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CAPÍTULO DOIS:

Defeitos na estrutura dos materiais


Materiais de Construção Mecânica I 38
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 39

Capítulo 2:
Defeitos cristalinos e discordâncias nos metais
Conforme visto no item anterior, os metais se combinam formando uma
estrutura cristalina e ordenada, normalmente do tipo CCC, CFC ou HC (fig.
1.22 a 1.24). É possível que os átomos metálicos se arranjem ordena-
damente, sem falhas em pequenas regiões, conforme ilustrado na figura 2.1.

Figura 2.1 – Imagem produzida por microscopia de varredura por tunelamento


(STM) mostrando a superfície (111) do ouro (estrutura CFC), na superfície ao lado
foi adicionada uma monocamada de cobre, Callister, 1997.

Porém é praticamente impossível, devido à entropia, que todos os


átomos de um metal se arranjem em uma estrutura cristalina perfeita, ainda
mais quando se considera as temperaturas e tempos (“timing”) utilizados
normalmente na fabricação dos metais. Mesmo em condições de fabricação
muito especiais, as estruturas formadas não são perfeitas.
As imperfeições presentes na estrutura dos metais podem ser
classificadas de acordo com o grau de abrangência desta imperfeição, em
relação ao volume do cristal ou estrutura do metal. Assim, podem ser
consideradas imperfeições em quatro níveis diferentes:
1. defeitos pontuais;
2. defeitos lineares;
3. defeitos planares ou superficiais;
4. defeitos volumétricos.

A figura 2.2 resume os quatro graus de defeitos que podem existir na


rede cristalina de um metal. Cada grupo de defeitos possui uma influência
definida sobre as características dos metais, desviando o comportamento
mecânico e físico de um metal real daquelas propriedades que seriam
apresentadas pela estrutura ideal. Consequentemente, existem inúmeras
implicações práticas da presença dos defeitos dentro dos materiais metálicos,
sendo que muitas são, inclusive, desejáveis.
Materiais de Construção Mecânica I 40

Figura 2.2 –
Esquema ilustrando
os quatro graus de
defeitos na estrutura
cristalina de um
metal (Engel e
Klingele, 1981).

Nos próximos itens, serão revistos os defeitos existentes na estrutura


dos metais e algumas de suas particularidades, assim como algumas de suas
conseqüências práticas sobre as características dos metais.

2.1 – Defeitos pontuais


A figura 2.3 resume os principais tipos de defeitos pontuais existentes
na estrutura cristalina dos metais. Estes defeitos caracterizam-se pela
alteração local da estrutura cristalina do metal e seus efeitos não alcançam
um raio maior do que cinco sítios atômicos. Porém devido ao grande número
que pode estar presente, estes defeitos podem influenciar as características
macroscópicas do metal.
Basicamente existem dois tipos de defeitos pontuais, os defeitos que
diminuem a densidade dos metais (vacâncias e átomos de soluto
substitucional pequenos) e que aumentam a densidade (átomos de soluto
intersticial e substitucional grandes).

Figura 2.3 – Tipos de defeitos pontuais, adaptado de Meyers e Chawla, 1984.


Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 41

Os defeitos de ponto ilustrados na figura 2.3 podem ser definidos como:

• vacânicas – quando uma posição


atômica na rede cristalina do metal
(vide figura 1.21) está vazia;
• defeito intersticial – quando um
átomo (do próprio metal –
autointersticial - ou de outro elemento
químico - impureza ou de liga) está
em uma posição que normalmente
não deveria ser ocupada;
• defeito substitucional – quando a
posição atômica regular do metal da
rede é ocupada por um átomo
diferente (que pode ter um raio
atômico maior ou menor).

O número de defeitos pontuais existentes na estrutura cristalina de um


metal depende do equilíbrio termodinâmico destes com a temperatura. A cada
número n de defeitos pontuais que surgem, pode-se associar duas energias:
• energia de formação do defeito ou entalpia de formação (H=nxHf);
• energia liberada devido ao aumento do grau de desarranjo do
sistema, ou o incremento da entropia (S).
A figura 2.4 mostra a variação destas duas energias. Os valores de
energia livre de Gibbs (G) podem ser descritos conforme a equação (3):

G = H – TS = nHf - TS (3)

Figura 2.4 – Determinação da


quantidade de defeitos pontuais
em equilíbrio termodinâmico com
a estrutura do metal, adaptado de
Meyers e Chawla, 1984.

Pode-se verificar que o sistema entrará em equilíbrio ( ∂G / ∂T = 0 ) em


uma dada temperatura T, acima de 0K, com um número n de defeitos. Uma
equação que descreve estatisticamente este equilíbrio é:
Materiais de Construção Mecânica I 42

Hf
n −
VDefeitos = = e kT (4)
N
onde n é o número de defeitos; N é o número total de sítios na rede cristalina;
Hf é a entalpia de formação do defeito; k é a constante de Boltzmann
(13,81x10-24 J/K ou 86,20x10-6 eV/K) e T é a temperatura em Kelvin.

A tabela 2.1 apresenta alguns valores de energia de formação (Hf) para


a criação de vacâncias em alguns metais.

Tabela 2.1 – Energia de formação de vacâncias de alguns metais, Padilha e


Ambrosio Filho.

Metal Hf (eV)* Tf (º C)**


Ouro 0,96 a 1,00 1063
Prata 1,02 a 1,10 961
Cobre 1,00 a 1,40 1083
Platina 1,20 a 1,40 1769
Alumínio 0,74 a 0,79 660
Tungstênio ~3,3 3380
* 1 ev ≈ 1,6x10 J / ** vide tabela periódica do anexo I.
-19

O número de defeitos está diretamente correlacionado com o grau de


energia disponível na rede cristalina do metal, portanto, este número cresce
com a temperatura na qual é submetido o metal. Os valores apresentados
pela tabela 2.1, conjugados com a equação (4) permitem calcular qual seria a
concentração de defeitos com a temperatura destes metais, segundo
mostrado no gráfico da figura 2.5. Os metais apresentam uma concentração
da ordem de 10-3 sítios vazios quando a temperatura dos mesmos é próxima à
temperatura de fusão do metal.

0,01 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 0,6 0,7 0,8 0,9 1

0,0001
Concentração de defeitos (adim.)

1E-06

1E-08

1E-10

1E-12
Figura 2.5 – Variação
1E-14 Platina da concentração de
Alumínio
1E-16 Tungstênio defeitos pontuais com
1E-18
base nos dados
apresentados pela
1E-20
tabela 2.1.
1E-22 (temperatura homóloga
Temperatura homóloga (adim.) = Ti/Tf , em Kelvin).
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 43

Esta metodologia é válida para todos os defeitos pontuais, inclusive


para os átomos autointersticiais. Meyers e Chawla (1999) oferecem os valores
das energia livres de formação de vacâncias e intersticiais na rede do cobre:

• Gvacâncias = 83 kJ/mol
• Gintersticiais = 580 kJ/mol

Considerando que a proporção entre estas energias (Gvac./Ginter.) é


semelhante à proporção entre as entalpias de formação (HFvac./ HFinter.), que é
igual a 7, e aplicando a equação (4) pode-se concluir que a concentração de
vacâncias é muito maior do que a concentração de autointersticiais, ao menos
para as estruturas cúbicas de faces centradas (CFC), como a do cobre. A
baixa concentração de autointersticiais em estruturas como a CFC deve-se ao
seu grau de compactação (FE=74%) que é muito grande.
Também existe a possibilidade destes defeitos se associarem entre si,
agrupando-se em divacâncias ou mesmo trivacânicas. No caso das
divacâncias, em uma estrutura cúbica de faces centradas (CFC), a equação
que oferece a concentração destes defeitos em relação à concentração de
vacâncias é:

Vdivacâncias = 6(Vvacâncias ) e kT (5)


2

onde B é a energia de ligação de duas vacâncias.

Da mesma forma que no caso dos autointersticiais, existem referências


para as energias de formação (B) para os defeitos pontuais duplos ou
divacâncias. Meyers e Chawla (1999) citam que a entalpia de formação de
defeitos pontuais duplos para metais nobres (ouro, prata, platina, etc.) é da
ordem de 0,5 x10-19 J e que para o cobre têm-se:

• Hf = 5,63x10-19 J;
• B = 0,96x10-19 J.

Que oferece uma razão de aproximadamente 6, ou seja o número de defeitos


duplos é bem menor do que o de vacâncias, mas ligeiramente superior ao
número de autointersticiais.
Apesar de presentes em pequenas quantidades, as vacâncias possuem
grande importância principalmente para a difusão na estrutura cristalina dos
metais, conforme será visto no item sobre difusão. Desta forma, também
podem apresentam grande importância no fenômeno de fluência dos metais.
O aumento no número de defeitos pontuais também influência em
outras características dos metais, como por exemplo na sua resistividade
elétrica. Além disso, os defeitos pontuais têm uma função primordial para os
materiais semicondutores, que não são objeto deste curso.
Materiais de Construção Mecânica I 44

2.1.1 – Produção de defeitos pontuais


Excluindo-se o caso quando os defeitos pontuais são introduzidos a
partir da adição proposital de elementos químicos, seja através de solução
sólida (cap. 3) ou através de difusão (cap. 4), a produção de defeitos pontuais
depende da introdução de energia na rede cristalina dos metais.
O mecanismo mais comum de se produzir defeitos pontuais é a partir
da oscilação periódica dos átomos na estrutura cristalina, que vibram quando
estão em temperaturas acima do zero absoluto (0K ou aprox. -273º C). Estas
vibrações produzem e eliminam defeitos pontuais de modo a se obter uma
concentração de equilíbrio calculada pela equação 4 e cuja dependência com
a temperatura é ilustrada pela figura 2.5.
Uma maneira de se obter um metal a baixas temperaturas (por
exemplo, na temperatura ambiente) com uma alta concentração de defeitos
pontuais seria levá-lo a temperaturas próximas às de fusão e realizar um
resfriamento rápido (têmpera). O rápido resfriamento não oferece tempo
suficiente para que seja atingido o equilíbrio descrito pela equação (4), desde
que a taxa de resfriamento seja rápida o suficiente para não permitir que os
defeitos pontuais se difundam até atingir superfícies (contornos de grão,
discordâncias, superfície do metal, etc.) onde sejam absorvidos.
Outra maneira de se produzir defeitos pontuais é pela deformação
plástica. Conforme será visto no item 2.2 e no cap. 8, a movimentação dos
defeitos conhecidos como discordâncias é o principal mecanismo de
deformação plástica dos metais e também podem produzir defeitos pontuais.
A figura 2.6 ilustra dois mecanismos em que estão envolvidas discordâncias
na criação de defeitos pontuais. Este mecanismo é mais eficiente para a
introdução de defeitos pontuais do que a têmpera, porém não são apenas
defeitos pontuais que são introduzidos, mas também discordâncias
(principalmente) e outros defeitos (falhas de empilhamento e maclas).

(a) (b)

Figura 2.6 – (a) criação de um autointersticial ou de uma vacância com a junção de


duas discordâncias (adaptado de Meyers e Chawla, 1999) e (b) criação de uma linha
de vacâncias pela escalagem de uma discordância (Dieter).
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 45

Defeitos pontuais também podem ser introduzidos por meio de ondas


de choque mecânico. Normalmente as ondas de choque são transmitidas
elasticamente pela estrutura do metal à velocidade do som neste (aprox.
5000km/s). Porém quando a amplitude do distúrbio mecânico (onde de
choque) alcança um nível suficientemente alto, as grandes componentes de
cisalhamento, associadas à propagação da onda de choque, introduzem
alterações na estrutura cristalina do metal. A figura 2.7 ilustra a concentração
de vacâncias obtidas por Kressel e Brown para o níquel deformado por
laminação a frio e por choque. Para uma pressão de 20 GPa calculou-se uma
concentração de vacâncias de 5x10-5, considerando-se o mecanismo ilustrado
pela figura 2.6.b como sendo o responsável pela geração destes defeitos.

Figura 2.7 – Efeito da deformação


plástica por laminação a frio e por
choque na concentração de vacâncias
no níquel (Kressel e Brown).

A radição nuclear (raios α, β ou γ) é uma eficiente forma de se introduzir


defeitos em qualquer material, inclusive na estrutura cristalina dos metais. A
radiação desloca elétrons e átomos de suas posições normais, danificando a
estrutura cristalina, conforme ilustrado pela figura 2.8.

Figura 2.8 – Esquema


ilustrando a danificação
introduzida por meio de
uma partícula radioativa
de grande energia sobre
uma estrutura cristalina
de um metal (Meyers e
Chawla, 1999).
Materiais de Construção Mecânica I 46

Os defeitos são gerados quando uma partícula radioativa transfere a


sua energia cinética pela colisão elástica desta com um dos átomos da rede
cristalina. Este átomo, por sua vez, deixa a sua posição normal, gerando uma
vacância. Após uma distância relativamente curta, o átomo deslocado, acaba
ocupando uma posição intersticial. A energia transferida pelo impacto de uma
partícula radioativa, da ordem de 25eV, é bem superior à necessária para a
criação de uma vacância (tabela 2.1).
Uma variante atualmente utilizada desta técnica é a implantação iônica.
Nesta técnica íons de um determinado elemento químico são acelerados em
um campo elétrico até alcançarem energia elevadas. Estes íons são lançados
contra o metal a ser tratado, em um ambiente de vácuo moderado,
penetrando na sua estrutura cristalina e fixando-se como intersticiais. O
processo também introduz defeitos pontuais na superfície do material, durante
a implantação destes íons.
No final, as propriedades da superfície do metal são alteradas de
acordo com as necessidades, que são basicamente duas: ou aumentar a
resistência à corrosão ou aumentar a resistência à abrasão. Por este
processo podem ser introduzidos íons de B, N, Mo e Ti em peças de aços tais
como: eixos, engrenagens, polias, tesouras, etc.

2.1.2 – Efeito dos defeitos pontuais


Os defeitos pontuais, quando em concentrações maiores, produzem
efeitos significativos sobre as propriedades mecânicas dos metais. Utilizando
monocristais de alumínio puro, Maddin e Cotrell observaram as variações nas
propriedades mecânicas quando resfriaram este material, a partir de 600º C,
por meio de têmpera ou lentamente.
Os resultados podem ser resumidos pelo mostrado na figura 2.9.a: os
CP´s de material recozido apresentam um menor limite de escoamento, os
CP´s de material temperado apresentaram um limite de escoamento bem
superior1. Neste caso, os defeitos pontuais que foram formados não atuaram
de maneira isolada, estes interagiram com as discordâncias existentes para
alterar as propriedades mecânicas.
Da mesma forma, o efeito dos defeitos gerados por radiação é bem
marcante, já que este processo consegue gerar defeitos pontuais de maneira
mais eficiente. A figura 2.9.b ilustra o efeito da radiação neutrônica sobre as
propriedades mecânicas da liga Zircaloy.
Devido aos efeitos que a radiação introduz nos metais (tendência de
fragilizar o material), cuidados especiais devem ser tomados com os
instrumentos, máquinas e/ou componentes utilizados na manipulação de
substâncias ou equipamentos que emitam radiação. Como as estruturas
tendem a perder a sua ductilidade e resistência mecânica a longo prazo,
normalmente se adota a substituição freqüente dos componentes,
especialmente àqueles utilizados em ambientes de maior radioatividade.

1
Deve-se salientar que este metal não apresenta transformação de fase na faixa de temperaturas
testadas (ou seja, não endurece por têmpera como alguns tipos de aço).
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 47

(a) (b)

Figura 2.9 –Curvas tensão versus deformação para (a) monocristais de alumínio
puro normalizados ou temperados (Maddin e Cotrell) e (b) a liga Zircaloy com e sem
irradiação por nêutrons (Meyers e Chawla, 1999).

2.2 – Defeitos lineares


Defeitos lineares são conhecidos como discordâncias (também é
empregada a palavra deslocações, com menor freqüência). Este defeito foi
concebido pela impossibilidade de se modelar realisticamente a resistência
mecânica de um metal, considerando que o mesmo apresente uma estrutura
cristalina perfeita, conforme apresentada no capítulo 1.

2.2.1 – Resistência mecânica teórica


No cálculo da resistência à tração teórica de um material metálico
cristalino, admite-se que este seja composto por camadas de átomos,
conforme mostrado na figura 2.10.a. Entre estes átomos existe uma força de
interação do tipo mostrado no gráfico da figura 2.10.b.

(a) (b)
Figura 2.10 – (a) Representação esquemática de dois planos atômicos de um metal
perfeito. (b) Tensão necessária para separar estes planos (figura dos autores).
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Com um valor suficientemente alto de tensão norma aplicada (σ), este


material irá fraturar por clivagem, apresentando uma fratura perpendicular à
tensão aplicada. Admitindo que a tensão varie de forma senoidal com a
distância, tem-se:

⎛π x⎞
σ = σ c sen ⎜ ⎟ (6)
⎝ d ⎠
onde σc é a tensão máxima para a clivagem e d é a metade do período da
onda.
Para pequenos deslocamentos atômicos, a equação (6) reduz-se a :

⎛π x ⎞
σ = σc ⎜ ⎟ (7)
⎝ d ⎠
e a inclinação da curva tensão × deslocamento fica sendo :

dσ σc π
= (8)
dx d

Uma vez que a equação de Hooke aplica-se de maneira adequada a


este modelo, tem-se para definição do módulo de elasticidade :

tensão σ
E = = (9)
deformaç ão x
ao
dσ E
= (10)
dx ao
onde ao é a separação de equilíbrio. Combinando as equações (8) e (10) e
resolvendo para σc tem-se (tomando-se d = ao):

E d E
σc = ≈ (11)
π ao π

Se a energia para o processo de fratura for considerada, o trabalho de


fratura por unidade de área durante a fratura será dado por:


d
⎛π x⎞ 2d
trabalho de fratura = σ c sen ⎜ ⎟ dx = σc (12)
⎝ d ⎠ π
0

Se todo este trabalho é igual à energia requerida para formar duas


novas superfícies de fratura 2γ (onde γ é a energia superficial), têm-se
finalmente :
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 49


σc = (13)
ao

Porém observações macroscópicas indicaram que os metais se


deformam e fraturam por meio de tensões de cisalhamento, por isso um
cálculo semelhante foi feito, considerando tensões de cisalhamento. Neste
caso, o material irá fraturar por cisalhamento, isto é, pelo escorregamento de
planos adjacentes e paralelos a partir de uma tensão cisalhante. A Figura 2.11
ilustra o modelo, inicialmente proposto por Frenkel em 1926.

Figura 2.11 – Cisalhamento pelo


deslocamento de um plano
atômico em uma estrutura
cristalina perfeita, Dieter.

Admitindo novamente que a tensão varia de forma senoidal com a


distância, tem-se :

⎛ 2π x⎞
τ = k sen ⎜ ⎟ (14)
⎝ b ⎠

Considerando pequenos deslocamentos e a validade da equação de


Hooke, vem:
2π x x
τ = k = G (15)
b a
onde x/a é a deformação de cisalhamento e G é o módulo de cisalhamento. A
partir da equação (15), têm-se uma expressão para k que, levada na equação
(14), para x = b/4, fornece a expressão para a tensão máxima cisalhante:

Gb
τ max = (16)
2π a

Como ordem de grandeza, pode-se admitir que a equação (16) reduz-


se à seguinte relação para a resistência coesiva teórica:
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E E
≤ σ c≤ (17)
15 5

A Tabela 2.2 a seguir apresenta o limite de escoamento teórico, dado


pela equação (17), e o limite de escoamento real de uma série de metais.
Pode-se observar que existe uma enorme discrepância entre estes valores.
Este resultado também se verifica para a resistência à fratura destes
materiais, assim como para a resistência à fratura de todos os materiais de
engenharia utilizados hoje em dia.

Tabela 2.2 – Comparação entre a resistência mecânica teórica de alguns metais


com a sua resistência real (adaptado de Anderson).

G/2π Limite de escoamento experimental


Material
GPa 106 ps i MPa ps i Teórico/Exp.

Assim sendo os cálculos baseados na movimentação de todos os


átomos, seja por clivagem (equação 13), seja por cisalhamento (equação 17)
não conseguem descrever corretamente o real comportamento dos metais.
Ao longo do início do século XX, diversas teorias surgiram para explicar
o porquê desta discrepância. Meyers e Chawla (1984) descrevem o esforço
para a explicação da resistência dos metais com base na suposição de que
pequenos defeitos produziriam deformações cisalhantes ao longo da rede
cristalina do metal. Em 1934 três pesquisadores - Orowan, Polanyi e Taylor -
propuseram o conceito de discordância em cunha (edge dislocation). Por este
conceito uma parte do metal poderia ser deformada por cisalhamento sem a
necessidade de movimentação simultânea dos átomos acima da interface, tal
como vinha sendo considerado nos modelos até então. Desta maneira um
metal poderia se deformar por cisalhamento com um nível de energia, ou
tensão, muito menor do que o predito pelos modelos teóricos e mais próximo
da realidade. A discordância em cunha está mostrada na figura 2.12.
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 51

(b)

Figura 2.12 – Dois tipos de ilustrações


para representar uma discordância em
cunha (edge dislocation) pura, à
esquerda Callister, 1997.
(a)

Posteriormente, em 1939, o metalurgista Holandês Burges propôs a


existência das discordâncias em parafuso (screw dislocation). Existem
também as discordâncias que possuem características de discordâncias em
cunha e em parafuso, conhecidas como discordâncias mistas, mostradas na
figura 2.13.

(a) (b)

Figura 2.13 – (a) discordância em parafuso e (b) discordância mista, Callister.


Materiais de Construção Mecânica I 52

Em 1969, Hull descreveu um outro tipo de discordância que foi


nomeada discordância em hélice (helical dislocation) que forma uma grande
espiral e que é observada algumas vezes em cristais que foram tratados
termicamente. Esta discordância possui natureza mista e não é igual à
discordância em parafuso.

2.2.2 – Características das discordâncias


Uma discordância é um defeito linear no entorno do qual existe um
ligeiro desalinhamento dos átomos, como mostrado nas figuras 2.12 e 2.13.
• A discordância em cunha é caracterizada por um plano atômico
extra na estrutura, muito bem representado pela figura 2.12.b.
• No caso da discordância em parafuso, ocorre um deslocamento
de um plano atômico do cristal na região da linha da discordância
em parafuso, conforme ilustra a figura 1.13.a.
• A discordância mista associa o deslocamento de um plano
atômico (discordância em parafuso) com a introdução de um
plano atômico extra (discordância em cunha), conforme ilustrado
pela figura 1.13.b.
Em todos os casos, têm-se que a linha ao longo da qual existe a
mudança no posicionamento dos átomos (desalinhamento) é definida como
linha da discordância. Esta linha produz um contraste visível no microscópio
eletrônico de transmissão (MET) de tal maneira que estas podem ser
facilmente visíveis por esta técnica de análise, tal como será descrito no item
2.2.3 e ilustrado pela figura 2.14.
Em materiais que não foram deformados plasticamente e que possuem
um número baixo de discordâncias, ou que foram eficientemente
recristalizados, as linhas das discordâncias tendem a ser retilíneas ou
ligeiramente encurvadas, conforme ilustra a figura 2.14.a.
Porém o normal, especialmente para materiais que sofreram alguma
deformação plástica, é que as linhas das discordâncias apresentem-se
curvas, irregulares, cheias de ângulos ao longo de seu comprimento ou
mesmo agrupadas entre si, formando células de discordâncias, conforme
mostrado na figura 2.14.b.

Figura 2.14 – Aço


inoxidável
austenítico após
ensaio de tração e
normalização de
15min a 900º C: (a)
grão recristalizado
(b) grão ainda não
recristalizado,
Kestenbach, 2001.
(a) (b)
Cap. 2 – Defeitos nos materiais ____________________________________________ 53

Outra car racterística das discordâncias é o seu vetor de Burges,


denotado por b ou b. Este vetor identifica a intensidade, direção e sentido do
desalinhamento atômico produzido pela discordância, ao longo de sua linha.
Para definir o vetor de Burges de uma discordância, constrói-se um
circuito ao redor desta, obedecendo-se a regra da mão direita (o sentido de
giro definidos pelos dedos da mão). O vetor de Burges deverá apontar a
diferença entre o final e início de um circuito fechado que existiria caso
houvesse uma estrutura perfeita, conforme ilustrado na figura 2.15 para as
discordâncias em cunha e em parafuso.

(a)

(b)

Figura 2.15 – Definição do vetor de Burges para (a) discordância em cunha e (b)
discordância em parafuso, Reed-Hill (1994).

Como características das discordâncias em cunha e em parafuso, têm-


s e:
• discordâncias em cunha
o a linha da discordância em cunha é perpendicular ao seu
respectivo vetor de Burges;
o o movimento da discordância segue a direção do vetor de
Burges (direção de escorregamento);
Materiais de Construção Mecânica I 54


o sobre tensões de cisalhamento (do tipo )

ƒ uma discordância “positiva” move-se para a direita,
ƒ uma “negativa” move-se para a equerda.
• discordâncias em parafuso
o a linha de uma discordância em parafuso é paralela ao seu
respectivo vetor de Burges;
o a discordância move-se (direção de escorregamento) na
direção perpendicular ao do seu vetor de Burges.

As discordâncias movem-se nos planos de escorregamento que é o


plano que contém o vetor de Burges e a linha da discordância. Esta definição
tem um impacto profundo sobre as características das discordâncias, já que:
• as discordâncias em cunha só podem se mover no único plano
definido pela sua linha e seu vetor de Burges (que são
perpendiculares entre si);
• as discordâncias em parafuso podem se mover em todos os
planos (compactos ou densos) passando pela sua linha ou pelo
seu vetor de Burges (os dois são paralelos).
Assim sendo, as discordâncias em cunha apresentam uma grande
limitação de movimento, enquanto que as discordâncias em parafusos
possuem uma mobilidade muito maior, devido à maior disponibilidade de
planos para moverem-se. Esta característica reforça a importância da
descoberta de Burges em 1939 e a compreensão do papel das discordâncias
sobre o comportamento mecânico dos metais.
A figura 2.16 ilustra a movimentação das discordâncias em cunha e em
parafuso no interior da rede cristalina de um metal. Em ambos os casos, a
aplicação de um esforço de cisalhamento (de sinal negativo, em relação à
referência do início desta página) faz a discordância se deslocar até que a
lateral do material apresente um plano atômico extra em toda a sua extensão.

(a) (b)

Figura 2.16 – Movimentação de uma discordância (a) em cunha e (b) em parafuso,


pela aplicação de uma tensão de cisalhamento negativa, Reed-Hill (1994).

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