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0 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


Graduação em Filosofia
Prof Marcos Gleizer
Filosofia da Ciência I
Frederick Chame de Mello Caldas

QUESTÃO 1

Explique a crítica de Popper às teses essencialista e instrumentalista, e sua defesa da


perspectiva conjectural.

RESPOSTA

1. Introdução
Para que se compreenda a crítica realizada por Popper, contra as posições essencialista e
instrumentalista, devemos antes apontar para aquilo que ambas as escolas de pensamento se
empenharam em responder. Uma maneira possível de colocar a pergunta norteadora de toda a
discussão em jogo pode ser formulada nos seguintes termos: afinal de contas, o que nos diz
acerca do real uma teoria científica? Isto é, a ciência tem capacidade de revelar algo sobre a
natureza última das coisas? Ou antes, ela tem mesmo essa pretensão? Posta a questão, veremos
como a proposta original de Popper emerge a partir da contraposição ao suposto obscurantismo
que seria efeito comum às alternativas de resposta formuladas até então. Ademais, vale
mencionar que o processo expositivo realizado pelo autor tem também apoio em dados
históricos, com ênfase nas supostas descobertas1 paradigmáticas da física moderna, uma vez que
seus impactos foram decisivos para a emergência do essencialismo e instrumentalismo na
filosofia da época.

2. Essencialismo
Em linhas gerais, cabe afirmar que a corrente essencialista acredita que uma teoria
cientifica possa realizar descrições sobre o real de tal maneira precisas a ponto de expressarem,
sem distorções, o sentido mais profundo da sua composição. Buscam o conhecimento das leis de
Deus, tal como Ele as conhece. Apesar do recorte realizado pelo autor do texto em questão ter
1
É preciso ter cuidado com o uso deste termo, cujo emprego, como veremos mais adiante (ver 5.
Refutabilidade e expansão do conhecimento, item 2), carrega consigo uma interpretação versada para um suposto
conteúdo prévio a ser captado pelo ser humano no seu fazer científico. Entretanto, os desdobramentos do texto
mostrarão como essa perspectiva pode não ser um dado consensual entre todas as filosofias sobre a teoria científica.
dado maior ênfase às discussões inseridas na modernidade, Popper não deixa de mencionar e
reconhecer a influência da herança grega na construção do essencialismo moderno, remontando
até mesmo a um essencialismo aristotélico. A tradicional e libertadora busca pela verdade
pretendida pelos gregos seria, pois, origem do impulso remanescente no imaginário científico até
os dias de hoje, que por sua vez seria, na visão de Popper, um indicativo contra a suposta
finalidade pura e exclusivamente instrumental de uma teoria. Mas como é de se esperar, Popper
não é um essencialista, e sua concordância pontual ainda dá lugar a uma série de discordâncias a
serem examinadas. De maneira mais clara e distinta, o essencialismo pode ser sintetizado em três
proposições doutrinais:

(1) O cientista procura uma teoria verdadeira que descreva o mundo e explique os fatos
observados;
(2) O cientista é capaz de demonstrar a verdade dessas teorias para além de qualquer dúvida
razoável;
(3) As melhores teorias, as verdadeiramente científicas, descrevem as essências das coisas,
realidades por trás das aparências. Essas teorias não necessitam e não são suscetíveis a
explicações adicionais, pois são explicações últimas.

Essa distinção nos servirá agora para que identifiquemos as objeções levantadas por filosofias
divergentes. Em primeiro lugar, a doutrina (1) nos permite retomar a conformidade essencialista
com a herança grega há pouco citada, mas já difere do instrumentalismo pela atribuição de um
valor de verdade a uma teoria e pela noção de explicação, temas a serem retomados em breve; já
a doutrina (2) ganha evidência a partir das emblemáticas empreitadas fundacionistas da
modernidade. Todavia, um dos ataques sofridos pela doutrina (2) não tardou, sendo um deles
digno de menção, o problema da indução, posto a lume pelo filósofo Hume. O problema consiste
em apontar para o fato de que a ciência se fundamenta em algo de ordem habitual e contingente,
aparentemente não justificado, a crença na causalidade e na sua reincidência. Isto é, se para todo
momento (t1) em que chutamos uma bola razoavelmente leve vemos logo no momento seguinte
(t2) o seu deslocamento em conformidade ao chute, os seres humanos acreditam estar
justificados em acreditar que tal lei responsável pela conformidade de (t1) e (t2) - sob as mesmas
circunstâncias físicas - acontecerá universalmente e para todo sempre. Entretanto, não há algum
tipo de impedimento lógico que impeça o acontecimento de uma mudança radical a qualquer
instante e injustificadamente. Uma objeção do gênero, caso não seja devidamente respondida,
constitui um grande impasse para a produção científica. Enfim, no que concerne à doutrina (3),
serve por ora apresentarmos um caminho para a crítica popperiana através de uma readaptação
da metáfora do cume, cuja nos diz o seguinte: os cientistas se encontram em posição análoga
àquela dos alpinistas, estes que, enquanto procuram pelo cume de uma montanha rodeada pela
névoa, com a visão comprometida pelas nuvens, podem julgar ter alcançado o pico principal,
quando em verdade não possuem meios para saber que se encontram apenas no topo de um dos
picos subsidiários.
Ademais, a coerência histórica do pensamento essencialista também se expressa por
outras vias, sendo a via religiosa certamente digna de nota. Pois, se por um lado essa crença
essencialista também pode ser associada a algum fundamento de cunho religioso, – a saber: que
a razão humana seria ou mesmo teria em si uma marca divina, a partir da qual a sua perfeição
não alcançaria senão a completude do conhecimento de tudo aquilo que cabe ao homem
conhecer – a religião também teve função decisiva para a derrocada da perspectiva essencialista.
Na idade moderna, devido ao progressivo avanço científico rumo a um modelo cosmológico
cada vez mais distante daquele sustentado pelo cristianismo, o cerceamento do alcance científico
acerca da realidade apareceu como uma via eficiente para preservar o espaço da ação divina. Não
por acaso, aliás, um dos nomes mais proeminentes do instrumentalismo, Berkeley, foi um bispo.

3. Instrumentalismo
Quando entendida segundo a perspectiva instrumentalista, o jogo pragmático de previsão
fenomenal passa a se tornar a única função da teoria científica. Nesse sentido, não há problema
se duas teorias físicas distintas prevêem o mesmo fenômeno. Não há mais necessidade de
procurarmos um critério distintivo responsável por atribuirmos a uma delas algum estatuto de
superioridade. Ou antes, não cabe sequer a uma proposição científica ser discutida em termos de
verdade ou falsidade, mas apenas de aplicabilidade em alguma circunstância. Essa posição,
como dissemos anteriormente, ganha forças a partir do filósofo Berkeley, afetado pelo sucesso
aparente das teorias newtonianas. Ele observa que, para além das distinções tradicionais de
substância e acidente, as impressões humanas nos entregam apreensões dos objetos de modo
indistinto em termos de abstração. E, a partir dessa constatação, questiona então a realidade
concreta das idéias abstratas, na medida em que estas não podem ser puramente percebidas. Sob
essa perspectiva, a natureza passa a ser percebida sob o plano da pura superfície, e não mais
como algo do qual haveria de se extrair essências escondidas em suas profundezas. Entretanto, o
instrumentalismo não se resume a esta abordagem. Pelo contrário, afinal, uma perspectiva do
gênero se mostra assaz desligada de todo o imaterialismo sugerido por Berkeley ou de quaisquer
outras filosofias contra-intuitivas, por assim dizer, que chegou a ser durante muito tempo
assumida por certos cientistas sem que houvessem suspeitas acerca da sua carga filosófica. Até
os escritos de Popper, pode-se dizer que o instrumentalismo “venceu” desde as suas formulações
modernas. Alguns instrumentalistas, como por exemplo Kant, sustentará sim a existência de
alguma profundidade em-si no real, entretanto essa profundidade não tem influências sobre o
fazer científico, por ser ela inacessível ao homem em sua pureza não fenomênica. Quanto aos
cientistas instrumentalistas que se pretendiam apartados da filosofia, Popper se refere
particularmente ao circulo de Viena (o que fica claro quando o autor se contrapõe explicitamente
à frase “o enigma não existe” de Wittgenstein, cuja passagem representaria a ausência de
profundezas nas quais se escondem essências a serem descobertas). Ademais, ainda que fosse
possível provar a tese de que teorias científicas são instrumentos, não seria o bastante para
atestar a força predominante do instrumentalismo, dado que tanto a tese essencialista quanto a
proposta por Popper não negam essa afirmação.

4. Conjecturas
Ao longo de toda a discussão proposta pelo texto, também é possível realizar algum
apontamento relacionado ao modo de exposição discursiva popperiano presente no texto aqui
examinado. Notamos que, apesar da constante ausência de idiossincrasias terminológicas
(comuns na filosofia continental), o autor optou por antecipar, durante a exposição das duas
doutrinas clássicas as quais ele se opõe, várias críticas que lhe foram recorrentes. Por conta dessa
escolha, a tentativa de reprodução sistemática e puramente linear das três perspectivas filosóficas
em voga no texto acaba obstruída. De qualquer forma, agora que já apresentamos razoavelmente
tanto o essencialismo quanto o instrumentalismo, é chegado o momento de polirmos o diálogo de
Popper em confronto às perspectivas da tradição, para que enfim concentremos aqui o cerne das
suas propostas inovadoras.
A perspectiva popperiana, em primeiro lugar, preserva a doutrina essencialista segundo a
qual a ciência procura descrever e explicar o real. Isso significa que uma teoria científica deve ter
pretensão de dizer a verdade acerca do real enquanto juízo a ele factualmente correspondente. A
inovação, todavia, está em sustentar, ao mesmo tempo, a posição de que também não é possível
atingir a certeza acerca da veracidade de uma teoria. Como então haveria de ser possível eleger
uma determinada proposição enquanto teoria científica em detrimento de outras? Para Popper, a
resposta se encontra na negação. Certamente, não como entendem os dialéticos, mas impondo
testes de resistência, ou conflitos entre as teorias mais sofisticadas, a fim de que apenas uma
possa superá-la. A esses testes Popper os denomina testes cruciais. Nesse sentido, caminhamos
para a concepção segundo a qual teorias não são propriamente verificáveis, eis o porquê do
método negativo, contrário à pretensão verificacionista de buscar confirmações de hipóteses
científicas na empiria. Mas imagine se uma teoria se caracterizasse pela inverificabilidade ou
pela irrefutabilidade, significaria decretar então a ausência de critérios empíricos para qualquer
tipo de estabelecimento de uma teoria. Desligada de qualquer tipo de empiria, uma teoria estaria
impossibilitada de ser considerada ciência, possuindo espaço possível ainda no campo da
filosofia ou da religião. Rememoremos o fundamento a partir do qual Popper recusa a
possibilidade de uma teoria irrefutável: no caso, basta ter em vista o caráter finito da espécie
humana, que por sua vez impossibilita a realização dos testes mais absolutos - capazes de abarcar
o real em toda a sua profundidade ou quantidade. Em suma,

(i) Toda teoria é refutável;


(ii) A refutabilidade de uma teoria consiste na sua testabilidade;
(iii) Uma teoria é testável pela possibilidade de ser ou não o caso, e ela deve ser
empiricamente confrontável com o real.

Além disso, a nova proposta de Popper não dá centralidade ao binômio aparência-


realidade, mas pensa a existência de diferentes estratos ou âmbitos do real, todos eles sendo
igualmente reais um ao outro. O que significa dizer que átomos existem tanto quanto um ser
humano visto pelos olhos de um ser humano, da mesma forma como a visão de um objeto não
seria apenas uma aparência sob a qual se escondem a realidade reduzida exclusivamente à escala
atômica. Afinal, abdicar a essa posição implicaria admitir modelos atômicos e coisas
semelhantes como meros modelos instrumentais e dotados de uma arbitrariedade funcional.
Daremos seguimento às teses popperianas no tópico a seguir, onde trataremos dos
desdobramentos dessa posição defronte ao problema da expansão do conhecimento científico.
QUESTÃO 2

Como a noção de irrefutabilidade se articula com a defesa da expansão do conhecimento?

RESPOSTA

5. Refutabilidade e expansão do conhecimento


Mencionamos há pouco alguns dados fundamentais da teoria popperiana incidentes sobre os
tópicos da irrefutabilidade e da expansão do conhecimento. Mais precisamente, vimos que o
aspecto da refutabilidade foi sustentado de modo enfático por Popper enquanto característica
indispensável de uma teoria científica. Acentuemos agora como este aspecto se relaciona
diretamente com o problema da expansão do conhecimento, e veremos como essa relação pouco
há de tão distinto se tivermos claro tudo aquilo até então considerado.

(i) Ao realizar suas críticas ao essencialismo e ao instrumentalismo, recordemos que um


ponto problemático comum a ambas as teorias, segundo Popper, consiste no seguinte:
o obscurantismo. Com isso, o autor pretende dizer que tanto uma posição quanto a
outra podem levar a estagnação científica pela ingênua crença nos resultados mais
imediatos do conhecimento até então obtido por uma época. Ora, parece então que
todo o esforço do autor consiste em eliminar essa satisfação em prol de uma postura
teórica constantemente voltada para a expansão do conhecimento científico. E essa
sofisticação só faz sentido pelo mesmo plano de fundo da insuficiência humana, que
faz das teorias algo de eternamente inverificável.

(ii) Outro aspecto ecoante no interior dos escritos do filósofo se funda na proximidade
com a perspectiva kantiana. Tal proximidade reside na influência atribuída por ambos
ao recorte do entendimento, capaz de mudar a nossa forma de apreendermos
efetivamente o real. Significa dizer que, pela possibilidade de sofisticarmos as nossas
teorias, podemos também perceber os objetos através de lentes mais aguçadas,
responsáveis por nos abrirem portas a novos problemas a serem examinados. 2 Nesse

2
Essa posição, somada ao problema da insuficiência, leva o autor a considerar que toda teoria científica
deve propor novos problemas. No entanto, esse fim irremediável não deve levar a tomarmos todas as atuais teorias
como falsas, visto que não são verdadeiramente as fórmulas últimas da realidade. Ademais, ainda que operássemos
sentido, ocorre com a teoria científica complexa o mesmo quando experimentamos
apontar câmeras muito potentes contra uma superfície plana – mais detalhadamente
nos atemos ao objeto, ao passo que, na mesma proporção, revelamos mais
irregularidades contidas na sua composição. Disso não se segue que as novas lentes
proporcionadas pelos objetos nos proporcionem conceitos axiomáticos a partir dos
quais devemos nos limitar. De fato, não se trata de tomar o conhecimento científico
como um conhecimento dedutível de axiomas. 3 A nossa possibilidade de ampliarmos
ou repensarmos os supostos axiomas se concentra justamente a partir dos testes
empíricos, através dos quais podemos tocar a realidade para além das estruturas
abstratas da linguagem e produzir assim novas ferramentas, capaz de novas
combinações, vantagens e lacunas. Nesse sentido, podemos falar em invenção de uma
teoria científica quando pensamos na síntese realizada pelo entendimento, mas
também em descoberta quando pensamos que essa síntese opera a partir de dados do
real que nos aparecem pelos sentidos.

(iii) Por último, o problema da refutabilidade mais se aproxima da expansão do


conhecimento a partir do tópico acerca da probabilidade. Um meio para
compreendermos a importância da refutabilidade na expansão do conhecimento pode
ser explicado em termos matemáticos. Pois, quando nos atemos a um juízo simples e
vago, tal como aqueles lacunares realizados em cultos empenhados na previsão do
futuro, vemos nele o seu teor facilmente relacionável a vastos acontecimentos
possíveis. O mesmo não acontece quando pretendemos um alto grau de
especificidade. Isto é, se um rapaz perdido pergunta pelo caminho que deve rumar
para atingir o seu local de destino, as chances de uma senhora lhe dizer um juízo
verdadeiro ao afirmar “tal local fica para o norte” é maior do que se esta mesma
senhora tentasse lhe dizer exatamente quais ruas o rapaz deve percorrer para alcançar
o seu destino. Dessa constatação, o filósofo determina que a ciência deve buscar,
pelos termos de verdade e falsidade somente, isso nos levaria aparentemente a um outro problema: ora, se uma
teoria ultrapassada é falsa e a teoria atualmente aceita também é falsa, não fica claro se há de fato algum tipo de
superioridade entre ambas. Para dissolver esse problema, Popper propõe que tratemos da questão a partir da noção
de verossimilhança. Pois, ainda que ambas sejam falsas, uma teoria é ultrapassada quando uma consegue explicar e
descrever um maior número de fenômenos. Significa, portanto, que a teoria vigente aparenta ser verdadeira mais
vezes, ainda que seja falsa. A isto chamamos de mais verossímil.
3
Popper deixa claro e reserva uma parte do seu texto para mostrar o vínculo de sua tese acerca das teorias
científicas é indissociável de uma posição epistemológica cuja aceita a noção de verdade como correspondência.
Difere, portanto, de uma crença segundo a qual o conhecimento se resumiria a uma teia interdependente de crenças
simplesmente. De fato, uma crença na verdade como correspondência corrobora para uma posição privilegiada dos
testes empíricos.
pois, teorias cada vez menos prováveis, isto é, com um número cada vez mais extenso
de informações acerca do mundo. Menos provável é uma teoria significa também
dizer que ela é mais falível, mais refutável. Este último tópico aparece no texto como
forma de reforço aos argumentos expostos anteriormente, e também para sanar um
preconceito recorrente pela preferência intuitiva àquilo que é mais provável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALQUIÉ, Ferdinand. A filosofia de Descartes. Trad. M. Rodrigues Martins. Lisboa: Presença,


1986.

COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.

DESCARTES, René. Carta-Prefácio dos Princípios da Filosofia. Trad. Homero Santiago. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. – (Coleção clássicos)

_____. Discurso do Método. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.

KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Trad. Hélder Godinho. Lisboa: Presença,
1986.

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