um modelo de vida fiel em meio a
circunstâncias desfavoráveis. As visões, que pressagiam um sofrimento sem
paralelo para o povo de Deus debaixo de opressores tirânicos, desafiam os
leitores a imitar a sabedoria encontrada em Daniel e seus amigos nessas
condições. As histórias e as visões combinam-se para proclamar a mesma
mensagem: independente de como as coisas possam parecer, o povo de Deus
pode confiar que Deus permanece absolutamente soberano sobre este mundo
e viver baseado nessa verdade.

A. A contaminação alimentar: o primeiro teste de


fidelidade (1.1-21)

Panorama geral
O primeiro capítulo de Daniel serve como uma introdução apropriada
para o livro. Ele apresenta os personagens principais das histórias e das visões e
o seu contexto na Babilônia. O perfil do primeiro protagonista, Daniel, é de­
lineado juntamente com um esboço inicial de um dos principais antagonistas,
Nabucodonosor. O tema central do livro também recebe sua forma prelimi­
nar: Deus está sempre trabalhando para projetar e executar a Sua boa vontade.
A dinâmica desses personagens, o seu contexto e o tema central criam conexões
com públicos antigos e modernos. Os leitores são atraídos para dentro da his­
tória, porque, num certo sentido, a história também é sua.
Por trás do texto
A história que se desenrola no capítulo 1 contém características familiares
aos públicos antigos. Como cada uma das histórias nos seis primeiros capítulos
de Daniel, ela é uma narrativa heroica. Essas históricas enfocam um indivíduo
ou um grupo particular que personifica as lutas sociais e morais da comuni­
dade e vence-as. Episódios nas histórias de Gideão, de Sansão e de Davi, por
exemplo, refletem esse tipo de literatura. Entre os materiais extrabíblicos, uma
história popular assíria sobre um homem justo chamado Ahikar apresenta
diversos paralelos em termos de pensamento e expressão (Pritchard, 1969, p.
427-430).
52
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

As histórias de Ahikar e Daniel


A história de A h ikar sobreviveu em diversas línguas e versões. Uma
versão judaica foi descoberta em Elefantina, no Egito, onde existiu uma
com unidade de judeus no quinto século a.C.. A hikar era um alto oficial
na corte de um rei assírio cham ado Senaqueribe (705-681 a.C.). Como
Daniel, ele era lendário por sua sabedoria. Como ele não tivesse filhos,
ele adotou o seu sobrinho e subm eteu-o a um rigoroso tre in a m e n to na
lite ra tu ra de sabedoria dos oficiais da corte. Como resultado da influência
de Ahikar, o sobrinho conseguiu um a alta posição no im pério. O sobrinho,
contudo, revelou ser traiço eiro e m aquinou um plano contra o tio que
o condenava por traição. Assim com o Daniel e os seus am igos, Ahikar
evitou m iraculosam ente a sentença de m orte do rei, sendo e ven tua lm e nte
vingado e restaurado à sua posição. No final, o sobrinho m orre uma m orte
terrível. A m oral da história é dada nas últim as linhas: "aquele que cava
um buraco para o seu irm ão cairá nele; e aquele que arm a ciladas será
pego nelas".

As histórias de Daniel também incluem características típicas dos


contos da dispersão e da corte. Os contos da dispersão fornecem relatos
sobre pessoas que lutaram para viver fielmente fora da terra de Israel, como
os que encontramos nos livros apócrifos de Tobias e Susana. Os contos da
corte relatam aventuras de indivíduos que viveram dentro de palácios e cujas
experiências interessantes edificam os públicos. As histórias bíblicas de José e
de Ester enquadram-se nessa categoria e apresentam diversos pontos similares
às histórias em Daniel. Ambas tratam-se de relatos de pessoas que, assim como
Daniel, sobreviveram corajosamente às adversidades. Elas tiveram de enfrentar
diversos testes e emergiram triunfantes. Há uma justiça poética em cada um
desses casos à medida que o caráter piedoso é recompensado.
Os elementos românticos dessas histórias, aliados às suas tramas e temas
arquetípicos, seus padrões de repetição e o seu foco em uma narração dramática,
fazem delas exemplos da grande literatura do mundo antigo e moderno. Como
na maior parte das narrativas bíblicas, existe uma combinação entre o realismo
e o mistério do sobrenatural. Grandes aventuras com Deus são vividas dentro
do contexto de uma existência terrena. A moral de cada história raramente
passa despercebida; contudo, significados mais profundos emergem a partir de
uma reflexão mais longa.
Os testes de fidelidade nos capítulos 1, 3 e 6 desenrolam-se com um
padrão semelhante. Eles enfocam a coragem de manter as convicções
53
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

religiosas em um ambiente hostil. Nessas histórias, Daniel e os seus amigos


são confrontados com uma ameaça de severas consequências diante da
sua determinação de manterem-se fiéis às suas crenças. Se eles não cederem,
correm o risco de serem rejeitados pela corte real (cap. 1), de enfrentarem a
fornalha em chamas (cap. 3) ou de serem jogados numa cova de leões (cap. 6).
Em cada um desses casos, eles escolhem a rota mais difícil e mantêm-se fiéis
às suas convicções. Eles recusam-se a contaminar-se comendo os manjares da
mesa do rei, prostrando-se diante de um ídolo ou deixando de orar a Deus. O
resultado do teste é a manifestação da fidelidade de Deus. Os testes fornecem
uma oportunidade para que Deus prove a Sua soberania. E Ele não desaponta.
Ele intervém e resgata Seus servos fiéis, revelando o Seu poder entre os pagãos.
O antigo público de Daniel tinha muitas memórias associadas aos perso­
nagens e ao contexto esboçado no capítulo 1. Nabucodonosor e a Babilônia,
principalmente, eram símbolos de hostilidade, opressão e impiedade para o
povo de Judá (v. 1,2).
A emergência do Império Babilónico durante o sétimo e o sexto séculos
a.C. afetou de forma profunda a história bíblica dos descendentes de Abraão.
Assim como quase todas as outras entidades políticas do Oriente Médio, Judá
foi subjugada sob o seu punho de ferro por cerca de 70 anos. Os primeiros dias
desse império são o ambiente imediato do primeiro capítulo de Daniel.
Em 627 a.C., a morte de Assurbanípal pôs fim ao domínio assírio sobre o
Crescente Fértil. A rebelião explodiu por todo o império, e um príncipe caldeu
chamado Nabopolasar liderou a resistência na Babilônia. Sua extraordinária
habilidade militar e sua astuta aliança com os medos capacitaram-no a
desmantelar o Império Assírio nos próximos 20 anos. Ashur caiu em 614 a.C.,
e Nínive em 612 a.C.. Os últimos remanescentes do exército assírio foram
derrotados no verão de 605 a.C. em Carquemis.
Com a morte de Nabopolasar em agosto de 605 a.C., o império recém-
-criado passou para as mãos extremamente capazes do seu filho Nabudonosor
(v. 1). A influência babilónica cresceu até chegar ao seu ápice sob a liderança
agressiva desse mestre estrategista. Inúmeras conquistas e construções extrava­
gantes marcaram o seu reino, que durou de 605 a 562 a.C..
O status de Nabucodonosor na literatura bíblica e rabínica é quase len­
dário. Ele aparece como o principal antagonista ao povo de Deus ao longo de
todo o AT. Seu nome é mencionado com mais frequência do que o de qualquer
outro déspota estrangeiro nas Escrituras, quase 90 vezes. Ao longo do livro de
Daniel, o nome de Nabucodonosor é escrito com n após o d. A ortografia babi­
lónica do nome era Nabucodorosor, com um r no lugar do n. Essa ortografia é
54
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

preservada em diversas passagens de Jeremias e de Ezequiel. Na maior parte das


vezes, contudo, os livros do AT usam o nome Nabucodonosor. Não sabemos
ao certo se isso se trata ou não de uma corrupção deliberada do seu nome como
forma de desdenhar do monarca. O original Nabucodorosor, provavelmente,
significa “Nebo protege o herdeiro”, enquanto Nabucodonosor poderia ser tra­
duzido como “Nebo protege a mula”. A maioria dos estudiosos não acredita
que se trate de uma zombaria intencional. Eles sugerem que a mudança do n
para o r foi apenas um desenvolvimento natural à medida que os fonemas fo­
ram transferidos de uma língua para a outra (Wiseman, 1985, p. 2,3).
Nabucodonosor foi responsável pela pior das humilhações sofridas pelos
descendentes de Abraão. Depois de ganhar o controle de Judá em 605 a.C.,
ele minou sistematicamente os seus recursos e esmagou duas grandes rebeliões
em 598 e 587 a.C.. O último evento acabou com a demolição de Jerusalém e o
exílio da maior parte da população. Isso deixou os judeus sem rei, sem templo
e sem terra natal. Foi um divisor de águas na história do AT.
Munido dos espólios de guerra e do tributo anual das nações subjugadas, a
Babilônia tornou-se uma cidade de beleza e riqueza espetaculares (v. 2 NTLH).
Localizada ao longo das margens do grande rio Eufrates, suas intimidantes
muralhas estendiam-se por 27 km ao redor da cidade. A entrada só era possível
por meio de portões imponentes adornados com leões, ursos e dragões
esculpidos em relevos coloridos. Um palácio composto de uma estrutura
massiva, os lendários jardins suspensos e mais de 50 templos compunham a
silhueta dessa cidade extraordinária. O templo mais impressionante de todos
era o de Marduque, o deus padroeiro da Babilônia. O templo era edificado
sobre um zigurate com 90m x 90m de base e da mesma altura.
A Babilônia dominou a porção sudeste da Mesopotâmia durante o
primeiro milênio a.C.. A região ficou conhecida como Babilônia (v. 2 NTLH).
O uso dessa palavra em algumas traduções de Daniel 1.2 deriva do hebraico
“terra de Sinear” (e r e s sh inar). Essa é uma expressão relativamente rara, que
ocorre apenas quatro vezes na Bíblia hebraica (Gn 10.10; 11.2; Zc 5.11; e
aqui). Referências a Sinear ocorrem apenas mais quatro vezes. A designação
mais comum para a região da Babilônia, encontrada na maioria das vezes em
Jeremias e em Ezequiel, é “terra dos caldeus” ( eres k asdim ). A referência a Sinear
evoca Gênesis 11, onde os homens mostraram suas aspirações mal direcionadas
ao construírem a torre de Babel. Foi ali, que o Senhor rejeitou os esforços da
humanidade de igualar-se a Deus. O uso que o autor faz do termo destaca ainda
mais o ambiente impiedoso no qual os eventos e visões do livro ocorrem.
O livro começa com uma referência ao terceiro ano do reinado de
Jeoaquim, no qual Nabucodonosor, rei da Babilônia, veio a Jerusalém e a
55
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sitiou (v. 1). Isso se refere a um período em que a sorte de Judá foi submetida ao
controle da Babilônia, em aproximadamente 605 a.C., e estabelece o contexto
essencial para esse capítulo e para o restante do livro. Esse versículo tem sido
alvo de muitos debates entre os comentaristas quanto à sua confiabilidade
histórica. No terceiro ano de Jeoaquim, Nabucodonosor ainda não era rei da
Babilônia, e as evidências de um sítio a Jerusalém nessa época são escassas.
Depois de examinarem as provas, muitos estudiosos acreditam não se tratar de
um registro histórico confiável e presumem que o autor do livro simplesmente
não estava interessado na exatidão histórica (Hartman e Di Lella, 1978, p.
128,129; Collins, 1993, p. 130-133). Talvez, como alguns sugerem, o autor
esteja reunindo os eventos de 605, 598 e 587 a.C. em uma única afirmação
geral (Goldingay, 1989, p. 14; Seow, 2003, p. 21). Outros estudiosos, contudo,
encontram bases razoáveis para aceitarem a confiabilidade dos dados (Baldwin,
1978, 19-23; Archer, 1985, p. 31,32; Miller, 1994, p. 56,57; Longman, 1999,
43-45). Existem ainda outros que se abstêm de pronunciar um julgamento, já
que as evidências não são inteiramente decisivas em nenhuma das duas direções
(Lucas, 2002, p. 50-52).
A referência a Nabucodonosor como rei da Babilônia, muitas vezes, é
explicada como uma prolepse. Portanto, é possível que Nabucodonosor tenha
sido designado pelo título pelo qual ele se tornaria famoso mais tarde. O texto
parece referir-se a eventos ocorridos durante o verão de 605 a.C., quando
Nabucodonosor ainda não era oficialmente o rei. Sua posse aconteceu em
setembro de 605 a.C., após a morte do seu pai em agosto.
Outros dados relacionados a Daniel 1.1,2 levantam questões mais difíceis
para os historiadores. Quando passagens nos livros de Reis, de Crônicas e de
Jeremias descrevem a conquista inicial de Judá pela Babilônia, elas não falam de
Jerusalém sendo sitiada. O registro em 2 Reis 24.1 é de que “durante o reinado
de Jeoaquim, Nabucodonosor, rei da Babilônia, invadiu o país, e Jeoaquim
tornou-se seu vassalo por três anos”. Em 2 Crônicas 36.6, o “rei da Babilônia,
atacou-o [Jeoaquim] e prendeu-o com algemas de bronze para levá-lo para a
Babilônia”. A confiabilidade dessas afirmações, principalmente a de Crônicas,
também é uma questão a ser debatida.
Jeremias 25.1 e 46.2 complicam ainda mais a questão ao ligarem o evento
ao quarto ano do reinado de Jeoaquim, e não ao terceiro. No entanto, isso,
muitas vezes, é explicado pelo uso presumido de sistemas de datação diferentes
para o reinado de um monarca. Em Judá, a abordagem típica era começar a
contar os anos uma vez que o rei assumisse o trono. Quando o Ano Novo era
celebrado, os registros indicavam o início do seu segundo ano. Na Babilônia, o
56
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

primeiro ano do reinado começava somente depois do Ano Novo. Se Jeremias


tiver adotado o sistema de datação de Judá, e Daniel, o da Babilônia, então a
discrepância pode ser explicada. Contudo, os historiadores não têm certeza de
que tenha sido esse o caso.
Evidências não bíblicas tampouco mencionam um sítio a Jerusalém. De
acordo com As crôn icas babilónicas, o primeiro sítio a Jerusalém ocorreu no
sétimo ano de Nabucodonosor, ou em 598 a.C., quando a revolta de Judá foi
esmagada e Jeoaquim foi levado como prisioneiro. Entretanto, As crôn icas ba­
bilón icas falam de Nabucodonosor subjugando a região da Síria e da Palestina
depois da sua vitória em Carquemis em 605 a.C.. Josefo, talvez, corrobore isso
ao citar Bérose, um historiador grego do quarto século a.C.. De acordo com
essa fonte, Nabucodonosor parece ter solidificado o seu domínio da região an­
tes de retornar à Babilônia para reivindicar o trono. “Ele colocou os negócios
no Egito e nos outros países em ordem e confiou a alguns dos seus amigos os
cativos que ele havia tomado entre os judeus, os fenícios, os sírios e outras na­
ções pertencentes ao Egito” ( C ont. Ap. 1.19). Alguns estudiosos, no entanto,
duvidam da confiabilidade de Bérose, ou sugerem que ele estaria referindo-se
apenas a mercenários no exército egipício derrotado.

As crônicas babilónicas
As crônicas babilónicas são uma coleção de ta b le te s de argila da
antiga M esopotâm ia que registram eventos im p orta ntes ligados à região
babilónica. Elas tê m início nos tem pos m ais rem otos e vão até o p rim eiro
século d.C.. O m aterial enfoca, p rincipalm ente, o prim eiro m ilênio a.C. e
inclui registros de diversos eventos no reinado de Nabucodonosor. A strô­
nom os babilónicos escreveram esses te xto s ao longo de diversos séculos.
Traduções m odernas em inglês estão disponíveis em Grayson, 2000.

Alguns estudiosos acreditam que o termo traduzido como sitiou em


Daniel 1.1 não demanda uma ação militar extensiva, embora ele normalmente
seja usado dessa maneira. O significado básico do termo é “atar” ou “prender”
algo. Com base em 2 Crônicas 36.6, eles sugerem que Jeoaquim, talvez, tenha
sido preso com outros déspotas da região e trazido a Nabucodonosor em
Ribla, na Síria. Ele, provavelmente, jurou lealdade aos babilônios e apresentou
uma quantidade suficiente de espólios oriundos do tesouro do templo para
57
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

convencê-los da sua lealdade. De acordo com essa teoria, Daniel 1.1,2 conta
simplesmente como Jeoaquim se submeteu ao poder esmagador da Babilônia
por motivos políticos depois da derrota do seu senhor egípcio em Carquemis.
Independente de como os dados históricos de Daniel 1.1,2 sejam
entendidos, a submissão de Judá à Babilônia na época de Jeoaquim fornece o
contexto para a leitura da história. Jeoaquim era filho de Josias (640-609 a.C.),
um dos reis mais devotos de Judá. Contudo, ele não seguiu o exemplo do seu
pai e colocou Judá a caminho da sua destruição final. Seu desprezo ostensivo
pelo Deus de Israel trouxe-lhe repetidas advertências e repreensões por parte
de Jeremias, o profeta (vejajr 22.13-23; 25.1-14; 26.1-6; 36.1-31).
O reinado de Jeoaquim começou depois da morte do seu pai em 609 a.C..
O Faraó egípcio Neco colocou-o nessa posição. Depois de derrotar Judá e ma­
tar Josias em Megido, Neco selecionou primeiro Jeoacaz, um filho mais jovem
de Josias, como rei de Judá. Três meses depois, ele retornou a Jerusalém, levou
Jeoacaz para o Egito e autorizou Jeoaquim a administrar o reino. A vitória dos
babilônios e medos sobre os egípcios e assírios em Carquemis no verão de 605
a.C. mudou a sorte de Jeoaquim, os babilônios reivindicaram toda Judá e os
estados circunvizinhos. Naquele momento, Jeoaquim ficou debaixo da autori­
dade do Império Babilónico.
A narrativa divide-se de modo quase ininterrupto em três seções: o contex­
to (v. 1-7), o teste (v. 8-14) e o resultado (v. 15-21). Cada seção é pontuada por
uma referência às atividades de Deus por trás dos bastidores. Deus concede o
sucesso a Nabucodonosor (v. 2), depois a Daniel (v. 9) e, finalmente, aos jovens
(v. 17).
O capítulo desenrola-se em forma de quiasma. O enfoque sobre o
treinamento dos jovens israelitas nos versículos 1-7 é equilibrado por um relato
do seu treinamento bem-sucedido nos versículos 17-20. Então, o desejo de
evitar a contaminação e passar por um teste nos versículos 8-14 é equilibrado
pelo resultado bem-sucedido do teste e da não contaminação relatada nos
versículos 15,16. Notações temporais criam uma inclusão para a unidade. O
primeiro ano do rei Ciro no versículo 21 ecoa com o terceiro ano do reinado
de Jeoaquim no versículo 1. Essas datas marcam a extensão do exílio de Judá
(605-539 a.C.), o contexto principal da maioria dos eventos registrados no
livro.
Daniel, o herói da narrativa, é gradativamente introduzido. Seu nome não
aparece até o versículo 6. A essa altura, contudo, o leitor já conheceu algo sobre
o seu caráter excepcional e circunstâncias desafiadoras.

58
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

No texto

1. O contexto (1.1-7)
H 1-2 Os versículos 1-7 estabelecem o contexto de todo o livro, assim como
da primeira história. Esses versículos enfatizam três características importantes
da situação: o povo de Deus é (1) dominado por poderes estrangeiros; (2)
forçado a viver em uma terra estrangeira; e (3) tentado a assimilar a cultura
estrangeira. Esses três elementos criam um pano de fundo para a mensagem do
livro e para cada história ou visão contida nele. O enfoque desses versículos é
a tensão causada pela colisão de culturas, e eles levantam a questão central do
livro: “Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?”
(SI 137.4). No contexto do Salmo 137, essa pergunta retórica expressa a
impossibilidade frustrante de se viver de maneira próspera no exílio. A resposta
à pergunta é “Nós não podemos cantar”. No livro de Daniel, contudo, a
pergunta é direta, e as respostas são positivas. As “canções do Senhor” podem
ser cantadas em uma terra estrangeira de maneira apaixonada.
Essa história data especificamente do “terceiro ano do reinado de
Jeoaquim”, o que se refere ao crítico ano de 605 a.C. (Dn 1.1). Outra história
e cada uma das visões são introduzidas em referência a um ano particular no
reinado de um rei (veja 2.1; 7.1; 8.1; 9.1; 10.1). Isso mostra uma preocupação
marcante ao longo do livro com que se leia o material dentro de um contexto
histórico particular.
Nabucodonosor, rei da Babilônia, é o sujeito de quatro verbos de
agressão nesses versículos. Ele veio i b o ) , sitiou (sür ), levou (causativo de
b o ) e colocou (causativo de b ô’) (v. 1,2). Aparentemente, seria ele quem estava
no controle. Sem dúvida, um exército poderoso fora enviado para sujeitar
Jerusalém. O autor de Daniel, contudo, não menciona o poder dos exércitos
babilónicos como o fator principal. Essas ações ocorreram pela vontade do
Deus de Judá. O Senhor [os] entregou (nãtan também significa “deu”) nas
suas mãos (v. 2). A mesma linguagem foi usada por Jeremias quando este previu
a queda de Jerusalém (Jr 12.7; 21.10 etc.). Daniel concorda com Jeremias. As
circunstâncias por trás da história em Daniel 1 não ocorreram por acidente.
Elas foram um cumprimento profético. Deus havia orquestrado esses eventos.
Jerusalém foi dada nas mãos de Nabucodonosor como um ato de juízo divino.
Em Daniel, Deus é designado por diversos nomes. O termo usado em
Daniel 1.2, o Senhor ( ’ã d õ n ã y ), é empregado com frequência ao longo do

59
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

AT para enfatizar o governo soberano de Deus. Ele ocorre mais oito vezes no
livro. Essas ocorrências encontram-se na oração do capítulo 9 como o modo
favorito pelo qual Daniel se dirigia a Deus (9.4,7,15,16,17,19 [3 vezes]).
Seu aparecimento a essa altura introduz sutilmente um tema importante: o
controle soberano de Deus sobre o Seu povo e as suas circunstâncias. Essa ideia
será enfatizada de forma mais dramática em passagens subsequentes.
De acordo com o livro de Reis,Jeoaquim representa o grupo de governantes
de Judá que fizeram “o que o Senhor reprova” (2 Rs 23.37). Sua incompetência
política e espiritual parece ter apressado o fim de Judá. Em Daniel, seu papel
é limitado ao de um rei que foi subjugado por Nabucodonosor. A menção a
Jeoaquim nos versículos iniciais é a única referência a um rei judeu no livro
(Dn 1.1,2). Reis babilónicos e persas são o alvo das atenções daí por diante.
Isso contrasta com os livros mais proféticos, onde as atividades dos reis de Israel
e de Judá são proeminentes. O alcance de Daniel é mais internacional.
A política babilónica incluía a completa humilhação dos seus inimigos.
Para reduzir as possibilidades de rebelião, Nabucodonosor enfraquecia aqueles
que ele conquistava minando os seus recursos. Ele conseguiu fazer isso com
Judá: (1) levando os utensílios do templo de Deus (...) para o templo do
seu deus (v. 2); e (2) trazendo alguns dos israelitas (...) para ensinar-lhes a
língua e a literatura dos babilônios (v. 3,4). Essas duas ações garantiram o
controle babilónico sobre Judá.
Com base em 2 Crônicas 4, os utensílios do templo talvez tenham inclu­
ído uma variedade de itens usados em suas operações diárias. Esses podem ter
sido: vasilhas, panelas, pás, garfos, tenazes, espevitadores, pratos e incensários.
De acordo com Daniel 5.2, taças poderiam ser acrescentadas à lista, embora
estas talvez tenham sido levadas mais tarde. Esses utensílios eram todos feitos
de metais preciosos como o ouro e a prata e tinham um valor considerável.
Eles serviram como um pagamento parcial feito ao senhor da Babilônia pelo
vassalo subjugado, Judá.
Os utensílios do templo eram tesouros nacionais e religiosos. Eles eram
símbolos da força de Judá e do prestígio do seu Deus. Segundo a ótica babilónica,
esses utensílios funcionavam como ídolos representando a divindade de Judá.
Ao levá-los para o templo do seu deus, Nabucodonosor estava fazendo uma
declaração de supremacia (v. 2). Esse templo, provavelmente, fora dedicado
a Marduque, o deus padroeiro da Babilônia. Foi esse deus quem capacitou
Nabucodonosor a prosperar, e era por ele que o monarca travava suas batalhas.
O autor de Daniel não deixou esse ponto passar despercebido. O alinhamento
de frases e a escolha elaborada de palavras no versículo 2 enfatizam a dura
60
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

realidade do povo de Deus. A base do poder havia sido transferida do templo


de Deus (...) para o templo do seu deus na terra de Sinear [Babilônia] (v. 2).
A tensão inicial da história é mais do que política ou cultural. Ela é religiosa. O
deus da Babilônia aparentemente havia subjugado o Deus de Judá. Marduque
havia dominado Yahweh (YHW H).
1 3 0 segundo elemento da humilhação de Judá pela Babilônia envolvia a
captura de jovens da família real e da nobreza (v. 3). Isso também fazia parte
dos espólios de guerra. Esses jovens garantiriam a segurança de uma aliança
contínua com a Babilônia e podiam ser treinados para ajudar a administrar o
império em franca expansão. Em um certo sentido, eles eram reféns. Removê-
-los da sua terra natal reduzia quaisquer planos que eles pudessem ter de res­
taurar a liberdade de Judá do domínio babilónico. Eles seriam treinados e
cortejados para tornarem-se amigos do estado.
Os jovens foram identificados como israelitas, literalmente “filhos de
Israel” (v. 3). Talvez, o autor pudesse ter sido mais exato chamando-os de
“filhos de Judá”, já que o reino do norte já não existia. Ao chamá-los de filhos de
Israel, o autor liga essa narrativa à história maior dos descendentes de Abraão,
aumentando a tensão entre as heranças culturais de Israel e da Babilônia. Essa
é a tensão que está por trás do drama sendo contextualizado nesses versículos
iniciais.
O rei ordenou que o chefe dos oficiais da sua corte supervisionasse o trei­
namento (v. 3). Seu nome é dado como Aspenaz, um nome de origem persa.
Sua posição exata na hierarquia dos oficiais do palácio é difícil de determinar.
Alguns sugerem que Aspenaz talvez seja um título, e não um nome pessoal.
Nesse caso, ele poderia significar “estalajadeiro”. Isso se encaixaria ao contexto,
já que ele parece ter sido encarregado da acomodação dos residentes do palá­
cio. O termo hebraico para oficiais da (...) corte cobre um amplo espectro de
papéis no palácio. Mais tarde, o termo passou a designar os eunucos. Contudo,
a essa altura da história, não temos razão alguma para presumir que ele fosse
um eunuco ou que aqueles que ficavam sob os seus cuidados tornavam-se como
tal. Qualquer que tivesse sido sua posição precisa, a referência ao seu título
como chefe indica o alto nível do treinamento envolvido e serve para aumentar
os interesses que estavam em jogo nas experiências relatadas nesse capítulo.
H 4-5 Os jovens selecionados para o treinamento eram excepcionais em todas
as áreas. Eles possuíam qualidades físicas e intelectuais acima da média, o que
os tornava capacitados para servir no palácio do rei (v. 4). A descrição sem
defeito físico é reminiscente dos atributos dos sacerdotes e sacrifícios que os
tornavam aceitáveis ao Deus de Israel (Lv 21.16-23; 22.19-23). De modo sutil,
61
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

isso enfatiza ainda mais a ideia foi expressa anteriormente com os utensílios
do templo. Aquilo que deveria ter sido dedicado a Yahweh agora estava sendo
dedicado a Marduque.
A aptidão desses jovens para os vários campos do conhecimento lembra
as qualidades dos sábios mencionados na literatura de sabedoria de Israel (v. 4).
Em Provérbios, indivíduos que dominassem (“prudência”, sãkat) os vários cam­
pos de conhecimento (“sabedoria”, hokm a), cultos (“conhecimento”, d a a t), e
inteligentes (“discernimento”, bin). Essas qualidades lembram a descrição do
caráter de José em Gênesis 41.33 e 39. Elas conectam Daniel e os seus amigos
à tradição da sabedoria bíblica. Daniel, em particular, demonstrará habilidades
extraordinárias dentro da tradição da sabedoria israelita, muito além daquelas
encontradas na Babilônia. Daniel será treinado nos costumes babilónicos. En­
tretanto, o texto sugere claramente que sua principal preparação deriva da sua
conexão com Israel e com o seu Deus.
O currículo para o treinamento desses jovens extraordinários era a língua
e a literatura dos babilônios (v. 4). As versões inglesas mais antigas desig­
nam os babilônios (k asdím ) como “caldeus”. Os caldeus eram uma tribo do
sul da Mesopotâmia que ganhou controle sobre a Babilônia sob a liderança
de Nabopolasar em 626 a.C.. Entretanto, o AT refere-se a todos os povos cir­
cunvizinhos da Babilônia como kasdím . Isso também costumava ser feito em
documentos assírios. Portanto, a tradução babilônios é apropriada.
No livro de Daniel, a palavra kasdím é usada três vezes para referir-se aos
babilônios (1.4; 5.30; 9.1). Contudo, o termo era mais usado para identifi­
car uma classe de homens cultos e sábios ou sacerdotes (2.2,4,5,10; 3.8; 4.7;
5.7,11). Esse último uso também foi feito pelo historiador Heródoto no quin­
to século a.C. (H erodotus 1:181-183).
A língua nativa dos caldeus era o aramaico, a língua internacional do
Oriente Médio na época. Ela á um cognato próximo do hebraico, escrita com
um alfabeto similar. A língua oficial e literária do povo babilónico, contudo,
era o acadiano. Isso requeria o domínio de um complicado e antigo sistema
de escrita conhecido como cuneiforme. A literatura dos babilônios também
incluía antigos textos sumérios copiados dos séculos anteriores e escritos com
os mesmos caracteres do acadiano. Os arqueólogos desenterraram um rico
estoque de textos históricos, econômicos e religiosos nessas línguas. Entre
os textos religiosos, há aqueles que lidam com a arte da adivinhação, uma
profissão altamente sofisticada na Babilônia. Indivíduos eram especialmente
treinados para decodificar o significado de augúrios, os quais eles acreditavam
ser mensagens dos deuses. Fenômenos naturais incomuns, o movimento das
62
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

estrelas e até o fígado das ovelhas forneciam in sigh t quanto às mensagens


divinas. A extensão dessa literatura e a intensidade da instrução necessária para
dominá-la é sugerida pelo fato de que foram necessários três anos para que [os
jovens] fossem adequadamente treinados (v. 5).
Aqueles que eram selecionados para esse treinamento especializado
recebiam o benefício de desfrutar da comida e do vinho da própria mesa do
rei (v. 5). Isso não significa, necessariamente, que eles, literalmente, comiam
à mesma mesa que o rei. Apenas um grupo seleto e reduzido desfrutava desse
privilégio. A frase simplesmente indica que os israelitas recebiam o mesmo
tipo de comida de alta qualidade que o rei. Diversas pessoas em um grande
complexo palaciano recebiam uma porção diária de comida à custa do
estado.
O resultado almejado pela intensiva educação babilónica era preparar
esses jovens inteligentes para passarem a servir o rei (v. 5). Isso podia significar
diversas coisas. Com base no papel representado por Daniel nos capítulos
posteriores, parece que esse treinamento preparava-os para funcionar como
sábios da corte, dos quais havia diversas categorias (veja comentário em 2.2).
O papel desses indivíduos era agir como conselheiros do rei. Sua preparação
capacitava-os a acessar o conhecimento passado para melhor interpretar e
aconselhar quanto à vida presente.
■ 6-7 No versículo 6, o herói do livro é finalmente introduzido pelo nome,
junto a três outros que protagonizam a história no capítulo 3. A técnica da
introdução adiada do personagem principal cria um suspense inicial para o
leitor. Um contexto de culturas conflitantes já foi dramaticamente esboçado.
Em uma terra estrangeira, os israelitas são instruídos em todos os costumes da
cultura dominante, tendo acesso às mesmas comidas e bebidas. A ameaça da
total assimilação é real. O cenário é criado para que um herói se destaque entre
os membros da comunidade oprimida e defenda os valores do grupo.
Quatro jovens de Judá aceitam o desafio (v. 6). Eles estavam entre os cativos
que eram aculturados à sociedade babilónica. A atenção do público original seria
atraída para os quatro, já que eles também estavam entre os que vieram de Judá e
viviam sob o domínio estrangeiro. Será que eles conseguiriam defender as crenças
sagradas do povo judeu? Como eles encarariam a vida nesse ambiente hostil?
Uma descrição final do processo de comprometimento cultural é dada
no versículo 7, aumentando, consideravelmente, o drama. Os quatro israelitas
recebem novos nomes. O nome de uma pessoa era extremamente relevante nas
culturas antigas do Oriente Médio. Ele refletia o caráter, os relacionamentos
familiares e até mesmo a religião. Uma mudança de nome significava uma
63
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

considerável reorientação na vida. Abraão e Jacó no AT e Pedro e Paulo no


NT, talvez, sejam os melhores exemplos disso na Bíblia.
Os quatro israelitas tinham nomes hebraicos extremamente significativos.
Daniel significa “o meu juiz é Deus”, Hananias, “Yahweh mostrou graça”,
Misael, “quem é como Deus?”, e Azarias, “Yahweh ajudou”. Tais nomes
simbolizam uma ligação profunda com a comunidade judaica e com o seu
Deus.
Presume-se que o chefe dos oficiais encarregado do treinamento deles
seja o mesmo Aspenaz do versículo 3. Ele deu-lhes novos nomes que refletem
associações babilónicas (v. 7). Beltessazar significa “protege a sua vida” e parece
ser uma forma encurtada de Bel-beltessazar ou Nebo-beltessazar. Tanto Bei
como Nebo são nomes de deuses. Bei é outro nome para Marduque, e Nebo
(também Nabu) era o seu filho. Sadraque, provavelmente, significa “comando
de Aku”. Aku era o deus da lua. Mesaque parece ser o equivalente babilónico
de Misael. Ele também pode ser traduzido como “quem é como Aku?” Abede-
Nego talvez seja uma corruptela de Abede-Nego, que significa “servo de Nebo”.
Embora o conhecimento moderno do significado exato de cada nome seja um
tanto incerto, o que se sabe é suficiente para revelar um padrão. Os israelitas
receberam nomes que procuravam identificá-los com o mundo dos babilônios.
Esses nomes babilônios eram calculados para indicar uma mudança
significativa de lealdade e direção de vida. A importância disso não passaria
despercebida ao público original. Uma perda total da identidade cultural, e
portanto das convicções religiosas, estava em jogo.
Tanto os nomes hebraicos como os nomes babilónicos dos personagens
principais desse livro são apropriados. Daniel demonstra ser um homem que
vive como se ele verdadeiramente acreditasse que Deus é o seu juiz (Daniel).
Embora ele se mostrasse submisso ao rei e ao estado, ele deixava claro que
Deus era aquele a quem ele verdadeiramente prestava contas. Como resultado
desse compromisso, ele se torna alguém cuja vida é divinamente protegida
(Beltessazar). Seu Deus, contudo, e não Bei, é quem o livra repetidas vezes.
Ao longo dessa seção, os babilônios eram os principais sujeitos dos verbos.
Nabucodonosor e o chefe dos oficiais estão no comando. Nabucodonosor veio
(v. 1), sitiou (v. 1), levou (v. 2), colocou (v. 2), ordenou (v. 3), designou (v. 5),
e o chefe dos oficiais deu (...) nomes (v. 7). Por outro lado, os israelitas estão
passivos. A ação está acontecendo a eles. O efeito disso na narrativa é realçar
a sujeição de Israel. Essa era a atmosfera do exílio. Na superfície, a Babilônia,
aparentemente, controlava o mundo dos eventos humanos.

64
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

2. O teste (1.8-14)
I 8 Nos versículos iniciais, o cenário é preparado para o teste dos versículos
8-14. Um processo gradual de assimilação à cultura estrangeira é descrito. Os
jovens são instruídos nos costumes da Babilônia e recebem nomes babilónicos.
Tudo isso é esboçado dentro do contexto do absoluto domínio babilónico.
Em uma decisão dramática, Daniel emerge dentre os aprendizes israelitas
e toma posição em favor dos valores da comunidade que ele representa.
Não mais um fantoche passivo nas mãos de um tirano terreno, Daniel toma
decisivamente a iniciativa. Ele faz jus ao seu nome e professa sua fidelidade a
Deus decidindo não se tornar impuro (v. 8). O termo impuro {gãal) é usado
nas Escrituras hebraicas para indicar algo ou alguém desqualificado diante de
Deus. Isso talvez se deva a uma poluição cerimonial como quando um sacrifício
é defeituoso (Ml 1.7). A impureza também pode resultar de uma quebra da lei
moral tal como o assassinato (Is 59.3). Em ambos os casos, trata-se de uma ação
ou condição que torna a pessoa inaceitável para a comunhão com Deus.
A razão por que Daniel determinou que a comida e (...) o vinho do rei
contaminariam o seu relacionamento com Deus não é clara (Dn 1.8). Algumas
pessoas sugerem ser por causa da associação entre a comida e a religião
babilónica. Em geral, a comida à mesa do rei era oferecida primeiro aos deuses
babilónicos. Se essa era a preocupação de Daniel, contudo, é difícil explicar
por que ele aceitou os vegetais. Não há evidência alguma de que estes fossem
excluídos das ofertas rituais aos ídolos.
Outra sugestão é que recusar a comida era uma forma de Daniel fazer uma
declaração política. Ele não cooperaria totalmente com o programa babilónico.
Essa posição também apresenta problemas. Ao longo do livro, Daniel jamais
demonstra ideias antibabilônicas. Na verdade, ele parecia inteiramente leal aos
seus anfitriões babilónicos.
Diversos estudiosos conjecturam que a questão, talvez, estivesse
relacionada às regulamentações dietéticas da lei mosaica listadas em Levítico
II e em outros lugares. E possível que animais impuros estivessem envolvidos,
que a preparação desses alimentos fosse inadequada ou que o sangue não fosse
drenado. Animais impuros como porcos e cavalos, certamente, faziam parte
dos banquetes babilónicos. A recusa de Daniel de comer a comida do rei,
portanto, poderia simbolizar uma identificação com o legado de Israel. Isso,
talvez, explique o problema que Daniel tinha com a carne, mas não indica por
que o vinho é rejeitado. A lei israelita não proíbe o consumo do vinho a menos
que isso leve à embriaguez.
65
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A recusa do vinho, contudo, talvez possa ser explicada à luz de Jeremias


51.7. Nesse texto, o profeta projeta a imagem da Babilônia como um cálice
de vinho que “embriagou a terra toda”. Ele adverte: “As nações beberam o seu
vinho; por isso enlouqueceram”. Daniel demonstra um grande interesse por
Jeremias, principalmente no capítulo 9. Talvez, recusar o vinho fosse simbólico
do desejo de Daniel de evitar beber profundamente demais da cultura
babilónica e tornar-se intoxicado por ela.
Uma última proposta é que o fato de Daniel ter recusado a comida do rei
teria sido uma forma de identificar-se com os exilados de Judá como um todo
e lamentar com eles. A carne e o vinho eram alimentos dos ricos e daqueles
que celebravam. Os vegetais e a água requisitados por Daniel no versículo 12
alinham-se melhor à porção diária daqueles que tinham uma posição mais hu­
milde na vida. Talvez, a intenção de Daniel fosse identificar-se com a pobreza
e com as perdas sofridas pelo seu povo no exílio. Recusar a comida especial do
rei era um sinal de que ele estava lamentando com eles.
Em algum momento, a comida real, aparentemente, torna-se parte da die­
ta regular de Daniel novamente. “No terceiro ano de Ciro”, de acordo com
10.3, Daniel indica que, ele estava comendo esses alimentos. Ele relata que se
absteve de comer essa comida durante um período de luto, “não comi nada
saboroso; carne e vinho nem provei”. Esse texto sugere que a comida do rei não
era necessariamente má ou contrária à lei mosaica em si mesma. Abster-se dela
era simplesmente parte do ritual de luto.
Qualquer que tenha sido a razão específica que o levou a recusar a comida,
o texto implica que isso foi um símbolo importante das suas convicções
religiosas. Evitar essa assimilação da cultura pagã foi uma decisão determinante.
Daniel, o israelita, escolheu distinguir-se dos valores e crenças babilónicos. O
herói de Yahweh posicionou-se contra o mundo de Marduque.
Recusar o banquete do rei representou claramente um afastamento
significativo da norma. Quaisquer que tenham sido as intenções de Daniel,
isso, provavelmente, foi interpretado como uma declaração política. Como
tal, sua posição carregava consigo um risco considerável. Para destacar a
severidade da situação, o narrador diminui a velocidade da ação ao relatar os
diálogos entre os personagens. Dessa forma, os leitores podem sentir todas as
implicações desses eventos e vivenciar o suspense crescente. O texto observa
que Daniel precisou pedir permissão para se abster deles (v. 8). Certas coisas
eram esperadas daqueles que estavam no programa de treinamento, e a dieta
oficial era claramente uma delas. O mero questionamento da comida parece
colocar um aprendiz em uma posição perigosa.
66
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

■ 9 Daniel teve a oportunidade de tomar uma posição porque Deus fez com
que o homem fosse bondoso para com Daniel e tivesse simpatia por ele
(v. 9). Essa é a segunda vez no capítulo que a atividade do Senhor por trás dos
bastidores é mencionada (veja v. 2). Os sentimentos de preocupação genuína
demonstrados por Aspenaz são atribuídos a Deus. O oficial demonstrou
uma bondade incomum (bondoso, hesed) e certo grau de apego emocional
(simpatia, rãham ) por Daniel. Por meio da intervenção de Deus, um contexto
foi criado que tornou possível uma vida fiel por parte de Daniel e dos seus
amigos.
1 10 Os esforços de Aspenaz para dissuadir Daniel dão mais indicações do
risco envolvido. Ele apelou para a lógica e para as emoções de Daniel. Eles
deveriam temer o rei, Nabucodonosor, o qual, como potentado absoluto,
podería fazer qualquer coisa naquela época (v. 10). Os caprichos implacáveis
de Nabucodonosor estão bem documentados na história babilónica. Ele não
tolerava qualquer aparência de deslealdade ao estado. Se Daniel e os seus
amigos acabassem menos saudáveis que os outros jovens da mesma idade,
Aspenaz poderia, literalmente, perder a sua cabeça. A implicação, é claro, é de
que o fim de Daniel e de seus amigos não seria melhor.
Aspenaz não recusa imediatamente o pedido de Daniel. Em vez disso, ele
fornece o critério para a possibilidade de evitarem a contaminação. Se Daniel
pudesse evitar que parecessem menos saudáveis que os outros jovens, então
eles poderiam ter o seu pedido concedido. Comer ou não comer a comida do
rei não era a questão. A preocupação era com a saúde dos aprendizes. Portanto,
uma porta é aberta para um teste que podería provar que a fidelidade a Deus é
recompensada.
1 11 A essa altura, Daniel voltou-se para um oficial inferior, o homem que o
chefe dos oficiais tinha encarregado de cuidar dele e dos seus amigos (v. 11).
Esse homem ([guarda], m elsa r ), aparentemente, fora encarregado de super­
visionar diretamente os quatro israelitas, funcionando como seu guardião ou
supervisor. Daniel percebe o desejo de Aspenaz de não se envolver e traça um
plano com um subordinado. Isso mostra respeito a Aspenaz e distancia este dos
eventos, caso o plano de Daniel fracassasse.
B 12-14 Daniel propõe uma experiência (...) durante dez dias (v. 12). É
um período razoável de tempo que fornece uma duração longa o suficiente
para que o teste seja válido. Ao longo desse período, Daniel e os seus amigos
comeriam vegetais e beberiam água em vez das provisões regulares. O termo
traduzido como vegetais é literalmente “sementes” (z êro lm ) e podia referir-se a
67
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

qualquer coisa que nasça de plantas. Isso inclui frutas e grãos, além de vegetais.
No mundo antigo, a água acarretava alguns riscos de saúde, já que os sistemas
de purificação não eram extensivos. Quando o período de teste fosse concluí­
do, o oficial faria o julgamento. Ele compararia a aparência física de Daniel e
dos seus amigos à dos outros aprendizes (v. 13).
Daniel parece submeter o seu destino ao oficial. Ele humildemente
convida: trate os seus servos de acordo com o que você concluir. O que
poderia acontecer a eles é sugerido pelas palavras de Aspenaz no versículo
10. Entretanto, a essa altura da história, o leitor já espera ver a mão de Deus
subjugando a mão do homem. Deus tem trabalhado por intermédio das ações
de Nabucodonosor (v. 2) e de Aspenaz (v. 9). E natural que antecipemos a
mesma atividade divina nessa circunstância. O oficial concordou (v. 14), mas
ele não passa de um fantoche nas mãos de um Deus soberano.

3. O resultado (1.15-21)
■ 15 A tensão na história chegou a um clímax e espera uma resolução. Daniel
arriscou-se a perder o favor das autoridades babilónicas e o seu lugar entre
eles para evitar a contaminação. Problemas de saúde e até a morte também
poderiam ocorrer. Os resultados desse teste são encorajadores para aqueles que
tentam fazer o mesmo: (1) Daniel e os seus amigos mantêm a boa saúde; (2)
eles evitam a contaminação; (3) eles recebem dons de sabedoria; e (4) eles são
escolhidos para servir ao rei.
Esses resultados trazem uma resposta para a pergunta central da
narrativa: o povo de Deus pode permanecer fiel às suas convicções em meio
a um ambiente hostil? A resposta a essa pergunta é que não é apenas possível
sobreviver, mas também prosperar. Os resultados são muito melhores do que
o esperado. Daniel e os seus amigos não se limitam a igualar-se ao padrão.
Eles são superiores a todos os outros tanto física como espiritualmente. Sua
recompensa não é apenas a justificação, mas também a exaltação.
A dieta de vegetais e água deixou os israelitas incrivelmente mais saudáveis
e mais fortes do que todos os jovens que comiam a comida da mesa do rei
(v. 15). Eles estavam literalmente m elh o r es e m a is g o r d o s do que os outros. Não
há indicação alguma no texto de que esse resultado tenha sido causado por
hábitos alimentares saudáveis. A questão não é que os vegetarianos se saiam
melhor do que os carnívoros. No contexto do capítulo, a intervenção divina é
presumida. A saúde dos israelitas é milagrosa. Sua dieta era inferior à comida
68
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

especial do império. Eles não deveriam ter ficado mais saudáveis, mas ficaram.
A única explicação para isso é Deus.
fl 16 Como consequência do resultado positivo do teste, o guarda concedeu
a petição de Daniel e dos seus amigos. Eles evitaram a contaminação, não
comendo a comida do rei. O encarregado tirou a comida especial e o vinho
(v. 16). Portanto, eles mantiveram-se livres das influências corruptoras da
cultura babilónica. Eles continuaram a depender de Deus para fortalecer-lhes
por intermédio da dieta de vegetais. Aqueles que procuram distinguir-se como
povo de Deus podem, verdadeiramente, permanecer livres das influências
corruptoras da cultura ao seu redor. Isso requer um risco, mas essa é a natureza
da fé.
■ 17 A essa altura, o teste da comida foi resolvido. Daniel e os seus amigos
são recompensados por sua fidelidade. O narrador, no entanto, conclui a his­
tória resolvendo outra questão levantada nos versículos 3-5. Trata-se da preo­
cupação sobre como os israelitas se sairiam com o seu treinamento. Da mesma
forma que eles triunfaram fisicamente, eles se distinguiram intelectualmente.
Ao unir essas duas questões na narrativa, o autor enfatiza a mão de Deus em
ambos os aspectos.
O segredo da superioridade intelectual dos quatro israelitas é que Deus
deu [a eles] sabedoria e inteligência (v. 17). A tradição bíblica é unânime em
dizer que a principal fonte da sabedoria é o Deus de Israel (Dn 2.21; SI 119.34;
Pv 1.7; Tg 1.5). Essa é a terceira vez em que a iniciativa de Deus é destacada
nesse capítulo (veja Dn 1.2 e 9). Em cada uma dessas ocasiões, o verbo do qual
Deus é o sujeito é o mesmo, deu [v.17] (n ã ta n ). Deus entregou Jerusalém a
Nabucodonosor (v. 2). Ele fez com que Aspenaz tivesse simpatia por Daniel (v.
9). Agora, ele dá sabedoria (v. 17). Essas três referências às ações de Deus
elevam a história a um nível que vai além da instrução moral. O bom com­
portamento trabalha em conjunto e sob o domínio da atividade soberana e
graciosa de Deus. Os eventos desenrolam-se de acordo com a vontade divina e
não pela determinação humana. Como diz Provérbios 16.9: “Em seu coração o
homem planeja o seu caminho, mas o Senhor determina os seus passos”.
Os quatro israelitas são divinamente capacitados na sabedoria didática
clássica, ou seja, em sabedoria e inteligência para conhecerem todos os
aspectos da cultura e da ciência (Dn 1.17). Isso inclui familiaridade com
coleções de provérbios, histórias de sabedoria e listas da flora e da fauna. Daniel,
contudo, distinguiu-se entre os quatro por causa dos seus dons de sabedoria
profética. Isso quer dizer que ele tinha a habilidade de interpretar todo tipo
de visões e sonhos. Essa área especializada da sabedoria envolvia a habilidade
69
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de interpretar mensagens do mundo divino. As histórias nos capítulos 2; 4 e


5, juntamente com visões nos capítulos 7 a 12, demonstram suas habilidades
nessa área.
M 18-20 A sabedoria de Deus prova ser muito mais valiosa do que qualquer
coisa que a Babilônia podia oferecer. Ao final do tempo estabelecido, Aspenaz
apresentou seus aprendizes ao rei para um período intenso de perguntas
e respostas (v. 18). De acordo com o versículo 5, “três anos” era o tempo
estabelecido para o treinamento. Durante a entrevista, Nabucodonosor
descobriu algo extraordinário. Não existia ninguém comparável aos quatro
israelitas (v. 19). Aliás, ele descobriu que eram dez vezes mais sábios do que
qualquer outra pessoa em seu reino (v. 20). Seu grau de realização é acentuado
pelas palavras todos e todo, a mesma palavra em hebraico (kol). Como
resultado do favor de Deus, os israelitas fiéis demonstraram ser melhores do
que todos os outros indivíduos em todo o reino.
H 2 1 O versículo de conclusão da narrativa lembra o versículo inicial ao fazer
referência ao reinado de um rei. O primeiro ano do rei Ciro foi 539 a.C. e
marcou o final do poderio babilónico (v. 21). Essa observação enfatiza dois
pontos: (1) Daniel passou um longo período a serviço da Babilônia; e (2) ele
viveu mais do que o império. O primeiro ponto sugere que podemos esperar
mais histórias dos muitos anos que ele passou na corte real. Portanto, o leitor é
preparado para histórias adicionais nos capítulos seguintes. O segundo ponto
lembra ao leitor de que o fiel pode viver mais do que as instituições humanas
opressoras.
A partir do texto
O capítulo 1 explora diversas questões de interesse teológico e prático. A
experiência da vida no exílio, o conflito entre convicções e cultura, os riscos de
uma vida justa e o Deus que reina são alguns dos temas mais proeminentes que
emergem do texto.
A vida d e f é d e v e ser vivid a n o contexto d o exílio. O livro de Daniel descreve
um contexto familiar ao povo de Deus. É o contexto do exílio, uma terra
estrangeira de um povo deslocado. A vida nesse ambiente deve ser vivida entre
aqueles que são hostis a Deus. É um mundo no qual os crentes sentem-se
alienados da cultura prevalecente ao seu redor. Eles não se encaixam muito
bem. De acordo com Jesus, essa é a sina de todos aqueles que seriam Seus
discípulos. Eles devem viver em um mundo que não é a sua casa, um mundo
em desacordo com o Reino de Deus (Jo 17.14).
70
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O primeiro capítulo de Daniel descreve a natureza da experiência exílica.


Daniel e os outros jovens israelitas são arrastados para um mundo sobre o qual
eles não têm nenhum controle. Os babilônios orquestram os eventos do dia, e
a hostilidade deles à fé é óbvia. Às vezes, ela é aberta, outras vezes, mais sutil.
Eles atacam e subjugam a cidade santa, humilhando o povo de Deus. Uten­
sílios sagrados do templo de Deus são profanados. Esses se tornam tesouros
orgulhosamente exibidos nos templos de deuses falsos, simbolizando o triunfo
do mal sobre o bem. A esperança futura do Reino de Deus parece ter ficado
refém de anfitriões nada amigáveis. Os jovens mais promissores de Israel são
doutrinados nos costumes da cultura alienígena. Eles aprendem o vocabulário
e a visão de mundo desse povo. Eles recebem os melhores alimentos e bebidas
babilónicos. Finalmente, aqueles que têm o futuro do reino nas mãos recebem
nomes que arrancam deles qualquer ligação com o seu Deus.
Jesus alertou os Seus discípulos de que o mundo seria um ambiente hostil.
O mundo os odiaria assim como havia odiado a Ele (Jo 15.18-20). O mundo
está em guerra com os caminhos de Deus, quer o povo do Senhor reconhe­
ça isso ou não. O príncipe deste mundo, representado em nosso texto por
Nabucodonosor, trava uma batalha constante contra os eleitos de Deus (Ef
6.10,11). Todos os cristãos, em algum sentido, são pessoas que vivem a vida
como alienígenas em um país estrangeiro. Eles estão longe de casa, em exílio no
momento presente, enfrentando forças hostis. Sua verdadeira cidadania “está
nos céus” (Fp 3.20).
As convicções dos fiéis, m u ita s vezes, entrarão em con flito com a sua cultura.
Viver em um ambiente alienígena cria grandes desafios para aqueles que
desejam permanecer fiéis às suas convicções. Daniel descobriu que seus valores
pessoais colocaram-no em conflito direto com a cultura babilónica dominante.
Esse conflito não permanece apenas no domínio das ideias. Ele, eventualmente,
encontra expressão nos exercícios ordinários da vida, como acontece a todas as
convicções. Para Daniel, comer certas comidas tornou-se o ponto de aplicação
prática das suas crenças.
Os sociólogos têm documentado a poderosa influência do conhecimento
social sobre o conhecimento pessoal. Alguns teoristas chegam até mesmo a
sugerir que todas as crenças e entendimentos individuais, na verdade, são
derivados do nosso ambiente. Os conceitos bíblicos de liberdade social,
contudo, sugerem que as pessoas podem escolher ideias e cursos de ação que
vão contra a cultura dominante. O coração do ministério profético no antigo
Israel estava profundamente baseado nessa máxima. O livro de Daniel concorda
claramente com isso.
71
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A maneira como os indivíduos devem interagir com a cultura que os cerca


representa um dos maiores desafios da vida dos crentes. Jesus deu um princípio
básico aos Seus discípulos quando ordenou que estivessem no mundo, mas
não fizessem parte dele (Jo 17.15,16). Ele ilustrou esse ensinamento em Sua
própria vida quando lhe indagaram sobre os impostos pagos a César. “Dêem
a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.21), disse Ele.
Paulo e Pedro também reconheceram a tensão que os cristãos enfrentam como
cidadãos de dois mundos. Ambos os apóstolos admoestaram os crentes a serem
bons cidadãos neste mundo (Rm 13.1-7; 1 Pe 2.12-16), porém mantendo seu
foco no outro (Cl 3.1,2; 1 Pe 2.9-11). Os cristãos devem viver inteiramente
envolvidos com sua cultura, entretanto evitar encaixar-se no seu molde (Rm
12.2 ).
Diversas estratégias para aplicarmos os ensinamentos de Jesus têm sido
propostas por cristãos ao longo dos séculos. Podemos interagir com a cultura
que nos cerca (1) rejeitando-a e isolando-nos dela; (2) identificando-nos com
ela e abraçando os seus valores; (3) vivendo ao seu lado; e (4) trabalhando para
transformá-la. Cada uma dessas pode ser uma abordagem legítima nas circuns­
tâncias certas.
No livro de Daniel, podemos ver o emprego de diversas dessas estratégias.
Daniel abraçou alguns dos valores mais elevados da cultura babilónica ao
ser treinado na sua literatura e nas suas línguas. Ao mesmo tempo, ele viveu
com o paradoxo trazido por um novo nome. Ele continuou a utilizar o seu
nome hebraico na maioria do tempo, embora ele, aparentemente, também
respondesse pelo nome babilónico de Beltessazar. O texto não registra protesto
algum quanto a esse ponto, reconhecendo assim o valor de manter-se um pé
em ambos os mundos.
Em certa altura, contudo, Daniel traça uma linha e rejeita os valores da
cultura dominante. A comida real representa um grau de concessão que ele não
está disposto a fazer. Prudentemente, o texto bíblico não revela a razão por que
a comida era inaceitável. A ambiguidade do texto comunica um princípio em
vez de um motivo particular. A questão não era estabelecer um padrão absoluto
quanto a certas comidas que contaminam e outras que não o fazem. Essas
coisas, em geral, são mais relativas ao contexto no qual elas ocorrem. Porém, a
mensagem de Daniel é clara: em algum momento, os cristãos devem distinguir
uma identidade que é separada da cultura dominante. Eles pertencem a outro
reino. Seus valores, inevitavelmente, entram em conflito com as culturas deste
mundo.

72
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

No final, a rejeição de Daniel a certos valores adotados pela cultura babi­


lónica fornece um meio de transformá-la. O rei repara nos quatro israelitas e
coloca-os em posições de influência no seu reino. Esse ponto é enfatizado mais
profundamente nos capítulos posteriores, onde os reis honram o Deus de
Daniel e concedem favores adicionais aos israelitas (2.47,48; 3.28-30; 4.37;
5.29; 6.26-28).
Uma vid a ju sta d em a n d a riscos. Como a história indica, tomar uma po­
sição contra a cultura dominante envolve riscos. Para Daniel, na melhor das
hipóteses isso significava ser mal compreendido, desfavorecido e demovido.
Na pior das hipóteses, isso poderia resultar na perda da saúde e na morte. Isso
também significava colocar outras pessoas, potencialmente, em perigo. Aque­
les que tinham autoridade sobre Daniel estariam sendo colocados em perigo
caso ele não passasse no teste.
Daniel decidiu que manter suas convicções valia as consequências, fossem
estas quais fossem. As mudanças que precisamos fazer para permanecermos
fiéis, às vezes, acarretam um preço considerável. Jesus ensinou que o custo do
discipulado era alto. Seus seguidores deveriam avaliar o custo e estar prontos
para o risco (Lc 14.26-32). Perder uma mão, um pé ou um olho é melhor do
que ceder ao mundo (Mc 9.43-46). Aliás, tudo precisa tornar-se negociável.
No final, nada pode ser retido (Lc 14.33). Histórias subsequentes em Daniel 3
e 6 demonstrarão isso ainda mais claramente.
In d ep en d en te da s ap arên cias externas, D eus reina. O livro de Daniel examina
a soberania de Deus sob todos os ângulos e as implicações dessa verdade na
vida do crente. O capítulo 1 explora as realidades de se viver fielmente do lado
inferior do poder. Daniel está sujeito a forças humanas que estão fora do seu
controle. Contudo, no final das contas, não são essas forças que determinam o
seu destino. Na verdade, Deus é quem governa a vida de Daniel. Estar nas mãos
de Nabucodonosor não significa estar fora das mãos de Deus.
Deus intervém na vida de Daniel em três momentos significativos no tex­
to. Deus permite o julgamento de Jerusalém pelas mãos de Nabucodonosor
(v. 2), promove o favor de Aspenaz para com Daniel (v. 9) e providencia o
aprendizado dos quatro jovens israelitas (v. 17). Com isso, Deus prova ser fiel
no primeiro teste de fidelidade.
As implicações dessas três atividades divinas são profundas. A primeira
sugere que as circunstâncias da vida de Daniel não são acidentais. Deus colo­
cou Daniel e seus amigos na terra do exílio de propósito. Eles participam de
uma história muito maior do que simplesmente a sua própria história. Aquilo
que parece desconcertante e esmagador encaixa-se no fluxo do drama divino.
73
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A providência prevalece. O mal que as pessoas planejaram, Deus tornou-o em


bem (Gn 50.20).
A segunda interferência de Deus na vida de Daniel lembra-nos de que
“Deus é fiel; ele não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem
suportar. Mas, quando forem tentados, ele mesmo lhes providenciará um esca­
pe, para que o possam suportar” (1 Co 10.13). O potencial para uma vida justa
é orquestrado divinamente em favor de Daniel. A determinação humana não
é suficiente para lidar com um mundo hostil. Deus precisa providenciar uma
oportunidade para que Daniel se posicione. Ele faz com que Aspenaz favoreça
os jovens israelitas, o que fornece uma oportunidade para que Daniel faça a
coisa certa. O esforço humano é combinado à graça divina para impedir que
Daniel se contamine. Sua justiça é pela graça, e não pelas obras (Ef 2.8,9).
Essa verdade faz do texto algo mais que um simples ensinamento moral.
Daniel precisa escolher bem. Suas escolhas sozinhas, no entanto, não determi­
nam o resultado final. Se Deus não fizer nada, então nada será feito. Aqueles
que desejam ousar ser como Daniel precisam estar cientes de que eles estão
trabalhando em conjunto com Deus. Fora de Deus, não existe pessoa alguma
justa. Uma vida justa vem de Deus (Fp 3.9).
A terceira atividade de Deus mencionada nesse capítulo sugere que as
mordomias da Babilônia não foram a chave do sucesso de Daniel e dos seus
amigos. Deus é a verdadeira fonte de tudo o que é bom na vida. Da mesma
forma que a comida real da corte babilónica provou ser desnecessária para
promover a saúde de Daniel, o treinamento babilónico não foi essencial
para nutrir sua mente. Afinal, “nem só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que procede da boca do Senhor” (Dt 8.3; Mt 4.4).
A provisão de Deus não é apenas igual àquela dada pelos homens, mas é
muito melhor. O plano de Deus para nutrir o corpo produziu jovens muito
mais saudáveis do que os seus companheiros. Da mesma forma, o dom de sa­
bedoria dado por Deus aos israelitas provou ser 10 vezes melhor. Não existe
comparação entre a provisão humana e a divina. “Porque a loucura de Deus
é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte que a
forçado homem” (1 Co 1.25).
Tudo o que Daniel e os seus amigos realizaram é colocado num contexto
sólido pelo primeiro capítulo. Suas realizações e promoções vieram de Deus.
Eles vivem “‘Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito’, diz o
Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). Eles são munidos de recursos divinos para o
seu papel entre os exilados de Israel, assim como todos os crentes em todas as
eras e contextos.
74
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

B. O sonho da e s tá tu a : o p rim e iro t e s t e de


sab e d o ria ( 2 . 1 - 4 9 )

Panorama geral
A história do capítulo 2 narra outro teste para o herói do livro e o seu
Deus. Dessa vez trata-se de um teste de sabedoria. Como nos capítulos 4 e 5 do
livro, os dons de Daniel como interpretador de sinais divinos é posto em xeque.
Daniel é testado contra os outros sábios da Babilônia em uma competição de
vida ou morte arquitetada por Nabucodonosor. O contraste marcante entre
os sábios e Daniel fornece o meio para provar a sabedoria de Daniel e, o que é
mais importante, do seu Deus.
Por trás do texto
O capítulo 2 introduz a seção aramaica do livro. A partir do versículo 4,
a língua original do texto muda do hebraico, a língua dos judeus, para o ara-
maico, a língua internacional do império. Isso continua até o capítulo 7, depois
do qual o hebraico é empregado para terminar de narrar o restante do livro.
A razão exata disso é difícil de determinar, e os estudiosos estão divididos a
respeito. No mínimo, o fenômeno reflete a cultura bilíngue da qual a literatura
emergiu.
Qualquer que seja a razão original da mudança do hebraico para o aramaico
durante seis capítulos, essa característica é importante para a estrutura do livro
e para o entendimento da sua unidade. Como a seção em aramaico inclui tanto
histórias como visões, ela torna-se um meio de garantir que o leitor irá inter­
pretar as visões dos capítulos 7 ao 12 com referência às histórias dos capítulos
1 ao 6. As duas seções do livro foram unidas pelo uso do aramaico.
A própria seção em aramaico mostra-se altamente coesa devido a uma
estrutura quiásmica. Essa estrutura alerta o leitor de que os capítulos 2 e 7, o
começo e o fim do quiasma, de certo modo, ecoam um ao outro. Ambos lidam
com quatro reinos terrenos que são subjugados pela intervenção divina. Os
capítulos 3 e 6 também equilibram um ao outro com seu enfoque no livramento
divino de poderes opressores. A seção central do quiasma, os capítulos 4 e 5,
enfatizam o Senhor humilhando monarcas terrenos. Portanto, os capítulos são
arranjados da seguinte forma:
A - Capítulo 2: o sonho dos quatro reinos
B - Capítulo 3: o livramento da fornalha
75
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

C - Capítulo 4: a humilhação de Nabucodonosor


C ’ —Capítulo 5: a humilhação de Belsazar
B’ - Capítulo 6: o livramento da cova dos leões
A’ —Capítulo 7: a visão dos quatro reinos
As três duplas de quiasmas nos capítulos 2—7 refletem as três intervenções
de Deus narradas no capítulo 1. Isso serve para unificar ainda mais o livro. Em
1.17, Deus deu o dom de interpretação de sonhos e visões a Daniel. Esse dom é
empregado nos capítulos 2 e 7 para revelar os mistérios dos quatro reinos. Em
1.9, o Senhor opera independente das autoridades reais relutantes para trazer
o livramento. De modo semelhante, nos capítulos 3 e 6, Ele faz cair por terra
os planos dos reis e livra miraculosamente o Seu povo. Finalmente, em 1.2,
Deus humilha o rei Jeoaquim entregando a sua cidade ao seu inimigo. Nos
capítulos 4 e 5, Deus humilha igualmente os reis babilónicos Nabucodonosor
e Belsazar. Portanto, as três intervenções de Deus no capítulo 1 tornam-se
programáticas na estruturação da seção em aramaico. Essa característica une
a obra, transformando-a em uma unidade inextricável, lembrando o leitor de que
cada história e visão deveria ser entendida à luz do todo.

0 uso do hebraico e do aramaico em Daniel


O uso de duas línguas no livro de Daniel tem causado discussões
acirradas entre os estudiosos. Alguns sugerem que o fenôm eno é uma
pista para entenderm os o dese nvo lvim en to do livro. Talvez, a seção em
aram aico represente m ateriais m ais antigos que foram incorporados
à obra fin al, a qual, even tua lm e nte, anexou uma introdução e os
cinco últim os capítulos em hebraico (M ontgom ery, 1927, p. 88,89).
O utros propõem que o livro inteiro tenha sido o rigin alm en te com posto
em aram aico e traduzido apenas parcialm ente para o hebraico para
que pudesse ser incluído ao cânone do judaísm o. De acordo com essa
teoria, a razão por que os capítulos 2— 7 não foram traduzidos para o
hebraico é que o vo lum e considerável de diálogos nessa seção seria mais
a utê ntico se fosse ouvido na língua em que eles foram o rigin alm en te
falados (H artm an e Di Lella, 1978, p. 14,15). Outra proposta é de que
o livro inteiro tenha sido com posto em hebraico, mas que um a versão
em aram aico foi desenvolvida para aqueles que não sabiam ler em
hebraico. Quando uma porção do te x to em hebraico foi perdida, a versão
em aram aico forneceu o m ate ria l que fa lta va (Bevan, 1892, p. 26-28).
Um ponto de vista m ais popular é de que o te x to tenha sido
o rigin alm en te escrito em duas línguas para e n fa tiza r o conteúdo

76
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

das seções para públicos judaicos e não judaicos. A seção em


aramaico enfatizaria materiais do interesse particular de um público
m ais am plo, e a seção em hebraico seria caracterizada por um
m aior enfoque nas questões judaicas (Miller, 1994, p. 47,48).
A sugestão mais sim ples para e xplicar uma m udança de línguas é que
isso reflete o co nte xto m u ltilin g u ístico e cu ltural do qual o livro em ergiu
(Driver, 1900, p. xxii). A alternação entre as línguas é um a característica
com um nessas culturas. O livro de Esdras dem onstra tendências sim ilares
pelo seu uso do aram aico.

De diversas maneiras, essa narrativa traça um paralelo com uma história


patriarcal familiar dos judeus: a de José interpretando o sonho do Faraó em
Gênesis 41. Como José, Daniel é um cativo em uma terra estrangeira (v. 12)
chamado para interpretar o sonho perturbador de um rei (v. 14). Os peritos
locais na arte da interpretação não têm êxito (v. 8), mas o cativo judeu é bem-
-sucedido por meio do poder e da graça do seu Deus (v. 16). No final, ele é
honrado com uma posição e autoridade no reino (v. 40-43).
Embora existam esses paralelos entre as duas histórias, os leitores antigos,
provavelmente, notariam diferenças significativas também. A situação de
Daniel, em particular, é mais ameaçadora do que a de José. O rei é desarrazoado
e suspeitoso, os sábios enfrentam uma ameaça de morte, e o próprio sonho traz
consigo uma mensagem enigmática. Portanto, o drama na história de Daniel é,
consideravelmente, mais intenso do que na história de José.
A tensão na história em Daniel 2 é alcançada por meio de diversas cenas
sobre o funcionamento interno da corte real babilónica. Embora esses vislumbres
de conversas e intrigas do palácio sejam interessantes, eles também são calcula­
dos para aumentar a resposta emocional do leitor antigo. O conflito entre o rei
e os seus cortesãos gera um drama cativante.
O rei mais famoso e temido da Babilônia, Nabucodonosor II (605-562
a.C.), torna-se significativamente presente na história. Ele é retratado como
um monarca exageradamente exigente, injustificadamente suspeitoso e irracio­
nalmente cruel. Essa caracterização encaixa-se bem ao que se sabe dele e de
outros tiranos do antigo Oriente Próximo a partir de registro extrabíblicos. No
mundo antigo, os reis governavam com autoridade inquestionada. Histórias de
fontes bíblicas e rabínicas acentuam particularmente a dureza de Nabucodonosor e
a pouca importância que ele atribuía à vida. Sua capacidade de tratar os cativos
de modo extraordinariamente cruel é enfatizada em 2 Reis, onde a queda de
77
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Jerusalém é registrada. O texto observa: “Executaram os filhos de Zedequias


na sua frente, furaram os seus olhos, prenderam-no com algemas de bronze e o
levaram para a Babilônia” (2 Rs 25.7).
Na história de Daniel, Nabucodonosor declara que, se os sábios não fizerem
o que ele quer, ele mandará que sejam cortados em pedaços e que as suas
casas se tornem montes de entulho (Dn 2.5). Ambos os destinos teriam sido
aterrorizantes para os povos do mundo antigo. O desmembramento do corpo e
a destruição da casa de alguém eram desonrosos tanto para os indivíduos como
para as suas famílias. Infelizmente, esse tratamento era típico dos déspotas nos
tempos antigos. Ciro fez uma ameaça similar em um dos seus editos registrados
em Esdras 6.11, que diz: “Além disso, determino que, se alguém alterar este
decreto, atravessem-lhe o corpo com uma viga tirada de sua casa e deixem-no
empalado. E seja a sua casa transformada num monte de entulho”.
O segundo ano do reinado de Nabucodonosor (Dn 2.1) teria ocorrido
de Nissan (março/abril) 603 a Nissan 602 a.C.. Nessa época, Nabucodonosor
ainda enfrentava uma considerável oposição ao seu império, tanto interna
como externamente. De acordo com As crôn icas ba bilón icas , uma insurgência
na parte ocidental do império demandou uma ação militar de alta escala
durante aquele ano.
Alguns estudiosos observam uma possível incongruência entre as datas do
capítulo 1, as quais ocorreram no começo do reinado de Nabucodonosor, e as
do capítulo 2. Era de se esperar que mais tempo tivesse passado entre os eventos
registrados nesses capítulos. No capítulo 2, Daniel parece ser contado entre os
sábios da Babilônia, porém, de acordo com 1.5, seu período de treinamento foi
de três anos. Para complicar ainda mais a questão, em 2.25, Daniel é introduzi­
do ao rei como se este não o conhecesse.
Esforços para explicar a data do capítulo 1 têm tomado dois rumos. Uma
das soluções é entender o capítulo 2 como tendo ocorrido durante o período
de treinamento de Daniel. Os eventos do capítulo 2, então, seriam um flashback.
Eles teriam ocorrido antes de 1.18-20, que teria sido registrado mais cedo para
fornecer-nos uma visão geral da carreira de Daniel. Isso ajuda a explicar por que
Daniel não parece ser conhecido do rei em 2.25, mas não explica o seu status
entre os sábios estabelecidos no reino.
Outra proposta é tomarmos a história do capítulo 2 como tendo ocorrido
logo depois do final do período de treinamento. Isso é possível por causa da
prática judaica de contar inclusivamente e o método babilónico de computar
os reinados dos reis. Com base nisso, os três anos do treinamento de Daniel
podem ser encaixados dentro dos primeiros dois anos de Nabucodonosor. O
78
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

primeiro ano do treinamento de Daniel corresponderia ao ano de ascensão de


Nabucodonosor, de Elul (agosto/setembro) 605 a Nissan 604 a.C.. De acordo
com o sistema babilónico, o primeiro ano do reinado de Nabucodonosor não
começou até que o Ano Novo fosse celebrado no mês de Nissan em 604 a.C..
Portanto, o segundo ano do treinamento de Daniel teria ocorrido ao longo do
primeiro ano de Nabucodonosor, de Nissan 604 a Nissan 603 a.C.. O terceiro
ano de treinamento teria ocorrido durante o segundo ano de Nabucodonosor,
de Nissan 603 a Nissan 602 a.C.. Com isso, em algum momento durante o se­
gundo ano de Nabucodonosor, os três anos de treinamento dos exilados judeus
teriam chegado ao fim (1.18), e os eventos do capítulo 2 poderiam ocorrer.
Embora essa proposta permita uma leitura natural do texto, ela não é isen­
ta de dificuldades. O desconhecimento de Daniel por parte do rei continua
sem explicação. Se essa posição for adotada, então precisamos presumir que
o rei tinha uma memória curta ou que introduções formais eram obrigatórias
diante da realeza.
Outra forma de lidarmos com o texto é reconhecendo que a datação
está errada e que os eventos devem ter ocorrido pelo menos no quarto ano
de Nabucodonosor ou mais tarde. Em um manuscrito de Daniel em grego
antigo que subsiste até hoje (P apyrus 967), lê-se “décimo segundo” no lugar de
“segundo”, mas essa tradução, provavelmente, não é original. De acordo com
os estudiosos que defendem essa posição, a razão da falta de exatidão é que o
autor de Daniel estava mais preocupado com o impacto da história do que com
os detalhes históricos, ou que talvez ele não conhecesse muito bem os fatos
históricos.
Baseados nessa e em outras incongruências, muitos comentaristas acreditam
que ahistóriaéprimariamente fictícia. Eles observam diversas outras características
implausíveis no texto: (1) a ausência de Daniel e dos seus amigos na primeira cena
(v. 13); (2) a deferência do comandante para com Daniel (v. 14,15); (3) o acesso
que Daniel tinha ao rei, enquanto outros não tinham (v. 16); (4) os atos incríveis
de descobrir e interpretar o sonho de outra pessoa (v. 29-45); e (5) a promoção
extraordinária de Daniel no reino (v. 48). Essas características levam um grande
número de estudiosos a crer que esse capítulo é essencialmente ficção (veja, por
exemplo, Anderson, 1984, p. 9-26; Fewell, 1991, p. 23-37; Seow, 2003, p. 33-42).
Outros estudiosos preferem aceitar a historicidade da história e propõem formas
de reconciliar as incongruências (veja, por exemplo, Miller, 1994, p. 75-105;
Longman, 1999, p. 73-93; Duguid, 2008, p. 17-44). Independente da opinião
que se tenha sobre a historicidade do material, ambos os interpretadores podem
examinar o texto para descobrir sua mensagem teológica.
79
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

Essa história introduz mais profundamente o leitor ao mundo dos sábios


babilônios. Trata-se de um mundo de magos, encantadores, feiticeiros,
adivinhos e astrólogos (v. 2 e 27). Embora os estudiosos possuam muitas
informações disponíveis sobre a sabedoria no mundo antigo, os grupos
mencionados nessa história não são facilmente distinguidos um do outro.
Cada um deles pode ter operado a partir de um conjunto especializado de
conhecimentos e habilidades, porém nosso conhecimento atual permite
apenas que os estudiosos sugiram certas distinções.
Os magos (hartummím ) parecem ter sido especialistas egípcios na arte do
exorcismo. Esse é o mesmo termo usado para os magos egípcios na história de
José em Gênesis 41. Fontes assírias e babilónicas falam desses especialistas es­
trangeiros sendo empregados pelas cortes reais. As contrapartes mesopotâmias
locais aos magos egípcios podem ter sido os encantadores ('assãpim ). De acor­
do com textos extrabíblicos, suas habilidades incluíam lidar com diversas doen­
ças nos homens. Eles ofereciam encantamentos prescritos para remediar as en­
fermidades. Os feiticeiros (m ékassêpím ), talvez, significassem outro grupo de
conjuradores, embora o termo pudesse ser uma designação genérica que incluía
os primeiros dois termos. Sua especialidade, talvez, fosse criar feitiços, já que
seu nome poderia referir-se à confecção de encantamentos e porções feitas de
ervas. A única vez que tais pessoas são mencionadas no livro de Daniel é em 2.2.
Adivinho[s] (gãz êrin ), talvez, possam ser identificados como quiroman-
tes. Seu nome está relacionado à ideia de “cortar” e “determinar”, como em
determinar o futuro. O último grupo, os astrólogos (kasdím ), aparentemente
estudavam as estrelas para encontrar respostas para os dilemas da vida. Ao lon­
go dos capítulos 2—5, esse termo refere-se a uma classe de sábios que liderava
o grupo de conselheiros do rei. O termo, originalmente, designava um grupo
tribal responsável por fundar a dinastia babilónica sob Nabopolasar em 626
a.C.. Esse uso é encontrado em Daniel 5.30 e 9.1 e, possivelmente, em 1.4 e
3.8. Eventualmente, o termo passou a designar um grupo de sábios que exercia
funções sacerdotais. Podemos presumir que os kasdím dominavam o sacerdó­
cio babilónico, que, eventualmente, adotou o seu nome. Essa situação seria
similar à que ocorreu com os levitas em Israel e com os magos na Média.

O uso do termo kas d ím em Daniel


Alguns estudiosos sugerem que o uso do te rm o kasdím em Daniel
poderia fo rn ece r evidências para a datação do livro. O te rm o refere-se

80
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

aos babilônios duas vezes (5.30 e 9.1) e a uma classe de sábios sete ve ­
zes (2.2,4,5,10; 4.7; 5.7,11). O te rm o poderia ser traduzido de am bas as
form as duas vezes (1.4 e 3.8). O uso de kasdlm para d esignar um grupo
de sábios te m sido considerado por alguns com o indicativo de um a data
poste rio r para o livro, já que o uso técnico ta lvez tenha se desenvolvido
com o tem po. Um uso sim ila r do te rm o por H eródoto no quinto século a.C.,
contudo, m ina esse arg um en to (H erodotus, 1.181-183). No fim das con­
tas, a m aioria dos estudiosos concorda que a form a com o Daniel em prega
o te rm o kasdlm não pode ser usada para d a ta r o m aterial.

Os sábios da Babilônia e de Israel compartilhavam muito em comum,


mas também apresentavam importantes diferenças entre si. Ambos eram
considerados indivíduos que conheciam e preservavam a sabedoria coletiva
da sua cultura. Isso incluía tanto a modalidade didática como a especulativa
da literatura. Provérbios, charadas e uma forma conhecida como “instruções”
forneciam direção para uma vida em harmonia com a ordem do universo.
Histórias de sofredores inocentes e outras obras literárias refletem sobre os
grandes mistérios da vida.
Os sábios israelitas tentavam entender o mundo que Deus havia criado
e fornecer in sigh t sobre como viver de forma bem-sucedida nele. Os sábios
babilónicos, contudo, iam além disso. Eles funcionavam a partir de uma visão
de mundo diferente. Sua cosmovisão era repleta de espíritos malignos e deuses
caprichosos. Eles empregavam a sua sabedoria para interpretar mensagens
vindas da dimensão divina e para manipular forças espirituais para sua própria
vantagem. A primeira atividade é conhecida como adivinhação, e a segunda
como mágica ou feitiçaria. Quando os sábios babilónicos explicavam o
significado de um sonho ou um augúrio, eles também realizavam rituais para
afastar o mal pressagiado neles. Em contrapartida, Daniel é capaz de interpretar
sonhos, mas não se envolve com nenhuma das outras práticas dos babilônios.
O registro bíblico condena consistentemente todas as formas de feitiçaria
empregadas entre os vizinhos de Israel (Dt 18.9-13) e, em particular, aquela
que é encontrada na Babilônia (Is 47.9-15).
Dentro desse contexto, o intenso drama associado ao sonho de um rei não
pode ser exagerado. Os sonhos eram levados muito a sério em todo o mundo
antigo. Eles eram entendidos como os principais meios de comunicação divina
com os homens. Suas mensagens, muitas vezes, não eram positivas, por isso a
angústia de Nabucodonosor é compreensível. Inúmeros textos do antigo Egito
81
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e da Mesopotâmia fornecem uma abundância de informações a respeito do


entendimento antigo sobre essas questões. Os sonhos e as suas interpretações
eram cuidadosamente registrados junto aos eventos históricos que se seguiam
a eles. Estes eram sistematizados e estudados por pessoas especificamente trei­
nadas na arte da interpretação de sonhos. Presume-se que esses eram os tipos de
textos que Daniel e os seus amigos estudaram durante o seu treinamento (1.4).
No livro de Daniel, dois sonhos de Nabucodonosor são interpretados. O
outro encontra-se no capítulo 4. Ambos são perturbadores e não pressagiam
coisas boas para o rei. Em cada um dos casos, Daniel fornece a interpretação
depois que os outros sábios babilónicos fracassam em fazê-lo, e o Deus de
Daniel é reconhecido por Nabucodonosor como supremo entre os deuses. À
parte dessas similaridades, o relato desses sonhos e o seu conteúdo são bem
diferentes. A maior parte do capítulo 4 é narrada sob a forma de um testemunho
de Nabucodonosor na primeira pessoa, enquanto o capítulo 2 é uma narrativa
na terceira pessoa. O rei conta o seu sonho a Daniel no capítulo 4, mas, no
capítulo 2, Daniel precisa descobrir o sonho sozinho. No capítulo 4, o sonho
enfoca eventos pessoalmente relacionados a Nabucodonosor e à sua época.
No 2, o sonho visiona eventos que estão além do contexto contemporâneo de
Nabucodonosor, chegando à época dos seus sucessores.

Os sonhos nas Escrituras Sagradas


Os israelitas levavam os sonhos tão a sério quanto os outros povos
do m undo antigo. De acordo com o registro bíblico, eles acreditavam
que Deus podia escolher com unicar-se com eles por m eio de sonhos,
assim com o por outros meios. Além da lei de Moisés, dos profetas, do
Urim e até m esm o de algum as form as de adivinhação, acreditava-se
que Deus, às vezes, falava por interm é dio de sonhos (veja 1 Sm 28.6).
A Bíblia faz referência a dois tip os básicos de sonhos. No p rim eiro
tipo. Deus fala d iretam en te com a pessoa que está sonhando; no
segundo, uma história sim bólica é com unicada. Entre aqueles que
escutaram a voz de Deus em um sonho, encontram os Jacó (Gn 28.12-
15) e Salom ão (1 Rs 3.5-15). Às vezes, os profetas recebiam m ensagens
de Deus por m eio de sonhos (Jr 23.25-28). Os sonhos que consistiam
de histórias sim bólicas requeriam interpretação. Os dois m aiores
interpretad ores de sonhos na lite ra tu ra bíblica foram José e Daniel.
Nem todos os sonhos na Bíblia eram considerados uma com unicação
de Deus. Existem referências a sonhos ordinários que não tive ra m
significado algum religioso em p a rticu la r (SI 73.20; 126.1). Além disso.

82
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

certos te xto s a dve rte m quanto ao fa to de que algum as pessoas, talvez,


aleguem fa lsam en te te r escutado o Senhor por m eio de um sonho (Jr
29.8).

De todas as conexões canônicas a Daniel 2, a mensagem e as imagens de


Isaías são as mais contundentes (veja Seow, 2003, p. 35,36). O Deus por trás
da ação em Daniel 2 é aquele “que derruba o conhecimento dos sábios e o
transforma em loucura” (Is 44.25). Ele revela “coisas novas, coisas ocultas” (Is
48.6) aum reiperturbado. Como as potências mundiais que foram despedaçadas
no sonho de Nabucodonosor, os inimigos de Deus se tornarão como “a palha”
em uma eira. “O vento os levará, e uma ventania os espalhará” (Is 41.16). A
rocha esmagadora no sonho de Nabucodonosor cresce até tornar-se um
“monte” que domina a paisagem da terra (Is 2.2-4). No final, Nabucodonosor
fez o que Isaías previu que todos os reis pagãos fariam quando “[se inclinariam]
diante de você, com o rosto em terra” (Is 49.23). Essas e outras alusões a Isaías
levam o leitor informado a ler a história de Daniel 2 de uma forma particular.
Como Isaías, a história de Daniel é uma mensagem de esperança e instrução
para pessoas que vivem em um mundo dominado por poderes estrangeiros.
Deus está “fazendo uma coisa nova” por meio do seu servo Daniel. Ele está
sobrepujando as autoridades deste mundo e abrindo um caminho no deserto
dos exilados de Judá (Is 43.19).
Uma série de cenas de narração dramática compõe a história de Daniel 2.
Essas cenas são arranjadas em uma estrutura quiásmica. Dois diálogos extensos,
envolvendo o rei e os seus sábios, iniciam e concluem a história. Sua estrutura
e conteúdo servem para aumentar o contraste entre os sábios babilónicos na
primeira cena (v. 1-13) e Daniel na cena final (v. 26-49). Outra dupla de cenas
que se equivalem é a que contém conversas envolvendo Daniel, Arioque e o rei
(v. 14-16 e v. 24,25). Outra dupla de cenas emoldura a cena central da unidade,
onde Daniel e os seus amigos buscam e recebem a revelação de Deus a respeito
do sonho do rei (v. 17-23). Essa estrutura quiásmica foca a atenção do leitor na
seção central. As cenas atingem o seu clímax com um hino de ações de graças
exaltando o caráter de Deus (v. 20-23). Esse hino articula explicitamente a
ideia principal da história, o qual também é a mensagem essencial do sonho.
Portanto, as cenas da história desenrolam-se da seguinte forma:
A —Cena 1 (v. 1-13): o rei e os seus sábios
B - Cena 2 (v. 14-16): Daniel, Arioque e o rei
C - Cena 3 (v. 17-23): Daniel diante de Deus
83
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

B’ - Cena 4 (v. 24,25): Daniel, Arioque e o rei


A’ - Cena 5 (v. 26-49): o rei e os seus sábios

No texto

1. Cena 1: o rei e os seus sábios (2.1-13)


■ 1 A primeira frase da história estabelece o personagem principal
(Nabucodonosor), um contexto histórico (no segundo ano) e um problema
(sonhos) que precisa de uma solução (v. 1). O personagem principal, o grande
rei babilónico Nabucodonosor, é apresentado sem maiores introduções. Pelo
capítulo 1, o leitor sabe que ele era o rei que havia humilhado os judeus e que
dominava as suas vidas como cativos no seu domínio (1.1-5). Na história atual,
seu personagem é mais bem definido à medida que ele interage com outros
personagens.
O contexto da história é o início da carreira de Nabucodonosor, no
segundo ano de seu reinado. Como a maioria dos reis recém-empossados
no mundo antigo, ele enfrentava muita oposição naquela época e ainda estava
solidificando o seu domínio.
O texto não diz se o estado instável do império teve ou não alguma coisa
a ver com os sonhos perturbadores do rei. O que é claro é que os sonhos
chamaram a atenção do rei. Sua mente ficou tão perturbada que ele não
conseguia dormir (v. 1). O texto diz, literalmente, que o seu esp írito f o i
g o lp e a d o . O termo pungente g o lp e a d o ip a a m ) sugere a natureza alarmante dos
sonhos. Trata-se de uma palavra usada para falar de um martelo batendo em
uma bigorna ou em um sino. Os povos antigos prestavam muita atenção aos
seus sonhos, já que eles os viam como possíveis mensagens dos deuses. Muitas
vezes, a mensagem contida neles era agourenta, e, por isso, a preocupação de
ter os sonhos interpretados é compreensível. A ansiedade aumentava enquanto
a mensagem permanecia sem interpretação.
O texto fala no plural sobre os sonhos (v. 1) de Nabucodonosor, mas ape­
nas um sonho é o tema da história. O uso do plural nesse caso poderia indicar
que o sonho ocorreu mais de uma vez ou que o rei estava simplesmente em um
estado sonhador.
1 2 -3 A resposta de Nabucodonosor ao seu problema foi convocar o melhor
que a sabedoria da Babilônia tinha a oferecer. Ele manda chamar os magos, os
encantadores, os feiticeiros e os astrólogos à sua corte (v. 2). O significado
84
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

possível de cada um desses termos já foi discutido em Por trás do texto. Essa
lista inclui alguns dos diversos tipos de sábios disponíveis a ele.
No mundo antigo, os reis cercavam-se de inúmeros conselheiros cuja
função era fornecer opiniões sobre questões de estado. A lista aqui não
pretende ser exaustiva ou definitiva, mas representativa. Uma técnica literária
recorrente no livro de Daniel é listar uma sucessão de termos para obter um
efeito dramático. Nesse caso, a lista de sábios acentua a vastidão dos recursos
babilónicos. Nabucodonosor reúne os especialistas mais renomados da
Babilônia para enfrentar seu problema. Naquela época, ninguém no mundo
poderia comparar-se aos babilónicos nessas questões.
Todos os quatro grupos mencionados trabalhavam de maneira similar para
o rei. Seu papel principal era interpretar o significado das diversas comunicações
dos deuses e fornecer direção para lidar com as mensagens ameaçadoras. Sua
habilidade prática estava em prescrever rituais e encantamentos que pudessem
diminuir os efeitos ruins prognosticados pelos agouros ou sonhos.
O propósito do rei em reunir esses sábios foi que eles lhe dissessem o que
ele havia sonhado (v. 2). Isso dá uma ideia da singularidade do pedido do rei
e começa a estabelecer o drama dessa seção. O rei, literalmente, diz aos seus
conselheiros: Eu so n h ei u m so n h o e o m eu esp írito está p e r tu r b a d o e a n sioso
p a ra sa b er q u a lf o i o so n h o (v. 3). A ambiguidade do pedido do rei chama a
atenção. Ele pode significar que ele quer saber o que ele sonhou ou o que o
seu sonho significa. Na verdade, ele quer as duas coisas. O rei não está apenas
pedindo que o seu sonho seja interpretado. Ele quer que os sábios digam-lhe
qual foi o sonho.
■ 4 Os sábios presumem que ele queria saber apenas a interpretação, o que era
o procedimento habitual. Os sonhos eram relatados. Então, os interpretadores
pesquisavam em seu livros de sonhos, buscando paralelos e fornecendo inter­
pretações. Com isso, os astrólogos, falando em prol de todos os sábios, pedem
que o rei siga o protocolo apropriado: Conta o sonho (...) e nós o interpretaremos
(v. 4).
Os sábios começaram seu discurso mostrando honra apropriada, O rei,
vive para sempre! (v 4). Enquanto este discurso é um cumprimento respeitoso
típico para um monarca, também é irônico neste contexto. À medida que o
sonho será revelado, nem o rei nem o seu reino viverá para sempre, mas o Reino
de Deus.
BI 5 O rei deixa claro que está determinado a romper com os procedimentos
tradicionais. Ele decide que eles precisam contar-lhe o sonho e, então,
interpretá-lo (v. 5). Para acrescentar ainda mais peso à sua decisão, ele pronuncia
85
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

uma ameaça e uma promessa. Se os sábios não cumprirem o seu dever, eles
serão tratados como inimigos do rei. Eles serão cortados em pedaços, e suas
casas se tornarão montes de entulho (v. 5). Essas não eram ameaças vazias.
0 desmembramento e a destruição da casa de um indivíduo eram castigos
comumente aplicados pelos monarcas antigos. Ambos os castigos tinham
como objetivo desonrar o indivíduo assim como as suas famílias.
1 6 Por outro lado, se os sábios conseguissem atender ao pedido do rei, eles
receberiam presentes, recompensas e grandes honrarias (v. 6). Esses bene­
fícios, talvez, incluíssem roupas e joias finas (veja 5.16,17), assim como uma
promoção para o cargo de administradores (veja 2.48).
I 7 Os conselheiros pedem mais uma vez que o rei siga os procedimentos ha­
bituais. Eles usam quase as mesmas palavras que antes, mas colocam o objeto (o
sonho) antes do verbo em aramaico (v. 7). Isso enfatiza o seu argumento. Eles
precisam conhecer o sonho antes que possam interpretá-lo.
I 8-9 A resposta do rei é acusar seus conselheiros de traição e informar-lhes
que ele não arredará o pé da sua demanda. Ele suspeita que se trate de uma
conspiração. Eles estão tentando ganhar tempo, (...) esperando que a situa­
ção [mude] (v. 8,9). Talvez, nesse ínterim, sugere ele, eles tentem enganar[-lhe]
com mentiras, para apaziguá-lo (v. 9).
M 1 0 A última fala dos conselheiros fecha o diálogo com o rei e pontua o tema
da conversa. A exigência é impossível. Os conselheiros não têm a capacidade de
atender ao pedido porque não há homem capaz de tal coisa (v. 10). O pedido
não tem paralelos porque nenhum rei jamais chegou a pedir uma coisa des­
sas (v. 10). A pergunta não tem resposta porque é difícil demais (v. 11).
U 1 1 Quando os conselheiros terminam a sua fala, eles ironicamente sugerem
a resposta ao seu dilema e prenunciam a solução da história. Eles confessam
que ninguém pode revelar isso ao rei, senão os deuses (v. 11). Aqui está o
tema central do capítulo 2. A verdadeira sabedoria vem da dimensão divina.
Na concepção dos babilônios, contudo, os deuses não vivem entre os mortais
(v. 11). Ou seja, eles não compartilham de bom grado a sabedoria com os ho­
mens. Em total contraste, Daniel demonstrará nessa história que o seu Deus
revela a Sua sabedoria aos homens.
O ciclo de três falas entre o rei e os seus sábios nos versículos 3-11 enfatiza
a irracionalidade da exigência do rei. A técnica de três repetições serve efetiva­
mente para aumentar o drama do pedido impossível.
Ao longo dessa seção, alguma forma do verbo hãwah ocorre seis vezes.
Ele pode ser traduzido como dizer, mas transmite a ideia de “mostrar” ou de
“explicar”. Ele, muitas vezes, é acoplado a p esa r (“interpretação”), dando um
86
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

sentido de “revelar uma interpretação” (2.4,6a,6b,7,9). Juntamente com esses,


o verbo y ã d a o c o r r e duas vezes na forma causativa, significando “tornar conhe­
cido” (2.5,9). O termo nãgãd, “declarar” ou “revelar”, também ocorre uma vez
em 2.2. Essas palavras, muitas vezes, são associadas à recepção ou declaração
da revelação divina. A concentração desses termos nessa seção enfatiza que a
busca do rei é por entendimento divino.
1 1 2 A resposta do rei aos seus conselheiros indica quão seriamente ele estava
encarando a questão. Ele ordenou a execução de todos os sábios da Babilônia
(v. 12). Ao longo dessa cena, Nabucodonosor é caracterizado como um típico
tirano antigo. Ele é retratado como um homem perturbado (v. 1-3), teimoso (v.
5), egoisticamente magnânimo (v. 6), suspeitoso (v. 8,9), e desarrazoadamente
exigente (v. 10). Finalmente, ele torna-se irritado e furioso e ordena a morte
dos seus conselheiros (v. 12). Esse era o retrato de um monarca antigo. O
rei persa Dario, o Grande, por exemplo, demonstrava muitas dessas mesmas
qualidades. Ele promoveu o massacre dos seus sábios aproximadamente um
século depois quando descobriu que havia uma insurreição entre eles.
■ 13 A essa altura, Daniel e os seus amigos entram na história pela primeira
vez (v. 13).A razão da sua ausência no diálogo na corte dos versículos 3-11 não
é explicada. Como 1.20 identifica, esses homens como “dez vezes mais sábios
do que todos os magos e encantadores de todo o (...) reino”, é razoável presumir
que eles estariam presentes mais cedo. Alguns veem essa incongruência como
um recurso típico em obras de ficção, empregado para dramatizar a entrada de
um herói na história. Outros presumem que apenas os líderes mais experientes
dentre os sábios foram convocados mais cedo, e que Daniel ainda não estava
entre eles.
Em qualquer dos casos, a demora em introduzir os exilados judeus até
o final da cena inicial é uma excelente técnica usada pelo escritor. Ela leva a
tensão da história a um clímax. A sua aparição na narrativa realça o que está em
jogo, já que agora os leitores originais têm alguém com quem se identificar. A
ameaça de morte toma proporções pessoais.
A ausência de uma introdução para Daniel e para os seus amigos indica
que o autor está dependendo do conhecimento adquirido no capítulo 1 a res­
peito desses personagens e da sua importância na história. Esses cativos judeus,
a quem Deus resgatou no capítulo 1, estão mais uma vez em perigo. Sua situa­
ção agora é pior do que antes e nada disso é culpa sua. Eles estão marcados para
execução.
A primeira cena da história começa com o problema de um sonho
perturbador que precisa de uma solução. A tensão vai aumentando
87
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

gradativamente, já que nenhuma solução é encontrada. Em vez disso, o


problema torna-se um obstáculo intransponível. O rei é desarrazoado. Ele
sabota seu próprio pedido ao recusar-se a contar o seu sonho. Entre os homens,
não existe resposta alguma nem recurso disponível para resolver a questão. As
vidas de todo um segmento da população do reino estão sendo ameaçadas.
Finalmente, e o que é mais importante para os leitores originais, a sobrevivência
dos exilados judeus está em perigo.

2. Cena 2: Daniel, Arioque e o rei (2.14-16)


■ 14-15 A segunda cena da história é caracterizada por uma reviravolta na
ação. O herói apresenta-se para defender os valores da sua comunidade. Daniel
lida de forma sábia com as autoridades babilónicas e começa a procurar uma
solução para o problema. Embora a cena seja breve, ela é importante para o
fluxo e o impacto da história. O contraste entre Daniel e os outros sábios da
Babilônia começa a estruturar-se.
Os oficiais do rei obedecem ao decreto de Nabucodonosor ao prepararem-
-se para matar os sábios da Babilônia (v. 14). Isso significa que aqueles que
não estavam presentes na conversa original são reunidos para a execução. Um
homem chamado Arioque lidera o pelotão de execução (v. 14). Ironicamen­
te, seu papel na história eventualmente muda de executor para libertador. Seu
encontro com Daniel transforma-o. Por causa da sua associação com o herói, o
executor torna-se o libertador dos sábios da Babilônia.
Os dons de Daniel, aparentemente, incluem a diplomacia. Ele dirige-se a
Arioque com sabedoria e bom senso (v. 14). Ou seja, ele seleciona bem as suas
palavras e usa de tato ao apresentá-las. Embora ele possa ter dito outras coisas,
o texto registra apenas a pergunta: Por que (...) um decreto tão severo? (v.
15). O termo severo (hãsap ) sugere urgência ou pressa, até mesmo audácia, o
que certamente é uma descrição apropriada do decreto. Arioque não se ofende
com a pergunta de Daniel. Talvez, ele concorde com a avaliação que Daniel fez
do decreto, já que ele se preocupa em explicar o motivo a Daniel (v. 15).
■ 16 Dep ois disso, Daniel foi pedir ao rei que lhe desse um prazo para
prover uma resposta aceitável (v. 16). As palavras usadas no texto não reque­
rem uma aparição pessoal diante do rei. É pouco provável que ele pudesse fa­
zer isso. Havia um protocolo específico que impedia visitantes indesejados de
chegarem à presença do rei (veja Et 4.11). Provavelmente, um oficial da corte
apresentou o pedido em nome de Daniel, e o prazo foi concedido. Por que o rei
88
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

concedeu um prazo a Daniel, e não aos outros, não é explicado. O leitor pode
presumir um paralelo com Daniel 1.9, onde Deus interveio e fez com que as
autoridades fossem bondosas e tivessem simpatia pelo Seu povo.
Com esses versículos, as diferenças entre Daniel e os outros sábios da
Babilônia começam a aparecer. O sucesso de Daniel acentua o fracasso dos
sábios babilónicos. Os argumentos destes são fortemente rebatidos pelo rei
(v. 5,8,12), porém Daniel foi recebido graciosamente (v. 15). Os sábios da
Babilônia não obtiveram um prazo maior (v. 8), mas Daniel, sim (v. 16). Tudo
isso afirma que aquele que reconhece o Senhor em todos os seus caminhos terá
suas veredas endireitadas (Pv 3.6).

3. Cena 3: Daniel diante de Deus (2.17-23)


■ 17-18 A cena central da história retrata Daniel achegando-se a Deus e
encontrando uma solução para o problema. Essa cena constitui um clímax,
porque volta a atenção para a mensagem principal da história: a verdadeira
sabedoria é encontrada apenas no único Deus verdadeiro que reina sobre tudo.
O plano de ação de Daniel inclui ganhar o apoio dos seus companheiros
de cativeiro judeus. O texto introduz Hananias, Misael e Azarias pelo nome
a essa altura (Dn 2.17). Seus nomes hebraicos são usados porque Daniel lhes
pede que invoquem o Deus hebreu, o Deus dos céus ( elãh sém ayyã, v. 18). O
uso desse nome para designar o Deus de Israel é comum em livros pós-exílicos
da Bíblia, particularmente em Crônicas, Esdras e Neemias. As únicas quatro
ocorrências em Daniel, contudo, são aqui e nos versículos 20, 36 e 44. Os per­
sas também usavam esse termo para referir-se ao alto deus do zoroastrismo,
aúra-masda. O nome enfatiza a transcendência de Deus, o que concorda com
a avaliação dos sábios babilónicos de que as divindades “não vivem entre os
mortais” (2.11). Daniel, no entanto, provará que o seu Deus está conectado
aos homens. Ele revela mistérios a eles. O seu Deus é ao mesmo tempo trans­
cendente e imanente.
Daniel instrui seus companheiros de cativeiro hebreus a praticarem o tra­
dicional exercício espiritual hebreu da oração. Daniel pediu que eles rogassem
(b ê W) a Deus da mesma forma que ele rogou ao rei por um prazo maior (v.
18; veja 2.16). Sua petição era por misericórdia (rahãmín ), reconhecendo que
Deus deve decidir livremente demonstrar compaixão se eles quiserem que o
sonho seja revelado (v. 18). Eles não esperam que Deus responda automatica­
mente. Essa é a primeira vez em que o livro enfatiza a oração, mas não será a
89
DANIEL N O V O C O M E N T Á R IO B ÍB L IC O B E A C O N

última. Servos fiéis apresentam-se diante do seu Deus regularmente (veja 6.11
e 9.3 em particular).
O foco da oração era a revelação do mistério do sonho (v. 18). Ao longo
desse capítulo, o conteúdo do sonho e a sua interpretação são chamados de
mistério (rãz , v. 18,19,27,30,47). A palavra é usada mais três vezes para ex­
pressar que Deus é aquele “que revela os mistérios” {gãlerãzín , v. 28,29,47). O
termo rãz é uma palavra derivada do persa que se refere a coisas que são secretas
ou escondidas. A comunidade responsável pelos Pergaminhos do mar Morto
empregou-o como um termo técnico para designar coisas que são conhecidas
apenas por meio de uma revelação divina. Esse parece ser o seu sentido no con­
texto de Daniel.
H 1 9 O efeito das orações desses cativos judeus é que o mistério foi revelado
(v. 19). Deus foi fiel aos Seus servos. A revelação foi feita numa visão (v. 19).
Essa é a primeira das cinco visões de Daniel mencionadas no livro. As outras
quatro fornecem o conteúdo dos capítulos 7— 12. Somente essa visão e a do
capítulo 7 são mencionadas como tendo ocorrido de noite (v. 19).
H 20 A resposta de Daniel à revelação foi honrar a Deus. Ele louvou o Deus
dos céus por meio de um hino de ações de graças (v. 20-23). A estrutura do
hino alterna palavras de louvor e razões para o louvor. A progressão leva a um
tom mais pessoal. As primeiras palavras de louvor (v. 20) e razões para o louvor
estão na terceira pessoa (v. 21,22). Na segunda seção, Daniel passa a dirigir-se
a Deus diretamente na segunda pessoa. O trecho estabelece um paralelo com a
primeira seção ao começar com palavras de louvor (v. 23a) antes de prosseguir
com razões para o louvor (v. 23b). Não há convite algum ao louvor, o que é uma
característica típica desses hinos.
As palavras iniciais do hino estabelecem o seu tema. A verdadeira sabe­
doria e o poder vêm de Deus (v. 20). Esses são os atributos predominantes
demonstrados nesse capítulo. A sabedoria para revelar mistérios vem de Deus,
e o poder para controlar reinos está em Suas mãos. De acordo com a pers­
pectiva babilónica, a sabedora pode ser vista como a dimensão dos sábios e o
poder como procedendo dos reis. Daniel, no entanto, afirma que nenhum dos
dois atributos pertence a eles. Em vez disso, trata-se de dons derramados sobre
aqueles que os possuem. Esses dois elementos divinos também são vinculados
em outras partes das Escrituras (Jó 9.4; 12.13; 26.12; Is 11.2; Jr 10.12; 51.15;
1 Co 2.5; Ap 5.12; 7.12).
H 21-22 O poder de Deus é demonstrado por meio do Seu controle das
épocas, das estações e dos reis (Dn 2.21a). O sonho ilustra profundamente
essa verdade. Ele retrata a ascensão e a queda de reinos terrenos ao longo do
90
NOVO COMENTÁRIO b íb l ic o b e a c o n DANIEL

tempo na medida em que Deus destrona reis e os estabelece (v. 21a). A sa­
bedoria também está nas mãos de Deus. Ele pode disponibilizá-la como um
dom aos sábios e aos que sabem discernir (v. 21b). Ele revela aquilo que os
homens não podem descobrir por meio das suas próprias habilidades, coisas
profundas e ocultas (v. 22a). Nada se encontra fora do alcance de compre­
ensão de Deus, já que Ele conhece até o que jaz nas trevas (v. 22b). Como o
relato da criação testifica em Gênesis 1.3 e a visão da nova Jerusalém confirma
em Apocalipse 21.23, a luz tem a sua origem em Deus (Dn 2.22b).
H 23 Essas qualidades divinas encontraram uma aplicação pessoal para Daniel
na revelação do sonho e da sua interpretação. Portanto, o hino passa a usar a
primeira pessoa e identifica a divindade de Daniel como o Deus dos meus
antepassados (v. 23a). Essa é outra forma típica de falar de Deus durante
o período pós-exílico. Ela enfatiza as ligações históricas do adorador com
o passado de Israel. Como tal, ela é uma confissão de fé em tudo o que foi
revelado sobre o Deus de Israel ao longo da sua história. A sabedoria e o poder
que pertencem a Deus são compartilhados com Daniel como um dom (v. 23b).
Isso acontece quando Deus responde à oração e revela o sonho do rei (v. 23c).
Esse trecho poético enfatiza o tema central do capítulo. Deus é o dono de
toda a sabedoria e o poder e distribui-os como quer. Com esse pronunciamento,
a cenário está preparado para que o sonho seja revelado juntamente à sua
interpretação. Isso fornecerá uma ilustração concreta da verdade confessada
nesse hino.

4. Cena 4: Daniel, Arioque e o rei (2.24,25)


Antes que o sonho seja revelado, outra cena breve prepara o leitor para isso.
Essa cena serve para adiar a resolução final e, portanto, manter o suspense. Ela
traz um equilíbrio à cena 2 (v. 14-16), que inclui os mesmos três personagens:
Daniel, Arioque e o rei. Contudo, os papéis foram revertidos. Daniel procura
Arioque e ordena que ele o leve diante do rei. Na cena 2, o rei havia decretado
uma ordem, enviando Arioque à procura de Daniel. Isso é uma indicação sutil
de como Deus contraria os planos dos regentes terrenos.
H 24 O leitor é lembrado de que Arioque é aquele a quem o rei tinha desig­
nado para executar os sábios da Babilônia (v. 24). O versículo 14 já havia
deixado isso claro, portanto a inclusão aqui é digna de nota. A frase ajuda a
sustentar a intensidade da narrativa mantendo a questão da vida e da morte
diante do leitor. Isso é enfatizado novamente quando Daniel menciona a frase
não execute os sábios ao fazer seu pedido a Arioque.
91
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A essa altura, Daniel é quem está no controle. Ele emprega formas impera­
tivas quando ordena que Arioque não execute os sábios e o leve ao rei (v. 24).
Com um ar de certeza, ele anuncia que irá interpretar para ele o sonho que
teve (v. 24). Em aramaico, essas palavras estão arranjadas para produzir ênfase.
Ele diz literalmente: a in te rp r eta çã o a o r e i eu ir e i m ostra r.
1 2 5 Arioque segue as ordens de Daniel e o traz até o rei. Ele parece tomar
para si o crédito por ter descoberto a solução para o problema do rei e anuncia:
Encontrei um homem (...) que pode dizer ao rei o significado do sonho (v.
25) . Sua descrição de Daniel como um cativo estrangeiro pode parecer aviltan­
te. Entretanto, ela acentua as origens humildes de Daniel, além de ajudar os lei­
tores originais a identificarem-se mais de perto com a história. Eles entendem
o que significa estar entre os exilados de Judá (v. 25).

5. Cena 5: o rei e os seus sábios (2.26-49)


M 2 6 A última cena da história é a mais longa. O diálogo entre o rei e os sábios
judeus estabelece um paralelo com a primeira cena do diálogo do rei com os
sábios babilónicos (v. 1-13). Ambas as cenas começam com uma fala do rei (v. 3
e 26) e terminam com um pronunciamento real (v. 13 e 48). Essas semelhanças
chamam a atenção para os contrastes marcantes entre Daniel e os outros sábios
da Babilônia que emergem nessa seção.
Embora o problema da descoberta do sonho e da sua interpretação tenha
sido resolvido e os sábios tenham sido salvos da execução, a história ainda não
acabou. O conteúdo do sonho e o seu significado ainda precisam ser revelados.
A técnica de adiar o conhecimento do conteúdo do sonho aumenta o suspense.
O leitor está mais ansioso para ouvir o que Daniel tem a dizer.
A cena começa com outro adiamento quando enfoca a maneira como a
interpretação dos sonhos é obtida. O rei introduz o tópico quando pergunta:
“Você é capaz de contar-me o que vi no meu sonho e interpretá-lo ?” (v.
26) . A pergunta é direta e inocente. O assunto que ela aborda, no entanto, é
essencial na história. A questão é quem detém a chave da sabedoria e como é
possível obtê-la. A história é sobre uma busca por alguém que possa desvendar
o in sigh t sobre a vida descrito no sonho. Nabucodonosor está perguntando a
Daniel se ele possui essa sabedoria.
M 2 7 - 2 8 Daniel entende a pergunta e faz questão de que o rei saiba a verda­
de. A sabedoria humana é recebida. Nenhum sábio possui a sabedoria que o
rei espera encontrar (v. 27). Não importa se se trata de um encantador, mago
ou adivinho. Essa lista acentua a totalidade de toda a sabedoria humana de
92
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

modo similar ao versículo 2. Ela é representativa, e não exaustiva. Nenhum dos


especialistas dessa área de atuação pode explicar o sonho.
Ao fazer essa declaração, Daniel concorda com os seus colegas babilónicos,
que admitem que “não há homem na terra que possa fazer o que o rei está
pedindo” (v. 10). Ele também concorda que a verdadeira sabedoria só pode ser
encontrada na dimensão divina. “Ninguém pode revelar isso ao rei, senão os
deuses”, disseram os sábios babilônios, (v. 11). Porém, estes não acreditavam
que os deuses compartilhariam [essa sabedoria] porque “eles não vivem entre
os mortais” (v. 11). Em contrapartida, Daniel afirma que existe um Deus
nos céus que revela os mistérios (v. 28). Trata-se de um entendimento
fundamental. Deus detém a chave da sabedoria e concede-a a quem quer. Em
outras palavras, os babilônios acreditavam que os homens precisam descobrir
a sabedoria se quiserem obtê-la. Daniel declara, contudo, que a sabedoria é
revelada. Se Deus não falar, não há sabedoria. Deus é quem revela os mistérios
(v. 28, 29 e 47). Portanto, a única razão por que Daniel é capaz de revelar o
sonho e a interpretação é que Deus mostrou (...) o que acontecerá (v. 28). A
sabedoria é um dom concedido por Deus.
O conteúdo do sonho envolve o que acontecerá nos últimos dias (v. 28).
A expressão últimos dias ( b é ’ ahãrit yô m a yy ã ’) significa literalmente “nos dias
que se seguirão”. Ela refere-se a um tempo não especificado no futuro. Ela não
indica, necessariamente, eventos do fim do mundo, embora, algumas vezes,
esse possa ser o caso. Seu equivalente em hebraico, às vezes, fala de eventos
escatológicos ou do fim dos tempos (Is 2.2; Ez 38.16), mas refere-se com maior
frequência ao desenrolar de um futuro imediato (Gn 49.1; Nm 24.14; Dt 4.30;
31.29; Jr 23.20; 30.24; Os 3.5). O termo também é usado em contextos onde
o seu significado podería ser entendido de ambas as formas (Jr 48.47; 49.39).
0 outro uso da expressão em Daniel ocorre em 10.14, onde ela parece referir-
-se a eventos mais imediatos. No capítulo 2, uma expressão paralela, “o que vai
acontecer” ( ’ahãrê déna), aparece nos versículos 29 e 47. A expressão, literal­
mente, significa “depois disso”.
1 29-30 No versículo 29, Daniel começa a revelar o sonho. Entretanto, ele
protela isso mais uma vez para clarificar o que acabou de dizer sobre a origem
da sabedoria. Os versículos 29,30 são essencialmente paralelos aos versículos
27,28. Daniel confessa que não é responsável pela verdadeira sabedoria. Quan­
to a mim, diz ele, esse mistério não me foi revelado porque eu tenha mais
sabedoria (v. 30). Daniel não recebe in sigh t porque consulta certos livros, re­
aliza os rituais corretos ou recita os encantamentos apropriados como os seus
colegas babilónicos. A sua sabedoria é um dom da graça de Deus. O Senhor,
93
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que revela os mistérios (v. 29), fez isso para que tu, ó rei, saibas a interpre­
tação e entendas (v. 30).
M 31-35 O conteúdo do sonho é, finalmente, revelado nos versículos 31-35.
Ele envolve uma grande estátua e uma pedra. A pedra despedaçou a estátua e
tornou-se uma grande montanha. A estátua parece ser uma forma humana, já
que as diversas partes do corpo mencionadas incluem cabeça, peito, braço,
ventre, quadris, pernas e pés (v. 32,33). Ela era imponente de diversas ma­
neiras. Ela era enorme, impressionante, e sua aparência era terrível (v. 31).
Quatro metais de grande valor foram usados na estátua: ouro, prata,
bronze e ferro (v. 32,33). Esses foram arranjados da cabeça aos dedos do pé
em ordem decrescente quanto ao valor de mercado, mas crescente quanto à
utilidade. Embora o ouro seja o mais caro, ele também é o mais mole. O ferro
é o metal mais durável dos quatro e o mais útil na confecção de ferramentas e
armas. O ferro substituiu o bronze na história da humanidade como o metal
preferido em termos de funcionalidade em torno de 1200 a.C.. A ideia de re­
presentar quatro eras sucessivas com esses mesmos quatro metais ocorreu nas
obras do poeta grego Hesíodo no oitavo século a.C.. Um texto zoroastriano
de data incerta e o poeta romano Ovídio do primeiro século d. C. também
usaram esse esquema. Portanto, esse parece ser um formato familiar aos po­
vos antigos.
Na estátua, a força do ferro é comprometida pela mistura com o barro (v.
33). Isso se torna o ponto no qual uma pedra (...) atingiu a estátua e destruiu-
-a (v. 34). A estátua inteira despedaçou-se e virou pó. A símile como o pó da
debulha do trigo na eira durante o verão descreve vividamente a sua comple­
ta destruição (v. 35). A palha é a cobertura externa e não comestível dos grãos
que flutuam no vento durante o processo de debulha.
A pedra que derrubou a estátua soltou-se (“de uma montanha”, de acordo
com o v. 45) sem auxílio de mãos (v. 34). Isso sugere o envolvimento do ele­
mento divino, o qual a interpretação irá enfatizar mais claramente nos versícu­
los 44,45. Essa pedra tornou-se uma montanha e encheu a terra toda (v. 35).
H 36-38 Sem a confirmação de que esse tivesse realmente sido o sonho do rei,
Daniel prossegue com a sua interpretação no versículo 36. A essa altura, a falta
de resposta do rei é um indicador sutil de que o equilíbrio do poder foi transfe­
rido de Nabucodonosor para o homem de Deus. O rei que dominou a conversa
na cena inicial (v. 1-13) permanece quieto enquanto Daniel fala. Esse elemento
apoia o tema do sonho de que os poderes terrenos cedem lugar ao reino divino.
Os versículos 36-45 fornecem a interpretação do sonho. A interpretação
começa com a apresentação de uma avaliação apropriada de Nabucodonosor.
94
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Daniel identifica-o como rei de reis (v. 37), um título que Nabucodonosor
dava a si mesmo. O seu controle soberano e absoluto das nações é enfatizado
pelas palavras domínio, poder, força e glória (v. 37). Daniel reconhece que
o seu reino se estende sobre uma vasta região. As expressões a humanidade,
os animais selvagens e as aves do céu e o governante deles todos (v. 38)
aludem à história da criação em Gênesis 1 e sugerem um domínio mundial (v.
38). Era assim que Nabucodonosor via a si mesmo. Inscrições do seu reinado
identificam-no como rei do mundo inteiro.
Todo o esplendor de Nabucodonosor, contudo, é visto como um dom de Deus.
O Deus dos céus concedeu esse poder ao rei (v. 37). Ele colocou as coisas sob o
controle de Nabucodonosor e fez dele o governante que ele é (v. 38). Daniel confir­
ma aquilo em que Jeremias acreditava. Nabucodonosor é o servo de Deus que faz
apenas o que o Senhor permite que ele faça (Jr 25.9). Daniel também confirma uma
mensagem central do sonho: o Deus dos céus sempre domina sobre os reis terrenos.
Portanto, a cabeça de ouro da estátua representa Nabucodonosor em toda
a glória que Deus lhe concedeu (Dn 2.38). Ele é o mais espetacular dos mo­
narcas terrenos. A história confirma isso de muitas maneiras. Embora muitos
reis poderosos tenham vindo antes e depois de Nabucodonosor, ele certamente
está entre os mais impressionantes (veja Por trás do texto no cap. 4).
H 39-43 A interpretação continua identificando cada um dos metais como
representativos de reinos que se seguiriam ao de Nabucodonosor. Muito pouco
é dito a respeito do segundo e do terceiro reino, exceto que o segundo seria
inferior, e que o terceiro governará toda a terra (v. 39). O quarto reino é
descrito com detalhes (v. 40). Ele será como o ferro, que é o mais forte dos me­
tais. Como a força do ferro quando comparada à dos outros metais, esse reino
destruirá e quebrará todos os outros (v. 40). Porém, a força desse reino será
diminuída porque o ferro é misturado com o barro (v. 4l). Essa mistura de
ferro e barro representa um reino dividido, um reino que é em parte forte e
em parte frágil, um reino onde as pessoas não permanecerão unidas (v. 41-43).
H 44-45 O versículo 44 leva a interpretação a um clímax com uma explica­
ção sobre o significado da pedra. A pedra é o Reino de Deus. O Deus dos céus
estabelecerá um reino que é diferente de qualquer outro que veio antes dele.
Esse reino será indestrutível. Ele jamais será destruído e nunca será domina­
do por nenhum outro povo. Assim como a pedra destruiu a estátua no sonho,
o Reino de Deus destruirá todos os reinos humanos e os exterminará.
Deus estabelecerá o Seu reino na época desses reis (bêyôm êhôn d i m alkaayya,
v. 44). Essa expressão sugere que o Reino de Deus não surge depois que os reinos
terrenos têm o seu fim. Em vez disso, o reino divino emerge na época desses reinos
95
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

terrenos, domina-os e continua depois deles. Isso explica por que a descrição que
Daniel fez do sonho mencionou que todos os reinos foram destruídos “ao mes­
mo tempo” (v. 35). Daniel não está sugerindo que o Reino de Deus entrará neste
mundo em um momento específico, mas que ele continua a emergir dentro da
estrutura dos reinos humanos. Como em Isaías, o remanescente do povo de Deus
persevera e, eventualmente, subjuga os poderes terrenos (Is 37.30-32). O Reino
de Deus floresce a despeito das realidades aparentes.
Daniel afirma claramente que esse é o significado da visão da pedra (Dn
2.45). O Reino de Deus suplanta os reinos humanos. Ele permanece, enquanto
os reinos terrenos caem. Esses fatos são verdadeiros e fiéis (v. 45). Nem o rei
nem qualquer leitor dessa história precisa duvidar deles.
Os comentaristas, tradicionalmente, têm buscado identificar reinos
específicos conhecidos na história com os diversos metais da estátua. A pedra,
então, é correlacionada a uma personalidade ou a um grupo específico na
história. A necessidade disso, contudo, é questionável. Daniel já explicou o
significado da visão com bastante clareza (v. 45). A questão é que o Reino de
Deus emergirá em meio aos reinos terrenos e perdurará depois destes.
Não existe um consenso entre os interpretadores quanto à identificação das
circunstâncias históricas refletidas nos metais. Nada se encaixa perfeitamente a
todos os detalhes do texto (veja Excursus: opções históricas para os metais). Isso
é o suficiente para que exerçamos precaução ao usarmos essa abordagem do texto.

A interpretação da estátua no capítulo 2


Alguns interpretadores encontraram um significado para as diversas
partes do corpo da estátua. As duas pernas ou os dois braços, por exemplo,
são considerados como sugestivos de duas partes de um reino. Os dez
dedos do pé, baseados em uma associação com os dez chifres mencionados
no capítulo 7, têm sido identificados como dez reis que, possivelmente,
governarão o últim o reino (Miller, 1994, p. 97,98). O fato de que o capítulo 2
não se refere especificam ente ao número de braços, pernas ou dedos do pé
indica que é preciso usar de precaução quanto a essa questão. O interpretador
corre o risco de dizer mais do que o texto pretendia a essa altura.

Em todas as propostas, a questão da identificação literal de quatro


entidades históricas particulares parece importante. Os números, muitas vezes,
são simbólicos na Bíblia. O número quatro é usado na literatura bíblica para
96
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

sugerir totalidade. Por exemplo, a Bíblia fala dos quatro cantos da terra e das
quatro estações do ano. O uso simbólico do número quatro é exatamente o que
se poderia esperar no livro de Daniel. E bem possível que os quatro reinos desse
sonho indiquem a totalidade dos reinos humanos, independente de qual seja o
número exato deles. O quarto reino seria o último reino da humanidade, talvez
aquele sob o qual os leitores de qualquer era estejam vivendo. O resumo da
história do homem começa com o rei contemporâneo de Daniel. Faz sentido
sugerir que ele termina com o final da história do homem. O último reino deste
mundo, como os demais, chegará ao fim. Ao longo da ascensão e da queda de
todos os reinos humanos, o governo de Deus perdurará.
Os interpretadores, muitas vezes, apelam para o capítulo 7 para preencher
os detalhes do capítulo 2. Esses dois capítulos são paralelos, mas o seu conte­
údo não é necessariamente sinônimo. A visão no capítulo 7 lida com quatro
reinos, mas de uma forma muito diferente. Outras reflexões sobre as ligações
entre esses dois capítulos serão apresentadas no comentário sobre o capítulo 7.
Basta dizer que precisamos ter cuidado para não exagerarmos as conexões entre
esses dois capítulos. É verdade que eles se equilibram um ao outro na estrutura
quiásmica da seção em aramaico, mas isso não significa que todos os seus deta­
lhes sejam paralelos.
■ 46-47 Nos versículos 46-49, Nabucodonosor reage positivamente à inter­
pretação de Daniel. A indicação de que o seu próprio reino terminaria não pa­
rece perturbá-lo. Ele honra Daniel, o seu Deus e os seus amigos. Suas ações, na
verdade, demonstram a verdade contida no sonho de que os poderes terrenos
submetem-se diante do Reino de Deus.
Cair prostrado, prestar honra e apresentar uma oferta de cereal e incenso
são todos atos de adoração (v. 46). Como suas palavras indicam, essa adoração
não é dirigida a Daniel, mas sim ao seu Deus. O rei exalta o Deus de Daniel por
ter capacitado o jovem a revelar esse mistério (v. 47). Ele parece ter entendido
os argumentos de Daniel no início da sua fala nos versículos 27-30. Deus é a
única fonte de entendimento do sonho. Por isso, Nabucodonosor proclama
que o Deus de Daniel é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis e aquele que
revela os mistérios (v. 47). Em outras palavras, Ele é absolutamente soberano
sobre os negócios do mundo. Como Deus dos deuses, Ele é o mestre dos rei­
nos celestiais. Como Penhor dos reis, ele controla o destino das nações. Como
aquele que revela os mistérios, Ele conhece o funcionamento do universo.
■ 48-49 Por ser o representante de Deus, Daniel ganha recompensas de
Nabucodonosor. Ele recebe um alto cargo na administração do império
como governante de toda a província da Babilônia (v. 48). A província da
97
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Babilônia era a região central e mais importante do império. Ele também é


encarregado de todos os sábios da província (v. 48). Isso o tornou o principal
representante desse grupo de conselheiros reais. A pedido de Daniel, seus três
amigos judeus também receberam cargos como administradores no governo
(v. 49). Isso, aparentemente, deslocou-os para diferentes regiões da província
da Babilônia. Daniel, porém, permaneceu no núcleo central do reino, a corte
do rei, ou seja, dentro do imenso complexo palaciano (v. 49).

Excursus: opções históricas para os metais


D iversaste o riastêm sido prop o stasn um a ten ta tivad ee qu ipa ra rosq ua tro
m etais da estátua a reis ou reinados ao longo da história. Todas elas com eçam
com N abucodonosor,ouaB abilônia,jáqueaidentificaçãoéfeitanoversículo38.
Uma das teorias é de que os quatro m etais representam a Babilônia,
a Média, a Pérsia e a Grécia (H artm an e Di Lella, 1978, p. 147,148;
Collins, 1993, p. 166-169). Esses im périos g overnaram diversas porções
do O riente Médio d uran te os ú ltim os séculos a .C . Como a Média não
dom inou verd ad eiram en te a região sem elhante aos outros, isso poderia
e xplicar o fa to de o segundo reinado ser cham ado de in fe rio r (v. 39). O
te rce iro reinado seria a Pérsia, já que ele subjugou ta n to o Im pério Médio
com o o Babilónico. O qua rto im pério de fe rro seria o ram o Selêucida do
Im pério Grego. A m istura de barro e ferro, talvez, refira-se aos casam entos
m istos e ntre a realeza, os quais te nd iam a enfraq u ece r o reinado. Nesse
cenário, a pedra seria identificada com o Judas Macabeu ou com o um
grupo piedoso de judeus, com o os hasidim . Estes orquestraram uma
rebelião bem -sucedida contra os Selêucidas em 164 a.C. e estabeleceram
um estado jud eu independente. É claro que esse reinado não durou
para sem pre, e, por isso, a previsão do sonho te ria sido errônea.
Outra form a de id e n tifica r os m etais tem -se tornado especialm ente
popular entre m uitos grupos cristãos desde o te m p o da Igreja p rim itiva
até o presente. Eles veem os m etais com o representativos da Babilônia,
Pérsia, Grécia e Roma (Archer, 1985, p. 46-48). Estes foram , claram ente,
os qua tro im périos dom inantes que g overnaram sucessivam ente o
O riente Médio. Se Roma foi o ú ltim o im pério, então a pedra que a
esm aga é Jesus Cristo. Ele estabelece um reino que d u ra rá p ara
s e m p re d uran te o reinado do Im pério Romano (v. 44). Essa teoria
torna-se ainda m ais plausível quando correlacionam os as quatro bestas
do capítulo 7 aos qua tro m etais. A força de Roma pode ser fa cilm e n te
com parada ao ferro, e seus fracassos m orais podem ser vistos com o a
influência enfraquecedora do barro. Com suas extensivas conquistas sob
Alexandre, o Grande, a Grécia corresponde bem ao te rce iro reinado q u e

98
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

g o v e rn a rá to d a a te r r a (v. 39). A Pérsia, contudo, não se enquadra


ao ca rá te r do reinado de prata. Sua extensão, riqueza, duração e até
m esm o sua fib ra m oral não eram de form a algum a inferiores à Babilônia.
Uma va ria n te dessa teoria sugere que os quatro reinados
ta m b é m representam o ú ltim o reinado da te rra (M iller, 1994, p.
97,98). Como o Im pério Romano num certo sentido ainda existe
e o Reino de Cristo ainda não culm inou seu governo sobre a
terra, o cu m p rim e n to fin al dessa visão ta lvez esteja no futuro.
Outra abordagem para a interpretaçã o dos m etais é vê-los com o
representativos de reis, e não de im périos. O próprio N abucodonosor é
ide ntifica do com o a c ab eça d e o u ro (v. 38), e o te x to refere-se a esses
reis (v. 44). O te rm o re in o (m a lk ü ) pode ser trad uzid o com o "d om ín io"
ou "re in ad o" (v. 39). Portanto, uma sugestão seria e nte nd e r os m etais
com o N abucodonosor e os seus sucessores no Im pério Babilónico
(Davies, 1985, p. 48). Os três outros reis seriam Am el-M arduk [Am el-
M arduque, Evil-M erodaque, Evil-M arduque], N eriglissar e Nabonido. O
reinado de nove meses do filh o de N eriglissar, Labashi-M arduque, teria
sido negligenciado nesse esquem a, ta lve z por te r sido tão curto. O
re in o d iv id id o do qua rto rei refle tiria os anos da ausência de Nabonido
da Babilônia, d uran te os quais seu filh o Belsazar reinou em seu lugar
(v. 41). Nesse cenário, a pedra poderia ser Ciro ou os exilados judeus
que retornaram a Judá para reco nstru ir o te m p lo e a sua com unidade.
O co nte xto do sexto século a.C. do livro tende a apoiar essa teoria.
Outra opção para uma série de reis seria os qua tro reis m encionados
no livro de Daniel (Seow, 2003, p. 46; Goldingay, 1989, p. 49-51). Esses
são Nabucodonosor, Belsazar, Dario e Ciro. Embora os últim os dois talvez
sejam a m esm a pessoa, o livro de Daniel identifica separadam ente esses
dois nomes. De acordo com essa teoria, a pedra seria o rem anescente
dos exilados jud eu s que retornou a Judá ou um Reino de Deus mais
espiritualizado em ergindo no m eio do Im pério Persa.

A partir do texto
Como mostra a discussão anterior, os temas teológicos dominantes nesse
capítulo giram em torno da sabedoria e do poder de Deus enfatizados no v. 20.
Esses elementos estão nas mãos de um Deus todo-poderoso, o qual os dispensa
como quer. Nenhum especialista ou autoridade terrena pode alegar ter con­
trole sobre eles. No teste crucial de sabedoria, Deus e os Seus servos vencem
a mais impressionante coleção de conhecimento que os homens poderiam ter
reunido.
99
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

D eus possu i a ch a ve d a sa bedoria e com pa rtilh a -a com o quer. Sabedoria sig­


nifica discernimento sobre o funcionamento do universo. Trata-se de saber o
que está realmente acontecendo no mundo, entender o que as coisas signifi­
cam, como elas são ordenadas e as formas como uma pessoa pode viver em
harmonia com tudo isso. A história do capítulo 2 fala da busca de um rei pela
descoberta da sabedoria contida em seu sonho. No final, ele descobre que o
Deus de Daniel é aquele que revela os mistérios (v. 47). Esse Deus possui a
sabedoria que ele busca.
A história do capítulo 2 enfatiza que a verdadeira sabedoria pertence a
Deus, enquanto a sabedoria humana é limitada. Essa ênfase é destacada por
meio do contraste entre Daniel e seus colegas babilónicos. Os babilônios en­
tendiam tanto a natureza da sabedoria como os israelitas. Eles, no entanto, di­
feriam destes quanto à forma de obtê-la. Os babilônios precisavam conhecer
o sonho para que pudessem interpretar o seu significado. Foi por isso que eles
pressionaram o rei duas vezes, pedindo que ele contasse o sonho aos [seus]
servos (v. 4 e 7). Uma vez que eles ouvissem o sonho, eles poderiam examinar
seu livro de sonhos para encontrar um corolário. Baseados em paralelos com o
que já havia sido sonhado antes e o que acontecera depois, os sábios poderiam
determinar a interpretação. Sua sabedoria era descoberta por intermédio da
observação da vida.
A sabedoria de Daniel veio por meio de uma visão de Deus. Sua sabedo­
ria não foi descoberta. Ela foi derivada da Fonte de sabedoria. Esse é o ponto
central da história. A sabedoria babilónica era impessoal e desconectada de um
relacionamento com o divino. Eles acreditavam que os deuses não vivem entre
os mortais (v. 11). A sabedoria de Daniel, em contrapartida, dependia de um
relacionamento vital com Deus. Ele recebeu seu discernimento numa visão
depois ou talvez em meio a uma oração ao seu Deus (v. 19).
A sabedoria é dada àqueles que são sábios e sabem discernir (v. 21). De
acordo com a perspectiva bíblica, os sábios são pessoas que realizam sua busca
pela sabedoria no “temor do Senhor” (Pv 1.7). Em outras palavras, trata-se de
indivíduos que seguem a admoestação de “[confiar] no Senhor de todo o seu
coração e não se [apoiar] em seu próprio entendimento” (Pv 3.5,6). Os sábios
têm um relacionamento vital com a origem de toda a sabedoria, o próprio Deus.
O livro de Eclesiastes concorda com o livro de Daniel quanto aos limites
da sabedoria humana. “Tudo o que é feito debaixo do sol”, ou seja, na dimen­
são humana, é inútil, é “correr atrás do vento” (Ec 1.14). Somente por meio de
um relacionamento com Deus é que podemos descobrir a verdadeira sabedoria
para viver (Ec 12.13,14). Jó também descobriu essa verdade. Depois que ele
100
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

e os seus amigos exauriram sua capacidade mental tentando entender a vida,


Deus entrou em cena para perguntar: “Onde você estava quando lancei os ali­
cerces da terra?” (Jó 38.4). A implicação da fala de Deus é que os homens não
podem entender verdadeiramente a complexidade da vida. A sabedoria está
além do seu entendimento.
O apóstolo Paulo confirma a avaliação da sabedoria encontrada nas Escri­
turas hebraicas (1 Co 1.18-31). A sabedoria humana deixa a desejar na questão
mais importante da vida. Por meio dela, as pessoas não têm sido capazes de co­
nhecer o Senhor. Aliás, a sabedoria humana parece loucura quando comparada
à sabedoria de Deus. Em outras palavras, Paulo disse: “a loucura de Deus é mais
sábia que a sabedoria humana” (1 Co 1.25).
O restante da Bíblia também afirma a crença de Daniel de que Deus está
disposto a compartilhar a Sua sabedoria como aquele que revela os mistérios
(Dn 2.29). A história de Salomão declara que foi o Senhor quem deu ao rei
“um coração sábio e capaz de discernir” (1 Rs 3.12). Tiago expressa isso com
mais clareza em sua admoestação: “Se algum de vocês tem falta de sabedoria,
peça-a a Deus (...) e lhe será concedida” (Tg 1.5).

Dois tipos de sabedoria


Os estudiosos gostam de d iferen ciar entre a sabedoria tradicional,
que enfoca as habilidades necessárias para viver, e a sabedoria m ântica,
que enfoca o co nhecim ento m ais supersticioso, com o a interpretaçã o de
sonhos e augúrios. A história no capítulo 2 lida em p articu la r com a últim a.
Entretanto, ela não faz distinção algum a entre os dois tip os de sabedoria.
A proveniência divina da sabedoria não está restrita a uma dim ensão ou
a outra. O Senhor controla ambas. No fim , am bos os tip os de sabedoria
são sobre a m esm a coisa. Eles são sobre com o o m undo funciona e como
deveríam os v iv e r em relação a ele.

O
O p o d e r d o R eino d e D eus é m a io r d o q u e o dos rein ad os d este m u n d o.
sonho do rei retratou os reinados terrenos em toda a sua glória e força. Havia
reinos de ouro e de prata, com grande riqueza, assim como reinos de bronze e
de ferro, com grande força. A sua aparência atemorizava o coração dos homens
porque eles eram enormes e impressionantes (v. 31). Com todo o seu poder
e força aparentes, contudo, eles tinham pés de barro. Assim como todos os
reinos da terra, havia fraqueza dentro deles. Eles eram divididos e frágeis por
101
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

causa da mistura de pessoas que gerava uma desunião interna (v. 41-43). Eles
estavam todos destinados a cair. Não por sua própria vontade, mas pela vonta­
de divina. A sua destruição virá das mãos de Deus. O Seu reino, pedra que se
soltou de uma montanha, os esmagará (v. 45). Aquele reino se tornará o que
nenhum reino terreno pôde ser. Ele encherá a terra toda (v. 35) e jamais será
destruído (v. 44). Enquanto os reinados terrenos levantam-se e caem, o Reino
de Deus durará para sempre (v. 44).
Esse é o tipo de reino de que Jesus falou. Ele disse a Pilatos que o Seu Rei­
no não era deste mundo (Jo 18.36). Ele não era como nenhum reino terreno.
O Reino de Jesus era um domínio do coração. Como Ele declarou: “o Reino
de Deus está entre vocês” (Lc 17.21). Ele durará mais do que qualquer outro
reino, porque no fim “toda língua [confessará] que Jesus Cristo é o Senhor”
(Fp 2.11).
D eus con trola o fu tu r o da h istória d o h om em . O tema da soberania de Deus
sobre o futuro toma proporções maiores na segunda metade do livro e domina-
-a. Ele é introduzido em Daniel 2 em preparação para aqueles capítulos. Nessa
história, o Deus de Daniel é o que muda as épocas e as estações (v. 21). Os
elementos temporais da terra permanecem em Suas mãos.
O sonho do rei é sobre o que vai acontecer (v. 29; veja também v. 45).
Ele conta sobre a ascensão e a queda de reinos ao longo da história da huma­
nidade. Começando com o reino contemporâneo de Nabucodonosor, uma
série de reinados se sucede até chegar ao último. O Deus poderoso mostrou
ao rei essas coisas (v. 45). Aquele que supervisiona o desenvolvimento dos
reinos é aquele que o revela. Ele destrona reis e os estabelece como quer (v.
21). Portanto, ele é o Senhor dos reis que orquestra a história dos homens
(v. 47).
A presciência de Deus descrita nesse capítulo não sugere necessariamente
uma predeterminação rígida de eventos. Os detalhes da história são vagos o
suficiente para dar lugar a diversas curvas na estrada. A única figura história
específica mencionada no texto é Nabucodonosor. Depois disso, os reinos sub­
sequentes são bastante genéricos, como provaram os interpretadores ao longo
dos séculos, sugerindo uma variedade de reis ou impérios possíveis neste mundo.
O ponto essencial é que Deus permanece no controle da história. Ele não neces­
sariamente prescreve todos os seus detalhes, mas ele já determinou o resultado
final.

102
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

C. A fornalha em chamas: o segundo te s te de


fidelidade (3.1-30)

Panorama geral
Uma das histórias mais interessantes no livro de Daniel é a de Sadraque,
Mesaque e Abede-Nego e a fornalha em chamas. Trata-se de uma história mui­
to bem contada que contém elementos de humor, ironia e outros recursos li­
terários para aumentar o seu efeito. Como o capítulo 1, ela descreve uma cir­
cunstância perigosa para os fiéis que se torna uma oportunidade para que Deus
prove a Sua fidelidade. As sortes são revertidas: os acusados são aclamados e o
opressor se torna o protetor do povo de Deus.
Por trás do texto
A maneira mais natural de ler o capítulo 3 é como uma continuação do ca­
pítulo 2, e não como uma história isolada. Inicialmente, a ausência de uma data
específica para o reinado de Nabucodonosor sugere essa estratégia para a leitu­
ra. Além disso, o relacionamento entre os personagens e conceitos encontrados
em ambos os capítulos apoia a ligação entre eles. E importante notarmos que
o capítulo 3 cumpre a previsão do sonho no capítulo 2. O poder do Reino de
Deus prevalece sobre um reinado poderoso nesta terra como uma pedra esma­
gando uma estátua de metal.
O personagem principal no capítulo 3 é familiar ao leitor por causa das
histórias anteriores. O rei Nabucodonosor, os seus conselheiros e os cativos ju­
deus Sadraque, Mesaque e Abede-Nego aparecem novamente. Em cada ponto
do texto, a sua entrada implica que o escritor está dependendo da sua introdu­
ção em outras histórias para o entendimento do leitor. O status e o papel dos
três cativos judeus, em particular, baseia-se em 2.49, que relata a sua promoção
como oficiais na província da Babilónica.
Nabucodonosor é o único personagem individual inteiramente desenvol­
vido na história. Os conselheiros e os cativos são apresentados como grupos, e
por isso como tipos de pessoas. Os conselheiros babilônios representam pagãos
hostis que colocam em perigo a vida dos fiéis. Os cativos judeus representam os
servos fiéis de Deus num ambiente hostil. Nabucodonosor inicia a maior parte
da ação na história. Ele faz uma imagem, a erige, convoca os oficiais para a sua
dedicação, recebe um relatório sobre os cativos judeus, os interroga, ordena a
sua execução, observa o seu livramento, comanda a sua soltura, decreta honra
103
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

para o seu Deus e os promove em seu império. A dominância do personagem


de Nabucodonosor ao longo da história sinaliza que o conflito não é entre os
judeus e os babilônios, mas sim entre o rei e o Deus dos cativos.
Daniel está ausente nessa narrativa. Esse é o único capítulo no livro em
que ele não aparece. A associação entre os três heróis dessa história e Daniel,
contudo, é bem estabelecida nas duas histórias anteriores (1.6,11,19; 2.17,49).
Num certo sentido, Daniel está ligado a essa história por intermédio dos seus
três amigos.
De todo modo, a ausência de Daniel gera perguntas entre os comentaris­
tas. Por que o herói do livro não se posiciona junto aos seus amigos ? Alguns es­
tudiosos veem esse elemento, junto a outras qualidades da narrativa, como uma
pista que indica o caráter ficcional da história. Eles entendem a história como
um conto tradicional dos judeus, inventado para produzir inspiração e enco­
rajamento. Se esse for o caso, não é necessário explicar a ausência de Daniel
da história. Outros estudiosos presumem que a história narra eventos reais.
Como tal, eles propõem que a perseguição de apenas três judeus dentre todos
os exilados na Babilônia foi seletiva. A acusação nos versículos 8-12 indica que
um ciúme político pessoal, e talvez um preconceito étnico, motivaram alguns
astrólogos a denunciar alguns judeus. Certamente outros judeus, como Da­
niel, também desobedeceram ao edito do rei.
A trama da história no capítulo 3 lembra a dos capítulos 1 e 6. Tratam-se
de histórias que testam a fidelidade não apenas dos servos de Deus, mas tam­
bém do próprio Deus. Uma grande preocupação é saber se os cativos judeus
permanecerão fiéis às suas convicções em meio a um ambiente hostil. Ofuscan­
do essa preocupação está a tensão sobre a habilidade de Deus de resgatar Seus
servos fiéis. A questão do poder e da confiabilidade do Senhor em meio aos
poderes do mundo é o foco fundamental dessas três histórias.
O conteúdo do capítulo 3 apresenta um paralelo mais próximo ao do capí­
tulo 6. De diversas maneiras, o drama de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego na
fornalha em chamas é similar ao drama de Daniel na cova dos leões. Dentro da
estrutura quiásmica da seção aramaica do livro, esses dois capítulos equilibram
um ao outro (veja Por trás do texto no cap. 2). Ambos lidam com um decreto
de um rei que cria um dilema religioso para os fiéis judeus. Os oficiais do esta­
do informam o rei sobre a desobediência dos judeus, e uma sentença de morte
é emitida. Miraculosamente, o Senhor livra [os seus servos], e o rei honra os
acusados e o seu Deus.
A história do capítulo 3 também precisa ser lida à luz do sonho no capítu­
lo 2. A mensagem daquele sonho enfatiza a soberania absoluta de Deus sobre
104
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

a história das nações e da Babilônia em particular. No capítulo 3, a sede de


controle de Nabucodonosor estabelece um grande contraste com essa verdade.
Claramente, Nabucodonosor não compreendera a mensagem do sonho. De
muitas maneiras, a história do capítulo 3 ilustra como o sonho do capítulo 2
encontra o seu cumprimento dentro do contexto contemporâneo babilónico.
O Reino de Deus continua a dominar os reinos deste mundo e prevalece sobre
os seus desígnios.
O capítulo 3 também está diretamente ligado ao capítulo 2 pela imagem
colossal erigida pelo rei (v. l). Isso lembra o leitor da estátua no sonho do rei,
no capítulo 2. A cabeça de ouro da estátua do sonho representava o domínio
extensivo de Nabucodonosor. No capítulo 3, a imagem de ouro também sim­
boliza a grande riqueza e o poder do rei.
Os reis antigos costumavam erigir imagens de si mesmos, dos seus deuses
ou de outras figuras para comunicar sua autoridade sobre determinada área.
Em geral, as imagens de deuses e reis se encontravam nos templos. Outros ti­
pos de imagens eram erigidos em diversos locais, servindo como propaganda
para o estado e um lembrete do seu poder. Os reis assírios demandavam que os
principais oficiais de todo o seu império jurassem lealdade diante dessas ima­
gens. A dedicação da imagem no capítulo 3 parece ser um tipo semelhante de
cerimônia (v. 2). Tal evento pode ser a razão por que Zedequias, o rei de Judá,
e Seraías, o oficial chefe, foram chamados à Babilônia em torno de 594 a.C. (Jr
51.59).
A pompa que cercava tais cerimônias na antiga Babilônia é bastante co­
nhecida. Festivais religiosos anuais, celebrações de vitórias e outros tipos de
espetáculos foram preservados em documentos dessa era. Durante esses even­
tos, procissões, rituais e dramatizações eram acompanhados de toda espécie
de música (Dn 3.5). Os babilônios eram aficionados por esses eventos porque
eles forneciam um meio de promover o poder do estado e assegurar lealdade
contínua. A natureza desses eventos era sempre religiosa, o que legitimava ain­
da mais os planos do estado para a população.
Pessoas de todo o império eram obrigadas a comparecer a esses festivais
para demonstrar sua lealdade. Os administradores que foram chamados para
a dedicação da imagem representavam uma ampla escala de oficiais do reino.
Esses incluíam sátrapas, prefeitos, governadores, conselheiros, tesoureiros,
juízes, magistrados e todas as autoridades provinciais (v. 2). Essa lista inclui
uma mistura de termos persas e acadianos. Parece que eles estão listados de
acordo com a importância dos seus cargos, com os sátrapas administrando
grandes regiões e os magistrados sendo responsáveis por domínios menores.
105
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O número de oficiais sugere a complexidade e a sofisticação do sistema de go­


verno babilónico.
A história jamais descreve explicitamente as características da imagem, se ela
retratava um rei, um deus ou alguma outra coisa. A exigência prostrem-se em
terra e adorem sugere um deus, já que essas são ações religiosas (v. 5). O rei, con­
tudo, poderia requerer uma honra semelhante para si mesmo ou outra figura. O
termo adorem (sêgid) significa prostrar-se diante de outro, um ato de submissão
e honra. Foi isso que Nabucodonosor fez diante de Daniel em 2.46. Quer a ima­
gem fosse de um deus ou de alguma outra figura, prostrar-se diante dela simbo­
lizava a mesma coisa. Uma [demonstração] apropriada de respeito pela imagem
implicava lealdade à Babilônia, e fidelidade à Babilônia implicava submissão aos
seus deuses. A lealdade política e religiosa andavam juntas no mundo antigo.
O tamanho da imagem é excepcional, embora não esteja fora da realidade.
As dimensões de vinte e sete metros de altura e dois metros e setenta cen­
tímetros de largura (v. 1) são dadas em côvados no texto em aramaico como
“60” e “seis” (v. l). Isso reflete o sistema numérico dos babilônios, que era de
base 60. A característica incomum dessas dimensões é a largura reduzida para
uma estrutura tão alta. Isso sugere instabilidade. Tipicamente, a largura de uma
estátua teria em torno de 25% da sua altura para proporcionar uma base ade­
quada. Parte da altura provavelmente incluiria um pedestal, contudo, o que
poderia ocupar até metade da altura total. Portanto, a imagem em si seria mais
proporcional à sua largura. O historiador grego Heródoto descreve duas gran­
des estátuas de ouro em templos babilónicos no quinto século a.C.. Uma delas,
que representava Zeus, foi registrada como tendo 5,5m de altura. O famoso
colosso do deus grego Hélio, que guardava o porto de Rodes no terceiro século
a.C., media mais de 30,5m.
A fornalha usada para manufaturar essa estátua talvez tenha sido aquela
na qual os três judeus foram jogados. Fornalhas eram usadas para assar alimen­
tos, cerâmica e tijolos e para a metalurgia. Elas, muitas vezes, consistiam em
estruturas em forma de domo com aberturas no topo e dos lados. Elas em geral
não eram usadas como um meio de execução, embora ocasionalmente os textos
antigos se refiram a essa prática. Jeremias menciona dois profetas, Zedequias e
Acabe (Jr 29.21,22), que foram queimados por Nabucodonosor. Carvão, be­
tume, gravetos e estrume eram usados para criar e atiçar o fogo. Foles feitos da
pele de animais forçavam a entrada do ar na fornalha para aumentar a sua tem­
peratura. Embora eles não possuíssem aferidores, os artesãos antigos tinham a
habilidade de julgar o nível de calor. A temperatura máxima de uma fornalha
naquela época era de 980° C aproximadamente.
106
NOVO COMENTÁRIO b íb l ic o b e a c o n DANIEL

Uma importante informação para o contexto dessa história não é expli­


citamente mencionada no texto. Trata-se das injunções bíblicas proibindo
a veneração de outros deuses e a idolatria. A dinâmica dessa história não
faz sentido a menos que o leitor entenda essas exigências da fé bíblica. Os
dois primeiros dos Dez Mandamentos enfocam essa questão. Os três cativos
judeus são tentados a quebrar o primeiro mandamento, colocando “outros
deuses além” do seu Deus (Êx 20.3). O rei exigiu prioridade para a imagem
que ele havia erigido. A linguagem contida no segundo mandamento é mais
diretamente ecoada na história: “Não farás para ti nenhum ídolo (p esei)” e
“não te prostrarás (sã h â ) diante deles nem lhes prestarás culto ( a b a d )” (Êx
20.4,5). Embora os termos precisos difiram entre o mandamento e a história
de Daniel, eles concordam conceitualmente. Nabucodonosor quebrou a pri­
meira parte do mandamento quando ele fez uma imagem (sêlêm ) de ouro
(Dn 3.1). Então, ele requereu diretamente a quebra da segunda parte quan­
do ordenou que seus súditos se [prostrassem] em terra (n èp at) e adorassem
(.s êgid ) a imagem (v. 6). A questão da idolatria, tão prevalecente ao longo de
toda a história de Israel, atingiu uma crise durante o exílio. A tentação de
honrar os deuses dos captores de Judá era imensa. Afinal, eles haviam triunfa­
do de todas as maneiras: militar, política e economicamente. Na história de
Daniel, contudo, as palavras de Isaías encontram o seu cumprimento: “Todos
os que fazem imagens nada são (...) Todos os seus companheiros serão enver­
gonhados (...) Que todos eles se ajuntem e declarem sua posição; eles serão
lançados ao pavor e à vergonha” (Is 44.9-11).
A estrutura da história em Daniel 3 é similar àquela que observamos no
cap. 1. Vemos a descrição do contexto (v. 1-7) seguida do drama do teste (v.
8-23). A narrativa chega a um clímax quando o resultado do teste é revelado (v.
24-30). Essa é a estrutura típica dos três testes de fidelidade encontrados nos
capítulos 1, 3 e 6.
A estrutura quiásmica também permeia o material. A história começa (v.
1-7) e termina (v. 28-30) com um decreto do rei que promove a obediência a
uma divindade. A acusação e o interrogatório dos judeus (v. 8-15) são equili­
brados por uma ordem para a sua execução e o seu subsequente livramento (v.
19-27). O fulcro do quiasma é a confissão de fé dos cativos judeus (v. 16-18).
Essa estrutura enfatiza a importância da confissão, que representa o clímax te­
ológico da história.

107
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

No texto

1. O contexto (3.1-7)
1 1 A descrição do contexto dessa história enfoca o estabelecimento de um
ambiente social e religioso. O contexto é de um poder pretensioso e uma con­
formidade esmagadora. Diversos detalhes no texto tornam o esboço que o nar­
rador faz do contexto especialmente interessante para um público judaico.
O texto oferece poucas ligações históricas. A referência a Nabucodono-
sor localiza a história na era de poder mais dominante da Babilônia (v. 1). O
reinado de Nabucodonosor (605-562 a.C.) foi inigualado entre os monarcas
da Babilônia. (Veja Por trás do texto no cap. 4 para descrições adicionais das
suas realizações). Entretanto, nenhum ano em particular do seu reinado é iden­
tificado no texto em aramaico. As versões gregas dizem “no décimo oitavo ano”,
mas isso provavelmente não é original. A data conectaria esses eventos à queda
de Jerusalém em 587 a.C..
A descrição geográfica da história também é breve e inespecífica. A planí­
cie de Dura, na província da Babilônia não pode ser localizada com nenhuma
precisão (v. 1). Toda a província da Babilônia ficava numa planície. Dura
refere-se a uma “área murada” ou uma “fortificação”, e muitos lugares na anti­
guidade tinham essa designação. A melhor sugestão para esse lugar até hoje é
Tulul Dura, que fica cerca de 26km ao sul da Babilônia.
O contexto social e religioso da história é obviamente a maior preocu­
pação do narrador. No centro desse contexto está uma imagem de ouro (v.
1). Em essência, essa imagem simboliza o poder e a riqueza esmagadores da
Babilônia e do seu construtor, Nabucodonosor. Tanto em aramaico como em
hebraico, o termo imagem (sêlêm ) muitas vezes refere-se à representação física
de um deus, um ídolo. Outras vezes, ele é usado para falar da semelhança de ou­
tras coisas, incluindo a “imagem de Deus” que é refletida na humanidade (Gn
1.26,27). Quer a imagem representasse um deus ou outra coisa, ela é um objeto
sagrado que deve ser reverenciado nessa história. Ela é uma incorporação do
poder da Babilônia.
O tamanho e a substância da imagem servem para enfatizar a sua impor­
tância. Com vinte e sete metros de altura, ela se erguia sobre uma planície
aberta, para que pudesse ser vista à distância (Dn 3.1). Ela tinha quase um ter­
ço da altura do impressionante templo zigurate Etemananki, o qual pontuava
o horizonte da Babilônia. O ouro era o metal mais caro no mundo antigo.
A quantidade necessária para construir uma imagem desse tamanho, mesmo
108
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

presumindo que ela fosse folheada a ouro, seria estonteante. As conquistas ex­
tensivas e as subsequentes pilhagens de Nabucodonosor possibilitaram uma
estrutura tão espantosa.
Como construtor dessa imagem magnífica, o próprio Nabucodonosor se
apropria de grande significância. Foi ele quem fez ( abãd) e ergueu (q ü m ) o obje­
to de adoração (v. 1). O leitor é lembrado desse fato mais oito vezes no decorrer
da história (v. 2,3,5,7,12,14,15,18). A conclusão é clara: Nabucodonosor detém o
poder absoluto neste mundo. Para o leitor judeu, contudo, essas referências con­
têm uma ironia sutil. O termo aramaico fez ( abãd) também transmite a ideia
de serviço, como acontece no hebraico. A primeira linha do capítulo também
poderia ser lida da seguinte forma: “O rei Nabucodonosor serviu uma imagem
de ouro”. Aquele que acha que detém o poder por meio da sua criação talvez na
verdade seja subserviente daquela mesma criação. O termo ergueu também é um
breve lembrete da sátira que Isaías fez do artífice de imagens que “modela um
deus” com as suas ferramentas, iludindo a si mesmo (Is 44.12-20).
I 2-3 Um sentido de conformidade esmagadora aos caprichos de Nabuco­
donosor emerge na descrição do culto de dedicação da imagem. As cerimônias
envolvidas na dedicação da imagem serviam para promover o império e o seu
rei (Dn 3.2). Uma longa lista de autoridades provinciais, citada duas vezes,
acentua o vasto grupo de pessoas significativas que estão debaixo da autori­
dade e da aura de Nabucodonosor (v. 2,3). Desde os poderosos sátrapas, cuja
influência se estendia sobre vastas regiões do império, aos magistrados, que
governavam a nível local, todos eles vêm quando convocados pelo rei (v. 2).
Sua lealdade absoluta a Nabucodonosor é indicada pela sua resposta. Ironica­
mente, eles imitaram a imagem que o rei ergueu {qüm) quando ficaram em pé
{qüm) diante dela (v. 3).
I 4 A ênfase na submissão generalizada continua quando o rei decreta or­
dens sobre a imagem e a reação dos seus subordinados é descrita nos versículos
4-7. O arauto não apenas proclama o decreto, mas também o faz em voz alta
{hãyit), literalmente, co m g r a n d e f o r ç a (v. 4). Homens de todas as nações,
povos e línguas recebem o decreto e o obedecem, assim como os oficiais do
governo haviam feito no versículo anterior. Essa lista reflete o amplo alcance
das conquistas babilónicas, as quais incorporaram inúmeros grupos linguísti­
cos ao seu império. Novamente, o comprimento da lista e a sua repetição (v. 4
e 7) servem para destacar o seu significado. Todas as pessoas na face da terra se
conformam às ordens do rei. Ninguém foi isento.
1 5 A lista de instrumentos musicais enfatiza ainda mais a pompa que rodeava
esse evento. A lista inclui instrumentos de sopro (da trombeta, do pífaro (...)
109
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

da flauta dupla) e de corda (da cítara, da harpa, do saltério) comumente


usados em cerimônias públicas no mundo antigo (v. 5). A visão espetacular
da imagem e as grandes multidões são acompanhadas de sons espetaculares de
toda espécie de música. Essa descrição serve para impressionar ainda mais o
leitor com a grandeza intimidadora do evento.
A compilação de listas de itens semelhantes é um recurso estilístico usa­
do em todo o livro de Daniel. Essas listas eram características da tradição de
sabedoria no antigo Oriente Médio. O recurso é empregado ao máximo nesse
capítulo. Além de intensificar o efeito das coisas listadas, o recurso também
reduz a velocidade da leitura. Isso permite que o leitor tenha tempo de sentir o
impacto de tudo o que está sendo dito. Um efeito adicional dessas listas talvez
seja o humor sarcástico. Para o leitor judeu, uma lista de instrumentos musicais
em particular sugere os rituais irracionais envolvidos nos cultos vazios de ado­
ração pagã. Essa lista é repetida novamente nos versículos 10 e 15.
Quando a música toca, todos são obrigados a prostrar-se em terra e adorar
a imagem de ouro (v. 5). Essa injunção está no coração da história. A ordem
prostrem-se em terra e adorem aparece nada menos do que cinco outras vezes
depois desse versículo (v. 6,7,10,11,15). Além disso, a palavra adoram (sêgid í),
que significa prostrar-se em respeito a outro, ocorre cinco outras vezes no texto
(v. 12,14,15,18,28). Em quatro dessas ocorrências, a palavra é acompanhada
da expressão “prestam culto” {pêlah ), que significa submeter-se a uma divin­
dade (v. 12,14,18,28). Está claro que a questão aqui é religiosa. A ordem de
Nabucodonosor é que todos mostrem lealdade não apenas aos seus deuses, mas
também ao estado.
H 6 Todos aqueles que não se submeterem à imagem terão de enfrentar puni­
ções severas. Mais do que serem identificados como não conformistas ou re­
beldes contra culturais, eles serão identificados como traidores do império. A
traição acarreta a mesma punição em todas as sociedades: a morte. Portanto,
aqueles que forem contra a maré esmagadora e revelarem sua deslealdade serão
atirado [s] numa fornalha em chamas (v. 6). A expressão aramaica traduzida
como fornalha em chamas ( ’a ttü n n àra y ã q id ta ) é uma construção redun­
dante que serve para intensificar a imagem aterradora da fornalha. As palavras
significam literalmente u m a fo r n a lh a d e f o g o a rd en te. O terror de tal morte
aumenta o drama da história. Além do sofrimento excruciante envolvido em
ser queimado vivo, a morte pelo fogo significa a ausência de um sepultamento
honroso. Um dos maiores temores dos povos antigos se torna realidade, e o
corpo não é enterrado de forma apropriada. Portanto, o espírito jamais encon­
trará descanso, e sucessivas gerações deixarão de honrar o morto.
110
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

H 7 Todos no reino parecem seguir ao pé da letra o decreto de Nabucodo-


nosor. O versículo 7 confirma que eles ouviram o som (...) de toda espécie
de música, os homens de todas as nações, povos e línguas prostraram-
-se em terra e adoraram a imagem de ouro que o rei Nabucodonosor
mandara erguer (v. 7). A repetição laboriosa das frases anteriores debocha
da pompa da cerimônia. Ela também aumenta a impressão de submissão
generalizada.
O cenário está dramaticamente preparado para um teste de fidelidade. O
contexto é o de um poder pretencioso que demanda uma conformidade esma­
gadora. A sorte está inteiramente contra qualquer pessoa que ouse ir contra a
maré. Se alguém se aventurar a desafiar o decreto, isso certamente significará a
morte. Será que alguém se atreverá a se levantar em meio a um contexto como
esse e a desafiar os poderes da Babilônia? Será que algum dos servos do Senhor
ousará defender os valores da sua comunidade de fé ? Se eles ousarem, será que
Deus estará com eles ? Será que o Deus dos judeus pode se levantar à altura da
imagem que Nabucodonosor ergueu? Essas são as perguntas que o narrador
provoca com o seu esboço do contexto.

2. O teste (3.8-23)
1 8 - 1 2 Como o leitor já deve esperar, um teste da fidelidade do povo de Deus
emerge desse contexto opressivo. Uma acusação feita por colegas maliciosos
provoca o teste (v. 8-12). Uma audiência com o rei confirma as convicções do
povo de Deus (v. 13-18) e um plano para a sua execução é traçado e cumprido
(v. 19-23).
Como no capítulo 6, nessa história os judeus cativos não iniciam o con­
fronto. A sua piedade é observada e reportada por alguns astrólogos (v. 8). A
hostilidade envolvida no relato dessas pessoas é revelada pelo termo denun­
ciaram (v. 8). Em aramaico, a palavra significa literalmente “comer os seus pe­
daços”, o que sugere motivos maliciosos. O termo traduzido como astrólogos
{kasdaín) pode designar uma classe de sábios profissionais ou babilônios em
geral. O grupo anterior representava todos os sábios da Babilônia que se apre­
sentaram diante do rei em 2.4-11 e que teriam sido colegas dos três judeus
que foram traídos. A identificação dos acusados como judeus que nomeaste
para administrar a província da Babilônia sugere motivações políticas para
os acusadores (v. 12). Designá-los de judeus, talvez, também implique uma
questão de discriminação étnica. O conflito talvez tenha sido mais do que pro­
fissional. Ele também pode ter sido racial.
111
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Vale a pena notarmos que nem todos os k asdain estão envolvidos nesse
plano malevolente. Apenas alguns deles (v. 8). Além disso, nem todos os ju­
deus são acusados diretamente. Apenas alguns judeus são identificados em
particular (v. 12). Esses dois detalhes sugerem que a rivalidade é pessoal e res­
trita a certos indivíduos. Entretanto, os leitores mais antigos da história senti­
riam as implicações mais amplas de um ataque a todos aqueles que mantêm as
suas convicções numa cultura hostil.
Os informantes se aproximam respeitosamente do rei com a tradicional
saudação de honra Ó rei, vive para sempre! (v. 9). Eles lembraram o rei do
seu decreto quando praticamente repetiram o pronunciamento do arauto nos
versículos 5,6. Mais uma vez a lista de instrumentos musicais é repetida com a
ordem de que todos se prostrasse[m] em terra e adorasse [m] a imagem de
ouro e a ameaça da fornalha em chamas para aqueles que não se submetessem
(v. 10,11).
A alegação é de que três indivíduos específicos não (...) dão ouvidos ao
decreto do rei (v. 12). Eles ignoram o que o rei disse. Isso é evidenciado pela
sua recusa em prestarem culto aos deuses babilónicos ou adorarem a imagem
de ouro (v. 12). Prestar culto e adorar identificam a mesma atividade. Prestar
culto (pélah) significa, literalmente, envolver-se em rituais que honram a um
deus. Adorar (sègid ) conota cair prostrado diante de um deus e reconhecer a
sua autoridade. Portanto, a questão da imagem é mais bem esclarecida. Honrar
a imagem era uma profissão de fé. Portanto, não honrar também era uma forma
de comunicar crenças.
Essa é a primeira vez que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego são nome­
ados na história (v. 12). Sua posição é reconhecida como aqueles que o rei no­
meou para administrar a província da Babilônia (v. 12). Isso também os co­
necta à história anterior, especificamente 2.49, onde eles foram promovidos às
suas posições pela primeira vez. Embora eles tivessem nomes judeus (1.6), seus
nomes babilónicos são usados para enfatizar a sua habilidade de permanece­
rem fiéis apesar das influências hostis. Num momento anterior, a acomodação
à cultura babilónica não exigia uma renúncia total de todas as convicções. Os
três serão mencionados especificamente por nome mais 11 vezes nessa história
(v. 13,14,16,19,20,22,26a,26b,28,29,30). O fato de eles estarem sempre pre­
sentes como um grupo enfatiza a natureza corporativa da história. Eles repre­
sentam todos aqueles que escolhem permanecer firmes na sua fé.
O teor geral da acusação é pessoal. Os cativos judeus são retratados como
mais do que traidores do estado. Eles afrontaram pessoalmente o rei. Portanto, a
acusação começa com o enfático pronome da segunda pessoa ’a n tâ em aramaico,
112
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

tu emitiste um decreto (v. 10). Ela termina com quatro referências à segunda
pessoa no versículo 12. Os acusados são identificados como aqueles que [tu]
nomeaste para posições de autoridade e que, no entanto, não te dão ouvidos.
Eles não honram os teus deuses e ignoram o ídolo que [tu] mandaste erguer.
Os acusadores chegam ao ponto nevrálgico da questão: Nabucodonosor é a
realidade por trás da imagem. Honrar a imagem e os seus deuses é honrar o rei.
A adoração a ídolos é a adoração à força humana.
I 13-15 A acusação contra os judeus produziu o resultado desejado. O rei
ficou tão furioso quanto havia ficado com os seus sábios incompetentes no
capítulo 2 (v. 13). Representando bem o papel do monarca absoluto, Nabuco­
donosor exerce sua autoridade incontestável. Ele manda chamar os ofensores,
faz um interrogatório, dá um ultimato e termina com um deboche. Usando os
termos empregados na acusação do versículo 12, o rei pergunta se é verdade
que eles não prestam culto (...) nem adoram conforme o seu decreto (v. 14).
O tom pessoal da infração é mantido. O rei emprega a primeira pessoa e refere-
-se aos meus deuses e à imagem de ouro que mandei erguer (v. 14). Então,
ele oferece um ultimato que repete mais uma vez o pronunciamento do arauto
nos versículos 5,6: prostrar-se em terra e a adorar ou serão atirados numa
fornalha em chamas (v. 15). Os três judeus recebem uma oportunidade de
demonstrar a sua lealdade. Para intensificar o drama, o rei acrescenta a palavra
imediatamente às exigências do decreto (v. 15). Não há tempo para ponderar
a resposta ou mudar de opinião. A execução virá rapidamente se a escolha er­
rada for feita.
A fala do rei termina com um deboche que enfoca claramente a questão
mais importante da história. Uma vez que os três judeus estejam no fogo, ele
pergunta: E que deus poderá livrá-los das minhas mãos? (v. 15). Essa per­
gunta define o desafio crucial e sinaliza uma solução potencial: o conflito entre
as habilidades de Deus e dos humanos. Como o homem mais poderoso do
mundo, Nabucodonosor aparentemente controla o destino de todos os que
vivem sob o seu domínio. Ele detém até mesmo o poder da vida e da morte
sobre os três cativos judeus. A única esperança para eles é um deus que possa
livrá-los. Os eventos subsequentes provam que o Deus de Sadraque, Mesaque e
Abede-Nego é exatamente esse Deus.
■ 16-18 O deboche é uma pergunta retórica para o rei, mas para os três
heróis trata-se de uma pergunta direta implorando por uma resposta. A fala
de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego concentra a sua resposta no caráter
libertador de Deus. O tom da fala contrasta fortemente com o dos acusadores.
A abertura polida e a lealdade fingida não têm mais lugar. A repetição sem
113
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sentido de listas também já não tem lugar. Em vez disso, eles dão uma resposta
direta à fala do rei, seguindo um padrão similar de contingência dupla. Isso fica
muito mais claro no texto em aramaico. O rei literalmente diz: se vocês (...)
mas se não, e os judeus dizem sefor assim (...) mas se não.
Falando como um só homem, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego não sen­
tem a necessidade de se defender (tü b ) (v. 16). O termo significa literalmente
dar uma resposta ou dar o troco. Não há espaço para discussões. A decisão
deles havia sido tomada. Quer Deus escolhesse ou não livrá-los, eles não pres­
tariam culto aos teus deuses nem adorariam a imagem (v. 18). Os primeiros
dos Dez Mandamentos de Israel seriam obedecidos. Eles “não [teriam] outros
deuses” diante do seu Deus nem se prostrariam a um ídolo (Êx 20.3-5).
A razão da sua resposta decisiva é o caráter do seu Deus. De acordo com
os três judeus, o Deus a quem prestamos culto, literalmente o nosso Deus
( elã h a n ã ’, v. 17) não se compara aos teus deuses ( elãbãyik , v. 18). Numa res­
posta direta à pergunta do rei no versículo 15, eles afirmam que o seu Deus
pode livrá-los (v. 17). Ele tem o poder de dominar os negócios dos homens.
Aliás, eles afirmam confiantemente que ele nos livrará (v. 17). À luz do que
se segue, essa última frase poderia ter sido mais bem traduzida como Ele pode
escolher nos livrar. A próxima afirmação qualifica a sua fé: Mas, se ele não nos
livrar (v. 18). Isso deixa o resultado nas mãos de Deus. Eles não presumem
que possam decidir a própria sorte. É Deus quem fará isso. Portanto, a posição
deles é que Deus é poderoso para livrar, mas Ele é completamente livre para
escolher se irá ou não fazê-lo. Suas vidas estão nas mãos de um Deus soberano,
e não nas mãos de um rei (v. 17).
As palavras livrar-nos e livrará no versículo 17 são formas diferentes da
mesma raiz, sêzib. Trata-se de uma palavra-chave ao longo da história, ocor­
rendo também nos versículos 15 e 28. O sinônimo nèzal também ocorre no
versículo 29. Cada um desses termos transmite a ideia fundamental de ser salvo
ou resgatado do perigo.
O versículo 17 poderia ser traduzido de outra maneira. As primeiras
palavras em aramaico, h ên ita y, significam literalmente “se houver” ou “se
for assim”. Em geral, essas palavras têm sido interpretadas como se referindo
a Nabucodonosor atirando os cativos judeus na fornalha. Alguns tradutores,
contudo, acreditam que a contingência se refira a Deus. Portanto, o versículo
leria: “Se o nosso Deus a quem prestamos culto puder livrar-nos” (NRSV
e, semelhantemente, TNIV). De acordo com essa tradução, os três judeus
estariam questionando o poder de Deus para salvar. Alguns interpretadores
adotam essa visão, sugerindo que os judeus só estão fazendo a declaração para
114
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

levantar um argumento. Embora essa tradução seja possível, ela não é exigida
pela gramática. Muitos alegam que ela não se encaixa bem ao contexto. A
história parece ser sobre três crentes que confiam sem reservas na providência
de Deus.
A ambiguidade do texto é interessante. Talvez ela seja um recurso empre­
gado para aumentar o suspense da história. Uma forma de ler o texto insinua
que os judeus não apenas estão incertos quanto ao seu destino, como também
não têm certeza se Deus tem poder para livrá-los. Se isso for verdade, então o
seu livramento não depende de modo algum da sua fé, como se um dia tivesse
dependido. Por outro lado, ainda que o texto seja entendido como uma confir­
mação de fé, a tensão permanece. Os três acreditam no poder de Deus, mas não
estão certos se ele escolherá intervir. Em qualquer dos casos, o destino dos três
cativos judeus é deixado em aberto. Nem Sadraque, nem Mesaque nem Abede-
-Nego sabem se Deus irá livrá-los.
■ 19-23 A essa altura, a história toma um rumo inesperado e o drama é
intensificado quando a sentença de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego é rapi­
damente executada. Se o leitor esperava por um resgate, isso não aconteceu.
As ordens para a execução são cumpridas rapidamente. A posição justa e ad­
mirável dos fiéis de Deus não produz resultados positivos para eles. Aliás, ela
provoca uma fúria ainda maior.
Para permitir que o leitor tenha tempo de ponderar todo o impacto desse
evento, o narrador fornece detalhes adicionais. A ira do rei e o calor da forna­
lha crescem significativamente juntos. O rei ficou tão furioso (...) que o seu
semblante mudou (v. 19). Ironicamente, o termo usado aqui para semblante
é a mesma palavra traduzida como “imagem” (sêlêm ). Literalmente, a frase sig­
nifica a im a g em d o s eu ro sto m u d o u . A fornalha é aquecida sete vezes mais
que de costume, uma forma de dizer que ela foi levada à temperatura máxima
(v. 19). A intensidade do calor foi tão grande que as chamas mataram os exe­
cutores, que eram os soldados mais fortes no exército de Nabucodonosor (v.
20 e 22). A ironia é que o melhor da Babilônia perece por ordem do rei, mas
não o melhor de Deus.
O narrador observa três vezes que os três homens estavam amarrados
(,kèpat) quando foram jogados no fogo (v. 20,21,23). Isso enfatiza o sentido de
impotência, mas também evoca a imagem de um sacrifício similar ao de Isaque
(Gn 22.9). A referência às seus mantos, calções, turbantes e outras roupas
enfatiza a urgência com a qual a execução foi cumprida (Dn 3.21). Tanto o fato
de eles terem sido amarrados como a menção às suas roupas ajudam preparar
a cena do seu livramento miraculoso. Uma das primeiras observações de
115
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Nabucodonosor é que os homens estão desamarrados no fogo (v. 25). Depois


que eles emergem da fornalha, o fato de que os seus mantos não estavam
queimados também é notado (v. 27).
O narrador aponta para o fato de que os três caíram amarrados dentro
da fornalha em chamas (v. 23). A palavra caíram (nèpat) é a mesma traduzi­
da como “prostrar em terra” nos versículos anteriores. É uma ironia sutil que,
embora eles tivessem se recusado a se prostrar em terra diante da imagem, eles
devem se prostrar no fogo.
A essa altura no texto, as versões gregas de Daniel incluem as seleções apó­
crifas conhecidas como A Oração de Azarias e o Cântico dos três jovens. Esse
material se encaixa ao contexto, mas não há dúvida de que se trate de uma adição
posterior ao livro. Ele inclui uma oração por justiça e um louvor pelo livramento.

A Oração de Azarias e o Cântico dos três jovens


A Oração de Azarias e o C ântico dos três jovens foram adicio ­
nados ao livro de Daniel em algum m om ento do prim eiro ou segun­
do século a .C . A prim eira parte desse m ate ria l, O salm o de Azarias, é
um lam ento com 22 versículos de extensão, expressado por Azarias,
ta m b ém conhecido com o Abede-Nego. Ele exalta a Deus com o o ju s ­
to juiz, relem bra os Seus juízos sobre Israel e confessa os pecados do
povo. O apelo desse lam ento é para que o Senhor "os lib e rte " e para
que "fiq u e m envergonhados" aqueles que prejudicam os Seus servos.
A ú ltim a parte desse m aterial, o Cântico dos três jovens, estende-se
por m ais 46 versículos. Ele com eça com um a descrição da experiência
na fornalha e depois explica com o os babilônios continuaram atiçando
o fogo, mas o anjo do Senhor "to co u para fora da fornalha as labaredas
de fo go". Então se segue um longo hino de louvor. Quase todas as linhas
com eçam por "B endigam o Senhor", exortando os vários elem entos da
criação a "lo uva re m e exaltarem o Senhor para sem pre". Perto do fin al do
cântico, Hananias, Azarias e Misael são cham ados a louvar a Deus por que
Ele os livrou "da cham a da fornalha a rd en te ".

3 .0 resultado (3.24-30)
H 24 O julgamento dos três cativos judeus não terminou como os crentes tal­
vez esperassem. Sua firmeza não produziu resultados positivos. Em vez disso,
isso provocou a fúria do rei, desencadeando eventos designados para produzir
a morte. Suas convicções levaram à execução.
116
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Embora a narrativa pudesse terminar como uma história de martírio no


versículo 23, ela ainda não acabou. Os versículos 24,25 sinalizam uma revira­
volta dramática na história. O narrador permite que o suspense aumente, já
que um relato claro do que acontece é adiado pelas conversas entre o rei e os
seus conselheiros. O rei inicia a guinada dos acontecimentos quando se levanta
a la rm a d o e questiona os seus conselheiros (v. 24). A pergunta que ele faz é
curiosa: Não foram três os homens amarrados que nós atiramos no fogo ? A
resposta a essa pergunta deveria ser óbvia. Os três nomes foram repetidos três
vezes no relato da sua execução nos versículos 19-23. O fato de que eles esta­
vam amarrados também foi repetido três vezes naqueles versículos. Portanto,
os conselheiros confirmam a exatidão dos fatos.
1 2 5 0 testemunho ocular do rei revela a extraordinária virada que ocorreu
na história. Ele vê quatro homens desamarrados e ilesos, andando pelo fogo
(v. 25). Esses detalhes anunciam a reversão miraculosa que ocorreu. Aqueles
que estavam amarrados agora estão desamarrados, os que estavam prestes a
morrer estão ilesos, e os três se tornaram quatro.
O fato mais incrível para Nabucodonosor é o quarto homem. Ele identifica
esse homem como alguém que se parece com um filho dos deuses (v. 25).
Essa frase poderia ser, e já foi, traduzida como o “Filho de Deus” (ACRF). Se
traduzida dessa forma, a frase talvez indique uma aparição de Cristo antes da
Sua encarnação. Mas isso provavelmente é presumir demais. A palavra parece
{dãm êh) sugere que o rei disse algo que para ele estava associado à divindade.
Mais tarde, no versículo 28, ele identifica o ser como um “anjo” ou mensageiro
de Deus.
Um ponto significativo nas observações do rei é que isso tudo acontece
com eles andando pelo fogo (v. 25). Sadraque, Mesaque e Abede-Nego não
foram libertos do fogo. Eles foram libertos no meio do fogo.
■ 26-27 A confirmação final do livramento miraculoso é adiada ainda mais
pela ordem de Nabucodonosor para que eles saiam da fornalha (v. 26). O rei,
que convocou pessoas e foi obedecido ao longo da história (v. 2,3,13), intima
alguém e é obedecido mais uma vez. Porém, dessa vez, a ordem é contrária às
suas intenções originais. O monarca absoluto ordena algo que ele não plane­
jou. Isso é uma indicação de que ele já não está no controle dos eventos. A sua
referência ao Deus Altíssimo sinaliza quem está no controle (v. 26). Esse título
é usado diversas vezes em Daniel para se referir ao Deus dos judeus (3.26; 4.2;
5.18,21; também “o Altíssimo”, 4.17,24,25,32,34; 7.18,22,25,27). Ele identifi­
ca o Senhor como supremo entre os deuses, mas não necessariamente confessa
o monoteísmo. O seu uso nesse contexto acentua a mudança de poder que
117
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ocorreu. O Deus acima de todos os deuses também está acima de Nabucodo-


nosor.
Seguindo a ordem do rei, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego saíram do
fogo (v. 26). A declaração finalmente confirma o seu livramento. Para acres­
centar mais um testemunho do seu livramento, os oficiais de Nabucodonosor
se ajuntaram em torno deles e testificaram o fato (v. 27). A lista de oficiais
não é tão extensiva quanto a do versículo 2, mas serve o mesmo propósito de
representar todos os administradores de Nabucodonosor. Eles observam que
o fogo não tinha ferido o corpo deles (v. 27). Não tinha ferido {lã sêlê t )
significa literalmente n ã o te v e p o d e r o u soberania, sob re. Isso serve para en­
fatizar ainda mais a mudança de poder que ocorreu. O poder ameaçador do
estado, o fogo na fornalha, foi frustrado. Aqueles que vieram testemunhar o
poder incorporado na imagem agora veem o poder de Deus demonstrado em
Seus servos. Além do corpo deles, os oficiais notam que as suas cabeças e seus
mantos haviam permanecido intocados. A cada observação, o milagre se torna
mais extraordinário. Finalmente, os oficiais testemunham que não havia sequer
cheiro de fogo neles (v. 27).
H 28-30 A reação de Nabucodonosor ao milagre é oferecer louvor (v. 28),
pronunciar um decreto (v. 29) e promover os três judeus (v. 30). Ele louva o
Deus que se revelou nas ações obedientes de Sadraque, Mesaque e Abede-
-Nego (v. 28). Dois atos de Deus ganham a admiração de Nabucodonosor. Ele
enviou o seu anjo e livrou os seus servos (v. 28). Num breve sumário, esses
elementos demonstraram o poder de Deus ao rei.
Nabucodonosor também elogia os três homens. Eles demonstraram as quali­
dades ideais de servos fiéis: confiança, desafio e sacrifício. Eles (1) confiaram em
Deus, (2) desafiaram ordens humanas e (3) [preferiram] abrir mão de sua vida
a transigir suas convicções (v. 29). Nabucodonosor havia desejado ver tal lealdade
direcionada a si mesmo. As cerimônias cercando a dedicação da sua imagem ha­
viam sido planejadas para conseguir isso. Agora ele vê [essa mesma lealdade] entre
aqueles que se recusaram a demonstrar submissão por meio da imagem.
O rei, que começara a história emitindo um decreto, a termina com outro
(v. 29). Ele é direcionado a todo homem de qualquer povo, nação e língua
(v. 29), assim como o decreto do versículo 4 foi direcionado aos “homens de
todas as nações, povos e línguas”. Ele também inclui uma ameaça como a an­
terior. Entretanto, a punição para a desobediência desse decreto não é uma
fornalha em chamas. Em vez disso, ela envolve ser despedaçado e ter sua casa
(...) transformada em montes de entulho. Essa é a mesma sentença dada aos
sábios incompetentes de 2.5.
118
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Os paralelos entre os decretos do início e do final do capítulo acentuam as


suas diferenças. O primeiro requeria que o povo honrasse a imagem, enquanto
o segundo demandava respeito pelo Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-
-Nego. Ninguém poderia dizer alguma coisa contra esse Deus (v. 29). Essa
declaração fornece proteção à adoração a Deus, mas não demanda submissão.
Outra diferença é o motivo do decreto. Nenhum motivo é dado no primeiro
decreto. O segundo, contudo, aponta que a razão desse edito é que nenhum
outro deus é capaz de livrar alguém dessa maneira (v. 29). Trata-se de um
reconhecimento da singularidade do Deus de Israel e uma alusão ao primeiro
mandamento. Ele também afirma mais uma vez o poder de Deus para livrar
(n èz a l ). Essa tem sido a principal questão do capítulo. Nabucodonosor a havia
levantado no versículo 1 5 .0 Deus sobre o qual ele perguntou naquele contex­
to revelou a si mesmo por meio de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego.
A última ação de Nabucodonosor é recompensar os três judeus. O termo
promoveu (zêlah ) significa “prosperar” (v. 30). Portanto, a natureza precisa da
promoção poderia ter incluído tanto presentes monetários como maior influ­
ência. A ironia final da história é notada aqui. Aqueles que foram jogados ago­
ra estão sendo levantados. No fim, a firme convicção resultou numa bênção.
A partir do texto
As questões levantadas no capítulo 3 indicam claramente tratar-se de mais
do que uma história de criança. Embora a história possa ser lida superficial­
mente com grande interesse e benefício, ela evoca ideias teológicas profundas.
Entre elas estão o poder dos ídolos, a libertação dentro do fogo, o testemunho
por meio das provações e a ética da convicção.
O p o d e r dos íd olos é u m a fo r ç a fo r m id á v e l q u e os fié is p recisa m en fren tar.
Os homens tendem a ser criadores de ídolos. O contexto do capítulo 3 é um
mundo onde as pessoas buscam substitutos para a realidade de Deus. Eles cons­
troem uma imagem planejada para promover o seu próprio senso exagerado
de importância e para produzir uma ilusão de controle sobre a vida. Quer a
imagem na história tenha tomado a forma de um deus ou de alguma outra enti­
dade, ela é um ídolo, uma figura que incorpora um poder que não é o de Deus.
A história de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego revela que honrar a ima­
gem de Nabucodonosor, na verdade, significava adorar ao rei. O texto lembra
o leitor nove vezes de que foi ele quem mandou erguer a imagem. Nabucodo­
nosor era o poder real por trás da imagem. A recusa em honrar o ídolo sinali­
zava deslealdade ao rei. A acusação contra os judeus foi de que eles não te dão
119
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ouvidos, ó rei. Não prestam culto aos teus deuses nem adoram a imagem
de ouro que mandaste erguer (3.12). Como acontece com todos os ídolos, no
fim das contas eles consistem num humanismo concretizado. Eles glorificam a
criação humana e as suas realizações no lugar de Deus.
Na medida em que a história se desenrola, fica claro que a imagem é um
meio para chegar a outro fim. Trata-se de um meio pelo qual Nabucodono-
sor tenta ganhar certa medida de controle sobre o seu mundo. Muitos comen­
taristas sugerem que o sonho perturbador no capítulo 2 possa ter provocado
Nabucodonosor a fazer a imagem de ouro no capítulo 3. Talvez ela fosse uma
representação da cabeça de ouro da estátua no sonho, a qual Daniel afirmara
simbolizar o reinado de Nabucodonosor (2.38). O sonho sugere que esse rei­
nado terminaria como todos os outros. Por isso, a imagem do capítulo 3 talvez
seja uma forma de Nabucodonosor de tentar ganhar controle sobre aquilo que
está fora das suas mãos. Na verdade, essa é a função prática por trás de toda a
idolatria. Os ídolos são uma tentativa de controlar a vida longe de Deus.
Os ídolos funcionam melhor quando podem produzir uma ilusão de
poder. Para manter essa ilusão, medidas radicais precisam ser tomadas. Na
história, decretos reais inflexíveis cheios de ameaças de morte são necessários
para assegurar o reconhecimento do ídolo. Cerimônias pomposas com música
pretensiosa e um grande ajuntamento de importantes oficiais também precisam
ser produzidas. Tudo isso foi calculado para impressionar a população e força-
los à submissão.
O poder ostentador dos ídolos, contudo, não precisa amedrontar o crente.
Conforme revela a história, três seguidores fiéis de Deus ficaram firmes contra
o seu poder e venceram. Eles foram resgatados, justificados, louvados e promo­
vidos.
O poder dos ídolos é uma característica familiar a todas as culturas e gera­
ções. Como Nabucodonosor, as pessoas estão procurando formas de controlar
a vida e acentuar sua própria significância longe de Deus. A Bíblia inteira ad­
verte severamente contra isso. Além do segundo mandamento, inúmeros ou­
tros textos proíbem a criação e a adoração de ídolos (Êx 20.3-5; 1 Rs 14.9; At
15.20; 1 Jo 5.21). Está claro que Deus já estabeleceu a Sua própria imagem na
terra na coroa da Sua criação (Gn 1.26,27). Nenhuma representação de Deus
é capaz de capturar adequadamente a sua magnificência. Todas as imagens do
divino estão aquém da realidade. Do ponto de vista dos escritores bíblicos, a
idolatria é absurda (Is 44.9-20; 46.1-7; Rm 1.22,23). Ela é a pior forma de en­
gano que existe, já que ela acaba bloqueando um relacionamento real com o
Deus do universo.
120
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

D eus livra no m eio d o fo g o assim com o livra d ele. O drama de Daniel 3 so­
fre uma reviravolta contrária que os leitores talvez não estejam inteiramente
preparados para absorver. As três fiéis testemunhas de Deus são jogadas numa
fornalha de fogo ardente, impotentes e sem esperança. Elas são amarradas pelos
soldados mais fortes da Babilônia e atiradas num inferno aquecido à máxima
temperatura. Carne queimada, gritos de angústia e dores excruciantes são as
imagens que passam pela cabeça do leitor na medida em que a execução [dos
três jovens] é meticulosamente retratada.
Deus não salvou os Seus servos do furor das chamas. Contudo, Ele vem
até eles no meio da fornalha. Miraculosamente, as palavras de Isaías se tornam
uma realidade literal: “Quando você andar através do fogo, não se queimará; as
chamas não o deixarão em brasas” (Is 43.2). Deus escolhe entrar no fogo com
os três homens judeus sob a forma de um anjo (Dn 3.28). Nabucodonosor
disse que Ele se parecia com um filho dos deuses (v. 25). Uma adição apócrifa
a Daniel tenta imaginar como isso deve ter sido. O texto fala que o anjo “tocou
para fora da fornalha as labaredas de fogo e formou no meio da fornalha um
vento úmido refrescante” (Cant. Jov. 26,27).
A ironia do fogo é que ele é um elemento associado ao Deus de Israel com
tanta frequência. Do meio do fogo, o Senhor falou a Moisés (Ex 3.2) e a Israel
(Dt 4.12). O fogo indica a presença de Deus no monte Sinai (Ex 19.18) e até
mesmo descreve a Sua natureza (Dt 4.24). O Senhor exerce absoluta autori­
dade sobre o fogo empregando-o para o juízo (Gn 19.23) e para demonstrar
o Seu poder entre os pagãos (1 Rs 18.38). Até mesmo a aparição de Deus é
descrita em termos de fogo (Ez 1.27).
Uma metáfora popular para o maior ato de libertação de Deus, o êxodo
do Egito, é que Ele tirou o povo “da fornalha de fundir ferro” (Dt 4.20; 1 Rs
8.51; Jr 11.4). O exílio também é descrito como uma experiência de fogo. Ele é
chamado de “fornalha da aflição”, onde Deus refina o Seu povo (Is 48.10). Tal­
vez, o leitor não devesse ficar surpreso porque o livramento ocorreu no meio
do fogo.
A promessa de Deus para o fiel é “Eu estarei com você” (Ex 3.12; Sl 23.4,5;
Is 43.1-3; Jr 1.8; Mt 28.20). Isso não significa que Ele os manterá longe de todo
perigo e dano. Ele pode protegê-los de circunstâncias desagradáveis na vida, ou
pode vir até eles no meio dessas circunstâncias.
As p rova ções p o r q u e passam os na vid a fo r n e ce m oportu n ida des p a ra q u e tes­
tem u n h em os o p o d e r d e D eus no m u n d o. A história de Daniel 3 cumpre a men­
sagem do sonho no capítulo 2. “Na época desses reis”, como Nabucodonosor,
Deus estabelece um reino que não será destruído (2.44). Como uma pedra
121
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

esmagando uma estátua, o poder inigualável do Reino de Deus sobrepuja o po­


der pretensioso de Nabucodonosor. Três representantes desse reino são liber­
tos da fornalha de um reino terreno. A verdadeira natureza da demonstração
ostentosa da magnificência de Nabucodonosor é revelada nos pés de barro da
estátua.
Um público muito amplo e impressivo testemunha o resgate dramático
de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. Tudo isso ocorre num grande fórum
público. Nabucodonosor e toda a sua comitiva de oficiais do governo estão
presentes. Estes não apenas testemunham a fé inabalável dos três judeus,
como também, e o que é mais importante, a incontestável fidelidade de
Deus.
Sem querer, o rei forneceu um cenário elaborado para a demonstração do
poder de Deus. Ele convocou os homens de todas nações, povos e línguas
(v. 7). Nabucodonosor gerou a crise com o seu decreto, interrogou os três jo­
vens e ordenou a sua execução. Ele também é o primeiro a observar o milagre
dos quatro homens, desamarrados e ilesos, andando pelo fogo (v. 25). Seus
mais altos cortesões fornecem um testemunho ocular adicional ao examina­
rem o corpo, o cabelo e os mantos dos três judeus sem encontrarem neles
nenhum resquício de fogo (v. 27).
Para seu crédito, Nabucodonosor também é o primeiro a reconhecer o
caráter fiel dos três judeus e a obra divina no meio deles. Ele identifica três
características essenciais de um testemunho convincente: uma confiança ina­
balável em Deus, o desafio à oposição e a disposição de abrir mão de sua vida
para não trair suas convicções (v. 28). Nabucodonosor também testifica sobre
a fidelidade do Deus desses homens. Ele reconhece que nenhum outro deus é
capaz de livrar alguém dessa maneira (v. 29).
Um testemunho desses não nasce sem provações. As Escrituras afirmam
que a prova da nossa fé é de grande valor. Ela é a chave para o desenvolvimento
da fé pessoal, levando as pessoas à maturidade e a uma vida mais profunda com
o Senhor (Rm 5.3-5; Tg 1.2-4). Mais do que isso, contudo, as provas revelam
o poder de Deus ao mundo. Os cristãos primitivos entendiam isso quando ad­
moestavam uns aos outros: “Alegrem-se à medida que participam dos sofri­
mentos de Cristo, para que também, quando a sua glória for revelada, vocês
exultem com grande alegria” (1 Pe 4.13). O Senhor muitas vezes revela o Seu
poder nos momentos mais difíceis da vida. Sua maior revelação para o mundo
veio por meio da agonia da crucificação.
Pessoas fié is fu n cio n a m a p a r tir d e u m a ética g u ia d a p ela convicção. A po­
sição firme de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego é tão extraordinária quanto
animadora e admirável. Esses homens não se deixam abalar pela conformidade
122
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

esmagadora ao poder secular que os cerca. Seu diálogo com o rei em Daniel
3.16-18 revela uma convicção resoluta que determina as suas ações. Esse é o
ponto focal da história, como indica a estrutura quiásmica da passagem.
Os três não oferecem nenhuma defesa para as suas ações. Não precisamos
defender-nos (v. 16). Eles são culpados da acusação de confiar em Deus e de­
safiar o rei. Está claro que a sua decisão é determinada por uma fé inviolável nos
mandamentos absolutos da sua religião. Ela não é baseada em nenhuma certeza
de que eles seriam libertos da morte. Eles sabem que Deus pode [livrá-los e
os] livrará (...) Mas, se ele não [os] livrar, sua posição permanece a mesma (v.
17,18). Eles estão compromissados com a Torá e com a vida que ela prescreve.
Eles não quebrarão o mandamento expresso do seu Deus [prestando] culto
(...) nem [adorando] a imagem de ouro (v. 18).
A fé ousada dos três é ainda mais extraordinária porque ela não presume
a ressurreição depois da morte. Não há nenhuma referência a isso nessa pas­
sagem. Eles estão dispostos a abrir mão de sua vida pelas suas crenças (v. 28).
A recompensa por permanecerem firmes em suas convicções é o fato de eles
terem feito a coisa certa. Como Nabucodonosor observou, eles simplesmente
confiaram em Deus (v. 28). John Wesley comentou: “Eles preferiram sofrer
do que pecar, entregando sua causa nas mãos de Deus “ (Wesley, 1990, p.
366).
A Bíblia chama as pessoas a uma ética de convicção fundamentada nos
mandamentos de Deus. O desafio contínuo da lei hebraica é obedecer “aos
mandamentos do Senhor, o seu Deus” (Dt 8.6). Os livros de sabedoria afir­
mam isso de uma forma um tanto diferente: “Confie no Senhor de todo o seu
coração” (Pv 3.5). Embora tais admoestações em geral incluam uma nota de
reciprocidade, a Bíblia sabe que as recompensas por uma vida fiel nem sempre
são diretas ou imediatas. O livro de Jó reconhece isso quando o personagem
principal pergunta: “Aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal?” (Jó
2.10). Na epístola aos Hebreus, o autor relembra o sofrimento dos heróis da fé
no Antigo Testamento e nota que “todos estes viveram pela fé, e morreram sem
receber o que tinha sido prometido; viram [as promessas] de longe e de longe”
as saudaram (Hb 11.13). A fé mais profunda é aquela que permanece firme
sem qualquer esperança de recompensa. Esse é o tipo de fé que deve direcio­
nar nossas ações nos momentos de crise, como ocorreu a Sadraque, Mesaque e
Abede-Nego.

123
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

D. O sonho da á r v o r e : o s e g u n d o te s te de
sabedoria (4.1-37)

Panorama geral
A história mais surpreendente de Daniel talvez seja aquela encontrada no
capítulo 4. Nabucodonosor, que foi o principal antagonista de Deus e do Seu
povo nos primeiros três capítulos, de repente dá testemunho de uma obra pro­
funda de Deus em sua vida. Na sua última aparição no livro, o rei fala como se
ele tivesse se convertido ao Deus dos judeus. Embora as palavras de louvor de
Nabucodonosor no final dos capítulos 2 e 3 talvez tenham preparado o leitor
até certo ponto para isso, nada sugere o tipo de testemunho pessoal encontrado
no capítulo 4. Admiravelmente, um dos reis mais poderosos do mundo antigo
emerge do drama com palavras rebuscadas de louvor ao Deus de Daniel nos
lábios. Ele aprendeu a verdade de Provérbios sobre os caminhos de Deus com
os homens: “Ele zomba dos zombadores, mas concede graça aos humildes” (Pv
3.34).
Por trás do texto
Nabucodonosor é retratado como um monarca humilde e espiritualmente
sensível em Daniel 4. Ele narra uma experiência pessoal dramática, a qual ele
reconhece ter sido promovida pela mão do Deus de Daniel. Inicialmente, essa
caracterização parece contrastar com a impressão geral do tirano pagão irre­
dutível e impetuoso encontrado nos capítulos 1—3. Entretanto, documentos
babilônios antigos revelam uma personalidade tão complexa quanto aquela
apresentada no livro de Daniel. Ele era ao mesmo tempo firmemente resoluto
e flexível, materialmente motivado e espiritualmente sensível, impiedoso em
seus juízos e interessado em questões morais. As crôn icas babilón icas e outros
textos confirmam que Nabucodonosor possuía excepcionais talentos organi­
zacionais e de liderança tanto militar como politicamente. Ele governou sobre
um dos impérios mais dominantes e prósperos do mundo antigo por 43 anos.
Sob a sua direção, o império foi bem organizado e continuou a expandir a sua
influência.
Embora Nabucodonosor governasse com rigidez e mão de ferro,
inscrições e ações também revelam um homem que se preocupava com
questões espirituais e morais. Seus muitos projetos de construção incluíram
inúmeros santuários religiosos dedicados a diversos deuses e deusas. Em textos
124
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

reais, Nabucodonosor declarou que seu reinado era um dom dos deuses e que
ele buscava regularmente a direção destes para o império. Durante festivais
religiosos, ele participava dos rituais cerimoniais prescritos pelos sacerdotes
dos templos.
Nabucodonosor também alegava ter uma profunda preocupação com a
justiça do seu reino. Em uma inscrição, ele se lamenta pelo tratamento cruel
dado aos pobres e pelas propinas nos tribunais da lei encontrados por todo o
seu império antes do seu governo. De acordo com essa inscrição, os governos
municipais foram regulados durante o seu reinado, para que fossem mais justos
na sua maneira de lidar com o povo.
Embora essas ações e declarações fossem tipicamente planejadas como
propaganda para legitimar o governo do rei, no caso de Nabucodonosor, seu
efeito cumulativo indica algo mais para os estudiosos. Os interesses religiosos
e morais de Nabucodonosor parecem possuir certa qualidade genuína. Portan­
to, a descrição que Daniel faz do rei corresponde bem àquilo que é conhecido
sobre ele por meio de outras fontes. Ele era uma personalidade complexa com
dons incomuns de liderança (veja Wiseman, 1985, p. 98-102).

Nabucodonosor nas inscrições babilónicas


Inscrições babilónicas reais alegam que N abucodonosor possuía uma
profunda sensibilidade e spiritual e m oral. Num te x to endereçado a Mar-
duque, o deus padroeiro da Babilônia, N abucodonosor declara: "Tu m e ge­
raste e me confiaste o governo de todos os povos." Portanto, ele te stifica:
"Desde quando fu i gerado e criado, busquei co n tin u a m e n te a direção dos
deuses e segui o cam inho dos deuses.” Com respeito a questões m orais,
N abucodonosor acreditava te r m elhorado as coisas com o seu sistem a de
governo. Antes do seu reinado, observa ele: "Os fo rtes co stum avam ex­
plorar os fracos, os quais não podiam processá-los. Os ricos costum avam
to m a r as propriedades dos pobres" (W isem an, 1985, p. 99,100).

Alguns estudiosos duvidam de que Nabucodonosor originalmente tenha


sido o sujeito da história no capítulo 4. Os registros babilónicos sobre o rei não
corroboram nem a sua doença nem o seu reconhecimento do Deus dos judeus.
Documentos oficiais dos últimos 30 anos de vida de Nabucodonosor são espar­
sos, contudo, e um fragmento debatido talvez faça referência ao tipo de doença
que poderia ter deixado Nabucodonosor incapaz de reinar, conforme descreve
125
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o capítulo 4. Entretanto, certos comentaristas pressupõem que os eventos do


capítulo 4 talvez se refiram a Nabonido, um sucessor de Nabucodonosor que
governou a Babilônia de 556 a 539 a.C.. Nabonido é conhecido como tendo
se afastado da Babilônia por um período de 10 anos, sofrido uma doença grave
e sido perturbado por sonhos com regularidade. Evidências dos Pergaminhos
do mar Morto parecem apoiar até certo ponto essa conclusão. Um documento
fragmentário intitulado “A oração de Nabonido” fornece paralelos interessan­
tes com a história narrada no capítulo 4. Esse material fala de uma doença de
Nabonido que durou sete anos. A doença teria chegado ao fim com a ajuda de
um adivinhador que era um exilado judeu. Esse documento tem sugerido a cer­
tos estudiosos que a história de Daniel talvez seja uma variante confusa ou ela­
borada da história original de Nabonido. As diferenças entre as duas histórias,
contudo, tornam essa conclusão incerta. Embora os temas e alguns detalhes
sejam similares, as duas histórias se afastam consideravelmente uma da outra.
Uma firme linha de relacionamento entre elas não pode ser traçada.

A oração de Nabonido
A oração de Nabonido apresent^ conexões interessantes com a
história do capítulo 4. Esse docum ento foi reconstruído a p a rtir de qua­
tro frag m en tos encontrados na caverna 4 em Qum rã. O docum en­
to é conhecido com o 4QPrNab, 4QOrNab ou 4Q242. Apenas a in tro d u ­
ção foi preservada, sendo que a oração em si está frag m en tad a . O
te x to estabelece diversos paralelos com Dn 4. Ele m enciona (1) a do­
ença do rei por sete anos; (2) a restauração da sua saúde; (3) a m e­
diação de um a divinh ad or exilado jud eu ; e (4) a honra oferecida ao
Deus Altíssim o. Além disso, (5) o te x to é narrado na p rim eira pessoa.
Entretanto, o te x to difere do capítulo 4 de diversas m aneiras. Essas
incluem ; (1) o nom e do rei; (2) a natureza da doença; (3) a razão da doen­
ça; e (4) o co nte xto geográfico. S ig nifica tivam en te , (5) o papel do exilado
judeu, que não é m encionado por nom e, é bastante diferente. Ele adm o ­
esta o rei a dar um te ste m u nh o público, m as não inte rp re ta um sonho.

A história do capítulo 4 retrata Nabucodonosor se gabando da grande


Babilônia que ele construiu (v. 30). Textos antigos e escavações arqueológi­
cas confirmaram que Nabucodonosor e o seu pai transformaram a Babilônia
numa cidade vitrina como a capital do império. Eles usaram a maior parte dos
126
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

recursos ganhos por intermédio das suas conquistas para construí-la. Projetos
maciços de construção e reforma fizeram da Babilônia uma das maiores cidades
do mundo antigo.
A Babilônia estava localizada ao longo do rio Eufrates, a principal artéria
de comunicação e transporte da região mesopotâmica. Do terraço do palácio
real, Nabucodonosor podia ver a cidade do norte (v. 29). A sua direita ficava
o impressivo Eufrates ladeado por muros de contenção e atravessado por uma
ponte proeminente com aproximadamente 122m de comprimento. Entre o rio
e o palácio existiam terraços com jardins reais extraordinariamente belos, re­
pletos da coleção mais impressionante de espécies da flora conhecida no mun­
do antigo.
Olhando em direção ao sul, o rei via a cidade estendida sobre uma planície,
com um horizonte pontuado por mais de 50 templos. Um deles, um zigurate
conhecido como Etemananki, tinha quase 92m de altura. Ruas pavimentadas
de tijolos queimados assentados com betume serpenteavam ao longo da cidade,
com largos calçadões feitos de placas de pedra calcária. Um sistema de canais
subterrâneos fornecia água doce aos seus habitantes. Muralhas duplas e maci­
ças cercavam tudo isso, estendendo-se por mais de 27 km ao redor da cidade.
Portões magníficos eram decorados com tijolos esmaltados e esculpidos de re­
levos coloridos de leões, dragões e touros e fechados por espetaculares portas
de bronze. Um portão dedicado à deusa Ishtar se erguia a uma altura de mais de
12m, fornecendo uma entrada imponente do lado norte da cidade.
A principal forma literária do capítulo 4 é a de uma proclama­
ção real. Trata-se de um documento público endereçado a todo o rei­
no, o qual Nabucodonosor petulantemente descreve como homens
de todas nações, povos e línguas, que vivem no mundo inteiro
(v. 1). Proclamações como essa são comumente encontradas nas inscrições an­
tigas. Esdras 1.1-4 preserva um desses editos do rei persa Ciro. O que é inco-
mum no decreto de Daniel 4 é sua natureza demasiado pessoal e menos do
que lisonjeira. O uso de temas e de uma linguagem que enalteça a imagem do
monarca é mais típico nos decretos reais. Parte do impacto desse capítulo é
conseguida por meio do emprego dessa forma real familiar para transmitir uma
história de humilhação e fé. O poder do testemunho pessoal ganha força em
virtude do estilo autoritário do decreto real.
Outra característica incomum nesse capítulo é a mudança de um teste­
munho na primeira pessoa para uma narrativa na terceira pessoa, retornando
depois à primeira pessoa. Os relatos na primeira pessoa (v. 1-18 e 34-37) la­
deiam a seção na terceira pessoa (v. 19-33). De muitas maneiras, a alternância
127
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de perspectivas na narrativa é natural e passa quase despercebida. O relato na


terceira pessoa começa num momento crucial, quando Daniel interpreta o so­
nho do rei. Ele continua com uma explicação sobre o cumprimento do sonho.
A narração retorna à primeira pessoa com um testemunho de Nabucodonosor
reconhecendo o poder de Deus.
O efeito da mudança da primeira para a terceira e para a primeira pessoa é
enfatizar o tema central do capítulo: Nabucodonosor não é soberano. O con­
trole da história está nas mãos do narrador onisciente na terceira pessoa, e não
de Nabucodonosor. Embora o rei relate a maior parte da sua experiência, o
narrador externo garante a confiabilidade desse relato. A narrativa na terceira
pessoa expressa a forma como Deus prevalece sobre Nabucodonosor. A hu­
milhação do rei pelas mãos de Deus não foi uma experiência subjetiva. Uma
terceira pessoa testificou a sua realidade e contou sobre ela. A vantagem dessa
técnica literária é preservar a força convincente de um testemunho pessoal ao
mesmo tempo em que guarda a sua integridade.
O capítulo 4 está intimamente ligado a outras histórias do livro e deve
ser entendido com referência a elas. Como a história envolve a interpretação
de comunicações divinas, o capítulo 4 é um teste de sabedoria semelhante aos
capítulos 2 e 5. Assim como as histórias daqueles capítulos, o capítulo 4 apre­
senta um desafio à sabedoria de Daniel e do seu Deus com relação a realidades
presentes e futuras que precisam de uma explicação. Os sábios da Babilônia
não podem ajudar. Mas Daniel e o seu Deus podem. No capítulo 4, o elemento
de competição entre Daniel e os sábios babilônios não é tão pronunciado como
no capítulo 2. Nesse aspecto, ele é mais parecido ao capítulo 5. A ênfase está no
cumprimento do sonho e na reação do rei a ele. O capítulo 5 também inclui um
breve elemento de cumprimento. O capítulo 4 também difere dos capítulos 2 e
5 por não mencionar nenhuma honra ou promoção para Daniel.
As conexões entre os capítulos 4 e 5 são significativas. Ambos lidam com
a humilhação de um rei babilônio e formam a parelha central de capítulos na
estrutura quiásmica da seção aramaica do livro. Juntos, eles formam um fulcro
para essa seção, a qual enfoca o tema principal da soberania de Deus sobre os
governantes terrenos. O vínculo entre os dois capítulos é explicitado quando
Daniel relembra brevemente a história do capítulo 4 como uma lição práti­
ca para Belsazar em 5.18-21. Assim como o capítulo 4, o capítulo 5 também
menciona o Senhor como “o Deus Altíssimo”. Esse título é usado com maior
frequência entre 3.26 e 5.21 do que em qualquer outra parte do livro.
A relação entre os capítulos 3 e 4 também é importante. Em ambos os
capítulos, Nabucodonosor é o caráter dominante, e a questão da sua arrogância
128
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

com relação ao Deus de Daniel é tratada. Além disso, tanto o começo do


capítulo 4 como o final do capítulo 3 contêm palavras de louvor ditas por
Nabucodonosor. Essa característica talvez resida na versificação distinta da
Bíblia hebraica em comparação a outras versões. A Bíblia hebraica inclui aos
primeiros três versículos do capítulo 4 como parte do final do capítulo 3.
Portanto, 4.1-3 na Bíblia inglesa corresponde a 3.31-33 na Bíblia hebraica.
Essa divisão de capítulos não constava originalmente da Bíblia hebraica, já que
ela apareceu no século 13. Porém, ela reconhece a íntima associação entre os
dois capítulos.

A versão grega do capítulo 4


A versão em grego antigo do capítulo 4 varia conside rave lm e nte com
relação ao aram aico do TM. O grego a ntigo o m ite alguns versículos encon­
trados no aram aico e acrescenta outros. Por exem plo, a versão em grego
antigo não com eça com a confissão de N abucodonosor nos versículos 1-3,
mas sim com o anúncio de um sonho p e rtu rb a d o r relatado no versículo
4. Ela ta m b é m o m ite q ua lq ue r referência ao rei convocando sábios nos
versículos 6-9 e procede com uma descrição do sonho. O utras variações
m enores ocorrem até que o cu m p rim e n to do sonho seja narrado. A essa
altura, o grego antigo fornece descrições adicionais da experiência de Na­
bucodonosor. Quando o período de doença chega ao fim , o antigo grego
conta sobre um anjo que desce para fa la r novam ente com N abucodono­
sor. Então o louvor e o vo to fin ais de N abucodonosor são narrados com
m aiores detalhes do que aqueles encontrados no aram aico.

O capítulo 4 também tem ligações com outras porções da Bíblia hebraica.


No livro de Jó, Eliú descreve um dos valores das visões noturnas, o que é ilus­
trado pela experiência de Nabucodonosor. Os aspectos aterradores têm como
propósito “prevenir o homem das suas más ações e livrá-lo do orgulho, para
preservar da cova a sua alma, e a sua vida da espada” (Jó 33.17,18). No fim, foi
exatamente isso que o sonho de Nabucodonosor fez.
As visões também aludem a Gênesis 1-3 ao evocarem referências à cena
idílica de um jardim onde os animais do campo e as aves do céu encontram
proteção sob uma árvore que dá vida (Dn 4.10-12). A imensa altura da árvore,
cujo topo chegava até o céu (v. 11) evoca imagens da torre de Babel em Gênesis
11. Ambas as histórias falam da questão da usurpação arrogante da divindade,
assim como do juízo do afastamento.
129
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A metáfora de uma árvore forte tem vários outros paralelos tanto na lite­
ratura bíblica como não bíblica (Dn 4.11). Os profetas de Israel costumavam
empregar a imagem associada a árvores para expressar mensagens de esperança
e juízo (Is 10.33,34; 11.1; Os 14.5-7; Am 2.9). Ezequiel, em particular, compa­
ra a dinastia davídica (cap. 17), Jerusalém (cap. 19) e Faraó (cap. 31) a árvores
frondosas que serão cortadas. A linguagem de Ezequiel 31 estabelece um para­
lelo com Dn 4 sob vários aspectos. Por exemplo, similarmente a Daniel 4.12, o
profeta fala “que todas as aves do céu se aninhavam nos seus ramos, e todos os
animais do campo (...) debaixo dos seus galhos” (Ez 31.6).
A imagem da árvore encontrada na Bíblia hebraica é compartilhada no
contexto mais amplo da literatura e da iconografia do antigo Oriente Próximo.
Um tema recorrente nesse material é a árvore espiritual sagrada. Tratava-se de
uma forma de visualizar a unidade da criação e a sua provisão para a vida. As
raízes dessa árvore alcançam as águas subterrâneas, e o seu topo chega aos céus,
unindo os principais elementos do universo. Em alguns textos, o rei incorpo­
ra a realidade da árvore e se apresenta como a sua personificação. Portanto, a
árvore descrita no sonho do capítulo 4 era um conceito familiar aos públicos
antigos.

A imagem da árvore no AT
Ao longo de toda a Bíblia, a árvore é um sím bolo de abundância e
vida. A escassez de árvores em algum as partes de Israel a torna uma
im agem p articu la rm e n te pungente de vita lid ad e. As árvores sim bolizam a
provisão de Deus e o Seu cuidado com a Sua criação (SI 104.16,17). Elas
podem ser sím bolos de beleza (Ct 7.7), de longevidade (Is 65.22), de bem -
-esta r (Zc 3.10), de proteção (Ez 31.6) e de uma vida bem vivida (SI 1.3).
Sua altura m ajestosa pode sig n ifica r o orgulho (Is 2.12,13) e o seu juízo
por m eio da destruição (Ez 19.12-14). A árvore da vida no Jardim do Éden
em erge com o um sím bolo especial da vida eterna. Ela se apresenta com o
uma im agem do projeto o riginal de Deus para o hom em , o qual se perdeu,
assim com o de uma esperança para o fu tu ro (Ap 2.7). O e splendor da re­
novação absoluta da criação é fin a lm e n te retra tad o por m eio de árvores
a bu nd an te m e nte frutífe ra s (Ez 47.12).

O capítulo 4 é uma proclamação real testificando sobre a obra de Deus


na vida de Nabucodonospr. Ela começa (v. 1-3) e termina (v. 34-37) com uma
confissão de louvor por parte do rei. Essas declarações criam uma inclusão que
130
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

faz do material uma unidade coerente. Dentro dessa estrutura, conta-se a histó­
ria de um sonho perturbador (v. 4-18), da sua interpretação (v. 19-27) e do seu
cumprimento (v. 28-33). O suspense é criado por meio de explanações adiadas.
Os resultados dos eventos e as reações a eles são anunciados antes que os deta­
lhes sejam descritos.
No texto

1. A confissão inicial (4.1-3)


Distintamente de outras histórias em Daniel, o capítulo 4 começa com um
hino de louvor a Deus. Essas palavras fornecem um vislumbre do resultado da
história que será contada. O efeito desejado dessa introdução é despertar um
interesse imediato por parte do leitor, o qual deve se perguntar por que um rei
babilônio como Nabucodonosor está louvando a Deus.
I 1 As palavras de louvor e a história que se segue são expressadas com a lin­
guagem de uma proclamação pública. Nabucodonosor introduz o seu anúncio
de uma forma tipicamente usada em correspondências oficiais da Babilônia e
da Pérsia. Ele identifica a si mesmo e àqueles a quem se dirige e lhes deseja pros­
peridade. A designação de seu público como todas nações, povos e línguas,
que vivem no mundo inteiro tende a aumentar a importância que Nabucodo­
nosor atribui a si mesmo (v. 1). Ele é o rei não apenas da Babilônia, mas tam­
bém do mundo inteiro. Alegações como essa eram típicas de monarcas assírios
e babilônios. A descrição da audiência é similar à de 3.4, onde outro decreto
real ordena a adoração de uma estátua. Essa semelhança tende a acentuar um
contraste entre as duas proclamações. No capítulo 3, Nabucodonosor estava
buscando arrogantemente a honra para si mesmo, enquanto no capítulo 4 ele
atribui humildemente a honra a Deus.
A saudação típica - Paz e prosperidade - introduz os temas da prosperi­
dade e da grandeza que se tornam centrais à história (v. 1). O conceito se repete
diversas vezes ao longo do capítulo por meio de diferentes termos para enfati­
zar um ponto chave (veja v. 3,11,20,22,24,30,36): a prosperidade e a grandeza
humanas na verdade só podem vir das mãos de Deus.
H 2 Os eventos sobre os quais Nabucodonosor irá falar são resumidos como
dos sinais e das maravilhas que o Deus Altíssimo realizou em meu favor (v.
2). A expressão dos sinais e das maravilhas {’o tayya w êtim h a yya ) refere-se a
eventos marcantes, naturais ou sobrenaturais, que testificam sobre a realidade
131
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de Deus neste mundo. A experiência do êxodo de Israel muitas vezes é descri­


ta nesses termos ( o t w èm ôp ét em Êx 7.3; Dt 4.34; Ne 9.10; Jr 32.20; etc.). A
libertação de Daniel da cova dos leões também é classificada entre os “sinais e
maravilhas” dramáticos de Deus (Dn 6.27).
Nabucodonosor chama o Senhor de Deus Altíssimo (v. 2). Essa expres­
são, juntamente à forma abreviada “o Altíssimo”, é concentrada nesse capítulo
(4.2,17,24,25,32,34). Ela é apropriada nesse contexto, já que enfatiza a supe­
rioridade de Deus sobre todas as outras autoridades. Ela ajuda a realçar o tema
chave da absoluta soberania de Deus sobre os monarcas humanos, até mesmo
sobre o potentado mais impressivo do mundo - Nabucodonosor.

O Deus Altíssimo
As expressões "Deus A ltíssim o" e "o A ltíssim o" ocorrem 13 vezes no
livro (3.26; 4.2,17,24,25,32,34; 5.18,21; 7.18,22,25,27). Tais ocorrências
estão concentradas nos cap. 4 e 7. Essas designações de Deus não afir­
m am o m onoteísm o, mas e nfatizam a superioridade de Deus na dim ensão
divina. Deus está acim a de todas as outras forças espirituais. A expres­
são sem elhante "D eus A ltíssim o" ('e/ 'elyon) ou sim plesm ente "A ltíssim o"
( 'e lyo n ) ocorre outras 36 vezes nas Escrituras hebraicas. No NT, Deus é
cham ado pelo te rm o grego equ iva len te (hupsis tos) nove vezes.

H 3 As palavras de louvor de Nabucodonosor refletem a linguagem da lite­


ratura de adoração de Israel. Salmo 145.13, por exemplo, é quase um para­
lelo exato à segunda metade de Daniel 4.3. Expressões similares, contudo,
também podem ser encontradas em rituais babilónicos. Portanto, o rei não
está necessariamente citando as Escrituras hebraicas, embora o leitor judeu
possa ouvi-lo dessa forma. Nabucodonosor exalta o Senhor por revelar a
Sua soberana autoridade com uma série de pares de palavras. As palavras
em cada par (sinais e maravilhas, grandes e poderosas, reino e domínio)
podem ser consideradas sinônimas e servem para ampliar o efeito de louvor
(v. 3).
A grandeza dos sinais e das maravilhas de Deus torna conhecido o seu
domínio, que impressiona o rei por causa da sua estabilidade e realidade pre­
sentes. Ele não tem fim nem ausência. O governo de Deus permanece presente
neste mundo porque ele é de geração em geração.

132
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

2. O sonho perturbador (4.4-18)


A razão para o hino de louvor de Nabucodonosor é explicada no que se
segue. Um sonho perturbador (v. 4-18) foi interpretado por Daniel (v. 19-27)
e cumprido na vida do rei (v. 28-33).
Nabucodonosor começa a sua história descrevendo um sonho que teve.
Ele adia o relato do conteúdo do sonho (v. 10-18), contudo, descrevendo pri­
meiro as suas circunstâncias antes do sonho (v. 4), sua reação a ele (v. 5), suas
tentativas de interpretá-lo (v. 6-8) e suas palavras de confiança em Daniel (v. 9).
Essa técnica de adiamento aumenta efetivamente o suspense da história.
I 4 O sonho veio a Nabucodonosor inesperadamente. Ele estava satisfeito
e próspero em casa (v. 4). Essas condições sugerem uma época no reino de
Nabucodonosor quando a maior parte das hostilidades estava sob controle.
Literalmente, o texto diz que ele estava tra n q u ilo (sèlêh) eflo r e s c e n d o (rdnan).
0 último termo pode descrever plantas saudáveis e produtivas. Ele prefigura o
sonho no qual uma árvore frutífera simboliza o rei.
A natureza surpreendente do sonho é ainda mais enfatizada pela referên­
cia de Nabucodonosor ao fato de ele ter recebido o sonho enquanto estava no
palácio (v. 4). Ele enfatizará esse local mais duas vezes (v. 10 e 13). Se o rei es­
tivesse buscando uma mensagem da dimensão divina, ele talvez estivesse num
templo, engajado em rituais planejados para alcançar tais fins.
1 5 - 7 A visão inesperada não apenas deixou o rei alarmado, mas também
aterrorizado (v. 5). O uso de ambas as palavras acentua o pavor sentido pelo
rei. No mundo antigo, os sonhos eram considerados comunicados especiais
dos deuses, e muitas vezes suas mensagens eram agourentas. (Veja Por trás do
texto no capítulo 2 para mais informações sobre sonhos.) Portanto, os sábios
da Babilônia, cujo papel era interpretar essas mensagens, são trazidos à pre­
sença do rei (v. 6). Isso incluía os magos, os encantadores, os astrólogos e
os adivinhos (v. 7). Essa lista de especialistas é semelhante às de 2.2 e 2.27.
(Veja Por trás do texto no capítulo 2 para possíveis distinções entre esses gru­
pos.) Seu trabalho era consultar as vastas coleções de sonhos e agouros que ha­
viam sido preservados ao longo dos séculos. Se um sonho correspondente fosse
encontrado, eles poderiam fazer uma interpretação. Aparentemente, nenhum
sonho semelhante foi descoberto, já que eles não puderam interpretá-lo (v.
7).
1 8 Depois que os outros sábios esgotaram os seus recursos, veio Daniel à
presença do rei (v. 8). Como nos capítulos 2 e 5, o contraste entre Daniel e
os babilônios é enfatizado. A sabedoria babilónica tradicional não podia ser
133
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

comparada à sabedoria de Daniel. Daniel possui um dom de interpretação que


os outros não têm. Ele é diferente, e dessa vez o rei sabe por quê. Daniel possui
uma conexão singular com o mundo divino, já que o espírito dos santos deu­
ses está nele (v. 8). O rei enfatizará essa observação mais duas vezes (v. 9 e 18).
Embora a frase rüah ’êlãhtn qadísín talvez pudesse ser traduzida como “o espíri­
to do santo Deus”, essas não parecem ser palavras saídas dos lábios de Nabuco-
donosor. Os leitores judeus, contudo, podem notar a ironia nas palavras do rei.
Daniel é como José, alguém “em quem está o espírito divino” (rüah ’èlõhim ; Gn
41.38). A questão é que a sabedoria de Daniel tem origens celestiais. Portanto,
a frase reconhece a verdade enfatizada em Daniel 2; Deus detém a chave da
verdadeira sabedoria.
O rei menciona que o nome babilónico de Daniel é Beltessazar e nota sua
ligação ao nome do meu deus (v. 8). Ele provavelmente está referindo-se a Bei,
também conhecido como Marduque, o deus padroeiro da Babilônia. Embora
Nabucodonosor esteja ciente de que o dom de Daniel deriva do mundo divino,
ele entende as coisas a partir da perspectiva de sua cosmovisão politeísta. No
contexto das Escrituras hebraicas, contudo, os leitores sabem que o Deus de
Israel é a fonte da sabedoria de Daniel.
Na medida em que Nabucodonosor começa a se endereçar diretamente a
Daniel, ele confirma sua confiança nele. O rei termina sua fala de forma seme­
lhante no versículo 18. Ele chama Daniel pelo seu nome babilónico, Beltessa­
zar, como seria de se esperar. Nesse contexto, o uso repetido desse nome pelo
rei (v. 8,9,18,19) talvez tenha um significado especial. Ele é traduzido como
“proteja a sua vida”. Talvez, a repetição do nome tenha oferecido algum consolo
a um rei perturbado.
H 9 O rei identifica Daniel como o chefe dos magos (v. 9). Essa é a posição
à qual ele foi promovido depois de ter interpretado o sonho da estátua de Na­
bucodonosor (2.48). Talvez tenha sido por isso que Daniel foi o último a falar
com o rei nessa ocasião. Adivinhos menores talvez tenham tentado interpretar
0 sonho antes que o mestre chegasse. De qualquer forma, o rei tem certeza de
que nenhum mistério é difícil demais para você (v. 9). Essa frase identifica
ainda mais a sabedoria de Daniel à de Deus, embora o rei talvez não saiba disso.
A fé de Israel confessava que a sabedoria de Deus não tinha limites (Dn 2.22;
Jó 11.7-9; SI 139.11,12; Is 55.8,9; Jr 23.24).
1 1 0 -1 2 O conteúdo do sonho perturbador finalmente é descoberto em
Daniel 4.10-17. Ele envolve uma grande árvore que é cortada e se torna uma
pessoa que assume características animais. Como se poderia esperar de um so­
nho, a transição de árvore para um homem não é claramente definida nem
134
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

inteiramente lógica. Nabucodonosor explica que viu uma árvore surreal cheia
de vida. Quatro qualidades acentuam a grandeza e a prosperidade dessa ár­
vore. A grandeza da árvore está na (1) sua localização e no (2) seu tamanho.
A prosperidade da árvore pode ser vista em sua habilidade de (3) alimentar e
(4) proteger a criação. Ela é de suma importância para o mundo terreno por
que está localizada no meio da terra (v. 10). Dali ela cresceu tanto que a sua
copa encostou no céu e ela era visível até os confins da terra (v. 11). Seus
galhos produziam tantos frutos que ela podia alimentar toda a criação. Havia
alimento para todos e dela todas as criaturas se alimentavam (v. 12). Sua
abundância atraía os animais do campo e as aves do céu, que também encon­
travam proteção sob os seus galhos (v. 12). Como a árvore da vida e a árvore
do conhecimento do bem e do mal no meio do Jardim do Éden, essa árvore é
cercada pela vida pulsante da criação (Gn 2.9).
I 13 De repente um ser celestial entra no sonho e interrompe a cena idílica
do jardim. Esse ser é chamado de sentinela {‘i r), literalmente “um vigia” (v.
13 ARC). O termo refere-se a um anjo, como indica o termo paralelo e anexo
“um santo” (ARC) (qadís ). O uso do termo “vigia” se torna mais frequente na
literatura judaica durante os períodos grego e romano. Ele sugere que os seres
celestiais têm o papel de vigiar os negócios de Deus na terra.
H 14-16 As palavras do anjo têm a forma de uma proclamação real. Como
o arauto oficial em 3.4, ele grita em alta voz (v. 14). Quatro verbos vívidos
comandam a devastação completa da árvore: derrubem, cortem, arranquem
e espalhem. Como resultado disso, a fauna que havia sido alimentada e prote­
gida pela árvore foge. Entretanto, a árvore não é completamente destruída. O
toco e as suas raízes recebem permissão para permanecer no chão e são pre­
sos com ferro e bronze (v. 15). A amarração de metal poderia ter pelo menos
dois significados: ela pode referir-se a uma faixa de metal colocada ao redor do
tronco da árvore para protegê-la de uma deterioração maior. Essa prática não
é verificada na horticultura antiga, contudo, sendo apenas uma conjectura dos
estudiosos modernos. Outra possibilidade é que a faixa se refira a uma corrente
de metal usada para restringir animais. A descrição de um animal selvagem nos
próximos versículos apoia essa interpretação.
O decreto do mensageiro continua com uma mensagem de devastação.
Dessa vez, contudo, ela refere-se a uma pessoa. No meio do versículo 15, o su­
jeito muda de uma árvore para um homem. Essa é a primeira indicação de que a
árvore é uma metáfora para um homem. Aquela pessoa viverá com os animais
e não será abrigada do orvalho da manhã (v. 15). Mais do que isso, até mesmo
a sua mente (literalmente “o seu coração” ou “o homem interior”) se tornará
135
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

como a mente de um animal (v. 16). Tudo isso terá uma duração predeter­
minada. A duração exata, contudo, não é delineada. Até que se passem sete
tempos é uma forma de dizer que certo período de tempo é estabelecido (v.
16). O número sete simboliza plenitude, enquanto o termo tempos (‘i d d ã n ín )
varia em seu significado de dias até estações e anos. Portanto, a frase designa
um período de tempo não especificado.
H 17 O mensageiro conclui o seu pronunciamento enfatizando a autoridade
do sonho e revelando o seu propósito. Ele confirma que o sonho é um vere­
dicto comunicado por meio de sentinelas divinos (v. 17). A linguagem reflete
um comunicado real e acentua o caráter decisivo da mensagem do sonho. O
rei celestial emitiu esse decreto em forma de sonho por meio dos seus arautos.
O efeito desejado pela mensagem do sonho é de ganhar reconhecimento
para a soberania absoluta de Deus sobre a dimensão humana. Aqueles que pre­
cisam admitir isso são todos os que vivem, ou seja, aqueles a quem a proclama­
ção do rei está sendo endereçada. Esses são os “homens de todas nações, povos
e línguas, que vivem no mundo inteiro” (v. 1). O que eles precisam reconhecer
é que o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens (v. 17). Em outras
palavras, Deus governa sobre os negócios terrenos e celestiais com absoluta
liberdade. Ele exerce a Sua autoridade sobre os reinos humanos de duas ma­
neiras: (1) Ele os dá a quem quer e (2) Ele põe no poder o mais simples dos
homens (v. 17). O público é desafiado a saber {yêdd ) essa verdade. O termo
aramaico talvez devesse ser traduzido como a p ren d er. De qualquer forma, ele
sugere mais do que um conhecimento mental. O entendimento deve acontecer
no coração. O cumprimento do sonho ilustrará dramaticamente essa verdade.
Nabucodonosor irá adquirir o tipo de conhecimento que só a experiência pode
dar. Ele se tornará o mais simples dos homens a quem Deus estabelece sobre
um reinado. O Senhor o libertará de uma doença terrível e restaurará o seu
governo (vejav. 36).

A poesia no capítulo 4
O rei descreve o seu sonho de form a poética. O ritm o da po­
esia sem ítica se torna óbvio no te x to em aram aico (os versículos ara-
m aicos estão e ntre colchetes) dos versículos 10-12 [7 -9 ] e 13-16 [10-
12]. O com eço da poesia é assinalado pela frase e d ia n te d e m im
(w a ’ã lü ) em am bas as instâncias (v. 10 [7 ] e 13 [1 0]). Ao co nta r as pa­
lavras nas unidades de pensam ento, é possível observar o seguinte
padrão de linhas nos versículos 10-12 [7-9]: 2 + 2 + 2 , 3 + 3 + 3 , 2 + 2 + 2 ,
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

4 + 4 + 3 . Nos versículos 13-16 [1 0-12 ], o padrão em erge com o: 2 + 3 ,


4 + 4 + 4 , 3 + 2 , 3 + 2 + 3 + 3 , 3 + 2 + 2 , 3 + 2 + 2 , 2 + 2 . A irregularidade g e n é ri­
ca da cadência é típica da poesia bíblica, m as certo ritm o é distinguível.
Além dos hinos de louvor nos versículos 2,3 e 34,35, outros versícu­
los do capítulo 4 refletem qualidades poéticas. O paralelism o, o ritm o e
o equilíbrio são evidentes em d iferentes pontos ao longo da história. Por
exem plo, o versículo 17 [1 4 ] introduz o propósito do juízo de Deus com
uma linha que exibe um paralelism o interno. Ele lite ra lm e n te diz: "Por
decreto das sentinelas a sentença, e uma palavra dos santos a decisão".
Apenas os versículos 2,3 [3 .3 2,3 3], 10-12 [7 -9 ], 13-16 [1 0-12 ] e 34,35
[3 1 ,3 2 ] fo ra m arranjados com uma e stru tu ra poética pelo te x to hebraico
padrão BHS. A NRSV e outras traduções inglesas seguiram esse padrão.

1 18 Nabucodonosor termina sua fala da mesma forma como começou. Ele


expressa confiança em Daniel por que o espírito dos santos deuses é evidente
nele (v. 18). Esse fator distingue Daniel dos sábios da Babilônia. Ele é a razão
por que eles não conseguem interpretar o sonho. Eles pertencem ao reino de
Nabucodonosor, enquanto Daniel possui conexões com outro domínio.

3. A interpretação do sonho (4.19-27)


A essa altura, outro narrador toma controle da história. O testemunho
na primeira pessoa de Nabucodonosor dá lugar a uma perspectiva na terceira
pessoa para relatar a interpretação do sonho (v. 19-27) e o seu cumprimento
(v. 28-33). Como observamos anteriormente, a mudança de perspectiva nessa
altura no texto sugere que as coisas não estão mais nas mãos de Nabucodono­
sor. Sua história agora é contada por outra pessoa para garantir a sua fidelidade
e para provar a questão da soberania de Deus que a história pretende enfatizar.
A técnica literária da explicação adiada é empregada mais uma vez. A reação
de Daniel ao significado do sonho é descrita (v. 19) antes que a sua interpretação
sej a dada (v. 20-26). A seção então termina com uma advertência profética (v. 27).
1 1 9 Daniel reage ao sonho de modo semelhante a Nabucodonosor. Ele fica
profundamente perturbado por ele. É o mesmo tipo de reação que ele teria
a outras visões (7.15,27; 8.27). Naquelas instâncias, sua inquietação estava
relacionada ao fato de ele não entender completamente o significado das visões.
Nesse caso, ele se inquieta porque o entendeu. Daniel ficou tão estarrecido
e aterrorizado com o sonho que permaneceu em silêncio por algum tempo
137
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

(v. 19). Embora isso não seja um bom sinal para o rei, ele encoraja Daniel a
ficar calmo. Ele assume um papel muitas vezes exercido pelos anjos e admoesta
Daniel: Não deixe que o sonho ou a sua interpretação o assuste (v. 19). Sem
dúvida, ele determina que é melhor conhecer os detalhes das más notícias do
que conjecturar sobre elas.
Daniel se distancia efetivamente do sonho compartilhando o pavor de Na-
bucodonosor. Ele expressa um desejo de que a mensagem seja para os inimigos
do rei, e não para ele (v. 19). Com essa afirmação, ele comunica que a mensa­
gem do sonho não é sua. Daniel está apenas transmitindo-a.
■ 20-22 A maior parte da descrição da árvore no sonho é repetida nos versí­
culos 20,21 antes que Daniel finalmente confirme que essa árvore, ó rei, és tu!
(v. 22). Como Natã diante de Davi, Daniel declara sem rodeios: “Você é esse
homem!” (2 Sm 12.7). Somente Nabucodonosor possui a grandeza e o tipo de
domínio representado pela árvore. A extensão do poder de Nabucodonosor é
enfatizada pela referência ao céu e à terra.

Céu e terra
Os term os céu e te r r a são usados de m odo s ig n ifica tivo ao lon­
go do capítulo. Céu (sèm ayín), que ta m b ém pode ser trad uzid o com o
"firm a m e n to " ou "a r", ocorre 16 vezes (v. 11,12,13,15,20,21,22,
2 3a ,23 b ,25,26,31,33,34,35,37). T erra ('ã ra ') ocorre dez vezes (v.
4 ,1 0 ,1 1 ,15a,15b,2 0,2 2,23 ,35a,35b) e ta m b é m pode ser traduzida como
"so lo", "ch ão " ou "m u n d o ", dependendo do contexto. A concentração
desses term os ao longo desse capítulo enfatiza a com petição entre a d i­
m ensão terrena e a celestial. O reino celestial de Deus contrasta n itid a ­
m ente com o dom ínio te rre no de Nabucodonosor. Embora o rei exerça
uma influência extra ord in ária por toda a terra e chegue até m esm o a
to c a r os céus, no final ele é subjugado pelos poderes do céu. Deus "age
com o lhe agrada com os exércitos dos céus e com os h ab itantes da te rra "
(v. 35). O Deus de Daniel é claram e nte soberano sobre am bas as d im e n ­
sões, e N abucodonosor, não (veja Jr 10.11,12).

■ 23 À luz da identificação do rei com a árvore, a segunda seção do sonho se


torna ainda mais agourenta. O comando da sentinela - derrubem a árvore e
destruam-na - refere-se a Nabucodonosor (v. 23). Ele viverá com os animais
selvagens por um período de tempo.
138
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

I 24-26 Essa interpretação se torna mais clara nos versículos 24-26, onde
Daniel detalha as implicações de se viver como um animal no campo. Isso
significa que o rei (1) será expulso do meio dos homens, (2) viverá com os
animais selvagens, (3) comerá capim como os bois e (4) se molhará com o
orvalho do céu (v. 25). A saturação com o orvalho pode indicar mais do que
uma exposição aos elementos. A frase é especificamente repetida quatro vezes
na história (v. 15,23,25,33). Os antigos criam que o orvalho do céu vinha das
estrelas e trazia doença ou cura. Nesse caso, ele traz doença. Portanto, o orva­
lho significa o domínio das forças celestiais.
A ironia desse juízo é óbvia. Aquele que tentara ser visto como mais do que
humano se tornará menos do que humano. O mais poderoso se tornará o mais
vil. Aquele que alimentava outros com frutas abundantes terá de encontrar ali­
mento no capim. O protetor se tornará desprotegido. O rei perderá o seu lugar
no universo.
A duração do julgamento é esclarecida no versículo 25. Ele durará até que o
rei confesse que o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens. Uma vez que
ele admita que a soberania de Deus é tão absoluta que Ele pode dar reinos a quem
quer, a provação de Nabucodonosor chegará ao fim. A declaração de propósito
do versículo 17 se tornou uma declaração de contingência no versículo 25.
A essa altura Daniel não menciona que Deus “põe no poder o mais simples
dos homens”, como havia sido observado antes (v. 17). A omissão dessa frase e de
outras que estavam incluídas na descrição original do sonho de Nabucodonosor
sugere que Daniel talvez esteja se restringindo enquanto interpreta o sonho. Ele
não repete a descrição completa da árvore dos versículos 20,21 nem todos os de­
talhes da sua destruição do versículo 23. Isso parece apropriado, já que os detalhes
já são conhecidos. O impacto do julgamento não diminui necessariamente por
causa dessas omissões. A proclamação continua sendo um mau presságio.
A esperança oferecida ao rei por meio da imagem do toco e das raízes é
um reminiscente de referências messiânicas aos mesmos (Is 11.1). Esses rema­
nescentes da árvore significam que o reino de Nabucodonosor lhe será devol­
vido (v. 26). No entanto, isso só acontecerá quando ele admitir que os Céus
dominam. A declaração confirma o que foi dito no versículo 25. O final do
juízo de Nabucodonosor virá quando ele se submeter a Deus. O uso do termo
Céus para referir-se a Deus é singular na Bíblia hebraica. Durante o período
do segundo templo, isso parecia ser uma prática comum entre os rabinos como
um meio de evitar trivializar o nome do Senhor e a quebra do terceiro manda­
mento.

139
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

I 27 Daniel termina a interpretação do sonho com uma palavra respeitosa,


porém firme de advertência. Uma das tarefas dos adivinhadores era desviar os
efeitos maléficos dos sonhos e dos agouros por meio de diversos encantamen­
tos. Entretanto, Daniel não recorre a esses meios. Ele prega a conversão ética
na tradição dos profetas de Israel. Ele desafia o rei a renunciar aos seus pecados
e à sua maldade (v. 27). A palavra renuncia {pèruq ) implica um afastamento
radical do comportamento atual. Pecados (hãtãy ) e maldade (a w ã yâ ) cor­
respondem aos termos tipicamente usados na Bíblia hebraica para descrever
comportamentos inaceitáveis diante de Deus. A palavra pecados refere-se a
ações que erram o alvo que o Senhor estabeleceu para uma pessoa, enquanto
maldade refere-se a tendências pervertidas que caracterizam uma vida que de­
sagrada a Deus.
Evidências de um arrependimento genuíno incluem (1) a prática da justi­
ça e (2) a compaixão dos necessitados (v. 27). Essas ações refletem um man­
damento dado aos reis de Israel. Eles deviam preservar a equidade e a justiça (1
Rs 10.9; Is 9.7; Jr 9.24). Daniel admoesta o rei babilônio a adotar os mesmos
padrões dos reis de Israel. Ele deve fazer mais do que evitar práticas desleais.
Ele deve ativamente demonstrar compaixão pelos necessitados, aqueles que
não possuem recursos para obter justiça por si mesmos. Com essas palavras,
Daniel transmite uma mensagem recorrente entre os profetas de Israel. Como
Amós, ele deseja que “corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro
perene!” (Am 5.24).
Daniel termina a sua admoestação com uma palavra de esperança. O arre­
pendimento genuíno pode permitir que a atual paz do rei continue (Dn 4.27).
A referência à paz (sêlêh ) alude à condição do rei antes do sonho (v. 4). Daniel
não garante esse resultado, mas o oferece como uma motivação possível para a
mudança.

4. O cumprimento do sonho (4.28-33)


■ 28 No capítulo 2, um tipo semelhante de história tem uma conclusão rápi­
da uma vez que a interpretação do sonho é dada. Ali a narrativa termina com
uma nota de louvor a Deus e a promoção de Daniel. Aqui, no entanto, o autor
está preocupado em relatar o cumprimento do sonho. O narrador explica que
tudo isso aconteceu (v. 28) e, então, descreve as circunstâncias que levaram o
sonho a se cumprir (v. 29-32) antes de fornecer os detalhes do seu cumprimen­
to (v. 33). Essa é a descrição mais extensiva de uma visão no livro de Daniel.
Portanto, ela serve para destacar uma mensagem implícita no livro como um
todo: as revelações divinas registradas aqui serão cumpridas.
140
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

■ 29-30 O cumprimento do sonho veio doze meses depois da interpretação


de Daniel (v. 29). Isso poderia ser um pouco menos do que um ano solar, já que
os babilônios usavam um calendário lunar com cerca de 354 dias no ano. Esse
período de tempo sugere graça da parte de Deus, que dá ampla oportunidade
para que Nabucodonosor atenda ao conselho de Daniel no versículo 27. Essa
referência temporal também alude à soberania do Senhor sobre o tempo, a
qual é firmemente declarada em 2.21.
De forma muito apropriada, a cena da ruína de Nabucodonosor se dá no
terraço do palácio real da Babilônia (v. 29). Esse cenário poderia facilmente
evocar orgulho enquanto o rei vislumbrava uma das cidades mais impressio­
nantes do mundo antigo (veja Por trás do texto para uma descrição da cidade).
Os sentimentos de importância própria de Nabucodonosor são evidenciados
pelo uso liberal que ele faz dos pronomes na primeira pessoa eu e meu (v. 30).
O sujeito do verbo construí é salientado pelo uso enfático do pronome pessoal
na primeira pessoa (a n â ). O tom geral da declaração é bem resumido por Da­
niel no capítulo 5. Falando a Belsazar naquele contexto, ele explicou que “o seu
coração se tornou arrogante e endurecido por causa do orgulho” (5.20).
Um orgulho saldável das suas realizações talvez tivesse sido apropriado ao
rei, mas não à arrogância. Ele errou de duas maneiras: primeiro, ele acreditou
que havia construído aquela cidade fabulosa por meio do seu enorme poder.
Seus exércitos vitoriosos haviam trazido uma riqueza tremenda para a cidade
e permitido a realização daqueles projetos de construção colossais. Contudo,
de acordo com Daniel, tudo isso aconteceu pela vontade de Deus. Anterior­
mente, o profeta havia explicado a Nabucodonosor: “Tu, ó rei, és rei de reis.
O Deus dos céus concedeu-te domínio, poder, força e glória; nas tuas mãos ele
colocou a humanidade, os animais selvagens e as aves do céu” (Dn 2.37,38).
O outro erro de Nabucodonosor foi pensar que a beleza da cidade era para
a glória da [sua] majestade (v. 30). A palavra majestade (h ã d a r ) deriva de
um termo que significa inchado ou aumentado. Nabucodonosor sentia que o
propósito de todas as suas realizações era fazê-lo mais importante. Na verdade,
as realizações da criatura deveriam apontar somente para a glória do Criador.
■ 31-32 A resposta divina às declarações arrogantes de Nabucodonosor foi
imediata. Do céu uma voz pronunciou o juízo (v. 31). Essa voz poderia perten­
cer a Deus ou a um mensageiro angelical. Deus já foi identificado na história
pela referência aos céus no versículo 26. Quer se trate da voz direta de Deus ou
não, a mensagem vem com a autoridade daquele cuja morada está acima e além da
terra.

141
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

As palavras ditas por aquela voz tomam a forma de um decreto real, de


modo bastante semelhante às palavras do mensageiro celestial no céu (veja v.
14-17). Ironicamente, aquele que normalmente pronuncia decretos agora deve
se submeter a um edito de uma autoridade superior. O pronunciamento segue
de perto o que foi revelado no sonho, mas omite e acrescenta algumas coisas.
A afirmação sua autoridade real lhe foi tirada é nova (v. 31). Ela sumariza
sucintamente os efeitos do julgamento de Nabucodonosor. Ele não seria capaz
de governar quando fosse acometido de uma doença que o faria ser expulso do
meio dos homens, viver com os animais selvagens e comer capim como os
bois (v. 32). A saturação com orvalho não é mencionado a aqui.
A condição para terminar a maldição é dada pela quarta vez na história
(veja v. 17,25,26). A doença cessará quando o rei estiver pronto para admitir
que o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens (v. 32). A declaração
aqui é idêntica à do versículo 25.
M 3 3 A sorte predita para Nabucodonosor lhe sobrevém imediatamente (v.
33). Ele tornou -se como um animal do campo, foi expulso do meio dos ho­
mens e passou a comer capim e seu corpo molhou-se com o orvalho do céu
(v. 33). O resultado de uma vida assim foi que seus cabelos ficaram desgrenha­
dos e semelhantes a penas, enquanto suas unhas se tornaram como as garras
de uma ave (v. 33). Esse aspecto da condição do rei é novo. Ele nos dá uma no­
ção visual da aparência enlouquecida de Nabucodonosor. O termo para capim
( asab) inclui vegetais e outras ervas. Portanto, Nabucodonosor provavelmente
passou a alimentar-se de uma variedade de plantas comestíveis.
O melhor palpite dos estudiosos modernos é que a condição de Nabuco­
donosor reflete uma pessoa com licantropia. Trata-se de uma desordem men­
tal na qual o indivíduo acredita ser um animal e age em conformidade [a essa
crença]. Qualquer que tenha sido seu diagnóstico preciso, Nabucodonosor foi
claramente acometido de uma doença debilitante que o tornou incapaz de fun­
cionar como rei. Ele se tornou como uma das criaturas dependentes que ele
havia sido designado a alimentar (veja v. 12 e 21).

5. A confissão final (4.34-37)


A história termina com a resolução da situação de Nabucodonosor. O rei
recobrou o seu entendimento (v. 34a) e a sua posição (v. 36). Essa restauração
levou a uma confissão de louvor (v. 34b,35) e uma confissão final de fé (v.
37). O entrelaçamento da restauração e da confissão nessa seção destaca a
142
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

interdependência desses dois conceitos. A restauração do rei depende do seu


reconhecimento de Deus como soberano.
As notas de louvor aqui ecoam o início da história. O retorno ao teste­
munho na primeira pessoa faz o mesmo. A história termina com a perspectiva
com a qual começou.
H 34 Nabucodonosor testifica que sua condição mudou quando ele levantou
os olhos ao céu (v. 34). Essas simples palavras dão origem a uma guinada na
história. Elas descrevem o ato descomplicado de uma pessoa expressando fé
em Deus, assim como encontramos nos salmos de Israel (Sl 121.1; 123.1,2).
Levantar os olhos para Deus significa confiar nele. O resultado desse ato básico
de fé foi que o rei recobrou o seu entendimento (Dn 4.34). Essa frase poderia
ser traduzida como meu conhecimento voltou a mim {mande ‘t). O que Nabu­
codonosor sabe agora é “que o Altíssimo domina” (v. 25,32). Era isso que ele
devia aprender com a experiência, de acordo com o mensageiro e a voz do céu.
Estes haviam dito que a doença duraria até que o rei reconhecesse essa verdade.
Colocando sua fé em prática, Nabucodonosor exalta o Senhor com um hino
de louvor. É difícil determinar precisamente quando o hino começa e a introdu­
ção a ele termina. Linhas e versos sucessivos estão conectados por conjunções. A
narrativa simplesmente flui, tornando-se um poema, o qual expressa sentimentos
de êxtase apropriados para o momento. O poema poderia começar por então
louvei ou o seu domínio (v. 34). A primeira opção parece mais apropriada para
um hino, que em geral começa com palavras de louvor antes de fornecer a razão
para tal. Se esse for o caso, essa linha poderia ser literalmente traduzida como
agora eu louvo o Altíssimo, e Aquele que vive para sempre eu honro e glorifico.
A sucessão de três termos paralelos - louvei, honrei e glorifiquei - tam­
bém comunica emoção (v. 34). O rei está explodindo de admiração pelo Se­
nhor. O título o Altíssimo (...) que vive para sempre reconhece de modo
apropriado o valor e o caráter daquele a quem ele louva (v. 34). Ele também
confessa a soberania e a eternidade de Deus, os dois temas centrais do hino.
O seu domínio é um domínio eterno captura a essência desses dois temas,
enquanto as demais linhas o repetem e o aperfeiçoam. Essa linha e a próxima
repetem quase literalmente as linhas do hino inicial desse capítulo (veja v. 3).
Os termos domínio e reino são alternados entre as duas versões, contudo, o
que indica que eles devem ser vistos como sinônimos. O governo de Deus não é
limitado como o dos monarcas terrenos. O seu domínio é eterno, durando de
geração em geração. Isso quer dizer que o reino do Senhor é passado, presente
e futuro. Ele jamais está ausente deste mundo. Uma soberania absoluta reque­
reria isso, e é exatamente isso que Deus possui.
143
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

■ 35 Deus exerce livremente a Sua autoridade sobre duas dimensões: os


exércitos dos céus e os habitantes da terra (v. 35). Os exércitos dos céus
(hêl sêmayin ) poderiam referir-se ao sol, à lua e às estrelas, ao exército de an­
jos ou a ambos (SI 33.6; 103.20,21). A última opção parece a mais prová­
vel, uma vez que a expressão é paralela a os habitantes da terra. Dentro de
ambas as dimensões, Deus pode fazer o que os monarcas do mundo antigo
faziam sempre: como lhe agrada. Ninguém, nem mesmo Nabucodonosor,
pode impedir o Senhor de fazer o que lhe apraz. A mão de um rei poderia
sinalizar juízo sobre o culpado, direção para uma nação ou o avanço dos seus
exércitos. O que quer que Deus decida fazer será feito. Nabucodonosor pen­
sava que todos os povos da terra estavam sob a sua autoridade (veja Dn 4.1),
mas na verdade eles estão sob a autoridade do Senhor. Eles são como nada
no sentido de que eles não têm poder para desafiar a Deus. Eles não podem
questionar as suas ações.
■ 36 Quando Nabucodonosor confessa a soberania de Deus, ele tem a sua po­
sição restaurada (v. 36). Como Davi, sua fé e fama andaram lado a lado (vejal
Cr 14.8-17). Ele recuperou toda a sua grandeza anterior e ainda mais. Seus
conselheiros e nobres, que provavelmente continuaram a administrar o reino
na sua ausência, o reestabeleceram como governante do império (Dn 4.36).
Ele descreve a sua restauração em termos similares àqueles usados no versículo
30, onde ele foi condenado por arrogância. Novamente ele faz uso livre do
pronome pessoal na primeira pessoa e fala de glória {yéqãr) e honra (h ã d a r ),
traduzida como “majestade” no versículo 30. As circunstâncias aqui são total­
mente diferentes, contudo, e ele não recebe qualquer condenação. O rei fala
dentro do contexto da fé que ele acaba de confessar. Sua autoridade e a reali­
zação humanas não são negadas nem condenadas, já que elas agora funcionam
apropriadamente debaixo da mão soberana de Deus.
■ 37 0 capítulo termina com mais uma confissão de fé, o que assegura que a
jactância de Nabucodonosor no versículo anterior seja entendida corretamen­
te pelo leitor. Como no versículo 34, uma trilogia de termos expressa a sua
adoração. Louvo e glorifico são usados novamente (v. 37). Exalto é um termo
novo que significa levantar ou promover. Ele é o mesmo termo que Daniel
usa em 5.20 para expressar a arrogância do rei antes da sua doença. O seu uso
enfatiza a transformação que ocorreu em Nabucodonosor. Aquele que havia
exaltado a si mesmo foi transformado em alguém que exaltava a Deus.
Nabucodonosor reconheceu a Deus como o Rei dos céus (v. 37). Essa de­
signação de Deus é encontrada apenas aqui nas Escrituras. Ela afirma a sobera­
nia do Senhor. Ela pode ser comparada ao título “Deus dos céus”, o qual Daniel
144
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

e outros usaram para referir-se ao Deus de Israel durante o período persa (ex.,
Ed 1.2; Ne 1.4; Dn 2.37). Esse título foi usado para se referir ao deus principal
do zoroastrismo, Aúra-Masda. Endereçar-se a Deus como o Rei dos céus é
apropriado nesse contexto porque isso agrega dois dos principais temas desse
capítulo: a realeza e os céus. Ele afirma a perspectiva bíblica de que os céus são
o local próprio para a verdadeira realeza.
O motivo da adoração de Nabucodonosor é duplo: a justiça de Deus e
o Seu poder. Tudo o que ele faz é certo significa a mesma coisa que todos
os seus caminhos são justos (v. 37). Ambas as frases expressam a justiça e a
retidão de Deus, as quais, idealmente falando, todos os reis deveriam possuir.
Em contraste, essas qualidades faltavam a Nabucodonosor, e ele foi julgado
por isso (v. 27). Nessas afirmações, o rei está confessando que o juízo de Deus
contra ele foi justo. Sua arrogância indevida merecia uma repreensão.
O poder de Deus é confirmado mais uma vez na última frase do capítulo:
Ele tem poder para humilhar aqueles que vivem com arrogância (v. 37).
Essas palavras sumarizam de forma concisa a lição moral e teológica ilustrada
pela história. A absoluta soberania de Deus sobre o mundo o capacita a colocar
de joelhos os seus governantes mais poderosos. Esse controle é uma demons­
tração prática da soberania do Senhor dentro da dimensão humana. Essa decla­
ração teológica fundamental está localizada num ponto crítico e significativo
do livro. Trata-se do ponto central da seção aramaica estruturada em forma de
quiasma, a qual vai do capítulo 2 ao 7. Tudo o que lemos até agora nos condu­
ziu até esse ponto, e a partir dele nós seremos conduzidos adiante. Portanto, os
leitores devem prestar muita atenção a essa afirmação. A mensagem de Daniel
se aplica diretamente a uma situação humana comum: tiranos arrogantes. A
realeza de Deus significa que as personalidades mais ameaçadoras e poderosas
deste mundo se prostram diante da soberana vontade divina.
A partir do texto
O capítulo 4 explora a natureza do orgulho humano e a sua interconexão
com o Deus soberano do universo. A história ilustra as admoestações de Pro­
vérbios, que ensinam: “O orgulho do homem o humilha, mas o de espírito hu­
milde obtém honra” (Pv 29.23). A discussão, contudo, não está restrita apenas
aos efeitos do orgulho no indivíduo. Algo muito maior é discutido. O orgulho
humano afeta os projetos espirituais. Como tal, ele recebe a repreensão divina
e fornece uma oportunidade marcante para que os céus exerçam novamente
controle absoluto sobre os negócios terrenos.
145
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A a rrogâ n cia h u m a n a in terro m p e os propósitos d e D eus p a ra a Sua criação. A


árvore espiritual e outros temas do texto evocam imagens da criação de Deus.
O sonho retrata um mundo bem projetado que funciona em perfeita ordem.
Uma árvore exuberante alimenta e protege as criaturas da terra e do céu. Aquela
árvore, que é Nabucodonosor, é dotada de uma grande abundância de recursos
para que possa compartilhá-los com o mundo. Esse é o papel que o Senhor
ordenou a Nabucodonosor no mundo de Deus. Ele recebe a fartura para que
possa suprir as necessidades dos outros. Daniel admoesta o rei a cumprir seu
destino divino praticando a justiça e tendo compaixão dos necessitados (v.
27).
A história revela, contudo, que o orgulho engana o rei e o leva a renunciar
ao seu lugar no universo. No final, ele perde mais do que uma posição num rei­
no. Ele abdica da sua vocação divina entre os homens. Nabucodonosor passa a
acreditar que a sua posição e o seu poder têm um propósito diferente daquele
que Deus planejou. Ele acha que o acúmulo de recursos tem como objetivo a
sua glória e que suas realizações são o resultado do seu enorme poder (v. 30).
O rei entretém falsas noções de autoimportância e autossuficiência. O que é
pior, ele se identifica com as aspirações daqueles que construíram a torre de
Babel (Gn 11) e luta para alcançar um status divino. O orgulho deixa o rei
totalmente desorientado. Como resultado disso, não lhe é mais permitido fun­
cionar no papel que outrora lhe fora divinamente atribuído. Deus não permi­
tirá que a ordem da criação seja inteiramente perturbada.
As razões que levam Deus a reagir à arrogância de Nabucodonosor não são
um ciúme mesquinho e uma relutância em compartilhar a glória. As realiza­
ções, o poder e a influência do rei não intimidam o Senhor. A questão é muito
mais profunda. O problema com o seu orgulho são os efeitos prejudiciais que
ele produz no próprio rei, nos demais homens e em seu relacionamento com
Deus. O orgulho perturba a harmonia da ordem criada de Deus.
Os homens nunca foram projetados para funcionarem como deuses e exer­
cerem uma autonomia absoluta. Eles não podem administrar o seu mundo sozi­
nhos. De acordo com as Escrituras, os homens foram criados para viver em rela­
cionamentos que promovam um apoio mútuo de uns para com os outros. “Não
é bom que o homem esteja só” (Gn 2.18). A ilusão do orgulho é que os homens
podem de algum modo viver desconectados e administrar suas vidas sozinhos. O
orgulho afasta as pessoas umas das outras, e, em particular, as afasta do seu Cria­
dor. Ele as empurra para a independência em vez da interdependência.
O orgulho estava no cerne do primeiro pecado. Adão e Eva foram cativa­
dos por sua própria autoimportância. Eles questionaram a sua necessidade da
146
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

sabedoria de Deus e se aventuraram a se afastar dela. A reação forte do Senhor


naquele caso faz um paralelo com a sua reação a Nabucodonosor. A maldição
que caiu sobre eles os conectou mais à dimensão das criaturas, os animais sel­
vagens e os bois, do que à do Criador (Gn 3.17-19; Dn 4.32). Eles foram re­
baixados para que pudessem descobrir novamente o seu lugar apropriado entre
a criação. O propósito de Deus era que eles fossem “um pouco menor do que os
seres celestiais”, e entretanto dominassem “sobre as obras das [suas] mãos’*(S1
8.5,6). Eles são servos do Criador e foram coroados “de glória e de honra” (v. 5).
D eus a g e contra os orgulhosos. Os eventos que se desenrolaram na vida de
Nabucodonosor não aconteceram por acaso. Sua queda não é o resultado de
circunstâncias aleatórias nem de leis naturais. Esses eventos aconteceram por
iniciativa divina. A mão de Deus se levantou contra o rei e julgou a sua arro­
gância.
Provérbios 16.18 declara que “o orgulho vem antes da destruição; o espí­
rito altivo, antes da queda”. Essa máxima pode sugerir um princípio de conse­
quências naturais. O orgulho pode desencadear circunstâncias que levam ao
desastre. O testemunho de Nabucodonosor, contudo, deixa claro que, nesse
caso, Deus lida pessoalmente com o orgulho. A arrogância do rei provoca o
desprazer do Senhor, o qual inicia uma reação dramática a ela. Ao fazer isso,
Deus demonstra o seu reino soberano entre os homens.
Daniel 4 testifica da absoluta soberania de Deus. No fim das contas, a luta
entre o céu e a terra não é uma competição real. A capacidade de Deus de der­
rubar o monarca mais poderoso do mundo demonstra o Seu total controle
sobre os negócios do mundo. O testemunho do salmista é confirmado: “Vi um
homem ímpio e cruel florescendo como frondosa árvore nativa, mas logo desa­
pareceu e não mais existia; embora eu o procurasse, não pôde ser encontrado”
(SI 37.35,36).
A história concorda com o restante das Escrituras ao afirmar que o orgu­
lho é extremamente ofensivo para Deus. Das diversas coisas que o Senhor de­
testa, o orgulho está próximo ao topo da lista (Pv 8.13; 16.5). Portanto, onde
quer que a arrogância seja encontrada, ela evoca a indignação divina. Uma ad­
vertência frequente dos profetas de Israel é que o Senhor dará fim à arrogância
dos altivos e humilhará o orgulho dos cruéis (Is 13.11).
Ao longo de toda a Bíblia Deus confronta os homens em seu orgulho. Ele
repreende os arrogantes (SI 119.21), remove a sua força (Is 10.12-19), destrói
as suas realizações (Jr 50.30,31), transtorna as suas vidas (Ez 7.24-27), frustra
os seus planos (Hb 2.9-14), os remove de suas posições de poder (Zc 10.11) e
os faz objetos de escárnio (Is 14.4-21). Os arrogantes não podem se apresentar
147
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

diante da presença de Deus (SI 5.5; Sf 3.11). No final, o Senhor vislumbra um


mundo perfeito onde “os olhos do arrogante serão humilhados e o orgulho dos
homens será abatido; somente o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2.11).
D eus ressuscita os h u m ild es p a ra u m a n ova vida. O governo de Deus é tanto
construtivo como destrutivo. Ele pode derribar, mas Ele também levanta. O
Senhor é livre para agir como lhe apraz em todas as questões. Ele dá os reinos
deste mundo quem quer, e põe no poder o mais simples dos homens (Dn
4.17). Esse é o lado positivo da soberania de Deus. Ele não apenas humilha o
orgulhoso como também exalta o humilde.
Nabucodonosor desceu até o nível mais baixo entre os homens. Ele foi ex­
pulso do meio dos homens e tornou-se como os animais selvagens (v. 32). Ele
comeu o que eles comem, viveu como eles vivem e chegou até mesmo a adquirir
sua aparência. Qualquer que tenha sido o diagnóstico preciso da sua doença,
ele é retratado como o mais simples dos homens (v. 17). Num certo sentido,
ele morreu para a sua existência humana. Entretanto, o Senhor o tomou desse
estado e levantou-o para assumir novamente o governo do seu reino. Ele restau­
rou a sua honra e majestade como rei da Babilônia (v. 36). Essa restauração é
um vislumbre do ato mais dramático da soberania de Deus: a ressurreição.
Um dos principais temas da literatura bíblica é a transformação que Deus
opera na vida dos humildes. Esta é a primeira imagem da ressurreição no AT.
1 Samuel 2.8 afirma: Deus “levanta do pó o necessitado e do monte de cinzas
ergue o pobre; ele os faz sentar-se com príncipes e lhes dá lugar de honra”. O
Senhor parece sentir-se atraído por aqueles que estão num estágio humilde da
vida. Isaías 61.1-3 identifica os objetos do ministério do Messias como os po­
bres, os “que estão com o coração quebrantado”, os “cativos”, os “prisioneiros”,
“todos os que andam tristes” e “todos os que choram”. Esses são aqueles a quem
o Messias transformará e dará nova vida.
A ilustração mais dramática do poder divino e transformador da ressur­
reição se dá em Jesus Cristo. É essa “incomparável grandeza do seu poder” que
Paulo ora para que os crentes descubram em suas vidas (Ef 1.19). “Esse poder
ele exerceu em Cristo, ressuscitando-o dos mortos e fazendo-o assentar-se à sua
direita, nas regiões celestiais, muito acima de todo governo e autoridade, poder
e domínio, e de todo nome que se possa mencionar, não apenas nesta era, mas
também na que há de vir” (Ef 1.20,21). Através da morte e da ressurreição de Je­
sus Cristo, Deus demonstrou de uma vez por todas o Seu governo soberano e ab­
soluto sobre este mundo. A história de Nabucodonosor prenuncia essa verdade.
D eus rein a na terra. Como demonstram as afirmações anteriores, Daniel
4 afirma que o Senhor expressa a sua soberania neste mundo. Embora Deus
cuide dos negócios pertinentes às dimensões celestiais, Ele também dirige os
148
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

domínios terrenos. Ele age como lhe agrada, não apenas com os exércitos
dos céus, como também com os habitantes da terra (v. 35). Deus remove
a autoridade do rei mais poderoso da terra e o faz descer abaixo de qualquer
pessoa em seu reino; ele se torna como um animal. Então, o Senhor o restaura
novamente ao seu trono.
O plano de Deus é que a vida deveria ser “na terra como no céu” (Mt 6.10).
Jesus instrui os Seus discípulos a orarem por isso. A justiça e a equidade que ca­
racterizam o Reino de Deus é o modelo para os governantes terrenos. Por isso,
Daniel admoesta Nabucodonosor a governar segundo o propósito de Deus,
praticando a justiça e tendo compaixão dos necessitados (Dn 4. 27). Quan­
do ele não obedece, Deus o julga. A razão que leva Nabucodonosor a cair da
sua posição de poder é que ele não admite que o Altíssimo domina sobre os
reinos dos homens (v. 32). Em suma, ele não reconhece que o Senhor reina na
terra. Uma vez que ele faz isso, contudo, Deus o restaura.
Para aqueles que estão vivendo sob autoridades opressivas, isso é uma boa
notícia. Quer Deus pareça ou não estar no controle no momento, esse capítulo
afirma que Ele na verdade está. Quando Ele determina, Ele tem poder para
reverter os poderes deste mundo, já que Ele “destrona reis e os estabelece” (Dn
2.21). Ele tem poder para levantar os humildes e humilhar os poderosos (l Sm
2.5-8). Portanto, o povo de Deus vive na esperança de que o Senhor se levan­
tará entre as nações e exercerá a Sua autoridade sobre elas. Essa esperança não
é apenas para os “últimos dias”, quando “o monte do templo do Senhor será
estabelecido como o principal” (Is 2.2). Ela também é para o presente. O povo
de Deus sabe que o seu domínio dura de geração em geração (Dn 4.3). Eles
esperam pelo dia na história do homem em que o Senhor causará o “fim” dos
governantes tiranos “no tempo determinado” (Dn 11.27). Essa ideia se tornará
muito mais clara nos próximos capítulos de Daniel. Enquanto isso, o povo de
Deus pode permanecer esperançoso e dizer “entre as nações: ‘O Senhor rei­
na!’”, pois “ele julgará os povos com justiça” (Sl 96.10).

E. A inscrição na parede: o te rc e iro te s te de


sabedoria (5.1-31)

Panorama geral
O capítulo 5 apresenta outra história de um rei humilhado pelo Deus de
Israel. Ele dá sequência ao capítulo 4 e deveria ser lido juntamente com ele.
Trata-se do terceiro e último teste de sabedoria do livro. Como nos capítulos 2
149
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e 4, Daniel e o seu Deus são desafiados a revelar mistérios que ninguém mais é
capaz de decifrar. Como a sabedoria de Deus já foi bem estabelecida nas histó­
rias anteriores, esse elemento não recebe tanta ênfase nessa narrativa. As habi­
lidades de Daniel são enfatizadas, contudo, mas apenas na medida em que elas
servem para exaltar o seu Deus. Nesse capítulo, Daniel assume um papel mais
semelhante ao dos profetas clássicos de Israel. O governo absolutamente livre
de Deus sobre os negócios humanos continua sendo um tema central.
Por trás do texto
O contexto do capítulo 5 pode ser datado muito especificamente. Ele
ocorreu no dia em que Belsazar, rei dos babilônios, foi morto e a cidade da
Babilônia foi tomada pelos persas (v. 30). De acordo com fontes antigas, esse
evento aconteceu em 539 a.C. no 16° dia de Teshrit, que corresponde a 12 de
outubro nos calendários atuais. A queda da Babilónica marcou o fim do domí­
nio babilónico e a ascensão dos persas no Oriente Médio.
Alguns dias antes desse evento significativo, os medos e os persas haviam
derrotado o exército babilónico em Opis. Eles cruzaram o rio Tigre e, sem lu­
tar, tomaram Sippar, localizada a apenas 80km da Babilônia. O fim do império
era iminente, já que as tropas deslocavam-se para tomar a capital.
O Cilindro de Ciro e as C rônicas babilónicas relatam que os persas toma­
ram a cidade da Babilônia sem que nenhuma batalha fosse travada. De acordo
com o historiador grego Heródoto, os persas desviaram o Eufrates, impedindo
que ele corresse pela cidade, e entraram na Babilônia por esse meio. Xenofonte,
outro historiador grego, acrescenta que o rei da Babilônia e o seu séquito foram
mortos durante a tomada da cidade.
É provável que o rei que morreu naquela noite tenha sido Belsazar, como
sugere Daniel 5. Porém, os historiadores antigos não são inteiramente claros
quanto a esse ponto. Ele era o filho mais velho de Nabonido, que oficialmente
foi o último rei da Babilônia e que aparentemente estava fora da cidade quando
esta caiu. O filho de Nabucodonosor, Evil-Merodaque, assumiu o controle do
império depois da morte do seu pai em 562 a.C.. Neriglissar interrompeu o
governo de Evil-Merodaque, contudo, quando o assassinou e tomou o impé­
rio apenas alguns anos mais tarde. O filho de Neriglissar, Labashi-Marduque,
reinou depois da morte do seu pai em 556 a.C., mas apenas por alguns me­
ses. Nabonido e Belsazar lideraram um golpe que os colocou no poder pelos
próximos 17 anos. Aproximadamente em 550 a.C., Nabonido deixou a maior
parte dos negócios do reino nas mãos do seu filho mais velho e se retirou para
150
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Teima, na Arábia, por motivos religiosos. Portanto, Belsazar atuou como rei
sobre o Império Babilónico por vários anos, embora seu pai Nabonido fosse o
governante oficial.
Não se sabe ao certo se Belsazar continuou ou não a atuar como rei até
a queda da Babilônia. Nenhum dos registros das conquistas da Babilônia
menciona Belsazar pelo nome ou o seu destino. De acordo com as C rônicas
d e N abonido, Nabonido retornou à Babilônia antes do festival de Ano Novo
na primavera de 539 a.C.. Naquele outono, ele enfrentou Ciro e foi derrotado
numa batalha em Sippar, fugindo pouco antes dos persas tomarem a Babilônia.
Depois da queda da Babilônia, as C rônicas d e N abonido dizem que os persas
capturaram Nabonido quando ele retornou à capital. Beroso acrescenta que ele
foi deportado para Carmania. Xenofonte registra que “o rei” e todo o seu sé­
quito foram mortos na noite da invasão, mas o nome do rei não é mencionado.
Muitos estudiosos presumem que Belsazar seja o rei que Xenofonte diz ter sido
assassinado, e que Nabonido foi capturado e deportado, conforme indicam as
outras fontes.
De acordo com Heródoto e Xenofonte, um banquete estava acontecendo
quando a Babilônia caiu. Tanto Isaías 21.5 como Jeremias 51.39 parecem pre­
ver que esse seria o contexto da derrota da cidade. A história do capítulo 5 se
dá em torno desse evento, que o texto chama de um grande banquete (v. 1).
O propósito do banquete não é claro. Num prefácio à história, a Septuaginta
(grego antigo) o identifica como “a inauguração do palácio”. Isso talvez sugira
que Belsazar estava celebrando uma adição ao imenso complexo palaciano. A
essa altura, a confiabilidade do antigo grego não pode ser confirmada. O ban­
quete também pode ter sido motivado por uma necessidade de angariar apoio
para o império em decadência. As recentes vitórias dos exércitos persas e os
seus avanços em direção à Babilônia tornavam necessária a solidificação das
lealdades que ainda restavam no reino. Alguns comentaristas conjecturaram
que Belsazar estava simplesmente promovendo uma última festa, estando cien­
te de que o fim estava próximo, ou como uma forma de desviar a atenção da
ruína iminente. Também é possível que esse tenha sido o período costumeiro
de algum banquete anual, e que Belsazar o tenha realizado para não alarmar
abertamente a população da cidade.
Qualquer que tenha sido a razão do banquete, ele se tratava de um evento
típico dos monarcas antigos. Referências a mil dos seus nobres, a presença
das mulheres e concubinas do rei e o consumo liberado de vinho não são
exageradas (v. 1-4). Inúmeras fontes documentam o hábito dos reis orientais
de promover banquetes superabundantes, principalmente entre os persas. Em­
bora a documentação seja escassa com relação aos babilônios, os estudiosos
151
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

presumem que eles seguiam as práticas de outros reinos a esse respeito. Nas
Escrituras hebraicas, Ester 1 fornece uma ilustração do tipo de festivais extra­
vagantes apreciado pela realeza.
O banquete aconteceu no palácio real localizado na sessão norte da Ba­
bilônia. Esse imenso complexo ficava ao longo do rio Eufrates e consistia de
três palácios finamente ornamentados (v. 5). O palácio principal era uma es­
trutura vasta projetada para dar uma impressão opulenta digna de um império
poderoso como a Babilônia. Ele incluía uma sala do trono que media mais de
52m de comprimento por 15m de largura. Esse era o local mais provável para
o banquete de Daniel 5. Algumas das suas paredes eram cobertas por tijolos
esmaltados de azul escuro e outros com reboco de gesso branco (v. 5). Co­
lunas de tijolos esmaltados de amarelo encimadas por capitéis jónicos azuis e
um friso de rosetas brancas resultavam num deslumbrante espetáculo de cores.
Temas de animais, incluindo escorpiões, serpentes, panteras, leões e monstros
mitológicos, pontuavam a decoração do salão.
Uma questão importante relativa ao contexto histórico é levantada quan­
do o último versículo do capitulo relata que Dario, o medo, apoderou-se do
reino (v. 31). Fontes antigas descrevendo a captura da Babilônia indicam que
Ciro, o Grande, tomou a cidade por meio do seu general Gubaru. Nenhuma
menção é feita a uma pessoa chamada Dario, o medo. Uma discussão completa
sobre essa questão foi reservada para o capítulo 6 (veja a seção Por trás do texto
daquele capítulo). O resultado dessa discussão não influencia de modo signifi­
cativo a interpretação desse capítulo.
O capítulo 5 contém diversas conexões literárias com outras histórias de
Daniel. Como um teste de sabedoria dentro do contexto da corte real, ele é se­
melhante aos capítulos 2 e 4 de diversas formas, mas também difere em certos
aspectos. Em todos os três Capítulos, a trama se desenvolve em torno de um
rei que recebe uma mensagem agourenta dos deuses, a qual os seus sábios não
conseguem interpretar. Nos capítulos 2 e 4, a mensagem é dada por meio de
um sonho, enquanto no capítulo 5 ela vem por intermédio de uma mão que
escreve palavras numa parede. Daniel, o herói de Deus, aparece em cada uma
dessas instâncias para solucionar o dilema, fornecendo uma interpretação. Nos
capítulos 2 e 5, ele é devidamente promovido por esse serviço, mas no capítulo
4 nenhuma promoção é mencionada. Os capítulos 4 e 5 citam o cumprimento
da interpretação de Daniel, mas o mesmo não ocorre no capítulo 2. A maior
parte das características literárias é típica de um gênero conhecido em todo o
mundo antigo. Os estudiosos às vezes chamam isso de “competição entre os
sábios da corte”. Essa forma é refletida nas histórias de José (Gn 41).
152
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

A história de Daniel 5 é claramente planejada como uma sequência ao ca­


pítulo 4. O entendimento completo do impacto do capítulo 5, aliás, depende
do conhecimento do conteúdo do capítulo 4. O tema central de um rei babi­
lônio humilhado pelo Deus de Israel obviamente sugere esse relacionamento
próximo. Entretanto, muitas outras características nas duas histórias garantem
que a conexão não passe despercebida ao leitor. A ligação mais explícita está em
5.20,21, onde Daniel sumariza a experiência de Nabucodonosor no capítulo 4.
Isso deixa claro o contraste marcante entre Nabucodonosor e Belsazar, o qual
é a chave para desvendar a mensagem no capítulo 5. A comparação entre os
reis é referenciada de diversas formas ao longo do capítulo 5. Além disso, di­
versas outras características verbais criam conexões entre os dois capítulos. Por
exemplo, descrições de Daniel são similares nos dois capítulos. Ele é descrito
como alguém “que possui o espírito dos santos deuses” (4.8,9,18; 5.11,14) e o
“chefe dos magos” (4.9; 5.11). Essas expressões são encontradas apenas nesses
capítulos. Portanto, esses dois capítulos formam uma parelha que deve ser lida
em conjunto.
Como foi observado antes (veja Por trás do texto no capítulo 2), os capítu­
los 4 e 5 formam a parelha central da seção aramaica do livro. Essa seção (cap.
2-7) segue uma estrutura quiásmica que tem o seu fulcro nesses dois capítulos.
O objetivo dessa estrutura é focalizar a atenção dos leitores no tema da capa­
cidade de Deus para humilhar os monarcas terrenos e controlar os negócios
humanos. Essa é a evidência mais tangível da soberania do Senhor num mundo
de poderes estrangeiros opressivos.
O relacionamento entre os capítulos 3 e 5 é mais sutil, mas não menos
importante. Ambas as histórias começam abruptamente de formas muito si­
milares. Sem qualquer referência ao contexto temporal, elas começam com o
rei Nabucodonosor fez e o rei Belsazar deu (3.1; 5.1). Em cada um desses
casos, o rei fez algo espetacular, com os cidadãos mais importantes reunidos,
o rei ordenando algo, e a ordem sendo cumprida. No final, ambos os grupos
terminam adorando ídolos. A repetição das listas daqueles que atenderam à
convocação do rei também é uma característica de ambas as introduções. Esses
paralelos sugerem que o narrador do capítulo 5 quer evocar uma atmosfera si­
milar àquela do capítulo 3. As práticas pretensiosas dos pagãos, que foram tão
bem esboçadas no capítulo 3, são uma parte integral do contexto do cap. 5. Ao
relembrar a história do capítulo 3, o narrador do capítulo 5 cria esse ambiente
com uma maior economia de palavras. O efeito do paralelismo também esta­
belece a comparação entre os dois reis da história. Na medida em que a história
do capítulo 5 se desenrola, a ligação entre Nabucodonosor e Belsazar se torna
um componente significativo da mensagem.
153
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O capítulo 5 também tem uma relação particular com os capítulos 2,7 e 8.


Os capítulos 2 e 7 contêm visões que projetam o eventual fim do Império Babi­
lónico. O cumprimento desse aspecto dessas visões ocorre em 5.30,31, quando
Belsazar é morto e o reino é tomado pelos persas. As visões nos capítulos 7 e
8 fazem desses os únicos outros dois capítulos no livro conectados ao reino de
Belsazar. Elas são datadas especificamente do primeiro e do terceiro ano do
seu reinado, que correspondem aproximadamente a 550 e 548 a.C. (7.1; 8.1).
Como foi observado anteriormente, o capítulo 5 acontece em 539 a.C..
Três imagens significativas embutidas nessa história são dignas de nota
porque servem para enfatizar seus efeitos dramáticos para os públicos antigos.
As taças de ouro que tinham sido tomadas do templo de Deus em Jerusa­
lém representavam uma conexão importante com o passado sagrado de Israel
(v. 3). Quando o templo de Salomão foi destruído, essas taças e outros uten­
sílios sagrados forneceram evidências tangíveis dessa estrutura significativa, a
qual havia sido um símbolo seminal do relacionamento pactuai de Deus com
Israel. As Escrituras hebraicas narram cuidadosamente os planos de Davi para
os utensílios do templo (1 Cr 28.13), a maneira como eles foram criados por
Salomão (1 Rs 7.48-51), tomados por Nabucodonosor (2 Rs 24.13; 25.14; 2
Cr 36.7,10,18; Dn 1.2) e o seu retorno com os exilados (Ed 1.7; 5.14,15; 6.5).
Beber dessas taças, portanto, retrata uma blasfêmia ostensiva do Deus de Israel.
Profanar os utensílios sagrados não era uma questão frívola para nenhum gru­
po de pessoas no mundo antigo. Poucos indivíduos se arriscariam a provocar a
ira dos céus dessa maneira.
A imagem mais assombrosa do texto é a mão humana sem corpo cujos de­
dos escrevem na parede (Dn 5.5). A descrição no texto sugere que apenas uma
mão apareceu, sem um braço ou qualquer outra parte do corpo. Sua aparência
repentina e fantasmagórica não apenas evoca pavor, como também expressa
uma imagem de derrota e juízo. Uma prática militar típica da época incluía
cortar as mãos das tropas inimigas mortas numa batalha. Elas eram exibidas
como troféus de guerra. A mão também é um símbolo do poder de Deus neste
mundo. Os dedos que escrevem lembram imagens da mão do Senhor traba­
lhando na criação e no Êxodo (SI 8.3; Êx7; 31.6; Dn 9.15). No livro de Daniel,
a mão de Deus dirige a história do homem. Ela é indiretamente referenciada
quando reinos são destruídos, “mas não pelo poder dos homens” (2.45; 8.25).
Referências a balança e pesos também têm um significado especial no
texto (5.26-28). As palavras escritas na parede, mene, tequel e parsim, eram
nomes de pesos usados em balanças e, por extensão, de unidades monetárias.
Esses termos evocam imagens de mercadorias e justiça. A balança era um com-
154
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

ponente comum nos mercados, onde os mercadores contavam e pesavam os


seus produtos para assegurar uma permuta justa. Portanto, as balanças estavam
associadas a fazer o que é justo e correto. Diz-se que Diké, a deusa grega da
justiça moral, trazia uma balança nas mãos. Os egípcios falavam das suas vidas
sendo pesadas no além. As Escrituras hebraicas retratam o Senhor pesando os
corações das pessoas (Pv 16.2; 21.2; 24.12). Além disso, balanças e pesos ser­
vem para destacar o elemento da providência na história, já que a imagem da
balança era particularmente apropriada para anunciar o juízo sobre a Babilô­
nia. De acordo com o calendário zodíaco, a Babilônia caiu no mês de Libra (23
de setembro - 22 de outubro). Os astrólogos antigos representavam o alinha­
mento das estrelas de libra com uma escala e pesos. A conexão desse signo astral
com a queda da Babilônia ressalta o mistério divino por trás desses eventos e
acentua o drama da história.

As versões grega e hebraica de Daniel 5


Como no capítulo 4, o grego a ntig o (Septuaginta) e a versão Masso-
rética do capítulo 5 diferem consideravelm ente. Em geral, a versão grega
é m ais curta. Ela o m ite diversos detalhes encontrados no aram aico, tais
com o a descrição da rainha fe ita por Daniel nos versículos 11,12 e a re­
preensão dada por Daniel a Belsazar nos versículos 18-22. Entretanto, o
grego ta m b é m acrescenta alguns detalhes m enores. Esses incluem um
prefácio, o qual sum ariza a história. Em am bas as versões, a ideia p rin ­
cipal da história perm anece a m esm a, porém com a ocorrência de sutis
m udanças de ênfase.

O capítulo 5 relata a história de um rei em crise por causa de um comunica­


do divino (v. 1-9), o qual encontra a esperança de obter uma resposta por meio
de Daniel (v. 10-16). Daniel não decepciona. Ele entrega a mensagem de Deus
ao rei (v. 17-28), a qual é imediatamente cumprida (v. 29-31). Uma estrutura
quiásmica reveste a história e serve para enfatizar os contrastes existentes nela.
O rei exaltado que desonra os judeus nos primeiros versículos (v. 1-4) se torna
um rei humilhado que honra um judeu nos últimos versículos (v. 29-31). A
inscrição que os sábios babilônios não puderam entender (v. 5-9) é claramente
interpretada pelo sábio de Deus no final (v. 25-28). A recomendação que a
rainha fez de Daniel (v. 10-12) é equilibrada pela repreensão que Daniel faz
ao rei (v. 18-24). No centro está o pedido do rei para que Daniel interprete o
155
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sonho (v. 13-17). Esse discurso central propõe o desafio do capítulo ao reiterar
a competência de Daniel juntamente à incompetência dos sábios babilônios.
No texto

1. A crise do rei (5.1-9)


Os primeiros nove versículos estabelecem um dilema que demanda uma
solução. No meio de uma festa pretensiosa (v. 1-4), o rei recebe uma mensagem
agourenta dos céus (v. 5,6). Nenhum dos sábios do rei, contudo, é capaz de
explicar o significado do comunicado divino (v. 7-9).
H 1-4 O rei Belsazar aparece pela primeira vez no livro de Daniel sem a hon­
ra de uma introdução apropriada (v. 1). Isso o beneficia, já que ele é um insigni­
ficante pretendente ao trono. Historicamente, ele era filho do verdadeiro rei do
Império Babilónico, Nabonido. Ele atuou como governante durante a ausência
do seu pai da cidade. O narrador do capítulo 5 devia saber disso, já que parece
claro que ele pretendia caracterizar Belsazar como um governante de segunda
categoria. Ao longo da história, ele esboça uma imagem de Belsazar como uma
imitação de “Nabucodonosor, seu pai” (v. 2 ARC). Com base nas evidências
que temos até o presente, não se pode determinar se “pai” se referia a um víncu­
lo sanguíneo verdadeiro, como o de “avô”, ou simplesmente a um predecessor.
Talvez a mãe de Belsazar fosse filha de Nabucodonosor, mas isso não pode ser
confirmado.
Seja qual for o caso, a história deixa claro que a comparação entre Belsazar
e o grande rei Nabucodonosor é desfavorável ao primeiro. Em vista do teste­
munho de Nabucodonosor no capítulo 4, o contraste é muito maior. Os versí­
culos introdutórios da história ressaltam sutilmente que Belsazar tenta elevar o
próprio status usando taças que Nabucodonosor havia obtido por meio de suas
conquistas. Talvez ele estivesse tentando superar Nabucodonosor ao trivializar
as realizações deste. Qualquer que tenha sido a sua motivação, seu ato arrogan­
te lhe custou caro.
O contexto do drama dessa história é um grande banquete (v. 1). Embora
banquetes assim fossem comuns nas cortes orientais antigas, a descrição que
o narrador faz desse evento serve para expressar uma atmosfera de pretensão
arrogante. Diversos paralelos com o capítulo 3 evocam o ar pomposo daquela
história (veja Por trás do texto, anteriormente). A lista de convidados, que
é repetida duas vezes, incluía mil dos seus nobres, além das mulheres e
concubinas do rei (v. 1-3). Além de dar uma imagem de opulência, essa lista
156
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

enfatiza a natureza pública do evento, assegurando que o agouro incomum não


foi uma mera ilusão.
A ênfase no consumo de vinho aumenta o retrato da frivolidade. O texto
menciona o verbo beber cinco vezes em quatro versículos (v. 1-4). Entretanto, a
embriaguez não parece ser a questão. Enquanto Belsazar bebia talvez se refira
simplesmente ao momento da refeição em que o vinho estava sendo servido, e
não ao fato de que ele estava inebriado (v. 2). A razão para as diversas referên­
cias à bebida é dupla. Elas indicam que todos os elementos estavam preparados
para um grande acontecimento e também focam a atenção no ato decisivo de
pretensão, bebendo das taças do templo.
O clímax da arrogância se dá quando o rei viola as taças de ouro que
tinham sido tomadas do templo de Deus em Jerusalém (v. 3). Essas taças
eram parte do espólio que Nabucodonosor obtivera ao subjugar Jerusalém. De
acordo com Daniel 1.2, Nabucodonosor pelo menos havia tratado esses uten­
sílios especiais com respeito, colocando-os num espaço sagrado, o templo do
seu deus. Belsazar, contudo, demonstra o seu desprezo pelo Deus de Israel e
também por Nabucodonosor ao beber delas. Ele agrava a ofensa ao incluí-las
na adoração dos deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira e
de pedra (v. 4). Talvez as taças tenham sido usadas para oferecer libações ritu­
ais a esses deuses. A longa lista de materiais usados para a confecção de ídolos
sugere que Belsazar está tentando impressionar seus nobres com o seu poder.
[A prática de] colecionar os ídolos dos povos conquistados era uma forma de
demonstrar força. Há certa ironia no fato de que tanto as taças como os deuses
são feitos de ouro e de prata.
H 5 O evento ostentoso chega a um fim repentino com o surgimento de um
prenúncio agourento. Uma mão humana sem corpo se materializa e seus de­
dos escrevem palavras na parede (v. 5). O que a mão escreve não é revelado a
essa altura. Imagens do dedo de Deus inscrevendo tábuas de pedra no monte
Sinai (Êx 31.8) ou criando os céus (SI 8.3) talvez venham à mente do público
judaico. A mão de Deus simboliza o poder criativo e sustentador do Senhor
que opera neste mundo.
A natureza pública dessa visão é enfatizada novamente por meio da
referência a detalhes tais como o reboco da parede, da parte mais iluminada
do palácio real (v. 5). A inscrição no reboco feito de gesso branco no lugar mais
iluminado do palácio garantiria uma visibilidade clara por parte de todos os
convidados. A menção ao palácio real fornece uma localização para o banquete,
mas também, o que é mais importante, identifica uma audiência significativa
para o agouro. Para fornecer mais clareza e permitir que o leitor sinta o impacto
157
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

dessa visão, o narrador nota que o rei observou a mão enquanto ela escrevia
(v. 5).
H 6 A reação do rei à aparição é previsível, mas é possível que ela também en­
fatize o seu caráter inferior. Ficar pálido, assustado, com os joelhos batendo
e as pernas bambas pode ser esperado (v. 6). Outros indivíduos que tiveram
visões experimentaram alguns desses sintomas (Is 21.3,4; Ez 21.6,7; Dn 2.1;
4.5; 10.8). A listagem de todos esses ao mesmo tempo, contudo, sugere uma
fraqueza de caráter. A frase suas pernas vacilaram significa literalmente “suas
juntas ficaram frouxas”. Alguns comentaristas sugerem que isso poderia indicar
que ele perdeu o controle de suas funções físicas. A frase seu rosto ficou páli­
do significa literalmente “seu esplendo&mudou”. A palavra “esplendor” {ziw) é
usada para descrever o retorno de Nabucodonosor ao poder em 4.36. A perda
do esplendor de Belsazar retrata o seu verdadeiro status diante de Deus e tam­
bém prenuncia a mensagem definitiva da inscrição na parede. Isso será referen­
ciado novamente em 5.9 e 10.
H 7 Desesperado, o rei mandou chamar os sábios para que viessem e inter­
pretassem a mensagem incomum (v. 7). O texto em aramaico também diz que
ele fez isso “gritando”. Isso sugere gritos de pânico vindos de um homem que
está perdendo a compostura. A lista de conselheiros é semelhante àquelas men­
cionadas nas histórias anteriores (2.2,27; 4.7). A corte real retinha os encan­
tadores, os astrólogos e os adivinhos para ocasiões como essas. O seu papel
era interpretar comunicados dos deuses e fornecer encantamentos para desviar
seus efeitos maléficos.
As recompensas oferecidas para aquele que interpretasse esse agouro indi­
cam o grau de importância que o rei atribuiu à mensagem. Belsazar ofereceu
presentes dignos da realeza (Gn 41.42; Et 8.15), que incluíam um manto ver­
melho e uma corrente de ouro (Dn 5.7). Esses presentes seriam apropriados a
alguém que estivesse sendo promovido à posição de terceiro em importância
no governo do reino. O rei parece se referir a uma posição de autoridade logo
abaixo do seu pai e de si próprio. O termo terceiro (ta ltí ), contudo, talvez se
refira a uma posição de alto escalão, tal como um atendente pessoal do rei,
similarmente a um termo parecido a esse em acádio. Nas Escrituras hebraicas,
o termo “terceiro” (satís ) também pode ser traduzido dessa forma em determi­
nados contextos (2 Rs 7.2,17,19; 9.25; 15.25).
H 8 Contudo, nenhum dos sábios babilónicos pôde coletar a recompensa.
Eles não conseguiram ler a inscrição nem dizer ao rei o seu significado (v.
8). Quando Daniel lê a inscrição mais tarde no versículo 25, as palavras estão
claramente em aramaico. Por que os babilônios não puderam ao menos ler as
158
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

palavras é um mistério, aumentando o contraste entre eles e Daniel. Talvez eles


pudessem decifrar as palavras mas não conseguissem determinar o seu signifi­
cado. Talvez eles tenham negado conseguir ler as palavras porque não podiam
entender o seu significado.
I 9 A incompetência desses especialistas deixa Belsazar ainda mais perturba­
do. Como no versículo 6, ele fica aterrorizado e pálido, mas dessa vez o texto
emprega os verbos no particípio para expressar a intensificação do seu estado
de assombro (v. 9). Além disso, seus nobres ficaram alarmados. Eles também
não tinham respostas para o quebra-cabeça. A ineptidão de todos os recursos
de Belsazar produz um retrato de absoluta desesperança. Entretanto, há um
recurso que ainda não foi considerado.

2. A esperança do rei (5.10-16)


Com o rei e os seus oficiais completamente impotentes para entender o
comunicado divino, a esperança de uma resposta chega por meio de uma fonte
inesperada. A rainha entra na história pela primeira vez, trazendo palavras de
promessa. O capítulo 5 é uma história de aparições súbitas. Um rei, uma mão
sem corpo, e agora a rainha - todos aparecem sem introdução. Isso estabelece
um contraste com o herói, Daniel, que entrará na história apenas depois de
um suspense dramático feito pela rainha. Isso também prepara o leitor para o
final da história, que termina com a morte súbita de Belsazar “naquela mesma
noite” (v. 30).
H 10 A rainha provavelmente se tratava da rainha mãe, já que as esposas de
Belsazar já estavam presentes no banquete (v. 10). Essas mulheres eram figuras
poderosas nas cortes reais nos tempos antigos. Ela provavelmente era esposa de
Nabonido, mas uma das esposas de Nabucodonosor não está fora de cogitação.
Josefo achava que ela era a avó de Belsazar. Em seu discurso, ela recomenda
Daniel ao rei e também realça o contraste entre Belsazar e Nabucodonosor.
O fato de que a rainha estra na sala do banquete sem permissão e dá
ordens ao rei sugere seu status elevado (v. 10). Isso também revela a falta de
autoridade de Belsazar. Ninguém entrava na corte de um monarca antigo ou
aconselhava o rei sem ser convidado (Et 4.11). Ironicamente ela se dirige ao rei
de forma tipicamente respeitosa: O rei, vive para sempre! A ironia é que ele
não passaria daquela “mesma noite” (Dn 5.30). Ela também o instrui a parar de
demonstrar a fraqueza do seu caráter. Ela lhe diz: Não fiques assustado nem
tão pálido! (v. 10). Ambas as condições descrevem Belsazar nos versículos 6 e
159
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

9. Assustado é o mesmo termo traduzido como “aterrorizado” no versículo 9.


H 11 A esperança do rei está em um homem dentro do seu próprio reino
que possui habilidades excepcionais. Para obter um efeito mais dramático, o
nome desse homem não é revelado até mais tarde. Primeiro os seus atributos
e talentos são listados para impressionar o rei e aumentar o interesse do leitor.
Ele possuía o espírito dos santos deuses (v. 11). Essa é exatamente a frase
que Nabucodonosor usou ao descrever Daniel em 4.8,9 e 18. Ela enfatiza a
conexão divina de Daniel, que foi muito bem esclarecida no capítulo 2. Daniel
não trabalha como os outros sábios. A sua habilidade de interpretar depende
de Deus, e não do talento humano.
Deus era a fonte dos dons incomuns de Daniel, que (...) era um ilumi­
nado e tinha inteligência e sabedoria como a dos deuses (5.11). De acordo
com as Escrituras hebraicas, esses atributos são buscados por indivíduos ver­
dadeiramente sábios e só podem ser adquiridos por aqueles que reverenciam a
Deus (Pv 1.1-7). Iluminado (n a h irü ) refere-se ao recebimento da iluminação
divina quanto a alguma questão. Inteligência (sãk lêtãn â ) inclui a fala pruden­
te e competência nas ações e no intelecto. Sabedoria é aplicar a verdade certa
no tempo certo nas circunstâncias certas. Essa pessoa se distinguia tanto nessas
áreas que Nabucodonosor (...) o nomeou chefe dos magos (Dn 5.11). O
mesmo título também é usado para designar Daniel em 4.9.
■ 12 A essa altura, a rainha anuncia dramaticamente quem é esse homem.
Ele é Daniel, o herói das três histórias anteriores do livro (v. 12). Como se
o seu currículo não fosse impressionante o suficiente, a rainha continua com
uma lista de mais três atributos e termina com uma trilogia de talentos. Os
dons de Daniel também incluíam “um espírito excelente, e ciência, e enten­
dimento” (v. 12 ARC). A expressão “espírito excelente” (rüah yattirâ) aponta
novamente para as suas conexões divinas. “Ciência” { m anda) poderia referir-se
a possuir informações sobre diversas coisas, mas ela também inclui uma consci­
ência ganha por meio da experiência pessoal. “Entendimento” (sãk lêtãnâ ) é o
mesmo termo traduzido como “inteligência” na lista anterior do versículo 11.
Quando aplicados a situações específicas, esses atributos produziam talentos
altamente invejados pelos sábios de outrora. Esses eram a capacidade de inter­
pretar sonhos e resolver enigmas e mistérios (v. 12). Daniel já demonstrou o
seu domínio dos sonhos nos capítulos 2 e 4. A habilidade de explicar enigmas
será usada no atual capítulo. O talento para resolver enigmas e mistérios traz
consigo uma ironia por causa das suas conexões verbais com a condição de
Belsazar. A frase resolver enigmas e mistérios significa literalmente “desatar
nós” {m êsãrê ’ qitrin). O versículo 6 falou da fraqueza nas pernas do rei, o que
160
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

significa mais literalmente “os nós dos seus lombos estão soltos” (qitrê harsêh
m istãrayin ). Quando Daniel “desatar os nós” da inscrição na parede, ele prova­
velmente soltará ainda mais os nós do corpo do rei.
O efeito do discurso da rainha é introduzir Daniel à história. Ela também
serve para contrastar Belsazar e Nabucodonosor novamente. A rainha enfatiza
a expressão “teu pai” três vezes no versículo 11 (ARC). Em uma dessas vezes,
ela ocorre na forma enfática “teu pai, o rei”. A questão é que Nabucodonosor
conhecia a importância de Daniel, mas Belsazar, não. Um grande rei de ver­
dade identifica os recursos valiosos no seu reino. Belsazar não havia feito isso.
Por que ele não o fizera é uma questão para especulação. Alguns estudiosos
sugerem que Daniel era velho demais para se envolver. Ele provavelmente tinha
mais de 80 anos a essa altura. Entretanto, o seu papel no Império Persa que
se segue a esses eventos não apoia essa ideia (6.3). Parece mais provável que
Belsazar havia rompido relações com Daniel de propósito. Talvez isso tenha
ocorrido por causa das conexões de Daniel com um regime anterior ou porque
Belsazar preferia seus próprios conselheiros.
A rainha termina o seu discurso exortando o rei a agir e expressando sua
confiança em Daniel mais uma vez. Ela recomenda que o rei mande chamar
Daniel (v. 12). De acordo com a rainha, ele é o único que pode resolver o pro­
blema do rei revelando-lhe o significado da escrita.
1 13 Influenciado pelo discurso da rainha, Belsazar convida Daniel a compa­
recer à corte. Suas perguntas e declarações, contudo, revelam que ele não estava
inteiramente convencido das habilidades de Daniel. Ele permanece arrogante
e age com menosprezo com relação a Daniel. O tom genérico do seu discurso
é cético. Isso contrasta com a conversa de Nabucodonosor com Daniel em 4.9-
18. Nabucodonosor demonstrou respeito e expressou uma grande confiança
no homem de Deus.
Belsazar começa com uma pergunta destinada a colocar Daniel no seu
devido lugar. Ele o identifica como um dos exilados que meu pai, o rei,
trouxe de Judá (v. 13). A referência a Daniel como um cativo de guerra foi
premeditada para rebaixar o sta tus de Daniel ante a Belsazar. Para o público
judaico, contudo, as mesmas palavras servem para elevar o seu status. Ele é
um sobrevivente, e não apenas um cativo. Ele é um homem de Judá, e não um
homem da Babilônia. Os detalhes dessa descrição de Daniel traem o fato de
que o rei conhecia Daniel. A rainha não havia mencionado que Daniel era
um exilado.
■ 14-16 O rei expressa o seu ceticismo com a expressão eu soube, a qual ele

161
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

repete duas vezes (v. 14 e 16). O que ele sabia era o que a rainha acabara de dizer
sobre Daniel: ele tem uma conexão especial com o céu e possui as qualidades e
talentos de um sábio extraordinário. Enquanto ele repete as credenciais de Da­
niel, Belsazar também reconhece que os seus sábios não conseguiram explicar
o significado da inscrição na parede (v. 15). Inconscientemente, ele enfatiza
o contraste entre os seus conselheiros e Daniel. Então, ele oferece a Daniel as
mesmas recompensas e a mesma posição real pela interpretação bem-sucedida
da inscrição. Entretanto, a última frase que ele diz a Daniel revela dúvidas sobre
as possibilidades de sucesso. Ele diz se você puder ler (v. 16). Essa incerteza
estabelece um contraste marcante com as palavras de Nabucodonosor a Daniel
em 4.18: pois o espírito dos santos deuses está em você.
Como seção central da estrutura quiásmica da história, esse discurso tem
uma importante função: ele propõe um desafio à sabedoria de Daniel e do seu
Deus. O próprio discurso é organizado de forma quiásmica. A referência ao
status inferior de Daniel no versículo 13 é equilibrada pela alusão à possibi­
lidade de uma posição elevada no versículo 16. As menções que o rei faz das
credenciais de Daniel nos versículos 14 e 16 também equilibram uma a outra.
O centro do quiasma é o versículo 15, que enfatiza a inabilidade dos sábios
babilónicos. Portanto, o discurso enfoca a competição da sabedoria. Como a
história revela, apenas aquele em quem habita “o espírito dos deuses” possui
sabedoria para interpretar corretamente as mensagens divinas.

3. A mensagem de Deus para o rei (5.17-28)


Nesse ponto da narrativa, Daniel toma o controle. O seu discurso é o mais
longo do capítulo. Ele começa recusando os presentes (v. 17), prossegue com uma
repreensão do rei (v. 18-24) e termina lendo a inscrição na parede (v. 25-28).
O tom da fala de Daniel é diferente daquelas que ele havia feito anterior­
mente diante de um monarca. Ele dispensa a introdução polida e faz um dis­
curso profético sobre o rei antes de dar a interpretação do agouro. Mais uma
vez, o contraste com o capítulo 4 é significativo. A reação de Daniel a Na­
bucodonosor foi muito respeitosa, até mesmo um tanto protetiva. Ele ficou
extremamente perturbado pela mensagem que deveria entregar e quase se des­
culpou por ser o mensageiro de novas tão pouco promissoras. “Meu senhor,
quem dera o sonho só se aplicasse aos teus inimigos e o seu significado somente
aos teus adversários!”, disse ele (4.19).
H 17 Daniel reage ao discurso depreciativo do rei com convicção e autorida-
162
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

de. Em defesa da sua integridade, Daniel recusa os presentes do rei e o acon­


selha a dar as tuas recompensas a algum outro (v. 17). Essas palavras sem
dúvida ofenderam o rei. Elas também esclarecem as motivações de Daniel e
confirmam o seu compromisso com os propósitos maiores da vida. Como ou­
tros profetas genuínos, ele não podia ser comprado (Nm 22.18; 2 Rs 5.16,17).
Ele tampouco se permitiria identificar-se muito com o regime de Belsazar. Ele
entendia que o seu papel era ler a inscrição para o rei e lhe dizer o seu signi­
ficado (v. 17). Foi por essa razão que ele concordou em estar diante do rei, e
ele o faria.
Antes de explicar a inscrição na parede, contudo, Daniel explica o seu mo­
tivo. Nessa seção ele soa mais como um profeta de Israel do que como um sábio
(veja, por exemplo, 1 Sm 12; 1 Rs 21 e Jr 38). O seu discurso inclui uma crítica
longa e severa (v. 18-23) antes de pronunciar um breve juízo (v. 24).
H 18 Daniel começa com uma lição de história tirada da vida de Nabucodo-
nosor, aquele a quem Belsazar vem sendo sutilmente comparado ao longo de
toda a narrativa. Essa lição sumariza sucintamente a história do cap. 4, usando
até mesmo a linguagem específica daquela história. Daniel começa esse discur­
so com as mesmas palavras que havia usado antes ao falar com Nabucodonosor
(2.37; 4.22). Ele diz literalmente: Ó rei (v. 18). Nos discursos anteriores, ele
descreve a glória que Deus havia dado ao rei. E de se esperar que ele faça o
mesmo novamente. Porém, dessa vez, Daniel fala da grandeza que Deus deu
a Nabucodonosor, e não a Belsazar. Nabucodonosor fora divinamente dotado
de soberania, grandeza, glória e majestade, assim como a grande e exube­
rante árvore do sonho no capítulo 4 (5.18; veja 4.22). Deus (...) deu a ele esse
papel no universo. O seu poder era um dom de Deus. Daniel se refere a Deus
como o Deus Altíssimo. Isso também foi feito ao longo do cap. 4, e serve para
enfatizar a soberania de Deus sobre a Sua criação, e particularmente sobre Na­
bucodonosor.
I 19 Homens de todas as nações, povos e línguas estavam debaixo da au­
toridade de Nabucodonosor, assim como as aves e os animais se reuniam sob
os galhos de uma grande árvore (v. 19; veja 4.21). O alcance da sua soberania
significava que ele tinha a habilidade de afetar poderosamente as vidas das pes­
soas. Ele podia matar, poupar, promover ou humilhar como quisesse (v. 19).
Essa descrição do poder abrangente de Nabucodonosor diferia consideravel­
mente da influência limitada de Belsazar. Ele também descreve o tipo de poder
que se pode esperar apenas de Deus (SI 75.7,8). No entanto, Deus sobrepuja
até mesmo aquele que exerce uma soberania tão dominante sobre os homens.
1 2 0 O esplendor de Nabucodonosor lhe foi arrancado, contudo, quando
163
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

o seu coração se tornou arrogante e endurecido por causa do orgulho (v.


20). Uma tradução literal dessa frase seria quando o seu coração se exaltou e o
seu espírito se endureceu. De acordo com 4.28-30, isso ocorreu quando ele se
gloriou das suas realizações na Babilônia, como se elas fossem conquistas suas
e para a sua glória. A sua opinião de si mesmo se exaltou além do que deveria.
Ele ficou endurecido quanto à realidade da graça de Deus em sua vida. O pro­
blema de Nabucodonosor foi uma questão da pessoa interior, do seu coração
e do seu espírito.
H 2 1 Como consequência disso, Nabucodonosor foi expulso do meio dos
homens e viveu entre os animais (v. 21). Essa descrição do estado do rei é quase
idêntica à da história do capítulo 4 (veja 4.25 e 33). A principal diferença é
uma referência aos jumentos selvagens, o que acentua ainda mais a sua condi­
ção degradada. O rei continuou dessa forma até reconhecer que o Deus Al­
tíssimo domina sobre os reinos dos homens e coloca no poder a quem ele
quer (v. 21). Essa é precisamente a condição descrita em 4.17, 25 e 32. Ele teve
que confessar que Deus reina livremente sobre os negócios dos homens, até
mesmo dentro do Império Babilónico.
fl 22 Dep ois de relatar a história de Nabucodonosor, Daniel se volta para a
acusação a Belsazar. Ele observa que Belsazar não aprendeu a lição aprendida
por Nabucodonosor. A história de Nabucodonosor não havia ensinado nada
a Belsazar, o que é um dos principais temas da narrativa do cap. 5. O seu orgu­
lho era de um tipo diferente daquele demonstrado por Nabucodonosor, já que
ele se manifestava por intermédio de um desprezo desdenhoso pela verdade.
Belsazar se distanciou de Nabucodonosor por sua própria conta e risco. Ele
poderia ter-se beneficiado da experiência de Nabucodonosor, mas em vez disso
ele se determinou a superá-lo.
Daniel atribui plena responsabilidade a Belsazar pelos seus atos, já que ele
sabia de tudo isso, mas preferiu não permitir que esse conhecimento afetasse o
seu comportamento (v. 22). Ele certamente tinha idade suficiente para ter tes­
temunhado os eventos do capítulo 4, já que ele passou a servir como alto oficial
no império apenas dois anos depois da morte de Nabucodonosor.
H 2 3 Daniel afirma que Belsazar decidiu se exaltar acima do Senhor dos céus
(v. 23). O termo se exaltar {rum) é o mesmo usado para descrever o orgulho
de Nabucodonosor no versículo 20, o que levou à sua humilhação. Trata-se
de uma postura de provocação arrogante. Daniel se refere a Deus como o Se­
nhor dos céus nesse contexto para enfatizar a soberania de Deus tanto sobre
a dimensão celestial como a terrena, um dos temas principais do capítulo 4.
Belsazar se opôs à força mais formidável do universo.
164
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

As ações específicas que demonstraram a provocação de Belsazar foram


(1) quando ele mandou trazer as taças do templo do Senhor para que seus
convidados bebessem nelas; (2) quando ele louvou os deuses de prata e de
ouro com elas; e (3) quando ele não glorificou o Deus que é verdadeiramente
soberano (v. 23). Todos esses atos demonstraram um desrespeito absoluto pelo
Senhor. Beber das taças é um ato ostensivo de blasfêmia. Ele desvalorizava o
sagrado e, com isso, por extensão, o Deus ao qual elas estavam conectadas. Aos
olhos de Daniel e de outros profetas, o louvor a outros deuses também é um
ato de sacrilégio derivado de uma ignorância obstinada (Is 44.9-20). Esses deu­
ses são impotentes. Eles não têm nenhuma capacidade de se envolver na vida
[humana] ou de exercer qualquer controle sobre ela. “Eles nada sabem, nada
entendem” (Is 44.18).
Não glorificar o Senhor é um ato de irreverência que deriva de uma confu­
são sobre a soberania neste mundo. Belsazar não imitou o reconhecimento de
Nabucodonosor pelo Deus que reina sobre tudo (v. 23; veja 4.34,35). Todos os
aspectos do cosmos estão sob o domínio de Deus. Em suas mãos está a própria
vida (literalmente “fôlego”) de Belsazar e todos os seus feitos. Porém, Belsazar
não admite isso.
Na denúncia que Daniel faz de Belsazar, o uso de pronomes na segunda
pessoa é notável. Esses pronomes aparecem nove vezes nos versículos 22 e 23.
Em duas dessas vezes eles são usados de forma enfática. Além disso, o verbo é
conjugado na segunda pessoa quatro vezes. Está claro que Daniel pretendia
responsabilizar Belsazar pessoalmente por suas ações. Ele, e mais ninguém, é
responsável pelos seus pecados contra Deus.
1 2 4 Tendo exposto a acusação de Belsazar, Daniel anuncia o juízo de Deus
sobre ele. Ele é breve e objetivo. Deus enviou a mão que escreveu as palavras
da inscrição (v. 24). Essas palavras confirmam aquilo que o rei havia suspeita­
do. A mensagem da inscrição não continha boas notícias. Essas palavras tam­
bém enfatizam a origem divina da inscrição. Em aramaico, a frase é literalmen­
te d a su a p r e s e n ç a fo i en v ia d a a p a lm a d a m ão. Como um mensageiro enviado
por um governante soberano, a mão agourenta havia sido enviada com essas
notícias. O uso da palavra mão nesses versículos enfatiza a soberania de Deus.
A mão que anuncia a morte por meio de uma inscrição numa parede (v. 24)
vem da mão que sustenta a vida de Belsazar (v. 23).
I 2 5 Tendo esclarecido o motivo da inscrição na parede, Daniel finalmente
está pronto para fazer a sua leitura (v. 25) e dar a interpretação (26-28). O
público ouve o conteúdo da inscrição pela primeira vez. A inscrição misteriosa
vem sendo mencionada desde o versículo 5, mas ela só é revelada agora. Essa
técnica de adiamento ajudou a manter o suspense da história.
165
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

As palavras que haviam sido escritas na parede eram mene, mene, tequel,
parsim (v. 25). Em aramaico, uma conjunção pronunciada como “u” precede
a última palavra. Portanto, muitas traduções têm “uparsim” (ou ufarsim) no
final. A primeira palavra presumivelmente é repetida para aumentar seu sentido
de autoridade decisória. Essas três palavras aramaicas podem ser entendidas
como substantivos ou particípios passivos. Como substantivos, elas designam
medidas de peso ou unidades monetárias. O mene {mina, em hebraico) é o peso
maior, e tequel (em hebraico, sheket) é o próximo em tamanho. Naquela época,
na Babilônia, a mina equivalia a 60 shekels. Parsim, um substantivo plural,
quer dizer “metades” e poderia se referir tanto à metade de uma mina quanto
à metade de um shekel. A última opção é a mais provável nesse contexto. A
ordem, portanto, é descendente em termos de valor, o que se encaixa ao tema da
mensagem e ao movimento da história. Ela também pode ser uma alusão velada
à efetividade dos reis babilónicos. A m in a talvez represente Nabucodonosor, o
shekel, Nabonido, e a metade de um shekel, Belsazar.
I 26-28 Daniel explica que a mensagem dessas três palavras vem por meio
das formas verbais relacionadas a cada uma delas. Mene sugere o verbo m ênâ,
que quer dizer contou (v. 26). Portanto, a mensagem é que Deus contou os
dias do reinado de Belsazar. O seu tempo acabou e o seu reino sobre a Babilô­
nia chegou ao fim. Tequel evoca ao verbo têqal, que significa determinou (v.
26). A mensagem extraída disso é que Belsazar não atendeu às expectativas.
Como a acusação de Daniel deixou claro, quando pesado na balança, Belsazar
foi achado em falta em comparação a Nabucodonosor. Ele não se humilhou,
não aprendeu com Nabucodonosor nem reconheceu que o Deus Altíssimo
domina (veja v. 21,22). Portanto, ele é achado em falta nas coisas espirituais.
Ele não possui um relacionamento adequado com Deus. Parsim traz duas
palavras à mente: o verbo péras, que significa dividido, e paras, que significa
persas (v. 28). A mensagem nesse caso é que o reino de Belsazar será dividido
e entregue aos medos e persas, os dois grupos dominantes do grande Império
Persa.
As três palavras da inscrição evocam a imagem de um mercador contando, pe­
sando e separando produtos para determinar o seu valor. Quando pesado contra o
Nabucodonosor humilhado e temente a Deus do capítulo 4, Belsazar é deficiente.
Ele é achado em falta espiritualmente. Portanto, a transação entre os domínios di­
vino e humano chega ao fim. O Deus que concedeu esplendor a Nabucodonosor
está terminando o seu trato com o reino babilónico. A mensagem dessa imagem
é uma de juízo iminente para Belsazar e para os babilônios. Em suma, o tempo se
esgotou, o veredito foi dado e a sentença aguarda a sua execução.
166
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

4. O cumprimento da mensagem de Deus (5.29-31)


A história termina de forma tão abrupta como começou. Dois reis cum­
prem os seus pronunciamentos. Belsazar galardoa Daniel pela sua interpreta­
ção (v. 29) e Deus recompensa Belsazar pelo seu orgulho (v. 30,31). Daniel
ganha uma promoção, enquanto Belsazar recebe uma demoção.
I 29 Belsazar reage à interpretação da inscrição honrando Daniel conforme
havia prometido. Daniel recebe vestes e ornamentos reais e é proclamado o
terceiro em importância no governo do reino (v. 29). Cada uma das outras
histórias nos capítulos 1—6 termina de forma semelhante, com a prosperidade
do povo de Deus. Em contraste a quatro dessas histórias (cap. 2, 3,4 e 6), con­
tudo, Belsazar não fala positivamente sobre o Deus de Daniel na conclusão da
sua provação. Isso se encaixa ao caráter desse rei que foi esboçado ao longo da
história. Ele não valorizou os utensílios de Deus, o Seu porta-voz, nem o Seu
exemplo real. Não é de surpreender que ele não honre a Deus agora. Assim, ele
colhe a recompensa apropriada.
H 30-31 A história termina, então, em juízo. A mensagem das três pala­
vras encontra o seu cumprimento imediato naquela mesma noite (v. 30).
Belsazar foi morto, e os persas se apoderaram do reino (v. 31). De acordo
com os registros antigos, o evento significativo da queda da Babilônia ocor­
reu em 12 de outubro de 539 a.C.. O termo apoderou-se (q èb êt) também
pode ser traduzido como “recebeu”. Isso poderia ser um lembrete sutil de
um ponto frisado antigamente de que “o Deus Altíssimo domina sobre os
reinos dos homens e coloca no poder a quem ele quer” (v. 21). Os persas
não se apoderaram do reino; eles o receberam de Deus. Isso também foi um
tema importante no capítulo 4.
A história termina com uma referência curiosa à idade do monarca conquis­
tador como sendo de sessenta e dois anos (v. 31). Embora isso possa ser um de­
talhe incidental para confirmar a historicidade de Dario, a alusão provavelmente
se trata de outra coisa. Ela indica uma ligação com o valor das três palavras escritas
na parede. Uma mina equivale a 60 shekels. Se o final deparésin for tomado como
dual, então a palavra pode ser entendida como duas metades de shekels. Portanto,
o valor numérico das três palavras, m ene, teq u el e parsim , seria de 62 shekels. A
mensagem dessa referência talvez seja simplesmente o fato de que todos os as­
pectos desse evento são divinamente orquestrados. A convergência até mesmo de
detalhes insignificantes, como é o caso do número 62, confirma isso. O soberano
Deus dos céus estava no controle de todos os detalhes.
167
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A partir do texto
A história do capítulo 5 é mais complexa do que parece ser inicialmente.
Existem mais coisas acontecendo do que simplesmente o anúncio de juízo
dado por meio de uma inscrição surreal numa parede ou a competição entre
a sabedoria babilónica e a israelita. Conexões significativas com o capítulo 4
e comparações entre Belsazar e Nabucodonosor levam o leitor a considerar
outras questões.
O capítulo 5 assume os mesmos temas propostos no capítulo 4 e os elabo­
ra. O tema do orgulho humano e as suas consequências, por exemplo, é explo­
rado com maior profundidade. O orgulho toma formas diferentes e causa um
impacto nos resultados nacionais e pessoais da vida. Assim como o capítulo 4
e as outras histórias de Daniel, o capítulo 5 enfoca a soberania de Deus. Entre­
tanto, ele estende a discussão, considerando aspectos adicionais desse assunto.
Em particular, ele enfatiza as implicações pessoais da soberania de Deus e a
responsabilidade dos homens diante do supremo Governante do universo.
A a rrogâ n cia do sa crilégio p ro vo ca o ju íz o divin o. A reação de Deus à forma
errônea como Belsazar tratou o sagrado foi decisiva e dramática. O Senhor não
permite que a sua soberania seja trivializada por muito tempo. A mão apareceu
de repente, enquanto Belsazar e o seu séquito brindavam aos seus deuses com
as taças do Senhor (v. 5). O texto sugere uma reação imediata ao ato profano
do rei. Não é diferente da rapidez da reação divina à vanglória arrogante de Na­
bucodonosor no capítulo 4. “As palavras ainda estavam nos seus lábios quando
veio do céu uma voz” (4.31). O cumprimento do juízo de Deus sobre Belsazar
também veio rapidamente. Naquela mesma noite, a mensagem da inscrição
na parede foi cumprida e sua vida chegou ao fim (v. 30).
A rapidez da reação de Deus é relacionada à natureza da ofensa. As ações
de Belsazar consistiram num desafio direto ao governo soberano de Deus sobre
este mundo. As taças eram remanescentes do símbolo mais tangível da presen­
ça poderosa do Senhor neste mundo, o templo em Jerusalém. Elas talvez fos­
sem apenas símbolos, mas a realidade por trás delas era da maior importância.
Quando Belsazar tomou as taças sagradas e as usou para honrar os seus deuses,
ele negou a sua significância. A soberania daquele a quem elas haviam sido
dedicadas estava sendo questionada. O texto torna isso claro quando Daniel
acusa o rei de se exaltar acima do Senhor dos céus (v. 23).
A ofensa de Belsazar foi semelhante à de Nabucodonosor, porém, diferen­
te. Os dois monarcas negaram a graça de Deus operando em suas vidas. Eles
não estavam dispostos a reconhecer que o seu poder havia sido recebido e não
168
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

conquistado. A ofensa adicional de Belsazar foi que ele permaneceu rebelde


embora soubesse da experiência de Nabucodonosor (v. 22). Enquanto num
certo sentido o orgulho de Nabucodonosor talvez fosse compreensível em vis­
ta das suas realizações, o de Belsazar não o era. Na verdade ele cometeu um ato
frívolo de provocação. Ele tinha muito pouco do que se vangloriar exceto pelo
que ele havia herdado do seu predecessor Nabucodonosor.
A impaciência de Deus com a blasfêmia é consistente ao longo das Escri­
turas. Os Dez Mandamentos advertem contra tratarmos levianamente o nome
de Deus (Êx 20.5). O propósito das instruções para os sacerdotes e dos rituais
de adoração era preservar uma reverência apropriada pela majestade de Deus.
Quando Uzá tocou na arca quando esta estava sendo transportada para Jeru­
salém, o Senhor o matou (1 Cr 13.9,10). A mensagem daquela história, assim
como dessa, é que Deus não permitirá que os homens o tratem casualmente.
Deus é santo. Ele é diferente de tudo o que existe na dimensão humana e deve
ser tratado como tal.
A reação de Deus à blasfêmia de Belsazar também é um ato de miseri­
córdia, assim como todos os juízos do Senhor. Os homens que não reagem
de forma apropriada ao sagrado estão perdidos nesta vida. Eles não conhecem
a sua origem nem o seu destino, e portanto não sabem como viver retamen­
te neste mundo. Eles precisam entender a verdade sobre Deus. A salvação
depende disso. Portanto, em Sua misericórdia, o Senhor exige que as pessoas
reconheçam a Sua santa soberania.
A soberania d e D eus a carreta im plica ções pessoais. Os capítulos anteriores
de Daniel enfatizam a forma como o governo soberano de Deus afeta as na­
ções. O capítulo 2, em particular, trata desse tema ao relacionar o sonho dos
quatro reinos esmagados sob o invencível poder de Deus. Esse tema foi ainda
mais confirmado no cap. 4 quando Nabucodonosor foi desafiado a reconhecer
que “o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens e os dá a quem quer”
(4.25). O capítulo 5 afirma esse conceito quando cita o mesmo versículo (5.21)
e relata a queda da Babilônia e a ascensão da Pérsia pelas mãos de Deus.
Uma alusão às implicações espirituais da soberania de Deus também pode
ser detectada no capítulo 4. Como “Rei dos céus” (4.37), o Senhor exerce influ­
ência sobre toda a criação. Ele dota os reis terrenos de recursos para sustentar
“os animais do campo” e “as aves do céu” (4.12). O “orvalho do céu” é mencio­
nado para demonstrar o poder dominante de Deus.
O reinado soberano de Deus não afeta os homens apenas no nível macro
das nações e da criação, contudo, mas também influencia os indivíduos. O ca­
pítulo 4 introduziu esse conceito ao descrever a forma como o Senhor lidou
169
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

pessoalmente com Nabucodonosor. O Senhor exerceu a Sua soberania sobre o


rei afligindo-o e depois restaurando-o pessoalmente. O rei sofreu e foi direta­
mente beneficiado pelo governo de Deus.
O capítulo 5 coloca um enfoque maior nas implicações pessoais da so­
berania de Deus. O Senhor é especificamente identificado como aquele que
sustenta em suas mãos a tua vida e todos os teus caminhos (v. 23). Essas
palavras foram ditas expressamente a Belsazar. O próprio ar que ele respirava e
as atividades que ele exercia a cada dia estavam sob o escrutínio e o controle de
um Deus onipotente. O caráter da sua vida, e não o da Babilônia, foi pesado
na balança e achado em falta (v. 27). Novamente, os dias do seu reinado e não
os do domínio da Babilônia haviam sido contados e chegado ao fim (v. 26).
No final, o juízo do Senhor custou a vida de Belsazar assim como a sorte da
Babilônia. Ele foi morto, e o reino foi tomado (v. 30).
As repercussões pessoais da soberania de Deus lembram várias passagens
das Escrituras hebraicas. Os sábios de Israel diziam: “Em seu coração o homem
planeja o seu caminho, mas o Senhor determina os seus passos” (Pv 16.9). Jó é
uma ilustração disso. Ele experimentou o controle absoluto de Deus sobre a sua
vida pessoal e o reconheceu quando perguntou: “Não vê ele os meus caminhos,
e não considera cada um de meus passos?” (Jó 31.4). Assim como qualquer ou­
tra parte da Bíblia, o Salmo 139 articula o impacto do controle de Deus sobre
todas as áreas da vida de um indivíduo. Depois de uma descrição poética da
onisciência, da onipresença e onipotência de Deus, o salmista confessa: “Todos
os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer
deles existir” (SI 139.16).
Belsazar recebeu o juízo de Deus porque não reconheceu as implicações
da soberania do Senhor para a sua vida. Deus controla o universo e as nações,
mas Ele também governa os indivíduos. Belsazar aprendeu da pior maneira
que “se fosse intenção dele [de Deus], e de fato retirasse o seu espírito e o seu
sopro, a humanidade pereceria toda de uma vez, e o homem voltaria ao pó” (Jó
34.14,15).
Os h om en s são responsáveis p ela s suas ações d ia n te d e u m D eus soberano.
A ênfase que o capítulo 5 dá à liberdade absoluta do Senhor poderia ser mal
interpretada. As ações humanas podem parecer inúteis diante dos desígnios do
Deus Altíssimo. O Senhor sobrepuja Belsazar e o seu reino poderoso. O rei que
podia dar um banquete para mil oficiais babilónicos, coletar inúmeros deuses
dos inimigos derrotados e zombar do Deus de Israel teve um final dramático.
Estabelecendo novamente uma conexão com o cap. 4, a história relembra que
Deus exerceu controle até mesmo sobre alguém mais poderoso do que Belsa-
170
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

zar. O Senhor humilhou o lendário Nabucodonosor, o qual matava, poupava,


promovia e humilhava a quem ele bem entendesse (v. 19). Quase como um
deus, Nabucodonosor exercia autoridade em seu reino. Contudo, o Deus de
Israel o subjugou.
Belsazar parece não ter nenhum recurso contra a soberania de Deus, o qual
enviou uma mão sem corpo com uma mensagem. A inscrição na parede, con­
tudo, apenas anunciou a derrota de Belsazar e da Babilônia. Ela não a determi­
nou. A mensagem de juízo veio como uma reação às ações de Belsazar. Os seus
atos foram justamente pesados na balança e achados em falta (v. 27). Aqueles
atos foram o motivo para o triste fim da sua vida. Como Daniel deixou claro,
Belsazar, e ninguém mais, mandou trazer as taças para que dela bebessem seus
nobres, suas esposas e suas concubinas (v. 23). Ele honrou falsos deuses em vez
de glorificar ao Deus vivo. Belsazar fez tudo isso com pleno conhecimento. Ele
sabia o que havia acontecido a Nabucodonosor, mas repetiu a mesma ofensa.
Assim como Nabucodonosor, Belsazar se exaltou acima do Senhor dos céus
(v. 23). O texto deixa claro que ninguém pode ser culpado pelo destino de Bel­
sazar, exceto ele mesmo. Ele é o responsável pelo resultado da sua vida debaixo
das mãos de um Deus soberano.
O restante das Escrituras sabe dessa verdade. A base da pregação profética
está numa crença de que as ações humanas têm importância num mundo go­
vernado por um Deus soberano. As convocações proféticas ao arrependimento
desafiavam as pessoas: “Busquem o Senhor e terão vida” (Am 5.6). Se elas não
mudassem, então Deus prometia: “a minha ira se acenderá e queimará como
fogo, por causa do mal que vocês fizeram” (Jr 4.4). Ezequiel deixa isso bem cla­
ro para um público que queria culpar outros indivíduos por suas adversidades.
Eles citavam o provérbio: “Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos se
embotam” (Ez 18.2). Porém Ezequiel os lembrava de que “aquele que pecar é
que morrerá” (v. 4). A soberania de Deus não anula a responsabilidade pessoal.
O Senhor responsabiliza as pessoas pelas suas ações debaixo do Seu domínio.
O p eca d o d e u m in d iv íd u o afeta um a nação. A natureza pessoal do
relacionamento do homem com Deus não significa que um pecado individual
não produza efeitos coletivos. O pecado sempre afeta a comunidade. Ele o faz
em proporção direta ao nível de influência que aquela pessoa exerce naquela
comunidade. Portanto, o pecados dos líderes trazem consequências graves ao
grupo que está sob a sua influência.
O orgulho de Belsazar levou à queda da Babilônia. No final, o império
chega ao fim juntamente com Belsazar, Entretanto, o rei, e não a Babilônia, é o
foco da repreensão de Daniel. O pecado citado por Daniel é de Belsazar. Pou-
171
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

cas referências são feitas aos pecados do povo. Quando os nobres, as esposas e
concubinas bebem das taças, eles são identificados em conexão com o rei. Eles
são descritos para o rei como “os teus nobres, as tuas mulheres e as tuas con­
cubinas” (Dn 5. 23). Embora de acordo com o versículo 4 eles aparentemente
tivessem se unido a Belsazar no louvor aos deuses falsos, Daniel observa apenas
que o rei fez isso. “Louvaste os deuses de prata, de ouro”, disse ele (v. 23). “Não
glorificaste o Deus que sustenta em suas mãos a tua vida”. O orgulho de Belsa­
zar é o que interessa Daniel, e é a razão dada para o julgamento da Babilônia.
Num certo sentido, os reis representavam a Babilônia como um todo. Ou­
tros profetas de Israel haviam acusado a nação pelo seu orgulho e previsto a que­
da da Babilônia por esse motivo (Is 13.11,19; Jr 51.3132). O capítulo 5 marca
o cumprimento dessas previsões. Porém, nessa história, o orgulho de Belsazar é
a questão. Não podemos deixar de notar que as profecias contra a Babilônia se
cumpriram por causa do fracasso de um homem diante de Deus. As ações incor­
rigíveis de Belsazar fizeram pesar a balança em direção ao julgamento final.
D eus en vo lve-se nos d eta lh es da vid a h um ana. A convergência de imagens
em torno desse evento é mais do que uma coincidência. Como o texto sugere,
essas imagens indicam que a soberania do Senhor se estende aos mínimos deta­
lhes de uma situação. As conexões da mensagem com Libra, o número 62 e os
persas enfatizam o interesse de Deus pelos detalhes. De certa forma, o mistério
de Deus não é tão misterioso. Todos os elementos apontam para Aquele no
qual tudo subsiste (Cl 1.17). Se nós tão somente observarmos, veremos que o
Senhor está trabalhando em todos os aspectos da vida.
Jesus indicou que o interesse de Deus pelos detalhes se estende até mesmo ao
número de cabelos na cabeça de uma pessoa (Mt 10.29,30). O Senhor ordena o
cuidado com as facetas mais comuns da sua criação, os pássaros e os lírios (6.26-
29). Os salmistas concordam. Deus “faz crescer o pasto para o gado” (Sl 104.14)
e sabe quando uma pessoa se assenta e se levanta (139.2). O conhecimento que
Deus tem das pessoas, das nações e do Seu mundo é bastante particular e pessoal.
Esse é um conceito fundamental no livro de Daniel. Como as visões tes­
tificarão, Deus governa com precisão. Ele administra tanto os níveis macro
como micro da vida.

F. A cova dos leões: o terceiro teste de fidelidade


(6 .1-2 8 )

Panorama geral
172
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Daniel e a cova dos leões talvez seja a história mais popular do livro. O dra­
ma sobre um homem temente a Deus que é salvo da boca dos leões e uma moral
descomplicada sobre a recompensa da fé têm um forte apelo entre os públicos
de todas as idades e de todas as gerações. Entretanto, a história é sobre muito
mais do que leões e livramentos dramáticos. Como as histórias anteriores de
Daniel, ela enfoca os reinos em conflito. A narrativa se desenvolve em torno de
três editos reais, dois de Dario e um de Deus. Nas palavras do texto, “a lei do
Deus dele” desafia “a lei dos medos e dos persas”. No fim, Dario anuncia uma
nova lei que reconhece a supremacia do governo de Deus. O conflito entre as
duas esferas dos legisladores fornece o cenário para outro teste de fidelidade
para Daniel e o seu Deus. Mais uma vez o Senhor e o seu servo triunfam de
forma espetacular.
Por trás do texto
O capítulo 6 deve ser lido como um seguimento natural do capítulo 5. O
último versículo do capítulo 5 liga os dois capítulos. Ele na verdade é empre­
gado como o primeiro versículo do capítulo 6 na Bíblia hebraica. Portanto, ao
longo de todo o capítulo, a numeração dos versículos nas Escrituras hebraicas
varia com relação às versões em inglês. Daniel 5.31 em inglês é 6.1 em hebraico,
e assim por diante. Esse versículo anuncia a tomada da Babilônia pelos persas e
introduz Dario, o medo. A conexão com o capítulo 6 é lógica, mas a divisão das
versões em inglês é mais apropriada. A referência à idade de Dario parece mais
apropriada como uma conclusão para o capítulo 5 do que uma introdução para
o capítulo 6. O número 62 parece referenciar o valor numérico das palavras da
inscrição na parede do capítulo 5.
O conteúdo de 5.31 prepara o leitor para um novo contexto no capítulo
6. Um reino novo substitui o antigo. Um monarca maduro e benevolente é
revestido de autoridade em lugar de um pretendente ao trono jovem, frívolo e
antagônico. Finalmente, um administrador competente, cujos dons são reco­
nhecidos pelo seu rei, emerge no lugar de um sábio ignorado e desrespeitado
cujas habilidades foram quase esquecidas.
A corte persa fornece o contexto sociopolítico do capítulo 6. Isso é dife­
rente do capítulo anterior, porém de certo modo familiar. Os primeiros cinco
capítulos de Daniel ocorrem no contexto da corte babilónica durante o perío­
do de Nabucodonosor (604-562 a.C.) a Belsazar (550-539 a.C.), o corregente
de Nabonido (560-539 a.C.). Em 539 a.C., o império emergente dos medos e
persas solidificou o seu controle do Oriente Médio ao tomar a Babilônia. Esse
173
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

é o evento citado em Daniel 5.30,31. O rei persa, Ciro, o Grande, havia edifi­
cado sistematicamente o seu império desde que se rebelara contra o seu senhor
medo em 550 a.C.. Ele subjugou a Lídia e outras entidades orientais antes de
invadir a Babilônia. Uma vez que a Babilônia foi conquistada, ela se tornou
a sua residência de inverno. O leitor pode presumir que esse seja o local dos
eventos do cap. 6, mas o texto não diz isso explicitamente.
O monarca do capítulo 6 é identificado como Dario. Ele é chamado de
“Dario, o medo” em 5.31 e “Dario, filho de Xerxes” (um descendente dos me­
dos) em 9.1. De acordo com 5.31, ele “apoderou-se do reino” dos babilônios
“com a idade de sessenta e dois anos”. Em 9.1, ele é descrito como alguém que
“foi constituído governante do reino babilônio”. Essas referências apresentam
um problema histórico. Em fontes extrabíblicas, ninguém conhecido por esse
nome se encaixa a essa descrição. O nome Dario aparece pela primeira vez nas
listas de reis persas com Dario I (522-485 a.C.). Outros que usaram o nome
foram Dario II (423-404 a.C.) e Dario III (336- 330 a.C.). Todos esses indiví­
duos apareceram tarde demais para estarem associados a Daniel.
Os estudiosos têm sugerido diversas formas de lidar com essa questão his­
tórica. Uma das abordagens é considerar o Dario de Daniel como um persona­
gem fictício inventado apenas como um recurso literário. Ele talvez represente
um retrato composto de diversos reis persas tais como Ciro, que na verdade
conquistou a Babilônia, e Dario I, que ficou conhecido por ter organizado o
império em satrapias. Aqueles que datam o livro de Daniel do segundo século
a.C. muitas vezes adotam esse ponto de vista. Eles presumem que a historici­
dade dos personagens e eventos não é tão importante quanto as mensagens das
histórias em Daniel. Esses estudiosos também observam que a aparição de Da­
rio, o medo, antes de Ciro, o persa no livro parece se encaixar ao entendimento
histórico confuso do autor. O último editor do livro de Daniel, eles dizem,
acreditava que houve um Império Medo antes do Império Persa.
Outra abordagem é procurar um personagem histórico conhecido que se
encaixe à descrição de Dario. Esse ponto de vista sugere que Dario é um nome
alternativo, muito provavelmente um título real, para alguém mencionado em
textos seculares. Nomes e títulos duais não eram incomuns nos tempos antigos.
Embora diversas possibilidades tenham sido sugeridas, os dois candidatos prin­
cipais para uma figura histórica por trás do Dario de Daniel são Ciro e Gubaru.
Ciro, o Grande, foi o rei persa creditado com a conquista da Babilônia em
539 a.C.. Ele tinha cerca de 62 anos na época e era metade médio. Sua mãe era
filha do rei medo Astiages. Seu pai, Cambises, também tinha sangue real, o
que talvez explique a referência em Daniel 9.1. Esse versículo chama Dario de
174
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

“filho de Xerxes”. Xerxes (Assuero em hebraico) também era um título real que
significava “aquele que governa sobre os homens”. Embora não haja nenhuma
documentação para apoiar essa teoria, alguns estudiosos sugerem que Xerxes
talvez seja um título alternativo para o pai ou o avô de Ciro. Está claro que
Daniel 9.1 não se refere ao Xerxes I (485-465 a.C.), que era o filho de Dario I,
a menos que a referência seja tida como uma visão confusa da história.
O fato de Ciro ter dois títulos poderia fazer sentido nesse contexto. A base
do poder do seu reino dependia tanto dos medos como dos persas. O título
Dario, o medo, então apelaria para os seus súditos medos, enquanto Ciro ape­
laria para os persas. Daniel 6.28 talvez apoie essa conexão. E possível traduzir o
versículo como “Assim Daniel prosperou durante o reinado de Dario, ou seja,
o reinado de Ciro, o persa”. A conjunção w aw pode funcionar como uma ex­
plicação tanto em aramaico como em hebraico. Portanto, 6.28 poderia estar
esclarecendo que Dario e Ciro eram a mesma pessoa.
A outra identidade possível para Dario é Gubaru, também chamado de Go-
brias pelos historiadores gregos. Gubaru serviu ou como comandante na conquista
da Babilônia ou como seu governante após a sua queda. Se Gubaru for a mesma
pessoa que Ugbaru, então ele funcionou em ambos os papéis. Daniel 5.31 afirma
que Dario “apoderou-se do reino”, e 9.1 declara que ele “foi constituído gover­
nante”. Ambos se encaixam na descrição de alguém como Gubaru, que teria sido
autorizado por Ciro a governar. De acordo com o historiador grego Xenofonte,
ele era um homem “avançado em idade” quando tomou o controle da Babilônia.
E possível, então, identificar Dario com uma figura histórica real, seja ela
Ciro ou Gubaru. Ambos se encaixam no contexto dos eventos do capítulo 6.
Como o texto sugere, esses eram os primeiros dias de organização governamental
dos territórios recém-conquistados depois da queda da Babilônia. A referência
à nomeação de cento e vinte sátrapas para governarem todo o reino provavel­
mente reflete esses estágios iniciais (v. 1). Mais tarde, sob Dario I (522-485 a.C.),
o império desenvolveria seu sistema bem planejado de 20 a 29 satrapias ou provín­
cias pelas quais o Império Persa se tornou conhecido. Um oficial chamado sátrapa
administrava cada uma dessas províncias e se reportava diretamente ao rei. A essa
altura, o termo “sátrapa” adquiriu um significado técnico junto ao seu sentido mais
genérico de “protetor do reino”. No capítulo 6, um grande número desses protetores
recebeu a responsabilidade de administrar diversas regiões do reino. Ester 1.1 e 8.9
mencionam 127 satrapias no tempo de Xerxes I (485-465 a.C.). Primeiro Esdras
3.2 e o antigo grego de Daniel 6.1 também mencionam esse número.
Para proteger os interesses do rei, três supervisores dirigiam os diver­
sos sátrapas (v. 2). Esse elemento do governo persa não pode ser diretamente
175
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

apoiado por nenhum documento remanescente do império. Sob um sistema


posterior na época de Dario I, três indivíduos tinham o mesmo grau de respon­
sabilidade diante do rei por cada província. Esses incluíam um sátrapa, um co­
mandante militar e um servo civil. Se Daniel 6 referir-sc apenas à organização
da província babilónica, então o sistema sob Dario I fornece um bom paralelo
a Daniel 6.2. Do contrário, Esdras 7.14, Ester 1.1-* c os historiadores gregos
Heródoto e Xenofonte se referem aos sete principais conselheiros dos reis da
Pérsia no quinto século a.C.. Os três supervisores de Daniel poderiam refletir
um estágio inicial da função desses conselheiros.
O sistema era obviamente flexível a essa altura, já que Dario contemplou a
possibilidade de colocar Daniel à frente do governo de todo o império (Dn
6.3). Isso indica uma posição como o conselheiro de maior confiança do rei, o que
não era incomum em todo o mundo antigo. No livro de Ester, Hamã detinha esse
status sob Xerxes, sendo substituído por Mardoqueu no final (Et 3.1; 10.3). José
foi elevado a uma posição semelhante sob Faraó no Egito (Gn 41.41-43).
Dario emite dois decretos na história. Ester 8.9,10 descreve o processo
pelo qual isso era feito. Os escribas faziam cópias do edito em diversas línguas
para comunicá-lo a cada um dos povos do reino. O rei assinava e selava os de­
cretos com o seu anel-selo. Então mensageiros montados em cavalos levavam a
mensagem às diversas regiões do império.
A natureza do primeiro decreto aprovado por Dario tem levantado algu­
mas questões entre os estudiosos. Ele proibia que se fizessem petições a qual­
quer deus ou a qualquer homem, à exceção do rei (v. 7). Se isso sugerir a dei-
ficação do rei ou uma adoração exclusiva [a ele], então o relato não se encaixa
de modo algum ao caráter dos reis persas, principalmente o de Ciro. Os textos
são unânimes em afirmar que Ciro e os seus sucessores encorajavam a adoração a
todos os deuses e não viam a si próprios como seres divinos. O Cilindro de Ciro
ilustra essa posição ao proclamar a liberdade aos cativos exilados, encorajando o
seu retorno às suas terras natais e a reconstrução de templos para os seus próprios
deuses. Esdras concorda com essa política oficial persa e registra o apoio do es­
tado à reconstrução do templo em Jerusalém (Ed 1-6). Se o edito em Daniel 6
é autêntico, então ele não pode ser entendido como uma tentativa de fazer do
rei uma divindade ou de restringir a adoração a outros deuses. Ele teria que ser
sobre designar o rei como o único representante [dos homens] diante dos deuses.
Talvez ele executasse a principal função sacerdotal de medidor entre os deuses e o
povo. Dessa forma, a legitimidade do seu governo seria reconhecida. Tal exigên­
cia teria um apelo particular para um monarca nos primeiros dias do seu reinado.
Portanto, a lealdade ao estado era o ponto central do decreto.
De acordo com o decreto, aqueles que não estiverem dispostos a demons-
176
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

trar a sua lealdade ao rei dessa forma devem enfrentar a ordália da cova dos le­
ões. A execução por esse método não é documentada nos documentos contem­
porâneos. Entretanto, os assírios e os persas eram conhecidos por caçarem e
enjaularem esses animais. Eles certamente apresentavam uma opção lógica para
a punição capital. A linguagem de Daniel indica que a cova dos leões poderia
ser entendida como uma ordália. Ele diz que ele foi considerado inocente à
vista de Deus (v. 22). A ordália era muito comum no mundo antigo. A prática
submetia as vítimas acusadas a algum perigo designado a provar sua culpa ou
inocência. Uma dessas táticas era amarrar pessoas e jogá-las no rio. Aqueles
que sobrevivessem a essas ordálias eram proclamados inocentes por terem sido
miraculosamente salvas pelos deuses.
A imutabilidade da lei dos medos e dos persas cria outra questão para os
estudiosos (v. 8,12,15). Exceto por Ester 1.9 e 8.8, a ideia não é fortemente au­
tenticada por fontes seculares. Talvez possamos considerá-la, contudo, como
um padrão razoável para a realeza. Um monarca que mudasse de ideia com
frequência teria sua autoridade minada. Ao que se diz, o último rei persa, Da-
rio III, sentia que não poderia reverter uma sentença de morte uma vez que
esta fosse decretada. Além disso, o antigo Código de Hamurabi transforma­
va em crime a mudança de decisão de um juiz. Entretanto, sabe-se de alguns
monarcas que alteraram decretos. Talvez seja por isso que os conspiradores da
história enfatizaram tanto essa questão ao falarem com o rei. Por tradição, as
leis eram imutáveis, mas alguns monarcas elaboravam suas próprias regras. Os
reis persas construíram um dos impérios mais importantes que o mundo já
conheceu, como atesta a sua longevidade. A firmeza com a qual os medos e os
persas normalmente aderiam às suas leis provavelmente inspirou as referências
às leis inalteráveis que não podiam ser revogadas (v. 8,12,15).
A natureza inviolável da lei medo-persa estabelece o conflito da história, a
qual é contada por meio de um gênero familiar chamado conflito e intrigas de
corte. Em particular, ela exibe traços de uma trama muito conhecida nos tempos
antigos sobre a queda e a reabilitação de um oficial da corte. Conspiradores
maquinam contra uma pessoa boa, a qual de algum modo triunfa no final.
Provérbios 24.15,16 resume sucintamente a moral dessas histórias quando
adverte: “Não fique de tocaia, como faz o ímpio, contra a casa do justo, e não
destrua o seu local de repouso, pois ainda que o justo caia sete vezes, tornará
a erguer-se, mas os ímpios são arrastados pela calamidade”. Exemplos desse
gênero incluem a história de José em Gênesis 39-41, o livro de Ester, a adição
apócrifa a Daniel chamada Bei e o dragão e a lenda assíria de Ahikar. Daniel 3
também ilustra esse gênero.
177
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A história apócrifa Bei e o dragão apresenta algumas ligações interessantes


com o capítulo 6. Nessa história, Daniel era um estimado administrador de um
rei persa que se chamava Ciro. Seus oponentes convencem o rei a jogar Daniel
numa cova de leões, da qual ele é miraculosamente livrado. A não ser por essas
características, as histórias são bastante diferentes. O tema principal de Bei e o
dragão é a futilidade da adoração aos ídolos.
As conexões entre os capítulos 6 e 3 são mais marcantes. Ambos falam de
colegas invejosos, conspirações e acusações contra os judeus, perigos impossí­
veis, resgates por anjos, decretos reais, e, no final, a prosperidade dos judeus.
Diversos termos específicos são compartilhados por ambas as histórias. Por
exemplo, as listas de oficiais da corte, as quais consistem em sua maior parte
de termos emprestados do persa e do acadiano, são muito similares (3.2; 6.8).
Além disso, as descrições dos conspiradores incluem o fato de que eles comeram
pedaços do acusado (traduzido como “denunciaram” em 3.8 e “tinham acusa­
do” em 6.24) e os decretos são endereçados “aos homens de todas as nações,
povos e línguas” (3.4,29; 6.25). Fica claro, portanto, que essas duas histórias
foram criadas para que pudessem ser lidas com referência uma à outra. Elas se
equilibram na estrutura quiásmica da seção aramaica do livro, emoldurando a
parelha central formada pelos capítulos 4 e 5 (veja Por trás do texto do cap. 2).
Diversas diferenças entre os capítulos 3 e 6, contudo, enfatizam a singu­
laridade de cada história e as mudanças no contexto. A questão que desafiava
Sadraque, Mesaque e Abede-Nego estava centrada na adoração pública, en­
quanto a de Daniel enfocava a adoração privada. O papel dos conspiradores
é mais bem desenvolvido no capítulo 6. No capítulo 3, eles agem como meros
catalizadores que desencadeiam o discurso inflamado de Nabucodonosor con­
tra os judeus. No capítulo 6, eles são vividamente caracterizados por meio de
suas ações e falas. Eles manipulam e incitam o rei a agir. O papel dos reis nessas
histórias também é bastante diferente. Nabucodonosor inicia o decreto que
constitui um problema para os judeus cativos, enquanto Dario é manipula­
do a emitir um decreto. Mais notável ainda é a [diferença de] atitude dos reis
com relação aos cativos e ao seu Deus. Nabucodonosor age com um desprezo
pomposo com relação a ambos e propõe um desafio direto à autoridade divi­
na. Dario, por outro lado, exibe uma preocupação genuína com Daniel e uma
abertura para com o seu Deus. Esse último ponto sem dúvida reflete a atmosfe­
ra contrastante desses dois impérios. Os persas eram mais abertos à diversidade
religiosa dentro do seu próprio império do que os babilônios.

178
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

As versões grega e hebraica do capítulo 6


As diferenças entre o antigo grego (Septuaginta) e os te xto s masso-
réticos do capítulo 6 são m enos num erosas do que nos capítulos 4 e 5.
Contudo, há variações significativas. Em geral, o grego tende a adicio ­
nar afirm ações que esclarecem detalhes ausentes no aram aico. As m o ­
tivações dos personagens, por exem plo, são descritas. O grego ta m b ém
elim ina certas nuances encontradas no aram aico. Por exem plo, ele não
m enciona "a lei dos m edos e dos persas" cada vez que a frase é repetida
no aram aico. Essa e outras alterações deslocam o foco da história para
Dario, m inim izando a im p ortâ ncia do co nflito e ntre a lei hum ana e a d iv i­
na. No final da S eptuaginta, Dario confessa a be rta m en te a sua fé pessoal
no Deus de Daniel, algo que não acontece no aram aico.

Nessa história, Daniel é caracterizado como um burocrata altamente ca­


paz. Isso é um tanto diferente dos seus papéis nas histórias anteriores, as quais
enfatizavam a sua habilidade de interpretar comunicados divinos. Ele foi, con­
tudo, designado como “chefe dos magos” (4.9; 5.11), o que implicava deveres
administrativos. A associação entre a tradição da sabedoria e o governo do esta­
do era significativa no mundo antigo. Como a tradição bíblica reflete, os sábios
eram mais do que apêndices dos sistemas de governo em todo o mundo antigo.
A sua contribuição era integral. O currículo dos administradores incluía cole­
ções de provérbios e de outras obras de sabedoria. Muitos dos provérbios das
Escrituras hebraicas lidam com a conduta dos reis e dos seus oficiais (ex., Pv
25.1-10). Portanto, o papel de Daniel nesse capítulo condiz com o seu treina­
mento e expertise.
A estrutura geral do capítulo 6 segue a mesma progressão encontrada nos
testes de fidelidade dos capítulos 1 e 3. O contexto é descrito (v. 1-3), um teste
é planejado (v. 4-18) e o resultado é narrado (v. 19-28). Esses componentes
podem ser subdivididos entre as diversas cenas do drama. Essas incluiriam a
conspiração (v. 1-9), a ofensa (v. 10-15), a execução (v. 16-18), o livramento (v.
19-23) e a conclusão (v. 24-28).
Assim como ocorre com muitas outras histórias, uma estrutura quiásmica
pode ser detectada ao longo da narrativa. O sucesso de Daniel relatado nos
primeiros versículos (v. 1-3) retorna no último versículo (v. 28). A maquinação
dos conspiradores e o seu edito planejado (v. 4-9) são equilibrados pela morte
desses conspiradores e um segundo edito que substitui o primeiro (v. 24-27).
As atitudes fiéis de Daniel (v. 10,11) encontram sua recompensa no livramento
da cova (v. 19-23). A pressão ansiosa dos conspiradores para que o rei prossiga
179
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

com a execução de Daniel (v. 12-15) equilibra a relutância do rei em selar a sua
sorte (v. 17-19). No centro desse quiasma está a ordem de execução juntamente
com a oração do rei por Daniel (v. 16). A estrutura quiásmica tende a focar a
atenção nesse momento dramático, quando a única esperança de Daniel é um
livramento miraculoso da parte de Deus.
No texto

1. A conspiração (6.1-9)
A narrativa começa com um breve esboço do contexto (v. 1-3) e uma des­
crição da intriga que produz a tensão na história (v. 4-9). Todos os personagens
principais são introduzidos. Esses incluem o protagonista Daniel, além dos
seus antagonistas, tanto os intencionais como os não intencionais. Os colegas
de Daniel se opõem intencionalmente a ele, enquanto o rei o faz sem querer.
Ao contrário das histórias anteriores, a introdução de Daniel não é adiada no
texto. O desenvolvimento da trama requer que suas habilidades excepcionais
sejam logo conhecidas. Talvez o leitor observe, contudo, que Daniel não fala
até um momento posterior na história. Essas características tendem a deslocar
o foco da atenção dos leitores de Daniel para o quarto personagem principal
da narrativa: Deus.
M 1-2 As circunstâncias do capítulo 6 são singulares entre as histórias em
Daniel. Essa narrativa acontece dentro do contexto de uma corte persa, e não
babilónica. Um governante persa chamado Dario agora está no poder (v. 1).
De acordo com Daniel 5.30,31, essa é a pessoa que “apoderou-se do reino” ba­
bilónico depois da morte de Belsazar. Fontes contemporâneas não identificam
esse primeiro governante da Babilônia pelo nome de Dario, mas pelo menos
duas pessoas se encaixam na descrição. Dario talvez seja um nome ou título al­
ternativo de um comandante chamado Gubaru ou do próprio Ciro, o Grande,
(veja Por trás do texto, anteriormente).
O texto descreve o plano de Dario para governar o território recém-ad-
quirido. O reino era dividido em 120 regiões, cada uma delas administrada
por um oficial chamado sátrapa. Esses cento e vinte sátrapas por sua vez se
reportavam a três supervisores (v. 1,2). Ironicamente, o narrador observa que
a razão para esse sistema elaborado era para que o rei não sofresse nenhu­
ma perda (v. 2). Na verdade, foi esse mesmo sistema que levou a uma intriga
que quase causou a perda de um dos seus conselheiros mais confiáveis. O tema
principal da história é introduzido de uma forma sutil: todo o planejamento
cuidadoso dos homens não pode trazer a estabilidade que eles desejam.
180
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

I 3 Dario observou que Daniel se sobressaía na administração. Como um


sábio profissional, Daniel seria bem versado em provérbios e nas histórias de
sabedoria que faziam parte do treinamento dos administradores. Mais do que
isso, contudo, ele demonstrava grandes qualidades (v. 3). Essa expressão signi­
fica literalmente que “um espírito excelente estava nele”. Isso lembra a observa­
ção de Nabucodonosor de que “o espírito dos santos deuses” estava em Daniel
(4.18). A fonte da excelência de Daniel era a sua conexão com Deus.
Daniel se destacou tanto entre os oficiais do governo que o rei estava
planejando promovê-lo ainda mais (v. 3). O rei queria colocá-lo à frente do
governo de todo o império, o que sugere uma posição semelhante à de Hamã
e depois de Mardoqueu sob Xerxes (Et 3.1; 10.3). Foi essa consideração por
parte do rei que precipitou a crise da história. Os outros oficiais do reino viram
isso como uma ameaça e procuraram neutralizá-la. Suas motivações não são
explicadas a essa altura, mas comentários no versículo 13 as revelarão.
H 4 Certos oficiais de alto escalão conspiraram contra Daniel para bloquear
a sua promoção. O mais provável é que nem todos os 122 supervisores e os
sátrapas estivessem envolvidos (v. 4). O grego antigo identifica apenas os dois
outros supervisores como oponentes, embora o aramaico inclua pelo menos
alguns dos sátrapas juntamente com os supervisores. Inicialmente eles procu­
raram alguma falha em sua administração governamental para que pudessem
encontrar motivos para acusar Daniel (v. 4). Isso provou ser infrutífero, já
que eles não puderam achar falta alguma nele. O que eles encontraram foi
fidelidade, honestidade e diligência, os mesmos tipos de qualidade que ele de­
monstraria em sua vida religiosa privada (veja v. 10). Uma pessoa fiel é alguém
em quem se pode confiar. Um indivíduo que não é desonesto nem negligente
não pode ser subornado para que abra mão dos seus valores nem distraído dos
seus deveres.
■ 5 Como a vida pública de Daniel estava acima de qualquer censura, seus oponen­
tes procuraram em outra parte. Eles determinaram que a sua lealdade à lei do Deus
dele poderia fornecer a oportunidade (v. 5). Alei referenciada aqui incluía a totali­
dade das práticas hebraicas articuladas pela Torá. Ela é sucintamente resumida em
Deuteronômio 6.4,5: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor.
Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as
suas forças”. Isso estabelece a principal questão da história. A fidelidade de Daniel
a Deus seria colocada em conflito direto com o seu compromisso com o estado.
A lei de Deus e “a lei dos medos e dos persas” entrariam em conflito uma contra
a outra (Dn 6.8,12,15).
181
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

A descrição do dilema dos conspiradores nos versículos 4 e 5 inclui o ter­


mo encontraremos (sãkah ), uma palavra significativa na história. Os oponen­
tes de Daniel tentam “encontrar” falhas em sua conduta, mas não “encontram”
nenhuma. O que eles “encontram” é fidelidade. Quando eles percebem que
não podem “encontrar” o que estão procurando, eles começam a procurar algo
em sua religião. Eles “encontram” Daniel orando fielmente como esperavam
(v. 11). No final, eles constatam que ele é inocente (v. 22) e o encontram sem
nenhum ferimento por causa da sua fidelidade (v. 23). As descobertas dos cons­
piradores guiam o leitor pela história. Aqueles que prestarem atenção desco­
brirão a mesma verdade sobre Daniel que os seus antagonistas descobriram.
H 6 O plano dos detratores de Daniel era persuadir o rei a emitir um decreto
que forçasse Daniel a decidir entre as suas lealdades. Ele teria de escolher entre
a lealdade ao estado e a lealdade ao seu Deus. Os supervisores e os sátrapas
que estavam envolvidos na intriga de comum acordo, foram falar com o rei
para fazer a sua proposta (v. 6). A expressão de comum acordo {regas) debo­
cha das atividades frenéticas dos conspiradores. Ela expressa o retrato de uma
comoção ou um reboliço como um oceano turbulento. Os conspiradores são
descritos desse modo três vezes (v. 6,11,15).
Há uma ambiguidade proposital na forma como o grupo foi falar com o
rei (v. 6). Pessoas comuns se apresentam “diante” do rei (veja 2.2; 3.13; 4.6;
5.13). A preposição usada aqui é “com” {‘aT), que pode ser traduzida como “a
respeito do” ou “contra”. Portanto, o narrador pode estar sugerindo que os
conspiradores estavam fazendo uma comoção “a respeito do” rei para lisonjeá-
-lo e ganhar a sua aprovação. Adicionalmente, poderíamos ouvir o texto dizen­
do que eles estavam incitando uma comoção “contra” o rei.
Os conspiradores começaram a sua proposta com um discurso respeitoso
e apropriado para a realeza, O rei Dario, vive para sempre! (v. 6). Em seguida,
eles dão a falsa impressão de amplo apoio para sua proposta, alegando que uma
longa lista de altos funcionários do governo havia concordado (v. 7). A lista de
autoridades é semelhante ao encontrado em Daniel 3.3.
1 7 A proposta do grupo foi que o rei emitisse um decreto que solidificaria
a lealdade [dos seus súditos] a ele. Ninguém poderia orar a qualquer deus ou
a qualquer homem, à exceção do rei (v. 7). Embora as palavras usadas aqui
talvez impliquem a deificação do rei, esse conceito não se encaixa bem ao que
conhecemos sobre os costumes persas (veja Por trás do texto, anteriormente). E
mais provável que o objetivo do decreto fosse tornar o rei o único representante
dos deuses durante esse breve período. Aqueles que seguissem o decreto
estariam afirmando a soberania do rei, assim como a sua lealdade a ele e ao
182
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

estado. A penalidade para aqueles que não seguissem o decreto era uma morte
certa e horrível por intermédio de leões. Aqueles que não se prostrassem ao rei
do estado deveriam enfrentar o rei dos animais. A imagem de um animal tão
feroz eleva a intensidade do drama. Há altos interesses em jogo.
H 8-9 Os conspiradores instigam o rei a emitir o decreto e assiná-lo (v. 8).
Injunções por escrito incluíam o selo do anel-selo do rei, que impedia que os
editos fossem violados. De extrema importância para os oponentes de Daniel é
que o decreto não seja alterado ou revogado. Nenhuma modificação ou revi­
são pode ser permitida. A lei dos medos e dos persas é evocada como o padrão
das regulamentações irrevogáveis. Isso reflete a firmeza e a consistência com as
quais esses dois grupos de pessoas aparentemente executavam as suas decisões.
O versículo 9 relata que o rei cedeu à proposta que lhe foi apresentada.
O destaque para a imutabilidade do decreto enfatiza as circunstâncias
impossíveis de Daniel. Não há alternativa. Ele terá de confrontar esse decre­
to. Portanto, a tensão da história aumenta consideravelmente. O cenário está
pronto para um confronto dramático entre Daniel e o decreto.
2. A ofensa (6.10-15)
Com o plano delineado, os conspiradores precisam apenas que ele seja
executado. Daniel não desaponta. Ele age com convicção (v. 10,11), e os seus
oponentes pressionam o rei para que condene Daniel (v. 12-15).
H 10 As mesmas qualidades que Daniel demonstra na vida pública, ele de­
monstra na vida privada. Ele é fiel, honesto e diligente diante do seu Deus. Sua
devoção incomum é evidenciada pela referência ao lugar, o número de vezes e
a postura das suas orações. Com pleno conhecimento do decreto, Daniel não
vacila nem esconde as suas convicções. Ele vai para o seu quarto, no andar
de cima para orar (v. 10). Isso provavelmente se tratava de um apartamento
em cima de uma casa de teto tipicamente plano, separada para esse propósito.
O fato de ele ter as janelas de treliça abertas para Jerusalém indica o seu foco
no Deus cujo templo estivera ali. Salomão havia sugerido essa orientação no
momento da oração (1 Rs 8.35), e ela se tornou ainda mais popular depois que
o templo foi destruído em 587 a.C.. Portanto, as petições de Daniel são feitas
diretamente a Deus e não a Dario, como ordena o decreto.
A sua prática de orar três vezes por dia sinaliza não apenas diligência, como
também uma disciplina espiritual e uma urgência fora do comum (v. 10). Orar
três vezes por dia talvez fosse um costume persa, mas isso não era prescrito pela fé
bíblica. A oração duas vezes por dia é mencionada com maior frequência pelas
Escrituras hebraicas, embora três vezes ao dia - de manhã, à tarde e à noite -
183
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

seja mencionado em Salmo 55.16,17 quando a necessidade é premente. O fato


de que Daniel se ajoelhava e orava talvez indique fervor. A posição de pé era
a mais típica para a oração. Daniel provavelmente se apresentava diante do Se­
nhor com os braços abertos e erguidos para o céu, agradecendo ao seu Deus.
Nada disso era fingido ou para ostentar. Daniel simplesmente orava como cos­
tumava fazer.
Talvez Daniel tenha pronunciado as palavras de Salmo 22.21: “Salva-me
da boca dos leões”. Mas a essa altura não há nenhum registro do que Daniel
disse. Os leitores são informados do que ele fez, mas não do que ele disse. Os
efeitos disso dentro de uma narrativa cheia de falas é enfatizar as ações de Da­
niel. A sua fé é demonstrada pelo que ele faz, e não pelo que ele fala (Tg 2.18).
I 11 Os colegas de Daniel testemunharam a sua fidelidade a Deus. Eles o
viram fazendo exatamente aquilo que o edito do rei havia proibido: orando,
pedindo ajuda a Deus (v. 11). Orando (b e a ) é a mesma palavra usada no de­
creto. As duas ações que eles observaram descrevem essencialmente a mesma
coisa, que é fazer petições ou súplicas. Tratava-se de uma hendíadis que funcio­
nava para intensificar a ofensa de Daniel.
■ 12 Armados de evidências, os conspiradores se encaminham até a corte
real. Em vez de começar pelas acusações, eles instigam o rei a confirmar o seu
edito. Eles perguntam: Tu não publicaste um decreto? (v. 12). O rei afirma
que o decreto é válido e imutável, de acordo com o padrão da lei dos medos
e dos persas. Essa é uma tática inteligente para solidificar a inviolabilidade do
decreto. Ela também é um lembrete pungente para o leitor de que Daniel não
terá como escapar dessa situação crítica.
■ 13 A acusação dos colegas de Daniel é reveladora. Ao identificá-lo como
um dos exilados de Judá, eles revelam mais sobre si mesmos do que sobre Da­
niel (v. 13). Sua motivação fica clara. Daniel é um cativo estrangeiro de segunda
categoria que não merece uma posição de autoridade sobre eles. Ele não é um
deles. Os acusadores retratam Daniel como um traidor ao pontuar sua crítica
com pronomes na segunda pessoa. Eles afirmam que ele não te dá ouvidos,
ó rei, nem ao decreto que assinaste. É um ataque de mestre à integridade de
Daniel. A ofensa é relatada de forma simples: ele continua orando três vezes
por dia. Ao mencionar três vezes por dia, até mesmo os oponentes de Daniel
ironicamente reconhecem sua fidelidade diligente ao seu Deus. Eles talvez dis­
torçam os fatos sobre o seu compromisso com o estado, mas eles não podem
deixar de reconhecer a sua devoção ao Senhor.
■ 14-15 A reação do rei à acusação é surpreendente. Inicialmente, ela parece
ser paralela à reação irada de Nabucodonosor à traição de Sadraque, Mesaque
184
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

e Abede-Nego em 3.13. O narrador descreve a condição de Dario como muito


contrariado e decidido a fazer algo a respeito (v. 14). Talvez alguém pudesse
presumir que ele estava furioso ou decidido a expurgar essa traição do seu rei­
no. Porém, Dario estava decidido a salvar Daniel, e não a exterminá-lo. Ele tra­
balhou o dia todo, tentando encontrar uma forma de salvá-lo. Entretanto, seus
esforços não foram bem-sucedidos, o que representa um contraste com aquilo
que o Senhor será capaz de fazer mais tarde. No final, Dario terá de reconhecer
que só Deus é aquele que verdadeiramente “livra e salva” (v. 27).
Ao pôr do sol, o tempo esgota-se para o rei e para Daniel (v. 14). Esse deve
ter sido o tempo prescrito para que a justiça fosse cumprida quanto a esse edito.
Os acusadores voltam a cobrar de Dario a execução do seu decreto. Eles o lem­
bram de que nenhum decreto ou edito do rei pode ser modificado (v. 15).
Pela terceira vez, a lei dos medos e dos persas aparece como a força que dirige os
eventos. A lei vigora como um poder divino controlando o rei. Por conseguinte,
Daniel é condenado por essa força soberana. Parece não haver escape desse poder
dominante, já que nem mesmo um rei persa pode livrar [alguém] dele.
3. A execução (6.16-18)
A narrativa torna-se mais lenta a essa altura para permitir que os leito­
res absorvam o impacto da execução de Daniel. Mais do que a morte de um
homem é retratada. A imagem de um mundo sob o domínio de leis humanas
opressivas emerge. A única esperança num mundo assim é ecoada pelas pala­
vras do rei, que se pergunta se o Deus de Daniel pode fazer a diferença. Ao
longo dessa história, os eventos são narrados segundo a perspectiva do rei. Ele
dá a ordem (v. 16a), oferece uma palavra de esperança (v. 16b), sela o destino de
Daniel (v. 17) e passa uma noite insone (v. 18).
■ 16 A execução de Daniel é ordenada de acordo com a lei. Com o despacho
real apropriado, ele é trazido e jogado na cova dos leões (v. 16a). Mais
uma vez o rei surpreende o leitor quando diz a Daniel: Que o seu Deus, a
quem você serve continuamente, o livre! (v. 16b). A ambiguidade dessas
palavras nos faz indagar se o rei expressou um desafio, um desejo ou uma
convicção. Elas podem ser traduzidas de qualquer uma dessas três formas.
Essa ambiguidade é reminiscente da resposta de Sadraque, Mesaque e Abede-
-Nego a Nabucodonosor (3.17). Qualquer que tenha sido o intento preciso do
comentário de Dario, ele representa um lampejo de esperança em meio a uma
cena sombria. O rei tentou resgatar Daniel, mas não conseguiu fazê-lo. Agora
ele fala da única esperança que resta, a qual, no fim, provará ser suficiente.
■ 17 Como uma nota decisiva, a cova é literalmente selada pelo rei e os seus
185
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

nobres. Taparam a cova com uma pedra (v. 17). Isso sugere que o lugar onde
os leões eram engaiolados consistia num buraco no solo com uma abertura
estreita, algo semelhante a uma cisterna. Selar o buraco envolvia prender trans­
versalmente um cordão à pedra com barro mole. O rei e cada um dos nobres
imprimiam seu anel-selo personalizado no barro. Isso assegurava que a cova
não seria perturbada ou, se fosse, as autoridades saberiam. Essas medidas foram
tomadas para que a sorte de Daniel não se modificasse (sã n â ), assim como o
edito do rei (v. 15). Aparentemente, Daniel não tinha escapatória. A ironia é
que, enquanto os persas estão tampando a boca da cova, Deus está tampando
“a boca dos leões” (veja v. 22).
■ 18 A cena descrevendo a noite no palácio retrata um homem profunda­
mente perturbado pelo resultado indesejado da sua própria autoridade. Iro­
nicamente, o poder do rei não determina a situação. Ele se sente oprimido
pelo poder invisível de uma lei cujo controle ele renunciou. O resultado dessa
abdicação é uma noite sem comer, sem divertimento e sem dormir (v. 18).
Dario está perturbado física, mental e emocionalmente. Seu corpo não pode
recobrar as forças por meio do alimento. Sua mente não pode ser distraída pelo
divertimento. Suas emoções não o deixam descansar. Os efeitos deprimentes e
opressivos da lei humana pesam muito sobre ele.
4. O livramento (6.19-23)
A ação continua a se desenrolar lentamente para que os leitores possam
ponderar a relevância do livramento de Daniel. O rei vem até a cova (v. 19) e
pergunta se Daniel foi salvo (v. 20). Daniel confessa que sim (v. 21,22) e o rei
o confirma (v. 23). A cena se move num esquema quiásmico, passando do rei
a Daniel e novamente de volta ao rei. Isso foca a atenção no testemunho de
livramento de Daniel, que é o clímax teológico do capítulo.
■ 19-20 A preocupação ansiosa do rei com a situação de Daniel é evidente. As­
sim que a escuridão da noite opressiva se dissipa, ele corre apressadamente até a
cova. Logo ao alvorecer sugere o primeiro momento possível (v. 19). Ao chegar à
cova, ele fala com voz que revelava aflição (v. 20). Isso poderia ser traduzido como
com u m g r ito d olorid o. Ele obviamente está esperançoso, mas espera o pior.
A pergunta do rei articula a questão principal da história: Deus será fiel
para livrar um homem fiel? A referência a Daniel como servo do Deus vivo,
juntamente com a frase serve continuamente, enfatiza a fé exemplar de Daniel
(v. 20). Essa é a segunda vez que o rei menciona a última característica (veja v.
16). Ele observou a devoção de Daniel. O rei também destaca a natureza dinâ­
mica e pessoal do Deus de Daniel. Ele é o Deus vivo e o seu Deus.
186
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O principal objetivo da pergunta do rei é determinar se Deus é ou não ca­


paz de livrar. Trata-se de uma questão não apenas de efetividade, mas também
de confiabilidade. A questão é saber se Deus se importa ou não em fazer uma
diferença neste mundo, e também se Deus pode ou não fazer essa diferença.
■ 2 1 -2 2 Daniel fala pela primeira vez nesse momento da história. Essa ca­
racterística da narrativa destaca a fidelidade silenciosa de Daniel. Ele não fez
alarde, mas todos parecem saber do seu posicionamento. A atuação de Deus
na sua vida parece mais pronunciada por causa disso. As primeiras palavras
de Daniel reconhecem a sua lealdade ao rei. A frase Ó rei, vive para sempre!
não é simplesmente uma formalidade (v. 21). Ela é uma afirmação de lealdade,
assim como as últimas palavras desse breve discurso (Também contra ti não
cometi mal algum, ó rei, v. 22).
Daniel testifica que Deus pode e deseja afetar as circunstâncias humanas.
Ele interveio de forma dramática. O meu Deus enviou o seu anjo, que fechou
a boca dos leões (v. 22). Assim como aconteceu a Sadraque, Mesaque e Abede-
-Nego, o Senhor enviou um mensageiro para acompanhar seu servo devoto em
meio à sua provação (3.28). A promessa de Salmo 91.11 encontra o seu cum­
primento nesse caso: “Porque a seus anjos ele dará ordens a seu respeito, para
que o protejam em todos os seus caminhos”. Daniel enfatiza o fato de que esse
resgate veio de Deus. Ele não foi o resultado de boa sorte, de um acontecimento
aleatório, ou mesmo de um mensageiro divino. O anjo foi enviado por Deus. A
principal explicação para a sua preservação é a iniciativa salvadora do Senhor.
O livramento de Daniel, contudo, não resulta apenas da fidelidade de
Deus, mas também depende da fidelidade de Daniel. A devoção de Daniel ofe­
rece uma oportunidade para que a fidelidade de Deus seja manifesta. Daniel
demonstrou lealdade de duas maneiras: diante do Senhor e diante do rei. Ele
foi considerado inocente à vista de Deus e provou não ter feito mal algum ao
rei (v. 22). Sua fidelidade a Deus não o tornou desleal para com o rei. Daniel
ilustra que o compromisso com o estado e o compromisso com Deus não pre­
cisam conflitar um como o outro.
I 2 3 Só agora Daniel é removido da cova. O rei dá ordens e Daniel é tirado
da cova (v. 23). Como um homem tirado da “sepultura” (SI 30.3), Daniel rein-
gressa na terra dos viventes. O fato de que não havia nele nenhum ferimento
confirma o seu testemunho. A razão para o seu livramento é articulada mais
uma vez: a devoção de Daniel a Deus. Dessa vez, a sua fidelidade é descrita
pela frase ele tinha confiado no seu Deus (v. 23). Como ilustra a história, isso
significa que ele acreditava tanto em Deus que estava disposto a colocar sua
posição política e sua vida física nas mãos do Senhor. Foi literalmente esse tipo
de fé que lhe trouxe vida.
187
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O resultado da intervenção de Deus é que os leões não fazem mal algum a


Daniel (v. 22), e ele não sofre nenhum ferimento (v. 23). Essas descrições suge­
rem que Daniel se tornou a representação visível do Reino de Deus. De acordo
com o versículo 26, aquele reino “não será destruído”. A mesma raiz aramaica
h ãbã l está por trás das palavras mal (v. 22), ferimento (v. 23) e “destruído” (v.
26). A sobrevivência de Daniel ilustra a qualidade eterna do Reino de Deus.

5. A conclusão (6.24-28)
A história termina com duas ordens que confirmam Provérbios 14.35:
“O servo sábio agrada o rei, mas o que procede vergonhosamente incorre em
sua ira”. O rei ordena a execução dos acusadores de Daniel (Dn 6.24) e a ado­
ração ao Deus de Daniel (v. 25-27). A segunda ordem é o clímax teológico
do capítulo. Uma nota final sobre a prosperidade de Daniel conclui a história
(v. 28).
■ 24 A história contém uma justiça poética na medida em que os acusado­
res de Daniel recebem o julgamento planejado para ele. Eles foram atirados
na cova dos leões (v. 24). Isso segue tanto o costume israelita (Dt 19.18,19)
como o persa (Et 7.10). A inclusão das suas mulheres e os seus filhos assegura
a perda do legado assim como da vida. Ela também pode eliminar a retaliação
da família. Essa prática normalmente era proibida pela lei israelita (Dt 24.16),
mas às vezes era permitida entre eles (Js 7.24,25). A descrição da morte dos
acusadores inclui toques de ironia. A palavra traduzida como acusado signifi­
ca literalmente co m id o os seu s p e d a ço s, e d esp ed a ça ra m significa literalmente
quebraram em pedaços. Portanto, aqueles que haviam comido os pedaços de
Daniel tiveram seus ossos quebrados em pedaços e presumivelmente comidos.
A cena também enfatiza o livramento miraculoso de Daniel. Os leões não eram
passivos nem haviam sido previamente alimentados. Eles eram tão vorazes que
atacaram suas vítimas antes de chegarem ao fundo.
■ 25 A outra ordem de Dario substitui o seu primeiro edito e realça os princi­
pais pontos teológicos da história. Esses pontos constituem um excelente resumo
da seção de histórias em Daniel, e com isso fornecem uma conclusão apropriada
para essa unidade do livro. Eles relembram a linguagem específica dos louvores
reais que concluíram diversos dos capítulos até agora (2.47; 3.28,29; 4.34,35).
O rei usa hendíadis em seu discurso para dar maior ênfase aos seus pensamentos.
Essas incluem “temam e reverenciem”, “Ele livra e salva” e “sinais e maravilhas”.
Dario endereça o seu novo edito aos homens de todas as nações, povos e
línguas de toda a terra (v. 25). A audiência é totalmente inclusiva e reflete a
188
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

linguagem dos decretos de Nabucodonosor em 3.4 e 4.1. O edito segue a forma


típica de uma proclamação e começa com um desejo de “paz e prosperidade” (veja
4.1).
H 26 O decreto contém uma ordem específica para que todos temam e reve­
renciem o Deus de Daniel (v. 26). Essa injunção está de acordo com a prática
persa de honrar todas as divindades existentes em todo o império. Do ponto
de vista israelita, ela encoraja as pessoas a se tornarem verdadeiramente sábias,
já que “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Pv 9.10).
A razão por que o Deus de Daniel deve ser honrado é por causa do seu
caráter, que Dario viu manifestado na vida de Daniel. Ele havia observado um
Deus vivo, um Deus eterno, um Deus salvador e um Deus que opera milagres.
Esses mesmos pontos foram enfatizados nas histórias anteriores do livro (veja
A partir do texto, a seguir). O Deus vivo refere-se à capacidade do Senhor de
se envolver verdadeiramente na vida humana (v. 26). Os leitores judeus veriam
nisso um contraste com relação aos ídolos, os quais não podem ver, ouvir nem
falar (veja Is 44.18; Dn 5.23).
A imutabilidade de Deus se encontra no âmago do conflito na história.
Portanto, ela chama a atenção de Dario. O fato de que Deus permanece para
sempre contradiz diretamente “a lei dos medos e dos persas”. As leis humanas
provaram ser tudo, menos imutáveis; o que foi comprovado pelo pronuncia­
mento do segundo edito. Embora as leis do reino de Dario possam ser altera­
das, exterminadas e revertidas, o seu reino [de Deus] não será destruído e o
seu domínio jamais acabará.
H 2 7 Por meio do episódio da cova dos leões, Dario constatou que o Deus de
Daniel livra e salva (v. 27). O próprio Dario não havia sido capaz de fazer isso.
Ele tinha esperança de que o Deus de Daniel pudesse fazê-lo (veja v. 16), e per­
guntou se isso realmente era verdade (veja v. 20). Agora ele sabia que o Senhor
era um salvador porque ele o havia visto com seus próprios olhos. Ele confessa
que Deus livrou Daniel do poder dos leões (v. 27).
As mãos do Senhor, operando na experiência de Daniel, demonstraram que
Deus faz sinais e maravilhas, não apenas nos céus, como também na terra (v.
27). Nabucodonosor declarou ter descoberto a mesma coisa (4.3,35). Isso enfa­
tiza a universalidade do governo do Senhor e, em particular, a sua manifestação
dentro da dimensão humana. Deus não está longe. Ele está perto. Ele não se es­
conde. Ele revela-se.
A última notação do capítulo evoca o seu começo, assim como a primeira
história do livro. Mais uma vez, Daniel “prosperou” sob o governo de um rei
poderoso (v. 28). De acordo com 1.21, ele serviu nas cortes reais, começando
189
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

com Nabucodonosor, “até o primeiro ano de Ciro”. No capítulo 6, ele


aparentemente é restaurado a essa posição na corte de Dario. As conexões entre
a primeira e a última histórias de Daniel 1-6 lembram o leitor de que Daniel
sobreviveu à transição de reinos. Como representante do reino divino de Deus,
Daniel prova a verdade do capítulo 2 e a afirmação de Dario, de que o seu
domínio [de Deus] jamais acabará (v. 26).
H 2 8 A frase durante os reinados de Dario e de Ciro, o Persa talvez busque
estabelecer uma ligação entre Dario e Ciro (v. 28). A conjunção e pode ser
traduzida como um explicativo. Assim, a frase poderia ser lida como durante
o reinado de Dario, ou seja, o reinado de Ciro, o persa. Se esse for o signifi­
cado correto, então isso esclarece o relacionamento entre Ciro e Dario. Se e
for considerado uma conjunção, então a frase simplesmente relata o sucesso
contínuo de Daniel sob dois governantes diferentes. Independente de como
o leitor escolha traduzir essa frase, sua implicação teológica não deveria passar
despercebida. O servo fiel de Deus prospera em meio aos poderes estrangeiros.
A partir do texto
O capitulo 6 é mais do que uma história cativante sobre leões famintos que
colocam em perigo um dos melhores servos de Deus. Como a última história
de Daniel, o capítulo 6 fornece uma conclusão apropriada. Ele sumariza os
principais tópicos das histórias anteriores, mas também explora dimensões no­
vas nesses temas. Os principais argumentos examinados são os efeitos do servi­
ço fiel; a busca humana pela estabilidade; a interface entre as leis do estado e as
leis divinas; e as implicações da soberania de Deus na vida humana individual.
Pessoasjiéis revelam um Deusfiel. Dario define Deus com base no que ele
viu na vida de Daniel. Com efeito, Daniel tornou-se um livro de teologia para
Dario. Por isso o rei confessou nos versículos 26,27 que o Senhor é um Deus
vivo, um Deus eterno, um Deus salvador e um Deus que opera milagres.
A mão atuante de Deus manifesta na vida de Daniel convenceu o rei de
que o Deus de Daniel era um Deus vivo. A devoção consistente de Daniel,
orando três vezes por dia e servindo continuamente, testifica a realidade do
Senhor no dia a dia. Como Daniel permanece ileso ao longo de toda a sua
provação, o rei conclui que o Reino de Deus também não será destruído. Ele
também observa que a forma como o Senhor livrou Daniel da cova dos leões
prova que Deus salva. Os sinais e maravilhas que o Senhor operou, fechando
a boca de leões famintos, ilustram que Ele é um Deus que opera milagres, não
apenas nos céus, como também na terra.
190
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Esses são os mesmos pontos que as histórias anteriores haviam destacado.


Como sugere o capítulo 1, o Deus de Daniel não foi derrotado com a queda de
Jerusalém. Ele é um Deus vivo que age em favor do Seu povo. A Sua presença
talvez não seja tão tangível quanto a dos ídolos, mas ela é mais real nos efeitos
que produz. Como o capítulo 2 enfatizou, o Deus de Daniel permanece para
sempre. Ele é um rei cujo reino sobreviverá a todos os outros reinos. Os reinos
terrenos surgirão e cairão, mas o seu domínio jamais acabará. Como ilustra
o capítulo 3, o Deus de Daniel livra o Seu povo de desastres. Ele intervém em
favor dos seus sevos fiéis e os salva de perigos impossíveis, como leões e forna­
lhas. Finalmente, como enfatizam os capítulos 4 e 5, o Deus de Daniel revela-se
dentro da dimensão dos homens. Ele faz sinais e maravilhas nos céus e na
terra para chamar a sua atenção (6.27). Ele não permanece distante ou desco-
nectado. Os negócios terrenos são os negócios de Deus.
Dario sabia dessas coisas sobre o Senhor por causa de Daniel. Ele as viu
demonstradas em sua vida. Como confirma Hebreus 11.33, a fé de Daniel fez
uma diferença neste mundo; ela fechou “a boca de leões”. Por meio da devoção
de Daniel, o Senhor se revelou àqueles que se dispuseram a observar. Num teste
dramático de fidelidade, Deus se mostrou fiel por intermédio de um servo fiel.
A esta b ilid a d e é en con trad a nas leis d e D eus, e n ão nas leis h um anas. O ca­
pítulo 6 expõe a ilusão da legislação humana. Embora as leis sejam necessárias
para uma sociedade ordeira, é fácil esperarmos demais delas. As pessoas muitas
vezes esperam mais dos governos humanos do que eles podem oferecer. O prin­
cipal conflito da história se desenvolve entre a lei do Deus dele (v. 5) e a lei
dos medos e dos persas (v. 8,12,15). A última alegava ser permanente. Ela não
pode ser revogada (v. 8,12,15). Como tal, ela parecia prometer um sentido de
estabilidade e segurança para a vida humana. Essas leis pareciam ser ferramen­
tas úteis para administrar a vida, mas, no final, elas provaram ser opressivas.
Dario foi tolamente levado a pensar que as leis poderiam cumprir o an­
seio humano por estabilidade. Por 30 dias, todas as petições feitas no seu reino
deveriam ficar sob o seu controle. Um sentido de ordem e consistência pre­
valeceria. Entretanto, Dario não estava sozinho nessa esperança. Os conspira­
dores também viam uma promessa nas leis humanas. O decreto certo poderia
resolver o dilema deles e ajudá-los a ganhar uma vantagem. Ironicamente, eles
minaram o valor essencial da lei humana, tentando usá-la para sua vantagem
pessoal, e não para o serviço coletivo. As leis são feitas para o bem comunitário,
e não individual. Os conspiradores também revelaram o erro fatal da lei huma­
na. Quando ela serve apenas a poucos, ela cessa de cumprir o papel que lhe foi
ordenado por Deus (Rm 13.1).
191
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Em dois momentos distintos, o texto demonstra que a busca pela segurança


completa por meio de leis é errônea. Por um lado, a imutável lei dos medos e dos
persas provou ser mutável. Os conspiradores devem ter suspeitado dessa opção.
Suas contínuas afirmações da imutabilidade e a pressão que eles tentaram exercer
sobre o rei quanto a isso revelam a sua incerteza sobre esse ponto. No final, Dario
emite um segundo decreto que elimina o primeiro. Uma lei ordenando que todos
temam e reverenciem o Deus de Daniel substitui aquela que exigia reverência
exclusiva a Dario (v. 26). Ao proclamar o segundo decreto, Dario demonstra a
impermanência das leis humanas. Os piores temores dos conspiradores se concre­
tizaram. A lei humana foi obrigada a ceder a um poder maior.
Por outro lado, as leis de Deus não se dobram. Como diz o salmista, “a lei
do Senhor é perfeita, (...) os testemunhos do Senhor são dignos de confiança,
(...) os preceitos do Senhor são justos, (...) as ordenanças do Senhor são verda­
deiras, são todas elas justas” (SI 19.7-9). Daniel baseia sua vida nelas e prova
a sua veracidade. Ele não apenas sobrevive, mas também prospera no final. E
bem verdade que essas leis o levam à beira do desastre. Ele é jogado na cova dos
leões por basear a sua vida nelas. Porém, ele também é livrado daquela cova ile­
so porque ele tinha confiado no seu Deus (6.23). A lei do Senhor ocasionou
o seu livramento.
A ilusão da lei é de que ela, de algum modo, estabelecerá um sistema que
não sofrerá nenhuma perda (v. 2). Ela promete uma segurança que não pode
dar. A história mostra que a lei humana, na verdade, pode produzir grandes
perdas. O servo favorito do rei quase é perdido para esse poder, mas mais do
que isso ocorre. O próprio rei perde a paz interior e até mesmo a autoridade de
agir como deseja sob o domínio dessa lei. Os conspiradores perdem a sua in­
tegridade e eventualmente as suas vidas por causa dela. A lei dos medos e dos
persas praticamente assume uma qualidade divina na história. Ela é uma força
externa que controla os eventos terrenos. Essa lei sobrepuja todos os persona­
gens da história, exceto o Senhor. Provérbios 14.12 pode ser aplicado às leis
humanas quando diz: “Há caminho que parece certo ao homem, mas no final
conduz à morte”. Como ilustra Daniel 6, as pessoas sabotam os seus próprios
planos de vida quando depositam confiança demais em suas leis.
Aqueles que desejam uma vida bem ordenada devem olhar para o Deus que
permanece para sempre, como disse Dario. O lugar onde Deus governa não
será destruído, e o alcance da sua autoridade jamais acabará. A verdadeira
estabilidade e segurança só pode ser encontrada no Reino de Deus. O Deus
eterno tem esses dons em Suas mãos. Ele é como uma rocha e uma fortaleza que
não será abalada (SI 62.6). “Ainda que a terra trema e os montes afundem no
coração do mar”, o Senhor permanece firme e seguro (SI 46.2).
192
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Os m elh ores cida dã os d o estado são o p o v o d e D eus. O conflito nessa história


vai além de leis opostas. Em outro nível, ele é sobre a religião versus o estado.
A fidelidade a Deus entra em conflito com a fidelidade ao estado. Entretanto,
Daniel afirma que ele nunca cometeu mal algum contra o rei (v. 22). Embora
ele tivesse violado o decreto ao fazer petições ao seu Deus, Daniel afirma que a
sua lealdade ao estado permanece.
Talvez alguém possa argumentar que nessa história Daniel provou ser
mais leal do que aqueles súditos que obedeceram a letra da lei. Ao planejarem
o primeiro edito, os conspiradores encorajaram o estado a seguir ilusões. A sua
insistência na inviolabilidade da lei promoveu o engano de que a lei, de algum
modo, é capaz de criar uma estabilidade absoluta. Eles também defenderam a
crença de que a lealdade pode ser legislada e de que as pessoas podem ser dota­
das de um poder que só o Senhor deveria possuir.
Quando o estado segue essas ilusões, seus melhores cidadãos protestam. O
protesto da oração de Daniel foi brando, porém efetivo. Ele encorajou o rei a
questionar o próprio decreto e a buscar maneiras de salvar Daniel. No final, Dario
é incapaz de livrar Daniel da tirania do edito, mas Deus pode fazê-lo. Na medida
em que esse cenário se desenrola e que o poder de Deus se torna manifesto por
meio dele, o rei passa a adotar uma posição mais saudável. O seu segundo decreto
dirige o estado na direção certa ao ordenar que todos temam e reverenciem o
Senhor (v. 26). A cidadania leal de Daniel instiga o império a fazer a coisa certa.
Os escritores do Novo Testamento entenderam o dilema de Daniel e con­
firmaram a sua posição de lealdade ao estado. Jesus ensinou os Seus discípulos
a darem “a César o que é de César” (Mt 22.21), e Paulo admoestou os cren­
tes a se submeterem “às autoridades governamentais” (Rm 13.1; Tt 3.1). Os
motivos para exercermos uma boa cidadania são muitos. Eles incluem evitar
reprimendas do estado e também dar um bom testemunho aos não crentes
(Rm 13.2-7; 1 Pe 2.13-22). Entretanto, e o que é mais importante, os escritores
do N T entendiam que toda autoridade derivava de Deus (Rm 13.1). Portanto,
rebelar-se contra o estado é como rebelar-se contra Deus. Por isso os cristãos
devem obedecer às leis do estado “por causa do Senhor” (1 Pe 2.13). Contudo,
quando um conflito emerge entre a lei de Deus e as leis humanas, os cristãos
entendem que estão sujeitos a uma autoridade mais alta. Como disse Pedro, “é
preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!” (At 5.29).
D eus tem p o d e r sob re a m orte. O capítulo 6 é uma história de livramento da
morte. Ser jogado na cova dos leões significava a morte de Daniel. Não se podia
esperar que algum homem sobrevivesse a essa execução, mas ele sobreviveu.
Como relata o texto, Deus enviou o seu anjo, que fechou a boca dos leões e
193
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

livrou Daniel ileso (v. 22). O poder de Deus estende-se à preservação da vida.
Portanto, a soberania do Senhor inclui a habilidade de sobrepujar não apenas
reis e decretos como também o maior inimigo da humanidade, a morte.
A história não indica que todas as pessoas deveriam esperar o livramento
do perigo. A fé bíblica sabe que o sofrimento e a morte alcançam os fiéis. Estê­
vão, Tiago, Paulo, Pedro e quase todos os 12 discípulos originais de Jesus foram
martirizados por causa da sua fé naqueles primeiros anos. Desde então, inúme­
ros outros têm se juntado a eles, até mesmo hoje. Por razões que só o Senhor
sabe, Ele nem sempre preserva a vida neste mundo. Entretanto, como testifica
a experiência de Daniel, Deus traz vida onde a morte reina. Ele é o Deus vivo.
O Senhor é o criador e o sustentador da vida (Gn 2.7; Jo 1.4).
O poder da ressurreição de Deus é vagamente refletido nessa história.
Como tal, ele antecipa a última visão do livro, a qual anuncia: “Multidões que
dormem no pó da terra acordarão” (Dn 12.2). Isso também prenuncia a histó­
ria de Jesus. Os paralelos entre Jesus e Daniel são notáveis. Ambos são vítimas
de traidores e são vistos orando antes do seu aprisionamento. Durante o seu
julgamento, a autoridade principal percebe a falácia dos procedimentos legais
e se esforça para libertá-los. No final, eles são condenados por leis humanas mal
direcionadas. Uma pedra cobre a sua câmara subterrânea e é selada pelas au­
toridades. Dentro da dimensão humana, nenhuma esperança pode ser encon­
trada para a sua sobrevivência. Ao raiar do dia, contudo, com grande alegria,
descobre-se que eles na verdade estão vivos.

194
II. VISÕES DE UMA TERRA ESTRANGEIRA ( 7 .1 - 1 2 .1 3 )

Panorama geral
A segunda grande seção do livro registra quatro visões que Daniel recebe
enquanto serve nas cortes da Babilônia e da Pérsia. Elas são organizadas em or­
dem cronológica, começando pelo período que equivale às histórias dos capí­
tulos 1—6 e avançando alguns anos além delas. Como Ezequiel 1, elas afirmam
que Deus continua falando ao Seu povo em uma terra estrangeira.
Essas visões conectam-se integralmente uma a outra. Temas comuns, tó­
picos, elementos estruturais e palavras-chave criam um sentido de interdepen­
dência e unidade. Todas as quatro visões lidam com o assunto dos reinos em
conflito. À medida que elas progridem, cada visão tende a se tornar mais par­
ticular e detalhada do que a anterior. A primeira visão no cap. 7 esboça com
pinceladas genéricas um panorama geral da história do mundo. As outras três
visões nos capítulos 8— 12 se concentram num período particularmente agi­
tado dentro daquele esquema. Elas enfocam um tempo de aflição que gira em
torno de um evento chamado de “sacrilégio terrível” (9.27;11.31; veja 8.13).
As imagens das visões também demonstram um movimento do surreal para
o mais familiar. Animais fantásticos no capítulo 7 dão lugar a animais mais
realísticos no capítulo 8. Esses são substituídos por imagens numéricas no ca­
pítulo 9 e finalmente por atividades específicas de reis nos capítulos 10 a 12.
Como uma unidade, as visões reafirmam os temas centrais estabelecidos
pelas histórias na primeira porção o livro, explorando com mais profundidade
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

as suas implicações. O Deus soberano experimentado por Daniel e pelos seus


amigos permanece em pleno controle. O Seu domínio se estende sobre todos
os reinos deste mundo, indo até mesmo além deles. Aqueles que são sábios
como Daniel podem esperar receber livramento de Deus, se não no presente,
então no futuro. Uma vida fiel é sempre recompensada no final. Portanto, en­
quanto os crentes esperam pela manifestação plena do governo do Senhor no
futuro, eles são desafiados a permanecer inabaláveis em seu compromisso com
o Seu reino no presente.

A. A visão das quatro bestas (7.1-28)

Panorama geral
O capítulo 7 serve como o ponto focal do livro. Em seus versículos, tudo
aquilo que ocorreu antes se converge a tudo aquilo que se seguirá. Por um lado,
tudo é novo. Por outro, tudo permanece igual. Um novo gênero é empregado
para esboçar uma imagem nova da soberania de Deus sobre este mundo. Po­
rém, ao mesmo tempo, a estrutura narrativa geral permanece, e a linguagem e
os temas das histórias reaparecem. Esses elementos se combinam para formar
um retrato memorável do “tempo certo”, quando o Senhor se levantará e terá
“misericórdia” do Seu povo (SI 102.13). A centralidade desse capítulo não deve
passar despercebida.
Por trás do texto
Diversas características marcam o capítulo 7 como central no livro. A lin­
guagem, os temas e os tópicos gerais do capítulo o ligam tanto às histórias (cap.
1-6) quanto às visões (cap. 7-12). Os elementos estruturais e o gênero também
fazem com que esse capítulo funcione como uma junção entre as duas porções
principais de Daniel. Como visão, o capítulo 7 introduz a última seção do li­
vro. Porém, ele também serve como uma conclusão para as histórias.
A seção aramaica de Daniel (cap. 2-7) encerra-se no fim do capítulo 7.
Essa porção forma uma unidade distinta dentro do livro, unidade cuja coesão
é obtida não apenas pela linguagem, como também por outras características
(veja Por trás do texto no cap. 2). A sua conclusão sinaliza algo significativo
para o leitor. Os temas e tópicos principais fizeram um circuito completo, e um
clímax conclusivo é alcançado.
Embora a seção aramaica seja dominada por narrativas, o capítulo 7 está
integralmente relacionado a essas narrativas. Conexões verbais e temáticas en-
196
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

tre o capítulo 7 e essas narrações são evidentes em diversos níveis. O mais óbvio
é o relacionamento com o capítulo 2 e o sonho equiparável sobre os quatro rei­
nos. O tema do juízo divino sobre os reinos terrenos domina ambos os capítu­
los. Visões por intermédio de sonhos, a emergência e a queda de quatro reinos,
e a força aterrorizante do ferro referente ao último reino são alguns dos temas
semelhantes. Como o começo e o final da seção aramaica, esses dois capítulos
formam uma moldura com relação ao conteúdo dessa seção.
As descrições e interpretações dos quatro reinos mundiais nos capítulos 2
e 7 tendem a complementar umas as outras. Elas fornecem detalhes que talvez
estejam faltando em um ou outro capítulo. A forma como os reinos terrenos
afligem o povo de Deus, por exemplo, não é mencionada no capítulo 2, mas re­
cebe uma ênfase considerável no capítulo 7. As duas versões também fornecem
contrastes quanto às perspectivas. A imponente estátua de metal do capítulo
2 retrata os reinos deste mundo a partir de uma perspectiva humana, em todo
o seu resplendor e glória. As bestas grotescas do capítulo 7, por outro lado, ex­
pressam o caráter animalesco dos reinos terrenos sob o ponto de vista de Deus.
A aparição de duas visões similares dentro do livro enfatiza a significância das
mensagens que elas contêm. Os temas também são repetidos para chamar a
atenção do leitor.
As ligações com outras histórias do livro também são significativas. Al­
guns exemplos incluem os seguintes: a referência à execução pelo “fogo” (7.11)
evoca a provação de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego no capítulo 3; a descri­
ção das bestas em 7.4-8 alude ao orgulho de Nabucodonosor e à sua aparência
bestial no capítulo 4; o contexto do reino de Belsazar (v. 1) e as descrições
do pequeno “chifre” arrogante (v. 8,25) evocam a história da humilhação de
Belsazar no capítulo 5. A aparência semelhante à de um leão da primeira besta
(7.4) relembra os leões que ameaçaram Daniel no capítulo 6.
Embora o capítulo 7 esteja intimamente associado às histórias, ele tam­
bém dá início à segunda metade do livro. Um novo gênero - o relato de visões
de estilo apocalíptico - é empregado, o qual dominará os últimos capítulos do
livro. Quatro visões pessoais de Daniel estão registradas nos capítulos 7— 12.
Elas empregam temas e uma linguagem apocalíptica, como animais e números
simbólicos, além de seres celestiais que agem como guias do visionário.
A forma geral dos capítulos 7 — 12 consiste no relato de uma visão profética.
A estrutura típica desses relatos contém duas partes: (1) uma descrição do que
é visto, seguida pela (2) sua interpretação (veja Jr 1.11-16). Esse é o padrão
seguido no capítulo 7. Outros elementos frequentemente encontrados nesse
gênero incluem: (1) uma indicação das circunstâncias; (2) um pedido por
197
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

entendimento; e (3) uma declaração final sobre a reação do visionário. Uma


característica adicional encontrada em alguns dos profetas exílicos e pós- exílicos
é a presença de seres celestiais que ajudam aquele que recebe a visão (Ez 40-
48; Zc 1-6), particularidade esta que se torna corriqueira nos apocalipses não
canônicos. Antes do exílio, os profetas tipicamente relatavam uma conversa
direta com o Senhor, o qual também lhes explicava os significados (Is 6; Am
8 . 1, 2 ).
Como no capítulo 8, o visionário do capítulo 7 relata ter visto animais que
representam reinos humanos. Portanto, essas duas visões podem ser distinguidas
daquelas descritas nos capítulos 9—12, as quais não incluem tais imagens, como
relatos de visão simbólicos. Entretanto, os animais do capítulo 8 são diferentes
daqueles do capítulo 7. Há apenas dois deles, e eles não são híbridos. Porém, trata-
-se de animais ferozes que possuem chifres. O segundo animal tem um pequeno
chifre aterrorizador, semelhante ao pequeno chifre do capítulo 7. O contexto de
ambas visões é identificado com relação ao reinado de Belsazar. Há outras cone­
xões, mas essas serão consideradas nos comentários do capítulo 8.
Além do gênero comum, os últimos capítulos do livro estão conectados
por uma nova sequência cronológica que os distingue dos capítulos anteriores.
As histórias dos capítulos 1—6 se movem sequencialmente, indo do tempo de
Nabucodonosor até Belsazar e Dario. O capítulo 7 retorna ao primeiro ano de
Belsazar, o que o coloca cronologicamente entre os capítulos 4 e 5. Portanto,
as visões dos capítulos 8 e 9 estão relacionadas aos reinados de Belsazar e Dario,
enquanto a visão final dos capítulos 10— 12 está conectada ao terceiro ano de
Ciro. O padrão “primeiro ano” seguido de “terceiro ano” também pode ser
observado nessas notações, padrão este que cria outra ligação entre essas visões.
Exceto pelo primeiro versículo, a visão do capítulo 7 é narrada a partir da
perspectiva da primeira pessoa. Uma introdução na terceira pessoa não é in-
comum nesse tipo de relato (veja 10.1). Embora essa característica pudesse in­
dicar a influência secundária de outro autor, ela não significa necessariamente
isso. Um comentário na terceira pessoa é uma ferramenta literária tipicamente
empregada nos materiais pós-exílicos (veja Ed 7 e Ne 1). Isso tende a destacar
o efeito de testemunha ocular fornecido pela perspectiva da primeira pessoa.
O contexto histórico dado para a visão do capítulo 7 é significativo. Ele
identifica um período de inquietação e de impérios emergentes, como aqueles
vislumbrados no sonho de Daniel. O primeiro ano de Belsazar ocorreu em
torno de 550 a.C. (v. 1). Esse foi o ano em que o rei babilónico Nabonido
delegou o controle diário do império para o seu filho mais velho, Belsazar, e se
retirou para o deserto arábico por um período de aproximadamente dez anos.
198
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Nabonido preferia a adoração a Sin, o deus da lua, à adoração de Marduque,


o deus padroeiro da Babilônia. Esses fatores criaram um conflito religioso e
político entre as diversas facções da Babilônia, gerando desordem no império.
O ano de 550 a.C. também marca a época em que Ciro, o Grande, rebe-
lou-se contra o seu senhor medo Astiages e uniu as forças dos medos e dos per­
sas. Ao fazer isso, ele estabeleceu um dos impérios mais duradouros da história
do mundo, o Império Persa, o qual durou mais de dois séculos, de 550 a.C. a
331 a.C., tornando-se um dos maiores impérios já conhecidos na terra (para
maiores informações, veja Por trás do texto no cap. 8).
Embora muitas das ideias e imagens empregadas no capítulo 7 sejam sin­
gulares ao livro de Daniel, existem diversas interconexões com outros textos
das Escrituras hebraicas. Especialmente notáveis são as passagens que se re­
ferem a Deus como criador e juiz. Esses textos estabelecem um contexto es­
sencial para a cosmovisão na qual essa visão se baseia. A imagem do Senhor
formando e subjugando monstros marinhos refletida nessa visão é significativa
(Gn 1.20,21; Is 17.12,13; Jr 46.7; Jó 40,41; SI 74.12-14; Ez 29.3; 32.2), assim
como o retrato de Deus assentado como juiz sobre as nações (SI 9.7,8; 96.10-
13; 110.1-7). O Salmo 2 é particularmente instrutivo, já que ele menciona o
Senhor nomeando o Seu “filho” como rei para governar sobre as nações. De
modo similar, o Salmo 89 fala de Deus reinando do Seu trono e revestindo de
autoridade um governante davídico. Esse salmo também inclui referências ao
Senhor esmagando o monstro marinho Raabe. Visões proféticas da consuma­
ção definitiva da história do homem no Dia do Senhor fornecem um contexto
adicional à visão de Daniel (Is 2.1-5; 66.17-24; Zc 14.1-21). As descrições do
povo de Deus compartilhando o domínio sobre os seus antigos opressores (Is
14.1-4) e de todas as nações adorando ao Senhor (Is 2.2) são particularmente
relevantes. A aparência de Deus no Seu trono é consistente com outras visões
da sala do trono nas Escrituras hebraicas (1 Rs 22.19; Ez 1.4-28).
As ideias e imagens do capítulo 7 também se encaixam ao contexto do
mundo no antigo Oriente Médio (para uma discussão mais aprofundada do
assunto, veja Lucas, 2002, p. 168-176 e Collins, 1993,p. 280-294). A mitologia,
a iconografia e os textos de sabedoria da Mesopotâmia e de Canaã fornecem
diversos paralelos gerais aos elementos encontrados na visão de Daniel. Embora
nenhuma correspondência exata ao que Daniel vislumbra possa ser descoberta
nesses materiais, um contexto para o processamento de imagens bizarras e para
o padrão de relacionamentos entre os personagens é estabelecido. Por exemplo,
o mito de criação mesopotâmio E num a Elish relata a luta de Marduque com
o mar e os seus monstros. Textos do Ugarit canaanita mostram um episódio
199
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

similar tendo Baal como campeão. Relevos e estátuas de leões alados eram
temas comuns nos palácios do mundo antigo. Textos de augúrios registravam
o nascimento de animais híbridos e deformados. Esses eram considerados
mensagens dos deuses e analisados com um cuidado extremo. Tais paralelos
não indicam que Daniel tenha tomado esses elementos emprestados para
construir a sua visão. Porém, eles fornecem um pano de fundo histórico para
os efeitos visuais e conceituais que a visão teria sobre o seu público original. A
visão de Daniel não era uma coleção inteiramente singular de imagens e ideias
sem nenhuma referência ao mundo intelectual de seu público.
A visão do capítulo 7 segue uma estrutura simples. O relato da visão (v.
2-14) é seguido da sua interpretação (v. 15-27). Essas duas seções principais
são emolduradas por uma breve introdução (v. 1) e uma conclusão mais breve
ainda (v. 28).
O relato e a interpretação são paralelos. O relato progride, movendo-se da
descrição das quatro bestas (v. 2-7) para um foco sobre o pequeno chifre (v. 8)
e então para a cena do trono (v. 9-14). A interpretação segue a mesma ordem,
explicando o significado das quatro bestas (v. 17,18), o pequeno chifre (v. 19-
25) e a cena do trono (v. 26,27).
No texto

1. Introdução (7.1)
l l O primeiro versículo faz mais do que fornecer um contexto para a visão.
Ele também estabelece ligações com outras partes do livro. Daniel é introduzi­
do sem nenhuma descrição do seu passado, posição ou habilidades. O relato da
visão obviamente se baseia nas informações dadas pelas seis primeiras histórias
como forma de fornecer um histórico do personagem principal. Entretanto, o
papel de Daniel com relação àquele que ele exercia nas narrativas. Ele agora é
um recipiente de sonhos, e não o seu interpretador.
O contexto histórico da visão também a conecta com as histórias. Uma
referência ao rei babilónico Belsazar localiza cronologicamente a visão de
Daniel entre os capítulos 4 e 5. Daniel aparentemente sabia o rumo que as
coisas estavam tomando antes do aparecimento da inscrição na parede. Ele
havia recebido uma revelação pessoal sobre o desenrolar de eventos no seu
mundo. O primeiro ano de Belsazar, em torno de 550 a.C., é significativo
no fluxo da história mundial. Ele referencia um período de confusão entre o
200
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Império Babilónico e o Oriente Médio como um todo. Novas nações estavam


emergindo, enquanto outras estavam desaparecendo. Tratava-se de uma era
crucial de transição (veja Por trás do texto, anteriormente).
Daniel recebe as visões por meio de um sonho. Isso estabelece um para­
lelo com as experiências de Nabucodonosor nos capítulos 2 e 4 (2.28; 4.5).
As últimas visões de Daniel não são recebidas por meio de sonhos (8.1; 9.21;
10.1). A visão ocorreu estando ele deitado em sua cama. Isso também lembra
a experiência de Nabucodonosor no capítulo 4 (4.5,10,13). Essa localização
talvez indique a natureza inesperada da visão. O mais provável era que pessoas
que estivessem intencionalmente buscando comunicar-se com o mundo divi­
no o fizessem dentro de um templo.
Para assegurar a sua perpetuidade, Daniel escreveu o (...) resumo do seu
sonho. Escrever uma mensagem divina a marcava para o seu cumprimento,
dando a ela a autoridade de um decreto real (Is 8.1; Hc 2.2). Isso também pos­
sibilitava a influência contínua da mensagem sobre as gerações posteriores (Jr
36.2,3; Ez 43.10,11). A expressão o resumo [rês) significa literalmente o c o ­
m eço . A implicação é que Daniel registra o sonho na sequência em que ele o
recebe, começando pelo início.
2. O relato das imagens (7.2-14)
A narrativa da visão de Daniel é expressa por meio de uma estrutura qui-
ásmica que foca a atenção no Senhor sentado sobre o Seu trono em juízo nos
versículos 9,10. A última cena, na qual uma figura divina aparece nas nuvens
nos versículos 13,14, equilibra o relato inicial das bestas emergindo do mar
nos versículos 2,3. Uma referência à sorte das três bestas no versículo 12 con­
trabalança sua descrição inicial nos versículos 4-6. De modo semelhante, o jul­
gamento da quarta besta no versículo 11 se contrapõe à sua primeira aparição
no versículo 7,8. Além de enfatizar o papel de Deus como juiz sobre os reinos
terrenos, essa estrutura dramatiza os efeitos do governo divino. O contraste
não poderia ser mais pronunciando entre o caos anterior aos versículos 9,10
e a ordem que se segue. Diante do trono de Deus, tanto a realidade espiritual
como a humana são significativamente alteradas.
Pela primeira vez no livro, Daniel relata a sua experiência na primeira pes­
soa. Essa perspectiva domina o restante do livro. O impacto dessa característica
enfatiza o aspecto de testemunha ocular do material, realçando com isso o seu
senso de autoridade. Isso também permite que o leitor vivencie a experiência de
modo mais tangível juntamente com Daniel.
1 2 0 relato é pontuado de falas repetidas como “eu estava olhando” (hãzêh
201
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

hãwêt; v. 2,4,6,7,9,1 la,l lb,13 ARC) e “eis que” (ará/alü literalmente significa
“eis aqui”; v. 2.5.6.7.8.13 ARC). Essas expressões intensificam o drama ao fo­
carem a atenção do público nas cenas principais. Elas também acentuam o as­
pecto pessoal da experiência. Daniel destaca ainda mais o caráter agourento da
visão ao observar que ela ocorreu à noite (v. 2). Ele enfatiza esse contexto três
vezes, alertando assim os leitores quanto à gravidade do seu sonho (v. 2,7,13).
Visões noturnas eram mais carregadas de emoção (Gn 46.2; Jó 33.15; Zc 1.8).
O sonho de Daniel começa com uma cena de grande terror, uma violenta
tempestade oceânica. A imagem dos quatro ventos do céu agitando o gran­
de mar retrata o caos e as proporções espirituais do sonho (v. 2). A referência
aos quatro ventos do céu sugere um furacão com ventos vindo de todas as
direções - norte, sul, leste e oeste. Como o termo “vento” (rüah) também é tra­
duzido como espírito, a expressão ventos do céu poderia sugerir sutilmente o
envolvimento divino. Esses ventos provocam ondas ameaçadoras no oceano. O
grande mar {yamma rabba) talvez se refira ao mar Mediterrâneo (veja Js 1.4;
hayyãm haggãdôt), mas também evoca as águas primordiais das imagens bí­
blicas e da mitologia mesopotâmica. As “grandes profundezas” (téhôm rabba)
ficam acima do firmamento e debaixo da terra (Gn 7.11; Am 7.4; veja também
Gn 1.7). Ao longo da Bíblia, o mar simboliza incerteza e desordem (Ap 21.1).
A cena inteira lembra Gênesis 1.2; que descreve o caos antes da criação, quan­
do ‘era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo \têbôm\, e o
Espírito [rüah] de Deus se movia sobre a face das águas [mãyim]”.
I 3 Dessa tempestade caótica no oceano emergem quatro grandes animais (v.
3). Embora eles compartilhem características opressivas comuns por causa das
suas origens, cada um deles tem marcas distintas. Em termos da sua aparência e do
terror que evocam, eles são diferentes uns dos outros. Os escritores bíblicos fre­
quentemente vislumbram um mar cheio de monstros intimidantes semelhantes a
serpentes, tais como Leviatã ou Raabe (SI 89.9,10; 104.25,26; Is 51.9).
1 4 0 primeiro animal parecia um leão, e tinha as asas de águia (v. 4). A
combinação do rei dos animais com o rei das aves faz desse animal um ser ex­
cepcional. Entretanto, a criatura experimenta os altos e baixos da vida. Ter as
suas asas (...) arrancadas sugere uma perda de habilidade e de status. A aqui­
sição das características de um homem, contudo, indica um movimento na
direção contrária. A linguagem lembra o capítulo 4, onde Nabucodonosor per­
de e depois recupera novamente o poder. Em sua queda, ele recebeu “a mente
(...) como um animal” (literalmente, “o coração de uma besta”; 4.16) e “os seus
cabelos e pêlos cresceram como as penas da águia” (4.33). O animal na visão
de Daniel experimentou o inverso desses efeitos e foi erguido do chão, como
Nabucodonosor (7.4; veja 4.36).
202
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

150 segundo animal tinha a aparência de um urso deformado (v. 5). A des­
crição ele foi erguido por um dos seus lados é ambígua. Isso poderia indicar
que o urso foi erguido, assumindo uma posição de ataque. O mais provável,
contudo, é que a cena retrate um crescimento desproporcional em um dos lados.
Animais grotescos eram uma característica comum nas obras apocalípticas. As
três costelas em sua boca poderiam ser entendidas como “presas” ou “dentes”,
em vez de se referirem às partes do corpo de outro animal. Qualquer que seja o
caso, o animal é instruído por uma voz não identificada, que diz: Levante-se e
coma quanta carne puder! O caráter voraz desse animal está sendo enfatizado.
1 6 0 terceiro animal se parecia com um leopardo e tinha quatro asas e
quatro cabeças (v. 6). O leopardo é conhecido pela sua velocidade e agilida­
de, e a referência a quatro asas serve para intensificar essa imagem. As quatro
cabeças sugerem uma influência ampliada sobre o mundo, o que é confirmado
pela observação de que ele recebeu autoridade para governar. Essa criatura
lembra os quatro seres viventes com quatro rostos e quatro asas da visão de
Ezequiel nas dimensões celestiais (Ez 1). Essas criaturas tinham a habilidade
de se mover em qualquer direção em qualquer momento, com uma harmonia
absolutamente sincronizada.
Os primeiros três animais lembram alguns dos predadores mais imponen­
tes da criação. O leão, o urso e o leopardo ocorrem em textos bíblicos, às vezes
juntos, para evocar terror (Jr 5.6; Os 13.7,8). Os arquitetos dos palácios da
antiga Mesopotâmia costumavam empregar esses mesmos animais para obter
efeitos similares. Animais com asas eram um tema típico dos artistas reais an­
tigos. Leões alados em particular decoravam os tronos e as entradas das cortes.
O caráter híbrido desses animais, incluindo aqueles mencionados nesse texto,
serve apenas para aumentar o terror do público judaico da época. Certos tipos
de criaturas eram assustadores para os israelitas (Lv 11.9-12,23), e a mistura de
espécies era contrária à ordem criada (Gn 1.24,25; Lv 19.19).
1 7 A ordem na qual os três primeiros animais aparecem é descendente em
termos de como os escritores antigos tradicionalmente percebiam a sua força e
o seu grau de terror. A quarta besta, porém, reverte essa tendência e se torna a
mais imponente de todas. A mudança é marcada pelo uso de verbos ativos para
descrever esse animal. Em contraste, os três primeiros animais são descritos por
verbos passivos. Daniel acrescenta um efeito dramático à introdução do quarto
animal ao fazer uma pausa para lembrar o público mais uma vez de que isso
ocorreu na minha visão à noite (v. 7; veja também v. 2 e 13).
A descrição do quarto animal é mais extensa do que a dos outros, indicando

203
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sua importância especial. Uma trilogia de atributos terríveis - aterrorizante, as­


sustador e muito poderoso - é equiparada por uma trilogia de ações opressivas
- despedaçava e devorava (...) e pisoteava (v. 7). As ações descrevem um animal
matando e se banqueteando com uma presa. Com mandíbulas poderosas, a besta
despedaça a sua vítima e pisoteia a carcaça enquanto consome a sua carne. O ter­
ror crescente associado a essa besta é enfatizado pelo comentário era diferente de
todos os animais anteriores. Se um leão, um urso e um leopardo são assustado­
res, esse animal é muito mais. Ele é tão apavorante que nenhum animal terrestre
lhe pode ser comparado. Portanto ele permanece sem nome, incomparável e mais
misterioso. Termos como poderoso, ferro e despedaçava lembram o vocabulá­
rio que descreve o quarto reino no sonho do capítulo 2.
Como símbolo da sua superioridade, a besta possui dez chifres (v. 7). Ao
longo das Escrituras hebraicas, chifres significam status , força, e às vezes orgulho
(1 Sm 2.1; SI 75.4,5; 112.9). O número dez sugere uma quantidade completa, em
associação aos Dez Mandamentos ou aos dez dedos (Gn 32.15; Êx 34.28; 1 Sm
1.8). A quarta besta possui uma força inigualada. Como alguns animais normal­
mente têm dois chifres, essa besta é cinco vezes maior do que o normal.
H 8 Na medida em que a descrição da besta continua, detalhes adicionais são
fornecidos sobre os seus chifres. Dentre os dez chifres, um outro chifre, pe­
queno emerge, o qual arranca três dos primeiros (v. 8). O pequeno chifre
surgiu (sêlêq ) entre eles de forma semelhante ao surgimento das bestas que
subiram do mar (v. 3). Semelhantemente à primeira besta, esse chifre possui
algumas qualidades humanas. Ele tem olhos como os olhos de um homem.
Ele também tem uma boca que falava com arrogância. A observação sobre
os olhos e a boca focaliza a atenção sobre o seu caráter. Na tradição bíblica,
essas partes do corpo em particular revelam a pessoa interior (SI 19.14; Pv
4.23-25; Mt 12.34). Muitas vezes elas estão associadas ao orgulho e à tolice (Pv
6.16,17; 15.2). O termo com arrogância significa literalmente g r a n d e s coisa s
{rabrêbãn), o que poderia ser visto positiva ou negativamente. A interpretação
da visão esclarece que um significado negativo foi intencionado. O pequeno
chifre fala com arrogância “contra o Altíssimo” (v. 25). Ele reflete o caráter dos
reis que Deus humilhou nos capítulos 4 e 5.
1 9 0 relato do sonho continua com uma mudança dramática de atmosfera.
Uma cena bem ordenada de seres divinos invade o palco caótico das bestas
grotescas. O autor sinaliza essa mudança adotando uma forma poética nos
versículos 9,10 e 13,14. Recursos como paralelismo, ritmo, metáfora, símile,
hendíadis, assonância e repetição são empregados para intensificar o efeito
dessa cena.
204
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Um tribunal sendo preparado é vislumbrado por tronos sendo “postos”


no lugar e o “ancião de dias” se assentando (v. 9 ARC). A sala de julgamento é
a sala do trono de um palácio. O rei, o seu trono, um corpo d agua e o séquito
real são descritos. Nas Escrituras hebraicas, o título divino “ancião de dias” é
encontrado apenas nesse capítulo (v. 9,13,22). Ele reflete a referência ugarítica
a Baal como o “pai de anos” e enfatiza a idade de Deus. As culturas antigas
reverenciavam as pessoas mais velhas. Por isso o objetivo do nome é enfatizar a
autoridade do Senhor para reinar. Deus pode se assentar como juiz das nações
porque Ele é eterno. O Senhor existiu antes de qualquer outra pessoa desde o
princípio, e por isso a Sua perspectiva é única. Vestes que são branca[s] com o a
n ev e e cabelos que são branco [s] como a lã tornam a imagem ainda mais vívi­
da. Essas características estão associadas a um ser respeitado e sábio.
Entretanto, a brancura das veste [s] e do cabelo de Deus significam mais
do que a idade (v. 9). Essas características também expressam uma pureza ini­
gualável e aludem à santidade de Deus. A referência a um trono que ardia em
fogo e a rodas (...) estavam (...) chamas intensifica a impressão da singula­
ridade santa de Deus. O fogo funciona como um catalizador no processo de
purificação do metal, e portanto evoca uma imagem de separação e purificação
ao longo das Escrituras hebraicas (Êx 3.2; 19.18; Zc 13.9; Ml 3.2). A aparência
do trono, semelhante a uma carruagem com rodas, é uma imagem comum dos
tronos divinos no mundo antigo. Ela lembra mais uma vez a visão que Ezequiel
teve de Deus ao longo do rio Kebar (Ez 1). Naquela visão, o Senhor se movia
rápida e livremente em todas as direções por causa das rodas que estavam sob o
Seu trono. Portanto, a descrição de Deus nesses versículos acentua a Sua santi­
dade. O Senhor não é como os animais da terra ou qualquer outro ser na cria­
ção. As Suas vestefs], o Seu cabelo e o Seu trono o tornam alguém singular.
■ 10 Diante do trono flui um rio de fogo (v. 10). Tal imagem poderia evocar
um lago refletindo [a luz], o que às vezes era usado nos templos antigos.
De qualquer modo, essa característica retrata o juízo divino. Ao longo das
Escrituras, Deus lida com o mal como um “fogo consumidor” (Dt 4.24).
Portanto, o fogo é frequentemente usado como símbolo do juízo de Deus (Is
66.15,16; Ez 21.31,32; Am 5.6). Típico das cortes reais antigas, o rei é servido por
um grande número de cortesões. As expressões milhares de milhares e milhões
e milhões expressam poeticamente números incalculáveis (v. 10). O trono do
Senhor é cercado por “uma grande multidão que ninguém podia contar” (Ap
7.9).
Embora os cortesãos permaneçam de pé, o juiz divino está assentado e o
julgamento tem início (v. 10). Os livros que são abertos talvez sejam um re-
205
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

gistro das coisas que ocorreram no reino do monarca. Com base no contexto,
poderíamos presumir que esses são os atos das quatro bestas. Registros reais
eram típicos entre os monarcas antigos (Ed 4.15; Et 6.1), e a tradição de que
o Senhor mantém registros do comportamento humano dentro do Seu reino
está profundamente enraizada nas Escrituras hebraicas (Êx 32.32; SI 56.8; Ml
3.16). Entretanto, o conteúdo dos livros também poderia estar relacionado aos
propósitos de Deus para o futuro. Em Daniel, a ideia do Senhor selando esses
planos num livro é particularmente enfatizada (8.26; 9.24; 10.21; 12.4,9).
■ 11 A poesia dos versículos 9,10 e 13,l4é brevemente interrompida pela
descrição em prosa do julgamento das quatro bestas nos versículos 11,12. Esse
interlúdio prosaico chama a atenção para esse momento na cena e ajuda a con­
trastá-la com os componentes mais positivos que a precedem e a seguem.
O Senhor executa o juízo sobre os quatro animais. Primeiro, o quarto ani­
mal é morto por causa das suas ofensas (v. 11). As palavras arrogantes que o
chifre falava são a principal razão dada para essa sentença. Como nos capítulos
4 e 5, o Senhor não tolera insolência no seu reino. A execução ocorre pelo fogo,
indicando a severidade do crime. As ofensas mais abomináveis eram punidas
dessa maneira (Lv 20.14; 21.9; Js 7.25; Dn 3.6). De acordo com a mentalidade
antiga, com o seu corpo (...) destruído, o condenado não tem esperança de
continuar existindo. Esse retrato dramático reflete a visão de Isaías sobre aquele
“dia”, quando Deus “matará no mar a serpente aquática” (Is 27.1).
H 12 Dep ois de lidar com a quarta besta, Deus se volta para as outras três.
O julgamento do Senhor é discriminatório, já que os outros animais não
são tratados com tanta severidade como o quarto (v. 12). A autoridade
deles é retirada, mas eles tiveram permissão para viver por um período de
tempo. A diferença de tratamento dessas bestas sugere que o mal perpetrado
pela quarta besta é mais ofensivo aos céus do que o das outras três. Como o
versículo 25 deixa claro, é o comportamento blasfemo da quarta besta que é
julgado tão severamente. Isso concorda com as histórias dos capítulos 4 e 5. O
sacrilégio arrogante de Belsazar também exige a sentença de morte, enquanto o
orgulho pomposo de Nabucodonosor recebe a oportunidade de mudar. Talvez
as três bestas tenham recebido a mesma graça que Nabucodonosor recebeu no
capítulo 4 quando tiveram permissão para viver por um período de tempo.
O fato de o julgamento de todos os quatro animais ocorrer ao mesmo
tempo concorda com o sonho do capítulo 2. Ali, a estátua representando
quatro reinos é destruída por um único golpe esmagador (2.34,43). Isso sugere
que o Reino de Deus se divide em vários domínios na terra ao longo da história.
O povo de Deus não precisa esperar pela culminação da história para que o
206
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

reino do Senhor se manifeste entre eles. Entretanto, o foco sobre a última besta
e a sua morte indica que o juízo final no Dia do Senhor também está sendo
abordado. Semelhantemente ao que outros profetas de Israel perceberam, essa
visão antecipa tanto acontecimentos históricos como eventos escatológicos. O
Senhor lida com as nações e estabelece o Seu reino na terra dentro da história,
assim como no seu fim (Is 2.1-5; Zc 14.1-21).
I 13 O último episódio da cena do trono é o clímax da visão. Uma longa
introdução sinaliza a importância desses versículos. Daniel observa mais uma
vez que a sua experiência ocorreu enquanto ele “estava olhando” em suas “vi­
sões da noite, e eis que” ele contemplou coisas extraordinárias (v. 13 ARC).
Esses três elementos constituem a mesma introdução estereotipada usada no
início do relato (v. 2) e quando a quarta besta é descrita (v. 7). Portanto, o
personagem principal dessa cena é apresentado em contrapartida às quatro
bestas, e em particular à quarta besta. O contraste entre os dois não poderia
ser maior.
A principal figura dessa cena dramática é alguém semelhan­
te a um filho de homem (kêbarenãs, v. 13). A expressão aramaica
bar ’ènãs corresponde ao hebraico ben enôs e ben adãm, o que literal­
mente significa “um filho de um homem” ou “um descendente de um
homem”. Ela pode ser usada com um sentido indefinido para indicar “al­
guém” e muitas vezes designa “humanidade” (Sl 8.4; 144.3; Jr 49.18; Ez 2.1).
Portanto ela pode significar simplesmente “um homem”.
O texto diz aqui que essa figura era semelhante a um homem, o que sugere
uma essência diferente à de um homem. O fato de essa pessoa estar vindo com
as nuvens dos céus implica uma natureza divina. No pensamento israelita e ca-
naneu, as nuvens eram tipicamente o veículo de transporte divino. Nos mitos
de Ugarit, Baal, o deus das tempestades, é chamado de “aquele que cavalga nas
nuvens”. Nos salmos e na literatura profética hebraica, Deus cavalga nas nuvens
como um rei numa carruagem (Sl 18.9-12; 68.4; 104.3; Is 19.1). Portanto, o
“filho de homem” demonstra qualidades tanto humanas como divinas.
A pessoa se apresenta diante do “ancião de dias” para ser revestida de au­
toridade (v. 13 ARC). A linguagem evoca antigas cerimônias de entronização,
na medida em que o “filho de homem” se move pela sala do trono, conduzido
por uma comitiva real até a presença do “ancião de dias”.
■ 14 A essa pessoa, Deus concede autoridade, glória e o reino (v. 14), as
mesmas coisas que Nabucodonosor havia recebido de Deus (2.37; 5.18). Esses
são dons que somente a divindade pode dar, já que, de acordo com o livro de
Daniel, eles pertencem por natureza ao Senhor (4.3,34; 6.26). O termo auto­
ridade (sãhãn) também é traduzido como domínio nesse versículo e repetido
207
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ao longo desse capítulo (v. 6,12,14 [3 vezes], 26,27 [2 vezes]). O direito divino
de governar, que havia sido tirado das bestas (v. 12), é dado à figura do “filho de
homem” nesse versículo e também, de acordo com o versículo 27, aos “santos”.
Agora dotado de autoridade, a figura do “filho de homem” torna-se um obje­
to de adoração. O termo traduzido como adoraram (pèlah ) lembra o capítulo 3,
onde o dilema para os hebreus era se eles iriam ou não se prostrar diante de uma
estátua (3.12,14,18,28). Nessa visão, todas as pessoas fazem aquilo que Nabuco-
donosor havia esperado que elas fizessem diante desse ídolo. Elas demonstram to­
tal reverência a alguém digno de tal. Um cenário escatológico vislumbrado pelos
profetas de Israel se desenrola aqui (Is 2.2; Zc 14.16). O mundo inteiro, todos os
povos, nações e homens de todas as línguas se prostram diante daquele que é
“semelhante a um filho de homem” (v. 13). Essa lista lembra os decretos reais de
Nabucodonosor e Dario quando estes convocaram o povo a adorar ao Deus de
Daniel (4.1; 6.25). O mesmo acontece com a declaração de que o seu domínio é
um domínio eterno que não acabará, e seu reino jamais será destruído, que é
idêntica à linguagem dos reis seculares (4.3; 6.26). Essas três expressões da nature­
za indestrutível do reino ressaltam a sua realidade presente e também asseguram
a sua continuidade. Isso estabelece um forte contraste com a sorte das bestas que
acabam de ser mencionadas nos versículos 10 e 11.
Uma interpretação para a figura do “filho de homem” não é oferecida na
explicação da visão nos versículos 15-27. Portanto, os leitores são obrigados
a interpretar essa pessoa à luz de outras Escrituras. Tanto os interpretadores
judeus como os cristãos têm observado semelhanças entre a figura do “filho de
homem” e os retratos de personalidades messiânicas em outros livros proféti­
cos. Os profetas propõem um descendente davídico que exerceria autoridade
sobre o Reino de Deus, de modo semelhante àquilo que a visão de Daniel re­
trata (Is 9.1-6; 11.1-5; Mq 5.1-5; Zc 9.9,10). O principal elemento distinto
em Daniel é a combinação das características divina e humana. De todas as
possíveis identificações propostas para a figura do “filho de homem”, a melhor
opção é Jesus Cristo. Ele se encaixa à descrição de uma pessoa divina/humana
que é dotada de autoridade universal e adorada por todos os povos no fim dos
tempos. Os escritores do N T entendiam Jesus claramente dessa maneira. Em
uma das cartas de Paulo, por exemplo, Jesus é descrito com as características
da figura do “filho de homem” em Daniel 7. Ele é aquele que, “embora sendo
Deus”, tornou-se “semelhante aos homens”, entretanto foi exaltado por Deus
para que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho (...) e toda língua confesse que
Jesus Cristo é o Senhor” (Fp 2.6,7,10,11).
208
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O filho de homem em Daniel 7.13


Os estudiosos tê m oferecido diversas propostas para a identificação
da fig ura do "filh o de h om em " em Daniel 7.13. As m ais proem inentes in­
cluem : (1) Judas Macabeu, (2) o povo de Deus, (3) um ser angelical e (4)
Jesus de Nazaré. Alguns daqueles que veem o livro com o uma com posição
do segundo século a.C. tê m favorecido Judas Macabeu. Ele é a fig ura m es­
siânica que liderou a revolta que libertou os judeus e estabeleceu o reino
asm oneano em 164 a.C.. A fa lta de apoio no livro para uma resistência
violenta com o a dos m acabeus, contudo, argum enta contra essa ideia.
O povo de Deus te m sido pro po sto porque D aniel m en cio n a que
"os santos do A ltíssim o " rece be rã o o reino nos ve rsícu los 18, 22 e
27. Os estud ioso s p ropõem que o in d ivíd u o ch am ad o de "filh o de ho­
m e m " no ve rsícu lo 13 inco rp o ra s im b o lic a m e n te o todo. Essa proposta
pod eria ser a ce itá v e l se o ve rsícu lo 14 não descrevesse a adoração
à fig u ra do "filh o de h o m e m ". De acordo com a tra d iç ã o b íblica, so­
m e n te Deus d e ve ria se r honrado dessa m an eira. Portanto, um a d is ­
tin ç ã o e n tre a fig u ra do "filh o de h o m e m " e o povo de Deus deve ria
ser m a n tid a . É razoável e n te n d e r, e ntã o, que "a lg u é m s e m e lh a n te a
um filh o de h o m e m " levará os "s a n to s " a h erda re m o Reino de Deus.
A adoração da fig ura do "filh o de h om em " no versículo 14
ta m b é m desqualifica a opção do ser angelical proposta por a l­
guns estudiosos. Tanto G abriel com o Miguel, que são m enciona­
dos m ais ta rd e no livro de Daniel (8.16; 9.21; 10.13,21; 12.1), têm
sido sugeridos. De acordo com uma perspectiva bíblica, contudo,
nenhum hom em ou anjo pode ser um objeto legítim o de adoração.
Ao longo dos séculos, as tradições judaica e cristã têm sido d om in a ­
das pelo e nte nd im e nto de que a figura do "filh o de h om em " é m essiânica.
Os interpretadores judeus a associam a uma personalidade fu tu ra que
ainda está por vir, enquanto os cristãos n atu ra lm e nte ide ntifica m essa
pessoa com o sendo Jesus de Nazaré. Nos evangelhos, o títu lo preferido de
Jesus para si m esm o era "filh o de h om em ", o qual Ele claram e nte asso­
ciava a Daniel 7.13 (Mt 13.26; 24.30; 26.64; Mc 14.61,62). A com unidade
cristã p rim itiva percebeu isso e adotou essa conexão (Ap 1.13; 14.14;
para uma discussão m ais aprofundada, veja A p a rtir do te xto , a seguir).

3. A interpretação das imagens (7.15-27)


Como nos sonhos dos capítulos 2 e 4, a interpretação segue a descrição
das imagens. Dessa vez, contudo, Daniel não fornece a interpretação. Ele é o
recipiente da visão e precisa depender de outra pessoa para interpretá-la para
ele. O suspense é criado apresentando primeiro a reação de Daniel (v. 15,16),
209
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

depois uma interpretação resumida (v. 17,18) e então uma explicação detalha­
da (v. 19-27). A visão é concluída com uma nota sobre a reação final de Daniel
(v. 28).
Essencialmente, a interpretação segue a sequência das cenas do sonho re­
latado nos versículos 2-14. Apenas o versículo 18 se adianta para resumir o
significado da última cena. Fora isso, explicações são fornecidas primeiramente
sobre as quatro bestas (v. 17), depois sobre a quarta besta (v. 19-25) e finalmen­
te sobre a cena do trono (v. 26,27).
■ 15 A reação inicial de Daniel ao que ele viu é semelhante à de outras pessoas
que receberam visões (Gn 41.8; Dn 2.1; 4.1) e àquela que ele mesmo experi­
mentou em outra ocasião (4.19). Sua reação não foi tão intensa quanto a de
Belsazar (5.6,9), contudo, nem mesmo quanto a que ele experimentaria nos
sonhos posteriores (8.27; 10.8-17). Um sentido de apreensão acoplado a algu­
ma antecipação positiva é expresso pelos termos agitado em meu espírito e
aterrorizaram (v. 15).
■ 16 Aquele que sabia o significado de tais coisas nos capítulos anteriores
agora precisa depender de outra pessoa para interpretá-las. Por isso, Daniel pe­
diu ajuda a um dos que ali estavam (v. 16). Essa pessoa aparentemente é um
ser celestial, talvez o arcanjo Gabriel, com base a notação de 9.21, que o iden­
tifica como “o homem que eu tinha visto na visão anterior”. Zacarias também
experimentou a assistência de anjos durante as suas visões (Zc 1-6). Essa é uma
característica comum nos apocalipses não canônicos, a qual tende a dar mais
autoridade à interpretação da visão, asseverando que ela também é de origem
divina.
■ 17 O anjo dá uma interpretação breve e resumida das duas cenas principais
da visão: as bestas surgindo do mar e do julgamento no tribunal. De acordo
com o interpretador celestial, os quatro grandes animais são quatro reinos
que se levantarão na terra (v. 17). O termo reinos (m alk ín ) também pode ser
traduzido como “monarquias” ou “reis”. Como um reino é personificado pelo
seu rei e vice-versa, qualquer um dos dois significados é possível nesse contexto.
A identificação desses reis ou reinos com entidades históricas específicas
tem sido uma questão de debate entre os estudiosos. Com base nas características
descritas sobre cada animal na visão, diversos esquemas têm sido propostos.
Comparações com a estátua do capítulo 2 e com as bestas do capítulo 8 também
têm sido acrescentadas a esses argumentos. O objetivo da visão, contudo, talvez
não seja identificar os reinos ou reis de forma precisa. A descrição de cada besta
é genérica o suficiente para permitir diversas aplicações. As características do
leopardo de três cabeças, por exemplo, pode encaixar-se ao Império Persa, ao
210
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Império Grego ou ao rei babilónico Neriglissar. A natureza do conteúdo da


visão sugere precaução quanto a isso. O objetivo desse conteúdo é fornecer um
panorama geral, e não delinear detalhes. As imagens da visão são símbolos de
realidades genéricas, não sendo necessariamente específicas. Os interpretadores
devem ter o cuidado de não analisar exageradamente o simbolismo desses
conteúdos.
O número quatro deve ser interpretado simbolicamente, em vez de ser
visto como a designação de uma quantidade particular. Ele é claramente signi­
ficativo nessa visão. Existem quatro ventos, quatro bestas, quatro asas e quatro
cabeças. A visão do urso inclui os números três e um, que totalizam quatro
quando somados. O quarto animal tem três chifres e depois um pequeno chi­
fre. Como foi observado no capítulo 2, o número quatro tradicionalmente
simboliza universalidade ou integralidade (Ex 25-39; Pv 30; Am 1—2). Uma
lista de quatro coisas denota completude. O assunto foi inteiramente coberto
quando o número quatro é mencionado.
O esquema de quatro grandes animais, então, provavelmente pretende
apresentar uma imagem do escopo total da história do homem. Os quatro rei­
nos simbolizam todos os reinos deste mundo em sua totalidade. A quarta e
última besta representa o último poder político na história a partir da perspec­
tiva do público. Ou seja, o último reino é o domínio sob o qual o público atual
vive, em qualquer época. O primeiro animal logicamente representa o domínio
do reino babilónico ou Nabucodonosor. Esse é o momento no qual a visão
alega ter-se originado. O segundo e terceiro reinos, aos quais o texto dá pouca
atenção, poderiam representar qualquer entidade política significativa entre o
primeiro e o último reinos. Suas qualidades animalescas opressivas poderiam
encaixar-se a diversos reinos ao longo da história do homem. Portanto, para
Daniel, os animais talvez representem os quatro reis Nabucodosnosor, Evil-
-Merodaque, Neriglissar e Nabonido. O pequeno chifre que cresce na quarta
besta seria Belsazar, o déspota contemporâneo da visão. A natureza imprecisa
das imagens da visão, contudo, não restringe as referências históricas apenas ao
tempo de Daniel. Públicos posteriores são convidados a entender o quarto rei­
no como o poder contemporâneo existente em seus dias. Esse reino é diferente
de todos os outros porque ele é presente. O seu terror é maior porque o público
o sente em primeira mão.

211
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

Referências históricas para os quatro reinos


M uitos co m entaristas procuram associar cada besta a um poder ou
personagem m undial específico. Assim com o no capítulo 2, dois pontos
de vista dom inam a discussão. Os estudiosos sugerem que os reinos são
(1) Babilônia, Média, Pérsia e Grécia; ou (2) Babilônia, Pérsia, Grécia e
Roma. Aqueles que defendem o segundo século a.C. com o a data de
com posição do livro tip ica m e n te seguem a p rim eira posição, enquanto
aqueles que arg um en ta m em fa vo r do sexto século a.C. norm alm ente
a firm am a segunda. Uma m odificação na ú ltim a teoria é e nte nd e r Roma
em te rm o s de uma confederação m oderna de estados europeus (Miller,
1994, p. 196-203). Outra teoria m enos p roem inente é de que os quatro
anim ais representem quatro reis individuais. Esses reis ta lvez sejam
os babilônios Nabucodonosor, Evil-M erodaque, N eriglissar e Nabonido.
Diversos argum entos específicos podem ser citados em fa v o r de
cada um dos pontos de vista sobre os qua tro Im périos (veja Lucas, 2002,
p. 187-191 para a posição que defende os reinos da Babilônia à Grécia;
v e r Archer, 1986, p. 85-87 para o ponto de vista que defende os reinos
da Babilônia a Roma). Todas as teorias essencialm ente concordam com a
identificação da p rim eira besta com o sendo a Babilônia ou Nabucodonosor.
Esse e nte n d im e n to é baseado em ligações com os capítulos 2 e 4, assim
com o no fa to de que a visão ta lvez com ece com o reino contem porâneo.
O urso pode ser visto com o representando o Im pério Medo ou
persa. A conexão do urso com o Im pério Medo está na suposição
de que o a u to r de Daniel acreditava que os m edos g overnaram o
O riente Médio e ntre os babilônios e os persas. Seguindo essa linha
de raciocínio, as três costelas significariam três reis ou nações que os
m edos subjugaram . Com base em Jeremias 51.27-29, ta lve z esses
três sejam A rarate, Mini e Asquenaz. Se o urso fo r considerado como
representante do Im pério Persa, contudo, as três costelas podem estar
ligadas a reis ou nações subjugados por eles. Uma sugestão com um é
identificá-las com as três grandes conquistas dos persas, que fo ra m a
Babilônia, a Lídia e o Egito. A descrição do urso com um lado levantado
ta m b ém se encaixa ao Im pério Persa. De acordo com alguns estudiosos,
essa característica poderia representar o ca rá te r duplo do Im pério,
os m edos e os persas, dos quais os persas foram os m ais dom inantes.
A velocidade e a agilidade indicadas pelo leopardo alado podem
descrever a Pérsia ou a Grécia. Am bas se gloriavam de operações
m ilita re s e xtre m a m e n te eficientes. A conquista absolutam ente
e xtraordinária do O riente Médio por A lexandre, o Grande, é a com paração
mais convincente, contudo. A referência às "q u a tro cabeças" nesse
caso se encaixa bem à divisão do Im pério Grego em qua tro partes
depois da m orte de Alexandre. Por o utro lado, se o leopardo fo r

212
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

considerado com o representante da Pérsia, então as "q u a tro cabeças"


ta lve z se apliquem ao governo dos quatro reis im plicados por Daniel
11.2, em bora a Pérsia ce rta m en te tenha tid o m ais reis do que isso.
O qua rto anim al te m sido ide ntifica do com o a Grécia ou Roma. Para
aqueles que veem o livro com o uma com posição do segundo século a.C.,
o qua rto anim al representa o poder político contem porâneo e opressivo
dos selêucidas. Esse im pério brotou do Im pério Grego e foi governado por
uma série de reis, de Seleuco I a Seleuco IV, os quais ta lvez representem
os "dez ch ifre s" do versículo 7. Na verdade, houve apenas sete reis nesse
período de tem po, mas três com petidores ao tron o depois da m orte de
Seleuco IV elevariam o núm ero para dez. Esses com petidores poderiam ser
considerados "trê s dos prim eiros ch ifre s" arrancados pelo pequeno chifre
(v. 8). O pequeno chifre que tom ou o tron o então foi Antíoco IV Epifânio,
uma pessoa que ce rta m e n te falou arrog an te m e nte (v. 8) e o prim iu
in ten cio na lm e n te "os santos" (v. 25; veja Por trá s do te x to em 11.2— 12.4).
A associação da qua rta besta com Roma é baseada na sequência de
im périos na história m undial. Se o terceiro anim al é a Grécia, então Roma
foi o próxim o im pério m undial. Seu dom ínio sobre o m undo m editerrâneo
poderia ser a propriadam ente descrito por "d en te s de ferro, com os quais
despedaçava e devorava suas vítim a s" (v. 7). A vinda de "a lgu ém sem elhante
a um filh o de h om em " d urante a era rom ana se encaixa n atu ra lm e nte ao
nascim ento d ejesu s Cristo nos dias de César Augusto. Entretanto, nenhum a
identificação para os dez chifres, três chifres ou o pequeno chifre te m sido
a m p la m en te aceita. Por causa disso, alguns estudiosos sugerem que a
quarta besta ta m b é m se refere ao ú ltim o reino da terra. Eles projetam uma
confederação de dez estados europeus dos quais a fig ura do a nticristo
em ergirá antes que C risto venha estabelecer o Reino de Deus na terra.
A te oria de que as quatro bestas representam quatro reis babilónicos
desloca a referência principal da visão para a época de Daniel. Tanto
N abucodonosor com o o Im pério Babilónico com o um to do podem ser
fa c ilm e n te associados ao p rim eiro anim al. De que m odo Evil-M erodaque
e N eriglissar poderiam re fle tir o segundo e o te rce iro anim al é incerto, já
que se sabe m uito pouco sobre eles. A quarta besta d estrutiva poderia
representar Nabonido por causa da form a com o ele se apoderou do reino
e o governou de m odo tã o negligente. Nesse esquem a, o pequeno chifre
seria Belsazar, o qual, de acordo com o capítulo 5, falou com arrogância e
se exaltou contra o "Altíssim o" (v. 24).

H 18 Uma mensagem importante na visão é que os santos do Altíssimo rece­


berão o reino e o possuirão para sempre (v. 18). Esse ponto é enfatizado três
vezes na interpretação com clareza cada vez maior (veja v. 22 e 27). A expressão
213
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

os santos do Altíssimo poderia referir-se a seres celestiais ou ao povo de Deus.


A última opção é a mais provável, correspondendo a indivíduos na terra que
se identificam com um Deus santo por meio do seu compromisso com uma
vida santa. A palavra santos (q a d d is in ) é um adjetivo derivado do termo qaddís
(hebraico qãddas), que significa separar algo para propósitos divinos. A forma
adjetiva se refere tipicamente a seres celestiais em outros capítulos de Daniel
(4.13,17,23; 8.13). Entretanto, os santos em 7.22 e 25 são claramente pessoas
na terra, já que o governante do quarto reino os ataca e oprime.

Os santos
Assim com o o te rm o aram aico, o e qu iva len te hebraico de santos
(qãddôsim) m uitas vezes denota seres celestiais, m as nem sem pre (veja
SI 34.9). Deus, m uitas vezes, desafia as pessoas a serem "sa ntas", assim
com o Ele é santo (Lv 11.44; 19.2; 20.8,26). A lite ra tu ra judaica não canô­
nica usa o te rm o para se re fe rir ta n to a seres celestiais com o a hom ens
(para seres celestiais, veja Sir. 42.17 e SS 10.10; para hom ens, veja 1 En.
100.5 e SS 18.9). (Para uma discussão m ais aprofundada, veja Collins,
1993, p. 313-317).

O texto diz que os santos (...) receberão o reino e o possuirão (v. 18). O
termo reino, como foi observado anteriormente, refere-se à ideia de reinado
ou realeza. Nesse contexto, ele sem dúvida alude ao Reino de Deus descrito
no versículo 14. A ênfase ali, assim como aqui, está na estabilidade. Ele durará
para sempre; sim, para todo o sempre. A tripla repetição da palavra sempre
( a la m ) enfatiza a sua permanência. Isso não é apenas uma realidade futura,
mas também presente. O Reino de Deus neste mundo perdura apesar do sur­
gimento e da queda dos reinos humanos. Dizer que os santos receberão e pos­
suirão o reino é uma forma de indicar sua participação significativa naquele
reino. O que isso significa precisamente não é articulado. A ideia ressoa com o
restante dos profetas, que afirmam que o povo de Deus governará sobre os seus
antigos opressores (Is 14.1-4; 49.22,23; 60.10-12).
O relacionamento dos santos com aquele que é “semelhante a um filho de
homem” no versículo 13 é uma questão importante. Como o texto afirma que
ambos recebem o reino, alguns estudiosos sugerem que eles devem ser a mesma
pessoa. Talvez a figura do “filho de homem” seja a personificação de Israel ou
do povo de Deus como um todo. A adoração à figura do “filho de homem” no
214
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

versículo 14, contudo, argumenta contra isso. Na tradição bíblica, apenas Deus
deve ser adorado (Ex 20.3), e não homens ou mesmo seres celestiais. Portanto,
a figura do “filho de homem” deve ser distinguida dos santos nesse versículo e
mais tarde (v. 22,25,27). Isso implica que a figura do “filho de homem” enca­
beça o reino e que os santos participam no seu governo. Os escritores do Novo
Testamento projetam um cenário como esse com relação a Jesus e aos Seus se­
guidores (Mt 24.30,31; 1 Ts 4.16,17; Ap 20.4-6).
H 1 9 - 2 0 A interpretação resumida não é suficiente para Daniel nem para o
leitor. A breve interpretação serve apenas para aguçar o apetite por um maior
entendimento da visão. Daniel quer saber os detalhes, em particular, o signifi­
cado do quarto animal (v. 19). Essa besta recebe atenção especial no relato da
visão (veja v. 7,8). A interpretação agora confirma a sua significância ao focar
também a atenção sobre ela. A narrativa cria um suspense ainda maior a essa
altura, repetindo a descrição da besta dada nos versículos 7,8, com algumas
omissões e alguns acréscimos. Os elementos novos incluem uma referência a
garras de bronze (v. 19) e ao fato de que o pequeno chifre é “mais robusto do
que os seus companheiros” (v. 20 ARA). Ambas as características aumentam o
senso de terror associado a essa besta.
H 2 1 - 2 2 A adição mais importante à descrição da quarta besta é que o seu
chifre guerreava contra os santos e os derrotava (v. 21). A significância des­
se ponto é assinalada pela introdução enquanto eu observava, uma forma
semelhante à que ocorreu nas junturas seminais dos relatos das imagens (v.
2,6,7,9,11,13). Essa nova informação descreve os santos, o povo de Deus na
terra (veja discussão anterior), engajado numa batalha com o chifre que vinha
da quarta besta (v. 22). E o que é pior, eles estão perdendo. Esse detalhe expõe
a malignidade particular com a qual a besta está envolvida. Ela se opõe ao povo
de Deus. O versículo 25 articulará outros aspectos desse terror.
O povo de Deus pode se envolver numa luta dramática com a quarta
besta feroz, mas eles emergem vitoriosos. O texto descreve o “ancião de dias”
intervindo e pronunciando a sentença a favor dos santos do Altíssimo (v.
22). A decisão do juiz divino quanto à luta entre a besta e o povo de Deus
demonstra a Sua preferência pelo povo. Eles tomaram posse do reino que tem
autoridade sobre as bestas deste mundo. Tudo isso ocorreu quando chegou
a hora para que isso acontecesse. A inferência é de que o tempo das coisas
está fora das mãos dos santos. Eles não podem determiná-lo. As informações
a essa altura fornecem um contexto adicional para que entendamos um pouco
melhor o drama por trás da cena do trono nos versículos 9-14. O quarto
animal não é sentenciado à morte apenas porque é arrogante. Ele é escolhido
215
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

para a punição mais severa entre as bestas porque ele ataca o povo de Deus. As
informações também indicam que os santos se unirão àquele que é “semelhante
a um filho de homem” para governar o Reino de Deus, presumivelmente sob
a Sua liderança. As explicações que virão nos próximos versículos esclarecerão
essas coisas.
Em resposta ao pedido de Daniel, o ser celestial finalmente fornece uma
interpretação mais detalhada. Ele dá uma explicação mais elaborada sobre a
quarta besta (v. 23), os dez chifres (v. 24a), o pequeno chifre (v. 24b,25) e a
cena do tribunal (v. 26,27). Para sinalizar a importância da interpretação, o
texto mais uma vez recorre a versos poéticos do versículo 23 ao 27 (veja BH S
e NRSV).
H 23 O interpretador celestial esclarece o que foi dito previamente no versí­
culo 17: o quarto animal é um quarto reino que aparecerá na terra (v. 23).
Ele é diferente de todos os outros reinos quanto à extensão da sua dominação
e do terror que ele impõe. A terra inteira sentirá os efeitos desse reino. As
três ações animalescas mencionadas no relato da visão são reiteradas (veja v. 7).
Como um animal voraz, esse reino explorará o mundo, consumindo os seus
recursos e pisoteando-os.
1 2 4 Os dez chifres são explicados como dez reis que governarão o quarto
reino (v. 24). Embora esses reis possam referir-se a figuras históricas específicas,
o seu número provavelmente é simbólico. O número dez significa uma quanti­
dade completa. Portanto, esse reino perdurará pelo que pode parecer um ciclo
completo para os reinos terrenos. Nesse momento, contudo, quando as pessoas
talvez esperem que esse reino esteja chegando ao fim, outro rei se levantará.
Esse é o “pequeno chifre” do versículo 8. Sua perícia é indicada por sua habi­
lidade de abater três reis para obter o trono. Novamente, o número poderia
referir-se a três reis em particular, mas é mais provável que ele seja simbólico
de uma força maior. Três coisas criam um forte vínculo (Ec 4.12). Entretanto,
o último rei é capaz de vencê-los. Talvez essa seja a razão por que ele é descrito
como sendo mais robusto do que os seus companheiros no versículo 20.
■ 2 5 0 terror desse último rei é explicitado pela lista dos seus atos perversos.
A blasfêmia e a perseguição religiosa são suas marcas registradas. Ele se opõe
diretamente às coisas de Deus. Ele (1) falará contra o Altíssimo, (2) oprimirá
os seus santos e (3) tentará mudar os tempos e as leis da fé (v. 25). Como
Belsazar no capítulo 5, esse rei se exalta arrogantemente “acima do Senhor dos
céus” (5.23). Ele também é como Belsazar na forma como trivializa o sagrado.
Belsazar tratou com desprezo as taças consagradas do templo (5.2-4). Seme­
lhantemente, o rei de Daniel 7 trata os santos de Deus e as Suas instituições
216
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

sagradas com negligência. A palavra oprimirá (b ã la ) significa literalmente


“fadigar”, indicando que os ataques do rei sobre os fiéis serão implacáveis. Os
tempos e as leis provavelmente se referem às práticas de adoração prescritas,
as quais foram detalhadas na lei de Moisés. Essas incluem coisas como a obser­
vação do sábado, rituais sacrificiais e festas anuais. Embora esse tipo de coisa
tenha acontecido em diversos momentos da história, 1 Mac. 1.41-50 relata um
tempo em particular quando Antíoco IV (175-164 a.C.) emitiu um decreto
restringindo as práticas de adoração judaica (veja também Dn 8.11-13; 9.27;
11.31; 12.12).
O resultado dos ataques contínuos do rei será que os santos serão entre­
gues nas mãos dele (v. 25). Assim como Jerusalém caiu diante de Nabucodo-
nosor (1.2), eles serão colocados sob o controle desse rei. A expressão serã o e n ­
tr e g u es n a s m ã o s d e le implica uma ação divina. O povo de Deus não é vencido
pelo rei perverso, mas o Senhor permite que eles sejam entregues em suas mãos.
Como Sadraque, Mesaque, Abede-Nego e Daniel nos capítulos 3 e 6, o povo
de Deus não será liberto da sua provação, mas sim em meio a ela.
Esse período de aflição não durará para sempre. Um fim já foi predeter­
minado. Ele durará por um tempo, tempos e meio tempo (v. 25). Muitos co­
mentaristas sugerem que essa frase se refere a três anos e meio, embora o termo
tempo {yiddãn) não signifique necessariamente “ano”, e sim “um período de
tempo”. Além disso, tempos {yiddãnin ) não é um termo dual, mas simples­
mente plural. Com base em outras referências em Daniel e no NT, contudo,
esse parece ser o melhor entendimento. Daniel 12.7 conecta a frase a 1.290
dias e 1.335 dias, que são aproximadamente, mas não exatamente, três anos e
meio. O N T liga isso a um período de 1.260 dias, que corresponde a três anos
e meio em um calendário lunissolar de 360 dias (compare Ap. 12.6 a 12.14).
Apocalipse 11.2 também se refere aos 42 meses em que Jerusalém será pisada.
Isso não significa que a frase deva ser entendida como um cálculo literal.
Três e meio são a metade de sete, o número perfeito. A frase, portanto, sim­
boliza a duração imperfeita do último rei maligno. Ela também sugere que o
seu reinado será abruptamente interrompido. Os fiéis suportarão uma opressão
aparentemente infinda por um tempo e tempos, mas então tudo isso cessa­
rá de repente, na medida em que o período é cortado pela metade. Portanto,
a frase é uma expressão simbólica de um período de tempo não especificado
que termina subitamente. A questão é que os santos não sofrerão para sempre.
Deus determinou o tempo do fim.
U 2 6 No tempo determinado, o tribunal divino julgará o rei perverso (v. 26).
Deus executa a sentença depondo o rei e decretando o fim do seu reinado de
217
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

terror. A sua autoridade é tirada e ele é totalmente destruído. A eliminação


absoluta do seu domínio é enfatizada no aramaico, que diz literalmente que ele
será a n iq u ila d o e d e str u íd o a té o fim . O versículo 11 contém a mesma ênfase
quando retrata que “o seu corpo foi destruído e atirado no fogo”.
■ 27 Em contraste, todo o poder imponente exercido pelo rei perverso e
muito mais do que isso é transferido para o povo de Deus. Eles herdam a sobe­
rania, o poder e a grandeza dos reinos que há debaixo de todo o céu (v. 27).
Essa expressão, que usa três palavras com significados semelhantes, acentua a
soberania absoluta desse poder. A autoridade do Reino de Deus engloba todo
o poder de todos os reinos das quatro bestas retratadas na visão. Essas bestas
representam todos os reinos que há debaixo de todo o céu. Portanto, o novo
reino é maior do que qualquer coisa conhecida na história do homem até hoje.
Aqueles que recebem o novo reino são os santos, o povo do Altíssimo
(v. 27). A tradução literal dessa frase é “o povo dos santos do Altíssimo” (RSV,
ESV e outras). O significado da frase depende de considerarmos os santos
como um possessivo ou um explicativo. Consequentemente, ela também pode
ser traduzida como “o povo que pertence aos santos do Altíssimo”, ou da forma
traduzida pela NVI. À luz das referências aos santos nos versículos 18, 22 e
25, a tradução da NVI parece mais apropriada. O texto está explicando que os
santos são o povo do Altíssimo.
O reino que os santos recebem pode ser descrito como o reino dele, refe­
rindo-se ao Reino de Deus (v. 27). O texto deveria ter sido traduzido como “o
reino deles”, contudo, referindo-se aos santos (NRSV). O antecedente prono­
minal de o reino dele poderia ser tanto o substantivo masculino plural santos
como o substantivo masculino singular Altíssimo. O último é mais provável,
já que em seguida o versículo fala da adoração e obediência dadas a Ele. No fim
das contas, Deus é quem detém a autoridade sobre esse reino e é o único que
deve ser adorado. Portanto, a expressão é apropriadamente traduzida como o
reino dele, e não o reino deles.
O novo reino é caracterizado pela permanência e pela adoração universal.
Ele será um reino eterno, um ponto bastante frisado antes nos versículos 14 e 18.
Todos os governantes que servem nesse reino se prostrarão diante da autoridade
central. Eles adorarão e obedecerão ao líder desse reino. A cena lembra diversas
visões bíblicas sobre o reino final de Deus. Trata-se de um período em que “todos
os reis se prostrarão perante ele; todas as nações o servirão” (SI 72.11 ARC).

218
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

4. Conclusão (7.28)
O capítulo termina com outra nota sobre a reação de Daniel à visão. Isso
evoca o versículo 15, que deu início à seção interpretativa da visão. Do mesmo
modo, a expressão o fim da visão {sôpa d i m illêtã ) equilibra o resu m o d o so n h o
(r e s m iltíri) no versículo 1, criando uma moldura para o conteúdo da visão (v.
28).
Daniel permanece aterrorizado como no versículo 15. Dessa vez, con­
tudo, o seu aspecto foi afetado, e o seu rosto empalideceu. Como Belsazar
(5.6,9), o semblante de Daniel mudou, o que denota uma ansiedade intensa.
A ênfase na reação de Daniel ressalta a significância dessa visão. Emoções
tão fortes certamente indicam algo digno de consideração. Isso convida o leitor
a ponderar mais demoradamente o significado da visão.
A partir do texto
As imagens dramáticas da visão no capítulo 7 retratam uma teologia que
é central não apenas ao livro de Daniel, mas também a toda a Bíblia. O caos
perpetrado por governos impiedosos é poderosamente retratado em todo o
seu horror. Entretanto, a soberania divina sobre essa revolta humana também
é vislumbrada. Deus trará juízo sobre as instituições e os indivíduos perversos
da terra. Embora a autoridade de Deus sobre este mundo seja reafirmada, sua
manifestação final espera por um tempo determinado nos céus.
O g o v ern o dos h om en s sem D eus cria o caos. A visão do capítulo 7 captura a
essência dos reinos seculares humanos num retrato pungente. Trata-se de uma
observação política criteriosamente esboçada por imagens poderosas que enfa­
tizam as dimensões espirituais dos governos terrenos. Ventos de todas as dire­
ções agitam oceanos profundos de onde saem animais grotescos (v. 2,3). Esses
animais apavorantes representam reinos humanos que aterrorizam e devoram
o mundo em que entram. Suas tentativas de criar ordem por meio da domina­
ção servem apenas para gerar mais caos. Eles se movem de modo rápido, furtivo
e determinado, cada um mais temível do que o outro. A última besta incorpora
o pior dos seus predecessores, produzindo o governante mais impudente de
todos. Exercendo um poder sem paralelo, ela blasfema arrogantemente contra
o céu. Ela emerge da obscuridade, suplanta a força dos outros três, fala contra
o Altíssimo e trivializa o sagrado (v. 25).
A cena cria uma impressão surpreendente da vida em total confusão. O
contraste com o paraíso bem planejado e pacífico de Gênesis 1-2 é marcante.
219
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os ideias da exuberante árvore espiritual no sonho de Nabucodonosor em Da­


niel 4 também estão ausentes. Imagens do cuidado e da proteção da criação de
Deus, de pássaros se aninhando em ramos frutíferos e de animais encontrando
abrigo (4.12) são estranhas à visão do capítulo 7. Em seu lugar, há descrições
de predadores abusivos esmagando, devorando e pisoteando suas presas. Eles
abusam em vez de preservar a generosidade e a beleza da criação de Deus.
Essa desordem perturba, oprime e aterroriza aqueles que vivem sob o do­
mínio desses reinos. As pessoas que tentam viver conectadas a Deus são es­
pecialmente vulneráveis. Os santos, como o texto os chama (v. 18,21,22,27),
ficam extenuados com os ataques dos déspotas seculares. Eles eventualmente
são entregues aos caprichos dos tiranos perversos (v. 25). Como Sadraque,
Mesaque, Abede-Nego e Daniel (cap. 3 e 6), eles experimentam a plena força
da insanidade dos decretos humanos antes de serem libertos.
O caos é uma das manifestações mais consistentes do mal. Tudo o que se
opõe a Deus ou o ignora se move em direção à confusão, à desordem e à au­
sência de significação (Gn 11.7; Is 24.1-13; Lm 1.1-6; Ec 1-14). A ordem da
criação é revertida. Como Gênesis 1 deixa claro, as ações criativas do Senhor
produzem um mundo bem ordenado e cheio de propósito. Aquilo que era sem
forma e vazio adquire um design significativo nas mãos do Criador bíblico.
“Deus não é Deus de desordem, mas de paz” (1 Co 14.33).
Dentro da dimensão terrena, os reinos humanos muitas vezes se tornam os
principais perpetradores do caos neste mundo. Embora eles não sejam a única
fonte de desordem, eles são uma das principais expressões da sua presença na
criação de Deus. Eles negligenciam a verdade de que a ordem tem origens divi­
nas e tentam dominar por intermédio de leis humanas. Eles não entendem que
há apenas um “que faz justiça” (SI 58.11) e em quem “tudo subsiste” (Cl 1.17).
A história de Daniel na cova dos leões enfatiza a ilusão das leis humanas. Os
efeitos caóticos das tentativas terrenas de produzir a paz são tão abrangentes
quanto o domínio de uma nação. O povo, principalmente o povo de Deus,
sofre sob esses regimes. Como assinala o texto, as nações perversas afetam mais
do que as vidas individuais dos seus cidadãos. Elas perturbam os propósitos
criativos de Deus. Suas ações nefárias têm implicações espirituais. As decisões
tomadas pelos governos são mais do que questões políticas, sociais, econômi­
cas ou até mesmo morais. Elas são questões espirituais.
A visão afirma que governantes impiedosos administram estados impiedo­
sos. O mal não é apenas coletivo, mas também pessoal. O texto enfoca um líder
individual, o chifre, pequeno (Dn 7.8). Essa pessoa é responsável por falar
blasfêmias, oprimir o povo de Deus e alterar tradições sagradas (v. 25). Embora
220
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

a perversidade do estado possa ter criado essa pessoa, sua iniquidade incorpora
o caráter daquele reino. No fim das contas, a natureza dessa besta horripilante
está localizada nos corações dos indivíduos.
Ao longo da história, interpretadores cristãos têm conectado o pequeno
chifre do capítulo 7 a uma figura do fim dos tempos conhecida como “o anti-
cristo”. Os escritores do Novo Testamento empregaram imagens e temas do ca­
pítulo 7 ao descreveram figuras rebeldes como os “falsos cristos” (Mc 13.22), o
“perverso” (2 Ts 2.3-9), o “anticristo” (1 Jo 2.18,22; 4.3; 2 Jo 7) e a “besta” (Ap
13.1-10). Essas pessoas manifestam uma realidade tanto presente como futura.
De acordo com os cristãos primitivos, elas apareceriam ao longo da história do
homem e no final dela. Como o pequeno chifre de Daniel 7, elas representam
tudo o que se opõe a Deus e lideram uma rebelião contra os céus. Entretanto,
no final, elas serão subjugadas por Cristo e levadas ajulgamento (Ap 19.20,21).
D eus ju lg a os estados p erv erso s e cria u m a ord em n ova a p a r tir d o caos. A
turbulência das nações enfurecidas cessa diante do tribunal de Deus. As bes­
tas do caos são mortas e a sua autoridade é retirada diante do trono celestial
(Dn 7.11,12). A autoridade, a glória e o reino são colocados nas mãos de
um ungido e do Seu povo, e um novo reino é estabelecido (v. 14). Esse reino
será um reino de perfeita ordem porque todos os governantes irão cumprir
seus papéis ordenados por Deus e reverenciar o Senhor (v. 27). Os propósitos
originais da criação finalmente serão cumpridos. Com Deus no centro, esse
reino será seguro e estável. Ele durará para sempre. Ele não acabará nem será
destruído (v. 14).
A imagem de Deus julgando as nações para restaurar a criação é funda­
mental à cosmovisão bíblica. Os profetas e os salmistas concordam quanto a
isso. Um dia Deus virá “julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos,
com a sua fidelidade” (SI 96.13). O resultado do juízo divino será um mundo
segundo a escolha de Deus. Os escritores bíblicos vislumbram “novos céus e
nova terra” onde “nunca mais se ouvirão (...) voz de pranto e choro de tristeza”
(Is 65.17,19), “os montes gotejarão vinho novo” (J1 3.18), “o Senhor será rei
de toda a terra” (Zc 14.9), “os povos (...) acorrerão” para o monte de Deus para
adorá-lo (Mq 4.1) e “o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus” (Ap
21.3). Será um mundo cheio de gozo abundante (Is 24.14). Portanto, a criação
espera pelo julgamento divino com grande antecipação. “Batam palmas os rios,
e juntos, cantem de alegria os montes; cantem diante do Senhor, porque ele
vem, vem julgar a terra” (SI 98.8,9).
O Salmo 2 apresenta o mesmo retrato encontrado em Daniel 7 com
uma descrição mais terrena. Esse poema vislumbra governantes terrenos se
221
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

levantando e tramando contra o Senhor e os Seus propósitos, como as bestas


que surgem do mar. Porém, “do seu trono nos céus o Senhor põe-se a rir e
caçoa deles. Em sua ira os repreende e em seu furor os aterroriza, dizendo:
‘Eu mesmo estabeleci o meu rei em Sião, no meu santo monte’” (SI 2.4-6). O
reino do ungido do Senhor transformará o caos perpetrado pelas nações, assim
como o reino daquele que é “semelhante a um filho de homem”. Isaías também
reflete esse pensamento quando escreve: “Ele julgará entre as nações e resolverá
contendas de muitos povos. Eles farão de suas espadas arados, e de suas lanças
foices” (Is 2.4).
O texto deixa claro que a nova ordem é um ato divino. O papel do povo de
Deus não é enfatizado. Eles simplesmente recebem o reino e dão honra a Deus.
Nem uma vida fiel nem uma resistência persistente são explicitamente admo­
estadas. A visão permanece silenciosa até mesmo quanto às ações da figura do
“filho de homem”. Essas características tendem a ressaltar as origens divinas do
reino e da sua autoridade. Assim como faz ao longo das Escrituras, Deus toma
a iniciativa sobre as forças do caos nessa visão. Gênesis 1.1,2 confirma isso e Jó
40—41 concorda. Tempestades turbulentas e monstros marinhos não intimi­
dam nem frustram os propósitos de Deus. Ele “cavalga nas asas do vento” (SI
104.3), as águas espirituais obedecem às suas ordens (v. 7) e todas as criaturas
do mar, até mesmo Leviatã, estão debaixo do Seu controle (v. 25,26).
A m anifestação p len a da a u to rid a d e d e D eus n este m u n d o espera p elo fi n a l
d a história d o h om em . Os eventos retratados em Daniel 7 são tanto históricos
como escatológicos. Assim como os outros profetas de Israel, Daniel vê o Rei­
no de Deus penetrando este mundo dentro do escopo da história do homem,
assim como no seu final. O Seu reino nunca está ausente, já que ele jamais será
destruído (v. 14). Ele é eterno.
A cena do tribunal no capítulo 7 retrata o julgamento divino de todos
os reinos humanos. Juntos, os reinos terrenos são sentenciados, alguns con­
denados à morte e outros a uma diminuição da sua autoridade. Esse veredito
conjunto implica tanto um juízo contínuo como um juízo final. O tratamento
dos três animais indica um julgamento dentro da história. A autoridade des­
ses reinos é retirada e eles recebem permissão para viver por um período de
tempo (v. 12). A execução do quarto animal, o símbolo do último reino do
mundo, expressa um juízo final. O domínio dos reinos humanos cessa quando
o animal é morto e o seu corpo é destruído (v. 11).
De acordo com a visão e a sua interpretação, a autoridade desses animais é
dada a alguém semelhante a um filho de homem e aos santos (v. 13,l4e 18,22
e 27). O novo reino sobre o qual eles governam é escatológico. O versículo 22
222
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

faz referência a uma hora em que o povo de Deus tomará posse do reino. Esse
momento é concomitante a eventos que só podem ocorrer no final da história
do homem. Isso acontecerá quando a figura do filho do homem vier com as
nuvens dos céus e receber autoridade (v. 13,14). Então, todos os povos,
nações e homens de todas as línguas, incluindo todos os governantes, se
prostrarão em adoração diante de Deus (v. 14 e 27).
A cena retratada no capítulo 7 forneceu imagens para que os escritores
do N T descrevessem a obra de Cristo neste mundo e no final da história do
homem. Esses escritores aludem a padrões, temas e imagens desse capítulo com
maior frequência do que quaisquer outros capítulos no livro. De acordo com
os Evangelhos, o título favorito de Jesus para si mesmo era “Filho do homem”.
Embora essa designação pudesse expressar apenas o fato de que Jesus era huma­
no, os contextos nos quais Ele a usa sugerem mais do que isso. Os estudiosos
estão divididos quanto a essa questão, mas parece provável que Jesus estivesse
identificando a si mesmo com a figura do filho do homem no versículo 13. O
Seu uso do artigo definido poderia comunicar “aquele filho do homem em par­
ticular”, significando aquele que foi mencionado por Daniel.
Quando Jesus descreve a Sua segunda vinda, Ele fala do “Filho do homem
vindo nas nuvens do céu” (Mt 24.30; Mc 13.26). Diante do sumo sacerdote no
Seu julgamento, Ele proclama: “chegará o dia em que vereis o Filho do homem
assentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.64; Mc
14.62). Depois da Sua ressurreição, Jesus declara: “Foi-me dada toda a autori­
dade nos céus e na terra” (Mt 28.18). Portanto, Jesus alega que Deus “deu-lhe
autoridade para julgar, porque é o Filho do homem” do qual falou Daniel 7 (Jo
5.27).
Essas imagens de Cristo e da culminação da história do homem estão por
trás das descrições da vitória final nos escritos de Paulo (1 Ts 4.16,17; 2 Ts
2.1-12; 1 Co 15.50-57). O retrato da forma como Deus julgará os poderes do
mundo, contudo, é mais vividamente expresso no livro de Apocalipse. Uma
besta com chifres surge do mar e aterroriza o mundo em Apocalipse 13. Essa
criatura fala “palavras arrogantes” e “blasfemas”, assim como o pequeno chifre
em Daniel 7 (Ap 13.5). Ela guerreia “contra os santos” e estende a sua auto­
ridade sobre a terra (Ap 13.7). Eventualmente a besta é morta no juízo final.
Ela é lançada “no lago de fogo que arde com enxofre” (Ap 19.20). O seu juiz e
conquistador é Jesus Cristo, que finalmente reina absoluto sobre este mundo,
junto àqueles que permaneceram fiéis a Ele (Ap 20.1-6).
De acordo com o NT, a visão de Daniel 7, então, cumpriu-se na pessoa de
Jesus Cristo. Ela ainda espera o seu cumprimento final em Sua segunda vinda.
223
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BlBLICO BEACON

B. A visão das duas bestas (8.1-27)

Panorama geral
O capítulo 8 começa o último movimento principal no livro de Daniel.
Ele relata a primeira dentre três visões que estão intimamente relacionadas e
que são registradas nos capítulos 8— 12. Essas três visões enfocam um perío­
do de intensa perseguição do povo de Deus, o qual ocorrerá depois da época
de Daniel. Com detalhes cada vez mais nítidos, elas se concentram numa era
particular de opressão por forças impiedosas, semelhante àquela que foi bre­
vemente esboçada no capítulo 7. Essas visões oferecem exemplos concretos do
terror perpetuado pelos tiranos deste mundo, mas, o que é mais importante,
elas nos asseguram de que esses reinos ainda assim permanecem debaixo da
soberania de Deus.
Por trás do texto
Uma alteração na linguagem sinaliza a mudança que está acontecendo
dentro do livro. Começando em 8.1, o texto retorna ao hebraico, depois de um
uso extensivo do aramaico que começou em 2.4. Muitos comentaristas têm ob­
servado que a alteração das linguagens corresponde aos interesses mais amplos
ou mais estreitos dos materiais. A seção em aramaico dos capítulos 2—7 tem
um apelo mais internacional, enquanto as porções em hebraico do capítulo 1
e dos capítulos 8— 12 se relacionam mais diretamente a questões de interesse
judaico.
A mudança da linguagem também alerta o leitor para as diferenças sig­
nificativas que existem entre os capítulos 7 e 8. Embora esses dois capítulos
compartilhem algumas características comuns, eles divergem um do outro de
diversas formas. Ambos os capítulos indicam que Daniel teve visões durante
o reino de Belsazar, o capítulo 7 em seu primeiro ano, e o capítulo 8 em seu
terceiro ano. Ambas as visões contêm animais que representam reinos huma­
nos e fazem referência a chifres que simbolizam governantes. Os animais do
capítulo 8, contudo, são menos bizarros do que os do capítulo 7 e são mais es­
pecificamente identificados, no texto, com reinos conhecidos na historia mun­
dial. Ambas as visões falam de um pequeno chifre que denota um governante
opressivo que ameaça o povo de Deus. O pequeno chifre emerge de dez chifres
no capítulo 7, mas surge de um de quatro chifres no capítulo 8. O capítulo 8
fornece muito mais detalhes sobre as atividades específicas do pequeno chifre
224
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

do que o capítulo 7. O juízo divino dos reinos terrenos, tão proeminente no


capítulo 7, é aludido apenas brevemente no capítulo 8. Finalmente, a estrutura
formal dessas visões é bastante semelhante. Elementos contextuais, um rela­
to da visão, a sua interpretação e a reação do seu recipiente são incluídos em
ambas. De modo geral, contudo, o estilo do capítulo 7 é mais poético do que
o do capítulo 8. As cadeias tediosas de termos sinônimos e os versos rítmicos
encontrados no capítulo 7 estão ausentes no capítulo 8 (veja maiores detalhes
em Goldingay, 1989, p. 201).
Os estudiosos discordam quanto à melhor maneira de avaliar o relacio­
namento entre os dois capítulos. Está claro que o capítulo 8 serve como um
esclarecimento do capítulo 7. Porém, a questão é: de que forma isso é verda­
de ? As diversas respostas a essa pergunta estão relacionadas ao modo como o
capítulo 7 tem sido interpretado. Como o capítulo 8 identifica claramente os
dois reinos simbolizados pelos animais como os reis da Média e da Pérsia
e o rei da Grécia (v. 20,21), a questão é quais reinos no cap. 7 representam
esses dois reinos. Alguns estudiosos os identificam como o terceiro e o quarto
reinos daquela visão, enquanto outros os veem como o segundo e o terceiro
reinos (veja os diversos pontos de vista em No texto no cap. 7). A posição que
alguém adota quanto a essa questão também afeta a forma como o pequeno
chifre é entendido. Como o pequeno chifre está relacionado ao quarto reino
do capítulo 7, aqueles que entendem o terceiro e o quarto reinos do capítulo 7
como simbólicos da Pérsia e da Grécia identificam o pequeno chifre em ambas
as visões como sendo uma mesma pessoa, normalmente o governante selêucida
Antíoco IV (Goldingay, 1989, p. 174). Outros interpretadores, que entendem
o segundo e o terceiro reinos do cap. 7 como representantes da Pérsia e da Gré­
cia, veem o pequeno chifre como simbólico de uma pessoa distinta em cada
visão. O pequeno chifre é tipicamente visto como um anticristo no final dos
tempos no capítulo 7 e como Antíoco IV no capítulo 8 (Miller, 1994, p. 225).
Como este comentário já observou, uma identificação específica dos rei­
nos no capítulo 7 talvez não seja a melhor abordagem na interpretação desse
capítulo (veja No texto no cap. 7). O retrato da história do homem esboçado
no capítulo 7 talvez seja mais bem compreendido como uma visão geral de
toda a história do homem desde a Babilônia até o fim dos tempos. O primeiro
reino parece fazer referência ao reino babilónico, contemporâneo da visão, e o
quarto reino parece aludir ao último reino da história do homem. Os dois rei­
nos do meio, contudo, não pretendem necessariamente referir-se a entidades
históricas particulares, mas sim representar os tipos de reinos que este mundo
experimentaria. A partir dessa perspectiva, os reinos do capítulo 8 podem ser
225
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

entendidos como exemplos específicos dos tipos de reinos intermediários esbo­


çados no capítulo 7. Dos muitos reinos que surgirão e cairão no palco da histó­
ria mundial, o capítulo 8 enfoca dois poderes em particular, a Pérsia e a Grécia.
As conexões com os capítulos 9— 12 também são importantes. Junto ao
capítulo 8, esses capítulos enfocam uma era particularmente tumultuada na
história judaica. As três visões contidas nesses capítulos têm como clímax um
evento crítico em que o sacrifício no templo cessa e o “sacrilégio terrível” acon­
tece (8.10-13; 9.27; 11.31; 12.11). Em cada caso, um limite de tempo concer­
nente à duração dessa crise é anunciado (8.14; 9.24-27; 11.33-35; 12.11,12).
A forma como cada visão chega a esse clímax é diferente, e os detalhes variam.
Mas um elemento comum a esses pontos culminantes vincula as três visões do
livro, tornando-as uma unidade que deve ser lida como um todo.
A estrutura quiásmica dos capítulos 8— 12 também une essas visões. O en­
foque do capítulo 8 nos dois reinos é ecoado por um retrato mais detalhado dos
mesmos dois reinos nos capítulos 10— 12. Ambas as visões incluem encontros
dramáticos com anjos que confirmam o envolvimento da dimensão celestial
nos conflitos terrenos. Cada uma das visões destaca o opressor particularmen­
te cruel do segundo reino. A visão central do capítulo 9 esclarece que o longo
período de tumulto abordado nas outras duas visões é um resultado não apenas
de nações perversas, mas também dos pecados de Israel.
Eventos relacionados aos reinos persa e grego do sexto ao segundo século
a.C. formam o contexto histórico para as diversas alusões nessas três últimas
visões. O Império Persa emergiu em torno de 550 a.C., tornando-se um dos
impérios mais dominadores e expansivos que o antigo Oriente Médio já co­
nheceu. Ele também era conhecido como o Império Aquemênida, nomeado a
partir de Aquêmenes, um ancestral do seu fundador, Ciro. Ele se estendia dos
estados gregos, ao oeste, até o Vale do Indo, ao leste; e do Egito, ao sul, até o
mar Cáspio, ao norte. O arquiteto do império foi Ciro, o Grande, o filho de
um rei persa e de uma princesa da Média. Parte da sua genialidade estava na sua
habilidade de unir os recursos dos medos e dos persas para estabelecer o seu
reino. O último desses dois foi o mais proeminente. O império foi um dos mais
duradouros da história do homem, durando mais de 200 anos.
Liderados por Alexandre, o Grande, os gregos levaram o Império Persa a
um fim rápido e decisivo. Eles guerrearam contra os persas pela primeira vez
no rio Grâanico no noroeste da Ásia Menor em maio de 334 a.C. e desferiram
o golpe final nas planícies de Gaugamela ao leste do rio Tigre em outubro de
331 a.C. Alexandre continuou expandindo o império em direção ao leste até
o rio Indo até 326 a.C. Entretanto, ele não usufruiu dos frutos de suas vastas
226
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

conquistas por muito tempo. Ele morreu em 323 a.C. com 32 anos no palácio
de Nabucodonosor na Babilônia. Depois da sua morte, o império foi fragmen­
tado, dividindo-se em diversas entidades políticas maiores e menores. Em 301
a.C., quatro reinos dominantes surgiram. Um deles estava centrado na Mace-
dônia sob a liderança de Cassandro, o segundo na Trácia sob Lisímaco, um
terceiro no Egito sob Ptolemeu, e um quarto na Mesopotâmia sob Seleuco. O
último desses reinos parece ser o foco principal das últimas três visões.
O reino selêucida administrava a maior parte do mundo grego. Ele se es­
tendia da Síria até o rio Indo. Em 198 a.C., a terra de Israel caiu sob o seu
domínio. Sete imperadores governaram antes que Antíoco IV assumisse o con­
trole por intermédio da intriga em 175 a.C.. Para estabelecer o seu governo, ele
destituiu diversos pretendentes ao trono, incluindo o herdeiro legítimo De-
métrio, que era seu sobrinho. O seu senso de importância própria é enfatizado
pelo nome adicional que ele adotou - Epifânio -, que significa “o ilustre” ou “o
reluzente”. Seu comportamento errático, contudo, tornou-o merecedor de um
nome menos elogioso dado pelos seus oponentes - Epimanes -, que significa
“homem louco”.
Antíoco procurou expandir e apoiar o seu império por meio de conquis­
tas. Em 169 a.C., ele invadiu o Egito, e em 166 a.C., ele voltou os seus exércitos
contra os persas e partas ao leste (1 Mac. 3.27-37; 6.1-7). Sua falta de sucesso
contra o Egito gerou uma política agressiva contra os judeus. O tesouro do
templo parece ter sido o seu principal interesse, mas outras razões também são
possíveis. De acordo com 1 e 2 Macabeus, ele foi responsável pela morte de
milhares de judeus durante um período de sete anos de 171 a 164 a.C.. Essa
era começa com a remoção de Onias III do cargo de sumo sacerdote e o seu
eventual assassinato em 171 a.C. (2 Mac. 2—4). Nos anos de 169 e 167 a.C.,
Antíoco atacou cruelmente a terra de Israel, massacrando parte da sua popula­
ção e saqueando o templo (1 Mac. 1; 2 Mac. 5—6). Ele eventualmente proibiu
a observação do sábado, a circuncisão e outras práticas do judaísmo. Por mais
de três anos, as ofertas costumeiras ao Deus de Israel cessaram no templo. Em
dezembro de 167 a.C., esse rei selêucida cometeu o ato mais abominável de sa­
crilégio ao edificar um altar para Zeus no átrio do templo, sacrificando porcos
nele (1 Mac. 1.54-59; 2 Mac. 6.2-5).
As políticas de Antíoco provocaram uma oposição intensa por parte dos
judeus, desencadeando uma revolta liderada por Judas Macabeu e os seus
irmãos (veja 1 Mac. 2—6 e 2 Mac. 5—10). Essa luta ocasionou a liberação
de Judá do controle selêucida e iniciou o reino asmoneu naquela terra. Um
momento culminante ocorreu no 25° dia de kislev em 164 a.C., quando os
227
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

rebeldes judeus tomaram o templo de volta, purificaram-no dos elementos


pagãos, rededicaram o altar e reacenderam o candelabro sagrado (1 Mac. 4.36-
58). Desde aquela época, os judeus relembram aqueles eventos anualmente
durante a Festival das Luzes ou Chanucá.
Na literatura judaica, Antíoco IV é lembrado como um dos tiranos mais per­
versos da história, semelhante a Nabucodonosor e Hamã. Pouco antes dos judeus
tomarem o templo de volta, Antíoco IV faleceu. Enquanto participava de uma
campanha militar contra os partas na Pérsia, ele morreu de uma doença.
Os contextos temporal e geográfico identificados para a recepção da visão
são significativos para o seu conteúdo. O terceiro ano do reinado do rei Bel-
sazar ocorreu em torno de 548 a.C. (v. 1). Embora isso tenha ocorrido alguns
anos depois da visão do capítulo 7, as coisas não haviam melhorado na Babi­
lônia. As pressões interna e externa que emergiram quando Belsazar tomou o
controle do reino continuaram a aumentar, e o futuro do império estava em
questão (veja Por trás do texto no cap. 7). Sob a liderança de Ciro, o Grande, a
Pérsia estava estabelecendo-se como a força política dominante da região.
A visão acontece em Susã, que era a cidade mais importante na província
de Elão (v. 2). Na época de Belsazar, Elão provavelmente estava sob o domí­
nio da Babilônia, embora os Medos talvez tivessem tomado o controle dessa
região. Os registros antigos não esclarecem esse ponto. O que é claro, contudo,
é que Elão havia experimentado dias influentes antes dessa época e o faria no­
vamente. O auge do poder elamita ocorreu em torno de 1300-1100 a.C.. Nessa
época, a Babilônia ficou sob o seu domínio. Depois de alguns anos de obscuri­
dade, Susã ganhou proeminência novamente durante a luta contra a opressão
assíria no oitavo século a.C.. No final, contudo, os assírios devastaram a cidade
em 640 a.C., durante o reino de Assurbanipal. Quando a base de poder no
Oriente Médio mudou para a Babilônia, Nabopolassar e Nabucodonosor in­
corporaram Elão ao seu império.
Quando a Babilônia caiu em 539 a.C., Elão foi absorvido pelo Império
Persa, e Susã se tornou uma das principais residências reais para os seus reis.
Dario II começou a construir um palácio magnificente ali em torno de 521
a.C., usando-o como o centro administrativo mais importante do reino. A ci­
dade continuou a ser um dos bastiões mais impressionantes do poder persa en­
quanto este perdurou. Os leitores judeus se lembram de Susã como o contexto
do livro de Ester e dos primeiros capítulos de Neemias (Ne 1.1; Et 1.2). Quan­
do os gregos ganharam o domínio da região, Susã continuou a servir como
um importante centro de governo. Os selêucidas a renomearam de Selêucia no
Eulaios.
228
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Outra localização designada na visão é um corpo d agua chamado Ulai


(v. 2 e 16). Esse acidente geográfico é difícil de identificar com precisão. Pa­
rece que diversos cursos d agua relacionados a Susã foram chamados de Ulai
ao longo dos anos, e, mais tarde, de Eulaios pelos gregos. Alguns destes são
um pouco distantes da cidade, enquanto outros correm em suas cercanias ou a
atravessam. Alguns estudiosos trocaram a expressão canal de Ulai por “portão
de Ulai”, seguindo as versões em grego antigo, siríaca e Vulgata (veja Hartman
e Di Lella, 1978, p. 223,224). Nesse caso, a visão teria ocorrido no portão da
cidade, o qual presumivelmente levava ao rio Ulai. A maior parte dos comenta­
ristas, contudo, entende Ulai como sendo um corpo d agua na cidade de Susã
ou próximo a ela.
O capítulo 8 é um relato de visão simbólico. Trata-se de um subgênero
dos relatos de visões empregados nos últimos seis capítulos de Daniel (veja
Por trás do texto no cap. 7). Como os capítulos 7 e 8 incluem imagens simbó­
licas, eles são considerados relatos de visão simbólicos, enquanto os capítulos
9— 12 são chamadas de relatos de visão revelatórios (veja Por trás do texto em
10.1 —11.1). As características essenciais de um relato de visão simbólico são
evidentes no capítulo 8: (l) uma indicação das circunstâncias (v. 1,2); (2) uma
descrição das imagens simbólicas (v. 2-12); (3) um pedido por entendimento
(v. 13); (4) uma interpretação (v. 19-26); e (5) uma declaração conclusiva (v.
27). Uma característica especial do capítulo 8 é o elemento da audição, ou seja,
algo que o visionário ouve, nos versículos 13, 14 e 16. Essa característica tam­
bém ocorre nos últimos versículos da última visão em 12.5-13.
As imagens da visão são retiradas do mundo antigo. Um carneiro e um
bode apropriadamente representavam impérios poderosos em conflito (v.
3-8). Ambos os animais são agressivos e combativos por natureza. A tradição
bíblica muitas vezes os usa como símbolos de poder e liderança (Pv 30.31; Is
14.9; Jr 50.8; Ez 34.17; 39.18; Zc 10.3). A carne, o couro, os pelos e os chifres
eram mercadorias cobiçadas (Gn 31.38; 2 Rs 3.4; Js 6.4). Esses animais tam­
bém eram usados nos ritos sacrificiais dos hebreus, particularmente no Dia da
Expiação (Êx 25.5; Lv 4.23; 16.7). Elementos conectados ao Dia da Expiação
talvez forneçam algum contexto histórico para o vocabulário e os conceitos
mencionados na visão (Doukhan, 2000, p. 125-132).
Alguns estudiosos têm proposto que a associação desses animais à Pérsia
e à Grécia talvez tenha raízes na astrologia. Uma lista de signos do Zodíaco
do primeiro século d.C. conecta o carneiro à Pérsia e o bode à Síria (uma por­
ção significativa do Império Grego). Essas referências, porém, são posteriores
e talvez não reflitam o pensamento de um tempo anterior (veja Lucas, 2002,
229
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

p. 213). O mesmo pode ser dito do contexto militar que associa a Pérsia ao
carneiro. No quarto século d.C., um rei persa supostamente usou um capacete
de cabeça de carneiro numa batalha.
A interação de Daniel com seres celestiais é mais pronunciada nesse ca­
pítulo do que nos anteriores. O capítulo 10, contudo, descreverá um desses
encontros com mais detalhes ainda (Para uma discussão mais aprofundada,
veja Por trás do texto no cap. 10). Esse elemento do texto é comum nos apo­
calipses extracanônicos judaicos e cristãos. Entretanto, diversos aspectos tam­
bém encontram paralelos em livros canônicos. Essa característica acentua a
natureza sobrenatural da visão e aumenta a sua relevância para o recipiente.
Semelhantemente ao capítulo anterior, o capítulo 8 começa com uma in­
trodução que menciona a época em que a visão foi dada a Daniel (v. 1) e termi­
na com uma observação sobre a reação de Daniel à experiência (v. 27). Entre
essas duas extremidades, as imagens vistas por Daniel são relatadas (v. 2-14) e
a sua interpretação é dada (v. 15-26). Conversas entre seres celestiais ocorrem
no final do relato (v. 13,14) e no começo da interpretação (v. 15,16). Esses di­
álogos servem para ligar as duas seções principais [do capítulo] e também para
focar a atenção sobre a principal preocupação da visão. Essa preocupação é a
questão da duração da aflição para o povo de Deus.
No texto

1. Introdução (8.1)
I 1 O primeiro versículo fornece um contexto temático e temporal para a
visão. Uma referência ao reinado de Belsazar relembra a história do capítulo 5
e a sua imagem de arrogância, sacrilégio, juízo divino e tumulto político. Esses
temas são abordados novamente na visão atual. O terceiro ano do seu reinado,
como observado acima (veja Por trás do texto), foi um período de agitação
crescente, tanto na política internacional como na doméstica. Essa instabilida­
de política também é um dos temas importantes da visão.
A menção a Belsazar também ressalta o relacionamento íntimo entre os
capítulos 7 e 8. As duas visões ocorrem com apenas alguns anos de diferença. A
expressão “depois daquela” (ARC) também se refere ao capítulo 7, enfatizando
ainda mais a conexão. Isso assegura que o leitor entenderá a visão do capítulo 8
à luz da visão do capítulo 7. O significado da primeira afeta a interpretação da
segunda, A visão do capítulo 8 ilustra com maiores detalhes o tipo de reinos e
tiranos impiedosos descritos no capítulo 7.
230
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

2. O relato das imagens (8.2-14)


12 O relato que Daniel faz da sua visão começa no capítulo 2. Ele nota o
contexto geográfico (v. 2) antes de descrever três cenas de conflito relacionadas
a um carneiro (v. 3,4), um bode (v. 5-8) e um chifre (v. 9-12). Uma última cena
envolve dois anjos conversando (v. 13,14). O ciclo de cada animal no palco
da história é semelhante. Eles surgem, tornam-se grandes, criam um conflito
e depois caem. Trata-se de um padrão familiar para o leitor do capítulo 7. A
descrição do chifre segue um padrão comparável, exceto pelo fato de que a sua
derrota não é relatada.
O lugar onde a visão ocorre parece significativo. Uma referência à cidade­
la de Susã e à província de Elão é surpreendente na época de Daniel (v. 2). A
Babilônia era a sede de poder de Belsazar, e não Susã. Como centro dos reinos
elamitas antigos, Susã representa um poder rival de outra era. O fato de Daniel
ter recebido a visão num lugar assim realça sutilmente a mudança no equilíbrio
de poderes que a visão retrata. Para os públicos judaicos posteriores à época de
Daniel, Susã evoca imagens do poder persa durante as vidas de Ester e Neemias
(Ne 1.1; Et 1.2). Ela se tornou um dos principais centros administrativos dos
persas uma geração depois do reinado de Belsazar (veja Por trás do texto).
A referência ao canal de Ulai incita comparações com outro profeta do
exílio, Ezequiel. Ele também recebeu visões às margens de um corpo d agua
numa terra estrangeira (Ez 1.1). Além disso, assim como Daniel, Ezequiel se
viu transportado para outro lugar no meio de uma visão (Ez 8.3).
Diversas características verbais no texto aumentam o senso de mistério
contido na visão. Nos primeiros versículos, Daniel abusa dos termos vi, olhei
para cima e observei, todos derivados do mesmo termo hebraico (r ’h ). Essa
raiz ocorre sete vezes nos versículos 1-4. Além disso, nos primeiros dois ver­
sículos, Daniel emprega o pronome na primeira pessoa ( a n í) três vezes para
enfatizar o seu envolvimento pessoal e a sua surpresa com a visão. Um elemento
de assombro é comunicado ao longo do capítulo. A visão deixa Daniel clara­
mente admirado, e o leitor também deveria admirar-se. Seu grau de surpresa é
descrito mais plenamente no meio (v. 17) e no fim (v. 27) da visão.
■ 3-4 O primeiro personagem que aparece na visão é um carneiro (v. 3).
Daniel observa os seus chifres, os seus movimentos e a sua força. Típico de um
carneiro adulto, esse tem dois chifres. O que é incomum, contudo, é que os
chifres não crescem na mesma velocidade nem atingem o mesmo comprimen­
to. Um dos chifres, que cresce mais devagar do que o outro, eventualmente se
torna mais comprido que o outro.
231
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Inicialmente, o carneiro está junto ao canal (v. 3). Então Daniel o ob­
serva avançando em todas as direções, engajando-se num conflito com outros
animais. Ele avança para o oeste, para o norte e para o sul (v. 4). Alguns ma­
nuscritos em grego antigo e um pergaminho de Qumrã acrescentam o “leste”
para completar as quatro direções da bússola. Porém Teodócio, a Vulgata e a
Peshitta concordam com o TM quanto a esse ponto. A referência a apenas três
direções provavelmente é original e parece indicar que o carneiro veio do leste.
O versículo 4 enfatiza a força dominante do carneiro. Como os monarcas
antigos que exerciam uma autoridade absoluta, o carneiro fazia o que bem de­
sejava (v. 4). Nenhuma vítima podia resistir à sua agressão nem livrar-se do
seu poder. Alguma forma do termo resistir-lhe ( ‘ã m a d lipn ê) é empregada
repetidamente ao longo do relato da visão para indicar conflito (v. 3,4,7,15).
Na interpretação da visão, a expressão “se insurgirá” dá continuidade à ideia (v.
22,23,25). Como resultado das suas conquistas, o carneiro se tornou cada vez
maior, assim como os outros que o seguiriam (v. 8 e 11).
■ 5-8 A visão do carneiro leva Daniel a refletir profundamente (b in ) sobre o
que ele havia visto (v. 5). A aparição de outro animal, contudo, interrompe os
seus pensamentos. Um bode combativo com características incomuns aparece
no horizonte para lutar com o carneiro. Semelhantemente ao carneiro, Daniel
observa os chifres do bode, os seus movimentos e a sua força.
O bode tinha um chifre enorme entre os olhos (v. 5). Normalmente, os
bodes possuem dois chifres, como os carneiros, e eles não ficam entre os olhos.
Portanto, essa característica é anormal, o que talvez explique por que Daniel a
descreve como enorme ou proeminente. O bode vem do oeste, um ponto de ori­
gem diferente do carneiro. Ele se move rapidamente na cena e ataca furiosamente
o carneiro. Percorrendo toda a extensão da terra sem encostar no chão retrata
um animal atacando com grande velocidade. O bode avança contra ele [o car­
neiro] com grande fúria e o subjuga (v. 6). O v. 7 descreve uma cena de intenso
conflito e conquista absoluta. O bode ataca fúriosamente, atingindo o carneiro
e quebrando os seus chifres (v. 7). Com isso, o carneiro fica impotente. O bode o
derruba no chão e o pisoteia. O carneiro não teve forças para resistir ao bode.
Como aconteceu àqueles a quem o carneiro havia conquistado (v. 4), ninguém
foi capaz de livrá-lo do seu poder. Do mesmo modo que o carneiro havia domi­
nado, o bode agora o subjuga e se torna muito grande (v. 8).
A essa altura, outra coisa incomum é observada sobre o chifre do bode.
O grande chifre é quebrado e substituído por quatro chifres. Os quatro chi­
fres crescem na direção dos quatro ventos da terra, o que quer dizer que eles
apontam em todas as direções - norte, sul, leste e oeste (v. 8).
232
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

19 A visão continua, mas não introduz outro animal. Em vez disso, ela en­
foca os chifres do bode. Um chifre em particular que cresce de um dos quatro
chifres é o interesse principal. Como ocorreu com o carneiro e o bode, os seus
movimentos e a sua força recebem atenção especial.
Esse chifre é inicialmente descrito como pequeno (s ê ‘irâ), o que talvez
se refira à sua insignificância (v. 9). Nesse momento, a linguagem do texto é
reminiscente do capítulo anterior, onde um outro chifre, pequeno também
é mencionado (7.8). Isso pede uma comparação entre os dois chifres nesses
capítulos. Há algumas semelhanças [entre eles], mas também há muitas
diferenças (veja Lucas, 2002, p. 214). Depois de comparar os dois, os estudiosos
estão divididos quanto à conveniência de eles serem ou não identificados. As
diferenças são significativas o suficiente para presumirmos que esses dois chifres
não pretendiam representar a mesma pessoa. O chifre no capítulo 8 é mais bem
visto como um exemplo do tipo de chifre descrito no capítulo 7.
Depois de um começo obscuro, o chifre cresce em poder (v. 9). Literalmen­
te, ele se t o m a ex tra o rd in a ria m en te g r a n d e { tigdalyeter). O carneiro e o bode
também foram descritos como se tornando muito grandes (v. 4 e 8), porém o
chifre parece ser ainda maior. O advérbio ex tra ord in a ria m en te intensifica a des­
crição e sugere que o poder do chifre é ainda mais impressionante do que o do
carneiro e do bode. A grandeza do chifre é ainda mais enfatizada nos próximos
versículos. Alguma forma do termo hebraico para “grande” {gãdôt) aparece mais
duas vezes nos versículos 10 e 11 para descrever a influência crescente do chifre.
O chifre move-se na direção do sul e do leste antes de se voltar para a Terra
Magnífica. A última localidade, literalmente a belez a (hassebí ), é uma referên­
cia a Judá, a Jerusalém ou à área do templo em particular. Os escritores bíblicos
frequentemente se referem a esses lugares como prazerosos ou belos por causa da
presença especial e da bênção de Deus ali (ex., SI 50.2; Jr 3.19; Lm 2.15; Ez 20.6;
Zc 7.14). Nesse contexto, é mais provável que o termo se refira especificamente
a Jerusalém ou ao monte do templo, já que o foco das atividades do chifre é con­
tra as atividades de adoração em Jerusalém. Um apoio adicional para esse enten­
dimento é encontrado mais tarde em Daniel, quando Judá é chamada de Terra
Magnífica, ou mais literalmente, “a terra da beleza” (11.16 e 41).
1 10-11 O chifre não ataca outro animal como fizeram o carneiro e o bode.
Em vez disso, o chifre se volta contra o exército dos céus e o príncipe do
exército (v. 10,11). Embora o texto hebraico desses versículos seja difícil, o
retrato de um comportamento blasfemo emerge claramente. Num ato culmi­
nante de orgulho ambicioso, o chifre tenta exercer autoridade sobre as práticas
233
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

religiosas de Jerusalém, e portanto sobre a dimensão celestial. Ele reflete o tipo


de insolência encontrada na “estrela da manhã” de Isaías 14.12-14, que queria
elevar o seu “trono acima das estrelas de Deus” (Is 14.13).
Dependendo do contexto, o termo exército (sã b ã ') pode referir-se às es­
trelas do céu, a seres celestiais, a divindades pagãs ou ao povo de Deus. Os
comentaristas discordam sobre que entendimento melhor se encaixa a essa pas­
sagem. Uma referência ao exército das estrelas sendo atirado na terra sugere
um significado de corpos ou seres celestiais (v. 10). A principal ofensa do chifre
está ligada ao templo em Jerusalém, contudo, o que indica que o exército cons­
titui pessoas terrenas. Além disso, a interpretação dada mais tarde no versículo
24 fala do “povo santo” sendo atacado. Talvez exército tenha como objetivo
evocar tanto os referentes celestiais como os terrenos, já que um ataque à ado­
ração envolve ambas as dimensões.
O líder daqueles que estão sob ataque é o príncipe do exército (v. 11). Esse
título parece referir-se a Deus, mas os comentaristas também têm oferecido ou­
tras possibilidades. No versículo 25, essa pessoa também é chamada de “Príncipe
dos príncipes”. Como a discussão sobre esse versículo demonstrará, independente
de como entendamos esse título, a dimensão celestial é o alvo do ataque.
Um ato decisivo de sacrilégio ocorre quando o chifre suprime o sacrifí­
cio diário. Esse sacrifício consiste do holocausto de um cordeiro de um ano,
acompanhado de farinha, azeite e vinho, oferecidos todas as manhãs e todas as
noites no templo (Êx 29.38-42; Nm 28.2-8). A interrupção do sacrifício faz
com que o local do santuário seja destruído (v. 11). Isso quer dizer que, sem
os sacrifícios regulares, o templo não funciona mais de acordo com o seu pro­
pósito, como um lugar onde o Deus de Israel é honrado de forma apropriada.
H 1 2 Esse comportamento agressivo do chifre pode ser chamado de rebelião
(pesa ), ou seja, um ato de provocação contra Deus (v. 12). O mesmo termo é
usado no versículo 13 para identificar as atividades opressivas do chifre. En­
tretanto, o texto hebraico é ambíguo nesse ponto. A ação rebelde poderia se
referir ao povo de Deus, e não ao chifre. Se esse for o entendimento, então os
pecados do povo são o motivo da interrupção das atividades do templo.

Traduzindo o versículo 12
Na prim eira m etade do versículo 12, a tradução do hebrai­
co é p articu la rm e n te problem ática. Literalm ente, o te x to diz e o
e x é rc ito fo i dado com {'al) a o fe rta d iá ria a tra v é s (b é ) da reb e ­
lião. Os significados das duas preposições e do verbo (nãtan ) são

234
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

difíceis de determ inar. Diversas propostas tê m sido oferecidas


para to rn a r o te x to com preensível (veja Collins, 1993, p. 334,335).
A trad uçã o m ais com um é a da NVI ou da NRSV. Ela considera que o
verbo n ãtan significa "d a r", a preposição 'al significa "ju n to a" e a prepo­
sição bê com o sendo causal. Portanto, o significado é que o exército e o
sacrifício caem nas m ãos do chifre por causa da rebelião. Isso é apoiado
pela frase "o santuário e o exército ficarão entreg u es" no versículo 13.
O utro e nte n d im e n to a lterna tivo, contudo, é considerar "e xército "
com o uma referência aos exércitos do chifre (G oldingay, 1989, p. 197).
Nesse caso, o verbo nãtan seria traduzido com o "colocado sobre". O signi­
fica do da frase então seria o de um exército estrangeiro supervisionando
os acontecim entos na área do tem plo. Nos dias de Antíoco IV, isso acon te ­
ceu (veja Dn 11.31 e 1 Mac. 1.34). Esse e nte n d im e n to de "e xé rcito ", con­
tudo, requer uma m udança do seu significado nos versículos adjacentes.

O poder do chifre parece ser absoluto. Ele tinha êxito em tudo o que
fazia e conseguiu atingir o seu objetivo de suprimir a adoração judaica (v. 12).
Contudo, o sentido passivo do verbo foram dados sugere outra coisa. Embora
a tradução desse versículo seja difícil, o texto indica que os eventos se desen­
rolam independente do controle do chifre. Quer entendamos que um exército
é colocado no controle de algo ou que o povo de Deus é entregue, outra mão
está operando. Com base no contexto do livro e desse capítulo (veja v. 25), os
leitores sabem que se trata da mão de Deus. Portanto, as ações do chifre não são
tão dominadoras quanto parecem. Em vez disso, o texto sugere que o Senhor
permite que elas aconteçam. A mão divina continua no controle, mesmo em
meio a circunstâncias caóticas como as que são descritas por esse texto.
O efeito da interrupção da adoração no templo é que a verdade é tratada
como um pedaço de presa animal. Ela é lançada por terra para ser devorada
(v. 12). A lei de Moisés, que revela a verdade sobre Deus e um relacionamento
apropriado com Ele, termina como um combatente conquistado. Assim como
0 bode derruba o carneiro no chão (v. 8), o chifre suprime a verdade de Deus.
1 13 Quando o relato das imagens é concluído, a visão deixa as figuras de
animais e chifres, voltando-se para conversas entre seres celestiais. Nessa altu­
ra, Daniel não descreve o que vê, mas sim o que ouve. Esse segmento do relato
exerce uma função crítica na visão. Ele enfoca a principal questão do capítulo:
a duração do sofrimento. Ele também liga o relato da visão à sua interpretação
(v. 15-26), a qual começa com outra conversa entre os seres celestiais.
Cada um dos seres envolvidos na conversa é chamado de “santo” (v. 13
ARC). Esse termo é empregado anteriormente no livro para se referir a anjos
e também a homens (veja 7.18). Nesse contexto, o termo se refere a seres
235
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

angelicais, assim como em 4.13,17,23, onde eles também são chamados de


“sentinelas” ou “mensageiros” {‘i rín ).
Quando o primeiro anjo fala, ele identifica a questão central da visão,
quanto tempo (v. 13). Trata-se de uma pergunta típica expressada por pessoas
aflitas nos lamentos bíblicos (SI 6.3; 79.5; 80.4) e discursos proféticos (Is 6.11;
Jr 12.4; Zc 1.12). Nesse texto ela emerge como resultado da angústia infligida
ao povo de Deus pelo chifre.
A pergunta do anjo contém uma revisão da ofensa do chifre. Seus crimes
incluem: (1) a supressão do sacrifício diário; (2) a rebelião devastadora; (3)
a entrega do santuário e o exército (...) ao poder do chifre (v. 13). Esses não
são necessariamente três eventos separados, mas sim três aspectos do mesmo
evento. A expressão a rebelião devastadora (happesa sõm êm ) resume as ati­
vidades do chifre. Ela é mencionada mais tarde no livro como “o sacrilégio
terrível” (siqqüs sõm êm ) em 9.27; 11.31 e 12.11 (veja também Mt 24.15; Mc
13.14). A expressão transmite a natureza chocante da transgressão contra Deus
e o Seu povo. Devastador também pode ser traduzido como a q u ilo q u e é a te r -
ro riz a n te o u h o rrífico .
A expressão parece zombar do título divino “Senhor do céu” {baalsãm aim ),
que era comumente usado para divindades pagãs. Inicialmente, a semelhança
entre os sons de “céu” (sã m a ím ) e “devastador” {sõmêm) evocam um jogo de
palavras. Então, a substituição de “Senhor” {ba‘a l) por “rebelião” (pesa1) se segue
naturalmente. O título “Senhor do céu” é equivalente ao título olímpico Zeus.
Esse é o deus para o qual um altar foi eregido, o que representou uma grande
desgraça para o povo judeu na época, provocando uma revolta generalizada de
acordo com 1 Macabeus 1 e 2 Macabeus 6 (veja Por trás do texto).
■ 14 Um segundo anjo responde à pergunta feita pelo primeiro. O chifre será
bem sucedido por duas mil e trezentas tardes e manhãs (v. 14). A resposta é
ao mesmo tempo reveladora e misteriosa. Embora certa quantidade de tempo
seja designada, um mistério permanece quanto ao seu significado preciso. Os
comentaristas têm sugerido três possibilidades; 1.150 dias, 2.300 dias e 2.300
anos. Como os versículos anteriores se referem aos sacrifícios diários que ocor­
riam a cada manhã e fim de tarde, poderíamos presumir que o texto se refere a
2.300 sacrifícios diários, ou 1.150 dias. Por outro lado, poderíamos considerar
“tardes e manhãs” como a expressão de um dia, como em Gênesis 1.5, e calcular
2.300 dias. Finalmente, se considerarmos que dias talvez sejam simbólicos de
anos, a referência poderia ser a 2.300 anos.
Independente de como interpretemos o período de tempo indicado, o
número parece ser simbólico, assim como a maioria dos números no livro de
236
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Daniel. Os comentaristas têm feito diversos cálculos relacionados a eventos


históricos (veja a seção Cálculos das duas mil e trezentas tardes e manhãs, abai­
xo). Porém, nenhuma dessas teorias é inteiramente convincente. Entretanto,
um aspecto da frase está claro: o sofrimento e a destruição causados pelo chifre
cessarão. Um fim para as suas atividades foi divinamente determinado, e o tem­
plo em Jerusalém será reconsagrado (nisdaq ), literalmente será co n serta d o . A
restauração do templo contrasta com o que é descrito no versículo 12, quando
a verdade é “lançada por terra”. As coisas serão consertadas quando a adora­
ção ao Deus de Israel for reestabelecida com os sacrifícios diários apropriados.
Deus será honrado novamente como o soberano do universo.

Cálculos das duas mil e trezentas tardes e manhãs


D iversoscálculostêm sido fe itos para conectar "d u a s m il e tre ze n ta sta r-
des e m anhãs” no versículo 14 a eventos históricos conhecidos. Três form as
d iferentes de in te rp re ta ra quantidade de te m p o m encionada no versículo
— 1.150 dias, 2.300 dias e 2.300 anos — sugerem d iferentes possibilidades.
Num calendário lunissolar, 1.150 dias correspondem a proxim ada­
m ente a três anos e dois meses. D urante a época do governo selêuci-
da, esse foi o período aproxim ado em que os sacrifícios judeus cessa­
ram e um a lta r para Zeus foi ereto nos átrios do te m p lo em Jerusalém.
O a lta r foi construído no dia 15 de kislev, em 167 a.C. e substituído no
dia 25 de kislev, em 164 a.C. (1 Mac. 1.54; 4.52). O te m p o exato foi
de três anos e dez dias, ou cerca de 1.090 dias. Para que esse núm ero
chegue a 1.150, poderíam os presum ir que os sacrifícios diários cessa­
ram alguns meses antes do a lta r ser construído (Archer, 1985, p. 103).
Se o versículo 14 referir-se a 2.300 dias, então um período de aproxim a­
dam en te seis anos e quatro meses deve ser considerado. Isso poderia cor-
responderaos seis a sete anos de perseguição intensa d osjud eu s por Antío-
co IV (M iller, 1994, p. 229-230). Esse período com eça com o assassinato do
sum o sacerdote Onias III em 171 a.C. e te rm ina com a purificação do tem p lo
em 164 a.C.. O utro período de seis anos ta lve z se encaixe entre a co nstru ­
ção do a lta r pagão em 167 a.C. e a derrota fin al dos selêucidas em 160 a.C..
A sugestão de que o te x to se refere a anos em vez de dias muda
o foco da passagem para o final da história do hom em . Nesse cená­
rio, a referência à reconsagração do santuário te ria de e star relacio­
nada à segunda vinda de Cristo. Portanto, poderíam os calcular o fi­
nal da história do hom em se soubéssem os o ponto inicial dos 2.300
anos. Diversos pontos iniciais e calendários tê m sido usados para pro­
je ta r uma data para o retorno de Cristo. A m ais fam osa dessas proje-
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

ções ta lvez seja a de W illiam M iller (1782—1849), que identificou 1843


e depois 1844 com o o final da história do hom em . Como essa data já
passou, outras form as de e nte nd e r os 2.300 anos tê m sido apresenta­
das por co m e nta ristas m ais m odernos (Doukhan, 2000, p. 152-155).
A discussão é com plicada por núm eros a lterna tivos dados em Daniel
12.11,12. Em referência à cessação do sacrifício e ao "sacrilégio te rrív e l",
três versículos anunciam períodos de 1.290 dias e 1.335 dias. Veja o co­
m en tário sobre esses versículos.

3. A interpretação das imagens (8.15-26)


H 15-16 A seção de interpretação começa da mesma forma que o relato ter­
mina, com uma conversa entre seres celestiais (v. 15,16). Segue-se um relato da
reação de Daniel à visão (v. 17,18), e então a interpretação propriamente dita
(v. 19-26). A conversa e a reação de Daniel adiam a interpretação, aumentando
o suspense. O padrão da interpretação se desenrola de modo semelhante ao
relato, dando primeiro uma explicação sobre o carneiro, depois o bode, e final­
mente o chifre. O último desses três recebe a maior atenção.
A conversa celestial ocorre entre um ser visto e outro não visto. O ser não
visto é conhecido apenas pelo som da sua voz. Daniel o descreve como a voz de
um homem que vinha do Ulai (v. 16). Poderíamos presumir tratar-se da voz
de Deus, mas o texto não deixa isso claro. Assim como “uma voz” que “veio do
céu” em 4.31, não podemos saber ao certo se quem está falando é Deus ou um
anjo. Mais tarde no livro, contudo, numa cena equiparável, um anjo que paira
sobre um corpo d agua fala a outro ser celestial (12.6,7). De qualquer forma, a
autoridade final por trás da voz é Deus.
A voz ordena que o ser que Daniel está vendo forneça uma interpretação
para a visão. O ser visível tem a aparência de um homem (v. 15), e, de acordo
com a voz, se chama Gabriel (v. 16). Há um jogo de palavras aqui. A palavra
hebraica para homem é g e b e r , que é a base do nome Gabriel { gabríel ). O termo
se refere a uma pessoa distinta que possui força e influência excepcionais, tal
como um guerreiro ou uma figura política. Embora o nome Gabriel possa ser
traduzido simplesmente como “homem de Deus”, é mais provável que ele sig­
nifique algo como “Deus é o meu guerreiro ou o meu herói”. Essa é a primeira
vez na Bíblia que um anjo é mencionado por nome.

238
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O papel dos anjos


Apenas dois anjos são nom eados na Bíblia, e am bos aparecem pela p ri­
m eira vezem Daniel. O sdoissãoG abriel (8,16; 9.21) e Miguel (10.13,21; 12.1).
Ao longo da Bíblia, Gabriel cum pre o papel típico de um anjo,
tra n sm itin d o m ensagens da parte de Deus. No livro de Daniel, Ga­
briel fornece explicações para as visões que o profeta teve. No NT,
ele anuncia os nascim entos de João Batista e de Jesus (Lc 1.11,31).
A lite ra tu ra judaica extracanônica im aginava Gabriel com o um dos
quatro ou sete arcanjos. Ele é identifica do com o um daqueles que levam
as orações dos m ártires a Deus (1 En. 9) e é encarregado de supervisionar
o paraíso (1 En. 20). Ele se assenta à esquerda de Deus (2 En. 24) e executa
juízo sobre os ím pios (1 En. 54).

B 1 7 -1 9 A descrição da reação de Daniel à sua experiência acentua o contras­


te entre a dimensão celestial e a terrena, lembrando o leitor do significado sole­
ne da visão. Daniel fica aterrorizado e cai prostrado (Dn 8. 17), uma posição
de profunda reverência. Com o rosto em terra, ele cai num sono profundo,
talvez um transe, já que ele parece estar consciente de que o anjo está falando
com ele (v. 18). Ele se torna totalmente impotente e dependente diante do
anjo, mas recebe força suficiente para se colocar de pé quando este o toca. Da­
niel terá experiências semelhantes novamente na última visão do livro (10.8-
10).
Gabriel confirma a fragilidade de Daniel endereçando-se a ele como Fi­
lho do homem (v. 17). Dessa vez o termo usado para homem é a d ã m , o qual
denota as origens terrenas dos homens. Isso contrasta com a descrição do anjo
como um geber no versículo 15. Como em Ezequiel (Ez 2.1,3, e muitas outras
vezes), essa designação estressa a posição humilde dos homens criados diante
do seu onipotente Criador.
Em termos sucintos, Gabriel identifica o foco principal da visão. Ela tem a
ver com os tempos do fim (v. 17). Essa expressão é esclarecida por duas outras
expressões paralelas: depois, no tempo da ira e tempo do fim (v. 19). O sig­
nificado básico dessas expressões é relativamente claro. A visão lida com a con­
sumação final de um período de maldade. A palavra hebraica traduzida como
fim (q es) denota o momento em que algo termina, ou, literalmente, é cortado.
Na literatura profética, isso às vezes se refere ao término de um período de
iniquidade (Am 8.2; Ez 7.2,3). Mais tarde, no livro de Daniel, o termo é usado
para designar o fim de diversos períodos de tempo (9.26; 11.6,13,27,35,40,45;
12.4,6,9,13).
239
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

De acordo com 8.19, o tempo da ira é o período de iniquidade que será


cortado. A palavra ira (z a a m ) significa literalmente “indignação”. Ela pode
aludir à ira humana (Os 7.16), mas se refere com maior frequência à ira de
Deus contra o pecado, a qual leva ao exercício do Seu juízo (Is 26.20,21; Jr
10.10). Na visão, o tempo da ira sem dúvida se refere ao período do juízo de
Deus sobre os judeus descrito em Daniel 8.9-13 e 23-25. Trata-se do mal infli­
gido sobre o povo de Deus pelo pequeno chifre. O versículo 23 descreve isso
como um tempo “no final do reinado deles, quando a rebelião dos ímpios tiver
chegado ao máximo”.
Os estudiosos debatem sobre que período histórico específico é denotado
pelo tempo da ira. As opiniões variam dependendo de como o pequeno chi­
fre é interpretado. Alguns sugerem tratar-se da época imediatamente anterior
ao final da história do homem, enquanto outros acreditam que ele se refere
ao período próximo à perseguição síria dos judeus experimentada no segundo
século a.C.. Outros comentaristas oferecem alternativas adicionais (para um
resumo das diversas opiniões, veja Walvoord, 1971, p. 192-196).
Como o comentário dos versículo 23-25 irá sugerir abaixo, o período de
iniquidade específico mencionado pelo texto parece ser a perseguição de An-
tíoco IV. Isso, contudo, não elimina a possibilidade de se aplicar a passagem
profética ao final dos tempos. A visão do cap. 8 apresenta um tipo de reino des­
crito no capítulo 7. A princípio, a tribulação causada pelo pequeno chifre do
capítulo 8 representa o que ocorrerá sob regimes tirânicos em diversas épocas
da história do homem, incluindo o final dos tempos. De acordo com Mateus
24 e Apocalipse 8— 19, os seguidores do Senhor devem esperar uma opressão
e agitação intensas similares àquela descrita em Daniel 8 antes da consumação
final da história.
Ao longo dessa discussão, não devemos deixar de atentar para a mensagem
essencial transmitida por Gabriel. O período de juízo causado pelo pequeno
chifre tem um fim determinado. Há um tempo determinado do fim (v. 19).
Essa expressão enfatiza a mesma mensagem que “duas mil e trezentas tardes e
manhãs” no versículo 14. Um momento divinamente ordenado foi estabeleci­
do, quando o sofrimento causado pelos poderes malignos cessará.
H 20 Finalmente, o anjo explica as principais imagens da visão (v. 20-25).
Ele identifica o carneiro (v. 20), o bode (v. 21,22) e o pequeno chifre (v. 23-
25) com explicações progressivamente mais longas. A última dessas três se­
ções demonstra qualidades poéticas e pode ser expressa em versos (veja BH S e
NRSV). Essa característica atribui um enfoque adicional ao pequeno chifre e à
sua importância particular. Ela também permite uma maior expressão emotiva
240
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

relacionada às ações do pequeno chifre, apoiando a profundidade da reação


que Daniel exibe nos versículos anteriores e subsequentes.
O carneiro de dois chifres simboliza os reis da Média e da Pérsia (v. 20).
Isso identifica o carneiro com uma entidade política conhecida na história: o
Império Persa que dominou o Oriente Médio de 550 a.C. a 331 a.C. (veja
Por trás do texto). À luz dessa identificação, as características que descrevem
o carneiro nos versículos 3-5 fazem mais sentido e parecem corresponder às
características daquele reino. Os dois chifres do carneiro poderiam aludir aos
dois elementos étnicos dominantes do império: os medos e os persas. O fato
de um chifre ser mais comprido do que o outro ressalta que os persas foram o
mais proeminente dos dois grupos. A partir do seu ponto de origem ao leste
do rio Tigre, o império conquistou povos ao oeste, ao norte e ao sul, como fez
o carneiro. Ele se expandiu para o oeste até a Babilônia, a Síria e a Ásia Menor,
para o norte até a Armênia, a Cítia e a região do mar Cáspio, e para o sul até o
Egito e a Etiópia. Embora os gregos tenham basicamente resistido à agressão
dos persas, a imagem do domínio extensivo do carneiro é correta para esse im­
pério. Uma descrição equiparável da conquista intimidadora da Pérsia é dada
em Isaías 41.1-7.

Uma questão para os interpretadores


Juntam ente com a Babilônia (ou N abucodonosor) em 2.38, as referên­
cias à Pérsia e à Grécia em 8.20,21 são as únicas vezes no livro em que
reinos m undiais conhecidos são e specificam ente identificados a im agens
em visões. Essa ausência de conexões exatas entre as im agens e e n tid a ­
des históricas particulares cria um dilem a para os interpretadores. M uitos
estudiosos consideram isso com o uma indicação de que devem buscar
reinos existentes que poderiam ser identificados a outras im agens nas
visões. O utros estudiosos, porém , a creditam que o te x to está d irigindo os
leitores a fazerem o contrário. Talvez a reticência do te x to em id e n tifica r
reinos específicos esteja instruindo os leitores a e v ita r fa zer especulações
a m enos que a visão to rn e a conexão clara. Essa é uma questão que todos
os interpretadores de Daniel precisam enfrentar.

H 2 1 -2 2 O segundo animal, o bode peludo, também é especificamente


identificado com um poder mundial conhecido, o rei da Grécia (v. 21). Isso
se refere ao império estabelecido em torno de 331 a.C. por Alexandre, o
Grande. O grande chifre do bode simboliza Alexandre, enquanto os quatro
241
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

chifres significam quatro reinos que eventualmente saíram do seu império (v.
22). Como resultado dessas identificações, a descrição do bode nos versículos
5-8 adquire um significado adicional. Assim como o bode, Alexandre, o
Grande, veio do oeste, da Macedônia, subjugando rapidamente o seu rival, o
Império Persa. Depois de uma conquista rápida e decisiva, Alexandre morreu
prematuramente e o seu império foi dividido em diversos reinos menores.
Eventualmente, quatro reinos principais emergiram, assim como os “quatro
chifres” proeminentes que cresceram a partir do “grande chifre” do bode (veja
Por trás do texto).
H 2 3 - 2 5 Um desses reinos gregos derivados se tornou conhecido como o Im­
pério Selêucida, o qual dominou o cotidiano dos judeus de 198 a.C. a 164 a.C..
De acordo com a visão, durante o final do reinado deles sobre Jerusalém, um
tirano horrífico tomou o poder (v. 23). Esse tirano é claramente o pequeno chi­
fre da visão de Daniel, embora essa identificação nunca seja explicitada na inter­
pretação. O texto não identifica esse rei pelo nome, mas a grande maioria dos
estudiosos está convencida de que ele só poderia ser Antíoco IV, que governou o
reino selêucida de 175 a.C. a 164 a.C.. As descrições do pequeno chifre na visão e
do rei na interpretação se encaixam muito bem ao que se conhece sobre Antíoco.
Ele era um déspota maquinador que chegou ao poder ao tomar o controle do
reino dos seus herdeiros legítimos. Tendo sua base de poder localizada na Síria,
ele liderou importantes campanhas militares em direção ao sul e ao leste, assim
como o chifre do versículo 9. Antíoco IV demonstrou uma agressão odiosa pelos
habitantes da “Terra Magnífica” (v. 9), os judeus. Ele massacrou milhares deles,
tomou o templo em Jerusalém e proibiu a prática da fé (veja Por trás do texto).
O reinado desse rei é descrito como ocorrendo quando a rebelião dos ím­
pios tiver chegado ao máximo (v. 23). A frase denota uma época de maldade in­
tensa que finalmente provoca uma reação divina (Gn 15.16). Juntamente à frase
relacionada “o tempo da ira” no versículo 19, ela sugere um tempo oportuno para
o juízo de Deus. No hebraico, o termo rebelião é happõsím , porém as versões
mais antigas e algumas traduções modernas (NRSV) mencionam “transgres­
sões” (h appèsaím ) em vez disso. A palavra é derivada de p esa , um termo frequen­
temente usado para o pecado, o qual enfatiza uma transgressão ou violação de
nossas obrigações para com o próximo. Nesse contexto, os transgressores podem
ser governantes estrangeiros ou líderes judeus locais que fazem concessões a eles.
Ambos poderiam ser vistos como estando em rebelião contra Deus. Mais cedo na
visão, as ações do chifre são descritas como “a rebelião devastadora” (Dn 8.13).
O tirano é caracterizado como um rei de duro semblante (v. 23). A ex­
pressão duro semblante ( a z p ã n ím ) sugere o comportamento impetuoso e in­
flexível de uma pessoa insolente como uma prostituta (Pv 7.13). Isso nos leva a
242
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

questionar se o texto pretende fazer alguma associação com uma cabra, já que
‘e z- (cabra) e ‘a z (duro) soam bastante semelhantes. O descaramento desse rei é
ainda mais enfatizado quando ele é descrito como alguém que se considerará
superior aos outros (Dn 8.25). Tal arrogância é reminiscente dos monarcas
babilónicos que Deus humilhou em Daniel 4 e 5.
O rei é um mestre em astúcias (v. 23). Literalmente, ele e n te n d e ch a ­
radas. Tipicamente, o mundo antigo admirava a característica da astúcia nos
monarcas. Essa podia ser uma boa qualidade, mas muitas vezes era mal mane­
jada (Ez 28.1-7). No caso desse rei, é provável que esse seja o meio pelo qual ele
se torna muito forte, já que isso não acontece pelo seu próprio poder (Dn
8.24). Como sugere a frase ele enganará a muitos (v. 25), ele adquire e man­
tém o controle do seu reino por meio da traição. O texto fornece uma ilustra­
ção desse tipo de jogo duplo. Ele menciona um tempo em que o rei destruirá
muitos que nele confiam (v. 25). Alguns estudiosos sugerem que isso poderia
referir-se a um ataque a Jerusalém em 167 a.C. pelos exércitos de Antíoco IV.
De acordo com 1 Macabeus 1.29-32, os soldados sírios agiram como se esti­
vessem vindo em paz, e então de repente se voltaram contra os habitantes da
cidade, chacinando milhares deles. Para outros exemplos das ações traiçoeiras
de Antíoco IV, veja 2 Macabeus 4.7-29.
Esse rei insolente e astuto produzirá devastação para aqueles que estão
sob o seu domínio. Ele (1) provocará devastações terríveis; (2) destruirá os
homens poderosos e o povo santo; (3) destruirá muitos e (4) se insurgirá
contra o Príncipe dos príncipes (Dn 8.24,25). Essas frases são outra forma de
descrever as ações aterrorizantes do pequeno chifre catalogadas nos versículos
10-13. O verbo sãhat (traduzido como devastações e destruirá) é usado três
vezes para descrever o comportamento do rei. O termo denota alguém que
arruina ou estraga algo que é bom.
Aqueles que estão sob ataque são os homens poderosos e o povo santo
(v. 24). Trata-se de pessoas que se identificam com o Deus santo de Israel e que
o adoram fielmente em Seu templo. Alguns consideram a expressão homens
poderosos (‘ã sümim ) como uma referência a figuras políticas no conflito com
Antíoco IV. Embora estes talvez estejam incluídos na referência, o termo tem
um significado mais amplo e geralmente denota poder em termos de números.
Portanto, a expressão poderia ser traduzida como os n u m ero so s , corresponden­
do aos muitos (ra bb im ) mencionados no versículo 25. De um ponto de vista
gramatical, a expressão o povo santo pode ser considerada simplesmente como
uma explicação adicional de os homens poderosos. Juntas, essas designações
descrevem o elemento terreno envolvido no “exército” do versículo 12.
243
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Embora o povo de Deus seja alvo direto do ataque do rei, o seu principal
inimigo na verdade é o Príncipe dos príncipes (sa rsã rím ), o qual, no versículo
11, é designado como o “príncipe do exército” (v. 25). A interpretação mais
natural desses títulos seria Deus, já que eles refletem outras designações divi­
nas como “Senhor dos senhores” ( ’a d õ n ê ha a d õn im ), “Senhor dos exércitos”
{yhwh s e b ã ’ôt ) e “Senhor dos céus” (em aramaico, m a rêsã m a ‘i n ).Esses títulos
enfatizam a soberania de Deus sobre todas as demais entidades e governantes.
Entretanto, os estudiosos sugerem duas outras possibilidades para o en­
tendimento desses títulos. Eles poderiam referir-se ao arcanjo Miguel ou a
um sumo sacerdote. A sugestão de Miguel se baseia na sua aparição mais tar­
de no livro de Daniel como protetor de Israel e líder de um exército celestial
(10.13,20,21; 12.1). Nesses contextos, ele é chamado de “príncipe” (sar). O
argumento em favor do sumo sacerdote deriva da sua função como líder da
comunidade de fé de Judá. Se um sumo sacerdote estiver em vista, os estudiosos
sugerem que Onias III, que foi assassinado durante o reino de Antíoco IV em
171 a.C., poderia ser a pessoa específica mencionada pelo texto (2 Mac. 4.34).
Independente de como o Príncipe dos príncipes seja entendido, a ima­
gem da blasfêmia permanece. Deus está sob ataque. Sumos sacerdotes e anjos
são representantes da dimensão divina. Portanto, ao se insurgir contra as di­
mensões celestiais, esse rei é como Nabucodonosor no capítulo 4 e Belsazar no
capítulo 5. Entretanto, assim como nenhum animal pôde “resistir” ao carneiro
(v. 4) e o carneiro não pôde “resistir” ao bode (v. 7), esse rei arrogante também
não poderá insurgir-se contra os céus por muito tempo.
No fim, o rei implacável será destruído (v. 25). O texto literalmente diz
que e le será q u eb ra d o (yissabêr), o que reflete a linguagem dos chifres sendo
quebrados mais cedo na visão. Como o “grande chifre” que representava o
primeiro rei dos gregos (v. 8), o pequeno chifre será “quebrado” e se tornará
o último rei. Entretanto, o seu fim virá, mas não pelo poder dos homens.
Isso sugere uma intervenção divina, como uma expressão semelhante em 2.45.
Deus se certificará de que o perpetrador do mal cesse. De acordo com 1 Maca-
beus 6.1-16, Antíoco IV morreu de uma doença não especificada, talvez uma
depressão, e não numa batalha ou de causas naturais.
1 2 6 Uma palavra conclusiva de Gabriel enfatiza o foco principal e o grande
valor da visão. O anjo esclarece que a visão é principalmente sobre as tardes e
as manhãs (v. 26), ou seja, a extensão de tempo em que os sacrifícios diários
serão suspensos e o sofrimento do povo irá durar.
A importância da visão é afirmada de uma forma típica dos apocalipses
(DnlO.l; 12.4,9; Ap 19.9; 21.5; 22.6). A visão é primeiramente proclamada
244
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

como verdadeira (Dn 8.26). Sua mensagem é certa e confiável porque sua ori­
gem é a fonte de toda a verdade (2.20-22). Sua mensagem refere-se ao futuro
distante (8.26), a eventos que ocorrerão ao longo de vários séculos depois da
vida de Daniel. Por essa razão, Daniel deve selar a visão. Ela deve ser mantida
em segurança para que seja preservada da corrupção e para garantir a sua dis­
ponibilidade na época à qual ela se aplica. Isso implica escrevê-la, amarrar um
cordel ao redor do documento ou colocá-la num jarro e pressionar um anel-
-selo sobre um selo de barro (veja Jr 32.9-12).

4. Conclusão (8.27)
H 2 7 Novamente, a reação de Daniel à visão é descrita para enfatizar a sua sig-
nificância (veja Dn 8.17,18). Como em outras ocasiões em que ele teve visões,
Daniel se sente exausto e confuso com a experiência (4.19; 7.28; 10.2,3,7-9).
Como era de se esperar, a visão da “rebelião devastadora” o deixou d ev a sta d o
(traduzido na NVI como assustado). Os termos “devastadora” e assustado são
derivados da mesma raiz (sã m êm ). Embora as imagens tivessem sido explicadas
até certo ponto na interpretação, Daniel confessa que ainda assim a visão esta­
va além da compreensão.
A partir do texto
A visão do capítulo 9 afirma a mesma mensagem que Deus transmitiu a
Judá por intermédio de Isaías sobre os Assírios: “Povo meu que vive em Sião,
não tenham medo dos assírios, quando eles os espancam com uma vara e er­
guem contra vocês um bastão, como fez o Egito. Muito em breve o meu furor
passará, e a minha ira se voltará para a destruição deles” (Is 10.24,25). Na tra­
dição dos profetas de Israel ao longo dos séculos, Daniel reconhece um mundo
em constante conflito, infligindo sofrimento ao povo de Deus. A boa notícia,
contudo, é que os céus realmente sentem empatia pela sua aflição e estabelecem
limites para ela.
O p a lco da história do h om em está cheio d e conflito p o r causa do desejo p ela
autossoberania. De acordo com Daniel 8, as nações têm por hábito engajar umas
às outras como animais combativos. Com o temperamento de carneiros e bodes
agressivos, elas atacam a sua presa, subjugam-na e se tornam grandes. Contudo,
outra por sua vez se levanta, ataca, subjuga e se torna grande. Assim como no
reino animal, a posição de superioridade é temporária nos reinos humanos. Uma
breve porção da história do homem, os períodos persa e grego, ilustram isso.
245
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O motivo dessa agressão se torna claro na terceira figura da visão. O pe­


queno chifre manifesta um impulso determinado de substituir o Senhor como
autoridade soberana sobre este mundo. Como o povo da antiga Sinear, o chifre
tenta “construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus” (Gn 11.4).
Ele se atreve a desafiar o príncipe do exército (Dn 8.11). Mais do que isso,
ele se insurge contra o Príncipe dos príncipes (v. 25) e ataca o exército dos
céus (v. 10). Como um animal feroz devorando a sua presa, ele atirou na terra
parte do exército das estrelas e os pisoteou (v. 10). De muitas maneiras, ele
é a manifestação de Satanás, a quem o N T descreve como alguém que “anda
ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar” (1 Pe 5.8).
Essa é a postura dos impérios malignos e dos seus reis, quer eles o reconhe­
çam ou não. Eles estão em conflito com os céus. O seu objetivo é substituir a so­
berania de Deus pela autossoberania, o que constitui a expressão fundamental
do pecado. Esse mau comportamento é apropriadamente chamado de rebelião
(Dn 8.13), já que ele viola uma aliança entre a criatura e o Criador. O príncipe
terreno está tentando dar um golpe de estado no domínio do Príncipe dos
príncipes (v. 25).
Entretanto, essa transgressão não está restrita somente a nações ou tiranos.
Ela constitui o conflito de todos os homens. Portanto, as imagens do capítulo 8
refletem um conflito vivenciado por cada pessoa que vive na terra, e não apenas
por reinos. Tiago aponta para esse conflito quando pergunta: “De onde vêm
as guerras e contendas que há entre vocês ? Não vêm das paixões que guerreiam
dentro de vocês?” (Tg4.1). Tiago explica que esses desejos são anseios de pos­
suir e controlar, em vez de se submeter a Deus. Essa é a luta pela autossoberania
ilustrada em Daniel 8.
A pessoa q u e está d eterm in a d a a lu ta r contra D eus fa z o p o v o d e D eus so­
frer.A tentativa do chifre de alcançar a autossoberania se manifesta de forma
bastante tangível na vida daqueles que adoram a Deus. Sua estratégia envolve
a subversão de qualquer coisa na terra que reconheça o governo de Deus. Por­
tanto, ele suprime os sacrifícios diários do povo de Deus e desrespeita o santo
santuário (v. 11). O sacrifício e o santuário são símbolos essenciais da sobera­
nia de Deus neste mundo. O santuário é o palácio terreno do rei celestial, e
o sacrifício é o ato de reverência dos seus súditos. Embora estes sejam apenas
símbolos, a realidade por trás deles é de extrema importância. Quando eles
são removidos, a verdade sobre Deus e o Seu direito soberano de reinar sobre
a vida das pessoas é lançada por terra (v. 12). Sem o sacrifício e o santuário, o
povo de Deus perde um meio crucial de expressar a sua devoção a Deus e teste­
munhar da Sua soberania sobre este mundo.
246
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Se os comentaristas estiverem corretos ao interpretarem as ações do chifre


como uma alusão às iniciativas de Antíoco IV no segundo século a.C., então a
profundidade da aflição é ainda mais extensiva do que Daniel 8 descreve. 1 e
2 Macabeus contam uma história angustiante de opressão, chacina e sacrilégio
sob Antíoco IV. Literalmente milhares de judeus morreram pelas suas mãos,
o que empresta um significado adicional à frase ele provocará devastações
terríveis e destruirá muitos (v. 24,25). Foi um holocausto dos fiéis judeus.
Além disso, a área do templo foi completamente profanada e renomeada como
o templo do Zeus olímpico. 2 Macabeus 6.3-5 descreve a situação: “Dura e
penosa foi para todos essa avalanche de mal. O templo encheu-se de lascívias e
das orgias dos gentios que se divertiam com meretrizes, unindo-se às mulheres
nos átrios sagrados e introduzindo coisas ilegais. O altar estava coberto de víti­
mas impuras, interditas pelas leis”.
Ao longo da história, o povo de Deus sofre por causa daqueles que operam
movidos pela ilusão do autogoverno. Jesus advertiu que esse seria o caso (Jo
15.20), e os seus seguidores reconhecem essa realidade (2 Co 1.8,9). Eles en­
contram consolo, contudo, na certeza de que os seus sofrimentos não apenas os
aproximam mais de Cristo, como também fornecem os meios pelos quais Ele
pode ser revelado a este mundo (1 Pe 4.13).
O p o v o d e D eus ta m b ém sofre p o r causa dos seus próp rios peca dos. Embora
tiranos cruéis inflijam muito sofrimento aos eleitos de Deus, eles não são a úni­
ca fonte de tormento. A visão do capítulo 8 sugere que a aflição causada pelo
chifre na verdade é o julgamento divino pelos pecados de Israel. O Senhor está
usando a insolência de um rei terreno para punir a desobediência dos crentes.
Isso não diminui o ponto anterior, mas proporciona uma perspectiva adicional.
O texto não é totalmente explícito sobre essa questão, a ambiguidade com
relação à rebelião no versículo 12, o tempo da ira no versículo 19, e os ímpios
no versículo 23 dá lugar a interpretações alternativas. Entretanto, o capítulo 9
esclarece a questão. Ele afirma que o pecado de Israel provocou o julgamento
divino, que começa com o exílio e atinge novas alturas durante o período em
que ocorre o “sacrilégio terrível” (veja comentário no capítulo 9). Essa é uma
palavra dura de ouvir, mas ela é consistente com a mensagem dos profetas de
Israel ao longo dos séculos. Deus disciplina aqueles a quem Ele ama (Dt 8.5;
Os 11.1-6).
I n d ep en d en te d a fo n te d e sofrim ento, os céus com pa rtilh a m as aflições do p o v o
d e D eus. A visão do capítulo 8 implica que as dimensões celestiais estão envol­
vidas no conflito criado pelo chifre. O Senhor não está desconectado daqueles
que sofrem na terra. Novamente, a ambiguidade do texto abre uma possibili-
247
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

dade que se torna mais clara nas visões posteriores. O exército dos versículos
10-13 poderia referir-se a personalidades terrenas ou celestiais, e os comenta­
ristas têm sugerido ambos ao longo dos anos. O capítulo 10 esclarecerá que
um ataque ao povo de Deus é um ataque a Deus. De algum modo, as batalhas
da terra são paralelas às batalhas na dimensão celestial (veja comentário no
capítulo 10).
Para o contexto do capítulo 8, é um consolo saber que o povo de Deus
não está sozinho em sua aflição. O Senhor e a dimensão celestial estão cien­
tes e engajados. Como afirma a história de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego
no capítulo 3, de algum modo Deus se une aos fiéis em suas provações mais
desesperadoras. A promessa do Senhor a Josué é cumprida repetidas vezes ao
longo das Escrituras: “Assim como estive com Moisés, estarei com você; nunca
o deixarei, nunca o abandonarei” (Js 1.5).
D eus estabelece um tem po para o m a l term in ar e o Seu reino vir. Embora os cren­
tes talvez encontrem consolo ao saberem da participação dos céus no seu sofrimen­
to, saber que um fim está à vista é ainda mais tranquilizador. A principal pergunta
da visão é quanto tempo durarão os acontecimentos anunciados por essa visão?
(v. 13). Essa é uma pergunta vital para aqueles que sofrem (SI 35.17; Ap 6.10). As
pessoas conseguem suportar melhor a sua dor quando sabem que ela irá passar.
Entretanto, a preocupação da visão não é apenas com o fim do sofrimento
do povo de Deus; o período de aflição também é um tempo em que a soberania
de Deus é escarnecida. O ataque ao sacrifício e ao santuário representa um des­
caso para com o controle de Deus sobre este mundo. Como testifica o restante
de Daniel - tanto as histórias quanto as outras visões -, essa é a questão princi­
pal. Portanto, o fim do mal também significa que o governo absoluto de Deus
é manifestado na terra. Como a visão coloca, o santuário será reconsagrado
(v. 14). Deus será legitimamente reconhecido mais uma vez como soberano em
Seu templo. Portanto, o reino do Senhor e o fim do sofrimento coincidem. Eles
são dois lados da mesma moeda (Is 25.8; 35.10; 65.19; Ap 21.4).
A resposta da visão à pergunta é semelhante a de Jesus sobre quando o mal
cessaria e o Seu reino viria (Mt 24.36; At 1.7). E certo que isso ocorrerá, mas
não se sabe precisamente quando. A reposta do anjo é que isso tudo levará
duas mil e trezentas tardes e manhãs (v. 14). O número é críptico e deixa
incerteza quanto ao exato momento em que o fim virá. Portanto, na conclu­
são, Daniel confessa que a visão está além da compreensão (v. 27). O que está
perfeitamente claro, contudo, é que Deus tem um plano em mente. O Senhor
permanece no controle e determina o fim dos tiranos perversos. Da mesma for­
ma que Deus subjugou os reinados impiedosos de Nabucodonosor, Belsazar,
248
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Dario e de bestas grotescas anteriormente em Daniel, ele também dará um fim


ao terror gerado pelo rei de duro semblante nessa visão.
Muitos comentaristas conectam os detalhes dessa visão a eventos do fim
dos tempos. O número 2.300 é visto como um meio de calcular o fim da his­
tória do homem, e o “pequeno chifre” é identificado com o anticristo que será
parte dessa era. No ponto de vista deste comentário, essas interpretações são
questionáveis, mas não estão completamente erradas. As referências históricas
à Pérsia e à Grécia aparecem para localizar o cumprimento da visão na histó­
ria do homem. Isso não impede, contudo, uma comparação entre a mensagem
da visão e os últimos dias. Como este comentário já afirmou, os eventos do
capítulo 8 ilustram elementos de um retrato mais amplo da história mundial
esboçada no capítulo 7. O caráter do chifre no capítulo 8 certamente reflete o
de personalidades impiedosas, como o pequeno chifre no capítulo 7 e os anti-
cristos descritos no NT. Entretanto, isso não significa que o capítulo 8 esteja
falando especificamente dessa pessoa. Ele apenas ilustra o tipo de governante
iníquo que o mundo encontrará repetidas vezes, e particularmente pouco antes
que a história mundial chegue ao fim.
O mesmo tipo de entendimento pode ser adotado com relação às referências
ao “fim” no capítulo 8. Embora o que é dito sobre isso no capítulo 8 se refira ao
fim do sofrimento sob os governantes gregos, a mensagem sobre o fim do mal
também se aplica à culminância da história. De acordo com Daniel 7 e diversas
outras passagens (Is 2; Zc 14; Ap 19—20), Deus eventualmente dará cabo dos
impérios perversos e manifestará novamente a Sua soberania neste mundo.

C. A visão das Setenta semanas (9.1-27)

Panorama geral
No capítulo 9, Daniel soa mais como outros profetas de Israel do que em
qualquer outra parte do livro. Sua longa oração de confissão está fortemente
baseada nas palavras e pensamentos da grande tradição profética das Escrituras
hebraicas. Contudo, o som familiar da sua oração dá lugar a uma visão cuja lin­
guagem é ambígua. Suas expressões crípticas têm evocado uma vasta gama de
interpretações. Portanto, uma das visões mais debatidas do livro de Daniel se
encontra aqui. A mensagem a respeito do controle de Deus sobre os negócios
do Seu povo, contudo, permanece clara. Esse capítulo a deixa particularmente
evidente por meio da demonstração do caráter justo do Senhor com relação à
[Sua] aliança com Israel.
249
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Por trás do texto


O conteúdo e a forma do capítulo 9 diferem das outras visões relatadas
no livro até agora. Imagens fantásticas —como uma estátua de metal (cap. 2),
uma árvore espiritual (cap. 4) e animais ferozes (cap. 7—8) - não ocorrem
no capítulo 9. A imagem aqui é simplesmente a do número 70. Portanto, de
modo geral, o gênero do capítulo 9 pode ser distinguido do estilo dos capítulos
2, 4, 7 e 8. Os estudiosos o identificam como um relato de visão revelatório,
diferente do relato de visão simbólico dos capítulos anteriores. Os relatos de vi­
são dos capítulos 10— 12 também seguem a mesma forma do capítulo 9 (para
uma discussão mais aprofundada sobre esse gênero, veja Por trás do texto em
10.1 — 11.1).
Uma característica da visão revelatória é uma descrição extensa do contex­
to em que ela é dada. Nas visões simbólicas, isso normalmente constitui um
detalhe insignificante, descrito brevemente em poucas frases. No capítulo 9, a
leitura das Escrituras e uma longa oração de confissão levam à visão celestial.
A revelação divina na verdade é muito mais curta do que a descrição do con­
texto em que ela vem. Os relatos das visões nos capítulo 10— 12 contém uma
descrição ainda mais elaborada do contexto do visionário. No final, contudo, a
revelação daquela visão permanece muito mais longa do que o contexto.
Esse foco no contexto da visão sugere uma estratégia para a leitura da men­
sagem do anjo. A oração fornece uma perspectiva a partir da qual a visão pode
ser interpretada. De acordo com Gabriel, a visão vem como uma resposta di­
reta à oração de Daniel (v. 22,23). As diversas alusões que a visão faz à oração
confirmam essa importante conexão. Embora alguns comentaristas vejam a
oração como desconectada e até mesmo como um conteúdo não essencial, sua
centralidade à mensagem da visão não deve ser negligenciada.
A oração de Daniel é uma confissão coletiva de pecado que reflete a linguagem
e o estilo de orações desse tipo ao longo das Escrituras hebraicas. Na tradição de
Abraão e Moisés, Daniel se coloca como intercessor pelo seu povo (Gn 18.23-33;
Èx 32.7-14; Nm 14.13-19). Ele emprega expressões estereotipadas reminiscentes
das orações encontradas nos salmos penitenciais, nos livros pós-exílicos e especial­
mente no material deuteronomista (1 Rs 8.46-53; Ed 9.6-15; Ne 9.6-37; SI 79).
A lógica da oração está no entendimento de Israel do seu relacionamen­
to especial com Deus e de sua aliança com Ele. De acordo com as Escrituras
hebraicas, os descendentes de Abraão possuem num vínculo singular com o
seu Deus que requer compromisso de ambos os lados (Gn 12.1-3; 17.1-14).
A oração de Daniel enfatiza esse relacionamento, empregando a linguagem da
250
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

feitura e da quebra de uma aliança. Termos como “amor” (h esed ), “leis” (tô rô t e
m ispatím ), “mandamentos” (m isw õí), “a Lei de Moisés” (tôrã t m õseh) e “alian­
ça” (b erít ) ocorrem ao longo da oração, junto a referências ao êxodo do Egito.
Deus é aquele que mantém a Sua aliança de amor (Dn 9.4). Ele é conheci­
do pelo Seu nome pactuai específico, o Senhor, que é usado seis vezes nesse
capítulo e em nenhum outro lugar do livro. Por causa dessa aliança, Deus é
justificado ao julgar o Seu povo. Eles pecaram, e portanto quebraram a aliança.
Ao mesmo tempo, a misericórdia é esperada por causa da aliança. Deus perdoa
porque Ele está comprometido com o Seu povo.
Esse pensamento pactuai é central às profecias de Jeremias, que fornecem
um importante contexto para o capítulo 9. Daniel se refere à palavra do Se­
nhor dada ao profeta Jeremias (v. 2), uma mensagem sobre setenta anos en­
contrada em Jeremias 25.11,12 e 29.10. Porém, Daniel também alude a muitas
outras passagens em Jeremias que apoiam a sua teologia pactuai. Para Jeremias,
a aliança era a base das palavras de condenação e também de esperança. Talvez
com maior clareza do que qualquer outra pessoa em sua época, ele reconhecia
a inevitabilidade do julgamento de Judá porque eles haviam quebrado a aliança
com Deus (Jr 11.1-14).. Entretanto, ele também estava cheio de expectativas
esperançosas para o futuro de Judá por causa da aliança (Jr 31.1-14). Jeremias
vislumbrou o dia em que uma nova aliança seria estabelecida entre Deus e o
Seu povo (Jr 31.31-34). A oração e a visão de Daniel 9 capturam um pouco do
mesmo futuro esperançoso com Deus.
O significado dos setenta anos mencionados por Jeremias, assim como
das Setenta semanas da visão, é crucial para o entendimento de Daniel 9. O in­
terpretador deve decidir se entenderá esses números literal ou simbolicamente.
Muitos estudiosos argumentam que os números no texto devem ser entendi­
dos literalmente (Archer, 1985, p. 119; Miller, 1994, p. 257,258). Como as Se­
tenta semanas são divididas em três partes específicas - sete semanas, sessenta e
duas semanas e uma semana -, cálculos específicos parecem apropriados. Além
disso, referências em outras partes das Escrituras hebraicas a sete anos literais
com relação aos anos sabáticos e jubileus indicam que esses também podem ser
entendidos de forma literal (Lv 25.1-12). Finalmente, a quase exatidão dos 70
anos de duração do exílio de Judá talvez apoie uma leitura literal.
Uma análise do uso dos números sete e setenta ao longo da Bíblia, contu­
do, revela uma predominância do seu uso simbólico. O número sete representa
a plenitude ou a perfeição de Gênesis a Apocalipse. O fundamento conceituai
para esse número é derivado dos sete dias da criação (Gn 1.1—2.4). Portanto, a
semana de sete dias é um ciclo completo de tempo. A multiplicação de sete por
251
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

dez intensifica o sentido de totalidade e expressa uma imagem forçosa de pleni­


tude. O número setenta combina sete, o símbolo da perfeição, a dez, o símbolo
da totalidade. A perfeição é multiplicada dez vezes, ou seja, à máxima potência.
Portanto, o número setenta é usado ao longo das Escrituras para indicar uma
quantidade plena ou perfeita de algo, como nações (Gn 10), filhos (Gn 46.27;
Jz 8.30; 2 Rs 10.1), palmeiras (Êx 15.27), anciãos (Êx 24.1) e anos de vida (SI
90.10). Os textos canaanitas e mesopotâmios revelam um tipo semelhante de
uso para os números sete e setenta.
Em vista de tudo isso, parece provável que os 70 anos da desolação de Jerusa­
lém devam ser entendidos simbolicamente. Em vez de se referirem a um cálculo
literal de tempo, os 70 anos poderiam indicar uma referência a uma quantidade
completa de tempo. Nesse caso, eles se tratariam do tempo necessário para que
o julgamento divino sobre Jerusalém fosse completo. Poderíamos comparar isso
aos 70 anos em que a cidade de Tiro ficou devastada em juízo (Is 13.15-17). O
livro de Crônicas acrescentou uma idiossincrasia adicional a esse simbolismo ao
conectar os 70 anos do julgamento de Judá ao descanso sabático da terra: “A terra
desfrutou os seus descansos sabáticos; descansou durante todo o tempo de sua
desolação, até que os setenta anos se completaram, em cumprimento da palavra
do Senhor anunciada por Jeremias” (2 Cr 36.21). Esse texto parece referir-se ao
período desde a destruição de Jerusalém em 587 a.C. até o edito de Ciro em 539
a.C.. Portanto, os 70 anos de Crônicas representam 49 anos.
O simbolismo dos 70 anos de Jeremias permanece, embora alguns cálculos
do exílio de Judá se aproximem desse período de tempo. Por exemplo, a queda
da Babilônia em 539 a.C. ocorreu aproximadamente 70 anos depois que os ba­
bilônios tomaram o controle de Judá em torno de 605 a.C.. Também é verdade
que, do momento em que o templo em Jerusalém foi destruído em 587 a.C. até
ele ser reconstruído em 516 a.C., passaram-se quase 70 anos. Em Zacarias, um
anjo parece perceber essa conexão com o templo quando ele fala dos “setenta
anos” em que Deus esteve indignado com Jerusalém (Zc 1.12). Aquela visão
foi dada em torno de 519 a.C., 68 anos depois do templo ter sido destruído. Es­
ses cálculos tendem a confirmar que 70 é um número simbólico e arredondado,
já que o tempo não foi exatamente de 70 anos.
Como o significado dos 70 anos de Jeremias é provavelmente simbólico,
poderíamos esperar que as Setenta semanas da visão também o sejam. Isso é
particularmente verdadeiro, já que o número ocorre numa visão, e todos os
outros números nas visões de Daniel parecem ser simbólicos (veja comentários
sobre 2.44,45; 7.17; 8.14; 12.11,12). Também é verdade que nenhuma tenta­
tiva de relacionar esse número a eventos históricos específicos foi totalmente
bem-sucedida (veja a seção Cálculos das Setenta semanas, a seguir).
252
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

A palavra “semanas” foi traduzida da palavra hebraica setes {sabü ‘í m ), que


expressa sete unidades de coisas. A combinação de setenta com essa forma plu­
ral da palavra sete é quase sempre entendida como “Setenta semanas de anos”,
que seriam “setenta vezes sete”, ou 490 anos. O número poderia ter sido escrito
de forma mais tradicional em hebraico como “quatrocentos e noventa anos”
( a r b a m e ô t w etis ‘i m sãnã). Portanto, a expressão Setenta semanas sinaliza algo
de significado simbólico. O número pode muito bem significar um período
de tempo indeterminado e excessivo, talvez até o infinito. Ele é similar aos “se­
tenta vezes sete” (ou “setenta e sete vezes”) na resposta de Jesus a Pedro sobre
o perdão (Mt 18.21,22). O propósito da resposta não é que Pedro precisa per­
doar um número específico de vezes, mas sim que Pedro precisa perdoar tantas
vezes quanto for necessário.
A conexão das Setenta semanas com o conceito israelita do jubileu dificil­
mente passa despercebida. Essa era uma época marcada para a restauração da
terra a cada 49 anos (veja Lv 25.8-17). Dez períodos de jubileus (menos o 50°
ano do jubileu a cada vez) somam 490 anos. A primeira divisão das Setenta
semanas é indicada como sete semanas, o número de anos antes do ano do
jubileu. O exílio de Judá poderia ser visto como um tempo para o descanso
sabático da terra, de acordo com 2 Crônicas 36.21. Portanto, Setenta semanas
poderiam expressar um tempo prolongado de períodos sabáticos necessário
para restaurar a terra. Com efeito, o padrão do Jubileu foi invertido. Quarenta
e nove anos de trabalho foram substituídos por 49 anos de descanso multipli­
cados por dez.
A esquematização da história em períodos de sete, dez e setenta também é
encontrada em outras obras apocalípticas. Uma delas fala de 70 gerações desde
o dilúvio até o fim dos tempos (1 En. 10.12). Outra divide toda a história do
homem em dez “semanas”, com a sétima “semana” sendo um ponto de viragem
crucial e a época do autor (/ En. 93.1-10 e 91.11-19). As S ibilinas Cristãs,
que tecnicamente não são apocalipses, também esquematizam a história em
dez períodos. Se essas obras dependem ou não de Daniel é uma questão a ser
debatida. No mínimo, contudo, elas indicam um modo de pensar nos tempos
antigos.
O contexto histórico identificado para a oração e a visão de Daniel 9 é sig­
nificativo. O primeiro ano de Dario se refere a 539 a.C., quando a Babilônia
foi tomada pelos persas, conforme descrito em 5.31 (9.1 ARA). As questões
históricas relacionadas a Dario já foram discutidas antes (veja No texto no cap.
6). A queda da Babilônia marcou uma nova era para a sorte judaica. A política
persa de retornar os povos exilados à sua terra natal forneceu uma oportunida-
253
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

de para que os judeus voltassem para Jerusalém e a restabelecessem. De acordo


com os registros históricos, o rei persa Ciro emitiu um decreto em 539 a.C. au­
torizando essa ação. Os registros bíblicos afirmam o impacto desse edito sobre
os judeus em particular (2 Cr 36.23; Ed 1.2-4). Tanto a oração como a visão de
Daniel 9 deveriam ser lidas com relação a esse contexto.
As conexões verbais, estruturais e temáticas entre o capítulo 9 e as outras
visões do livro são significativas e indicam que cada uma delas deveria ser en­
tendida à luz das outras (veja No texto no cap. 7). A visão do capítulo 7 esboça
um panorama amplo da história do homem, enquanto as visões dos capítulos
8— 12 fornecem detalhes de eras mais específicas dentro desse retrato. Diver­
sos elementos unem as três visões dos capítulos 8—12, em particular o foco
no período de intenso sofrimento para o povo de Deus, quando um “sacrilégio
terrível” ocorre (veja Por trás do texto no cap. 8).
O capítulo 9 demonstra ter um relacionamento especial com o capítulo 8.
Além das referências a Gabriel em ambos, diversas outras características verbais
ligam esses dois capítulos. A maioria dessas particularidades ocorre em relação
às atividades do pequeno chifre no capítulo 8. Os termos e conceitos repetidos
incluem: a “rebelião”, o “sacrilégio terrível”, a “desolação de Jerusalém, o fim
ao sacrifício e à oferta, sela (...) a visão e o lugar santo” (veja maiores detalhes
em Goldingay, 1989, p. 259,260). Essa característica indica que o capítulo
8 fornece o contexto para a leitura do capítulo 9. No mínimo, o capítulo 9
está relacionado a um tipo de evento semelhante ao do capítulo 8, se não o
mesmo. Quer a pessoa concorde que essas duas visões estão falando do mesmo
evento histórico ou não, o capítulo 9 fornece uma explicação adicional sobre a
vida do povo de Deus em meio a esses acontecimentos. Ele nos dá um retrato
mais detalhado do fim das “duas mil e trezentas tardes e manhãs”, além de uma
progressão dos eventos que poderiam acompanhar esse período.
A visão do capítulo 9 é precedida por uma descrição extensiva do contexto no
qual ela é dada. Como observamos acima, a extensão dessa introdução é única no li­
vro, afetando significativamente a interpretação da visão. O insight de Daniel sobre
a profecia de Jeremias (v. 1,2) leva à sua oração de confissão (v. 3-19), a qual provoca
a chegada do mensageiro celestial (v. 20-23) e finalmente da mensagem (v. 24-27).
No texto

1. O in sig h t sobre Jeremias (9.1,2)


254
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

I 1 O capítulo começa como todos os outros relatos de visões do livro, com


uma observação sobre um período específico. O “primeiro ano de Dario” se
refere a 539 a.C., quando os persas conquistaram a Babilônia (v. 1 ARA). Isso
presume tratar-se do mesmo Dario mencionado em Daniel 5.31 e 6.1, o que
é razoável. Aquela pessoa também é identificada como sendo de origem meda
e como alguém que foi constituído governante do reino babilônio (v. 1).
A forma passiva de foi constituído governante talvez indique a mão divina.
Mas isso também poderia refletir a nomeação de Dario por uma autoridade
mais alta. As questões relacionadas à identidade de Dario, o medo no livro de
Daniel já foram discutidas anteriormente (veja Por trás do texto no cap. 6).
Este versículo dá informações adicionais sobre a família de Dario. Ele é
chamado o filho de Xerxes (Assuero em hebraico). Este é o nome de dois reis
no Império Persa após este período (veja Ed 4.6 e Et 1.1), mas desconhecida
anteriormente. Portanto, os estudiosos estão incertos quanto a quem se refe­
re. Alguns sugeriram que é um nome de autoridade, enquanto outros o veem
como um erro histórico.
A referência a Dario liga esse capítulo ao capítulo 6, onde Daniel também é
retratado como uma pessoa comprometida com a oração. Naquele contexto, ele
ora fielmente três vezes por dia, mesmo em vista da oposição oficial a essas orações.
B 2 Independente das identidades de Dario e Xerxes, a notação temporal
identifica um momento de importante mudança política, quando a Babilônia
caiu e os persas começaram a dominar o Oriente Médio. É nesse contexto que
Daniel ganha in sigh t sobre algumas palavras de Jeremias. No primeiro ano do
seu reinado é repetido como que para enfatizar a conexão entre a leitura que
Daniel fez de Jeremias e os eventos relacionados a essa data (v. 2). Ele iden­
tifica essas palavras como sendo parte das Escrituras, literalmente n o s liv ro s
(bassépãrtm ). Esse termo parece designar alguns textos oficiais da comunidade
de fé, já que Daniel também as chama de a palavra do Senhor.
A partir das palavras de Jeremias, Daniel passa a entender que a desolação
de Jerusalém iria durar setenta anos (v. 2). Isso sugere que Daniel estava lendo
Jeremias 25.11,12 e 29.10. A primeira passagem projeta a era do domínio babiló­
nico, quando “toda esta terra se tornará uma ruína desolada, e essas nações estarão
sujeitas ao rei da Babilônia durante setenta anos” (Jr 25.11). O texto continua,
prevendo também o julgamento da Babilônia: “quando se completarem os seten­
ta anos, castigarei o rei da Babilônia e a sua nação” (v. 12). A outra passagem de
Jeremias enfoca a esperança do retorno do exílio babilónico. Ela diz: “Quando se
completarem os setenta anos da Babilônia, eu cumprirei a minha promessa em
favor de vocês, de trazê-los de volta para este lugar” (Jr 29.10).
255
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Essas profecias identificam duas coisas que acontecerão no final dos seten­
ta anos: ( 1 ) 0 julgamento da Babilônia e (2) A restauração de Judá. Na época
em que Daniel estava lendo as palavras de Jeremias, a primeira delas já havia
acontecido. A preocupação dele então é que o restante da profecia de Jeremias
se cumprisse e a desolação de Jerusalém chegasse ao fim.
A desolação (h ãrèbôt ) ou ruína mais completa de Jerusalém ocorreu em
587 a.C., quando os babilônios destruíram totalmente a cidade e o seu templo.
É possível, contudo, que Daniel estivesse pensando sobre todo o período em
que a cidade permaneceu sob o domínio da Babilônia, que foi de 605 a 539
a.C.. Embora isso tenha somado cerca de setenta anos, esse número não pre­
tende ser um cálculo exato nem em Jeremias nem em Daniel. Trata-se de um
número arredondado, simbólico de todo o período de tempo necessário para
que algo aconteça (veja Por trás do texto). Quer Daniel considere que Jeru­
salém ficou desolada por 49 ou por 68 anos, ele espera que a sua restauração
esteja prestes a acontecer.

2. A oração de confissão (9.3-19)


13 A reação de Daniel ao in sigh t do livro de Jeremias é fazer uma oração
de arrependimento comunitário. Nisso ele está seguindo o mandamento
prescrito em Levítico 26.40-45 e refletido em Jeremias 29. Depois de 70 anos
do domínio babilónico, Deus prevê que Seus servos “clamarão a mim, virão
orar a mim, e eu os ouvirei. Vocês me procurarão e me acharão quando me
procurarem de todo o coração” (Jr 29.12,13). Daniel parece estar buscando
o cumprimento da profecia de Jeremias por intermédio da sua oração. Pelo
menos, ele está seguindo a sua admoestação. Quando o anjo responde à sua
oração, contudo, Daniel descobre que existe mais a ser compreendido sobre
aquelas palavras.
As preparações de Daniel para a oração são descritas (v. 3,4a) e então as
palavras da oração são relatadas (v. 4b-19). A oração se desenrola como uma
progressão lógica que passa por uma confissão de pecados (v. 4b-6), uma afir­
mação da justiça de Deus (v. 7-14) e finalmente uma súplica pela restauração
(v. 15-19). Cada uma dessas seções começa com uma invocação que caracteriza
Deus. Os elementos da confissão e da afirmação estão entrelaçados ao longo
da oração. Isso enfatiza o contraste entre o Deus que cumpre a Sua aliança e o
povo que a quebra. Os pecados do povo de Deus são detestáveis, enquanto o
juízo de Deus é plenamente justificável. Essa característica também reconhece
256
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

que uma oração de confissão confessa não apenas o horror do pecado, mas tam­
bém a plenamente justificável terribilidade de Deus.
De acordo com as Escrituras, o comportamento de Daniel é o de um ver­
dadeiro penitente. Ele se apresenta diante de Deus com orações e súplicas (v.
3). O primeiro termo (tèp illâ ) é a palavra mais comum para oração nas Escri­
turas hebraicas, sendo frequentemente usada com o sentido de intercessão (1
Rs 8.28). O segundo termo (tahãnüním ) designa um pedido de favor. Juntos, os
dois termos podem ser considerados como uma hendíadis e traduzidos como
o ra çã o d e sú p lica.
Literalmente, Daniel diz: Eu v o lte i o m eu ro sto p a ra o S en h o r D eu s p a ra
b u sca r, o que expressa uma intensidade especial. A palavra buscar ( bãqas ) po­
deria sugerir que Daniel está buscando mais iluminação, mas também que ele
está simplesmente buscando obter uma audiência com Deus. O tom da oração
indica que Daniel está mais preocupado em reestabelecer uma comunicação
genuína com o Senhor. Qualquer que tenha sido o seu intento, Daniel recebe
mais in sigh t sobre o significado de seten ta em resposta à sua oração.
O jejum e o ato de vestir pano de saco e (...) cinza ressaltam o fervor de
Daniel. Essas são as ações e as vestimentas daqueles que lamentam ou buscam
fervorosamente a Deus (2 Cr 20.3; Ne 9.1; Et 4.1). Daniel também jejua antes
de receber a última visão registrada no livro (10.2,3).
1 4 A oração de Daniel é dirigida ao Senhor, o meu Deus (v. 4). Essa forma de
designar o Senhor enfatiza o entendimento pactuai em que a oração se baseia.
O nome especial do Deus de Israel, o Senhor, é usado mais cinco vezes nesse
capítulo (v. 2,8,10,13,14). O seu uso evoca a história da libertação de Israel do
Egito e a aliança no monte Sinai, ambos os quais são especificamente mencio­
nados na oração (v. 11,13,15). O termo meu Deus visa os mesmos propósitos.
Suas diversas ocorrências (v.4,18 [NRSV], 19,20 [2vezes naNRSV]), junto a
“nosso Deus” (v. 9,10,13,14,15,17), enfatizam o vínculo pactuai que existe en­
tre o Senhor e o Seu povo. É por causa dessa aliança que Daniel ora dessa forma.
A oração começa com uma invocação que exalta o caráter de Deus. Essas são
as primeiras das diversas qualidades grandiosas atribuídas ao Senhor ao longo da
oração. Além de constituírem uma forma de honrar a Deus de modo apropriado,
essas descrições estabelecem mais firmemente a lógica da oração. Daniel se achega
ao Senhor, confessa e faz petições por causa de quem Deus é. Essa invocação é
semelhante à de Neemias em sua oração por Jerusalém (Ne 1.5).
As primeiras palavras endereçam a Deus como Senhor ( ’ã d õ n ã y ). Esse tí­
tulo, que ocorre sete vezes na oração (v. 4,7,9,15,16,17,19), identifica apro­
priadamente o Senhor como soberano sobre todas as coisas. Ele expressa um
257
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

escopo mais amplo de autoridade do que o nome particularmente Israelita o


Senhor. O poder desse Deus deve ser temido, já que Ele é o Deus grande e
temível. A palavra temível (n ô r a ) pode ser traduzida como “assustador” ou
“terrível” e expressa o tipo de poder inquestionável detido por um monarca
soberano (Dt 7.21; Sl 47.2; 68.35).
Embora Ele seja absolutamente poderoso, Deus mantém a sua aliança de
amor (Dn 9.4). Essa frase afirma a confiabilidade de Deus e o Seu compromis­
so com o Seu povo. Ela lembra declarações semelhantes atribuídas a Moisés
e a Salomão (Dt 7.9,12; 1 Rs 8.23). A aliança do Senhor é baseada no amor
(h esed ). Esse termo muitas vezes é traduzido como “benignidade” ou “amor
leal”. Ele denota uma determinação de favorecer alguém independente da sua
conduta. Esse tipo de aliança é um acordo vinculativo baseado num compro­
misso leal, e não numa conveniência ou recíproca apropriada. Ele funciona
melhor para aqueles que o amam e obedecem aos Seus mandamentos. As
pessoas demonstram o seu amor (ahab) ou preferência por Deus ao fazerem o
que a Sua lei manda. Esses indivíduos estão respondendo de modo apropriado
ao relacionamento pactuai e podem esperar os plenos benefícios do compro­
misso leal do Senhor para com eles.
H 5 - 6 Diante do seu Deus poderoso, porém amoroso, Daniel confessa diretamente
em nome da sua comunidade. Inicialmente, ele enuncia os pecados do seu povo com
seis expressões diferentes. É como se Daniel desejasse cobrir todas as transgressões
possíveis e imagináveis. Ele admite que (1) “pecamos”; (2) “cometemos iniquidade”;
(3) “procedemos impiamente”; (4) “fomos rebeldes”; (5) apartamo-nos “dos teus
mandamentos”; e (6) “não” te “demos ouvidos” (v. 5,6 ARC). Mais tarde na oração,
Daniel confessa a infidelidade (v. 7), dizendo que todo o Israel transgrediu (v.
11) e não temos buscado o favor do Senhor (v. 13).
Trata-se de expressões clássicas nas Escrituras hebraicas, cada uma delas
expressando uma faceta particular do pecado. “Pecamos” (h ã ta ) é o termo mais
comum para o fracasso espiritual e denota o aspecto de errar o alvo que Deus
designou para uma pessoa. “Cometemos iniquidade” ( a w õn ) deriva de uma
raiz que descreve algo que está torto ou dobrado. O pecado desvia a pessoa do
caminho reto de Deus. Essas ações levaram o povo a “[proceder] impiamente”
(rãsa), ou seja, eles cometeram iniquidade e portanto são culpados de um cri­
me. O crime cometido é a traição ou revolta contra a autoridade de Deus. Em
outras palavras, eles “[foram] rebeldes” (m ãrad) contra o Senhor e apartaram-
-se (sü r ) dos mandamentos que Deus dera para que [tivessem] vida.
Assim como o Faraó de coração endurecido diante de Moisés (Ex 7.13), o
povo não [deu] ouvidos (lo sãma). O termo hebraico sãmaTambém pode ser
258
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

traduzido como “obedecer”, como acontece mais tarde nos versículos 10 e 14


(ARC). Quando as pessoas realmente ouvem, elas respondem com ação.
Deus enviou seus porta-vozes, seus servos, os profetas, para adverti-los,
mas o povo não prestou atenção a eles. Eles simplesmente agiram como o reino
do norte, quando estes foram destruídos pelos assírios (2 Rs 17.13,14). Isso foi
um padrão ao longo de toda a história do povo de Deus, principalmente nos
anos que levaram ao exílio (Jr 25.3-7; 26.5; 29.19). Profetas como Jeremias
falaram a todos, dos maiores aos menores, dos reis a todo (...) povo. Nenhuma
porção da população ficou desavisada.
■ 7-9 Embora ele continue a confissão de pecados, Daniel muda o foco da
oração para a justiça de Deus. O termo justo (sêdãqâ ) funciona como uma
moldura nessa porção da oração (v. 7-14). Ele ocorre no início como um subs­
tantivo e em sua forma adjetiva (sadiq) no final. A palavra muitas vezes é usada
em contextos legais para descrever alguém que se conforma a um padrão corre­
to. Essa conotação parece se encaixar à oração, já que ela afirma que Deus cor­
responde a todas as obrigações pactuais. O Senhor é retratado como o parceiro
pactuai justo de Israel, assim como o seu justo juiz.
Nessa seção, Daniel também afirma que Deus é misericordioso e
perdoador (v. 9). Dentro do contexto da aliança, essas características expressam
o outro lado da justiça de Deus. Deus cumpre a Sua aliança não apenas por
intermédio do Seu julgamento, mas também da Sua compaixão. Deus fez a
coisa certa quando exerceu juízo e espalhou o seu povo para a Babilônia, o
Egito e outros lugares (v. 7). Porém, o Senhor também faz a coisa certa quando
expressa compaixão e oferece perdão. E com base nisso que a oração se voltará
para um pedido de restauração nos versículos 15-19.
Em contraste ao comportamento honrável de Deus para com a Sua alian­
ça, o Seu povo ficou envergonhado (v. 7,8). Essa é uma acusação pesada para
uma cultura sensível à honra e à vergonha, como Israel. O povo ficou enver­
gonhado aos olhos do mundo ao quebrar a aliança com o seu Deus. Eles se
tornaram motivo “de zombaria” para a comunidade ao seu redor (v. 16), algo
para ser vaiado e escarnecido. O Senhor havia advertido que isso aconteceria se
eles deixassem de guardar a aliança (Dt 28.37; Jr 19.8; Ez 22.4).
A vergonha deles foi um resultado da infidelidade (mãaLr), um termo que
denota uma traição ou deslealdade intencional, como a infidelidade conjugal
(v. 7). Como Israel está comprometida numa aliança com Deus, uma violação
do relacionamento é corretamente retratada como a infidelidade no casamento
(veja Jr 3; Os 3). Portanto, o pecado deles é pessoal. Ele é contra Deus, e
não contra um livro formal de regras. Esse aspecto do pecado é enfatizado
259
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

novamente ao longo da oração em frases que falam do pecado sendo contra


ti (8,11).
I 1 0 - 1 1 a A ilustração mais consistente desse insulto é a forma como Is­
rael tratou as leis de Deus. Israel não obedeceu às leis, mas tem transgredido
e se desviado delas (v. 10,11a). Isso reitera o que é dito nos versículos 5 e 6.
A palavra transgredido ( a b a r ) retrata uma pessoa atravessando uma fronteira
como se ela não estivesse ali. As leis (tô rô t ) que foram ignoradas são aquelas
que o Senhor deu por meio dos teus servos, os profetas (v. 10). Isso se refere
às instruções de Deus que trazem vida, as quais foram comunicadas pela pri­
meira vez por meio de Moisés e mais tarde confirmadas pelos outros profetas
de Israel. Elas também são chamadas de “mandamentos” (m isw õt) e “juízos”
(m ispãtim ) no v. 5 (ARA).
■ 1 1 b - 1 2 Como resultado do pecado do Seu povo, Deus é justificado ao
trazer o juízo do exílio. As maldições e as pragas (v. 11b) que caíram sobre
Judá podem ser encontradas em Levítico 26; Deuteronômio 27—28; e em ou­
tros lugares (v. 11). Elas projetam uma grande desgraça, até mesmo a ponto
de ocasionar o que foi feito a Jerusalém quando a cidade foi destruída em 587
a.C. e o seu povo foi levado para o exílio (v. 12). Essas consequências específi­
cas da quebra da aliança haviam sido enumeradas com antecedência (Lv 26.27-
35; Dt 28.63-68). Portanto, elas deveriam ser esperadas.
H 1 3 Contudo, o julgamento do exílio não alcançou os resultados desejados.
Em vez de o povo responder positivamente a Deus, Daniel admite que ainda
assim não temos buscado o favor do Senhor, do nosso Deus, afastando-
-nos de nossas maldades e obedecendo à tua verdade (v. 13). A ideia de uma
pessoa buscando favor (hãlâpénê) vem da corte real, onde o indivíduo se ache­
ga ao rei antes de fazer uma petição. Daniel implica que o arrependimento
e uma vida obediente poderiam ser uma forma de ganhar o favor de Deus.
Afastando-nos (lãsâb) de nossas maldades é uma forma comumente usada
pelos profetas para falarem do arrependimento. A expressão evoca o retrato de
uma pessoa mudando de direção. Obedecendo à tua verdade (sãkal ba ’em et)
emprega a linguagem dos sábios de israel. A expressão descreve alguém que é
sábio na sua forma de lidar com as instruções de Deus sobre a vida. A coisa
sábia a fazer, é claro, é obedecê-las. Porém, a geração de Daniel não foi sábia e
não obedeceu.
O versículo 13 esclarece que Daniel está confessando pecados não apenas
pelos antepassados, mas também pela geração contemporânea. No final do exí­
lio, o povo continua tão desobediente quanto os seus predecessores. Portanto,
um juízo contínuo por causa do pecado pode ser esperado. Como o livro de
260
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Levítico observa, quando as pessoas se recusam a responder ao julgamento de


maneira apropriada, ele continuará “sete vezes mais” (Lv 26.18,21,24,27). Esse
é o ponto principal da mensagem do anjo no versículo 24. O povo de Deus
continuará debaixo do Seu juízo.
I 14 Deus está pronto para exercer o Seu juízo sempre que é necessário. Ele
não hesitou em trazer desgraça sobre os exilados (v. 14). O texto diz literal­
mente que Deus “vigiou” (sãqad J, o que reflete a linguagem de Jeremias 1.12
e 44.27. Naqueles textos, o Senhor vigia para se certificar de que a coisa certa,
o julgamento pelos pecados, aconteça. Deus faz isso porque é justo em tudo o
que faz. Quer o Senhor julgue os pecados no passado, no presente ou no futu­
ro, Ele é justificado ao fazê-lo, já que Ele sempre faz a coisa certa quanto a isso.
Os versículos 13 e 14 preparam o caminho para a mensagem do anjo nos
versículos 24-27. No entanto, não há nenhuma indicação no texto de que Da­
niel espere mais julgamentos do que os que são anunciados aqui. Suas afirma­
ções teológicas sobre a justiça de Deus, contudo, apoiam a possibilidade.
■ 15-16 A essa altura, Daniel se encaminha para a conclusão da oração com
uma súplica por restauração (v. 15-19). Ele já estabeleceu que Israel pecou e
continua a pecar, e que Deus está certo em julgar aquele pecado. Portanto,
dentro do contexto de uma “aliança de amor” (v. 4), o Senhor também poderia
fazer o que é certo estendendo graça e perdão. Enquanto roga por misericór­
dia, Daniel continua a confessar pecados como fez ao longo de toda a oração.
Essa característica assegura que o penitente não é presunçoso quanto ao favor
requisitado. Qualquer misericórdia deriva apenas da graça.
Para começar a sua petição, Daniel evoca o ato mais memorável de Deus
nas Escrituras hebraicas, o êxodo do Egito. O Senhor é identificado como
aquele que [tirou] o [seu] povo do Egito e [fez] para [si] um nome entre as
nações (v. 15). Essa caracterização de Deus enfatiza a Sua misericórdia, honra
e justiça. Essas são as três motivações que poderiam impelir o Senhor a res­
ponder. O êxodo não foi apenas um ato profundo de graça, mas também um
ato que trouxe reconhecimento. Através do evento do êxodo, o Senhor se tor­
nou conhecido como uma divindade de grande poder, fidelidade e compaixão.
Como tal, ele é chamado de o Deus dos feitos justos (v. 16). Na verdade, o
êxodo foi o maior ato do Senhor na história do Antigo Testamento. Nele, Deus
fez o que era certo com relação à Sua aliança com Abraão.
Portanto, Daniel faz a sua petição diante do Deus do êxodo, para que Ele
[afaste] de Jerusalém (...) a [sua] ira e a [sua] indignação (v. 16). Essa súplica
lembra mais uma vez a linguagem de Jeremias (veja, por exemplo, Jr 18.20). O
termo afasta (sub) basicamente significa se mover numa direção diferente da
261
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

atual. Isso implica tanto um afastar-se como um voltar-se. Portanto, a palavra


frequentemente expressa a ideia de arrependimento nas Escrituras hebraicas,
como faz no v. 13. Porém isso também denota a restauração de um caminho
novo. Daniel pede que a ira e a indignação de Deus, os Seus instrumentos de
justiça, cessem. A imagem é a de uma tempestade se acalmando. Como tal, a
súplica também implica novidade de vida.
A fúria da ira de Deus fez de Jerusalém e do seu povo um objeto de zom­
baria (v. 16). Eles literalmente se tornaram um objeto de escárnio e desprezo.
Eles eram uma vergonha para si mesmos e para Deus, como já foi observado nos
versículos 7 e 8.
Daniel usa a motivação da honra de Deus ao enfatizar Jerusalém como a
tua cidade e o lugar do teu santo monte e do teu povo (v. 16). A ênfase nos
pronomes na segunda pessoa “tua” e “teu” ressalta a conexão pessoal do Senhor
com a cidade. Algumas linhas mais tarde, Daniel fala do “teu santuário aban­
donado” (v. 17) e da “cidade que leva o teu nome” (v. 18). A oração finalmente
termina com uma referência à “tua cidade” e ao “teu povo” (v. 19). Isso é parte
da estratégia da oração. A honra do Senhor está em jogo na restauração de Je­
rusalém, já que Ele está pessoalmente conectado a ela.
■ 17-18 De uma forma típica dos lamentos de Salmos, Daniel pede que Deus
dê atenção ao seu dilema. Ele roga para que o Senhor ouça (duas vezes), olhe
com bondade, incline os seus ouvidos, abra os seus olhos e veja (v. 17,18). O
pedido para que Deus olhe com bondade lembra a petição da bênção aarônica
em Números 6.25 (veja também SI 31.16). Trata-se de uma petição para que
Deus faça resplandecer o Seu rosto favoravelmente sobre alguém ou algo.
Os objetos para os quais o profeta busca a atenção de Deus são o santuário
abandonado (v. 17) e a desolação da cidade (v. 18). As palavras abandonado
e desolação são derivadas de sã m êm , que conecta a passagem a 8.13 e 9.27,
onde a expressão “sacrilégio terrível” ocorre (veja também 11.31 e 12.11). Esses
termos também lembram a “desolação de Jerusalém” mencionada no versículo
2, embora uma palavra diferente seja usada ali.
A motivação do caráter misericordioso de Deus é evocada mais uma vez.
A grande misericórdia (rahamim hãrabbím) de Deus também poderia ser tra­
duzida como as m u ita s m iser icó rd ia s (v. 18). A razão pela qual o Senhor talvez
responda à oração de Daniel não é por sermos justos. Aliás, a falta de uma vida
justa tem sido pontuada ao longo da oração. Em vez disso, a base da esperança
são as m u ita s m iser icó rd ia s que Deus tem mostrado repetidas vezes ao Seu
povo ao longo da história (Ne 9.19,27,31).
■ 19 Daniel termina a sua oração com mais uma série de apelos entremeados
de vocativos divinos. A estrutura em staccato nesse último versículo comunica
262
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

uma emoção profunda. Tratam-se de súplicas urgentes para que o Senhor aja
agora. Daniel clama Senhor três vezes ao apelar para Deus: ouve, perdoa, vê
e age (v. 19). Então ele se endereça ao Senhor como meu Deus para tornar a
oração mais pessoal, e insta: não te demores. O uso quádruplo do pronome
na segunda pessoa acentua mais uma vez o motivo principal para que o Senhor
responda a essa oração. Em interesse da Sua própria honra, Deus precisa fazer
alguma coisa.

3. A chegada do mensageiro celestial (9.20-23)


I 20 A oração de confissão atinge um dos seus principais objetivos. Deus
responde. Um mensageiro celestial chega (v. 20,21) e introduz a resposta do
Senhor à oração (v. 22,23).
Daniel sumariza os dois principais componentes da sua oração. Ele diz: eu es­
tava (1) confessando o meu pecado e o pecado de Israel; e (2) trazendo o meu
pedido ao Senhor, o meu Deus, em favor do seu santo monte (v. 20). O uso dos
pronomes pessoais nessas declarações continua a enfatizar a perspectiva da oração.
Daniel se coloca diante do Senhor como um representante do seu povo. Ele poderia
ter dito “teu povo”, como fez nos versículos 15,16 e 19. Mas dessa vez ele os chama
de meu povo e reconhece que os pecados do povo também são seus.
O principal alvo dessa petição foi o santo monte do Senhor, ou seja, o monte
do templo em Jerusalém. Novamente, o pronome na terceira pessoa é significativo.
Ele reitera a ênfase da oração na conexão pessoal entre Deus e Jerusalém.
H 2 1 Embora a oração pareça completa conforme registrada no livro, Daniel
sugere que ele ainda não havia terminado de orar quando foi interrompido.
Um ser angelical chamado Gabriel, o qual ele havia encontrado na visão an­
terior do capítulo 8 e talvez no capítulo 7, vem até ele (v. 21). A sua aparência
é de um homem, o que concorda com a descrição dada em 8.15. O papel de
Gabriel na Bíblia é transmitir mensagens divinas, o que ele faz aqui (veja co­
mentário de 8.15,16). Ele é descrito como tendo vindo voando rapidamente
como um pássaro, mas isso não necessariamente implica que ele tenha asas.
O encontro acontece na hora do sacrifício da tarde. Como o templo não
estava funcionando nessa época, isso é simplesmente uma referência tradicional
a determinado horário do dia, no fim da tarde ou ao pôr do sol. Esdras fez uma
oração de confissão nessa hora também (Ed 9.4,5). Talvez esse fosse o horário cos­
tumeiro para esse tipo de oração. Salmo 4, o salmo do sacrifício da noite, encoraja
tais orações.
I 22 Gabriel identifica a sua missão como a de fornecer percepção e

263
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

entendimento (v. 22). Esses dois termos, muitas vezes, são usados como
sinônimos de sabedoria, mas cada um deles expressa uma nuance em particular.
Percepção (hasakíl) enfatiza o conhecimento que é cuidadosamente
considerado e ponderado, enquanto entendimento (b in ) denota uma
habilidade de distinguir claramente entre as coisas. De acordo com as histórias
anteriores do livro, essas são qualidades que Daniel possuía numa medida
incomum (1.17). Porém, ele as tinha apenas porque Deus as confiara a ele
(2.20-23). A passagem atual relata as circunstâncias envolvidas em uma dessas
ocasiões em que Daniel recebe o dom pelo qual ele se tornou conhecido.
H 23 Gabriel confirma que Deus deseja ardentemente responder à oração de
Daniel. Ele diz a Daniel que uma resposta foi enviada assim que você come­
çou a orar (v. 23). Embora isso possa sugerir que o conteúdo da oração foi de
certo modo desnecessário, a frase provavelmente pretende expressar avidez por
parte do Senhor. Isso é semelhante ao que Deus diz em Isaías 65.24: “Antes de
clamarem, eu responderei; ainda não estarão falando, e eu os ouvirei”.
A razão por que Deus responde tão prontamente é que Daniel é muito
amado (h ã m â d ô t ). A descrição o identifica como alguém que é precioso, pre­
sumivelmente para Deus e para outras pessoas. Ao que parece, Daniel agrada
tanto ao Senhor que a recompensa de uma audiência lhe é concedida. Ao lon­
go das Escrituras hebraicas, respostas a orações são normalmente esperadas (SI
17.6; 86.7), e Deus promete que Ele responderá (Is 58.9; Jr 33.3). Entretanto,
a resposta às vezes é protelada, mesmo para as pessoas mais piedosas (Jó 19.7;
SI 22.2). A próxima visão do livro confirma que nem mesmo Daniel recebe
sempre resultados imediatos (veja Dn 10.2,12-14).
Gabriel instrui Daniel a prestar atenção à mensagem e a entender a vi­
são (v. 23). Isso poderia referir-se a duas coisas diferentes: (1) a mensagem
(d ã b ã r ), literalmente “palavra”, de Jeremias mencionada no versículo 2; e (2)
a visão que está prestes a ser dada. Também é possível entender essas expres­
sões paralelas como se referindo à mesma coisa. O desafio, em qualquer dos
casos, é contemplar cuidadosamente o significado de toda essa experiência.
No versículo anterior, Gabriel acaba de dizer a Daniel que veio para dar a este
“percepção e entendimento”. Porém, Daniel também precisa se esforçar para
entender.

4. Uma mensagem do céu (9.24-27)


I 24 A mensagem de Gabriel responde à oração de Daniel de uma forma
264
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

que este provavelmente não antecipara. Embora Daniel tenha pedido por um
fim imediato do juízo, Gabriel anuncia a sua extensão (v. 24) e, então, revela
eventos que irão acontecer durante o período estendido de conflito (v. 25-27).
A mensagem do anjo substitui a linguagem familiar prosaica das orações
e narrativas bíblicas por expressões poéticas crípticas. Termos anteriores como
“setenta”, “seu povo”, “sua (...) cidade”, “pecado”, “justiça”, “santo” e “desolação”
são usados novamente, porém com menos clareza. O uso que Gabriel faz dessas
palavras, junto a declarações vagas e novas imagens, promove a possibilidade
de diversas interpretações. A mensagem inteira é revestida de um mistério que
poderia ser esperado de uma visão celestial.
Setenta semanas introduz o primeiro enigma da visão (v. 24). Em hebrai­
co, a palavra setenta (s ib é ‘i m ) soa muito semelhante a setes (sã b u ‘i m ), o que au­
menta a poesia e o mistério da visão. Em geral, o termo setes é traduzido como
“semanas”, como em 10.2,3. A palavra basicamente designa um grupo de sete
coisas, porém ao longo da maior parte das Escrituras hebraicas ela é usada em
referência a uma unidade de dias. A conexão a dias, contudo, não é claramente
feita nessa passagem.
O número setenta ocorre no versículo 2 desse capítulo para designar o
número de anos que Jerusalém sofreria o juízo de Deus. Essa referência fornece
um contexto por meio do qual podemos entender a combinação setenta se­
manas. Com base nessa conexão e em outros fatores, a maioria dos estudiosos
entende o significado da expressão como “Setenta semanas de anos” ou “seten­
ta vezes sete anos” (veja Miller, 1994, p. 257,258; Hartman e Di Lella, 1978,
p. 244). Consequentemente, a palavra setes é entendida como uma semana de
sete anos. Com isso, o número total de anos designados é 490.
Muitos estudiosos entendem esse número de forma literal, mas essa não
parece ser a intenção do texto. Os números sete e setenta costumam ser empre­
gados simbolicamente tanto dentro das Escrituras hebraicas como fora delas.
A expressão setenta semanas parece representar um período excepcionalmen­
te longo e indeterminado de tempo (veja Por trás do texto). Se o número foi
entendido literalmente, suas conexões com a história permanecem incertas.
Nenhum cálculo de datas relativas a ele jamais satisfez todos os elementos do
texto (veja a seção Cálculos das Setenta semanas).
Independente da opinião que se tenha sobre o significado das setenta se­
manas, a multiplicação de setenta anos por sete indica que as palavras de Je­
remias estão sendo interpretadas. Os setenta anos da desolação de Jerusalém
estão sendo prolongados sete vezes mais. Em vez de dez ciclos de anos sabá­
ticos, o anjo anuncia dez ciclos de jubileus. Levítico 26 estabelece o princípio
265
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

do juízo prolongado. Naquela passagem, a adversidade perdura sete vezes mais


quando o povo não corresponde ao juízo de Deus nem muda suas vidas (Lv
26.18,21,24,28). Os versículos 13 e 14 indicam que essa é a postura do povo
por quem Daniel ora. Eles continuam a ser culpados de ignorar as instruções
do Senhor e portanto são merecedores de um juízo prolongado.
Esse novo entendimento das palavras de Jeremias não é simplesmente uma
interpretação humana. Elas são decretadas pelos céus. Deus, que é declarado
“justo em tudo o que faz”, expressou a Sua vontade como um monarca antigo.
Esse edito afeta especificamente aqueles por quem Daniel acaba de orar, o seu
povo e a santa cidade de Jerusalém.
O período de juízo prolongado permite que várias coisas aconteçam. As
seis frases que descrevem esses resultados podem ser lidas como dois grupos de
três ou três grupos de duas. As primeiras três frases contêm duas palavras em
hebraico cada uma e lidam com a questão do pecado. As últimas três frases con­
têm três palavras cada uma e prometem restauração. Três palavras significativas
para pecado são usadas no primeiro trio: transgressão {pesa J, pecado {hãtã’) e
culpas (a w õ n ). Os últimos dois termos são especificamente mencionados no
versículo 5, onde pecado expressa fracasso e culpas expressa maldade. O termo
transgressão é semelhante à palavra m ã ra d , usada no versículo 5. Ele também
expressa a ideia de rebelião contra uma autoridade. A palavra transgressão está
acompanhada de um artigo definido, o que poderia sugerir a ideia de uma rebe­
lião específica. Se esse for o caso, a “rebelião devastadora” no capítulo 8 é a co­
nexão mais imediata (8.13). As três palavras obviamente enfocam deficiências
espirituais. Se elas descrevem o povo de Deus ou outras pessoas não fica claro. A
ambiguidade da visão permite qualquer uma ou ambas as interpretações.
Em contraste ao primeiro trio, os termos do segundo trio expressam resul­
tados positivos oriundos da obra redentora de Deus. Como em Jeremias, a des­
truição leva à edificação (Jr 1.10). A justiça eterna, (...) a visão e a profecia, e o
santíssimo são restaurados novamente. A justiça de Deus —a base do juízo assim
como a esperança na oração (v. 7,14,16) - será plenamente manifestada neste
mundo. A expressão a visão e a profecia (literalmente “profeta”) pode ser enten­
dida como uma hendíadis e traduzida como a visão profética. De acordo com
o versículo 6, essa tem sido a principal ferramenta de comunicação de Deus com
os homens. O santíssimo {qõdes qãdãsím ) identifica aquilo que é especialmente
separado para Deus. A palavra poderia referir-se a uma pessoa e é traduzida dessa
forma na Vulgata. Porém, ela se refere mais naturalmente ao templo ou a um lugar
dentro dele, como o santo dos santos ou o altar (veja Êx 26.33,34; 29.37).
Quando as seis frases são lidas como parelhas, surgem in sigh ts adicionais.
266
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Os verbos infinitivos em cada uma dessa três parelhas são paralelos um ao ou­
tro e, portanto, ajudam a se definir mutuamente. Acabar corresponde a dar
fim; expiar a trazer; e cumprir a ungir.
A raiz da palavra acabar (lèk ãllê') é uma questão debatida. Se ela deriva
de k ãlãh, então ela significa “completar” ou “concluir”. Se a raiz é k ã la ,
contudo, ela poderia significar “restringir” ou “deter”. Sua conexão ao ver­
bo dar fim (lè h ã tê m ) na segunda metade da parelha sugere que a primeira
alternativa é a correta. A raiz dessa palavra também é questionável, mas
ambas as alternativas têm um significado similar de levar algo a um fim.
Se a raiz é tm m , então ela significa “cessar” ou “ser consumado”. Se a raiz é
h tm , então ela significa “selar”, e poderia ser a mesma palavra que “cumprir”
na última parelha. A primeira parelha então descreve um tempo em que a
rebelião contra a autoridade de Deus e o fracasso em conformar-se aos seus
padrões chegarão ao fim.
A segunda parelha acentua a justiça de Deus, assim como a oração de Da­
niel. As culpas são apropriadamente abordadas por meio da expiação. Expiar
(kãpar ) significa “cobrir”. No sistema sacrificial de Israel, isso se refere ao ato de
espargir sangue para simbolizar a forma como Deus lida com o pecado. O san­
gue de um animal de algum modo efetua a reparação para o pecador. Isso abre
o caminho para trazer justiça eterna, um momento em que todas as coisas se
alinham aos propósitos de Deus. É o tempo em que Deus, que “é justo em tudo
o que faz”, governa (v. 14).
A última parelha confirma a consumação de uma nova ordem. Cumprir uma
profecia sugere a validação da autenticidade da palavra divina. Quando a palavra
profética finalmente é cumprida, ela é confirmada como verdadeira. Para ungir
o santíssimo implica um ato de finalidade semelhante. Ungir (lêm sõah ) é um
ritual de consagração no qual o azeite é derramado sobre uma pessoa ou objeto
como símbolo de dedicação a Deus (Êx 40.9,13; 1 Rs 1.34). Quer o santíssimo
seja entendido aqui como uma pessoa ou um lugar, a unção indica que aquilo que
é designado para Deus é apropriadamente consagrado ao Seu serviço.
A natureza poética da passagem sugere que o autor dessas palavras desejava
que os agrupamentos tanto de trios como de parelhas fossem notados. Como
tal, as seis frases formam uma ideia unificada, cada uma delas expressando um
aspecto diferente da mesma coisa. O que está sendo descrito é a visão de um
mundo renovado. Trata-se de uma visão esperançosa de um tempo em que o
pecado cessa e Deus é reconhecido como soberano. Essa é a esperança compar­
tilhada por todos os profetas de Israel na medida em que eles esperam por uma
solução para o pecado tanto dentro da história do homem como no fim dela (Is
2.2-4; 13.9-1 l;Jr 31.31-34; Ez 7.24; Zc 14.20,21).
267
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

É por um mundo assim que Daniel ora tão fervorosamente nesse capítulo.
Esse também é o tipo de mundo que ele vislumbra no capítulo 8.0 vocabulário
dessas seis frases lembra as circunstâncias em torno da atividade do pequeno
chifre e da sua morte no capítulo 8 (veja Por trás do texto). Portanto, o capítu­
lo 9 fornece um retrato mais completo da conclusão das “duas mil e trezentas
tardes e manhãs”.
■ 25 Ag ora Gabriel começa a descrever os eventos específicos que acontece­
rão durante o período de Setenta semanas. O período é dividido em três partes:
sete semanas, sessenta e duas semanas e uma semana. A última semana é divi­
dida em duas metades. Tanto personalidades como eventos estão associados a
cada divisão. Gabriel admoesta Daniel a saber e entender (v. 25) essas coisas.
Assim como no desafio no versículo 23, o anjo quer que Daniel preste atenção
e considere sabiamente o que está sendo dito.
A ambiguidade do texto hebraico nos versículos 25-27 tem produzido
diversas interpretações e traduções ao longo dos anos. Há mais opções para
a interpretação desses versículos do que para quaisquer outros no livro (veja
a seção Cálculos das Setenta semanas). Independente dessa obscuridade e da
variedade de opiniões, uma mensagem básica pode ser discernida nas palavras
do anjo, a qual não deve ser negligenciada. Gabriel afirma (1) um período de
restauração para Jerusalém; (2) a vinda de um líder divinamente ordenado; (3)
o surgimento de um inimigo do povo de Deus; (4) um ataque às instituições
de Deus; e (5) a morte desse inimigo. A imagem de um líder divinamente or­
denado também aparece no capítulo 7. Todos os outros itens são elementos
familiares das visões nos capítulos 7 e 8 e voltarão a ocorrer no livro nos capí­
tulos 10— 12. Essa porção da mensagem de Gabriel começa com esperança (v.
25), passa por uma nota de ruína (v. 26,27c) e finalmente oferece uma última
palavra de encorajamento (v. 27d).
O primeiro período designado começa com o decreto que manda restau­
rar e reconstruir Jerusalém (v. 25). O decreto (dãbãr, literalmente, “palavra”)
exato a que isso se refere é difícil de determinar. Para aqueles que tentam calcu­
lar datas específicas baseadas nos 490 anos, esse ponto inicial é muito impor­
tante. Portanto, os interpretadores têm oferecido diversas sugestões, cada qual
com seus próprios méritos. Se, porém, o período de 490 anos for entendido
como inteiramente simbólico, então a identificação de uma data precisa para
o decreto não é tão significativa. A suposição natural seria de que esse decreto
é emitido pouco depois da data da visão. Em 539 a.C., o rei persa Ciro de­
cretou que, junto a outros povos exilados, os judeus poderiam retornar à sua
terra natal e reconstruir o seu templo (2 Cr 36.23; Ed 1.2-4). Embora ele não
268
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

mencione especificamente a reconstrução de Jerusalém, isso está implicado no


edito. (Para outras opções para esse decreto, veja a seção Cálculos das Setenta
semanas.)
Se o texto está falando desse decreto em particular ou de outro, o ponto
principal da mensagem do anjo é o anúncio de um tempo de restauração para
Jerusalém. Como resposta à oração de Daniel, a cidade arruinada será repa­
rada. Ruas e muros sugerem uma cidade bem planejada, segura e funcional.
Ruas (réhôb ) são quarteirões e praças onde as pessoas se encontram e trocam
mercadorias. O termo muros (hãrüs) talvez se refira a um valado seco do lado
de fora do muro da cidade ou a outra característica, tal como um fosso de esgo­
to. Trata-se de uma cidade onde “as vozes de júbilo e de alegria (...) se ouvirão
(...) mais uma vez” (Jr 33.11,10). Entretanto, a reconstrução será um desafio.
Ela acontecerá em tempos difíceis. Esdras 4—6 e Neemias 4 descrevem o tipo
de oposição encontrado por aqueles que reconstruíram Jerusalém.
A vinda do Ungido, o líder (mãsíah nãgíd ), marca o final da primeira di­
visão das Setenta semanas (v. 25). O título dessa pessoa também poderia ser
traduzido como “um príncipe ungido” (NRSV) ou “um líder ungido” (Lucas,
2002, p. 227), já que os nomes não são acompanhados de artigos definidos. A
palavra ven h a não consta do texto hebraico, mas parece estar implicada.
O Ungido é traduzido do termo mãsíah, que durante o período intertesta-
mentário e o neotestamentário do judaísmo se tornou um termo técnico para
um grande libertador vislumbrado pelos profetas de Israel. Os primeiros cris­
tãos identificavam Jesus como essa pessoa e o chamavam ousadamente de “o
Cristo” (a tradução grega de mãsíah ). As Escrituras hebraicas, contudo, não
usam esse termo para se referirem à figura “messiânica” dos profetas. Aquela
pessoa é mais comumente chamada de “o renovo”, “uma raiz” ou “o meu servo”.
Os profetas só usam mãsíah para se referirem a Ciro (Is 45.1) e a um rei de
Judá (Hc 3.13). Na maioria das vezes em que o termo é usado nas Escrituras
hebraicas, ele se refere a um dos reis de Israel, particularmente a Saul ou Davi
(ex„ 1 Sm 2.10; 12.3; 2 Sm 19.21; Sl 2.2). Algumas vezes o sumo sacerdote é
designado como “o ungido” (Lv 4.3,5,16), e em uma ocasião os profetas são
chamados de “ungidos” (Sl 89.51; 1 Cr 16.22). Se nesse versículo o Ungido
se refere à figura “messiânica” dos profetas, então essa ocorrência é singular no
cânon hebraico.
Entretanto, muitos comentaristas ao longo dos séculos, tanto judeus
como cristãos, têm sido convencidos de que o Ungido se refere ao Messias
do judaísmo. É por isso que a NVI e a NLT grafam a palavra Ungido com
letras maiúsculas. (A KJV e a NASB a traduzem como “Messias, o Príncipe”.)
269
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O cristianismo tem uma longa tradição de relacionar o termo a Jesus, com base
no fato de que o texto está descrevendo eventos relacionados tanto à Sua pri­
meira como à Sua segunda vinda. Alguns interpretadores, contudo, afirmam
que o Ungido provavelmente se refere a um sacerdote ou a um líder em Judá
durante o início do período de restauração. O sumo sacerdote Josué e o líder
Zorobabel muitas vezes são sugeridos. Ciro também já foi proposto, já que
ele na verdade é chamado de “ungido” em Isaías 45.1. Quer o termo se refira
a Jesus, a uma pessoa da restauração ou a nenhum indivíduo em particular, a
mensagem do anjo permanece. A vinda do Ungido anuncia que um líder or­
denado por Deus se levantará novamente e guiará Israel. Há esperança de um
novo agente da graça de Deus neste mundo.
A duração do período inicial entre o decreto e a vinda do ungido apre­
senta um problema. Muitos tradutores entendem que o significado do texto
hebraico inclui apenas sete semanas (NRSV, ESV). Entretanto, outros tradu­
tores, incluindo tradutores antigos como Teodócio e Jerônimo, entendem que
as sessenta e duas semanas estão incluídas nesse período. Eles entendem que o
texto diz: haverá sete semanas, e sessenta e duas semanas. Portanto, o perí­
odo total seria de sessenta e nove semanas. Entretanto, essa seria uma forma
incomum de expressar esse número no hebraico. A pontuação no TM indica
que as sete semanas e as sessenta e nove semanas não devem ser lidas juntas, mas
como partes de duas unidades de pensamento diferentes. A forma de entender
esses números afeta o cálculo dos anos e eventos associados a eles (veja a seção
Cálculos das Setenta semanas). Se os números forem entendidos simbolica­
mente, contudo, uma decisão sobre a interpretação desse texto é menos crucial.
B 26-27 Em todo caso, depois das sessenta e duas semanas - ou um total
de sessenta e nove semanas -, o retrato esperançoso de uma Jerusalém restaura­
da com um líder ungido desaparece. Em seu lugar surge uma descrição de ruína
tanto para o líder como para a cidade durante a última semana. A primeira
derrota vem quando o Ungido será morto, e já não haverá lugar para ele (v.
26). A frase não haverá lugar para ele ( e n lo) é difícil no hebraico. Sua rela­
ção a será morto (kãrat), contudo, parece sugerir que o Ungido experimenta
algum tipo de fim caracterizado pela morte ou por uma perda de posição. Se a
passagem se refere ou não ao mesmo Ungido do versículo 25 é uma questão de
debate. Aqueles que identificam Jesus como essa pessoa acreditam tratar-se do
mesmo indivíduo. Como tal, o versículo se torna uma referência à sua crucifi­
cação. Outros, que acreditam que a palavra se refere a Ciro, Josué ou Zorobabel
no versículo 25, acreditam que no versículo 26 o Ungido é uma pessoa diferen­
te. Tipicamente, os estudiosos o identificam como Onias III, que foi removido
do sumo sacerdócio e eventualmente assassinado em 171 a.C..
270
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O próximo evento descrito é a devastação da cidade de Jerusalém e do


Lugar santo. O fim virá como uma inundação, num tempo de guerras e de­
solações (v. 26). O sacrifício e a oferta cessarão, e um sacrilégio terrível será
colocado no templo (v. 27). Essa descrição lembra a devastação causada pelo
pequeno chifre em 8.11-13 e 23-25. Naquele contexto, tais acontecimentos
pareciam estar conectados às atividades de Antíoco Epifânio IV em 167 a.C.
(veja comentários em 8.23-25). Esse governante selêucida implacável proibiu
o sacrifício no templo judaico e erigiu um altar para o seu deus ali. Esse último
ato foi chamado de “rebelião devastadora” (happesa sõm ém , 8.13), um termo
semelhante ao que aqui é chamado de sacrilégio terrível (siq q úsím m èsõm êm ).
A frase ocorre novamente em 11.31el2.11, onde ela também parece se referir
ao período de Antíoco IV. Ela descreve um ato aterrorizante de sacrilégio para
os judeus.
Numa ala parece identificar a localização do ato, mas a expressão é obscura.
Ela poderia referir-se a uma porção do complexo do templo. As palavras do tem­
plo na verdade não estão no texto hebraico, tendo sido acrescentadas pelos tra­
dutores. Uma sugestão alternativa é emendar o texto hebraico para que leia “em
seu lugar” (alk an n am , em vez de a lk ên a p ), como faz a NRSV. Portanto, o texto
estaria dizendo que o sacrilégio é colocado no lugar do sacrifício e da oferta.
Se Antíoco é a pessoa responsável por essa blasfêmia, então o texto pro­
vavelmente tem em vista o altar ao seu deus e o sacrifício oferecido ali (veja 1
Mac. 1.54-59; 2 Mac. 6.2-5). Se o que está sendo descrito se refere a Cristo,
então alguns outros eventos precisam ser associados a essa descrição. Alguns
acham que ele se refere à destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C..
Outros, contudo, acreditam que esses eventos ainda estão por acontecer no
final da história do homem.
O povo do governante que virá é responsável por esse ato blasfemo. A
identidade do povo depende de quem é o governante. Novamente, o texto
é vago. O governante que virá poderia referir-se ao Ungido, que também é
chamado de “líder” no versículo 25, ou a uma personalidade nova na história.
A maioria dos estudiosos defende a última opção, já que essa pessoa parece
ser o sujeito das ações destrutivas que ocorrem nos versículos seguintes. Em
contraste, o “Ungido” do versículo 25 é associado à reconstrução de Jerusalém.
De acordo com Gabriel, o governante fará três coisas: ele (1) fará uma
aliança (...) com muitos; (2) dará fim ao sacrifício e à oferta; e (3) estabele­
cerá o sacrilégio terrível. Essa aliança poderia ser algo positivo. Porém, como
as últimas duas ações são claramente negativas, a primeira delas também deve
ser. Isso podería referir-se a algum tipo de pacto clandestino que serve para
271
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

minar a instabilidade da cidade e do templo. Embora todas as três ações acon­


teçam ao longo do último período de semanas, a aliança é firmada durante a
primeira metade desse tempo. Os outros dois ataques contra o templo acon­
tecem no meio da semana. Metade de sete são três e meio, o que lembra as
referências a “um tempo, tempos e meio tempo” (7.25; 12.7).
Com base no perfil do governante dado pelo texto, muitos estudiosos têm
identificado essa pessoa como sendo Antíoco IV. Alguns propuseram Jasão, o
sumo sacerdote que sucedeu Onias II, mas ele não parece ter cumprido tudo
o que é creditado a esse déspota. Nesse contexto, a aliança (...) com muitos
poderia referir-se a acordos que foram feitos com a elite de Jerusalém na época
de Antíoco IV (veja 1 Mac. 1.11). Se os detalhes dessa passagem se referem
a eventos da história do NT, contudo, então o governante deve ser um líder
romano, talvez um imperador ou general como Tito, que destruiu Jerusalém.
Nesse caso, a aliança poderia ser considerada positivamente como sendo a nova
aliança que Cristo instituiu por meio da Sua morte (Mt 26.28). Entretanto,
se o contexto desses versículos for o fim da história do homem, o governante
é o anticristo daquela era, e a aliança poderia referir-se a algum tipo de acordo
enganoso que avança a causa do mal (veja Ap 13.16,17).
Consequentemente, as três opções para o governante fornecem a base
para as três opiniões sobre o povo do governante que é responsável pela de­
vastação de Jerusalém. Esses poderiam ser os sírios, os romanos ou aqueles que
seguem o anticristo. É possível igualar o povo aos muitos que fazem uma alian­
ça com o governante. Portanto, eles poderiam ser aqueles que trabalham em
cumplicidade com os planos do governante maligno.
A última frase da mensagem do anjo retoma a esperança com a qual a men­
sagem começou. Ela projeta um fim para o mal, usando a mesma raiz ou uma
raiz semelhante àquela encontrada no versículo 24. Ali, o anjo proclama um
tempo para “acabar com a transgressão”, enquanto o v. 27 proclama o fim do
governante iníquo. Do mesmo modo que os céus decretaram o fim do juízo
de Israel (v. 24), a restauração de Jerusalém (v. 25) e a sua desolação (v. 26), a
morte do governante é pronunciada (v. 27). Usando outra imagem de águas
impetuosas, o anjo descreve o fim do governante. Assim como ele fez com que
o sofrimento de Jerusalém viesse como uma inundação (v. 26), o juízo “será
derramado” (nãtak ) como água sobre ele (v. 27 ARC). Esse é o mesmo trata­
mento que o povo de Deus recebeu por causa do seu pecado. No versículo 11,
o Senhor derramou {nãtak) os seus juízos sobre eles.
As últimas três palavras da mensagem do anjo significam literalmente so b re
o a sso la d o r [veja v. 27 ARC]. O governante é identificado como “aquele que
272
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

assola” (sõm êm ). Trata-se de um título apropriado que o marca com referência ao


seu ato mais abominável, o “sacrilégio terrível”. Quer esse governante seja Antíoco
IV do segundo século a.C., o anticristo do fim dos tempos ou um tirano de outra
era, as últimas palavras da visão encorajam o leitor. Eventualmente o mal cessará.

Cálculos das Setenta semanas


Os interpretadores tê m oferecido diversos cálculos das Se­
te n ta sem anas ao longo dos anos. Cada teoria te n ta e ncaixar to ­
dos os e lem entos do te x to num esquem a cronológico. E ntretan­
to, nenhum a delas foi in te ira m e n te bem -sucedida nessa te n ta tiv a .
A razão por que existem ta n ta s opções resulta de diversos fa to ­
res. Estes incluem : (1) se os núm eros são entendidos literal ou sim b o ­
licam ente; (2) se o calendário adotado é de 360 ou de 365 dias; (3) se
a esperança no versículo 24 é vista com o escatológica ou histórica; e
(4) se frases im p orta ntes do te x to são traduzidas de uma ou de outra
form a. Algum as dessas frases controversas são: (1) a data do "d ecre to
que m anda resta ura r e reco nstru ir Jerusalém " (v. 25); (2) a identidade
do "U n gid o" (v. 25 e 26); (3) a pontuação entre "se te sem anas, e ses­
senta e duas sem anas" (v. 25); e (4) a ide ntidade do "g o v e rn a n te " (v.
26). O utros problem as de tradução m enores são m enos significativos.
Dois grandes grupos de te orias surgiram : (1) os que associam
a visão com o Messias de Israel e (2) aqueles que o associam com
Antíoco IV. Dentro de cada grupo, existem num erosas variações.
As interpretações m ais predom inantes com relação ao "M essias" co­
m eçam em um destes três pontos: (1) o decreto de Ciro em 539 a.C. (2 Cr
36.22,23; Ed 1.1-4), (2) o d e cre to d e A rtaxerxesaE sd rasem 458 a.C. (Ed 7.12-
26), ou (3) a ordem oficial de Artaxerxes a Neemias em 445 a.C. (Ne 2.5-8).
Aqueles que com eçam com o decreto de Ciro a creditam que as Se­
te n ta sem anas são essencialm ente sim bólicas de 608 anos levando à des­
truiçã o do te m p lo em 70 d.C. ou de um período ind eterm in ad o de te m p o
antes da segunda vinda de Jesus (Young, 1949, p. 202-221). As sete se­
m anas representam os 94 anos de 539 a 445 a.C., quando Neemias re­
construiu os m uros de Jerusalém. As sessenta sem anas significam os 475
anos de 445 a.C. a 30 d.C., quando C risto foi crucificado. A ú ltim a semana
designa os 40 anos até 70 d.C., quando os rom anos destruíram Jerusalém,
ou o período de te m p o que se estende até a segunda vinda de Jesus.
M arcar o início com o o decreto de Artaxerxes a Esdras p erm ite cál­
culos mais literais, m as não inteira m en te. Nesse cenário, as Setenta
sem anas significam o te m p o que vai do decreto em 458 a.C. até a se­
gunda vinda de Cristo (Archer, 1985, p. 113-119; M iller, 1994, p. 257).

273
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

As p rim eiras sete sem anas são os 49 anos de 458 a 409 a.C., quando
a reconstrução de Jerusalém sob Esdras e Neemias foi com pletada. As
sessenta e nove sem anas correspondem ao núm ero exato de anos (483)
desde o decreto em 458 a.C. até o início do m in istério público de Jesus
em 27 d.C. Depois das sessenta e duas sem anas - cerca de três anos e
m eio depois Cristo foi crucificado em 30 d.C. Nesse ponto, um in te r­
valo de duração indeterm inada se passa até que os últim os sete anos
ocorrem im e d ia ta m e n te antes do retorno de Cristo. Um e n te n d im e n ­
to a lte rn a tivo dos últim os sete anos é que eles representam o período
de 27 d.C. a 34 d.C., que te rm ina com o a pedrejam ento de Estêvão e a
conversão de Paulo (Shea, 2005, p. 160; D oukhan, 2000, p. 142-152).
C om eçando com a ordem oficial de Artaxerxes a Neemias em 445
a.C. (Ne 2.5-8), ta m b ém é possível enxergarm os referências ta n to ao p ri­
m eiro com o ao segundo advento de Cristo (W alvoord, 1971, p. 216,217).
Essa teoria usa um calendário de 360 dias por ano, em vez de 365 dias.
As sete sem anas ide ntifica m o período de reconstrução de Jerusalém que
é iniciado sob Neemias. As sessenta e nove sem anas equivalem ao te m p o
que decorreu desde a proclam ação de A rtaxerxes até a entrada triu n fa l ou
a crucificação de Jesus. Depois disso, um intervalo indeterm in ad o tra n s ­
corre até a chegada dos últim os sete anos, que levam à segunda vinda.
As principais interpretações que tê m "Antíoco" com o protagonista
ta m b é m utilizam diversos pontos iniciais. Estes incluem : (1) a profecia de
Jeremias em 605 a.C. (Jr 25.12); (2) a profecia de Jeremias em 597 ou 594
a.C. Or29.10); (3) a profecia d e je re m ia s em 587 a.C. (Jr 30.18-22; 31.18-40).
Uma interpretaçã o bastante literal pode ser calculada e ntre a pro­
fecia de Jeremias em 605 a.C. e a nova dedicação do te m p lo em 164
a.C. (Behrm ann, 1894, p. 63-66). Sete sem anas ou 49 anos transcorrem
desde a profecia em 605 a.C. até a ascensão de Ciro em 556 a.C. Ses­
senta e duas sem anas ou 434 anos decorrem se com eçarm os a co nta r
de 605 a.C. até a m orte de Onias III em 171 a.C. Portanto, nesse cená­
rio as sessenta e duas sem anas se sobrepõem às sete semanas. Os úl­
tim o s sete anos correspondem ao período que vai da m orte de Onias
até a dedicação do te m p lo em 164 a.C.. A p roxim a d am en te na m etade
desses últim os sete anos, em 167 a.C., Antíoco suspendeu os sacrifícios
judaicos regulares e erigiu um a lta r no pátio do te m p lo em Jerusalém.
Aqueles que com eçam com a profecia de Jeremias em 597 ou 594
a.C. (Jr 29.10) e ntendem os núm eros de m odo sobretudo sim bólico (Hart-
m an e Di Lella 1978, 250). Assim, as Setenta sem anas se aproxim am dos
430 anos desde a profecia de Jeremias até a m orte de Antíoco IV em 164
a.C. As sete sem anas poderiam representar os m ais de 50 anos que tra n s ­
correram desde 597 ou 594 a.C. até o retorno do sumo sacerdote Josué
em 538 a.C.. As sessenta e duas sem anas representam os 367 anos de
538 a.C. até a m orte de Onias III em 171 a.C. Os últim os sete correspon-
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

dem a sete anos literais de 171 a.C. até a m orte de Antíoco em 164 a.C.
Se com eçarm os a calcular a p a rtir da profecia de Jeremias em 587
a.C., então o prim eiro e o ú ltim o período das Setenta sem anas podem ser
entendidos quase lite ra lm e n te (Russel, 1981, p. 187; Anderson 1984, 114-
116. O prim eiro período de sete anos corresponde aos 49 anos que vão
da queda de Jerusalém em 587 a.C. até a vinda do sum o sacerdote Josué
em 538 a.C. O ú ltim o período de sem anas corresponderia aos sete anos
desde a m orte de Onias III em 171 a.C. até a purificação do te m p lo em 164
a.C. As sessenta e duas semanas, então, seriam um núm ero sim bólico
para os 367 anos que transcorreram .

A partir do texto
Os intérpretes do capítulo 9 podem facilmente se deixar fascinar pelos cál­
culos das Setenta semanas. Algumas das correspondências a eventos históricos
são bastante notáveis. Entretanto, a principal intenção do capítulo não parece
estabelecer um esquema detalhado da história do homem no fim dos tempos,
no tempo de Jesus ou nem mesmo no segundo século a.C.. Jesus disse que es­
sas coisas não cabem aos homens saberem (Mt 24.36; At 1.7). Em vez disso,
o propósito do capítulo 9 é reafirmar o controle soberano de Deus sobre este
mundo, assim como todas as outras porções do livro de Daniel têm feito.
O aspecto particular da soberania de Deus enfatizado nesse capítulo tem a
ver com a expressão do caráter justo do Senhor neste mundo. Essa justiça é de­
monstrada pelo modo como Deus encara o Seu relacionamento pactuai com o
Seu povo. O Senhor sempre faz a coisa certa, tanto quando executa juízo como
quando oferece misericórdia. Essa justiça explica por que Deus age na história
do homem da forma que o faz. O fluxo de eventos humanos se desenrola em
resposta à ação de pessoas que estão diante de um Deus justo.
D eus sem p re fa z o q u e é certo p a ra com o Seu p ovo. A oração do capítulo 9
estabelece dois pontos fundamentais: (1) o Senhor está compromissado com
um relacionamento pactuai com o Seu povo; e (2) Deus sempre faz a coisa
certa com relação a esse relacionamento. O Deus de Daniel é o Senhor, aquele
que fez para si um n om e entre as nações quando se lembrou da Sua aliança com
Abraão e resgatou o Seu povo do Egito (v. 15). Ele é o Deus que mantém a Sua
aliança de amor com todos aqueles que o amam e obedecem aos Seus man­
damentos (v. 4). Isso às vezes é chamado de fidelidade (Dt 7.9; 32.4; SI 71.22;
89.14) porque o Senhor é fiel aos Seus compromissos.
Esses pontos fornecem a base para as petições de Daniel por perdão. Ele
reconhece que Deus fez a coisa certa ao julgar o Seu povo. Este pecou e merece
275
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

as maldições e as pragas escritas na Lei de Moisés (v. 11). Porém, o Senhor


também poderia fazer a coisa certa concedendo misericórdia. Isso também faz
parte do compromisso de Deus. Ele prometeu: “Mudarei a sorte das tendas de
Jacó e terei compaixão das suas moradas” (Jr 30.18). A história de Deus com
o Seu povo tem provado que o Senhor é misericordioso e perdoador (v. 9; veja
Ne 9.17,19,27,31).
A misericórdia é outro lado da justiça de Deus. O juízo é um lado e a mi­
sericórdia é o outro. Quando o Senhor julga, Ele está fazendo a coisa certa.
Quando Ele demonstra compaixão, Ele também está certo. A misericórdia é a
única maneira pela qual o vínculo pactuai pode ser restaurado. Como afirma a
oração, a restauração não pode depender da justiça humana. Só a grande mise­
ricórdia de Deus pode fazê-la acontecer (v. 18).
A justiça do Senhor, expressada tanto por meio do juízo como da misericórdia,
explica os padrões da história do homem. Eles se desenrolam de modo consistente
com o caráter justo de Deus. Gabriel proclama que é preciso tempo para acabar
com a transgressão, para o Senhor trazer justiça eterna (v. 24). Durante esse pe­
ríodo, o povo verá Jerusalém lutando para se restaurar, líderes ungidos do povo de
Deus surgirem e serem cortados, a oposição de pessoas ímpias que atacam a sobera­
nia do Senhor e finalmente o julgamento do inimigo de Deus (v. 25-27). Tudo isso
acontecerá porque o Senhor responde da forma certa às ações dos homens.
P ortanto, a história d o h om em se d esen rola p o r m eio da in tera çã o en tre D eus
e os hom ens. A visão apresenta um esquema da história que poderia sugerir um
mundo predeterminado. Muitos intérpretes devotos e competentes entendem
o texto dessa maneira. Três períodos dentro de uma era de Setenta semanas
são esboçados. Eventos e personalidades surgem em conexão a cada período,
parecendo ter sido predestinados para um momento específico no tempo.
Aparentemente, se fosse possível identificar com precisão cada pessoa e evento,
determinadas conjunturas essenciais da história do homem seriam conhecidas.
Entretanto, o texto é bastante ambíguo e a precisão escapa mesmo aos me­
lhores interpretadores. A multidão de propostas oferecidas ao longo dos sécu­
los constitui um monumento ao caráter obscuro da visão. Essa ambiguidade,
contudo, poderia ser uma pista para entendermos o texto. Sua falta de precisão
talvez seja intencional no sentido de afastar os leitores do intuito de estabelecer
datas e demarcações históricas. E possível que a intenção também seja permitir
a reaplicação da sua mensagem a uma variedade de contextos.
Tanto a oração como a visão vão contra uma visão fatalista do mundo na
qual as coisas estão pré-programadas. Quatro características particulares do
texto afirmam que as ações humanas afetam a história:
(1) A oração confessa que a desolação de Jerusalém resultou de decisões
humanas. Daniel admite que o seu povo quebrou propositadamente a aliança
276
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

com Deus. Embora os homens tivessem sido advertidos pelos profetas e, por­
tanto, fossem culpáveis, eles foram rebeldes e se afastaram dos mandamentos
e das leis do Senhor (v. 5). Em resposta, Deus derramou os Seus juízos sobre
o povo (v. 11). O exílio não foi um acidente nem um evento predeterminado
na história.
(2) A oração também confirma que Deus pode reverter o Seu juízo se assim
desejar. Todo o apelo da oração se baseia nessa crença. Daniel acredita que o Senhor
pode desviar a Sua ira e a Sua indignação (v. 16) e perdoar (v. 19). Deus pode con­
ceder Sua grande misericórdia (v. 18) e mudar o curso dos eventos em Jerusalém.
Essa convicção se baseia na sólida tradição bíblica de Êxodo, quando o Senhor tirou
o Seu povo do Egito com mão poderosa (v. 15). Portanto, Daniel roga a Deus que
aja, não num ato vão de desespero, mas com uma expectativa confiante.
(3) A resposta do Senhor à oração de Daniel ilustra ainda mais claramente
o impacto dos esforços humanos. “A oração de um justo é poderosa e eficaz”
(Tg 5.16). Deus envia a resposta mesmo antes de Daniel terminar a sua oração.
Aliás, o anjo diz que assim que você começou a orar, houve uma resposta (v.
23). Daniel experimenta o cumprimento da palavra de Deus por intermédio de
Jeremias: “Vocês me procurarão e me acharão quando me procurarem de todo
o coração” (Jr 29.13).
(4) Finalmente, o conteúdo da visão solidifica a importância da ação ou
inação humana. A visão anuncia um ajuste com relação ao anúncio anterior
de Deus dos setenta anos de exílio. O tempo é prolongado sete vezes mais, de
acordo com as diretrizes especificadas em Levítico 26. A contingência afirma:
“Se apesar disso tudo vocês ainda não me ouvirem, mas continuarem a opor-se
a mim, então com furor me oporei a vocês, e eu mesmo os castigarei sete vezes
mais por causa dos seus pecados” (Lv 26.27,28). A oração confessa que o povo
continuava hostil para com Deus. Portanto, em resposta à falta de resposta do
povo, a duração do julgamento é prolongada, passando a ser setenta vezes sete
[anos]. Um tempo adicional é necessário para acabar com a transgressão e
dar fim ao pecado do povo (v. 24).
Essa apresentação sobre a soberania de Deus constitui uma importante
contribuição ao livro de Daniel. Assim como as histórias, as visões enfatizam a
mão divina dominante que prevalece sobre todos os poderes terrenos. Alguém
poderia concluir que não existe lugar para a resposta humana e que os servos de
Deus não passam de fantoches em meio aos poderes deste mundo. Entretanto,
o capítulo 9 assevera que as decisões humanas fazem uma diferença. Déspo­
tas iníquos não são a única razão para o sofrimento do povo de Deus. Nem
o governante do capítulo 9, nem Nabucodonosor nos capítulos 1—4, nem
277
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Belsazar no capítulo 5, nem Dario no capítulo 6, nem o pequeno chifre no


capítulo 7, nem o rei de duro semblante no capítulo 8, nem o ser desprezível no
capítulo 11 —nenhum desses é o único culpado. Deus é poderoso para preva­
lecer sobre todos eles. Embora esses governantes promovam a destruição neste
mundo, o capítulo 9 lembra o leitor de que a quebra da aliança com Deus tam­
bém desencadeia o sofrimento. Portanto, os servos de Deus não devem pensar
que são apenas vítimas de forças malignas. Eles também são responsáveis pelos
movimentos da história do homem.
Ao longo da história do cristianismo, a visão das Setenta semanas tem sido
ligada ao advento de Jesus e ao fim da história do homem. Embora essa exegese
possa ser debatida, o mesmo não pode ser dito da sua aplicação. De acordo
com a perspectiva deste comentário, o estabelecimento do reinado de terror
de Antíoco IV no segundo século a.C. parece encaixar-se melhor ao texto. As
conexões com os capítulo 8 e 10— 12 e a natureza das outras alusões do texto
parecem fazer deste o foco mais provável da visão. Ao que parece, o Senhor
está enviando uma mensagem ao povo daquela era horrífica, assegurando-lhe
de que as suas aflições estão dentro do escopo de um plano divino. A visão ex­
plica os conflitos da era pós-exílica e particularmente do tempo da perseguição
de Antíoco IV. O povo está vivendo num período de “exílio prolongado”. Seu
sofrimento não é causado apenas por um déspota perverso, mas também pelo
pecado na comunidade. Entretanto, a mensagem diz que isso também há de
passar. Deus refreará o [governante] perverso. Ele trará justiça eterna, cumpri­
rá a visão e a profecia, e ungirá o santíssimo (v. 24).
No entanto, o foco na crise do segundo século a.C. não deveria impedir
a reaplicação dessa passagem ao tempo de Jesus e depois dele. Embora Josué e
Onias III possam ser os ungidos originais do texto, Jesus cumpriu esse papel
num grau ainda maior. Ele era o “Cristo de Deus” (Lc 9.20). Ele veio ao mun­
do numa época em que Jerusalém e o templo estavam sendo elevados a novos
níveis de grandeza, oferecendo esperança à cidade. Porém, ele também foi cor­
tado e governantes perversos se levantaram para desafiar a soberania de Deus e
destruir a cidade. Em Jesus, as profecias foram validadas e o Seu reino iniciou
todos os resultados gloriosos que serão alcançados durante as Setenta semanas
(v. 24; veja Duguid, 2008, p. 171,172).
Seria plausível esperar um padrão semelhante de eventos na medida em
que a história do homem chega ao fim, quando quer que isso ocorra. O N T
prevê um período de intenso conflito antes da volta de Jesus (Mt 24.4-31; Ap
8— 19). Ele até mesmo vislumbra outro “sacrilégio terrível” (Mt 24.15). Nessa
época, Deus dará fim ao pecado de uma vez por todas e estabelecerá um reino
de justiça eterna para todo o sempre (v. 24; Ap 20-22).
278
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Daniel 9 esboça esse padrão do conflito humano: restauração e destruição,


líderes ungidos e governantes iníquos, e finalmente a exterminação do mal. O
capítulo assevera que as escolhas das pessoas têm um papel importante na ma­
neira como esses eventos se desenrolarão. Entretanto, Deus permanece sobera­
no sobre tudo o que acontece e orquestra o Seu plano final como bem entende.

D. A visão de uma grande guerra (10.1—12.13)

Panorama geral
Os últimos três capítulos do livro contêm a última visão do livro. Ela enfo­
ca com clareza ainda maior um período de intensa aflição, uma “grande guerra”
(10.1) que já foi abordada nas duas visões anteriores. Diversas características
aumentam os seus efeitos dramáticos e fazem dela uma conclusão apropria­
da para o livro. Reunindo diversos elementos importantes em Daniel, a visão
acentua mais uma vez o governo absoluto de Deus sobre este mundo e enfatiza
a significância dessa soberania para os servos fiéis do Senhor.
O relato dessa quarta visão é de longe o mais longo de todos, consistindo
de 79 versículos. Ele se divide em três seções principais: o contexto da visão
(10.1 — 11.1), a mensagem da visão (11.2— 12.4) e os esclarecimentos finais
(12.5-13). Para manejar melhor o longo material, iremos considerar cada seção
da visão separadamente. Contudo, cada porção da visão deve ser interpretada
em relação ao todo. Embora seja extremamente longa, a visão continua sendo
uma unidade.

1. O contexto da visão (10.1—11.1)

Por trás do texto


A última visão de Daniel funciona como uma conclusão apropriada tanto
para a segunda metade de Daniel como para o livro como um todo. Ela se reco-
necta a outras seções de várias maneiras para trazer um desfecho. Os primeiros
versículos do capítulo 10 lembram o capítulo 1, formando uma moldura lite­
rária para o livro inteiro. Eles falam do terceiro ano de Ciro, de Beltessazar e
de alimentos saborosos (10.1-3). O terceiro ano de Ciro ecoa com o “terceiro
ano de Nabucodonosor” (1.1) e o “primeiro ano de Ciro” (1.21), os quais de­
limitam o capítulo 1. O nome babilónico de Daniel, Beltessazar, juntamente à
279
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

sua importância, foi mencionado pela primeira vez em 1.6, e alimentos saboro­
sos foram o maior desafio do capítulo 1.
A referência ao terceiro ano de Ciro também acentua a unidade das qua­
tro visões nos capítulos 7— 12. Ela completa o padrão alternado de notas his­
tóricas nessas visões, criando um senso de simetria entre elas. A primeira e a
terceira visões acontecem no “primeiro ano” de um rei, enquanto a segunda
e a quarta ocorrem no “terceiro ano”. A notação do primeiro ano de Dario
em 11.1 enfatiza esse ciclo, revertendo a ordem. O ciclo de um-depois-três se
torna três-depois-um no relato da última visão. Essa notação não apenas traz os
leitores de volta ao capítulo 9, como também os leva ao capítulo 7.
Outros pontos de inter-relacionamento entre as quatro últimas visões do
livro já foram discutidos anteriormente (veja Por trás do texto no cap. 8). O
capítulo 7 apresenta um panorama amplo da história, enquanto os capítulos
8— 12 lidam com reinos particulares dentro daquele esquema. As três visões
dos capítulos 8— 12 enfocam um período de conflito intenso, culminando
num ato horrífico chamado de sacrilégio terrível (8.14; 9.27; 11.31).
O conteúdo dessa última visão forma um paralelo com a visão do capítulo
8 de diversas maneiras. Ambas esboçam a história dos reinos gregos substituin­
do os reinos persas. Elas aludem à força da Pérsia, à ascensão de Alexandre, o
Grande, à divisão do seu império em quatro reinos e ao desenvolvimento de
um opressivo domínio selêucida sob o governo de Antíoco IV. Ambas as visões
mencionam a Pérsia e a Grécia por nome.
O formato do relato da visão nos capítulo 10— 12 segue mais de perto o
capítulo 9, contudo, do que os capítulos 7 e 8. Com relação ao gênero, as visões
dos capítulos 7 e 8 podem ser classificadas como visões simbólicas, enquanto
as dos capítulos 9 e 10—12 podem ser denominadas de visões revelatórias. O
primeiro gênero envolve imagens fantásticas que requerem a interpretação de
um anjo. O segundo não inclui tais imagens, mas sim uma revelação direta de
um mensageiro celestial. A visão revelatória também é caracterizada por uma
descrição prolongada do contexto da visão, o que inclui súplicas, a aparição
de um anjo e palavras de encorajamento. Embora todas as visões forneçam al­
guma notação sobre o seu contexto, essa característica é mais elaborada nesse
gênero (para observações mais detalhadas sobre esse gênero, veja Lucas, 2002,
p. 31-36).
As duas datas específicas mencionadas no texto estabelecem um contexto
histórico no qual a visão deve ser entendida. Essas datas são o terceiro ano de
Ciro (10.1) e o primeiro ano de Dario (11.1). Essas datas formam uma mol­
dura para a primeira seção do relato da visão (10.1 — 11.1), marcando-o como
280
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

uma unidade distinta. A primeira data identifica o ano em que a visão foi rece­
bida, que foi 536 a.C.. O livro de Esdras descreve esse período como a época
em que os exilados judeus começaram a retornar ajudá. O decreto de Ciro em
539 a.C., uma data que corresponde ao primeiro ano de Dario, autorizou os
povos que os babilônios haviam levado cativos a retornarem às suas terras na­
tais e reconstruí-las. A versão judaica dessa política se encontra em 2 Crônicas
36.23 e Esdras 1.2-4 (veja o subtítulo Público original na Introdução). Os per­
sas aparentemente pretendiam estabelecer súditos leais e uma economia mais
desenvolvida encorajando o desenvolvimento e a identidade local.
A relevância dessas datas para o conteúdo da visão é significativa. Os leito­
res familiarizados com as Escrituras hebraicas reconhecem esse período como
uma época de grande esperança. Com base nas palavras de Isaías 40-66; Jere­
mias 30-33; Ezequiel 40-48 e outras, as expectativas quanto à restauração de
Judá e Jerusalém eram altas. Isaías e Jeremias, em particular, viam esse tempo
como um “novo êxodo” baseado no padrão da libertação do Egito (Is 43.14-21;
52.1-12; Jr 31.1-14,31-34). Talvez essa seja a razão por que a visão de Daniel é
dada pouco depois da época em que o êxodo era tradicionalmente celebrado,
no vigésimo quarto dia do primeiro mês (10.4). A Páscoa e a Festa dos Pães
Asmos começam no décimo quarto dia de Nisan e terminam no vigésimo pri­
meiro.
Os livros de Esdras, Ageu e Neemias, contudo, relevam a dura realidade
da restauração. A renovação vislumbrada pelos profetas não ocorreu da for­
ma como fora esperada. A restauração foi difícil política, econômica e espiri­
tualmente. A mensagem de Daniel 10— 12 confirma a experiência árdua dos
judeus durante a restauração. Ela descreve esse período como uma época de
conflitos intensos com poderes mundiais que continuavam oprimindo o povo
de Deus. Começando por Ciro, a visão segue adiante, passando por uma sé­
rie de monarcas e chegando a uma figura que causa distúrbios e sofrimentos
sem precedentes para os judeus. A sua mensagem de conflito contínuo ajuda
a explicar por que as esperanças dos exilados que retornaram a Judá não foi
inteiramente cumprida.
A referência ao terceiro ano de Ciro talvez pareça conflitar com 1.21, que
diz que Daniel serviu na corte real “até o primeiro ano do rei Ciro”. Isso pode­
ria indicar uma falta de atenção aos detalhes históricos. Entretanto, o texto no
capítulo 1 poderia muito bem estar falando do papel de Daniel na corte babi­
lónica, o qual chegou ao fim com a queda do Império Babilónico, e o início do
seu serviço na corte persa.
281
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Nessa última visão, o encontro de Daniel com seres celestiais se baseia em


referências anteriores a anjos no livro de Daniel e presume um entendimen­
to que era comum no mundo antigo. Os anjos assumem diferentes papéis ao
longo do livro. Eles servem como protetores dos servos fiéis de Deus (3.25,28;
6.22), mensageiros do juízo (4.13-17), interpretadores de sonhos (7.16-27;
8.13-26) e transmissores de mensagens divinas (9.21-27). Nos cap. 10-12, a
interação entre eles e Daniel se torna ainda mais pronunciada do que no restan­
te do livro. Descrições prolongadas de encontros angelicais acontecem tanto
antes como depois da mensagem divina em 11.2—12.4. Semelhantemente a
9.20-27, essas experiências incluem notações da aparência do anjo, da reação
de Daniel e do diálogo entre eles. Essas são características regulares nos apo­
calipses tanto judeus como cristãos (veja, ex., 2 Bar. 55 e Ap 7). No cânone
hebraico, Zacarias e Ezequiel também tiveram experiências semelhantes (Ez
37; Zc 1).
De acordo com as Escrituras hebraicas, os anjos são seres celestiais que fa­
zem a vontade de Deus (Sl 103.20). Eles ficam em volta do trono de Deus junto
ao restante do exército celestial e oferecem louvores (1 Rs 22.19; Sl 148.2).
Seus papéis na terra incluem transmitir as mensagens de Deus (Gn 31.11-13),
executar juízo (2 Sm 24.16), proteger os homens (Sl 91.11,12) e lutar pelo
povo de Deus (Ex 33.2). Escritos não canônicos, rabínicos, de Qumrã e do NT,
todos concordam com essa descrição e fornecem informações mais detalhadas
sobre eles.
Os anjos são tipicamente retratados como tendo uma aparência huma­
na. Às vezes suas origens celestiais sequer são reconhecidas inicialmente (Jz
13.21). Isso os distingue dos querubins e serafins, os quais possuem caracterís­
ticas não humanas, como asas. Ezequiel descreve o querubim que ele viu como
tendo quatro rostos e olhos por toda parte (Ez 1.4-24; 10.1-22). As Escrituras
também dizem que eles guardam a árvore da vida (Gn 3.24) e transportam o
Senhor no Seu trono (2 Sm 22.11; Ez 10.1-22). A descrição que Isaías faz dos
serafins os identifica como criaturas aladas que pairam sobre o trono de Deus,
rendendo louvor ao Senhor e transmitindo o perdão divino (Is 6.2-7).
Diversas referências em Daniel 10— 12 indicam que alguns anjos servem
como contrapartes celestiais dos reinos terrenos. A designação de dois anjos
como o príncipe da Pérsia e o príncipe da Grécia sugere isso (10.13,20).
O papel de Miguel como protetor do povo judeu também ressalta essa ideia
(10.21; 12.1). O conceito de que os anjos têm um apego especial a determina­
das entidades terrenas está relacionado ao antigo conceito de divindades pa­
droeiras das nações. Marduque, por exemplo, era o principal protetor e senhor
282
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

da Babilônia. Nas Escrituras hebraicas, a ideia de anjos padroeiros é vagamen­


te referenciada em algumas passagens fora de Daniel. Isaías 24.21-23 fala dos
exércitos dos céus sendo punidos com os reis da terra, e Salmo 82 poderia ser
interpretado da mesma maneira. Talvez Deuteronômio 32.8,9 também apoie
esse conceito. De qualquer forma, as Escrituras hebraicas certamente confir­
mam o envolvimento dos céus com as atividades terrenas, principalmente em
batalhas. Deus é um guerreiro divino que comanda os exércitos dos céus (Is
42.13). O Seu envolvimento na guerra, ou a ausência dele, é importante. O Se­
nhor e os Seus exércitos celestiais podem lutar em favor do Seu povo ou contra
ele (Êx 14.14,24,25; 15.1-10; 1 Sm 4.3; 17.45-47).
O texto começa com uma introdução às circunstâncias de Daniel (10.1-
4) antes de descrever a chegada de um ser celestial (10.5-9). Um diálogo com
o ser celestial se segue (10.10— 11.10), preparando Daniel para a mensagem
prolongada que virá a seguir.
No texto

a. A s circunstâncias de Daniel (10.1-4)

I 1 A introdução ao contexto da visão identifica as circunstâncias em que


Daniel se encontra quando ele recebe a visão. Ela aponta para um tempo e
uma localização bastante específicos, assim como para a condição espiritual de
Daniel.
Como todas as outras visões do livro, essa começa com uma referência ao
reinado de um rei. O terceiro ano de Ciro foi 536 a.C., o que marca o começo
do período de restauração em Judá (v. 1). Nessa época, os exilados judeus esta­
vam retornando à sua terra natal com grandes esperanças de renovação (Ed 1).
A mensagem da visão em Dn 11.2-12.4, contudo, adverte que esse será um pe­
ríodo de conflito contínuo, e não de paz e prosperidade. A referência ao nome
babilónico de Daniel, Beltessazar, talvez prenuncie essa perspectiva decepcio­
nante de cativeiro contínuo.
Nesse momento na história, Daniel (...) recebeu uma revelação. Essa
frase pode ser traduzida literalmente como u m a p a la v r a fo i r e v e la d a a D a n iel.
O termo r e v ela d a (n iglã h ) significa literalmente “desvendar algo”, como os
olhos ou um segredo. Sua forma passiva [no original; veja também v. 1 ARC]
implica a atuação da mão divina. Por essa razão, essa visão pode ser considerada
como confiável, assim como a do capítulo 8 (8.26). A palavra de Deus é sempre
verdadeira.
283
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Uma grande guerra parece resumir o conteúdo básico da visão. A mensa­


gem do anjo dada em 11.2-45 descreve um longo período de “grande conflito”
(NRSV) durante os reinados dos reis persa e grego. A crise da revolta macabeia
é notada em particular em 11.30-35. Nesse caso, o termo guerra (sã b ã *) tam­
bém poderia ser uma alusão velada a Isaías 40.2, que se refere ao período do
exílio como “servidão” (ARC). Talvez, como na visão do capítulo 9, os eventos
de 11.2-12.4 estejam sendo vistos como um exílio prolongado.
Alguns tradutores, contudo, sugerem que a expressão grande guerra po­
deria ser traduzida como “grande tarefa”, referindo-se, portanto, à dificuldade
de Daniel de entender a revelação (JPS). Esse é uma característica importan­
te das visões do livro (7.16; 8.15,27; 9.23), principalmente da última. No fi­
nal dessa visão, Daniel ainda parece confuso e continua a fazer perguntas. Ele
confessa abertamente a certa altura: “Eu ouvi, mas não compreendi” (12.8).
Isso parece contradizer a próxima frase em 10.1, de que na visão que teve, ele
entendeu a mensagem. Entretanto, isso talvez sirva para esclarecer melhor o
grau de compreensão que Daniel tem da visão. A declaração pode ser inter­
pretada como significando que Daniel ganhou uma percepção nova, mas não
compreendeu inteiramente tudo o que foi dito.
O primeiro versículo foi escrito na terceira pessoa, assim como a
introdução à visão no capítulo 7. Essa característica não sugere necessariamente
um narrador diferente de Daniel, embora esse possa ser o caso. Ela pode ser
apenas um recurso literário empregado para intensificar a relevância da visão,
utilizando outra voz para introduzir o relato na primeira pessoa de Daniel. Essa
característica também conecta essa última visão ao capítulo 7, sinalizando uma
conclusão à seção de visões do livro.
H 2-3 Daniel começa o seu testemunho dos eventos na primeira pessoa, iden­
tificando as suas circunstâncias pessoais naquela ocasião, ou seja, no período
imediatamente anterior ao recebimento da visão. Por três semanas ele se hu­
milhou diante de Deus (v. 2). Três dias buscando intensivamente ao Senhor se­
ria normal (Ex 19.15; Et 4.16), mas Daniel multiplicou aquele tempo por sete.
Durante esse período ele jejuou, não comendo nada saboroso, e se abstendo
de alguns cuidados pessoais, tais como o uso de essência aromática.
Juntamente à referência a um período de lamentação (v. 1), essas ações
indicam que Daniel estava se arrependendo imediatamente antes de receber
a visão, como fez no capítulo 9. Em 10.12, o anjo diz: “você decidiu buscar
entendimento e humilhar-se diante do seu Deus”. A razão por que ele estava
fazendo isso não é explicitada. Poderíamos presumir um senso de preocupação
com o estado do seu povo, semelhante àquele que ele expressou no capítulo 9.
Talvez as suas ações tenham sido provocadas por eventos caracterizados por
284
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

mudanças rápidas decorrentes do estabelecimento de um novo império e pelo


retorno dos exilados. Alguns estudiosos sugerem que notícias sobre a oposição
à reconstrução de Jerusalém já haviam chegado a Daniel (veja Ed 4-6).
I 4 A visão é recebida no vigésimo quarto dia do primeiro mês (v. 4).
Isso indica que Daniel havia jejuado durante um período normalmente re­
servado para celebrações e refeições festivas. O primeiro mês é Nisan, que
coincide com março ou abril nos calendários modernos. A Páscoa começa
no 14° dia do mês, e a Festa dos Pães Asmos dura até o 21° dia. Esses dias
santos celebram anualmente a libertação de Israel do Egito. Eles são alguns
dos dias mais significativos no calendário judaico. Como parte da refeição
da Páscoa, os participantes comem porções do cordeiro pascal e comparti­
lham taças de vinho. Porém, nada disso tocou os lábios de Daniel (veja v. 3).
Daniel identifica a sua localização como estando em pé junto à margem
do grande rio, o Tigre. O fato de Daniel estar perto do rio Tigre e não do
Eufrates o posiciona longe da Babilônia. O Eufrates corria ao lado da Babilô­
nia, porém o Tigre, localizado cerca de 64km ao leste da Babilônia, era mais
significativo para o centro do Império Persa. Uma das grandes cidades do Im­
pério Selêucida, Selêucia, ficava às margens do rio Tigre. A referência a um rio
lembra a experiência de Ezequiel às margens do rio Kebar, onde ele também re­
cebeu uma visão de Deus (Ez 1). A descrição que Daniel faz da experiência que
se segue contém diversos paralelos com as imagens e a linguagem de Ezequiel.
b. A chegada de um s e r celestial (10.5-9)
H 5-6 A visão de Daniel começa com a chegada de um ser celestial espetacu­
lar. A sua aparência é a de um ser terreno, um homem ( ’is) em chamas. Ele está
vestido de linho, o tecido precioso usado pelos sacerdotes (Êx 28.42), e tem
um cinto de ouro puríssimo na cintura. De modo geral, o seu corpo parece
feito de um mineral translúcido e esverdeado como o berilo, ou talvez amare­
lado como o topázio. O seu rosto e os seus olhos brilham como o relâmpago
e como tochas acesas. Os seus braços e pernas irradiam o reflexo do bronze
polido. Quando ele fala, a sua voz é como o som de uma multidão.
Quase todas as frases na descrição do ser celestial encontram um paralelo
no retrato que Ezequiel faz de Deus e das criaturas que o cercam (Ez 1.7-28).
O N T descreve o Cristo ressurreto em termos semelhantes (Ap 1.13-15). Isso
nos leva a indagar se Daniel está vendo um anjo ou Deus. Com base na con­
versa que se segue, a maioria dos estudiosos acredita tratar-se de um anjo.
Alguns, contudo, acham que [a figura descrita] deve ser Deus, até mesmo o
Cristo que viria, já que a sua aparência é tão extraordinária (Miller, 1994, p.
285
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

281,282). Nesse caso, o anjo do versículo 10 em diante precisaria ser um ser


diferente. O texto, contudo, não indica claramente que outro ser está presen­
te.
B 7-9 A essa altura, o leitor descobre que alguns homens, talvez a sua comiti­
va, estavam presentes com Daniel. Eles nada viram, mas o que eles experimen­
taram os deixou tão aterrorizados que eles fugiram e se esconderam. Com
isso, Daniel ficou sozinho, paralisado pela grande visão que estava diante dele.
A visão do ser celestial é arrebatadora. Ela exsuda a própria essência da san­
tidade majestosa do mundo divino. Portanto, Daniel reage a essa visão como
reagiu às outras (7.28; 8.17,18,27) e como fizeram tantos outros que encon­
traram o divino nas Escrituras (Js 5.14; Ez 1.28). Essa espetacular experiência
espiritual tem efeitos físicos dramáticos. As forças de Daniel se esvaem e o
seu semblante fica desfigurado. Daniel fica “profundamente adormecido” (v. 9
ARC), o que lembra as experiências de Adão (Gn 2.21) e Abraão (Gn 15.12),
que experimentaram um sono semelhante induzido por Deus. Cair prostra­
do, rosto em terra é uma reação característica daqueles que estão expressando
uma profunda reverência por um rei (2 Sm 14.4) ou por Deus (1 Rs 18.39).
O retrato é de alguém que se tornou inteiramente impotente diante de uma
presença arrebatadora.
Junto aos comentários sobre o terror sentido por aqueles que estavam
com Daniel, a longa descrição da sua reação ao ser celestial serve para ressaltar
a magnitude da revelação. O encontro dramático pressagia um anúncio
significativo. O diálogo que se segue gera mais expectativas. Ele aumenta o
suspense ao adiar a principal revelação dos céus.

c. 0 diálogo com o s e r celestial (10.10—11.1)

H 10 Através do toque e de palavras, o anjo prepara Daniel para a revelação.


Ambos transmitem força a Daniel e fornecem uma explicação sobre a missão
do anjo. Três ciclos de toque e palavras estruturam a unidade. O primeiro ciclo
explica os propósitos do anjo e onde ele esteve (10.10-15). O segundo capa­
cita Daniel a expressar os seus sentimentos (v. 16,17). O terceiro confirma a
missão do anjo mais uma vez, mas dessa vez ele projeta onde ele está indo (v.
18— 11.1).
Diversos elementos nesse diálogo lembram a resposta do anjo à oração de
Daniel em 9.22,23. A observação sobre o caráter de Daniel, o desafio de con­
templar a visão e a avidez do Senhor em responder à oração ocorrem novamen­
te aqui.
286
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

A restauração de Daniel é gradual. Um toque da mão do anjo transmite


certo grau de força (10.10). Ele se coloca na posição de um animal, sobre as
mãos e os joelhos. Então as palavras do anjo capacitam Daniel a ficar de pé
como um homem (v. 11), e eventualmente ele consegue falar (v. 16). O toque
celestial que transmite força lembra as experiências de Elias, Isaías, Jeremias e
Ezequiel (l Rs 19.5,7; Is 6.7; Jr 1.9; Ez 2.2).
I 1 1 As palavras do anjo fazem três coisas: elas encorajam, desafiam e ins­
truem Daniel. Primeiro o anjo lembra Daniel de que ele é muito amado, o que
significa que as pessoas têm apreço por ele, como alguém que é valorizado (veja
9.23). Presumivelmente Deus é quem julga o seu valor, mas outros também já
o fizeram (veja 1.20; 2.48; 4.9,18; 6.3).
Em seguida o anjo pede que Daniel preste bem atenção à revelação que
ele está prestes a receber. Esse foi o mesmo desafio feito a ele na visão anterior
(9.23) . Ele requer uma análise cuidadosa das palavras. Finalmente, o anjo con­
firma que sua missão está intimamente ligada a Daniel. Ele foi enviado como
um emissário de Deus com um propósito particular. Esse propósito é revelado
nos versículos seguintes.
H 12 O anjo continua o seu discurso enfocando o encorajamento e outras ex­
plicações. Uma admoestação comum dos anjos ao longo da Bíblia é não tenha
medo (2 Rs 1.15; Mt 28.5; Lc 1.13,30; 2.10). Essaé uma palavra frequente de
Deus para o Seu povo (Gn 15.1; Dt 31.6,8; Is 41.14; Jr 1.8; Ez 2.6; Mt 14.27).
O anjo encorajará Daniel novamente com essas palavras em Daniel 10.19.
Talvez para Daniel o mais encorajador seja saber que Deus ouve a sua
oração. Desde o primeiro dia em que Daniel começou o seu jejum, suas
palavras foram ouvidas. A oração de Daniel no capítulo 9 recebeu uma
resposta semelhante: “Assim que você começou a orar, houve uma resposta”
(9.23) . Essas declarações expressam o intenso interesse dos céus nos negócios
humanos.
H 1 3 Porém, o anjo foi impedido durante os vinte e um dias do jejum de Da­
niel. Questões nos céus aparentemente adiaram a ação na terra. Como o anjo
explica, o príncipe do reino da Pérsia me resistiu até que Miguel (...) veio
em minha ajuda. O que está sendo descrito é um conflito nas dimensões ce­
lestiais. O anjo que está falando com Daniel uniu forças a outro anjo chamado
Miguel para lutar contra outro anjo que está ligado à Pérsia.
Em geral, o termo príncipe (sar) denota diversos níveis de líderes terre­
nos, muitas vezes militares (Nm 21.18; Jz 5.15; 1 Sm 22.2; Ed 8.24; Ez 11.1).
Nesse capítulo, contudo, a palavra é usada em referência a seres celestiais,
como acontece em Josué 5.14. Miguel é um dos príncipes supremos no céu
287
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

e, de acordo com 10.21 e 12.1, o anjo protetor de Israel. Tradições extrabíbli-


cas concordam com esse papel de Miguel e falam dele como um dos quatro
principais arcanjos.
O oponente de Miguel e do anjo que está falando com Daniel é o príncipe do
reino da Pérsia. Mais tarde, no versículo 20, esse anjo é chamado simplesmente de
“príncipe da Pérsia”. A associação desse anjo com a Pérsia indica que ele é um repre­
sentante celestial da entidade terrena (veja Por trás do texto). Como Miguel e o anjo
que está falando com Daniel se opõem a esse anjo, podemos presumir que ele é um
anjo maligno. No NT, esses seres são chamados de demônios (Mt 9.34).

O arcanjo Miguel
Miguel é m encionado pelo nom e pela prim eira vez na Bíblia em Da­
niel 10.13 e 21. Ele é especificam ente identifica do m ais três vezes. Em
Daniel 12.1, o seu papel é o de p ro te to r de Israel. Judas 9 o cham a de
arcanjo com base num a história apócrifa referenciada pelo autor. Em A po­
calipse 12.7, Miguel é responsável por lançar o dragão para fora do céu.
Miguel se tornou uma personalidade popular nas traduções judaica e
cristã. Na lite ra tu ra judaica não canônica ele é identifica do com o um dos
qua tro arcanjos que fica m diante de Deus (1 En. 20.5). Os seus papéis
va riam de m ensageiro do juízo (1 En. 10.11) a m ediador da lei de Moisés
(Jub. 1.27). A trad ição rabínica o ide ntifica com diversas passagens bíbli­
cas onde anjos anônim os aparecem , com o aquele que lutou com Jacó (Gn
32.24) ou o d e stru id o r do arraial de Senaqueribe (2 Rs 19.35). Os cristãos
tê m fe ito conexões sem elhantes e ntre Miguel e as histórias bíblicas. Eles
passaram a honrá-lo com o São Miguel, aquele que cura os enferm os e o
padroeiro dos guerreiros, com uma festa anual em 29 de setem bro.

M 14 A chegada do anjo indica que até certo ponto ele e Miguel foram bem-
-sucedidos na batalha. O anjo agora pode entregar a mensagem divina. O as­
sunto da mensagem é o que acontecerá ao seu povo no futuro (v. 14). No fu­
turo (b ê ’ a h ã rit hayyãm im ) significa literalmente n o s p ró x im o s d ias. Ao longo
das Escrituras hebraicas, a expressão é usada para se referir ao fim dos tempos
ou a um tempo indeterminado no futuro (veja 2.28).
Parte da mensagem do anjo anuncia que os gregos darão fim ao domínio
persa (11.2-4). Esse poderia ser o motivo do conflito celestial. O anjo que de­
fende os interesses do reino persa provavelmente não desejaria que essa men­
sagem fosse transmitida. No pensamento bíblico, uma vez que uma palavra é
proferida, ela passa a ser efetiva.
288
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

H 15-17 Mais uma vez, Daniel descreve o seu senso de fraqueza, o que é seguido
por um toque e uma palavra fortalecedores. Ele se prostra em reverência e é incapaz
de falar. Aquele que parecia homem (v. 16) naturalmente se refere ao ser descrito
nos versículos 5,6. Isso parece indicar que apenas um ser celestial está envolvido
com Daniel. Referências ao fato de ele não conseguir falar (v. 15), ao toque nos
lábios e ao abrir da boca (v. 16) lembram as experiências de outras pessoas. Moisés,
Isaías, Jeremias e Ezequiel, todos esses sentiram a insuficiência das palavras huma­
nas na presença do divino (Êx 3.10-12; Is 6.5-7; Jr 1.6-9; Ez 3.26,27). Eles também
sabiam que apenas Deus poderia capacitá-los a falar por Ele.
Dessa vez Daniel, e não o anjo, fala as palavras que se seguem ao toque. Ele
expressa o seu profundo senso de inadequação com palavras cheias de emoção.
Ele está angustiado e impotente (Dn 10.16), sem forças, e a ponto de mal
[poder] respirar. Ele identifica a si mesmo apropriadamente como um servo
que não é digno de falar com o seu superior e identifica o anjo como seu senhor
(v. 17). Esse espírito submisso tem sido a marca registrada de Daniel ao longo
do livro (1.8-13; 2.27,28; 4.19; 6.21).
■ 18-19 Uma última vez o toque e as palavras do anjo fortalecem Daniel.
Novamente o anjo admoesta Daniel a não temer e o lembra de que ele é muito
amado (v. 19, veja v. 11,12). Então o anjo proclama apaz sobre ele e o encoraja
duplamente a ser forte. Paz é a grande palavra hebraica shalom , a qual deseja
bem-estar e a bênção divina quando usada como saudação. O termo hebraico
para forte (hãzaq ) denota firmeza ou dureza, como na imagem de um forte
aperto de mão. Trata-se do mesmo desafio dado por Deus a Josué (Js 1.6,7,9).
A essa altura, depois de três toques e duas palavras de encorajamento do
anjo, Daniel está pronto para ouvir o conteúdo da mensagem. A sua habilidade
de ouvir, contudo, não vem dele. Ela vem apenas porque o anjo fortaleceu o seu
corpo e a sua mente.
I 10.20— 11.1 Em resposta à prontidão de Daniel, o anjo não transmite
imediatamente a mensagem. Ele impõe mais um adiamento dramático ao reafir­
mar o seu propósito e o conflito concomitante nos céus. As palavras do anjo são
arranjadas de forma paralela. A pergunta sobre o seu propósito no versículo 20a
é ecoada por uma resposta no versículo 21a. A informação sobre a luta entre os
príncipes celestiais no versículo 20b é expandida nos versículos 21b— 11.1. O
efeito desse entrelace é realçar a conexão entre o eventos celestiais e os terrenos.
A pergunta do anjo pode parecer estranha, já que no versículo 14 ele já ex­
plicou por que (v. 20) ele veio. Entretanto ela desafia os ouvintes, tanto Daniel
como os leitores posteriores, a prestarem atenção à mensagem. Essa mensagem
289
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

se baseia no Livro da Verdade (v. 21), o qual aparentemente contém detalhes


sobre os eventos futuros apresentados em 11.2—12.4. Essa é a única vez em
que esse livro é mencionado nas Escrituras hebraicas. Ele é diferente do livro
de atos passados mencionado em 7.10, mas poderia ser comparável ao registro
da vida de uma pessoa mencionado no Salmo 139.16. Na seção apocalíptica
de 1 Enoque, tábuas celestiais revelam a história futura a Enoque (7 En. 93.2).
A partir de uma perspectiva terrena, o conteúdo essencial da mensagem é
que a Pérsia cairá e a Grécia se levantará. Em termos celestiais, o anjo irá lutar
contra o príncipe da Pérsia e então chegará o príncipe da Grécia. Uma ba­
talha espiritual aparentemente está por trás das realidades terrenas que o anjo
está prestes a descrever. O fato de que Miguel é designado como o príncipe de
vocês enfatiza a ligação entre o anjo e o povo de Daniel (veja 12.1). Isso tam­
bém sugere que a batalha é em favor dos judeus.
Nessa luta, Miguel e o anjo que está falando com Daniel apoiam um ao ou­
tro. O apoio singular de Miguel talvez não seja porque ele é o único disponível,
mas sim porque ele é o único necessário. Os dois trabalham juntos desde o pri­
meiro ano de Dario, que foi quando a Babilônia caiu e a Pérsia iniciou [o seu
domínio] (5.31). Trata-se também do ano em que Daniel foi liberto da cova
dos leões (cap. 6) e recebeu a visão das Setenta semanas (cap. 9). Essa última
conexão talvez sugira que o anjo que está falando com Daniel é o mensageiro
divino naquela visão. Ele é identificado ali como Gabriel (9.21).
A partir do texto
A elaborada introdução à última visão de Daniel prepara os leitores para
uma revelação dramática da parte de Deus. Contudo, a introdução em si mes­
ma comunica mensagens poderosas. Ela fornece uma perspectiva para Daniel
e para aqueles que se encontram em circunstâncias semelhantes. Ela traz um
senso de direção para pessoas cujas esperanças foram reajustadas. Um vislum­
bre da santidade majestosa de Deus e das realidades espirituais por trás deste
mundo encoraja a participação contínua na vida de Deus.
Uma n ova visão é necessária q u a n d o a esperança se depara com a du ra rea ­
lidad e. No terceiro ano de Ciro (10.1), expectativas fantasiosas com relação
à restauração estavam em alta. Com o pronunciamento de Ciro autorizando
o retorno dos exilados à sua terra natal, as palavras dos profetas de Israel ga­
nharam novo significado. Os exilados judeus estavam voltando para Judá em
cumprimento das visões proféticas. Através de Jeremias, por exemplo, Deus
havia dito sobre a terra: “Todavia, trarei restauração e cura para ela; curarei o
290
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

meu povo e lhe darei muita prosperidade e segurança. Mudarei a sorte de Judá
e de Israel e os reconstruirei como antigamente” (Jr 33.6,7).
Os relatos da terra de Judá, contudo, não eram tão gloriosos (Ed 4—6). As
realidades da restauração eram duras. Inicialmente, as coisas foram bem. Aque­
les que haviam voltado lançaram os alicerces do templo e começaram a adorar
regularmente. Então a oposição se levantou tanto de fora como de dentro da
comunidade. Os recursos escassearam e a economia enfraqueceu. Eventual­
mente, as pessoas passaram a se preocupar mais com a própria sobrevivência
do que com as coisas de Deus (Ag 1.3-11).
Quando nossas expectativas são reajustadas, uma nova visão oferece uma
nova perspectiva. A esperança precisa ser temperada pela realidade. A última vi­
são de Daniel faz exatamente isso. Ela revela o que acontecerá (...) no futuro
(Dn 10.14). A batalha pelo planeta Terra e a invasão do Reino de Deus conti­
nua. As oportunidades permanecem. O príncipe do reino da Pérsia (v. 13) se
interpõe como empecilho à plena manifestação do Reino de Deus. Quando ele se
for, chegará o príncipe da Grécia (v. 20). O cumprimento final das palavras dos
profetas ainda não acontecerá. Deus juntou o Seu povo e começou a restauração.
O Criador está recriando novamente a criação, mas não sem conflitos. A batalha
para redimir o mundo persiste, e o sofrimento é inevitável. Mas antes que os de­
talhes do futuro se desenrolem, Deus oferece um vislumbre inspirador do céu.
Uma n ova visão d a m a jesta d e d e D eus traz u m a p ersp ectiva n ova p a ra o
p resen te. Um ser celestial vem a Daniel com uma demonstração fascinante de
poder e pureza. Nas visões anteriores, as aparições não foram tão dramáticas.
Aqueles que se comunicaram com Daniel nos capítulos 7, 8 e 9 não o assom­
braram tanto. Naquelas visões, ele ficou impressionado com as imagens e ideias
fantásticas e a sua interpretação. Porém dessa vez a presença do céu o envolve,
tira-lhe o fôlego e drena as suas forças. Quer esse ser celestial seja Deus ou um
dos Seus mensageiros, não importa. A surpreendente revelação expressa uma
medida profunda da absoluta singularidade e santidade do Senhor.
Nesse momento, Daniel tem um encontro genuíno com o céu. Trata-se
de mais do que um tempo de aprendizado sobre Deus. Trata-se de uma expe­
riência com Deus. Ele ganha um novo conhecimento e percepção sobre Deus,
sobre si mesmo e sobre o seu povo. Mas, muito mais do que isso, ele participa
da vida de Deus. Uma experiência dessas é profundamente transformadora. Ela
vai muito além da mente. Ela penetra o coração.
A autenticidade da sua experiência nasce da fraqueza humilhante sentida
por Daniel. Como Isaías, Jeremias e Ezequiel, ele se sente perdido na presença
de Deus (Is 6.5; Jr 1.6; Ez 3.14,15). Ele fica impotente e mudo (Dn 10.8,15).
291
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

O orgulho desaparece quando se tem uma audiência com Deus. A arrogância


também esvanece quando se adquire o conhecimento divino, permanecendo
apenas uma humildade absoluta.
O propósito dessa demonstração celestial não é esmagar Daniel, mas sim
orientá-lo. A revelação dramática o lembra pungentemente de quem é o Cria­
dor e quem é a criatura. Os céus estão no controle do presente e do futuro do
povo de Deus. O Senhor permanece no controle independente das circunstân­
cias do momento. Por outro lado, Daniel é humano. Em si mesmo ele não tem
poder para alterar os eventos. Ele está fragilizado, incapaz de se levantar, de
falar ou mesmo de ouvir sem a mão fortalecedora dos céus. Entretanto, é nesse
tipo de fraqueza que o poder de Deus é aperfeiçoado (2 Co 12.9). Os tesouros
do Senhor são colocados em vasos de barro “para mostrar que este poder que a
tudo excede provém de Deus, e não de nós” (2 Co 4.7).
Uma nova visão dos céus é capaz de encorajar indivíduos que estão tendo
dificuldade de confiar em momentos de desespero. Eles recebem um enten­
dimento renovado de que “a batalha é do Senhor” e não somente deles (1 Sm
17.47). A visão do ser celestial confirma mais uma vez: “O Senhor sairá como
homem poderoso, como guerreiro despertará o seu zelo; com forte brado e o
grito de guerra triunfará sobre os seus inimigo” (Is 42.13). Deus tem poder
para afetar os eventos mundiais e está fazendo isso agora mesmo. Eles enten­
dem disso porque um encontro com o Senhor imprime essa verdade não so­
mente nas suas mentes como também nos seus corações.
Existem realidades espirituais p o r trás das realidades fisicas. O visitante celes­
tial de Daniel oferece um vislumbre aterrorizante de outra dimensão onde os anjos
guerreiam a favor do povo de Deus. Aqueles que representam os interesses de Judá
combatem os representantes de outros poderes mundiais. A resistência do príncipe
da Pérsia é tão intensa que a comunicação da revelação de Deus é adiada. Porém,
Miguel, o protetor dos judeus, une forças com aquele que fala a Daniel. Juntos, eles
desbaratam as forças oponentes e a mensagem é entregue. Portanto, duas histórias
estão acontecendo ao mesmo tempo: a história na terra e a história no céu.
Muitos estudiosos enxergam esse retrato do conflito angelical como uma
realidade, enquanto outros o veem mais como simbólico dos conflitos espi­
rituais. Em qualquer caso, o texto confirma que o que é visto não é a história
completa. Há mais a respeito deste mundo do que as realidades materiais. As
realidades espirituais causam um impacto no curso dos eventos humanos. A
história do conflito espiritual é muito maior do que a nossa própria história, e
os seus detalhes não são conhecidos exceto vagamente. Essa história perdurará
e eventualmente tomará o controle da história na terra.
292
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Paulo confirma a verdade de Daniel 10 quando declara: “A nossa luta não


é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os
dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas
regiões celestes” (Ef 6.12 ARA). Essa luta é extremamente significativa, não
apenas porque ela afeta a nossa existência terrena agora, mas também porque
ela é eterna. Como Paulo afirma em outra passagem: “o que se vê é transitório,
mas o que não se vê é eterno” (2 Co 4.18).
Os h om en s p a rticip a m das batalhas espirituais p o r m eio da oração. A ima­
gem de batalhas sendo travadas nos céus pode sugerir que os homens têm pouca
influência sobre os eventos mundiais. O texto, contudo, afirma o contrário.
Assim como no capítulo 9, a oração de Daniel provoca uma resposta dos céus.
Longe de ser apenas um espectador nas arquibancadas da história, Daniel
participa do combate, e o seu envolvimento faz uma diferença.
Mais uma vez Paulo concorda com o texto em Daniel 10. Ele admoesta
os crentes a vestirem “toda a armadura de Deus, para que possam resistir” (Ef
6.13). Então, uma vez equipados, eles devem “[orar] no Espírito em todas as
ocasiões, com toda oração e súplica; tendo isso em mente, [eles devem per­
manecer] atentos e [perseverar] na oração” (v. 18). O resultado disso será que
eles se tornarão “mais que vencedores, por meio daquele que nos amou” (Rm
8.37). Paulo estava “convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem
demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura
nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos se­
parar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (v. 38,39). Seja
qual for a origem das forças que vêm contra o Seu povo, Deus é poderoso para
subjugá-las. Ao mesmo tempo, Seus servos podem se juntar a Ele na batalha
por este mundo com uma das armas mais potentes da terra: a oração.

2. A mensagem da visão (11.2—12.4)

Por trás do texto


A mensagem celestial é dada a Daniel sob a forma de uma análise profética
da história. O anjo prevê uma sucessão de reis que governariam os reinos da
Pérsia e da Grécia e sumariza as características principais de cada reinado. Um
material semelhante ocorre em 8.23-25, onde a visão de um carneiro e um bode
é interpretada. O tipo de detalhe encontrado nessas análises, particularmente
em 11.2— 12.4, é singular nas Escrituras hebraicas. Nenhuma outra passagem
293
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

profética descreve uma série de eventos futuros com tal precisão. Profetas
como Isaías e Jeremias anunciaram a sorte iminente de Jerusalém com alguma
exatidão (Is 37; Jr 32), Josué previu até mesmo alguns detalhes a respeito da
reconstrução de Jericó mais de 400 anos antes que ela acontecesse (Js 6.36;
1 Rs 16.34). Porém essas projeções não incluem o tipo de particulares nem o
longo período histórico descrito em Daniel 11.2— 12.4.
Diversos apocalipses judaicos e cristãos contêm materiais que refletem certas
características do panorama histórico encontrado em Daniel. Os chamados apo­
calipses históricos dividem a história em vários períodos, descrevendo eventos
associados a cada período (veja 1 En. 85—90; 93; 2 Bar. 39—40; 53—76). En­
tretanto, embora esses apocalipses forneçam algumas comparações, eles na verda­
de têm mais afinidade com as visões de Daniel 2,7 e 9 do que as de Daniel 8 e 11.
O paralelo mais próximo ao material contido em 8.23-25 e 11.2— 12.4
pode ser encontrado numa coleção de textos conhecida como as profecias aca-
dianas. Tanto estilística como semanticamente, esses textos refletem o método
particular de apresentar a história encontrado em Daniel (veja Lucas, 2002,
p. 269-272). As profecias acadianas cobrem um período que vai do décimo
segundo ao terceiro século a.C. e relatam a história sob a forma de profecia até
o tempo do autor. Elas identificam características negativas de reis antigos para
elogiar as qualidades de um rei contemporâneo. Essas profecias são bastante
exatas, já que elas predizem depois do fato. Portanto, elas são chamadas de
pseudoprofecias. Algumas características da linguagem desses textos também
podem ser associadas aos textos de augúrios da Mesopotâmia, que também
preveem eventos da realeza baseados em diversos sinais.
Embora as profecias acadianas forneçam um gênero básico que pode ser
comparado a 11.2— 12.4, sua forma foi claramente mudada em Daniel. Em
vez de relatar a história com o propósito de admirar um rei, o material acaba
enfocando uma pessoa vil ou indigna. Portanto, o material em Daniel tem um
final surpreendente para esse gênero.
Com base no meio literário, muitos estudiosos veem a maior parte de 11.3—
12.4 como uma pseudoprofecia. Em particular, 11.2-39 é visto dessa forma, en­
quanto 11.40— 12.4 é visto como uma tentativa profética real (Goldingay, 1989,
p. 282,283). Eles acreditam que 11.2-39 apresenta a história como se ela fosse
uma profecia. Um autor de uma época próxima ao final dos eventos mencionados
no material - o que seria em torno da metade do segundo século a.C. - é respon­
sável por ele. Segundo esses estudiosos, esse gênero é empregado com o intuito de
enfatizar a mensagem, e não para enganar. A afirmação do controle de Deus sobre
os movimentos da história encoraja as pessoas a permanecerem fiéis.
294
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Outros estudiosos concordam que 11.2— 12.4 emprega uma forma antiga
familiar, mas acreditam que a passagem é uma profecia genuína do sexto sécu­
lo a.C. (Duguid, 2008, p. 194,195). Esses são os tipos de material que Daniel
possivelmente teria estudado, argumentam eles, e a recepção de uma visão em
um gênero familiar faz sentido. A mensagem causa mais impacto por se afastar
da forma tradicional no final. Esses estudiosos também observam que o efeito
pleno desse gênero se baseia no engano. A autoridade dos deuses é enfatizada
nas profecias acadianas porque eles podem prever eventos futuros. Esse tipo de
engano não parece característico da Bíblia.
A posição que a pessoa adota com relação à pseudoprofecia está ligada
à sua opinião sobre a autoria de Daniel (veja discussão na Introdução). Essa
questão não está necessariamente relacionada a uma perspectiva liberal versus
uma visão conservadora da autoria das Escrituras. Em última análise, o efeito
que isso tem na interpretação é diminuir ou aumentar o papel da profecia pre-
ditiva. A mensagem teológica essencial do material permanece a mesma. Quer
ele seja visto como uma profecia real ou uma pseudoprofecia, o texto afirma
que Deus está no controle dos detalhes da história do homem.
A era dos Impérios Persa e Grego forma o principal contexto histórico
dessa análise da história. Isso alude a eventos desde o tempo de Ciro, o Grande,
(556-530 a.C.) a Antíoco IV (175-164 a.C.). Dentro desse período, os Impé­
rios Ptolemaico e Selêucida recebem atenção especial. Essa história está bem
documentada nos registros de Heródoto, Políbio, Apiano, Josefo e outros his­
toriadores antigos, incluindo os autores de 1 e 2 Macabeus.
O Império Persa durou mais de 200 anos (539-331 a.C.), dirigido por uma
sucessão de 13 reis. Dentre esses, os mais poderosos foram Ciro, Dario I, Xerxes
I e Artaxerxes I. O primeiro a lutar contra os gregos foi Dario I, mas seu filho
Xerxes I é mais lembrado por sua quase conquista da Grécia em 481-480 a.C..

Reis persas
Ciro 539-530 a.C. Sogdiano 424-423 a.C.
Cam bises 530-522 a.C. Dario II 423-404 a.C.
Esmérdis 522 a.C. Artaxerxes II 404-358 a.C.
Dario I 522-486 a.C. Artaxerxes III 358-338 a.C.
Xerxes I 486-465 a.C. Arses 338-336 a.C.
Artaxerxes I 465-424 a.C. Dario III 336-331 a.C.
Xerxes II 424 B.C.

295
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Alexandre, o Grande, (331-323 a.C.) pôs um fim no domínio persa em


331 a.C. Quando ele morreu alguns anos depois do seu triunfo, o seu reino foi
dividido entre os seus sucessores. Os dois reinos mais dominantes que emer­
giram foram os Impérios Ptolemaico e selêucida. Ptolemeu I (323-283 a.C.)
tomou o controle da região do Egito depois que Alexandre morreu e fundou
o Império Ptolemaico. Inicialmente Seleuco I (312-280 a.C.) reivindicou a re­
gião da Babilônia, mas a perdeu para Antígono, o governante da Ásia Menor.
Com a ajuda de Ptolemeu I, ele conseguiu se reerguer em 312 a.C., criando o
Império Selêucida. Ele continuou a expandir as suas fronteiras até se tornar o
mais vasto reino helenístico.
Os ptolemeus e os selêucidas competiram pelo controle do Oriente Médio
ao longo do terceiro e do segundo séculos a.C. A história desses dois impérios
durante esses séculos está cheia de conflito e intriga. Eles se revezavam ascen­
dendo e caindo, invadindo e sendo invadidos. A visão em Daniel menciona
alguns desses conflitos militares (11.7,9,10-13,15,18,25,29,40-45). Manobras
políticas eram outro aspecto da história desses impérios. Alianças foram feitas
por intermédio de casamentos em pelo menos duas ocasiões. Uma delas ocor­
reu quando Antíoco II se casou com a filha de Ptolemeu II em torno de 250
a.C. (11.6). A outra aconteceu durante o reinado de Antíoco III e será mencio­
nada em relação aos seus atos.
O texto de Daniel 11 menciona todos os reis dos Impérios Ptolemaico e
Selêucida de 323 a 164 a.C., exceto por um, Antíoco I (280-261 a.C.). Desses
reis, os reinados de Antíoco III e Antíoco IV impactaram a vida na Judeia mais
do que quaisquer outros. A visão de Daniel, portanto, enfoca apropriadamente
esses dois [períodos].

Reis ptolemaicos e selêucidas em Daniel 11


Ptolemeu I 323-283 a.C. (v. 5) Seleuco I 312-280 a.C. (v. 5)
Ptolemeu II 283-246 a.C. (v. 6) Antíoco I 280-261 a.C.
Antíoco II 261-246 a.C. (v. 6)
Ptolemeu III 246-221 a.C. (v. 7-9) Seleuco II 246-226 a.C. (v. 7-9)
Ptolemeu IV 221-203 a.C. (v. 10-12) Seleuco III 226-223 a.C. (v. 10)
Ptolemeu V 203-181 a.C. (v. 14-17) Antíoco III 223-187 a.C. (v. 10-19)
Seleuco IV 187-175 a.C. (v. 20)
Ptolemeu VI 181-146 a.C. (v. 25-30) Antíoco IV 175-164 a.C. (v. 21-45)

296
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O texto caracteriza Antíoco III (223-187 a.C.) como um monarca agressi­


vo envolvido em diversas batalhas contra os egípcios e outros. De acordo com
os historiadores antigos, ele tinha planos de se tornar um novo Alexandre, ten­
do sido razoavelmente bem-sucedido em alcançar esse objetivo. O texto do
capítulo 11 alude a cinco eventos específicos em sua vida: (1) a sua derrota em
Raphia em 217 a.C.; (2) o seu sucesso em Sidom em 198 a.C.; (3) uma aliança
feita por intermédio do casamento em 193 a.C.; (4) o seu encontro com os
romanos em 190 a.C.; e (5) a sua morte em 187 a.C..
Como indica Daniel 11.10,11, Antíoco III realizou uma campanha agres­
siva para reconquistar as antigas fronteiras selêucidas dos ptolemeus. Em 219
a.C., ele deu início a esse empreendimento, fazendo avanços consideráveis an­
tes de ser obstruído por Ptolemeu IV em Raphia em 217 a.C. Embora Antío­
co tivesse sofrido perdas severas nessa batalha, reportadamente dezessete mil
tropas, Ptolemeu não tirou total proveito da sua vitória e contra-ataque. Entre­
tanto, algum tempo se passou antes que Antíoco pudesse voltar a lutar contra
o Egito em pleno vigor.
O sucesso de Antíoco contra os ptolemeus finalmente aconteceu mais de 15
anos depois de Raphia. Como resultado disso, a terra de Judeia ficou sob a sua auto­
ridade. Esses eventos cruciais para os judeus são retratados em 11.13-16. As coisas
começaram em 203 a.C. quando Ptolemeu IV morreu por razões misteriosas e o
seu filho Ptolemeu V, que na época era um bebê, tornou-se rei. O regente Agátocles,
que dirigia o império em nome do jovem rei, criou uma inquietação generalizada
com suas políticas opressivas. Antíoco III tirou vantagem desses desenvolvimentos
e começou a se mover contra o enfraquecido Império Ptolemaico.
Em 201 a.C., Antíoco já havia tomado gaza e reivindicado a judeia. Al­
guns dos judeus colaboraram com os esforços de Antíoco de expulsar da região
as tropas ptolemaicas. Um grupo pró-selêucida ligado à poderosa família To-
biad em Jerusalém e o sumo sacerdote, Simão, o Justo, lideraram a insurreição.
Entretanto, o comandante das forças ptolemaicas reconquistou Jerusalém e
puniu aqueles que haviam apoiado os selêucidas. A maré voltou a favorecer os
selêucidas na Batalha de Pânio em 199 a.C.. As tropas de elite do comandante
ptolemaico Escopas recuaram até Sidom, que finalmente caiu diante de Antío­
co em 198 a.C. Com essa vitória, a região da Palestina, incluindo a Judeia, ficou
sob o firme controle do Império Selêucida pela primeira vez.
Para aumentar a sua influência sobre o Império Ptolemaico, Antíoco
III ofereceu sua filha, Cleópatra, em casamento a Ptolemeu V em 193 a.C.
(11.17). Entretanto, essa manobra política não alcançou o seu objetivo, já que
Cleópatra provou ser leal ao seu marido e aos interesses dos ptolemeus.
297
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Dois grandes erros de Antíoco III concluem a análise da sua carreira no


capítulo 1 1 .0 primeiro foi a sua negligência do poder de Roma. Tirando van­
tagem da fraqueza de Filipe V, ele realizou campanhas em direção ao oeste da
Ásia Menor e da Macedônia. Encorajado por esses sucessos, ele continuou até
a Trácia e a Grécia, apesar das advertências de Roma para que ele não seguisse
adiante. Na Grécia, ele foi derrotado primeiramente em Termópilas em 191
a.C. e depois em Manisa em 190 a.C.. Como resultado disso, Antíoco III foi
obrigado a desistir da posse das terras que ele havia adquirido recentemente na
região, tornando-se um vassalo de Roma e sobrecarregado de pesadas obriga­
ções tributárias. Além disso, diversas pessoas da sua corte, incluindo o seu filho
Antíoco IV, ficaram retidos em Roma para assegurar a lealdade selêucida.
Isso levou ao último erro do seu reinado (11.19), o que provou ser fatal.
Para pagar o tributo romano, Antíoco tentou saquear o templo de Bei em Eli-
maida em 187 a.C.. A população local se levantou em protesto e assassinou o
rei e os seus cúmplices. Assim, sua carreira terminou em desgraça.
Antíoco IV (175-164 a.C.) recebe mais atenção do que qualquer outro
monarca na visão de Daniel. Mais de metade da visão é dedicada à sua carreira.
O texto descreve o seu caráter inescrupuloso e o seu tratamento violento dos
judeus, o que foi expresso inicialmente no capítulo 8 (veja Por trás do texto
no capítulo 8). Detalhes adicionais nessa visão se referem às suas tentativas
de invadir o Egito em 169 e 167 a.C. (11.25,29), assim como às suas alianças
políticas com oficiais judeus locais (11.23,30,32).
A visão enfoca quatro elementos importantes no reinado de Antíoco IV:
(1) a morte de Onias III em 171 a.C.; (2) a sua primeira invasão do Egito em
170 a.C. e a sua primeira incursão na Judeia em 169 a.C.; (3) a sua segunda
invasão do Egito em 168 a.C. e subsequente devastação da Judeia em 167 a.C.;
e(4) a sua morte em 164 a.C..
Uma alusão à morte de Onias III em 171 a.C. parece ocorrer em 11.22.
Embora alguns estudiosos acreditem que a expressão príncipe da aliança tal­
vez seja uma alusão a governantes egípcios, outros creem por boas razões que
ela se refere a Onias III. Ao longo do restante da visão, a palavra aliança é sem­
pre usada com referência aos judeus. Além disso, esse é o primeiro de uma série
de eventos importantes que ilustram a animosidade de Antíoco IV para com
os judeus. Ademais, é bem possível que as visões nos capítulos 8 e 9 também
façam alusão a esse evento (8.11,25; 9.26).
O contexto desse incidente começa com o entendimento da posição de
sumo sacerdote na Judeia. Com a chegada dos persas, o sumo sacerdote es­
sencialmente passou a funcionar como um governante local dos negócios da
298
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Judeia. As autoridades persas, ptolemaicas e selêucidas respeitavam, ou pelo


menos toleravam, a organização da vida judaica de acordo com a Torá, contan­
to que outras obrigações fossem cumpridas.
De acordo com 2 Macabeus 4, pouco depois de Antíoco IV assumir o tro­
no, Jasão ganhou a posição de sumo sacerdote dos judeus por meio do suborno
e de uma promessa de helenizar a Judeia. Seu irmão, Onias III, que havia dei­
xado o cargo desde Antíoco III, se opunha à influência da cultura grega. Em
172 a.C., Menelau, que não pertencia à família sacerdotal, sobrepujou Jasão e
ganhou a posição. De acordo com a lei mosaica, o cargo de sumo sacerdote era
hereditário, portanto isso foi um ultraje para os judeus conservadores. Quando
Onias protestou contra algumas das atividades clandestinas de Menelau, ele foi
forçado a se esconder, sendo eventualmente assassinado.
O próximo evento importante no reinado de Antíoco foi a primeira in­
vasão do Egito em 170 a.C.. Esse acontecimento é mencionado em Daniel
11.25-28. A invasão parece ter sido um golpe preventivo contra Ptolemeu VI
(181-146 a.C.). Com a morte da sua mãe Cleópatra, que também era irmã de
Antíoco IV, os sentimentos pró-selêucidas na corte egípcia foram enfraqueci­
dos. Dois cortesões influentes, Eulaeus e Lenaeus, aconselharam Ptolemeu VI
a retomar a Palestina e o sul da Síria dos selêucidas. O plano malfadado acabou
em desastre. O Egito foi devastado e Ptolemeu VI foi levado cativo. Apenas a
capital, Alexandria, conseguiu resistir às forças de Antíoco IV.
Com a captura do seu rei, os oficiais da corte de Alexandria aclamaram o
irmão de Ptolemeu VI como rei. Como resultado disso, Antíoco IV se encon­
trou com Ptolemeu VI para arquitetar um plano que ajudasse este a reivindicar
novamente o trono. Antíoco IV enxergou nisso uma oportunidade de ganhar
o controle sobre o Egito. Ele estabeleceu Ptolemeu VI como rei em Mênfis e
voltou para casa depois de mais um cerco fracassado a Alexandria. Um ano
depois, Ptolemeu VI negociou uma trégua com o seu irmão Ptolemeu VII, e o
império permaneceu seguro nas mãos dos ptolemeus.
Durante o seu retorno do Egito, Antíoco IV entrou em Jerusalém e sa­
queou o templo. De acordo com 1 Macabeus 1.20,28, ele removeu todo o ouro
e os móveis preciosos do templo. Os historiadores presumem que ele precisava
de recursos para o seu reino, embora Daniel 11.28 diga que ele acabara de ad­
quirir muitas riquezas em consequência do seu sucesso no Egito.
O terceiro evento importante no reinado de Antíoco é mencionado em
11.29-35. Trata-se da segunda invasão do Egito em 168 a.C., a qual desen­
cadeou os eventos que levaram à Revolta Macabeia em 167 a.C.. A invasão
do Egito é uma história relativamente curta, já que os romanos frustraram os
299
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

planos de Antíoco. Revestido da autoridade do senado romano, Caio Popílio


Lenate se encontrou com Antíoco fora de Alexandria e ordenou que ele se
retirasse. Em um dos momentos mais dramáticos da história, ele desenhou um
círculo na areia ao redor de Antíoco e exigiu uma resposta antes que este saísse
do círculo. Sabiamente, Antíoco se submeteu e retirou as suas tropas.
Um relato de insurreição na Judeia deu a Antíoco uma oportunidade
de extravasar a sua ira por causa da humilhação que ele havia sofrido dos
romanos e de recobrar a sua dignidade. De acordo com 2 Macabeus 5,
Jasão tinha ouvido dizer que Antíoco morrera e iniciado uma tentativa
de reclamar o sumo sacerdócio de Menelau. Antíoco chegou a Jerusalém
depois que a revolta já havia sido controlada, mas mesmo assim ele deu
ordens para que suas tropas aterrorizassem a população. Ele massacrou
milhares de pessoas, saqueou o templo, ocupou os arredores do templo
com os seus soldados e suspendeu a prática das leis judaicas. O ápice da
sua afronta ocorreu no 15° dia de Kislev de 167 a.C., quando ele erigiu
um altar ao Zeus olímpico no templo, nomeando o altar em honra ao seu
deus. Os judeus foram forçados a participar da adoração pagã ou pagar
com suas vidas (1 Mac. 1; 2 Mac. 5).
As ações de Antíoco contra os judeus precipitaram o que os historiadores
chamam de Revolta Macabeia. A família de um sacerdote chamado Matias ini­
ciou a insurreição, que foi dirigida principalmente pelo seu terceiro filho, Judas
Macabeu. Miraculosamente, os rebeldes conseguiram vitórias importantes, su­
perando obstáculos instransponíveis (1 Mac. 3.38—4.35). Eventualmente eles
retomaram Jerusalém e recobraram o controle do templo, purificando-o e de­
dicando-o novamente ao Deus de Israel no 25° dia de Kislev de 164 a.C. (l Mc
4.36-59). Os filhos de Matias, que também eram conhecidos como asmoneus
em honra ao seu avô, continuaram a luta para libertar a Judeia dos selêucidas
por vários anos (veja 1 Mac. 5—9). Em 160 a.C., eles já haviam conseguido
alcançar o seu objetivo quando Jônatas sucedeu o seu irmão como líder da Ju­
deia. Jônatas eliminou o último bastião dos selêucidas da região e estabeleceu o
estado independente da Judeia.
O último evento do reinado de Antíoco IV mencionado em Daniel 11 é a
sua morte (v. 45). Os detalhes precisos desse evento variam entre as fontes (1
Mac. 6.1-17; 2 Mac. 1.13-17; 2 Mac. 9). A essência da história é que ele estava
na parte oriental do seu império lidando com uma invasão de partas, quando
de repente ficou doente e morreu. A maioria dos estudiosos datam esse evento
em novembro ou dezembro de 164 a.C., pouco antes de Judas Macabeu conse­
guir reaver o monte do templo em Jerusalém.
300
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

A mensagem que o anjo transmitiu a Daniel consistia de uma apresen­


tação desigual de reis persas e gregos. Quatro unidades principais podem ser
distinguidas: (1) uma visão geral do Império Persa (11.2); (2) a ascensão e a
queda de um rei poderoso (v. 3,4); (3) conflitos entre os reis do sul e do nor­
te (v. 5-20); e (4) o reinado de uma pessoa desprezível (v. 21 — 12.4). Cada
unidade se torna progressivamente mais longa que a anterior, com a visão
passando a enfocar particularmente o último rei da lista.
Nenhum rei é identificado pelo nome na visão. Contudo, os detalhes a
respeito de cada um permitem aos leitores modernos - que hoje vivem depois
que a maioria desses eventos já aconteceu —determinar com alguma exatidão
a identidade de cada rei. Esta exegese fará essas conexões para esclarecer o que
está sendo dito, já que existe muito pouca discordância entre os comentaristas
quanto a essas identificações, pelo menos até o versículo 36. Do versículo 36
em diante, outra interpretação é possível, a qual será notada.
No texto

a. Uma visão geral do Im pério Persa (11.2)

120 anjo começa a mensagem com mais uma afirmação da sua veracidade. O
primeiro versículo do relato (10.1) também havia confirmado que a mensagem
era verdadeira. Além disso, o anjo acabara de informar Daniel de que essas pa­
lavras vieram do “Livro da Verdade” (10. 21). Essa ênfase na confiabilidade da
visão afirma suas origens divinas e aumenta o seu valor. De acordo com o livro
de Daniel, toda verdade deriva de Deus (2.20-23).
Em duas frases extensas, o anjo sumariza o curso do Império Persa. Três
(...) e depois (...) um quarto (H.2) é um estilo reminiscente dos provérbios
numéricos de sabedoria (Pv 30.15-33) e também empregado pelos profetas
(Am 1—2). O seu efeito é indicar uma cobertura total. Um grupo inteiro é
representado por três, e ainda mais por quatro, o número simbólico da tota­
lidade. Portanto, os quatro reis mencionados representam os 12 que reinaram
durante o período de 200 anos de 530 a 331 a.C. depois de Ciro.
Os quatro reis em questão talvez sejam os que se seguiram imediatamente
a Ciro: Cambises, Esmérdis, Dario I e Xerxes I (veja Por trás do texto). Dario
I levou o poderio persa ao ápice. Seu filho Xerxes I poderia ser considerado
bem mais rico do que os anteriores por causa do poder e da riqueza que ele
herdou do pai. Dario expandiu o império para o leste em direção às cidades-
-estados da Grécia, mas o seu filho foi ainda mais agressivo. Xerxes I instigou
301
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

todos contra o reino da Grécia (Dn 11.2). Com uma frota de navios egípcios,
fenícios, cipriotas e iônicos, ele subjugou a maior parte da península grega e
saqueou Atenas antes de ser derrotado na batalha de Salamina em 480 a.C..

b. A ascensão e a queda de um rei poderoso (11.3,4)

■ 3-4 Sem dúvida o rei guerreiro (v. 3) cujo reino vem em seguida é Alexan­
dre, o Grande. Ele se encaixa à descrição de alguém cujo império se desfará
e será repartido para os quatro ventos do céu (v. 4). Através da imagem de
um bode, a visão do capítulo 8 fornece mais detalhes sobre a rápida conquista
da Pérsia por Alexandre, sua morte prematura e a ruína do seu império (8.5-
8). Como no capítulo 8, os quatro ventos do céu (11.4) se referem às quatro
direções da bússola, mas também aludem aos quatro reinos mais importantes
que emergiram do império de Alexandre.
As vastas conquistas de Alexandre não passaram para os seus descenden­
tes e o império não foi mais poderoso como antes. Diversas facções lutaram
pelo reinado, e os herdeiros de Alexandre eventualmente foram assassinados.
O resultado foram reinos menores e mais fracos.

c. Os conflitos entre os reis do su l e do norte (11.5-20)


■ 5 Dois dos reinos derivados do império de Alexandre foram os reinos pto-
lemaico e selêucida. O restante da visão enfoca os reis desses dois domínios até
Antíoco IV. À exceção de um, todos os reis desse período são mencionados
(veja Por trás do texto). Diversos eventos são ressaltados nos versículos 5-20,
antes de Antíoco IV se tornar o centro das atenções no restante da visão.
Ao longo desses versículos, o rei do sul (v. 5) se refere a um governante do
Império Ptolemaico no Egito. O “rei do norte” (v. 6) designa um governante
do Império Selêucida na Síria e na Mesopotâmia. Os reinos são identificados
como sul e norte por causa da sua localização com relação à Judeia.
O primeiro rei do sul (v. 5) mencionado é o seu fundador Ptolemeu I
(323-283 a.C.). Um dos seus príncipes que eventualmente governaria o seu
próprio reino foi Seleuco I (312-280 a.C.), o fundador do Império Selêucida.
Enquanto ele servia sob Ptolemeu I, Seleuco I ganhou o controle da Babilônia
em 312 a.C.. Ao longo dos anos seguintes, ele continuou a expandir o seu rei­
nado até que ele se tornasse o maior e o mais poderoso dos reinos helenísticos.
Portanto, Seleuco I se tornou ainda mais forte do que Ptolemeu I, e conflitos
entre os dois centros de poder eram inevitáveis. ^
302
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

■ 6 Depois de uma geração de conflitos, os dois impérios concordaram em se


tornar aliados por meio do casamento. Em 250 a.C., Ptolemeu II (283-246
a.C.) ofereceu a sua filha Berenice em casamento a Antíoco II (261-246 a.C.).
Parte do acordo era que o filho de Berenice e Antíoco II se tornaria o herdeiro
do trono selêucida, o que efetivamente daria o controle do império à família
dos ptolemeus. Entretanto, Berenice não manteve o seu poder sobre a família
real selêucida por meio desse esquema. A rainha de quem Antíoco II havia se
divorciado, Laódice, mandou matar Berenice, o seu filho e toda a sua escolta
egípcia. O poder de Antíoco II tampouco durou. Ele também morreu, talvez
envenenado por Laódice.
H 7-9 A retaliação pela intriga de Laódice veio da linhagem de Berenice (v.
7). Seu irmão Ptolemeu III (246-221 a.C.) se levantou para tomar-lhe o lugar
no conflito. Ele organizou um ataque bem-sucedido a Seleuco II (246-226
a.C.), o filho de Laódice que havia reclamado o trono. Ele saqueou a fortaleza
de Antioquia, assim como Nabucodonosor fizera a Jerusalém (1.2). Ele se
apoderou dos deuses deles, das suas imagens de metal e dos seus utensílios
valiosos de prata e de ouro, e os levou para o Egito (11.8).
Cerca de dois anos depois, Seleuco II retaliou e tentou invadir o Egito (v.
9). Entretanto, ele teve que se retirar para a sua própria terra depois de uma
campanha malsucedida.
H 10-13 Os filhos de Seleuco II que se preparariam para a guerra e reuni­
riam um grande exército contra os ptolemeus foram Seleuco III (226-223
a.C.) e Antíoco III (223-187 a.C.) (v. 10). O último dos dois foi um dos reis
mais agressivos e bem-sucedidos do Império Selêucida. Significativamente para
os judeus, durante o seu reinado, a Judeia caiu sob o seu domínio. Os versículos
10-19 são principalmente sobre os seus feitos.
Os exércitos de Antíoco III começaram a avançar como uma inundação
irresistível em direção ao sul da Síria e à Palestina em 219 a.C. Eles tiveram
um sucesso tremendo até a Batalha de Raphia em 217 a.C., quando Ptolemeu
IV (221-203 a.C.) frustrou o seu avanço e derrotou-os completamente (v. 11).
Ptolemeu IV se encheu de orgulho por causa desse feito, mas seu triunfo foi
breve (v. 12). Cerca de 15 anos depois, Antíoco III reuniu um outro exército,
maior do que o primeiro, aliando-se ao rei da Macedônia, Filipe V (v. 13).
Durante os próximos anos, ele começou a reclamar áreas controladas pelo Im­
pério Ptolemaico.
H 14 Conflitos na corte dos ptolemeus cooperaram com os planos de Antío­
co III. Muitos no Império Ptolemaico se levantaram contra o menino gover-
303
\
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

nante Ptolemeu V (203-181 a.C.). Em Judeia, alguns homens violentos do


partido pró-selêucida também planejaram uma insurreição, mas não tiveram
sucesso. O general egípcio Escopas puniu aqueles que se opuseram ao governo
ptolemaico. A visão que eles cumpriram pode ter sido essa ou alguma outra
palavra profética, como Ezequiel 7.
■ 1 5 - 1 6 Juntamente à captura da cidade fortificada (v. 15) de Sidom, uma
batalha decisiva em Pânio deu a Antíoco III a vitória final sobre a Palestina (v.
15). As melhores tropas do Egito, os mercenários eólicos sob o comando de
Escopas, não tiveram forças para resistir em prol de Ptolemeu V. Por volta de
198 a.C., Antíoco III havia conseguido se estabelecer na Terra Magnífica da
Judeia, com o poder para destruí-la (v. 16). A terra dos judeus agora estava
inteiramente sob o domínio dos selêucidas.
1 1 7 Em vez de invadir o Egito a essa altura, Antíoco III decidiu tentar a diploma­
cia por medo da intervenção romana. Ele fez uma aliança com Ptolemeu V, dando
a ele a sua filha em casamento. Entretanto, sua filha Cleópatra permaneceu leal
aos ptolemeus, e o seu plano de controlar o Egito não teve sucesso nem o ajudou.
■ 1 8 A essa altura, Antíoco III voltou a sua atenção para as regiões costeiras
da Ásia Menor, Macedônia, Trácia e Grécia. Isso provou ser um erro crucial,
porque um comandante romano chamado Lúcio Cipião deu fim à arrogân­
cia dele. Antíoco III foi completamente derrotado em Manisa em 190 a.C. e
forçado a se tornar um vassalo de Roma.
■ 1 9 Para pagar o pesado tributo romano que lhe era requerido, Antíoco III
voltou para saquear as fortalezas de sua própria terra. Enquanto ele tentava
pilhar o templo de Bei em Elimaida em 187 a.C., ele foi assassinado e nunca
mais apareceu.
■ 20 0 sucessor imediato de Antíoco III foi um filho chamado Seleuco IV
(187-175 a.C.). De acordo com 2 Macabeus 3, ele enviou um cobrador de
impostos chamado Heliodoro para pilhar o tesouro do templo em Jerusalém
para pagar o tributo romano. Esse plano foi frustrado, e o mesmo coletor de
impostos eventualmente envenenou o rei.

d. 0 reinado de um s e r desprezível (11.21—12.4)

■ 2 1 O último rei mencionado na visão é outro filho de Antíoco III chamado


Antíoco IV (175-164 a.C.). Se a descrição do seu reinado continua ou não
durante o restante da visão tem sido motivo de discordância entre os estudiosos.
Muitos acreditam que ela continua, enquanto outros entendem que a visão passa
a abordar um novo personagem no versículo 36. A maioria destes identifica essa
304
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

pessoa como o anticristo do fim dos tempos. Este comentário concorda com a
primeira posição, que crê que o restante da visão trata de eventos relacionados
a Antíoco IV (veja O sujeito de 11.36— 12.4). Entretanto, isso não anula a
possibilidade de reaplicarmos o material ao período do anticristo.
Em qualquer caso, Antíoco IV recebe mais atenção do que qualquer ou­
tro rei nessa visão. De diversas maneiras, os reis anteriores prenunciaram o seu
caráter e as suas ações, preparando assim o leitor para ele. Como os reis an­
teriores, ele invade outras terras (11.7,9,21,24,29,39,40), até mesmo a “Terra
Magnífica” dos judeus (v. 16,41). Ele assola como uma inundação (v. 10,40),
ganha o apoio dos habitantes da terra (v. 14,30,32), faz alianças enganosas (v.
6,17,23), é resistido por Roma (v. 18,30), saqueia riquezas (v. 8,24), é cheio de
orgulho (v. 12,18,36,37), e faz o que bem entende (v. 3,16,36). Essas interco-
nexões explicam por que a longa análise dos reis anteriores a esse foi dada. Num
certo sentido, Antíoco IV é uma combinação de todos os reis perversos que
vieram antes dele. Portanto o leitor deveria saber que, assim como foi o reinado
de cada um dos reis anteriores, assim também será o governo deste.
Ao longo de toda essa seção, diversas frases pontuam o relato para enfatizar
o fato de que o reino de Antíoco é limitado. Essas incluem “só por algum tempo”
(v. 24), “o fim (...) virá no tempo determinado” (v. 27), “até a época do fim” (v.
35), “até que o tempo da ira se complete” (v. 36) e “no tempo do fim” (v. 40). Estas
lembram o leitor de que o sofrimento sob o déspota não durará para sempre.
Essa seção se divide em seis unidades menores: (l) uma visão geral do ca­
ráter do rei nos versículos 21-24; (2) a invasão do Egito em 170-169 a.C. nos
versículos 25-28; (3) a invasão do Egito e da Judeia em 168-167 a.C. nos versí­
culos 29-35; (4) outra caracterização do rei nos versículos 36-39; (5) um resu­
mo final da carreira do rei nos versículos 40-45; e (6) a esperança para o povo
de Deus durante essa era em 12.1-4.
Daniel 11.21-24 fornece um panorama inicial dos atributos perniciosos de
Antíoco IV. A primeira caracterização é agudamente derrogatória. Antíoco IV é
chamado de ser desprezível (v. 21). O termo denota uma pessoa que é vista como
indigna, um indivíduo do qual as pessoas afastam o rosto (Sl 15.4; Is 53.3). O prin­
cipal motivo disso é sua duplicidade maquinadora, que é ilustrada pelo que se segue.
Antíoco não era o herdeiro legítimo ao trono. Ele era alguém a quem não
tinha sido dada a honra da realeza, pois ele não havia sido designado como su­
cessor do seu irmão. Os dois filhos de Seleuco IV estavam na linha de sucessão
antes dele. Porém, Antíoco IV apoderou-se do trono mediante intrigas. Tendo
inicialmente assumido o controle do império como regente em nome dos sobri­
nhos, ele eventualmente se livrou de ambos e reivindicou o título de rei.
305
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

I 22-23 Antíoco era um líder militar bem-sucedido. Nos campos de bata­


lha, todos os tipos de exércitos eram arrasados diante dele (v. 22). A certa al­
tura, ele destruiu até mesmo um príncipe da aliança. Isso talvez se refira a um
egípcio ou a outro governante, mas a referência à aliança provavelmente indica
um dos sumos sacerdotes da Judeia. Se esse for o caso, isso prenuncia o conflito
dramático de Antíoco com os judeus apresentado nos versículos 30-33.
Uma história contada em 2 Macabeus 3 talvez forneça o contexto para essa
alusão. Conforme conta a história, inicialmente Antíoco continuou a política
do seu pai que permitia que o sumo sacerdote Onias III supervisionasse os
negócios judeus. Depois de um acordo feito com ele, contudo, Antíoco agiu
traiçoeiramente (v. 23). Ele começou a trabalhar com um pequeno grupo da
facção pró-helenizante na Judeia para ganhar o poder. Esses incluíam o irmão
de Onias, Jasão, que subornou Antíoco para que este lhe desse o cargo de sumo
sacerdote. Mais tarde, Menelau, que sequer pertencia a uma família sacerdotal,
fez a mesma coisa. Quando Onias protestou, ele eventualmente foi perseguido
e assassinado em 171 a.C..
I 24 Alguns comentaristas acreditam que a referência a esse evento continua
no versículo 24. Outros, contudo, veem uma volta a um resumo dos aconteci­
mentos. Essa deslealdade certamente caracterizou Antíoco ao longo de todo
o seu reinado. Ele fazia as províncias mais ricas, como o Egito e a Báctria, se
sentirem seguras por meio de concessões, tratados e presentes. Mas ele então
se voltava contra elas. Dessa maneira ele pôde realizar o que nem seus pais
nem seus antepassados conseguiram em termos de subterfúgio. Ele era mais
enganoso do que todos os que o antecederam.
Poucos ultrapassaram Antíoco como presenteadores (1 Mac. 3.30; Josefo,
Ant. 12.7.2 §294). Ele procurava agradar os seus seguidores por meio de pre­
sentes provenientes dos despojos, saques e riquezas obtidos das fortalezas
que ele pilhava (Dn 11.24). A maior parte dessas fortalezas incluía templos,
onde eram guardados tesouros nacionais de porte considerável, como o do
templo em Jerusalém.
A visão conclui uma introdução inicial a Antíoco afirmando que a sua per­
fídia duraria só por algum tempo. Esse é o primeiro lembrete de que Deus
estabelecera um limite para o terror de Antíoco (veja v. 27,35,40,45).
■ 25-26 O retrato de Antíoco agora passa de uma caracterização genérica
a um incidente específico, o começo da Sexta Guerra Síria. Em 170 a.C., seu
grande exército (v. 25) invadiu o Egito, talvez em resposta a um esperado ata­
que de Ptolemeu VI (181-146 a.C.). Antíoco prevaleceu e capturou todo o
306
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Egito, exceto pela Alexandria. Golpes tramados contra Ptolemeu VI levaram


à sua derrota na batalha e em outras áreas. Os maus conselhos dos seus cor­
tesãos o levaram a entrar na malfadada guerra contra Antíoco. Alguns desses
mesmos cortesãos, os quais eram alimentados pelo rei (v. 26), instituíram seu
irmão mais novo Ptolemeu VII como rei em Alexandria quando Antíoco cap­
turou Ptolemeu VI.
I 27 Numa ironia do destino, os dois reis, Antíoco IV e Ptolemeu VI, se
sentaram à mesma mesa para arquitetar um plano para reclamar o trono. Para
avançar seus próprios propósitos, ambos estavam dispostos a mentir um para
o outro e a dar prosseguimento a essa simulação de apoio mútuo. Essa imagem
de enganar à mesa era particularmente ofensiva nas culturas do antigo Oriente
Médio. Como resultado da sua reunião, Antíoco instituiu Ptolemeu VI como
0 seu rei-marionete em Mênfis. Porém, um ano depois, Ptolemeu negociou um
poder compartilhado com o seu irmão e o Império Ptolemaico continuou autô­
nomo. Assim, a estratégia de Antíoco para controlar o Egito não deu resultado.
A razão por que Antíoco fracassou nisso foi que o fim (...) virá no tempo
determinado. A frase evoca Habacuque 2.3, que descreve um tempo durante o
qual o profeta precisa esperar pelo desenrolar dos eventos ordenados por Deus.
Trata-se de um lembrete pungente de que a sorte de Antíoco não está em suas
próprias mãos. Enquanto ele trama e se move daqui para ali, os céus já determi­
naram um fim para ele.
H 28 Antíoco voltou para a sua terra, achando que os seus planos estavam
funcionando e trazendo consigo grande riqueza saqueada dos templos do
Egito. Antes de deixar o Egito, contudo, ele tentou mais um cerco em Ale­
xandria, mas fracassou. Com isso, ele voltou as suas energias contra a santa
aliança, ou seja, Jerusalém e o seu povo. Apesar da riqueza que ele havia trazido
do Egito, ele empreendeu ação contra os judeus e pilhou o seu templo (1 Mac.
1.20-28). Essa é a segunda ação específica de Antíoco contra o povo da aliança
nessa visão (veja Dn 11.22). Uma terceira ação, mais desastrosa, virá a seguir
(veja v. 30-32).
1 29-34 O ataque mais devastador e dramático contra o judaísmo é retrata­
do nos versículos 29-35. Esse foi o tempo determinado (v. 29) de que falou o
versículo 27. Trata-se do conflito culminante da visão. O que acontece nesses
versículos relata com maiores detalhes os eventos aludidos nas visões dos capí­
tulos 8 e 9 (veja 8.11-13,23-25; 9.27).
Esses eventos tiveram início em 168 a.C., quando Antíoco voltou ao Egito
para terminar a obra da sua campanha anterior. Entretanto, o resultado dessa
vez foi diferente. Os romanos chegaram em seus navios (v. 30) e o forçaram a
307
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

recuar. O poderio do Império Romano o fez perder o ânimo. Tendo sido um


refém em Roma, ele conhecia muito bem a estultícia de se opor a esse poderoso
império.
Enquanto os romanos estavam humilhando Antíoco, ele foi informado
de uma insurreição em Jerusalém. Com isso, ele se voltou e despejou sua fúria
contra a santa aliança. Antíoco ordenou que suas forças armadas atacassem
a cidade, massacrando milhares e saqueando a fortaleza e o templo (v. 31;
veja 1 Mac. 1.29-40 e 2 Mac. 5.1 T16). Então, ele decidiu suprimir comple­
tamente o judaísmo, abolindo o sacrifício diário (Dn 11.31) e proibindo
outras práticas da fé. O ápice da sua afronta contra os judeus foi erigir o sa­
crilégio terrível no pátio do templo, um altar ao Zeus olímpico (veja 1 Mac.
1.41-62; 2 Mac. 6.1-6). Como o termo sugere, esse foi o ato supremo de sa­
crilégio que horrorizou as sensibilidades judaicas (veja Dn 8.25; 9.27; 12.11).
Essas políticas opressivas provocaram uma rebelião violenta dos judeus
conhecida como a Revolta Macabeia. Por mais de sete anos, os rebeldes judeus
lutaram contra as tropas selêucidas em batalhas organizadas para retomar a sua
terra e a liberdade de adoração. Talvez essa seja a “grande guerra” mencionada
em 10.1. A revolta deu início a um período de sofrimento sem paralelo na Ju­
deia (veja 12.1).
Entretanto, nem todos os habitantes de Jerusalém sofreram nas mãos de
Antíoco. Havia um partido pró-selêucida formado por indivíduos que decidi­
ram abandonar a santa aliança (11.30) e violar as suas diretrizes (v. 32). Com
lisonjas, presentes especiais e promessas, Antíoco conquistou a lealdade. Es­
ses colaboradores abandonaram alguns dos regulamentos da lei mosaica para
participar no estilo de vida helenístico (veja 1 Mac. 1.11-14). Como resultado
disso, eles adotaram uma postura exatamente oposta à de Daniel e os seus ami­
gos em Daniel 1—6.
Do outro lado, havia pessoas que conheciam o seu Deus e que resistiram
com firmeza, indivíduos que são sábios (v. 32,33). Se essas duas frases descre­
vem ou não o mesmo grupo de pessoas na Judeia é uma questão a ser debatida.
Os estudiosos notam que os judeus adotaram duas posturas diferentes com
relação à opressão de Antíoco. Alguns pegaram em armas para lutar com os
macabeus, enquanto outros preferiram uma atitude mais passiva. Aqueles que
resistiram com firmeza (v. 32) talvez representem os guerreiros da liberdade
macabeus, enquanto aqueles que são sábios (v. 33) talvez sejam os pacifistas.
O termo resistirá (hãzaq ), contudo, pode denotar uma determinação de espí­
rito, em vez de sinalizar uma revolta armada. Portanto, é possível que as duas
frases estejam apenas definindo uma a outra.
308
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Quer a intenção do texto seja distinguir dois grupos ou não, a sabedoria


numa época de crise certamente é definida como o entendimento de que Deus
está no controle. Portanto, os sábios (ham m askilim ) seriam aqueles que resistem
a Antíoco porque eles estão convencidos da soberania de Deus e confiam nela (v.
35). Quer a resistência seja ativa ou passiva, a sabedoria decide confiar somente
no Senhor (Pv 3.5,6). Esse é um ponto crucial das histórias anteriores em Daniel
1—6. Trata-se também de um dos últimos desafios feitos no livro (veja 12.3,10).

Os sábios em Daniel
Os sábios (h am m a skílfm ) tê m um papel sig n ifica tivo no livro de Daniel.
Eles são m encionados quatro vezes nos últim os dois capítulos. Eles instruem
a m u ito s d urante a opressão de Antíoco e sofrem por causa disso (11.33).
Porém o seu so frim en to é um processo de purificação para eles (11.35). No
final, eles serão vitoriosos (12.3) e, enquanto outros estarão confusos, eles
"e n te n d e rã o " (12.10 ARC). O p erfil dessas pessoas é um de im p e rtu rb a b i­
lidade em m eio a crises por causa da sua confiança na soberania de Deus.
Esse é claram e nte o tip o de pessoa que o livro encoraja os le ito ­
res a im ita rem . Por causa desse e de outros tem as no livro, m uitos es­
tudiosos sentem que o a u to r de Daniel vem de um círculo de hom ens
sábios. Q uer eles a creditem trata-se de um a u to r do sexto ou do se­
gundo século, a m aioria dos estudiosos concordam quanto a isso.
Aqueles que veem o livro com o um a obra do segundo século sugerem
conexões com diversos grupos daquela era ou de um período posterior.
Duas das propostas^são os chassidim de 1 Mac. 2.42 e os separatistas,
os quais e ve n tu a lm e n te fo rm a ra m os essênios de Qum rã. O utras teorias
ta m b é m já foram propostas, m as nenhum a delas ganhou apoio universal
(veja Lucas, 2002, p. 288,289).

Aqueles que persistiram na batalha ganharam apoio adicional. Embora


muitos tenham caído pela espada, sido queimados, capturados e saqueados,
os macabeus tiveram um sucesso extraordinário (v. 33). Isso encorajou as mui­
tos indivíduos a se unirem à revolta, embora alguns não fossem sinceros em
sua devoção a Deus (v. 34). Porque os seus corações não eram íntegros, estes
foram considerados apenas uma pequena ajuda à causa.
B 35 O anjo observa que, para os sábios, o sofrimento e a perda de vida
tinham implicações espirituais. Por meio dessa provação, eles seriam refinados,
purificados e alvejados até a época do fim (v. 35). Usando a imagem da
309
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

metalurgia, o texto sugere que um processo de refinamento ocorre durante


esse período. Assim como o fogo remove as impurezas do minério, as aflições
dessa era purificam as pessoas. Isso poderia referir-se tanto ao indivíduo como à
comunidade. Em meio à perseguição, as pessoas examinam os seus compromissos,
aprofundando-os ou abandonando-os. O anjo confirma novamente esse
resultado em 12.10. Essa purificação do mal lembra os propósitos do período de
Setenta semanas no capítulo 9, quando um período de tempo é decretado para
“acabar com a transgressão, para dar fim ao pecado, para expiar as culpas” (9.24).
Mais uma vez o fim desse sofrimento é garantido. Deus identifica o tempo de­
terminado para que ele acabe. Esse episódio na carreira de Antíoco começa e termi­
na com a garantia do controle soberano do Senhor sobre esses eventos (veja v. 29).
■ 36 A essa altura, o texto fala sobre alguém que é simplesmente chamado
de rei (v. 36). Os comentaristas adotam posições diferentes quanto a quem
está sendo descrito aqui, e, consequentemente, quem é o sujeito do restante da
mensagem do anjo. Muitos acreditam que o texto passa a abordar questões es-
catológicas e o assunto do anticristo. Outros, contudo, entendem que Antíoco
continua a ser o foco até o final da visão. A última interpretação segue o fluxo
natural do texto e requer menos suposições. Este comentário concorda com o
último ponto de vista.

O sujeito de 11.36—12.4
Os estudiosos discordam q uanto ao sujeito de 11.36— 12.4. Desde
o te m p o de Jerônimo, m uitos com e nta ristas cristãos a creditam que
a visão te rm ina com um foco no a nticristo. Entre outras coisas, eles
apontam para a linguagem m ais dra m á tica, as referências ao te m p o
do fim e a d ificu lda de de co ne ctar as alusões do te x to a eventos
na vida de Antíoco. Segundo essa perspectiva, 11.36— 12.4 retrata
os eventos dos últim os dias da história do hom em e a devastação
causada pelo a n ticristo d uran te esse período (veja Archer, 1985,
p. 144-149; M iller, 1994, p. 304-313; Longm an, 1999, p. 280-285).
O utros estudiosos reconhecem esses m esm os fatores, mas lidam
com eles de form a d iferente, inte rp re ta n d o o te x to com o um a referência
a Antíoco. Eles observam que o te x to não fornece nenhum sinal
lite rá rio de que um a m udança de sujeito ocorreu. Referências ao rei no
versículo 36 e aos reis do sul e do norte no versículo 40 pressupõem
o m esm o sujeito de antes. A notação o "te m p o do fim " pode referir-
se ta n to ao final da perseguição de Antíoco com o ao fin al da história
do hom em . Finalm ente, correlações com a carreira de Antíoco podem
ser fe ita s em alguns m om entos. Isso é fe ito com m aior fa cilid ad e
nos versículos 36-39 do que nos versículos 40-45 (veja G oldingay,

310
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

1989, p. 304,305; Collins, 1993, p. 386-390; Seow, 2003, p. 182-186).


Esses estudiosos lidam com a dificu lda de de correlacionar os eventos
dos versículos 40-45 a Antíoco de uma de duas form as. A m aioria deles
acredita que a profecia é sim plesm ente inexata e não oferece nenhum a
correlação. A razão disso é que, antes do versículo 40, a visão é uma
pseudoprofecia. Ou seja, o a u to r está "p re ve n d o " depois do fato. Nos
versículos 40-45, contudo, o a u to r te n ta fa zer uma profecia verdadeira,
mas não consegue acertar. Em geral, esses estudiosos apontam ainda
que a certeza do poder de Deus para ve nce r os tira n o s perversos é
m ais im p o rta n te do que a e xatidão dos detalhes. A profecia bíblica
é m ais um a proclam ação do que uma previsão exata, afirm am eles.
O utra m aneira de ve r os versículos 40-45, contudo, é entendê-los
com o um panoram a geral da carreira de Antíoco. Essa abordagem atenua
alguns dos problem as de correlação, em bora nem todas as questões sejam
fa c ilm e n te resolvidas. Esta é a posição adotada por este com entário.

Os versículos 36-39 afastam-se dos detalhes da história para refletir mais


sobre as implicações espirituais das ações de Antíoco. Como a introdução à
visão sugere, os eventos terrenos têm repercussões celestiais. Assim como em
8.10-12, o texto vê esses atos como um ataque aos céus. Ele se engrandece até o
“príncipe do exército” (8.11).
Por meio de suas ações e palavras, Antíoco ilustra aspirações à divindade e
uma determinação de desafiar o Senhor a todo instante. Na tradição de outros
monarcas poderosos, o texto diz que ele faz o que bem entende (11.36). De
acordo com a visão, Alexandre e Antíoco III, que também invadiram a terra da
Judeia, detinham o mesmo poder incontestado (v. 3,16). Entretanto, a verdade
é que Deus é o único monarca que pode agir “como lhe agrada”, como Nabuco-
donosor descobriu e confessou (4.35).
Antíoco tentou se exaltar e se engrandecer acima de todos os deuses
(11.36). Ironicamente, contudo, aquele contra quem ele falou já ocupava apo­
sição que ele aspirava alcançar. O Deus de Israel é o Deus dos deuses. Anterior­
mente em Daniel, Nabucodonosor confirma essa verdade (2.47), chamando-o
de o “Deus Altíssimo” (3.26; 4.2,17,24,32,34). Daniel também concordava
com isso (5.18,21). De acordo com os salmos, somente o Deus de Israel está
realmente “acima de todos os deuses” (Sl 95.3; 96.4; 97.9).
Os registros indicam que Antíoco levou esse sentido de divindade mais a
sério do que a maior parte dos monarcas antigos. Moedas cunhadas durante o
seu reinado mencionam o nome adicional “Epifânio”, que pode ser traduzido
como “o ilustre” ou “o reluzente”. O título pretendia claramente comunicar
311
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

que ele era um deus manifesto na terra. Essas talvez sejam as coisas jamais
ouvidas de que Antíoco falou (Dn 11.36). Caso isso esteja em mente ou não,
as coisas jamais ouvidas (n ip la ô t ) também pertencem a Deus, não a Antíoco.
Em quase todos os outros lugares em que esse termo é usado nas Escrituras
hebraicas, ele se refere às maravilhas de Deus neste mundo (ex., Ex 3.20; Js 3.5;
SI 71.7; Jr 21.2).
Deus não tolera uma arrogância dessas por muito tempo, como ilustram
as histórias de Nabucodonosor e Belsazar (Dn 4 e 5). Entretanto, Antíoco re­
cebeu permissão para prosperar até que o tempo da ira se complete (11.36).
Isso se refere ao período de perseguição e revolta que acaba de ser descrito nos
versículos 31-35 (veja também 8.19). O Senhor determinou que esse tempo de
opressão e sofrimento irá acontecer antes que Ele lide com Antíoco (11.36).
H 37 Antíoco continua a ser caracterizado como uma pessoa desconectada [do
seu passado] e ofensiva à sua linhagem. No mundo antigo, negligenciar os ances­
trais era um comportamento vergonhoso. Em sua arrogância espiritual, Antío­
co não mostrou nenhuma consideração pelos deuses tradicionais dos selêucidas
e dos ptolemeus. Os deuses dos seus antepassados provavelmente se refere a
Apoio, o deus padroeiro dos selêucidas. O deus preferido das mulheres talvez
identifique uma deusa popular no Egito chamada Adónis. Na Mesopotâmia, ela
era conhecida como Tamuz e particularmente venerada pelas mulheres (Ez 8.14).
I 38 O deus das fortalezas talvez designe o Zeus olímpico, cujo altar Antíoco
erigiu no pátio do templo em Jerusalém (veja Dn 11.31). As tropas selêucidas pos­
tadas na cidadela de onde se contemplava o monte do templo eram particularmente
apegadas a esse deus. O próprio Antíoco promoveu mais a adoração a Zeus do que
a qualquer outro deus em todo o império. Os seus antepassados conheciam esse
deus, mas não da forma como Antíoco o representava. Em Jerusalém, a adoração a
Zeus tendia a ser especialmente corrompida e sensual (2 Mac. 6.3-6).
Outra forma de entender o deus das fortalezas é como uma personifica­
ção do poderio militar. Em outras palavras, talvez o texto esteja dizendo que
Antíoco honrava a guerra e a tomada de fortalezas acima de qualquer outra
coisa. Novamente, esse tipo de deus não era desconhecido dos seus antepas­
sados, mas Antíoco elevou isso a outro nível (veja v. 24). Ele talvez tenha de­
dicado mais ouro e prata, (...) pedras preciosas e presentes caros à guerra do
que qualquer um dos seus predecessores.
H 39 Como resultado dessa paixão “religiosa”, Antíoco atacou as fortalezas
mais poderosas, incluindo o templo em Jerusalém (11.31). Tanto Antíoco
como o seu pai eram conhecidos por saquearem templos para custear seus
esforços de guerra. Com a ajuda de um deus estrangeiro, o deus grego Zeus,
312
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

ele era bem-sucedido. A ironia aqui é que, embora ele se exaltasse “acima de
todos os deuses” (v. 36), ele não se opunha a ganhar qualquer vantagem que
pudesse das instituições religiosas para ajudar seus objetivos militares. Para
Antíoco, a religião era uma ferramenta que servia aos seus interesses políticos.
Antíoco também dependia de qualquer pessoa que o reconhecesse, como Me-
nelau e outros colaboradores pró-selêucidas em Jerusalém. Eles eram muito bem
recompensados com honra, poder para governar sobre muitos e terra (veja v. 24).
■ 4 0 -4 1 No versículo 40, a visão retorna a uma lista de atividades do rei do
norte. Diversos eventos são mencionados até que esse rei finalmente chega ao
seu fim no versículo 45.
Como foi observado antes, muitos estudiosos entendem os versículos 40-45,
assim como os versículos 36-39, como referências ao anticristo do final da história
do homem, enquanto outros os vêm como uma continuação da descrição da vida
de Antíoco (veja O sujeito de 11.36—12.4). Aposição deste comentário é a última.
Embora a maioria dos estudiosos que adotam essa opinião vejam as profecias como
inexatas, este comentário acredita que é possível correlacionar os dados a Antíoco.
Os eventos dos versículos 40-45 ocorrem no tempo do fim (v. 40). O refe­
rente mais imediato desse período é a perseguição dos judeus sob Antíoco nos
versículos 29-35. A mesma frase ocorre no versículo 35 com referência a esses
eventos. Esse também foi o contexto do seu uso em 8.17.

"O tempo do fim" em Daniel


O livro çle Daniel se refere diversas vezes ao fim ( qês
), o que es­
sencialm ente significa um p o n to d e c o rte (8.17,19; 9 .26a,26b;
11.6,13,35,40; 12.4,6,9,13). A expressão o "te m p o do fim " ('é t qês) ocorre
em 8.17; 11.35; 11.40; 12.4; e 12.9, precedida por diversas preposições

( em 8.17; 'ad em 11.35, 12.4,9; bé em 11.40). A expressão o "te m p o
lèmô 'êd qês)
d ete rm ina do do fim " ( ocorre em 8.19 (ARA). Essa frase não
se refere necessária nem p rim a ria m e n te ao fim da história hum ana. Ela
identifica um período quando o so frim en to do povo de Deus chega ao fim .

A preposição em (b è ) introduz o tempo do fim no versículo 40. Essa


preposição indica um relacionamento temporal com o período chamado de
o tempo do fim. Isso poderia ser entendido em conexão aos últimos dias des­
se período ou a todo o período. Se a última opção foi adotada, então o que
se segue se torna um sumário dos principais eventos na carreira de Antíoco.
313
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

Os versículos 40-43 servem como uma recapitulação dos incidentes previamente


mencionados, e os versículos 44,45 dão novos detalhes sobre a sua morte. Estilis-
ticamente falando, o resumo e a notação da sua morte fornecem um fechamento
adequado à análise do reinado de Antíoco. Eles equilibram a passagem inicial dos
versículos 21 -24, que também consiste num panorama geral da carreira de Antíoco.
Os versículos 40-43 sumarizam as invasões de Antíoco ao Egito e à Judeia
já mencionadas nos versículos 25-35. Como indicam os versículos 25-28, o
rei do sul, Ptolemeu VI, travou um combate com Antíoco em 170 a.C.. Em
resposta, Antíoco atacou o Egito com uma força maciça de carros e cavaleiros
tanto em 170 como em 168 a.C.. Com uma grande frota de navios, ele cap­
turou Chipre e eventualmente subjugou todo o Egito, exceto por Alexandria.
Antíoco invadiu muitos países ao longo da sua carreira, particularmente
aqueles conectados com o Império Ptolemaico. Seus exércitos poderosos
assolaram esses países como uma inundação (para uma imagem similar, veja
9.26 e 11.10). No tocante à visão, a invasão mais significativa aconteceu na
Terra Magnífica da Judeia (v. 41). Os muitos países que cairão poderia referir-
se às amplas conquistas de Antíoco ao longo da sua carreira. Porém, muitos
países também pode ser traduzido como “dezenas de milhares” (NRSV) se
trocarmos uma vogal (lendo rib b ô t em vez de rabbôt). Como tal, a expressão
poderia referir-se ao massacre que ocorreu em Jerusalém em 167 a.C.. Segundo
Macabeus 6.14 registra “oito mil” mortos em três dias.
Durante a invasão da Judeia, Edom, Moabe e os líderes de Amom foram
poupados do ataque selêucida. Mais tarde, Judas Macabeu lutou contra esses
antigos inimigos transjordânicos de Israel, na medida em que a sua revolta ga­
nhou força (1 Mac. 5.3-6). Aparentemente eles apoiavam Antíoco. Na época
de Antíoco, os nabateus haviam ocupado as áreas de Moabe e Edom, embora
uma parte de Edom ainda fosse conhecida como Idumeia.
I 42-43 O poder de Antíoco sobre muitos países foi extensivo, principal­
mente enquanto ele controlou brèVemente a maior parte do Império Ptole­
maico em 168 a.C. (Dn 11.42). Durante aquele período, ele saqueou os vastos
tesouros de ouro e de prata e de todas as riquezas do Egito para custear seus
esforços de guerra (v. 43; veja v. 28). Os líbios e os núbios, talvez tropas mer­
cenárias ptolemaicas formadas por povos do oeste e do sul do Egito, também
ficaram sob o seu domínio por algum tempo.
■ 44-45 Enquanto ele estava ocupado com os ptolemeus no oeste, Antío­
co recebeu informações provenientes do leste e do norte do seu império (v.
44). Eucrátides da Báctria e Mitrídates da Pártia ao leste e Artaxias da Armê­
nia ao norte estavam reivindicando territórios selêucidas. Antíoco deixou o
314
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

seu comandante Lísias cuidando dos insurgentes na Judeia e partiu para lidar
com essas invasões. Depois de uma tentativa fracassada de pilhar um templo na
Pérsia, ele contraiu uma doença e chegou ao seu fim (v. 45; 1 Mac. 6.1-17; 2
Mac. 1.13-16). A menção de que ninguém o socorrerá pode ser uma alusão ao
isolamento que ele experimentou por causa da doença que abateu o seu corpo
antes da sua morte (2 Mac. 9.1-29).
A referência a armar suas tendas reais entre os mares, no belo e santo
monte (Dn 11.45) cria um problema para os comentaristas. Os mares pro­
vavelmente aludem ao mar Mediterrâneio e ao mar Morto, e o belo e santo
monte designa o monte do templo em Jerusalém. Portanto, a frase descreve o
acampamento de Antíoco e do seu exército na terra da Judeia, perto de Jeru­
salém. Em pelo menos duas ocasiões, Antíoco posicionou suas tropas ali. Se o
texto pretende sugerir que ele se encontrava ali quando morreu, contudo, isso
seria incorreto. De acordo com fontes antigas, ele estava na parte oriental do
seu império, na Pérsia, quando morreu.
Entretanto, o texto pode ser compreendido de outras maneiras. Isso po­
deria expressar uma verdade mais genérica. Essa verdade seria que, embora
Antíoco tivesse invadido e ocupado a terra da Judeia durante o seu reinado, o
seu governo não perdurou. Outra alternativa é entender suas tendas reais em
referência aos exércitos de Antíoco, e não a ele mesmo em particular. Portanto,
o significado poderia ser que, enquanto as tendas do exército selêucida estavam
armadas na terra da Judeia e Lísias estava travando um combate contra os maca-
beus, Antíoco chegou ao seu fim em outra parte do seu império. Em qualquer
uma dessas interpretações, ou em alguma outra, a frase realça claramente o fato
de que o alívio para o povo de Deus vem em meio à ocupação estrangeira. Esse
ponto estabelece um paralelo com a declaração sobre a morte de Antíoco em
8.25. Ele também ressoa com o tema do livramento em meio às provações en­
contrado em outras histórias (3.28; 6.22) e visões (2.34; 7.11) do livro.

Uma data de composição


Os estudiosos que veem 11.2-39 com o uma pseudoprofecia e 11.40-
45 com o um a profecia real, m as inexata, creem que isso fornece infor­
m ações sobre a data da com posição de Daniel. Eles dizem que o te x to
registra eventos com exatidão até a invasão de Judá em 167 a.C., mas não
sobre a m orte de Antíoco em 164 a.C.. Portanto, o livro deve te r sido es­
c rito em algum m om en to e ntre 167 e 164 a.C.. Se essa teoria e s tiv e r cor­
reta, Daniel seria o livro de datação m ais precisa nas Escrituras hebraicas.

315
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

H 12.1 A divisão dos capítulos obscurece o relacionamento crucial entre


12.1-4 e o restante da visão. Esses versículos contêm a última porção da men­
sagem do anjo a Daniel, que começou em 11.2. Eles relatam uma importante
palavra de esperança para aqueles que suportam a opressão de Antíoco. Esse
último segmento da visão retorna uma vez mais a uma perspectiva do céu e lem­
bra a ênfase da introdução da visão (10.1 — 11.1) sobre as interconexões vitais
entre os eventos terrenos e celestiais.
Naquela ocasião se refere ao “tempo do fim” em 11.40, que este comen­
tário interpreta como sendo o período de aflição sob Antíoco (12.1). [No ori­
ginal,] o termo naquela ocasião ( ‘ê t h a h í’) ocorre três vezes nesse versículo
para chamar a atenção para esse momento. Era um tempo de angústia como
nunca houve desde o início das nações e até então. As descrições dos eventos
em 11.31-35 e 8.23-25 expressam um pouco do sofrimento indizível associado
àqueles dias. Relatos em 1 e 2 Macabeus e Josefo acrescentam detalhes adi­
cionais. Embora os judeus tenham experimentado perseguições implacáveis ao
longo dos séculos, o que eles sofreram sob Antíoco marca uma das suas experi­
ências mais devastadoras. O ataque direto e malicioso sobre as suas instituições
de adoração tornaram aquele período particularmente odioso.
Durante períodos como esse, a esperança do povo de Deus vem dos céus.
O texto diz: Miguel, o grande príncipe que protege o seu povo, se levantará.
Miguel é o anjo protetor dos judeus, que luta em seu favor (veja Dn 11.13 e 21).
A mesma raiz ( am ad) está por trás de levantará e protege. Portanto, o texto
poderia literalmente dizer M ig u el (...), q u e se lev a n ta p e lo seu p o v o , se levan tará.
O termo pode adquirir o significado jurídico de levantar-se para julgar, defender
ou executar juízo num tribunal. No capítulo 8, ele é usado repetidamente para
indicar conflito ou oposição (8.3,4,7,15,22,23,25; veja também 11.14,16). O pa­
pel de Miguel, então, é defender o povo de Deus durante o período de aflição
sob Antíoco. Isso poderia incluir defendê-los no conselho celestial, como alguns
estudiosos têm sugerido. Mas ele com certeza também transmite [a ideia de] lutar
ao lado deles nas batalhas terrenas contra os seus inimigos. Tal é o papel dos anjos
em outras partes das Escrituras hebraicas (Js 5.13-15; Sl 35.5,6; 91.11,12).
A intervenção de Miguel trará livramento efetivo ao povo de Daniel. En­
tretanto, nem todos serão resgatados, mas apenas aqueles cujo nome está es­
crito no livro, serão libertos. Essa é a terceira vez que os registros celestiais são
mencionados em Daniel (veja Dn 7.10 e 10.21). O livro aqui parece ser o registro
daqueles que entregaram as suas vidas a Deus em meio às aflições. Um tipo se­
melhante de livro é mencionado em outros lugares nas Escrituras hebraicas (veja
316
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Êx 32.32; Sl 69.28; Is 4.3; Ez 13.9; Ml 3.16). O caráter daqueles cujo nome está
escrito no livro é descrito em 11.32-35 e mais bem definido em 12.3.
Para essas pessoas, o anjo promete livramento. A palavra liberto (mãlat) sig­
nifica basicamente escapar ou fugir. Isso poderia referir-se a escapar da morte (1
Sm 19. 11; Jr 39 . 18; Sl 107.20 ), mas o próximo versículo esclarece que o termo
também inclui outro tipo de resgate, um livramento que vem depois da morte.
1 2 0 livramento prometido é muito maior do que algo terreno. Ele inclui
uma recompensa para os fiéis depois desta vida. A justiça definitiva para os fiéis
ocorre depois da morte.
Essa é a primeira vez que essa ideia é articulada em Daniel, e uma das poucas
vezes que ela é mencionada nas Escrituras hebraicas (vejajó 19.26; Sl 17.15; Is
26.19). Dentre essas passagens, Daniel 12.2 é a declaração mais clara sobre a
ressurreição. Ela assevera que multidões que dormem no pó da terra acorda­
rão. O sono é uma metáfora frequente para a morte na Bíblia (ex., Jó 14.12).
Acordar, então, é a contrapartida da ressurreição (Jr 51.39). Pó da terra talvez
se refira ao Sheol, o lugar dos mortos, no pensamento hebraico (Jó 17.16; Ez
26.20; 31.14,16,18; 32.18,24), ou simplesmente à condição do corpo depois da
morte (Jó 10.9; Sl 104.29; Ec 3.20). Isaías 26.19 prevê uma coisa semelhante
acontecendo quando diz; “Mas os teus mortos viverão; seus corpos ressuscita­
rão. Vocês, que voltaram ao pó, acordem e cantem de alegria”.
As multidões que acordarão parecem referir-se principalmente àqueles que
perecem durante o “tempo de angústia” (Dn 12.1), já que esse é o foco dos versícu­
los anteriores. Isso não impede a ideia de uma ressurreição geral de todas as pessoas
mencionadas em outros lugares da Bíblia (Jo 5.28; 1 Co 15.51,52). Aideia,porém,
tampouco é especificamente apoiada. Embora o termo multidões (rabbim ) pos­
sa ser traduzido como “todos”, o contexto imediato restringe o seu significado aos
muitos judeus que morrem durante o período de aflição sob Antíoco.
O anjo identifica dois destinos para os ressurretos: a vida eterna e o des­
prezo eterno. Ambos os destinos são eternos, o que significa que eles conti­
nuam por um período indefinido de tempo. Esse é o único lugar em que a
expressão vida eterna (h a yyêy ‘ôlãm ) aparece nas Escrituras hebraicas, embora
o seu equivalente grego {zoe a ion ios ) ocorra com frequência nos escritos judai­
cos intertestamentárias e no N T (/ En. 15.4; S. Sal. 3.1; Jo 3.16; Rm 6.23). O
que a vida eterna implica não é explicitado nesse contexto. No Salmo 133.3,
uma expressão semelhante - “vida para sempre” {hayyim ‘a d ‘ôlãm ) - está liga­
da à bênção divina. O mesmo pode ser presumido aqui. Os cristãos passaram a
entender a vida eterna não apenas como uma existência prolongada até a nova
era (Lc 18.30), mas também como um relacionamento autêntico com Deus
317
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

no presente (Jo 17.3). Daniel 12.3 fornece algumas descrições adicionais desse
estado por meio de imagens poéticas.
Em contraste ao primeiro grupo, outros acordarão para a vergonha, para o
desprezo eterno. O termo vergonha é plural, o que indica intensificação. Portanto,
g ra n d e vergonha expressa mais plenamente o significado. Esse é o mesmo destino
experimentado por aqueles que deixaram de seguir a lei de Deus em 9.16. Eles se
tornaram um objeto de escárnio entre os seus contemporâneos. Desprezo expressa
um sentido de repugnância que possamos sentir com relação a um objeto nojento,
tal como um cadáver cheio de vermes (Is 66.24). Nas culturas onde a honra é um
valor significativo, a vergonha e o desprezo identificam punições severas.
O que esse grupo fez para merecer tal destino não é explicado nesses versí­
culos. Poderíamos presumir que eles não fizeram o que Daniel 12.3 afirma que
o outro grupo fez. E provável também que eles sejam aqueles que abandona­
ram “a santa aliança” e violaram as diretrizes estabelecidas por ela (11.30,32).
O ritmo em 12.1-3
Alguns tra d u to re s a creditam que os prim eiros três versículos do
capítulo 12 d em onstram qualidades poéticas {BHS; REB; Lucas, 2002,
p. 257). Se esse fo r o caso, eles refletem uma técnica literária usada
em outras partes das Escrituras hebraicas. A poesia às vezes é usada
para co n clu ir unidades literárias, sendo inserida no final ou próxim o
ao final delas (Êx 15; Jz 5). Essa característica ta lvez possa ser obser­
vada em Daniel 6.26,27, quando as histórias de Daniel chegam ao fim .
Q uer esses versículos sejam ou não vistos com o poesia, seu ritm o
te nd e a a cen tua r as principais ideias relativas à esperança nessa passa­
gem : o livra m e nto e a ressurreição. As p rim eiras três linhas de 12.1 se­
guem um ritm o regular, consistindo de 3 + 3 (três palavras mais três pala­
vras). Esse padrão é quebrado na quarta linha do versículo. Nessa altura,
o ritm o m uda para 4 + 3 para a nunciar o livra m e nto do povo de Deus. O
p ronunciam ento da ressurreição no versículo 2 continua com uma linha de
qua tro palavras, seguida de uma linha de 3 + 4 . O versículo 3 ecoa o ritm o
do versículo 2, e p ortan to retom a um sentido de regularidade no ritm o.
As suas duas linhas consistem num a linha de quatro palavras seguida por
2 + 3 . O e fe ito geral do ritm o nesses versículos é a tra ir a atenção para as
duas linhas centrais, que proclam am a principal esperança da passagem:
o seu p ovo ( ...) s erá lib e rto e acordará.

B 3 O versículo 3 descreve o estado daqueles que acordam para a bênção assim


como algo a respeito do seu caráter. Eles reluzirão como o fulgor do céu e
318
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

como as estrelas, para todo o sempre (v. 3). Essas duas frases são expressões
paralelas, indicando a honra especial dada a esse grupo. O brilho reluzente
lembra a aparência deslumbrante do ser celestial em 10.5,6 porque ele reflete
a glória de Deus. Talvez como as estrelas indique um testemunho para o
mundo que ocorre quando o povo de Deus é vingado (Ez 39.27,28). Essas
frases também enfatizam o estado permanente dos benditos. Isso durará para
todo o sempre, assim como parece ser com as estrelas. Como essas frases são
claramente poéticas, elas não deveriam ser entendidas literalmente para sugerir
que as pessoas de algum modo se tornarão estrelas ou até mesmo anjos.
Duas descrições dos benditos definem o seu caráter. Eles são (1) aqueles
que são sábios; e (2) aqueles que conduzem muitos à justiça. Em Daniel,
os sábios são aqueles que confiam na soberania de Deus, independente das
circunstâncias externas. Eles conhecem “o seu Deus” e resistem “com firmeza”
às transigências (11.32). O seu modelo é Daniel e, como ele, a sua impertur­
babilidade causa um impacto no seu mundo (2.47; 6.26,27). Eles se tornam
instrutores de fidelidade e conduzem muitos à justiça (veja 11.35). Essas pes­
soas lembram o Servo Sofredor de Isaías, que “agirá com sabedoria” (52.13) e
“justificará a muitos” (53.11).
H 4 Uma palavra de instrução a Daniel conclui a mensagem do anjo que co­
meçou em 11.2. Semelhantemente a 8.26, o anjo dirige Daniel a fechar com
um selo as palavras do livro (12.4). O propósito disso é a preservação, e não o
segredo. Como a escritura de uma propriedade, essa mensagem deve ser amar­
rada com um cordel ou colocada num jarro, selada com um anel-selo e preser­
vada para uma época em que ela será muito valiosa (vejajr 32.14). Essa época é
o tempo do fim, que segundo a mensagem está relacionado à era de sofrimento
sob Antíoco (veja Dn 11.40). A mensagem do anjo é como um contrato para
aquelas pessoas que viverem naquele período. A sua selagem garante que as
coisas ocorrerão como Deus revelou. O sofrimento virá, mas ele também terá
um fim. No final, os fiéis serão libertados.
A última frase, muitos irão por todo lado em busca de maior conhe­
cimento (12.4), pode ser interpretada de duas formas diferentes. Ela pode
referir-se ao que irá acontecer quando o livro for finalmente aberto ou ao que
irá ocorrer durante o período anterior a isso. Ir por todo lado se refere a uma
busca intensiva (Jr 5.1; Am 8.12). O fato de que o conhecimento é aumenta­
do indica que essa busca está relacionada à mensagem da visão. A tradução em
grego antigo, contudo, usa “iniquidade” em vez de conhecimento, presumi­
velmente lendo h araah em vez de h ada at. Todas as outras versões concordam
com o TM. Portanto, o sentido da frase parece ser que, quando o selo da visão
for aberto, as pessoas a buscarão diligentemente e encontrarão entendimento.
319
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

No hebraico, a palavra conhecimento é precedida por um artigo definido, o


que sugere um tipo particular de conhecimento. No contexto dessa passagem,
esse conhecimento seria aquele que é possuído pelos “sábios” de 11.33 e 12.3.
Eles tinham in sigh t quanto à mão soberana de Deus sobre a história do homem
e a sabedoria para confiar nele.
A partir do texto
A revelação do céu em 11.2— 12.4 aborda circunstâncias desapontadoras.
De acordo com a introdução em 10.1 — 11.1, a mensagem é dada em resposta
à oração de Daniel. Embora o texto não diga isso de modo explícito, desenvol­
vimentos aparentemente desanimadores para os judeus preocupavam Daniel.
A dominação estrangeira dos negócios judeus permaneceu, e os exilados que
haviam retornado para reconstruir sua terra natal estavam enfrentando difi­
culdades significativas. A esperança de um final vitorioso para o exílio havia
minguado.
Em resposta a esse contexto, a mensagem angelical reafirma diversos temas
encontrados antes no livro. As visões anteriores falam das realidades cansativas
deste mundo: conflitos intermináveis entre os poderes terrenos, a arrogância
espantosa dos reis e o sofrimento não merecido do povo de Deus. O que é dife­
rente em 11.2— 12.4 é uma esperança mais acentuada. As visões dos capítulos
8 e 9 oferecem uma esperança modesta que promete principalmente um fim
para cada aflição e tirano. Com 11.2— 12.4, o livro retoma a esperança mais
ampla projetada no capítulo 7.
No capítulo 7, uma visão de animais subjugados diante do trono do Se­
nhor expressa uma grande esperança para este mundo e para aqueles que são
fiéis. Ela prevê “alguém semelhante a um filho de homem, vindo com as nuvens
dos céus” (7.13) e estabelecendo um reino eterno junto ao povo de Deus. A
mensagem de 11.2— 12.4 fornece in sigh ts adicionais sobre a natureza dessa es­
perança. Trata-se de uma esperança que reside nas mãos de um Deus soberano
que já determinou coisas específicas sobre o futuro. O Senhor sabe que haverá
conflitos e que o Seu povo será afligido. Mas Ele também sabe que haverá li­
vramento. Aqueles que forem sábios serão recompensados, não apenas neste
mundo presente, mas também para além dele.
D eus con h ece os d eta lh es sobre o fu tu r o . Em 11.2-45, o anjo prevê eventos e
personalidades na história do homem com uma precisão extraordinária. Isso é
tão marcante que, ainda que o texto não forneça nomes, os historiadores con­
seguem identificar ações e pessoas específicas com muito pouca dificuldade.
320
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

Esse fenômeno pretende claramente comunicar o fato de que o Senhor conhe­


ce o futuro. Quer o material seja visto como uma profecia real ou uma pseu-
doprofecia, a verdade teológica por trás da mensagem do texto permanece a
mesma: Deus sabe o que está por vir e, por causa disso, as pessoas podem ser
encorajadas a confiar nele.
Embora a ideia de conhecer o futuro seja espantosa do ponto de vista
humano, ela é constantemente afirmada ao longo da Bíblia. De acordo com
Isaías, parte da autenticidade do Deus de Israel é provada pelo Seu conhecimento
do futuro. O Senhor é superior aos outros deuses porque Ele conhece “o que
ainda está para vir” (Is 44.7). A habilidade de anunciar acontecimentos futuros
também autentica os profetas de Deus (Dt 18.21,22). Nas Escrituras hebraicas,
a coleção de obras proféticas em particular se baseia na lógica de que as palavras
de Deus se cumprirão no futuro. O Senhor compartilha os Seus planos com os
seus profetas, e estes o proclamam (Am 3.7,8). Inevitavelmente, eles acontecem
“de acordo com a palavra do Senhor proclamada por seus servos, os profetas”
(2 Rs 24.2).
Entretanto, dizer que Deus conhece os eventos futuros não significa que
Ele predestine tudo. Daniel 11 não promove um determinismo rígido. Ele afir­
ma apenas a presciência divina de certos - não todos - os eventos da histó­
ria do homem. De acordo com a Bíblia, Deus não está preso por um mundo
predeterminado. O Senhor regularmente altera planos, negocia e responde às
ações dos homens (Gn 6.6-8; Êx32.11-14; 1 Sm 15.10,11; Jr 18.7,8; 26.3; Am
7.1-6; SI 106.45). Muitas passagens, incluindo a oração de Daniel 9, demons­
tram que a reação dos homens faz uma diferença no esquema final das coisas.
A obediência ou a desobediência determinam a direção [dos eventos] porque
o livre-arbítrio do homem é real. Caso contrário, as advertências proféticas e
exortações ao arrependimento não fariam sentido (Is 1.18-20). De igual modo,
as admoestações com relação a uma vida santa também seriam palavras vazias
(Lv 19.2) e o modelo da fidelidade de Daniel se tornaria irrelevante.
Aparentemente, contudo, certos eventos são predeterminados, e Deus sabe
quais são eles. Nem todo evento é predeterminado, mas o que foi decidido
irá acontecer (Dn 11.36). Eles têm um tempo determinado no qual devem
ocorrer (11.27,29,35). O efeito desse determinismo é enfatizar a soberania de
Deus. Portanto, assim como todo o restante do livro de Daniel, o capítulo 11
confirma mais uma vez a mão soberana do Senhor sobre a história do homem.
O conhecimento de que o mundo está nas mãos de um Deus assim oferece con­
solo àqueles que estão sendo afligidos, já que esse Deus também determinou
outras coisas. O Senhor determina o bem e o mal para as pessoas (Jr 29.10-14).
321
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

D eus sa be q u e o Seu p o v o p erm a n ecerá n u m m u n d o q u e está em gu erra . De


acordo com Daniel 10.1, a mensagem do anjo diz respeito a uma “grande guer­
ra”. A análise dos eventos em 11.2— 12.4 retrata exatamente isso, na medida
em que a história do homem se move de um conflito para o outro. Trata-se de
um mundo constantemente em guerra. As autoridades persas são substituídas
pelo domínio grego (11.2-4). Os rei[s] do norte invadem os rei[s] do sul (v.
7,9,11,13,15,25,29,40). Eles tramam, saqueiam, retaliam, enganam e destro­
em. A motivação desses reis é resumida com toda clareza nos versículos 36-39.
Eles querem ser deuses. Eles se exaltam e se engrandecem acima de todos os
deuses e honram apenas aquilo que avança os seus interesses políticos (v. 36).
Num mundo assim, o povo de Deus não deveria surpreender-se com o
sofrimento (Jo 15.18-25; 1 Jo 3.13). Enquanto os reis tramam e saqueiam, os
crentes se veem no meio. Mais do que isso, eles representam obstáculos. A sua
adoração a Deus Auma ameaça aos reis que buscam afirmar sua própria divin­
dade. As instituições que honram a Deus precisam ser abandonadas ou des­
truídas. No lugar delas, os reis erigem monumentos intimidantes à sua própria
glória, um sacrilégio terrível (Dn 11.31).
Embora falsos profetas possam proclamar paz para este mundo, não haverá
paz para aqueles que permanecem fiéis a Deus (Jr 6.13-15; 23.16,17). Aqueles que
creem que a hostilidade entre os homens irá cessar estão iludidos. Como Jesus disse
aos seus seguidores: “neste mundo vocês terão aflições” (Jo 16.33). Contudo, os
crentes podem esperar algo diferente do seu mundo porque a esperança chegará a
um mundo que está em guerra. O Deus soberano também determinou isso.
D eus sabe q u e aq u eles qu e são sábios serão recom pensados. Uma vida sábia é
eventualmente recompensada. Em Daniel, os sábios são o povo fiel do Senhor.
Essas pessoas aprenderam a primeira lição da sabedoria: “o temor do Senhor”
(Pv 1.7). Elas imitam o herói do livro e confiam na soberania de Deus. De acor­
do com Daniel 11.32,33, esses indivíduos conhecem o seu Deus, não apenas
intelectualmente, mas por experiência. Porque eles conhecem o Senhor, eles
são capazes de resistir com firmeza às demandas de um governante perverso
como Antíoco e à tentação cultural de fazer transigências. O seu testemunho
causa um grande impacto no mundo ao seu redor e se torna um meio pelo qual
eles instruem a muitos na fé.
Deus recompensa os sábios, tanto neste mundo como para além dele. Ele
os livra dos seus inimigos e da morte. A mensagem de 11.2— 12.4 proclama um
fim para o opressor, assim como as visões anteriores haviam anunciado (7.11;
8.27; 9.27). De acordo com 12.1, as forças celestiais se levantam para lutar em
favor dos servos de Deus e livrá-los do seu sofrimento. Trata-se de um resgate
divino semelhante ao de Daniel na cova dos leões (6.22) e dos seus amigos
322
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

na fornalha (3.25). Os inimigos são derrotados e os fiéis são preservados. Ao


longo das Escrituras hebraicas, Deus e os seus anjos intervêm a favor do Seu
povo em tempos de angústia (2 Rs 6.16,17; Sl 34.7; 35.5,6; 91.11,12). Sempre
que o povo de Deus sofre, o Senhor está envolvido, planejando e trabalhando
para a sua libertação (Ex 3.7-10).
Entretanto, muitos dos sábios são sobrevivem ao ataque violento dos
opressores perversos. Diferentemente de Daniel na cova dos leões, eles caem
pela espada, e a sua vida é ceifada (Dn 11.33). A esperança para eles está em
outro lugar. De acordo com 12.2,3, há esperança para além deste mundo.
Aqueles que dormem no pó da terra acordarão (...) para a vida eterna. A
sua fidelidade não passa despercebida. Ela é recompensada. Eles receberão um
lugar de honra nos céus, onde eles reluzirão (...) como as estrelas. Embora
eles tenham deixado este mundo, o impacto das suas vidas permanece. O seu
testemunho fiel se torna um meio que conduz muitos à justiça.
Eles são recompensados pela forma que viveram para Deus. Uma vida fiel
vale a pena no final, quer esse final chegue neste mundo ou no próximo.
A ideia da ressurreição expressa em 12.2,3 é velada no restante das Escri­
turas hebraicas. Os profetas falam de uma nova vida para a comunidade de
Israel depois do exílio (Ez 37.1-14), e outros esperam por algum tipo de galar­
dão pelas suas vidas justas depois da morte (Jó 19.25-27; Is 53.10-12). Porém,
a principal imagem da vida após a morte é a existência de um lugar sombrio
dos mortos chamados Sheol, onde não há nenhuma recompensa ou punição
particular (Sl 6.5; 30.9; 88.10-12; Ec 9.5,6). Alguns salmistas, contudo, imagi­
nam uma vida significativa com Deus depois da morte, mas apenas em termos
vagos (Sl 16.9-11; 49.15; 73.23-26). O paralelo mais próximo a Daniel 12.2 se
encontra em Isaías 26.19, que proclama: “Os teus mortos viverão; seus corpos
ressuscitarão”.
O judaísmo intertestamentário e o cristianismo primitivo trouxeram mais
clareza quanto ao que acontece depois da morte. Embora os escritores judeus
tenham expressado a esperança da ressurreição (1 En. 91.10; SS 3.1-9; 2 Mac.
7.9), Jesus confirmou essa realidade de uma vez por todas por intermédio da
Sua própria ressurreição. Para os cristãos, esse foi o ato decisivo de Deus em
Cristo, o que encheu as suas vidas de poder. A esperança de todos os crentes
sendo ressuscitados para uma vida de bênçãos se baseou nisso (1 Co 15.12-19).
Paulo estava absolutamente convencido da verdade da ressurreição. Ele disse:
“Eis que eu lhes digo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos
transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última
trombeta. Pois a trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós
323
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

seremos transformados” (v. 51,52). Por causa dessa crença, os cristãos primi­
tivos enfrentaram intensa perseguição dos seus contemporâneos (At 26.6-8),
mas também persuadiram muitos a confiar em Cristo (2.31-33).
Entretanto, Daniel 12.2,3 não fala apenas da ressurreição dos fiéis para a
vida eterna. A passagem também descreve a ressurreição de outras pessoas para o
desprezo eterno. A ideia do julgamento para os pecadores depois da ressurreição
também foi mais bem definida no NT. Jesus confirmou essa realidade quando
disse: “Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que
todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram
o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem
condenados” (Jo 5.28,29). Outros ensinamentos e dizeres de Jesus também
confirmam essa triste verdade (Mt 8.11,12; 13.40-43,47-50; 22.1-14; 25.14-
30,31-46). Em seus últimos capítulos, Apocalipse descreve uma cena dramática
do juízo que acompanha a ressurreição. Assim como em Daniel, todo aquele
cujo nome está escrito no livro, será liberto (Dn 12.1), mas os demais recebem
a punição eterna (Ap 20.12-15).
A referência à ressurreição é uma das razões por que muitos estudiosos re­
lacionam 11.36— 12.4 ao fim da história do homem. De acordo com o restante
das Escrituras, a ressurreição é um evento escatológico. Por si só, isso não é ra­
zão suficiente para presumir que toda a passagem esteja falando desse contexto.
Porém, junto a muitas outras características do texto, esse elemento fornece
uma base para a reaplicação da mensagem ao fim dos tempos. Foi isso que os
escritores do N T fizeram. Eles pegaram as imagens e os conceitos encontrados
em Daniel e empregaram-nos para descrever os eventos do fim dos tempos.
Jesus parece ter sido o primeiro a fazer isso. Ele usou diversas imagens de
Daniel para descrever o final dos tempos (e possivelmente também a devas­
tação de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C.). Assim como em Daniel 11, o
fim será precedido por um período de “guerras e rumores de guerras”, quando
“nação se levantará contra nação, e reino contra reino” (Mt 24.6,7). Então o
“sacrilégio terrível” será colocado no templo, e um período de “grande tribula­
ção como nunca houve desde o princípio do mundo até agora” se seguirá (Mt
24.15,21; Dn 11.31; 12.1).
Jesus termina a sua descrição do fim dos tempos com uma promessa de
enviar “os seus anjos” e reunir “os seus eleitos” (Mt 24.31), o que poderia ser
visto como uma referência a Miguel e à ressurreição em Daniel 12.1-3. Em
todo caso, no final “os justos brilharão como o sol no Reino do seu Pai” (Mt
13.43), semelhantemente àqueles que reluzirão como o fulgor do céu em Da­
niel 12.3.
324
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

O caráter de Antíoco em Daniel 11 fornece um arquétipo apropriado para


o anticristo do NT. Sem dúvida, Paulo tirou algumas das suas descrições da
pessoa que ele chama de “o perverso” de 11.36-39. Ele diz: “Este se opõe e se
exalta acima de tudo o que se chama Deus ou é objeto de adoração, chegando
até a assentar-se no santuário de Deus, proclamando que ele mesmo é Deus” (2
Ts 2.4). João talvez também tivesse tido em mente o pouco caso que Antíoco
fazia dos céus quando ele observou que o anticristo “nega o Pai e o Filho” e
“não confessa a Jesus” (1 Jo 2.22; 4.3). Apocalipse descreve “a besta” com uma
atitude similar com relação a Deus. Na visão de João, a besta “abriu a boca para
blasfemar contra Deus e amaldiçoar o seu nome e o seu tabernáculo, os que
habitam nos céus” (Ap 13.6). Essa passagem também reflete o vocabulário de
Daniel 7.8 e 11.
Como foi observado acima, quando Jesus descreve o fim dos tempos, ele
alude a um tempo de angústia como nunca houve desde o início das nações
(Dn 12.1). O apocalipse expande significativamente esse conceito e o chama
de a “grande tribulação” (Ap 7.14). Trata-se de um período que envolve um
horror sem precedentes na terra, assim como batalhas celestiais (Ap 6.12-17;
12.6-14). Nessa época haverá aqueles que abandonarão a fé e farão concessões
à besta, como aqueles que abandonaram a santa aliança em Daniel 11.30.
Esses são “aqueles que não tiveram seus nomes escritos no livro da vida” (Ap
13.8; Dn 12.1). O conflito é intensificado até culminar com a última batalha
da história, a qual ocorre perto de Jerusalém (Ap 19.19,20; 20.7-10). O rei­
no da besta é interrompido durante esse ataque à cidade santa, assim como
Antíoco chegou ao seu fim enquanto suas tropas estavam atacando Jerusalém
(Dn 11.45). Outros profetas em Israel preveem uma descrição similar do final
da história humana. Eles também anteveem um período de intenso conflito
culminando numa batalha por Jerusalém (Is 26.20,21; Jl 3.9-15; Zc 12— 14;
Ez38—39).
O texto em Daniel 11, então, fornece imagens poderosas para uma des­
crição do final dos tempos. As aplicações de 11.36— 12.4 aos últimos dias no
N T confirmam que esse é um uso válido do texto. Isso não significa que o anjo
tenha necessariamente previsto os eventos daqueles dias, embora alguns enten­
dam o texto dessa forma. Do ponto de vista deste comentário, a visão se refere
principalmente à era de Antíoco. Porém, a reaplicação dos seus padrões e tipos
ao fim da história do homem é apropriada. Essa parece ser a forma como os
escritores do N T usaram o texto.
325
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

3. Esclarecimentos finais (12.5-13)

Por trás do texto


O mesmo contexto histórico do restante da visão se encontra por trás da
sua última seção. De acordo com 10.1, a visão ocorre no “terceiro ano de Ciro”,
um tempo em que a esperança da restauração de Judá estava sendo reajusta­
da. Em 536 a.C., os judeus entusiásticos que haviam retornado do exílio para
reconstruir a sua terra natal estavam enfrentando uma oposição significativa
(veja Por trás do texto em 10.1 — 11.1). As dificuldades da restauração e o fato
de que Judá continuava sob o domínio do império persa indicavam que o perí­
odo de sofrimento do povo de Deus não havia terminado. Aparentemente por
essa razão, Daniel lamentou e jejuou diante de Deus por três semanas (10.3).
Em resposta à oração de Daniel, um visitante celestial aparece de forma
dramática com uma mensagem. Essa mensagem revela detalhes da história no
Oriente Médio desde o tempo de Daniel até Antíoco IV. A descrição de reis e
eventos retrata uma era de conflitos contínuos para o povo de Deus, culminan­
do num “tempo de angústia como nunca houve desde o início das nações” (Dn
12.1). Contudo, uma palavra de esperança de livramento e justiça definitiva
conclui a mensagem celestial.
A última cena da visão responde à mensagem, pedindo mais esclarecimentos.
No curso do diálogo com os seres celestiais, Daniel e o anjo fazem uma pergunta
cada um acerca da mensagem. Eles querem saber quanto tempo decorrerá an­
tes que se cumpram essas coisas extraordinárias e qual será o resultado disso
tudo (12.6,8). A resposta a essas perguntas enfatiza novamente os principais te­
mas da mensagem divina e serve para lhe dar um fechamento apropriado.
Apesar das conexões integrais entre 12.5-13 e o restante da visão, alguns estu­
diosos sugerem que esses versículos representam uma visão separada ou uma adição
posterior ao livro (Hartman e Di Lella, 1978, p. 277,311; Collins, 1993, p. 371).
Eles veem evidências de inserções em dois conjuntos de números em 12.11,12 e de
uma descontinuidade entre as referências à selagem do livro em 12.4 e 12.9. Entre­
tanto, essas duas características podem ser entendidas de outras maneiras.
A resposta celestial às perguntas na cena final também fornece uma opor­
tunidade de resumir os pontos principais de todo o livro. Portanto, 12.5-13 se
reconecta de diversas formas ao restante do livro, particularmente à seção de vi­
sões nos capítulos 7— 12. Referências a “um tempo, tempos e meio tempo” e ao
“povo santo” relembram o capítulo 7. A cena dos seres celestiais conversando
326
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

entre si ecoa uma cena semelhante no capítulo 8, assim como a pergunta sobre
“quanto tempo” e a menção ao “sacrifício diário” sendo abolido. O “sacrilégio
terrível” reaparece em 12.11, lembrando a sua aparição em cada uma das três
visões. A ênfase na purificação e no refinamento do povo [de Deus] também
se conecta à promessa de expiação para o pecado no capítulo 9. Finalmente, a
promessa de justiça definitiva para aqueles que permanecerem fiéis num am­
biente estrangeiro em 12.13 religa [a passagem] à mensagem das histórias nos
capítulos iniciais do livro. Portanto, os versículos 5-13 funcionam como uma
conclusão significativa para o livro como um todo.
A última cena da visão é estruturada por duas perguntas. A primeira pergun­
ta é feita por um anjo e respondida por outro (v. 5-7). A segunda pergunta vem de
Daniel e também recebe uma resposta celestial (v. 8-10). O anjo continua a falar
nos últimos três versículos, refletindo mais profundamente sobre cada uma dessas
perguntas e oferecendo uma esperança pessoal para Daniel (v. 11-13).
No texto

a. A prim eira pergunta (12.5-7)

H 5-6 Essa seção retorna à descrição do contexto da visão. De acordo com


10.1— 11.1, há um anjo diante de Daniel entregando a revelação do céu. Agora
a presença celestial é acrescida de dois outros (v. 5). Esses anjos estão de pé,
cada um em uma das margens do rio, que de acordo com o 10.4 era o Tigre.
O homem vestido de linho (v. 6), que apareceu numa demonstração deslum­
brante em 10.5,6 e provavelmente é aquele que está relatando a mensagem,
continua presente. Ele é descrito como estando acima das águas do rio, apa­
rentemente numa posição especial de autoridade sobre os outros dois anjos.
Um dos anjos que está nas margens do rio faz uma pergunta: Quanto tem­
po decorrerá antes que se cumpram essas coisas extraordinárias ? Quanto
tempo é uma preocupação frequente e legítima daqueles que sofrem aflições
(Jó 8.2; SI 6.3). A questão do tempo é um tema significativo nas três últimas
visões do livro. Em Daniel 8.13, a mesma pergunta é feita, e 9.2 reflete sobre
a duração da desolação de Jerusalém. Cada uma dessas visões enfoca as coisas
extraordinárias que ocorrem em conexão ao “sacrilégio terrível” (8.13; 9.27;
11.31). A expressão coisas extraordinárias (pêlaôt) lembra as ações “terríveis”
(:nipêlãot) e as “coisas jamais ouvidas” (nipèlãot) relacionadas a Antíoco IV em
8.24 e 11.36. Portanto, a duração da perseguição do judaísmo por Antíoco
descrita em 11.29-35 parece ser o motivo da pergunta do anjo.
327
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

■ 7 0 homem vestido de linho dá uma resposta direta (v. 7). Ele ergue ambas
as mãos para o céu e jura por Deus, como alguém que pronuncia um juramento
solene (Dt 32.40). Normalmente, apenas uma das mãos é erguida. Por isso, o fato
de ele ter levantado ambas as mãos acentua a extrema confiabilidade da afirmação.
A referência a Deus como aquele que vive para sempre enfatiza o importante tema
da eternidade do Senhor ressaltado anteriormente no livro (Dn 4.34; 6.26; 7.9).
Como em 8.14, a resposta do anjo à pergunta sobre quanto tempo é direta, po­
rém vaga. Haverá um tempo, tempos e meio tempo. Isso lembra a mesma frase em
7.25, que identifica o período durante o qual “os santos serão entregues nas mãos”
de um rei que emerge da quarta besta. Como naquele contexto, a frase não precisa
ser entendida como um cálculo literal de tempo. Sua conexão velada ao número
três e meio (metade de sete) significa imperfeição. O impacto da frase é sugerir uma
intensidade crescente por um tem po e tempos, antes de um final repentino. O tempo
de angústia chegará a um momento culminante antes de ser interrompido.
O momento culminante que inicia o fim chega quando o poder do
povo santo é finalmente quebrado. O povo santo ( ‘a m q õdes) é um termo
religioso comparável a “os santos do Altíssimo” (ARA) (q a d isê 'e ly ô n in ) em
7.25 e 27 (veja D t 7.26; 14.2; Êx 19.6). Ele se refere aos seguidores da alian­
ça, e não a todos os judeus. O seu poder (Dn 12.7) talvez designe a sua força
política ou militar, mas algo mais parece estar implicado. À luz da frase an­
terior, talvez isso indique a habilidade deles de resistirem às transigências e a
permanecerem fiéis.
Seja qual for o caso, um sentido de total impotência está em vista para
o povo de Deus, já que o pouco poder que eles têm é finalmente quebra­
do. Ele é literalmente d e s p e d a ç a d o , como uma peça de cerâmica atirada no
chão. O texto descreve um momento em que os recursos do homem falham
e somente os recursos divinos permanecem. A essa altura, todas essas coi­
sas se cumprirão. Essa frase lembra a visão do capítulo 9, a qual promete
um tempo para “acabar com a transgressão” (9.24). Cumprirão e “acabar”
derivam da mesma raiz (k ãlâ), que significa usar integralmente ou realizar
alguma coisa. Todas essas coisas que são cumpridas, então, talvez incluam
os pecados daqueles que causam o período de angústia, assim como o sofri­
mento decorrente disso.

b. A segunda pergunta (12.8-10)

■ 8 Como de outras vezes (8.27), Daniel ouve mas não compreende total­
mente (12.8). Embora ele sem dúvida tenha recebido algum entendimento por
328
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

meio da visão, algumas coisas permanecem obscuras (veja 10.1). O seu conhe­
cimento de algumas coisas expões a ignorância de outras.
Sua falta de entendimento leva Daniel a fazer a segunda pergunta dessa se­
ção: Qual será o resultado disso tudo? (12.8). O texto original é literalmente
o q u e d e p o is d essa s co isa s (mâ ’ahãrít ’êlleh). Isso pode ser um pedido por maio­
res explicações sobre a mensagem da visão. Porém, com base na resposta dada,
a pergunta parece ser sobre o que virá em seguida. Uma vez que os eventos
revelados na visão terminem, Daniel quer saber o que mais irá acontecer.
1 9 O anjo lhe diz que nenhuma informação adicional lhe será dada. Ele já
tem tudo o que precisa. O anjo o admoesta a seguir o seu caminho (v. 9). Essas
palavras encorajam Daniel a seguir adiante com sua vida e a ficar satisfeito com
o que foi revelado. A revelação que foi dada e o tipo de vida fiel que ele demons­
trou mais cedo no livro são suficientes para os tempos difíceis que estão por vir.
A fonte da revelação, o “Livro da Verdade” mencionado em 10.21, está selado
e lacrado até o tempo do fim. Ele está sendo preservado para o momento mais
necessário, assim como as palavras reveladas a Daniel (12.4).
■ 10 Em suma, o que Daniel e o seu público mais precisam lembrar é de
uma lição básica de provérbios. As vidas dos sábios e dos ímpios geram frutos
radicalmente diferentes (Pv 10.16). Aqueles que são fiéis serão purificados,
alvejados e refinados (Dn 12.10). Essa lista ecoa 11.35, que usa esses mesmos
termos para descrever o que acontece aos sábios que perseveram durante a per­
seguição de Antíoco. Como um metal na fornalha de um refinador, eles per­
dem as suas impurezas durante as aflições e tornam-se pessoas mais piedosas.
Em contraste, os ímpios (12.10) não mudam. Embora eles sejam expostos
ao mesmo fogo, eles continuarão ímpios e não alterarão o seu caminho. O termo
ímpio (rasa ) denota culpa por um crime. Em referência à visão, os ímpios sem dúvi­
da são aqueles que abandonaram “a santa aliança” (11.30). Essas pessoas ignoraram
as diretrizes de Deus para uma vida fiel, o que as torna culpadas de quebrar a aliança.
O caminho dos ímpios leva à ignorância. Nenhum deles “entenderá”
(12.10 ARC) o que realmente está acontecendo no mundo. A verdade dos
eventos mundiais que é revelada na visão permanece um mistério para eles.
“Mas os sábios entenderão” essas coisas (v. 10 ARC). Os sábios conhecem “o
seu Deus” e resistem “com firmeza” aos tiranos perversos deste mundo (11.32).
Eles se comprometem com a verdade e “conduzem muitos à justiça” (12.3).
Essas pessoas têm uma perspectiva da conturbação deste mundo que os ímpios
não possuem.
329
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

c. Uma recapitulação final (12.11-13)

H 11-12 Os últimos três versículos do livro concernem mais uma vez as duas
perguntas que foram feitas. A questão sobre quanto tempo recebe uma resposta
adicional nos versículos 11,12. Então, o versículo 13 responde à segunda per­
gunta sobre o que aconteceria depois.
Em resposta à pergunta sobre quanto tempo, o texto designa dois pe­
ríodos de tempo: mil e duzentos e noventa dias e mil trezentos e trinta e
cinco dias (v. 11,12). O ponto de finalização desses períodos não é identifi­
cado explicitamente. Podemos presumir tratar-se da conclusão do conflito
mencionado na mensagem da visão. O ponto inicial é depois de abolido o
sacrifício diário e colocado o sacrilégio terrível (v. 11). Os dois eventos
são mencionados em 11.31 e referem-se às ações de Antíoco IV em 167 a.C..
Naquele tempo, ele proibiu os sacrifícios regulares ao Deus de Israel e erigiu
um altar ao Zeus olímpico no templo em Jerusalém (l Mac. 1.41-62). Tanto
Daniel 8.13 como 9.27 referem-se a esses mesmos eventos.
O significado desses números é misterioso, e essa pode ser a sua mensagem.
Embora os estudiosos ofereçam diversas propostas para interpretá-los, nenhu­
ma delas é satisfatória. Os números não correspondem a outros números no
livro ou a qualquer cálculo de eventos. Como outros números no livro têm sido
entendidos simbolicamente, parece melhor fazer o mesmo aqui. Entretanto,
mil e duzentos e noventa e mil trezentos e trinta e cinco não expressam uma
ideia simbólica particular, como os números quatro ou sete.
O simbolismo desses números deveria ser entendido com relação às “duas
mil e trezentas tardes e manhãs” em 8.14 e “um tempo, tempos e meio tempo”
em 12.7. Essas frases também se referem à duração de um período de aflição e
são igualmente evasivas. O objetivo de todos esses números talvez seja anunciar
que um fim está vindo, mas o seu momento preciso não é revelado. As pessoas
podem notar os sinais ao longo do caminho em direção ao fim, “duas mil e
trezentas tardes e manhãs”, mil e duzentos e noventa dias e mil trezentos e
trinta e cinco dias. Quer algo significativo aconteça ou não nessas ocasiões, os
fiéis sabem que estão muito mais perto do fim.
Uma recompensa especial é dada àquele que esperar e alcançar o fim dos
mil trezentos e trinta e cinco dias. Eles são abençoados com a verdadeira ale­
gria de Deus. Aquele que esperar está aguardando por algo com paciência e
confiança, como sugere o termo esperar (hãkã). Como Habacuque, eles espe­
ram pelo cumprimento da revelação de Deus, ainda que ela demore (Hc 2.3).
330
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

A interpretação dos 1.290 e 1.335 dias


Os dois núm eros dados em 12.11,12 tê m deixado os estudiosos per­
plexos ao longo dos anos. Eles não se encaixam a quaisquer outros nú­
m eros dados no livro, tais como "duas m il e trezentas tardes e m anhãs"
em 8.14 e "u m tem po, tem pos e m eio te m p o " em 7.25 e 12.7. Portan­
to, reconciliá-los a esses outros núm eros cria um problem a fundam ental.
Uma form a de encaixar esses núm eros é calculá-los com diferentes ca­
lendários. Três calendários eram usados d urante os tem pos antigos: o calen­
dário lun ard e 354 dias, o calendário lunissolar de 360 dias e o calendário solar
de 364 dias. Todos eles precisavam de ajustam entos periódicos, já que a dura­
ção exata de um ano difere ligeiram ente deles (veja Goldingay, 1989, p. 309).
Outros problem as relacionados a esses núm eros surgem de
acordo com o ponto de vista que se te m do seu contexto. Aque­
les que entendem os núm eros com referência ao fim dos tem pos li­
dam com um conjunto de questões, enquanto aqueles que os veem
dentro do contexto da perseguição de Antíoco enfrentam outras.
Os estudiosos que entendem os núm eros no contexto do fim dos te m ­
pos os associam à duração de uma grande tribulação final. Eles entendem
isso com o aproxim adam ente três anos e meio, o que o livro parece indi­
car com a frase "u m tem po, tem pos e m eio te m p o " em 12.7. As passa­
gens em Apocalipse 11,2 e 12.6 tam bém identificam esse tipo de esquem a
tem poral para uma tribulação final. A diferença de 45 dias entre 1.290 e
1.335 pode ser entendida com o o período entre o fim da últim a batalha e
o estabelecim ento do reino de Cristo no Milênio (Archer, 1985, p. 156,157).
Também existe a teoria de que esses núm eros representam o núm ero de
anos desde Daniel até o fim dos tem pos (Doukham , 2000, p. 186-189).
Os estudiosos que ligam esses núm eros à perseguição de Antíoco preci­
sam lidar com um problem a diferente. Eles não se encaixam ao período entre
o m om ento em que Antíoco erigiu o seu a lta r a Zeus e a purificação do te m ­
plo. Isso durou pouco mais de três anos, ou 1.090 num calendário lunissolar.
Uma form a de lidar com essa questão é relacionar os núm e­
ros a diferentes eventos entre 168 e 163 a.C. Diversos pontos de fi­
nalização tê m sido sugeridos, já que o te xto não identifica esse even­
to em particular. Além disso, uma data a nte rio r para a supressão dos
sacrifícios no te m p lo foi proposta, já que os historiadores não sabem
exatam ente quando isso aconteceu (veja Goldingay, 1989, p. 310).
Outra abordagem do e nte ndim ento dos núm eros é vê-los com o revisões
sucessivas das profecias do livro. Essa teoria sugere que, quando a Revolta
Macabeia não chegou a uma conclusão satisfatória, redatores posteriores
atualizaram o seu final previsto. Quando as "duas m il e trezentas tardes e
m anhãs" ou os 1.150 dias de 8.14 passaram, 1.290 se tornou a nova previsão.
Uma ve zqu ea qu ele te m p o expirou, 1.335foi registrado (Collins, 1993, p. 401).
Uma últim a abordagem é e ntender os núm eros sim bolicam ente.
Como tal, sua relevância talvez tenha sido perdida para nós (Lucas, 2002,
p. 298). A lternativam ente, eles podem pretender significar que o m om ento
preciso da conclusão ainda não foi estabelecido, mas apenas o fim em si
m esm o foi determ inado (Longman, 1999, p. 287).

331
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

H 13 O último versículo do livro responde à pergunta de Daniel sobre o que


aconteceria a seguir. Assim como no versículo 9, o anjo indica novamente que
Daniel já tem todas as informações de que precisa, enfatizando uma porção
significativa da mensagem.
Pela segunda vez, o anjo admoesta Daniel a seguir o seu caminho (v. 13).
Trata-se de um desafio a continuar vivendo uma vida fiel e contentar-se com o
que foi revelado. Então o anjo segue adiante, confirmando a esperança apre­
sentada nos versículos 1-3. Esses versículos descrevem o que acontecerá depois
daquela era de aflição. O anjo diz que você descansará e você se levantará. A
referência é à morte e à ressurreição. Descansará (nüãh ) significa deitar-se ou
acomodar-se, como um pássaro que pousa em algum lugar (2 Sm 21.10). O
termo é usado metaforicamente para a morte, provavelmente se referindo ao
corpo sendo deitado em uma sepultura (Is 14.7; 57.2; Jó 3.13,17). Descansa­
rá também pode referir-se ao descanso espiritual, uma confiança paciente em
Deus (Hc 3.16). Talvez um significado duplo seja possível nesse contexto.
Em todo caso, a promessa de que Daniel se levantará significa que ele será
ressuscitado no final dos dias neste mundo. Naquele momento, ele receberá
a herança que lhe cabe, que são as bênçãos que Deus reservou para ele (Jr
13.25; SI 125.3). De acordo com Daniel 12.2,3, essa esperança é para “aqueles
que são sábios” e inclui “a vida eterna” e um fulgor “como o fulgor do céu”. Essa
esperança não é somente para Daniel, mas para todos aqueles que seguirem o
seu padrão de vida fiel em meio a tempos penosos.
A partir do texto
O segmento final da última visão conclui o livro refletindo sobre as prin­
cipais afirmações e desafios da obra. Ele enfoca questões cruciais para aqueles
que escutaram as suas histórias e visões, os quais são levados a entender que os
crentes vivem num mundo violento. Duas perguntas importantes sumarizam o
pensamento central do livro como um todo: quanto tempo e o que acontecerá
depois. A resposta celestial a essas perguntas solidifica as mensagens centrais
do livro. Em resposta à pergunta sobre quanto tempo, o anjo anuncia que o so­
frimento durará apenas por um período. Quanto à questão do que acontecerá
depois, o céu confirma que o sofrimento não é a última palavra. Ambas as res­
postas deixam algumas questões em aberto. Assim, no fim das contas, elas in­
dicam que o sofrimento demanda uma confiança radical na soberania de Deus.
O sofrim en to dura apenas p o r u m p erío d o . O livro de Daniel deixa claro
que a experiência do homem é cheia de sofrimento. Pessoas violentas criam
332
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

conflito e oprimem outras para avançar a sua ilusão de autossoberania. Elas são
como animais emergindo do caos e promovendo a destruição neste mundo, em
particular sobre aqueles que seguem o Senhor.
Num mundo assim, a duração do sofrimento é sempre uma questão pre­
mente. Quando tempo isso durará? Essa questão está debaixo da superfície de
todo o livro. Quase todos os capítulos são introduzidos com uma referência ao
tempo, e todas as visões enfatizam o tempo de um modo ou de outro. Quatro
reinos se sucedem nos capítulos 2 e 7. Dois reinos emergem e caem no capítulo
8. Uma era de Setenta semanas é dividida no capítulo 9, e uma série de reis se
move pelo palco da história no capítulo 11. Portanto, quando as passagens em
8.13 e 12.6 perguntam explicitamente quanto tempo essas coisas persistirão,
elas simplesmente articulam uma preocupação crucial do livro.
A resposta a essa pergunta talvez não seja o que os leitores gostariam de
escutar, mas trata-se da resposta do Deus soberano. Como confirma a história
da interpretação de Daniel, muitas pessoas gostariam de saber os cronogra-
mas precisos para esse mundo. Mas isso não parece ser o que o Senhor tem em
mente. Respostas como “duas mil e trezentas tardes e manhãs”, um tempo,
tempos e meio tempo, mil e duzentos e noventa dias e mil trezentos e trinta
e cinco dias não oferecem muita precisão, apesar dos esforços inventivos de
correlacioná-las à história do homem.
Entretanto, a réplica de Deus à pergunta fornece uma resposta definitiva.
Ela indica que a aflição não durará para sempre. O Deus da história já determi­
nou um fim para o sofrimento do homem. O número de dias ou anos envolvi­
do talvez seja obscuro para os homens, mas não para Deus. Quer sejam mil e
duzentos e noventa dias ou mil trezentos e trinta e cinco dias, não importa.
O Senhor sabe o tempo certo de dar fim às coisas. Deus tem um “tempo de­
terminado” para lidar tanto com as questões desta terra (11.35; Hc 2.3) como
com as questões relativas ao fim dos tempos (Mt 24.36; 2 Pe 3.8-10).
A resposta divina também confirma que a duração da aflição será menor
do que a sua intensidade faz parecer. Quando o sofrimento parece interminá­
vel, ele cessa de repente. O ponto de interrupção do sofrimento vem quando os
recursos do homem terminam, quando o poder do povo santo for finalmen­
te quebrado (Dn 12.7). Esse é ao mesmo tempo o momento mais opressivo e o
mais libertador. O reconhecimento da inadequação da força do homem revela
a suficiência do poder de Deus. O poder do atormentador termina quando o
povo de Deus é tomado por uma confiança completa nele.
O sofrim en to não é a ú ltim a p a la vra p a ra o cren te. Para o fiel, a fé significa
mais do que confiar no controle de Deus sobre o momento dos eventos neste
333
DANIEL NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON

mundo. Ela também inclui a segurança de que Deus governa para além deste
mundo. Os crentes podem reconhecer com o salmista que “a sua ira [do Se­
nhor] só dura um instante, mas o seu favor dura a vida toda”. Eles podem tes­
tificar que o “choro pode persistir uma noite, mas de manhã irrompe a alegria”
(SI 30.5). Há vida depois da aflição.
De acordo com Daniel 12, a esperança para os crentes inclui a
recompensa por uma vida fiel depois da sepultura. A promessa feita a
Daniel se aplica a todos os que seguem o seu exemplo. Você se levantará
para receber a herança que lhe cabe da parte de Deus (12.13). Essa
herança “jamais poderá perecer, macular-se ou perder o seu valor”
porque ela está “guardada nos céus” (1 Pe 1.4). Essa segurança encoraja
a fidelidade em tempos difíceis. Num mundo onde a injustiça prevalece
com tanta frequência, os crentes sabem que haverá um tempo e um lugar
onde todas as coisas serão acertadas.
Entretanto, a recompensa para o fiel não vem apenas depois desta vida;
neste mundo os crentes também podem esperar mais do que apenas o sofri­
mento. Daniel promete que eles serão purificados, alvejados e refinados
(12.10). A sua fé, que é “muito mais valiosa do que o ouro”, será refinada “pelo
fogo”, o que comprovará que ela é “genuína” (1 Pe 1.7).
Uma das verdades difíceis da vida é que a aflição pode produzir resultados
positivos naqueles que são submissos a Deus. Os cristãos primitivos entendiam
essa ideia e faziam mais do que simplesmente sobreviver às suas provações. Eles
seguiam as instruções de Jesus de considerar a perseguição uma bênção (Mt
5.12) e encorajavam uns aos outros a se gloriarem “nas tribulações” (Rm 5.3).
Eles sabiam que “a prova da sua fé produz perseverança” que leva à maturidade
(Tg 1.3).
Existe ainda mais uma recompensa para aqueles que vivem fielmente. Da­
niel fala que eles entenderão o verdadeiro significado da vida e os planos de
Deus para este mundo (Dn 12.10). Enquanto os ímpios permanecem confusos
quanto a essas coisas, os sábios terão insigh t. Eles não apenas entenderão todas
as coisas, mas saberão o suficiente. Como Daniel, os sábios sabem que Deus
é quem está realmente no controle, e confiam suas vidas a essa verdade. Essa
perspectiva os capacita para uma vida fiel.
O sofrim en to d em a n d a u m a confian ça ra d ica l na soberan ia d e D eus. Nem
a resposta evasiva de Deus sobre o momento nem o Seu esboço geral de espe­
rança respondem plenamente a todas as perguntas sobre o sofrimento neste
mundo. Como Daniel, aqueles que vivem em circunstâncias opressivas querem
saber mais. Eles perguntam: Qual será o resultado disso tudo? (12.8).
334
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO BEACON DANIEL

A resposta direta do Senhor a essa pergunta é dada duas vezes: siga o seu
caminho (12.9,13). O mandamento é simples - constituído apenas por duas
consoantes no hebraico (lêk ) e no entanto profundo. Ele desafia Daniel a
se satisfazer com aquilo que foi revelado, a continuar vivendo uma vida fiel
e a esperar. Em suma, Daniel é encorajado a dar provas tangíveis da sua fé na
soberania de Deus.
Talvez a demonstração mais desafiadora da fé seja esperar. Poucos acham
fácil esperar pelo “tempo determinado” para que o mal cesse, a justiça chegue,
a fidelidade seja recompensada e o fim venha. Entretanto, as Escrituras admo­
estam regularmente o povo de Deus a esperar que o Senhor aja (SI 27.14; Hc
2.3). Eles devem esperar, não de forma passiva, mas confiantes e cheios de ex­
pectativa.
Enquanto os fiéis esperam, eles são encorajados a continuar vivendo vidas
fiéis até o fim (Dn 12.13). De acordo com os capítulos 1—6, o estilo de vida
de Daniel foi envolver-se com a sua cultura, recusar-se a fazer concessões e con­
tinuar a honrar a Deus. De acordo com os capítulos 7— 12, isso incluía orar
fervorosamente pelo seu povo, receber com humildade a revelação de Deus e
buscar diligentemente entender o seu significado. Na conclusão do livro, Da­
niel e todos os leitores da obra são desafiados a manter esse estilo de vida. Eles
são encorajados mais uma vez a confiar no fato de que em todas as coisas, por
meio de todas as coisas e sobre todas as coisas, Deus permanece no controle.
Esse é o maior desafio do livro de Daniel.

335
CENTRAL
GOSPEL
Estrada do G uerenguê, 1851 - Taquara
Rio de Janeiro - RJ - Cep: 22713-001
Tel: (2 1 )2 1 8 7 -7 0 0 0
w w w .editoracentralgospel.com
á^w '
BEACON
COMENTÁRIO BÍBLICO

DANIEL
Envolvente, perceptivo e, academicamente, minucioso e completo, o Novo Comentário
Bíblico Beacon expandirá sua compreensão e aprofundará seu apreço pelo significado e pela
mensagem de cada livro da Bíblia.
Indispensável, esse comentário fornece a pastores, estudiosos profissionais, professores e
estudantes da Bíblia uma interpretação crítica, relevante e inspiradora da Palavra de Deus
no século 21.
CADA VOLUME APRESENTA:
■ TEXTO CONTEMPORÂNEO de notáveis especialistas e PhDs.
■ MATERIAL INTRODUTÓRIO PRÁTICO, incluindo informações sobre autoria,
data, história, público, questões sociológicas e culturais, propósito, recursos literários,
temas teológicos e questões hermenêuticas.
■ EXPLICAÇÕES CLARAS, versículo por versículo, que oferecem uma compreensão
contemporânea e derivada do texto bíblico em sua língua original.
■ ANOTAÇÃO ABRANGENTE dividida em três seções, as quais exploram elementos
por trás do texto, sentidos encontrados no texto e significado, importância, intertextuali-
dade e aplicação a partir do texto.
■ ANOTAÇÕES COMPLEMENTARES que fornecem uma visão mais aprofundada
de questões teológicas, significado das palavras, conexões arqueológicas, relevância
histórica e costumes culturais.
■ BIBLIOGRAFIA EXPANDIDA para um estudo mais abrangente de elementos
históricos, interpretações adicionais e temas teológicos.

JIM EDLIN é professor de literatura e línguas bíblicas e reitor da Divisão de Religião


e Filosofia na MidAmerica Nazarene University. Possui Mestrado em Divindade pelo
Nazarene Theological Seminary. É Mestre e PhD em Teologia pelo Southern Baptist
Theological Seminary. Entre suas publicações, encontram-se Discovering the Old Testament
e Discovering the Bible.

ISBN 978-85-7689-428-5
Estrada do Guerenguê, 1851 - Taquara
CENTRAL Rio de Janeiro - R J - CEP: 22713-001
GOSPEL PEDIDOS: ( 2 1 ) 218 7-70 0 0
impactando vidas
e conquistando vitórias www.editoracentralgospel.com 9 788576 894285

Você também pode gostar