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USP | PPGAV

Disciplina - Modos contemporâneos de produção de imagem poética


Prof.ª Dr.ª Branca Coutinho
Carolina Camargo De Nadai1

RESENHA “Do Sentir”

PERNIOLA, Mario. Do Sentir. Lisboa: Editorial Presença, 1993.

A partir de um panorama, mais especificamente focado no trânsito entre os

séculos XIX e XX, Mario Perniola aborda no livro “Do Sentir” questões sobre como é/está

“o sentir” na contemporaneidade diante de um cenário sociocultural que opera fortemente

pela ideologia e burocracia.

O livro “Do Sentir” está dividido em três partes quais organizam as ideias do já

sentido (I), de uma arqueologia do sentir (II) e do fazer-se sentir (III). Durante tais

passagens podemos citar que a relevância da reflexão está principalmente nos conceitos

de: forma, vida, sujeito, indivíduo, estética, sentir, sentimento, comum, arrebatamento,

paixão, ideologia, burocracia, mercado, política.

Ao expor, principalmente por meios históricos e filosóficos (mais efetivamente na

filosofia Kantiana) um modo de sentir ocidental, percebe-se que o plano qual o autor traz a

                                                                                                               
1
Pesquisadora, bailarina e educadora. Doutoranda em Artes Cênicas pelo PPGAC – USP, mestre em Dança
pelo PPGD – Programa de Pós-Graduação em dança, UFBA – Universidade Federal da Bahia e graduada em
Dança pela FAP – Faculdade de Artes do Paraná.
discussão é o da aisthesis2, afirmando que vivemos numa época estética em que o poder

está no sensível e no afetivo. A estética, ou do grego aisthesis, como também vista em

Jaques Rancière3, é um sistema das formas a priori que vão determinando o que se dá a

sentir. Em “Do Sentir” a estética orienta-se “não por ter uma relação privilegiada e directa

com as artes, mas mais essencialmente porque o seu campo estratégico não é cognitivo,

nem prático, mas do sentir” (PERNIOLA, 1993, p.11).

É nessa direção que o autor abre a discussão em torno do sentir e já pontua como

ele foi transformado em “já sentido”: na sensologia, em razão de operar por meio do que

já foi feito: da burocracia, e do que já foi pensando: da ideologia.

Se antes, o poder estava no saber e no agir, agora ele concentra-se no sentir. Ao

se opor-se a lógica da sensologia, Perniola a compara com a ideologia: se na ideologia

acontecia a socialização dos pensamentos, na sensologia acontece a socialização dos

sentimentos. Socialização difere-se aqui, porém, do entendimento de partilha de um

comum construído, mas se faz em operar a partir de a prioris dados com efeito de

‘comum’ pela sociedade: o já sabido, sentido, feito.

Deste modo, a fluidez, a incerteza, o indeterminável ou indescritível como afetos

próprios do sentir, não podem serem aceitos como forma de sentir na “época da

burocracia”. O sentir em dicotomia com o agir, transforma-se em pura sensologia – o que

podemos entender como a busca pela forma em detrimento de uma forma resultante de

buscas.

É como se a primeira experiência do sentir fosse deslocada para fora de nós, para

aquilo que reflectimos, tateamos, ecoamos, enquanto para nós estaria reservado um

sentir substituto (PERNIOLA, 1993). Este modo de sentir apresenta passado e futuro com

                                                                                                               
2
Estética: palavra que vem do grego "aisthesis" que significa faculdade de sentir ou compreensão pelos
sentidos.
3
RANCIÈRE, Jaques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.
caráter de já sentido, daquilo que já conhecemos os modos de funcionamento e

possibilidades de sensações.

Na metáfora do espelho que reflete o já sentido apresentada pelo autor, podemos

pensar em virar o espelho em diferentes direções e ver à nossa frente ou nosso rastro do

passado, porém, “o presente do espelho é o encontro vertiginoso com um outro espelho, a

instauração de uma visão em abismo, que reproduz ao infinito a especularidade”

(PERNIOLA, 1993, p.21).

A ideia de especularidade ou catóptrica estética enfatiza a estética contemporânea

como o sentir externo ao indivíduo, como reflexo de algo exterior que vem em direção ao

corpo, porém, podemos considerar como na fenomenologia da percepção, de Merleau-

Ponty4 que: o sentir não é o pensar sobre o sentir. E como Perniola salienta:

“Na substituição da ideologia pela sensologia, da burocracia pela


mediocracia, do narcisismo pelo especularismo, dá-se uma verdadeira
subordinação do pensar e fazer em relação ao sentir, que adquire o
poder do conferir aos pensamentos e às ações uma dimensão efectual
que por si sós jamais conseguem atingir.” (PERNIOLA, 1993, p.21).

Ao apresentar a socialização do sentir e o sentir sendo a oposição do agir, o autor

levanta a seguinte questão: Qual é o estatuto da vida estética na época da burocracia? Ao

que o livro parece revelar, o sublime (Kantiano)5 e paganismo seriam escapes para o

verdadeiro sentir, aquele se concentra no tempo presente e na recusa do sentir mercantil

(já sentido). Esse modo de sentir, nos faz abrir portas e cruzar pontes para se acessar

novos caminhos que lidam com as noções de união e separação juntas; tal qual já

                                                                                                               
4
DREYFUS, H. L. The Current Relevance of Merleau-Ponty’s Phenomenology of Embodiment. In: MARZANO,
Michela (org.). Dicionário do Corpo. São Paulo: Edições Loyola, 2012 (p. 39-41).
5
“Para Kant a validade universal e necessária do sentimento de sublime não necessita de legitimação, porque
é fundada a priori na natureza humana: ao contrário do gosto do belo.” (PERNIOLA, 1993, p.78)
refletimos na ideia de partilha do sensível: uma partilha é sempre uma união e uma

divisão.

No que data o século XVII, o sentir não está no indivíduo, mas sim no corpo

político claramente dividido entre súditos e soberanos. Ao trazer Descartes 6 para a

conversa, Perniola enfatiza o sentir privado, advindo do sentir que vem de dentro: a

paixão. Enquanto em Gracián nasce o sentir mundano que vem de fora em forma de

arrebatamento.

Apesar das colocações feitas pelo autor no sentido de evidenciar uma tentativa de

Descartes em pensar corpo e mente juntos, é clara a dicotomia já instaurada, pois ao

querer unir estas entidades, percebe-se como o filósofo estava antes as vendo como

distintas. Afastado de dualismos, todavia, está o oriente em sua serenidade, ou o sentir

meridional em seu transe. Mas como nos alerta Perniola, estes dois topos funcionam

apenas como válvulas de escape provisórias do ocidente. Não conseguimos ainda

revogar o sentir sensológico, mesmo embora pensar e sentir nem sempre sejam

atividades opostas para aqueles que nos transmitiram, em grande parte o conhecimento

filosófico – os gregos.

Ao retornar aos gregos, Mario Perniola se debruça em fontes mitológicas para

pensarmos o sentir cósmico e sereno, da aisthesis ou o sentir possessivo e teatral, da

ménos (mania, erótica, poética, libertadora) e construirmos modos de traçar a re-

existência do sentir: oferecendo a nós mesmos sem nos subordinarmos ao futuro e em

simultâneo, acolhendo o que vem de fora. Ao que parece, este texto vem nos trazer a

possibilidade de pensar o sentir alternativo como um nascimento contínuo em que a

política, a economia, a ideologia e nem a tal sociologia conseguiram anular. Ou melhor,

ele nos traz a possibilidade de sentir.

                                                                                                               
6
“Não nos devemos deixar arrebatar pelo impulso exterior e devemos reflectir com tempo e deixar que o
repouso acalme completamente a emoção!” (PERNIOLA, 1993, p. 94).

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