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ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva
Brasil
Marli B. M. de Albuquerque 1
Francelina Helena Alvarenga Lima e Silva 2
Telma Abdalla de Oliveira Cardoso 2
trados para o trabalho regular, adeptos das ma, uma afeição refletida, meditada, analisada,
danças e das bebidas fermentadas, traiçoeiros, sistemática, um produto da educação Montes-
desconfiados e rebeldes. Quase animais, pre- quieu (1772).
feriam a morte ao cativeiro. A intensa proxi- O desdobramento de tais formulações, de-
midade entre brancos, negros e índios, favo- saguariam nas teses que associaram clima e in-
recia a expansão de uma mestiçagem degene- ferioridade cultural, fatores decisivos para ex-
rada, refrataria à ordem requerida pelas socie- plicar a miscigenação, fato que justificava a
dades civilizadas. idéia da inferioridade racial. Para muitos au-
Assim, o clima foi também um argumen- tores, a mestiçagem favoreceu a moldagem de
to relevante para explicar a triste realidade da uma sub-raça indolente, incapaz para o tra-
miscigenação, pois o calor favorecia a exibi- balho construtivo e reprodutor. Gobineau
ção dos corpos semi despidos, suados; cenas (apud Peixoto, 1975), por exemplo, baseado
do quotidiano que estimulavam uma sensua- nesta idéia profetizou a extinção do Brasil.
lidade não controlada, hábitos que possibili- O setenciamento dos “tristes trópicos”, ex-
tavam, em parte, o contágio e a propagação de pressão usada por Claude Levi-Strauss, foi co-
doenças. Em seu livro, publicado em 1848, Étu- mum nos registros científicos. Citamos como
des sur le Brésil, o médico francês, Dr. Alphon- exemplo os de Bryce apud Peixoto (1975) e
se Rendu, quando do relato que descreve os Buckle apud Peixoto (1975). O primeiro, após
brasileiros, concluía que les jeunes Brésiliens observar a flora brasileira, verificando um
sont souvent pervertis presque au sortir de grande número de espécies vegetais em peque-
l’enfanse; outre l’exemple de leurs pères qu’ils nos espaços e comparando-a com a vegetação
ont sous les yeux, garçons et filles, maîtres et es- gregária da Europa, colocou a seguinte ques-
claves, passent ensemble la plus grande partie tão. Se a flora apresentava tal desagregação, os
de la journée à demi vêtus; la chaleur du climat animais, os homens não seriam também de-
hâte le moment de la puberté, les désirs excités sagregados?
par une éducation vicieuse el le mélange des se- Buckle apud Peixoto (1975), consideran-
xes sont souvent provoqués par les négresses, et do mais o aspecto climático, afirmou que o ex-
ne rencontrent jamais d’obstacles; la débauche cesso de calor e de umidade dificultava no Bra-
s’empare peu à peu de ces enfants et les précipi- sil a constituição de uma civilização avança-
te bientôt dans un abattement physique et mo- da, buscando como prova de sua afirmação, a
ral Rendu (1848). comparação entre os “selvagens” brasileiros,
O julgamento feito por Rendu, fazia parte os incas e os astecas Peixoto (1975).
do imaginário europeu sobre um mundo des- Esta visão fatalista dos habitantes dos tró-
conhecido, misterioso e primitivo, onde os ho- picos pode ser identificada ainda hoje. O ho-
mens agiam segundo o clamor da natureza; mem nordestino, o sertanejo em particular, o
por isso expressavam livremente seus desejos “paraíba”, é tido nos centros urbanos, sobre-
e eram mais afeitos aos prazeres furtivos. A tudo nos do Sudeste, como ser inferiorizado,
própria composição física dos habitantes dos no largo contexto de vida da espécie a que per-
trópicos favorecia uma maior agilidade e sen- tence. Homem – quase se pode dizer – mutante,
sualidade dos gestos e da expressão corporal, o não genético, propriamente, mas ambiental, das
que facilitava o alcance do prazer exigido so- características originais de seus semelhantes. In-
mente pelo corpo destituído de sentimento e ferioridade que se exterioriza no nanismo físi-
espiritualidade, sendo o ato sexual quase uma co e no retardo mental, mas atestada pela des-
manifestação do instinto. nutrição, pelas parasitoses e infecções, sempre
Montesquieu (1772), descreveu para a En- presentes como razões causais da injúria orgâ-
ciclopédia (1762) um verbete onde os habi- nica. Gente de obituário precoce e de saúde cons-
tantes das regiões de clima quente eram apre- tantemente abalada Pereira (1990).
sentados aos europeus como (...) menores, mais De uma certa forma, o sertanejo nordesti-
magros, mais vivos, mais alegres, comumente es- no é a versão atualizada do “Jeca Tatu”, perso-
pirituosos, menos laboriosos, menos vigorosos nagem de Monteiro Lobato, metáfora de um
(...) que os habitantes dos países frios; (...) que Brasil miserável, improdutivo, ignorante,
nos climas muito quentes, o amor é nos dois se- doente, responsável também pela desgraça po-
xos um desejo cego e impetuoso, uma função cor- lítica do país. Para “Jeca Tatu”, o ato mais im-
poral, um apetite, um grito da natureza, (...) que portante da sua vida é votar no governo. Vota.
nos climas temperados ele é uma paixão da al- Não sabe em quem, mas vota Barbosa, (1981).
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fazia de sua aparente passividade a principal As novas perspectivas científicas das pes-
resistência à penetração de corpos estrangeiros quisas praticadas pelos europeus nos trópicos,
no macromundo político econômico, social e sobretudo as realizadas pelos pastorianos nas
cultural. colônias francesas da África e da Ásia, atribuí-
Armados com o saber da microbiologia, os ram grande importância ao clima para a defi-
“missionários” da nova ciência elaboraram nição de patologias, confirmando o termo tro-
pesquisas para tornar visível os agentes pato- pical. Dessa forma, a nosologia relacionada
gênicos das doenças tropicais que poderiam com o clima foi um dos elementos teóricos que
comprometer a ocupação européia. Segundo definiu o modelo de investigação da parasito-
Albert Delaunay (1962) Os brancos não supor- logia fundamentada na microbiologia e, em
tam climas desconhecidos para eles; sobretu- última análise, estabeleceu como “verdades
do porque sofrem com as doenças infeciosas, científicas” as diretrizes teóricas e metodoló-
perdas terríveis. Tem-se a sensação de que to- gicas inscritas no modelo experimental.
da uma patologia específica deve ser criada Para Carlos Chagas (1903) o período da
para que se possa estabelecer, em seguida, uma ciência inaugurado por Pasteur representou a
profilaxia. A bacteriologia , única capaz de re- “renascença da medicina” através da “via segu-
solver dificuldades, se torna então o centro de ra da experimentação”, meio pelo qual se aban-
todas as atenções” (Delaunay, 1962). donaram as “hipóteses arbitrárias” para o ri-
Grande parte dos tratados médicos basea- gor da observação clínica, estabelecendo o de-
dos na teoria microbiana sobre “doenças exó- terminismo dos fenômenos mórbidos. Para tan-
ticas”, associaram os aspectos climáticos dos to, dava-se base anatômica às concepções pato-
países de clima quente com as patologias in- gênicas, estabelecendo, finalmente pela obra ge-
fecciosas e parasitárias. Estes tratados atribuí- nial de Pasteur, a etiologia da moléstia.
ram à ciência microbiológica o poder e a real A medicina experimental baseada na mi-
possibilidade de controlar um universo mais crobiologia era tida como a “chave” com a qual
amplo, interferindo na organização social, im- se abririam as possibilidades de resolução de
primindo políticas, reorganizando a econo- todas as questões ligadas ao entendimento do
mia e reavaliando valores culturais. universo vivo, percebendo-o em suas multi-
No Précis de Pathologie Exotique de Jean- plicidades cíclicas de reprodução da vida em
selme e Rist (1909), o discurso político colo- todas as suas dimensões. A via da experimen-
nialista justifica a urgência das pesquisas cien- tação microbiológica permitia o entrecruza-
tíficas sobre as doenças parasitáriasl O discur- mento de vários domínios do conhecimento
so médico deixa de ter uma conotação do ob- científico capazes de respaldar a eficiência do
servador externo, para ser o formulador de modelo e formular, para o cientista, uma con-
ações precisas sobre os perigos oferecidos pe- cepção otimista frente ao universo microscó-
los trópicos, não só para o colono, mas sobre- pico, agora visível e dizível. Esta certeza nas
tudo, ao projeto colonial. O perigo tropical é possibilidades da experimentação era tradu-
visualizado nas endemias que comprometem a zida por Chagas como uma profunda confian-
energia e a saúde da força de trabalho. ça na “vitória” da ciência no combate às enti-
A velha Europa continua conscientemen- dades mórbidas. A doença vista enquanto mo-
te na conquista de terras inexploradas, para lá léstia tinha agora uma designação de caráter
vende seus produtos (...), mas o branco não po- provisório e caberia à microbiologia fornecer
de se manter neste meio hostil, senão na con- os elementos da “cura infalível” ou as soluções
dição expressa de se conformar estritamente profiláticas das entidades mórbidas dos maio-
com as regras da higiene e da profilaxia(...). res flagelos humanos através dos soros cura-
As grandes endemias tropicais fazem também tivos e pelas vacinas imunizantes.
vítimas entre as raças de cor, onde não há colo- Como observamos, Carlos Chagas atribuía
nização possível, na zona tórrida, sem a aju- à microbiologia a certeza de solução para todas
da da mão-de-obra nativa. Dela, na maior par- as questões apresentadas como desafio ao do-
te, depende o sucesso. Ela é o braço que deve mínio de conhecimento das ciências da saú-
executar obedientemete, o que o cérebro do de. Imbuído dessa convicção, Chagas dirigiu
branco concebeu(...). O conhecimento das seu interesse para as investigações das doen-
doenças dos países quentes aparece portanto ças parasitárias, primeiro a malária e depois a
como uma necessidade pública. (Jeanselme & tripanossomíase americana, entidade mórbi-
Rist, 1909). da por ele definida como patologia específica,
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