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A Prática da Vida intelectual - Aula 1 1

A Prática da Vida Intelectual


Mário Chainho

Aula 1 – Introdução e Método da Confissão

Índice
1. A referência ao COF
2. A quem se destina este curso?
3. Que tipo de vida intelectual buscamos?
4. Qual o motivo da escolha do Método da Confissão como foco do curso?
5. O que é o Método da Confissão?
6. É possível ensinar o Método da Confissão?

Resumo

Neste curso pretendemos usar inúmeras sementes deixadas pelo


filósofo Olavo de Carvalho no Curso Online de Filosofia, mas não se trata
de forma alguma de uma iniciativa ligada formalmente ao mesmo. O curso
destina-se a quem tenha interesse pela vida intelectual, não
necessariamente como uma carreira profissional, mas como a aquisição de
uma perspectiva ampla, pessoal e objectiva sobre a cultura, a sociedade, a
política, etc. O foco do curso é o método da confissão, cuja aplicação é o
pináculo da vida intelectual. O método consiste no testemunho sincero,
feito em solidão, que provoca uma abertura para a realidade de modo a
que esta fale através de nós. O ensino do método da confissão consistirá no
trabalho à volta dos seus vários elementos - sinceridade, solidão e
testemunho - de forma concertada e com integração da personalidade e do
conhecimento.
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Olá, sejam bem vindos a este curso intitulado “A Prática da Vida


Intelectual”. Nesta aula introdutória vou tentar dar uma ideia daquilo que
pretendemos fazer aqui. Em primeiro lugar, veremos qual é a relação que
este curso possui com o Curso Online de Filosofia, também conhecido
como COF, do professor Olavo de Carvalho. Depois veremos qual é o
público alvo deste curso e que tipo de vida intelectual temos em vista. Por
fim, falaremos um pouco à volta do Método da Confissão, porque é algo
que está intimamente ligado aos nossos propósitos.

1. A referência ao COF

A ideia inicial para o título deste curso não era “A Prática da Vida
Intelectual” mas sim “A Prática do COF”. Contudo, embora a inspiração
inicial não se tenha alterado, este título poderia originar inúmeros mal-
entendidos. Eu estou a mencionar isto porque serve de pretexto para tentar
esclarecer a relação que existe entre este nosso curso e o Curso Online de
Filosofia, porque seria uma questão que mais tarde ou mais cedo iria
aparecer.
Se eu usasse termo “COF”, ou “Curso Online de Filosofia”, isso
poderia dar a ideia de se tratar de alguma iniciativa oficialmente ligada ao
curso de Olavo de Carvalho, o que não é o caso. Estou aqui por minha
iniciativa, conta e risco. Ninguém me disse que eu devia fazer isto, ou que
uma iniciativa assim é necessária, mas é algo que foi bastante reflectido.
Quando faço esta gravação já decorreram cerca de seis meses desde que
comecei a trabalhar especificamente para este curso, mas antes passei
vários anos observando e reflectindo sobre o que se poderia fazer para
ajudar as pessoas interessadas numa vida de estudo que não passa pelos
meios oficiais.
Outro motivo para não chamar a este curso de “A Prática do COF” é
que poderia ficar subentendido que se trataria de uma versão resumida do
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COF ou de um acompanhamento sistemático das indicações práticas dadas


pelo professor Olavo, mas nós aqui temos um objectivo bastante mais
limitado, sobre o qual falarei adiante. Contudo, vou utilizar muita coisa que
aprendi com o Olavo de Carvalho. Para além da inspiração dada pelo
exemplo da sua docência e da sua personalidade, vou usar muitas sementes
que ele foi plantando ao longo de centenas de aulas na forma de temas,
problemas, dificuldades originadas pelo estudo, exercícios, etc. Quem
acompanha o trabalho do filósofo sabe que estas sugestões são de muitos
tipos e em número quase inabarcável. Quem tem dúvidas pode tentar
conferir o número de livros e de autores que Olavo de Carvalho colocou em
circulação no Brasil,
O Curso Online de Filosofia encontra-se a funcionar desde 2009 e
conta já com mais de 500 aulas, que são ministradas semanalmente. É o
único lugar onde o filósofo Olavo de Carvalho expõe todo o seu
pensamento, com os seus fundamentos e implicações. Repito que não vou
tentar fazer aqui uma versão resumida e muito menos uma alternativa ao
COF. Quem quer realmente saber aquilo que pensa Olavo de Carvalho e
quer ter um contacto directo com o seu filosofar tem que se inscrever no
COF. Não existe alternativa. Não basta ler os seus livros e obviamente que
não é suficiente ler uns comentários dispersos do seu perfil no Facebook,
embora rotineiramente apareçam alguns indigentes mentais tentando fazer
uma refutação completa do seu pensamento nesta base.
Eu sou aluno do Curso Online de Filosofia desde 2009, mas já antes
acompanhava o trabalho de Olavo aqui desde Portugal. E o facto de ter
iniciado este curso como professor não quer dizer que deixei de ser aluno.
Este projecto que aqui está sendo inaugurado não marca o início da minha
“independência intelectual”, não é o dia em que eu comecei a pensar pela
minha própria cabeça, como dizem alguns comediantes involuntários. Uma
árvore não cresce libertando-se do solo mas fincando de forma mais firme
as suas raízes nele. Talvez a maior parte das pessoas tenha por imagem de
independência a ave que sai do ninho e começa a voar, daí serem repetidos
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tantas vezes lugares comuns como “sair do ninho”, “ganhar asas”. São
símbolos que têm algum valor, na medida em que podem abrir algumas
perspectivas, mas acho que não são os mais adequados para representar a
vida intelectual. A ave tem uma vida breve, voa para todo o lado mas acaba
por ser escrava do ninho que ela mesma construiu. Sai do ninho dos
progenitores para se colocar noutro ninho, pelo que o seu vôo é uma
liberdade ilusória. Quem já acompanhou a vida de várias aves pode ver
nelas um modelo da escravidão, especialmente aquelas espécies que caçam
insectos ou que se alimentam de néctar das flores. É uma existência breve e
de esforço contínuo, especialmente quando têm crias. Diríamos que elas
fazem todo esse esforço em nome da continuação da espécie, que é uma
coisa que elas nem sabem o que é. Claro que há aves especiais, como o
albatroz, que pode voar continuamente por muitas horas e até dormir
enquanto voa. Quando procuramos símbolos temos de ter a mente aberta.
Parece-me que a imagem da árvore em crescimento é mais adequada
para simbolizar a vida intelectual. As raízes são todo o legado do passado,
que não é apenas um suporte inicial mas a base que se deve aprofundar
cada vez mais. Não basta dar uma lambida nos clássicos e seguir adiante
em busca de originalidade, como por vezes se ouve dizer, mas os clássicos
são algo que temos que revisitar constantemente porque contém sempre
algo que nos passou despercebido inicialmente.
O crescimento da árvore é lento e inicialmente ela é muito frágil e
pode ter um fim rápido (uma cabra come uma árvore jovem como se fosse
um arbusto, ou então é o solo que é pobre, ou ela não recebe luz suficiente).
O começo do estudo também é assim, porque nós podemos nos dispersar
com facilidade, ou podemos não dar suficiente atenção e cuidado, pelo que
dali não vai sair grande coisa.
Mas depois da fase inicial, a árvore desenvolve-se de forma quase
imparável e resiste a inúmeras dificuldades. Tal como acontece com a
árvore, o pensamento deve ter um tronco sólido, que se divide em vários
ramos. A árvore oferece protecção a diversas criaturas e pode dar muitos
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frutos. E convém só comer os frutos maduros. Nós vemos muita gente


tentando vender fruta verde (que são as famosas opiniões concebidas à
velocidade da luz) como se fosse uma iguaria da mais alta qualidade (ou
seja, opiniões vendidas como se fossem a expressão mais pura da verdade).
Mas daqui só pode resultar uma indigestão.
A relação entre este curso e o Curso Online de Filosofia pode se
resumir brevemente: vamos aproveitar várias sementes lançadas pelo
professor Olavo, obviamente que iremos recorrer também a outras fontes.
Como Olavo de Carvalho explicou certa vez, o Seminário de Filosofia, do
qual o COF faz parte, é um lugar, por assim dizer, onde são deixadas várias
sementes, que podem ser aproveitadas de formas diversas. Seminário vem
do latim seminarium, cuja raiz etimológica é semen, que significa
“semente”. É curioso que um dos significados da palavra seminário é
“viveiro de plantas”. Quem já viu sabe o que é. Estes viveiros são caixas,
ou algo assim, onde muitas plantas começam a germinar num espaço muito
pequeno e têm que ser rapidamente transferidas para um espaço maior ou
não vão sobreviver, porque são muitos espécimes competindo por um
terreno escasso e que muitas vezes nem tem profundidade suficiente para
lançar raízes. Então, é necessário pegar naquelas pequenas plantas, colocá-
las num solo favorável na época certa do ano, saber como regá-las, cuidar
dos parasitas e das ervas daninhas, saber qual é a altura certa para colher os
frutos, recolher as sementes e conservá-las. No final, vamos reiniciar o
ciclo, voltar a plantar. Tratar do terreno antes de plantar é uma fase
essencial. Com as sementes intelectuais passa-se algo semelhante.
Neste curso vou tentar plantar algumas das sementes que o professor
Olavo deixou aos seus alunos e fazer com que elas se devolvam.
Obviamente que não temos tempo para usar todo o material que o professor
Olavo legou, além de que eu não me sinto seguro para repetir tudo aquilo
que ele ensina, sendo uma mera repetição seria obviamente desnecessária.
Poderia tentar reproduzir aqui as ideias do professor Olavo sobre certos
temas ou filósofos. Contudo, obviamente que não basta ter compreendido o
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que ele disse sobre estas coisas para falar delas como a mesma autoridade,
mas seria necessário um esforço investigativo próprio. Um professor deve
saber muito mais do que aquilo que transmite aos alunos, por regra. Por
vezes ele pode transmitir algo que ainda está apenas começando a estudar,
mas nesse caso ele avisa. Assim, vou querer falar apenas daquilo que tenho
alguma segurança ou, pelo menos, onde tento buscar alguma, embora a
segurança em si mesma não seja um critério definitivo. Certamente não
faltam pessoas que estão absolutamente seguras de ideias completamente
erradas. A segurança que nos interessa não é tanto a de um castelo
muralhado que possa resistir a todas as investidas mas é antes a segurança
de um exército em movimento e que tenta sempre obter um mapeamento
correcto do território adiante que lhe permita avançar sem cometer grandes
erros.
A imagem das sementes também deve evocar a muitos a Parábola do
Semeador, que na realidade se refere àquele que semeia a palavra. A
semente não pode frutificar rodeada de pedras ou de espinhos ou num solo
que não permita lançar raízes. Por isso eu disse que estava aqui por minha
conta e risco. Se este projecto não der os resultados pretendidos, a culpa
não é do professor Olavo mas minha, porque não soube dar melhor
tratamento às sementes que ele legou.
O destino ideal de toda a semente é vir a cair em terreno fértil, caso
contrário não cumpre a sua função. Claro que algumas sementes também
podem ser usadas para alimento e é sempre bom ter algumas em depósito.
Contudo, se o único fim que damos às sementes é o armazenamento, em
termos de conhecimento isto corresponde a ficar apenas por uma fase de
impressões. Para quem teve a sorte de encontrar um bom professor, este
período de novas impressões é muito cativante porque temos alguém que
ilumina a realidade com a sua palavra e faz-nos em alguma medida
partilhar da sua clarividência, mas é apenas “em alguma medida”. O foco
de luz, o poder iluminante não passa automaticamente para nós, ainda que
nós tenhamos um contacto prolongado o professor. Os exemplos disto são
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abundantes. São as sementes que florescem rapidamente mas o solo, ou


seja, a alma, não tem profundidade suficiente para nela serem lançadas
raízes. Portanto, é um conhecimento superficial, que pode até servir para
obter algum brilho nas discussões de Internet e, nos dias de hoje, é
suficiente para obter sucesso como comentador de jornal ou de televisão.
No entanto, estas pessoas jamais poderão dar verdadeiras sementes a outras
porque elas mesmas jamais chegam à fase de dar fruto. O que elas podem
fazer é gerar uma legião de imitadores, e estes vão gerar outros imitadores
de qualidade cada vez mais inferior.
Este tema pode ser muito aprofundado e já tenho prevista uma aula a
respeito, sobre o problema da relação entre mestre e discípulo.

2. A quem se destina este curso?

Apesar de eu esperar que este curso possa ser de alguma ajuda para
os alunos do COF, não é este o único público alvo. Genericamente, é um
curso para quem se interessa pela vida intelectual, mas não pensada
necessariamente como uma profissão, até porque não temos diplomas para
oferecer. Falo de pessoas que querem escrever, que se interessam por
História, filosofia, literatura, ou que simplesmente queiram estar mais
conscientes do estado actual de coisas. E, isto é importante, o público alvo
são aquelas pessoas que já perceberam que a realidade não é esgotada por
nenhuma perspectiva escolar mas que é necessário obter uma visão mais
abrangente, mas que não pode ser um olhar distante. Queremos aqui
desenvolver um olhar pessoal, embora sem perder a objectividade.
Não vou partir do princípio de que as pessoas que frequentam este
curso já estão familiarizadas com o trabalho de Olavo de Carvalho. Fazer
essa selecção prévia teria a vantagem das pessoas já terem uma ideia do
tipo de vida intelectual a que me refiro, e também iria evitar um sem
número de mal-entendidos. Contudo, fazer essa triagem não só iria excluir
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potenciais alunos que se poderiam revelar de grande valia como implicaria


grandes dificuldades práticas. Desde logo, como fazer uma triagem de
alunos? Não temos um ensinamento oficial e nem uma logística necessária
para fazer provas de admissão, confirmar documentos, etc. E mesmo que
tivéssemos não acho que fosse de grande interesse. Por outro lado, mesmo
entre os alunos do professor Olavo, a experiência mostra que os
conhecimentos variam muito de pessoa para pessoa e não podemos dizer
que todos os alunos sabem isto ou aquilo. Então, o que vou fazer é explicar
alguns pontos do trabalho do professor Olavo quando isso for necessário.
Se eu assumir que as pessoas já sabem tais e tais coisas do
pensamento de Olavo de Carvalho, isso pode levar a resultados desastrosos.
Não posso assumir que as pessoas já sabem o que é o círculo de latência, o
intuicionismo radical, a Teoria do Império, a Teoria dos Quatros Discursos,
a paralaxe cognitiva e assim por diante. Uns saberão, talvez até de forma
mais aprofundada do que eu, mas outros não.
Por outro lado, o conhecimento não é uma coisa que adquirimos e
possuímos de forma estável e definitiva. Só existe conhecimento em acto e
aquilo que um dia chegamos a saber são como passos na areia da praia, que
vão sendo lentamente apagados pelo vento ou que podem ser varridos
repentinamente por uma onda maior. Ou seja, não é apenas o esquecimento
que tenta apagar o conhecimento, o que nem sempre é mau porque pode
criar uma oportunidade para entrar uma coisa melhor, mas também
podemos perder repentinamente noção de muita coisa. Não falo apenas nos
casos de algum acidente ou de doença mas sobretudo de certas decisões e
atitudes que tomamos, normalmente para ficarmos de bem com o mundo,
que repentinamente abaixam bruscamente o nosso nível de consciência.
Fórmulas repetitivas podem substituir num estalar dedos conjuntos
enormes de conhecimento e, como aquilo sustentava mecanismos de
entendimento, também deixamos de perceber uma data de relações que
antes eram óbvias para nós. Falo de “nós” para que não se pense que só
acontece aos outros. Todos podemos cair nisto. Não é um problema de falta
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de ginástica mental, é uma questão moral séria.


O que é um conhecimento efectivo? Não é um dado armazenado
algures na nossa memória mas é um símbolo que já se integrou na nossa
percepção, no nosso horizonte de consciência, nas nossas reacções, nos
nossos processos mentais, etc. Existem algumas fases na obtenção de
conhecimento. Primeiro ocorre a absorção através da leitura, audição ou
visualização. Segundo, temos a consolidação do entendimento, que já é um
trabalho interno mas que pode ser atestado quando tentamos explicar aquilo
a um terceiro ou respondemos a questões. Terceiro, termos uma fase de
aplicação a situações concretas.
Em geral, isto é o limite em termos académicos. Contudo, aquilo que
acima chamei de conhecimento efectivo exige ainda uma quarta etapa, que
é a “pessoalização” do conhecimento, ou seja, a sua integração na nossa
pessoa. Quanta da nossa visão já foi modelada por aquele conhecimento?
Assumimos a responsabilidade associada a saber tais coisas? O que
estamos dispostos a sacrificar para não mancharmos aquele conhecimento?
Em suma, o conhecimento é verdadeiramente nosso quando estamos
disposto a lutar por ele como um cavaleiro medieval estava disposto a
combater para defender a honra da sua dama.
Usando estes critérios, o número de conhecimentos efectivos que
possuímos é ínfimo. Possuímos, sim, uma grande quantidade de
conhecimentos “operacionais”, que nos possibilitam desempenhar muitas
tarefas, mas são como que conhecimentos exteriores a nós, dado que não
foram reflectidos para se integrarem na nossa pessoa. Ou seja, são
conhecimentos apenas dirigidos para “fora” e cujo entendimento está
limitado a circunstâncias acidentais onde eles são usados. Por exemplo, o
conhecimento usual da linguagem normalmente está limitado ao contexto
onde ela é usada. Quem não faz um esforço de aprofundamento da
linguagem através da literatura, da História, da cultura e de algumas áreas
de conhecimento, não apenas vai ter um vocabulário muito limitado e
“unilateral” - a palavra x significa y - como vai ter também um
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entendimento limitado dos modos de utilização da linguagem. Hoje em dia,


quando as pessoas não dão à linguagem um uso utilitário, ou estão a
vitimizar-se, ou estão a insultar alguém, ou estão a fazer algum exercício
medonho de adulação tentando fazer-se escravos de alguém. O indivíduo
com uma linguagem pobre está cego em relação a diversas dimensões da
existência. Sobretudo estarão para ele ocultos aqueles planos de realidade
que estão para lá dos limites da linguagem humana, a respeito dos quais
apenas nos podemos referir alegoricamente ou remetermo-nos ao silêncio.
Com as ideias filosóficas passa-se algo semelhante, até porque no
fundo ainda estamos dentro do domínio da linguagem. Aquilo que
retiramos das ideias filosóficas inicialmente é apenas uma compreensão
esquemática, no máximo associada a alguns exemplos que podem não ser
os mais adequados. Por exemplo, Olavo de Carvalho fala da paralaxe
cognitiva como o deslocamento entre o eixo da construção teórica e o eixo
existencial onde essa construção foi feita, pelo que se tal coisa fosse
verdade não poderia ser dita. Mas como muitos entendem o conceito?
Percebem que tem algo a ver com contradição, pelo que numa primeira
aproximação poderíamos incluir a paralaxe cognitiva na “família das
contradições”. Não está propriamente errado fazer isto porque conhecemos
sempre algo desconhecido a partir de algo conhecido que se parece com
aquilo. Contudo, a pressa em tirar conclusões e o atractivo das discussões
de Internet leva a uma associação automática da paralaxe cognitiva à
contradição lógica. Então, surge uma série de indivíduos com uma nova
arma de arremesso: sempre que aparece alguém que diz algo incoerente ou
com algum elemento de contradição vão dizer que aquilo é paralaxe
cognitiva.
Existem outras confusões um pouco mais refinadas, como achar que
paralaxe cognitiva é uma confusão entre o ideal e o real, mas também não
se trata disso. Claro que as pessoas fazem inúmeras confusões entre ideal e
real, feitas por ingenuidade ou por maldade, por exemplo, as famosas
comparações entre os belos ideais do socialismo e as tristes realidades do
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capitalismo. Mas isto é uma confusão que qualquer um que pode fazer,
basta um pouco de amor à causa, ao passo que a paralaxe cognitiva só é
aplicável a quem fez uma construção teórica, que construiu um edifício
inteiro, uma filosofia, não se trata da mera construção de um argumento.
Por exemplo, as filosofias de Descartes ou de Kant não são meros
argumentos soltos mas pretendem dizer algo sobre a realidade, sobre como
nós conhecemos. Assim, podemos confrontar a sua doutrina com as
condições necessárias para ela ter sido elaborada, e se elas vão em sentidos
opostos podemos dizer que estamos em presença de paralaxe cognitiva.
Mas para chegar a este ponto é preciso não apenas conseguir entender uma
filosofia em profundidade mas também fazer uma análise existencial
associada ao acto de produzir essa filosofia, o que não é uma tarefa para
amadores. No meu caso, nunca fiz um trabalho assim e nem acho que vá
estar preparado para fazê-lo nos próximos anos, mas apenas segui algumas
análises feitas pelo professor Olavo de casos de paralaxe cognitiva e acho
que consigo identificar se alguém está preparado para fazer isso ou não.
Bem mais fácil do que identificar uma paralaxe cognitiva é sinalizar
uma “contradição performativa”, que é apenas uma contradição formal
entre o que é dito e o acto de dizer tal coisa. Algumas contradições
performativas são óbvias e funcionam como piadas, como o “paradoxo do
mentiroso” (“eu minto sempre”), ou dizer “ninguém fala”, porque para eu
dizer tal coisa já tenho de estar falando. Outras contradições performativas
podem levantar prolongadas discussões, como a discussão sobre a
propriedade de si mesmo, que ao ser negada já de alguma forma se afirma a
si mesma. O sujeito diz “eu não tenho propriedade sobre mim mesmo”, ao
que alguém poderia replicar como piada: “mas quem é você para afirmar tal
coisa?” E temos a própria negação do princípio de não contradição (algo
não pode ser e não ser a mesma coisa ao mesmo tempo, sob o mesmo
aspecto), que é uma espécie de contradição performativa “original”
indicada por Aristóteles na Metafísica (1006 A1 – 1006 A28), embora não
com esse nome1.
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A contradição performativa refere-se sempre a um acto de discurso


atomístico, podendo nem sequer revelar uma contradição de fundo mas
somente um problema de expressão. Eventualmente, uma contradição
performativa pode ser um indício da existência de paralaxe cognitiva, mas a
relação entre as duas coisas não é obrigatória e não há uma relação
necessária entre as duas coisas.
As discussões à volta de alguma contradição performativa podem se
prolongar indefinidamente, como acontece com qualquer discussão, porque
se vão juntando argumentos de um lado e do outro e depois são os próprios
argumentos a favor e contra que passam a ser o foco da discussão. Estes
argumentos podem estar formulados de forma ambígua e nenhum esgota
todos os pontos de vista. Todo o argumento é sempre uma oportunidade
para o adversário lançar uma contestação. Muita gente tem a pretensão, tão
utópica quanto o socialismo, de arranjar um argumento arrasador que vá
calar a boca do adversário. Isso até pode acontecer em certas circunstâncias
de discurso, mais por uma questão psicológica do que pela qualidade da
argumentação, mas mais tarde ou mais cedo pode sempre aparecer alguém
com novos argumentos e isto nunca tem um fim garantido.
Uma forma desonesta mas eficiente de destruir a reputação de uma
boa teoria é, em vez de examiná-la directamente, ir atrás dos argumentos
em sua defesa e procurar os raciocínios mais imbecis para destruí-los. É
garantido que as melhores teorias têm sempre em sua defesa argumentos
fracos ou mesmo errados, porque muitas pessoas simplesmente gostam de
teorias mas não têm capacidade de compreendê-las. Se você está no
caminho da desonestidade, basta encontrar um mau argumento em defesa
de alguma teoria, apontar os erros e dizer que foi a teoria original que foi
derrubada. E se você está no caminho da honestidade intelectual também
pode e deve fazer a mesma coisa algumas vezes mas como exercício,
porque a exploração das possibilidades de erro e de engano é parte
integrante da busca da verdade.
Além disso, vejo muita gente inteligente e bem intencionada cair
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nestes truques e perderem o foco naquilo que é importante. Elas querem


apenas fazer o que é certo, achando que isso elimina automaticamente a
possibilidade do erro. A possibilidade do erro nunca é eliminada, mas pode
ser minimizada conhecendo a natureza do erro, contudo, não é o erro do
adversário, é o meu erro! Nem tudo o que é falso é fruto de desonestidade
intelectual. Se olhar para mim mesmo com honestidade e paciência
consigo perceber várias causas do erro: pode ser uma falta de atenção, ou
uma pressa em chegar a conclusões, ou o desejo de agradar a alguém, ou o
receio de desagradar a certa pessoa ou grupo, ou algum mecanismo mental
automático que me encaminha sempre para as mesmas conclusões e me
impede de ver outras, e assim por diante. Se procurar as causas do erro
apenas no outro, não vou encontrar nada, porque eu não sei o que se passa
dentro dele. Então, vou dizer que ele é desonesto, ou que é o socialismo
que o leva a ver as coisas assim ou qualquer coisa do género. Claro que as
ideologias são grandes fontes de erros, mas não a única causa, caso
contrário não teriam existido erros de julgamento antes do surgimento das
ideologias, e sabemos que sempre existiram. O que é interessante é que se
eu passar alguns anos investigando em mim as causas do erro vou
conseguir também perceber, se tiver indícios suficientes, o que levou outras
pessoas também ao erro. Eventualmente, poderei ajudá-las em alguma
medida, se elas estiverem dispostas a isso. Se não apresentarem nenhuma
abertura, esqueçam, é quase impossível ajudar quem não quer ser ajudado.
No máximo podemos tentar mostrar erros de figuras públicas, até humilhá-
las, mas aí o foco não é tanto ajudá-las mas limitar os danos que elas
podem provocar em terceiros. Mas, quem pretende fazer isto, também
precisa estar preparado, não basta acrescentar mais uma opinião.
É preciso ver uma coisa: argumentar não é difícil. As crianças antes
de saberem ler e escrever já argumentam, e em moldes que são
essencialmente os mesmos dos adultos treinados. O que é difícil é colocar o
instinto lógico ao serviço do conhecimento da realidade. Se não
desenvolvermos o amor à verdade e à realidade, o vício da argumentação e
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o vício de dar opinião vão mandar em nós. Então, vamos perder um tempo
precioso discutindo questões periféricas ou mesmo defendendo ideias
erradas apenas porque elas parecem estar associadas a ideias que nos são
queridas.
Esta aparente divagação ainda está dentro do âmbito do ponto que
nos debruçamos, ou seja, quais são as pessoas a quem este curso se dirige?
Tenho em vista pessoas que pretendem ter uma visão ampla e pessoal sobre
a realidade, que tenham amor por ela, mas também pessoas dispostas a
corrigir os seu vícios cognitivos. Uma coisa está implicada na outra.

3. Que tipo de vida intelectual buscamos?

Vou tentar explicar o motivo deste curso se intitular “A Prática da


Vida Intelectual”. A explicação pode desapontar um pouco porque não
afirmo que vou ensinar o que é realmente a vida intelectual e dizer que tudo
o resto que se faz por aí não presta ou que é imoral. Este é um tipo de
discurso que hoje está muito em voga, porque as pessoas sentem-se
enganadas em relação a muita coisa mas o interesse tem que ser
essencialmente positivo. A ideia não é fazer os potenciais interessados
abandonar o que estão a fazer para virem estudar comigo. Um dos meus
princípios de conduta é de só abandonar algo a que me comprometi fazer
quando tal se justifica por motivos muito fortes. Perder o interesse não é,
geralmente, um motivo forte, mas revela apenas uma mentalidade fraca.
Podemos entender por vida intelectual diversas coisas. Veremos
apenas algumas. Desde logo, vida intelectual pode ser o trabalho
académico, feito em universidades, institutos de pesquisa, etc. Obviamente
que não é isso que vamos fazer aqui, até porque grande parte da vida
académica depende da interacção com pessoas do mesmo meio. O trabalho
académico tem algumas virtudes e algumas limitações e não podemos
obviamente desprezá-lo totalmente porque muitas das fontes que usamos
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provém dele, embora o nosso foco aqui seja diferente. O trabalho


académico é importante para nós não apenas como fornecedor de conteúdos
e de alguns métodos mas também nos dá os padrões a usar para escrever
algum livro, ainda que não seja um livro técnico, caso isso seja do nosso
interesse.
Também podemos entender a vida intelectual no sentido do padre
Sertillanges, como uma vocação à qual se orienta toda a vida, e isto já vai
além das exigências profissionais académicas. Podemos ainda pensar no
Mortimer J. Adler e na vida intelectual composta de educação liberal e da
leitura dos grandes clássicos de modo a que o leitor fique a par da Grande
Conversação, que é um diálogo imaginário entre as grandes mentes da
humanidade. O modelo do Mortimer J. Adler tem em vista a preparação do
cidadão médio para entender as grandes correntes históricas, políticas,
sociais, etc. de modo a poder fazer escolhas em consciência. O próprio
trabalho de Olavo de Carvalho vai nesse sentido mas com um objectivo
mais ambicioso, juntando também elementos do Pe. Sertillanges, pelo que
já não se trata de educar o cidadão médio mas formar uma elite intelectual
que esteja não apenas habilitada a compreender o que se passa mas que
tenha também um poder criador e delimitador do pensável e do
racionalmente executável para todas as classes, sem determinar o que cada
pessoa faz especificamente.
Todas estas coisas nos são simpáticas, quando feitas com
honestidade, mas aqui temos um objectivo mais limitado: o Método da
Confissão, tal como o denomina Olavo de Carvalho. Claro que o professor
Olavo exemplifica nas suas aulas este método melhor do que eu poderia
alguma vez fazer e ele já deu ao longo dos anos inúmeras dicas e exercícios
de como colocar o método em prática. Contudo, nos últimos dez anos tenho
tenho observado que os alunos do COF assim como os leitores do professor
Olavo têm muita dificuldade em colocar o método da confissão em prática,
ou talvez não tenham mesmo dado a devida atenção a ele, quando me
parece ser a coisa mais importante. Então, tenho reflectido bastante não
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apenas sobre o método em si, e tentado aplicá-lo, mas tenho pensado em


formas de ajudar as pessoas a abraçá-lo e a torná-lo uma parte da sua vida
intelectual.
Tendo este objectivo traçado, podem surgir imediatamente três
questões. Primeira: qual o motivo de escolher o método da confissão como
foco deste curso? Segunda: o que é o método da confissão? Terceira: é
possível ensinar o método da confissão? Talvez a ordem das questões não
pareça muito adequada mas já veremos o motivo desta escolha.

4. Qual o motivo da escolha do Método da Confissão como foco do


curso?

Pode parecer estranho tentar explicar a escolha do Método da


Confissão como foco do curso antes de explicar no que consiste esse
método, embora muitas pessoas já saibam do que se trata. Mas faço isso
apenas para dar ênfase à seguinte ideia: não há nada mais elevado numa
vida de busca do conhecimento do que a aplicação eficiente do Método da
Confissão. Digamos que é o pináculo da vida intelectual. Não estou aqui a
incluir os conhecimentos que se possam obter em estados místicos, sobre
os quais tenho autoridade para me pronunciar. O Método da Confissão é
aquilo que nos permite dar uma voz e uma imagem quase palpável a um
conhecimento que já temos em nós e, na sequência, conseguimos ver algo
mais, algo que antes nos estava oculto. Dito de uma forma simplória: digo
o que sei, logo, sei mais. Isto pode parecer um tanto obscuro mas tentarei
deixar um pouco mais claro adiante.
Mas, poderão questionar alguns, o ponto máximo da vida intelectual
não é o que foi simbolizado por Arquimedes quando exclamou “Eureka!”
(“Descobri!”)? O “Eureka” e o Método da Confissão não são
incompatíveis, mas a descoberta de Arquimedes é como um momento
iluminador em que, num repente, aparece a solução de um problema
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importante. O momento da “Eureka!” não é apenas um acto de cognição,


como a compreensão de uma frase de um livro, mas é um desbravar de
terreno, por assim dizer. Temos aqui um problema para o qual ninguém
encontrou ainda a solução e há um momento pioneiro em que aquilo se
resolve na mente. Nisto está presente até um elemento social, ou seja, é
algo que acontece primeiro a um indivíduo e que depois indica o caminho
para vários, que não terão de fazer o mesmo percurso, porque entretanto foi
descoberto um “atalho”, que é a solução do problema.
O Método da Confissão tem alguns pontos de contacto com isto mas
é substancialmente diferente. É significativo que ele tenho surgido primeiro
no seio da filosofia grega e depois tenha recebido um aprofundamento com
interioridade da confissão cristã. A “Eureka!” é por vezes simbolizada pela
lâmpada que se acende, ou seja, “antes não via, agora vejo”. O Método da
Confissão tem também a ideia de visão mas não de uma passagem abrupta
das trevas para a luz. Já existe uma realidade diante de nós, com a qual
contamos e temos de lidar com ela de alguma forma, com preces,
adivinhos, pitonisas, mas é essencialmente misteriosa. Podemos invocá-la
mas ela só vem até nós quando quer e nas suas condições. A filosofia
grega, com a ideia de verdade como desvelamento, aletheia, é um
progressivo retirar do véu que encobre a verdadeira realidade. Já não é
necessário fazer uma invocação mágica, porque se os homens estiverem
despertos conseguirão alcançar a realidade profunda, o Logos, diria
Heráclito. Sócrates e Platão perceberam que há um conhecimento que já
possuímos de alguma forma e basta purificarmos a alma para nos
“recordarmos” dele. Aristóteles concentrou-se em purificar o próprio
conhecimento dos sábios. Assim, a dialéctica, que era para Sócrates e
Platão uma psicagogia, ou seja, de um guiamento de almas, passou a ser
com Aristóteles uma arte de arbitrar discussões e uma espécie de lógica da
descoberta. Com Santo Agostinho de certa forma voltamos à ideia da
purificação da alma, agora já com vários séculos de experiência de prática
da confissão, que revelaram novas dimensões da alma (e que de certa forma
A Prática da Vida intelectual - Aula 1 18

continuam por revelar para a maior parte dos homens). Agostinho era
demasiado pessoal para a sua época e não teve o impacto que merecia.
Contudo, era mais uma etapa em o Método da Confissão se revelava a si
mesmo. Não é apenas uma busca de conhecimento, o que seria a busca de
um momento de “Eureka!”, mas é também busca transformadora de
autoconhecimento que ocorre mediante o testemunho.
O mundo moderno vive numa espécie de tragédia cognitiva, que é o
seguinte. Embora boa parte dos trabalhos de investigação académicos
sejam uma espécie de engenharia da desonestidade, não podemos negar que
existem muitas mentes brilhantes buscando sinceramente conhecimento nas
mais diversas áreas, em investigações que às vezes envolvem gastos
astronómicos de dinheiro, como acontece em física, por exemplo. Basta
pensar no custo de um acelerador de partículas. A tragédia é que estes
investigadores brilhantes e esforçados são quase cegos para aquele mar de
conhecimentos que estão prestes a ser conhecidos, que estão como que sub-
conhecidos, e que é próprio do método da confissão revelá-los. Digamos
que as mentes brilhantes, como desconhecem totalmente o método da
confissão, são como crianças que desconhecem quase tudo sobre si mesmas
e, por isso, são facilmente manipuláveis. Tudo o que é autoconhecimento
ficou entregue a embusteiros, aos engenheiros sociais, aos ideólogos, ao
pessoal da Nova Era, etc. Eles usam isto para efeitos de manipulação e por
vezes entregam algumas migalhas ao público, que fica com a sensação de ir
descobrir algo importante mas nunca oferece aquilo que promete. Este
autoconhecimento de quinta categoria acaba por ser uma escapatória para o
cientificismo reinante mas que não causa qualquer mossa a este, é apenas
uma válvula de escape.
A humanidade viveu durante milhares de anos sem saber o que era
uma partícula sub-atómica ou desconhecendo qual era a estrutura do ADN,
nem sequer era conhecida a existência da circulação sanguínea até há
poucos séculos atrás. Quer dizer, já existia desde a Antiguidade a ideia de
algum tipo de circulação do sangue mas só no séc. XVII apareceu a
A Prática da Vida intelectual - Aula 1 19

primeira descrição realista, já nos moldes aceites actualmente, por William


Harvey, embora não fosse ainda uma descrição completa. Então, muitas
descobertas científicas que hoje se consideram fundamentais são
relativamente tardias em termos históricos. Contudo, os seres humanos
sempre terão que saber como se relacionar com as coisas, consigo mesmos
e com o conhecimento que possuem. Se não houver um número suficiente
de pessoas que clarifiquem estes aspectos, eles vão ser o monopólio das
pessoas mais desonestas e mal-intencionadas que já existiram, que os irão
apresentar de uma forma totalmente retorcida e só o Método da Confissão
pode romper com a muralha de opacidade erguida pelos “confusionistas”.

5. O que é o Método da Confissão?

Olavo de Carvalho por vezes denomina o Método da Confissão de


método do testemunho, porque ele consiste no acto de testemunhar, da
forma mais sincera e despida, aquilo que sabemos sobre o assunto que
investigamos. Estamos apenas nós diante do objecto e perante o fundo
insubornável da nossa consciência, ou perante o observador omnisciente,
sem qualquer rede de apoio institucional, grupal, familiar, “temporal”, etc.
Falo em apoio “temporal” no seguinte sentido: embora estejamos
condenados em grande parte a usar a linguagem do nosso tempo, se temos
o vício de usar os “chavões” da moda, toda a nossa percepção está
inquinada, limitada, não porque os chavões são necessariamente falsos mas
porque compactam grandes pedaços da realidade, tornando opacos muitos
elementos e relações, e isto naturalmente impede um testemunho sincero. O
chavão é um apelo camuflado a uma autoridade grupal, é aquilo que “toda a
gente sabe”, mas isto invalida a verdadeira confissão. A confissão não é
apenas dizer aquilo que eu sei mas é o testemunho daquilo que realmente
estou vendo neste momento e da forma como vejo. Isto é importante,
porque há muitas coisas que sabemos de alguma forma, que podemos
A Prática da Vida intelectual - Aula 1 20

recuperar com um pouco de estudo, mas isto não é suficiente para a


confissão, porque tem que ser um conhecimento em acto, por isso usei o
verbo “ver”, que dá a ideia de algo presente, ainda que seja apenas para o
olho da nossa alma. Claro que também posso confessar algo do qual não
tenho a certeza absoluta, mas aí tenho que juntar aos dados o estado de
dúvida, as possibilidades latentes, etc.
O que acontece quando prestamos este testemunho sincero em
solidão? Alguns dirão que apenas vamos obter uma visão mais clara dos
nossos conhecimentos. Se tal acontecer, é positivo e suficiente para a maior
parte dos casos, e até seria um “desperdício de recursos” ir além disso em
muitas situações, mas ainda não estamos a aplicar o Método da Confissão
de forma correcta. Só podemos dizer que o método realmente funcionou
quando a nossa consciência fica, na sequência do testemunho, preenchida
de novos elementos que não estavam nela, e que também não vieram da
memória e nem são apenas uma conclusão lógica de um raciocínio. Ou
seja, é uma “recompensa” pela nossa sinceridade, um algo a mais que não
tínhamos e que passamos a ter, um acréscimo de visão.
O que aconteceu quando o nosso testemunho nos ofereceu apenas
uma visão mais clara do conhecimento mas não nos deu nenhum retorno,
nenhum acréscimo? Aconteceu que o conhecimento estava presente a nós
mas nós não estávamos presentes ao conhecimento. O nosso testemunho foi
insuficiente para nos abrir para a realidade de modo a que esta começasse a
falar através de nós. Podemos também pensar na confissão religiosa, no
exame de consciência como um “diálogo” com Deus, mas isto levanta uma
série de dificuldades e questões para as quais não me sinto habilitado a
falar. Apenas vou abordar o Método da Confissão no sentido cognitivo e na
medida daquilo em que me sinto habilitado.
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6. É possível ensinar o Método da Confissão?

A pergunta parece respondida de antemão porque se o curso tem


como foco o Método da Confissão é porque obviamente é possível ensiná-
lo. Pelo menos devia ser essa a minha convicção, em termos lógicos.
Contudo, a resposta não é assim tão simples, embora não seja nenhum
enigma. Vejamos a questão olhando para o próprio o método.
Resumindo, o Método da Confissão é o testemunho sincero feito em
solidão que fornece um retorno, um conhecimento extra. Este retorno, esta
recompensa é algo que não depende de nós, ou mais exactamente, não é
uma coisa que controlamos e parte do sucesso do método depende de
sabermos abdicar do controlo no momento certo. O retorno ou recompensa,
o novo conhecimento é aquilo que afere se aplicamos o método de forma
acertada ou não. Existem três elementos do método que podemos ver se
podem ser ensinados e que devem se interligar naturalmente: o testemunho,
a sinceridade e a solidão.
Relativamente à sinceridade, não me parece que possa ser
directamente ensinada. A sinceridade é um acto, é uma atitude que
decidimos tomar ou não. Ninguém pode obrigar outra pessoa a ser sincera.
Podemos desmascarar a falta de sinceridade de outra pessoa mas os
resultados são imprevisíveis. Em alguns casos a pessoa pode ganhar
vergonha na cara e decidir melhorar, mas noutros ela pode até piorar,
porque ficou com raiva. Podemos desmascarar um farsante que ocupa um
certo cargo público, mas em geral não é uma coisa que se vai fazer com um
aluno ou amigo. Então, o que podemos fazer? Por um lado, podemos tentar
dar um exemplo de sinceridade que estimule outros a fazer o mesmo, ainda
que não o façam de forma completamente reflectida mas mais por uma
espécie de impregnação. Por outro lado, podemos lançar desafios e criar
situações que levem a pessoa a aferir a sua própria sinceridade, porque é
isto que importa. Só a sinceridade pode aferir a sinceridade e é preciso
confiar que as pessoas tenham algum fundo íntegro.
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Ainda em relação à sinceridade, um professor não pode apenas dar


soluções mas tem de colocar um problema nas mãos do aluno. É o próprio
aluno que tem de decidir se vai colocar ou não a sinceridade em prática e
vai ainda ter de avaliar se o fez de forma correcta. Inicialmente o professor
pode até perceber melhor que o aluno se este está a fazer um esforço
sincero ou não, mas isso não importa porque cada um tem que aprender a
cuidar de si mesmo. Eu sei que há muita gente que não pensa assim. Muitos
acham um professor é uma espécie de pai substituto que tem de mastigar a
comida por ele, entender as coisas no lugar do aluno, dar-lhe uma
compreensão instantânea e ainda lhe dar de presente algum reconhecimento
público. Se alguém procura algo disso aqui obviamente está no sítio errado
porque eu apenas tenho para oferecer sangue, suor e lágrimas.
Em relação à solidão, depende também de uma atitude de aceitá-la e
de buscá-la, ao invés de nos escondermos no meio de algum ruído grupal.
Isto tem analogias com a busca da sinceridade referida anteriormente. Por
um lado, podemos dar um exemplo de como conseguir viver em solidão e
de como não ficar perdido em momentos em que não temos ninguém a
quem recorrer. Por outro lado, podemos tentar sensibilizar as pessoas para
certos aspectos relacionados com a solidão e desfazer mal-entendidos.
Desde logo, desfazer a identificação entre solidão e ser atirado para o
“nada”. Outra situação é a daquelas pessoas que buscam a solidão porque
perceberam que estavam rodeadas de idiotas e não querem mais contacto
com “essa gente”. Contudo, continuam a imaginar debates com os antigos
amigos, agora rivais. Obviamente que isto é apenas uma solidão física, não
é a solidão perante a própria consciência, menos ainda perante o observador
omnisciente. Esta é a solidão real que nos interessa no Método da
Confissão. Então, o que podemos fazer é chamar atenção para estes e
muitos outros aspectos relacionados com uma “verdadeira solidão” de
modo a que os alunos estejam melhor habilitados a sondarem as suas
almas. Mas tal como acontece com a sinceridade, ninguém pode obrigar
outra pessoa a fazer tal sondagem. Cada um é que vai ter que olhar para si
A Prática da Vida intelectual - Aula 1 23

mesmo e tomar as decisões em conformidade.


Eu vejo frequentemente no Facebook pessoas que sentem que devem
tomar certas decisões importantes mas não têm coragem de fazer isso em
solidão. Então, aparece o sujeito fazendo uma sondagens entre os amigos:
“o que é que vocês acham que devo fazer nesta situação?” Ou seja, ele quer
que sejam outros a tomar uma decisão por ele, porque se muitas pessoas
forem da mesma opinião, aquilo adquire mais força e autoridade. E se
correr mal ele pode sempre jogar as culpas nos outros. Talvez ele já tenha
decidido mas não quer arcar com a responsabilidade, então, parte em busca
de uma confirmação grupal para pode dividir responsabilidades.
Obviamente que uma pessoa que está neste estado de dependência do
“grupo” não está qualificada para aplicar o Método da Confissão, mesmo
que seja um génio.
Mas as pessoas sempre pediram ajudam a um amigo ou a alguém de
confiança, pelo que pedir um conselho no Facebook não será apenas uma
forma moderna de fazer a mesma coisa? Não, definitivamente não. O
conselho que pedimos a um amigo é algo feito num ambiente controlado,
onde há uma relação de confiança e o amigo não vai decidir por nós, pode
sugerir algumas coisas mas vai sobretudo ajudar a clarificar ideias para,
quando voltarmos à nossa solidão, estarmos melhor habilitados a decidir.
Isso nada tem a ver com lançar uma questão para um bando de
desconhecidos, em que por regra os primeiros a responder são os que
perdem menos tempo a reflectir. Vão aparecer respostas tolas, outras mal-
intencionadas. Mas mesmo já sabendo de antemão que a plateia é um grupo
de irresponsáveis, na melhor das hipóteses, o sujeito coloca nas mãos dela
decisões que podem influenciar todo o curso da sua vida. Isto mostra o
horror que certas pessoas têm ante a perspectiva da solidão. Claro que
podemos colocar questões a uma plateia semi-anónima em certas
circunstâncias, por exemplo, quando desconhecemos sobre certo assunto e
pode ser que apareça alguém que dê algum esclarecimento, mas isto é outra
coisa.
A Prática da Vida intelectual - Aula 1 24

Finalmente, dentro dos elementos do Método da Confissão, temos o


testemunho, que tem que ser prestado num quadro de solidão e sinceridade.
Estas coisas têm obviamente que ser articuladas. Por exemplo, uma
tentação que pode ocorrer a todos é testemunhar não aquilo que sabemos
mas ostentar conhecimento. Mas isto, mesmo se feito em solidão, já
pressupõe uma certa plateia imaginária a quem queremos impressionar e no
caminho já deixamos a sinceridade de lado. A articulação dos vários
elementos do método confessional - psicológicos, morais e cognitivos -
significa também que nele está implicado um esforço de integração da
personalidade e do conhecimento.
Mas o testemunho considerado em si mesmo tem também alguns
componentes próprios. Implica, desde logo, uma certa disciplina da
atenção. Implica também uma memória ordenada, para o qual contribui
muito a cultura literária e o saber usá-la na prática. Uma coisa básica que
muita gente parece ignorar é que a memória funciona de forma sequencial e
que usa certas âncoras. E temos também a questão da expressão, porque se
não tivermos algum domínio da linguagem o Método da Confissão não se
completa.
Grande parte do que vamos fazer neste curso anda à volta da cultura
literária, entendida em sentido lato. É preciso fazer duas ressalvas.
Primeiro, não estamos aqui para fazer concorrência a ninguém e quanto
mais os alunos já tiverem lido e tido aulas a este respeito, melhor. O que
vamos dar aqui é um enfoque específico, que é sempre o de servir o
Método da Confissão. Segundo, não é suficiente para os nossos fins
ficarmos apenas com a cultura literária em sentido estrito, ou seja, apenas
no domínio da ficção e da poesia. Não basta ficarmos pelo discurso poético
mas temos que ter alguma convivência com os outros discursos (retórico,
dialéctico e lógico). Isto é um ponto demasiado complexo para podermos
abordar agora e que será visto noutra aula.
Este esboço de programa acaba por ter elementos que também estão
presentes na educação liberal, no Pe. Sertillanges, na própria vida
A Prática da Vida intelectual - Aula 1 25

académica e, claro, no curso Online de Filosofia do professor Olavo, de


onde retiro grande parte das sugestões. Isto é necessariamente assim porque
estamos dentro do domínio genérico da vida intelectual. Não vamos
inventar a roda, que há quem diga que foi uma péssima invenção, aliás,
porque até se tornar numa coisa funcional foi uma grande dor de cabeça.
Vamos apenas dar um enfoque especial, que é o do Método da Confissão,
para o qual o professor Olavo já chamou muitas vezes atenção mas penso
que merece um reforço dedicado e é para isso que estamos aqui.

Notas:

1. Para quem busca alguma referência rápida, pode encontrar alguma


informação sobre a contradição performativa nos links abaixo.

https://damherzog.blogspot.com/2015/12/contradicao-
performativa.html
https://olavodecarvalhofb.wordpress.com/2016/12/21/paralaxe-
cognitiva/

Olavo de Carvalho sobre a paralaxe cognitiva:

https://www.youtube.com/watch?v=q5hmgtIhMoc

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