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ALAGBEDÉ, O FERREIRO
Há um itan Iorubá que conta que, durante a criação do mundo, Ogum com o candomblé: iniciado na da serra, da solda ou das bafora-
foi encarregado de criar uma longa corrente de ferro que ligava o Orum religião aos oito anos de idade das de charuto. Quando sai dali,
(o céu) ao Aiyê (a terra), permitindo que os outros orixás descessem para por sua avó materna, Barba- como ele explica, aquele artefa-
ra do Sacramento, Zé Diabo to já não é um “pedaço de ferro
participar do ato de criação. é também considerado um qualquer”; já carrega consigo o
Assim que Obatalá criou a humanidade, os homens não sabiam o que grande babalorixá. jabá de Ogum, a força daquele
fazer na Terra. Ogum então desceu novamente ao Aiyê e ensinou-os os Regido pelos orixás Oxalufã e orixá. Torna-se divino, sagrado,
artístico.
segredos da forja. Com isso, eles puderam construir suas ferramentas Omolu, ele, no entanto, tem
para caçar, arar o solo, erguer casas e aldeias, guerrear e se proteger. todo seu caminho ligado a Quando sai da oficina, a fer-
Ogum. Ogum é seu “compadre”, aquele ramenta vai para um terreiro de can-
Ogum, então, passou a ser conhecido como Alagbedé, o orixá ferreiro, que lhe dá caminho para que ele possa domblé, onde será atravessada por novas
senhor das técnicas e das tecnologias. trabalhar com o ferro: “Como todo meu forças e entidades, passando por outros
caminho é o ferro, é o jabá de Ogum, en- secretos rituais e tornando-se o próprio
É por isso que se diz que toda a criação, toda invenção passa pelo camin- tão se segue pelo caminho de Ogum. Oxalá orixá materializado. Recentemente, em
ho de Ogum – e é por isso, também, que ele é o senhor dos caminhos. nunca foi ferreiro, Omolu também nunca um desvio de seu caminho sagrado, essas

E
foi, aí não, aí eu sigo o caminho de Ogum. ferramentas também passaram a ocupar
ntre muitos povos da África Oci- idos por seus pais, avôs e mestres. É nes- É ele que me dá força pra bater no ferro, pra museus, coleções e galerias de arte, at-
dental, aqueles que dominavam sa Ladeira, no arco de número 26, que seguir meu caminho”, diz. Sua ligação com ravessando novos e curiosos percursos. As
a arte dos metais eram consider- trabalha José Adário dos Santos, mais Ogum é tão estreita que ele só produz fer- ferramentas de Zé Diabo são conhecidas
ados figuras de muito prestígio, conhecido como Zé Diabo. ramentas para entidades que possuem o ao redor do mundo, embora esse recon-
temidos e respeitados na sociedade. Os José chegou na Ladeira com apenas 11 ferro enquanto sua matéria-prima, como hecimento ainda não faça jus à grandeza
ferreiros detinham poderes sagrados, anos de idade, em 1958, para trabalhar o é o caso de Exu, Ogum, Oxóssi, Ossain, de sua obra. Uma obra que, assim como a
ligados à fertilidade, à realeza e à trans- na oficina de seu mestre e mentor, Max- Oxumarê, Omolu, Tempo, entre outros. de muitos artistas afro-brasileiros, expres-
formação da natureza. Por meio da met- imiano Prates, localizada no arco 18. sa a potência da resistência criativa dos
alurgia, eles realizavam a comunicação Juntos, eles fabricavam portões, agogôs e
A FORJA DOS ORIXÁS descendentes de africanos neste lado do
entre os homens e os de- pequenas ferramentas de Atlântico, assim como a capacidade destes
Martelo, bigorna, tenaz e forja são os
uses. Seus saberes eram se- santo, esculturas de ferro povos de se reinventar e produzir uma arte
elementos fundamentais para o tra-
cretos e envoltos em rituais que realizam a mediação contemporânea, sublime e plural.
balho do ferreiro. O ferro se transforma
e cuidados. Passados de pai entre os homens e os deuses
no contato com o fogo, tornando-se Cada ferramenta produzida por Zé Dia-
para filho, esses saberes se no candomblé. Foi levando
maleável o suficiente para ser “dobrado” bo é única, feita para mediar a relação
mantinham ao longo das algumas dessas esculturas
com as marteladas apoiadas na bigorna. particular entre a pessoa e seu orixá. Por
linhagens de ferreiros, que para serem vendidas no an-
A tenaz serve para segurar o ferro quente, isso, ele só trabalha por encomenda, se
preservavam e aprimora- tigo Mercado Modelo que
mas também para direcionar as formas recusando a produzir artefatos padroni-
vam esse conhecimento. José ganhou o apelido que
que serão esculpidas pelas marteladas. zados, já prontos. Singulares, cada ferra-
o acompanha desde então.
Os ensinamentos de Ogum Na forja, os ferros se transformam em menta passa por um processo de criação
Ele conta que costumava
atravessaram séculos e con- lanças, pássaros, facas, espadas, rabos, específico: desde o princípio, o ferreiro
carregar as ferramentas de
tinentes, e, após um dos tridentes e tudo mais que a imaginação deve intuir a forma de cada orixá, ex-
Exu em uma caixa, e, quan-
episódios mais trágicos da e a destreza do ferreiro permitirem. plorando criativamente as possibilidades
do chegava ao mercado, o
história da humanidade, a escravidão, oferecidas pelo ferro. Invenção e tradição
povo danava a falar: “olha lá o diabo”, Mas fazer uma ferramenta de orixá é uma
acabaram vindo parar neste lado do At- caminham juntas, num mesmo proces-
“venha cá, diabo”. Quando ouvia a afron- atividade que exige mais do que destreza
lântico. Aqui, africanos e seus descen- so criativo. Cada detalhe irá expressar a
ta, ele se irritava e começava a confusão. técnica. Requer uma sensibilidade para
dentes ajudaram a forjar, com suas forças força intensiva do orixá, inscrevendo no
Foi assim que o apelido acabou pegando, poder captar os desejos da entidade e dar
de trabalho, seus saberes e tecnologias, artefato os mistérios característicos da re-
e passou a ser adotado e respeitado: José vida àquele artefato, carregando-o de axé.
aquilo que hoje conhecemos como Bra- ligião. É isso que faz de Zé um verdadeiro
Adário dos Santos, o Zé Diabo. É por isso que, antes de começar as ativi-
sil. Forçados a arar uma terra que não descendente de Ogum.
lhes pertencia, a construir estradas e casas dades, Zé Diabo pede licença aos santos e
Com a morte de seu mentor, Zé Diabo entidades que habitam a oficina, além de
que não podiam habitar, a erguer templos
passou a ocupar o arco 26, onde perman- estar sempre com um charuto à mão para
e igrejas alheias aos seus próprios cos-
ece desde então. Especializou-se na pro- poder deixar sua cabeça boa para o trabalho. Alágbedé, o ferreiro dos orixás é um projeto fi-
tumes, e mesmo a guerrear batalhas que
dução de ferramentas de santo e agogôs, nanciado pela Fundação Gregório de Mattos at-
não lhes diziam respeito, eles no entanto A construção de uma ferramenta, em
fabricados para a capoeira, ravés dos recursos disponibilizados pela Lei Aldir
resistiram como puderam: se aliaram aos geral, parte de um anseio da
para o candomblé ou para Blanc e foi realizado com o objetivo de registrar e
povos originários dessa terra; formaram própria entidade em materi-
os blocos afro da cidade, salvaguardar um importante patrimônio cultural
quilombos, terreiros e comunidades; alizar-se no mundo. Primeiro
em especial os Filhos de das religiões de matriz africana no Brasil: o ofício
incitaram revoltas e revoluções e rein- a ferramenta é desenhada em
Gandhy. Com o desen- dos ferreiros de orixá. Através da constituição de
ventaram suas próprias formas de vida. um pedaço de papel, num um acervo da obra de José Adário dos Santos, da
volvimento de sua obra,
E foi assim que os segredos de Ogum caderno velho ou no próprio realização de uma exposição virtual, da produção
Zé criou um estilo artístico
puderam se manter vivos neste lado do chão da oficina. Em seguida, de um documentário sobre seu processo criativo
próprio, baseado nos cos-
Atlântico, nos terreiros, nos quilombos e Zé Diabo prepara os materi- e desta cartilha educativa, esperamos estar con-
tumes do candomblé, nos
nos pequenos ofícios e saberes que ainda ais, medindo e cortando tubos, tribuindo para a preservação desse patrimônio
cânones da arte Iorubá e
hoje são passados de geração em geração barras e chapas de metal. De- tão valioso. Para encontrar todas as ações desen-
nas diferentes expressões
entre o povo negro do Brasil. pois de dobrados no fogo, na volvidas pelo projeto, acesse o nosso site:
possibilitadas pelo ferro.
forja, esses materiais são então
O COMPADRE DE OGUM Zé Diabo pertence a uma linhagem de juntados por meio da solda, montando
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Em Salvador, no coração da Roma Negra descendentes de Ogum. Seus pais, avós assim a ferramenta. Por fim, o artefato é
brasileira, na Ladeira da Conceição da e bisavós, todos tinham alguma relação lixado, envernizado e colocado para secar
na frente da oficina. FICHA TÉCNICA
Praia, habitam e trabalham hoje alguns com esse orixá. É por isso que, mais que Coordenação Geral | Alana Silveira
dos descendentes de Ogum. São ferreiros, um ofício, ser ferreiro para ele é uma es- Ao longo de todo esse processo, Zé Dia-
Foto: Kleber Azevedo

Pesquisa | Lucas Marques


serralheiros, marmoristas e demais artífic- pécie de sacerdócio, um caminho. Seu bo conversa com a ferramenta, que vai Produção | Tainana Andrade
es que resistem à especulação imobiliária processo de aprendizagem técnica com adquirindo cada vez mais vida através e Maria García
por meio de ofícios que foram transmit- o ferro acompanhou sua aprendizagem das marteladas na bigorna, do barulho Design | Edson Ikê

Um agradecimento especial aos mestres artífices da Ladeira da Conceição da Praia e a todas e todos que participaram das mobilizações para a permanência dos artífices na ladeira. O Centro Antigo Vive!

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