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“UMA ROSA PARA EMILY”

William Faulkner (1930)

Quando Miss Emily Grierson morreu, toda a nossa cidade


compareceu ao enterro: os homens em atenção a essa espécie de
carinho respeitoso que se tem por um monumento tombado; as
mulheres movidas pela curiosidade de ver o interior de sua casa,
onde ninguém entrara nos últimos dez anos, exceto um velho negro,
ao mesmo tempo cozinheiro e jardineiro.
Era um casarão quadrado, de madeira, outrora branco, decorado de
cúpulas, de flechas, de balcões, no estilo pesadamente frívolo da
época de 1870, situado na rua que já tinha sido a mais distinta da
cidade. Mas as garagens e as debulhadoras de algodão,
multiplicando-se em derredor, acabaram por fazer desaparecer até
os nomes augustos daquele bairro. A casa de Miss Emily era a única,
levantando sua decrepitude teimosa e faceira acima dos vagões de
algodão e das bombas de gasolina. Emily tinha ido juntar-se aos
representantes daqueles nomes augustos, no cemitério adormecido
sob os cedros, onde jaziam entre os túmulos enfileirados e
anônimos, dos soldados da União e dos Confederados mortos no
campo de batalha de Jefferson.
Viva, Miss Emily fora uma tradição, um dever e um aborrecimento:
espécie de obrigação hereditária, pesando sobre a cidade desde o dia
em que, em 1894, o Coronel Sartóris (o prefeito que baixou o
decreto proibindo às negras saírem à rua sem avental) a isentara do

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pagamento de impostos, isenção definitiva, que datava da morte de
seu pai. Isto não quer dizer que Miss Emily aceitasse a caridade. O
Coronel Sartóris inventara a complicada história de um empréstimo
em dinheiro, feito pelo pai de Miss Emily à cidade e que a cidade,
por conveniência própria, preferia reembolsar dessa maneira. Só um
homem da geração e com as idéias do Coronel Sartóris poderia ter
imaginado semelhante coisa, e só uma mulher poderia ter
acreditado.
Quando a geração seguinte, com suas idEias modernas, deu, por sua
vez, prefeitos e intendentes municipais, essa concessão provocou
alguns descontentamentos. No primeiro dia do ano, dirigiram a Miss
Emily uma notificação de impostos. Fevereiro chegou, sem trazer
resposta. Enviaram-lhe uma carta oficial, pedindo-lhe para passar,
quando pudesse, no gabinete do delegado. Na semana seguinte, o
próprio prefeito lhe escreveu, oferecendo-se para ir, em pessoa, à
sua casa, ou para mandar buscá-la no seu carro particular. Recebeu,
como resposta, uma folha de papel de feitio arcaico, escrita com tinta
desbotada, numa letra miúda e fluente, comunicando-lhe que não
saía mais de casa. A notificação de pagamento de imposto vinha
inclusa, sem comentários.
O Conselho Municipal reuniu-se em sessão extraordinária. Uma
delegação dirigiu-se à sua casa e bateu naquela porta que nenhum
visitante transpusera desde que, oito ou dez anos antes, Miss Emily
deixara de dar lições de pintura em porcelana. Os membros da
delegação foram introduzidos num saguão escuro, de onde uma
escada se projetava para as sombras ainda mais que espessas do
andar superior. Havia em tudo um cheiro de poeira, de guardado, de
coisas que nunca são usadas -um cheiro de mofo e umidade. O negro
conduziu-os ao salão, de mobiliário pesado, forrado de couro.
Quando o negro abriu as cortinas de uma das janelas, viram que o
couro estava estalado, descascando e, ao se sentarem, uma nuvem
leve de pó subiu-lhe preguiçosamente em volta das coxas e se
espalhou em círculos vagarosos, desenrolando-se, desagregada, na
única réstia de sol. Num cavalete de moldura dourada, perto da
lareira, via-se o retrato a carvão do pai de Miss Emily.
Levantaram-se à sua entrada. Era uma mulherzinha pequena e
gorda, vestida de preto, com uma fina corrente de ouro descendo-
lhe do pescoço até a cintura, onde desaparecia no cós da saia. Tinha

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a ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em outra
pessoa seria apenas gordura, parecia, nela, obesidade. Dava a
impressão de estar inchada, como um cadáver muito tempo
submerso numa água estagnada; tinha, mesmo, de um afogado, a
carne lívida e balofa. Seus olhos, perdidos nas intumescências de
sua face, lembravam dois pedacinhos de carvão enfiados numa bola
de massa e iam de um rosto a outro, enquanto os visitantes
expunham o caso.
Não mandou que sentassem. Conservou-se, apenas, em pé no limiar
da sala, e esperou tranquilamente que o porta-voz se interrompesse,
balbuciando. Então, puderam ouvir o tic-tac do relógio invisível,
preso na ponta de sua corrente de ouro.
Sua voz era seca e fria:
– Não tenho impostos a pagar em Jefferson. O Corenel Sartóris me
explicou isso. Talvez um dos senhores possa consultar os arquivos
da cidade e dar satisfações aos demais.
– Mas nós o fizemos. Nós somos as autoridades no município, Miss
Emily. A senhora não recebeu a notificação assinada pelo delegado?
– Sim, recebi um papel – disse Miss Emily. – Talvez ele se considere
realmente o delegado… Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
– Mas não há, nos livros, nada que o possa provar. Veja a senhora…
É preciso que nós…
– Procurem o Coronel Sartóris. Não tenho impostos a pagar em
Jefferson.
– Mas, Miss Emily –
– Procurem o Coronel Sartóris. (Havia quase dez anos que o Coronel
Sartóris estava morto) – Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
Tobe! – O negro apareceu. – Acompanha estes cavalheiros.

Assim ela os venceu irremediavelmente, como já lhes vencera os


pais, trinta anos antes, a respeito do cheiro. Isso aconteceu dois anos
após a morte de seu pai, e quase em seguida à ocasião em que o
namorado – aquele mesmo que nós pensávamos iria se casar com

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ela – a abandonou. Aquela morte e o abandono do namorado fizeram
que ela depois pouco saísse de casa. Algumas senhoras tiveram a
temeridade de ir visitá-la, mas não foram recebidas e, naquela casa,
o único sinal de vida era o negro – ainda moço, então – que entrava
e saía com um cesto de compras.
– Como se um homem – seja quem for! – pudesse conservar limpa
uma cozinha! – diziam as senhoras. Assim, ninguém se surpreendeu
quando se começou a sentir o cheiro. Foi um novo laço que se
estendeu entre a gente grosseira e prolífica do bairro e os grandes e
poderosos Grierson.
Uma mulher, sua vizinha, foi queixar-se ao prefeito, Juiz Stevens,
que contava, então, oitenta anos.
– Mas que quer a senhora que eu faça? – perguntou ele,
– Ora, que ela acabe com isso – disse a mulher. Não existe lei?
– Estou certo de que não será necessário – afirmou o Juiz Stevens.
Provavelmente, é só uma cobra ou um rato que o negro matou no
quintal. Amanhã falarei com ele a esse respeito.
No dia seguinte, recebeu duas novas queixas; uma partiu de um
homem, que apresentou uma súplica tímida.
– Nós precisamos, realmente, fazer alguma coisa nesse caso, sr. Juiz.
Eu seria a última pessoa neste mundo capaz de incomodar Miss
Emily, mas precisamos fazer alguma coisa.
Nessa mesma noite, reuniu-se o Conselho Municipal: três barbas
grisalhas e um rapaz moço, membro da nova geração.
– A coisa é muito simples – disse o moço. – Mandem. lhe dizer para
limpar a casa. Dêem-lhe um certo prazo para obedecer e, se ela
não…
– Deus me livre, senhor! – exclamou o Juiz Stevens. Quer então
dizer a uma senhora, nas bochechas, que ela cheira mal?
Assim, na noite seguinte, de madrugada, quatro homens
atravessaram o gramado do jardim de Miss Emily e, como
assaltantes, rondaram a casa, farejando os alicerces de tijolos e os
respiradouros do porão, enquanto um deles, com um saco nos

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ombros, fazia, com regularidade, o gesto do semeador. Arrombaram
a porta da adega, que salpicaram de cal, assim como todas as
dependências.
Quando, de volta, atravessaram o gramado, uma janela, até então
sombria, iluminou-se de repente e viram Miss Emily sentada à
contraluz, ereta, rígida, imóvel como um ídolo. Atravessaram em
silêncio o gramado, metendo-se por entre as sombras das acácias
que margeavam a rua. Depois de uma ou duas semanas, o cheiro
desapareceu.

Isso foi quando as pessoas começaram realmente a ter pena dela. A


gente de nossa cidade, que se lembrava de Lady Wyatt, sua tia-avó,
que acabara louca, achava que os Grierson se julgavam muito mais
importantes do que eram na realidade. Nenhum dos rapazes da
cidade fora jamais considerado à altura de Miss Emily. Nós os
imaginávamos muitas vezes como um quadro: ao fundo, Miss
Emily, esguia figura vestida de branco; no primeiro plano, a silhueta
de seu pai, virando-lhe as costas, com as pernas abertas, um chicote
na mão; ambos, enquadrados pelos caixilhos da porta escancarada.
Assim, quando ela chegou aos trinta anos ainda solteira, não posso
dizer que isso tenha causado uma verdadeira alegria, mas nós, os
rapazes, nos sentimos vingados; mesmo com os casos de loucura na
família, ela não teria virado as costas a todas as oportunidades, se
essas se tivessem verdadeiramente materializado.
Morto o pai, correu o boato de que só lhe tinha ficado a casa de
herança, o que, de certo modo, alegrou todo mundo. Até que enfim,
podiam apiedar-se de Miss Emily. Sozinha e na pobreza, iria
humanizar-se. Agora, ela também conheceria a velha satisfação e o
velho desespero de um vintém a mais ou de um vintém a menos.
No dia seguinte ao da morte do velho, as senhoras da cidade
preparavam-me para ir à sua casa, apresentar-lhe os pêsames,
conforme o costume. Miss Emily recebeu-as no limiar da porta,
vestida como nos outros dias, e sem a menor marca de tristeza ou
sofrimento na expressão. Disse-lhes que o pai não tinha morrido.
Repetiu essas palavras durante três dias, quando os pastores e os
médicos iam vê-la, tentando persuadi-la a deixar dispor do cadáver.

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Mas, no momento em que estavam resolvidos a recorrer à Lei e à
força, ela cedeu, e enterraram-lhe o pai a toda pressa.
Não se disse, então, que estava louca. Pensamos que tinha agido
como devia. Lembrávamo-nos de todos os moços que seu pai
afastara, e sabíamos que, achando-se sem nada, ela deveria agarrar-
se àquele que a despojara de tudo, como em geral acontece.
Esteve muito tempo doente. Quando tornamos a vê-la, tinha os
cabelos cortados, o que a fazia parecer uma menina e lhe dava uma
vaga semelhança com os anjos dos vitrais de igreja – uma mistura
de trágico e sereno.
A cidade acabava justamente de firmar o contrato para
pavimentação das calçadas e, no verão que seguiu a morte de seu
pai, começaram os trabalhos. A companhia construtora trouxe
negros, mulas e máquinas, e um contramestre chamado Homer
Barron, um “yankee”, homem grande, moreno e decidido, com um
vozeirão enorme e olhos mais claros do que a pele do rosto. Os
garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo gritar com os negros,
e para ouvir os negros cantando em compasso, enquanto erguiam e
abaixavam a picareta. Em breve, o contramestre conhecia toda a
gente da cidade.
Cada vez que se ouviam ruidosas gargalhadas na praça, podia-se
jurar que Homer Barron estava no centro do grupo. Não tardamos a
avistá-lo, nos domingos à tarde, passeando com Miss Emily na
carriola de aluguel, que tinha rodas amarelas e era puxada por uma
parelha de cavalos baios.
A princípio, todos ficaram satisfeitos de ver que Miss Emily tinha
agora um interesse na vida. As senhoras andavam dizendo:
“Naturalmente, nunca uma Grierson tomará a sério um nortista, um
assalariado.”
Mas havia outras pessoas, as mais velhas, que achavam que nem
mesmo o desgosto deveria fazer que uma verdadeira senhora se
esquecesse de que “noblesse oblige”. (Sem no entanto, empregar
essa expressão: Noblesse oblige). Diziam, apenas: “Pobre Emily. Os
parentes deviam procurá-la.”

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Tinha parentes em Alabama, mas, alguns anos antes, o pai rompera
com eles por causa da herança da velha Lady Wyatt, a louca, e não
havia mais relações entre as duas famílias. Nem sequer se tinham
feito representar no enterro.
E, mal a gente velha exclamou “Pobre Emíly”, os mexericos
começaram: “Vocês imaginam que, realmente. . .” diziam uns para
os outros. – “Mas nem há dúvida. Porque, a não ser isso. . ” tudo
sussurrado atrás das mãos no amarrotado farfalhar de sedas e cetins
por detrás das janelas fechadas ao sol das tardes de domingo,
enquanto a parelha de cavalos baios passava num leve e apressado
clop-clop-clop. – “Pobre Emily!”
Ela, porém, erguia a cabeça bem alto, mesmo quando pensávamos
que tinha decaído. Parecia, mais do que nunca, exigir que se
reconhecesse sua dignidade de última dos Grierson, como se fosse
necessário aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais
profundamente a sua impenetrabilidade. Tal como no dia em que
comprou o veneno para ratos, o arsênico. Isso aconteceu um ano
depois de terem começado a dizer:
“Pobre Emily”, e quando as duas primas estavam hospedadas em
sua casa.
– Quero comprar veneno – disse ao farmacêutico. Contava, então,
mais de trinta anos; era ainda delgada, embora estivesse mais magra
do que de costume, com os olhos negros, altivos e frios num rosto
cuja pele se repuxava na altura das têmporas e em volta das
pálpebras, como se imaginava que deveria ser o rosto de um
guardião de farol. – Quero comprar veneno.
– Pois não, Míss Emily. Que espécie de veneno? para ratos ou
qualquer coisa assim? Recomen…
– Quero o que o senhor tiver de melhor. Não importa qual seja.
O farmacêutico citou alguns:
– Matariam até mesmo um elefante. Mas o que a senhora quer e…
– Arsênico – disse ela. – É bom?
– É… arsênico? Pois sim, senhora. Mas o que a senhora quer ….

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– Eu quero arsênico.
– Pois, naturalmente – disse ele. – Se é isso que a senhora quer.
Porém, a lei determina que a senhora declare o fim que dará ao
veneno.
Miss Emily limitou-se a fitá-lo, com a cabeça pendida para melhor
fixar os olhos nos olhos dele, até forçá-lo a desviar o olhar e a ir
buscar o arsênico, que embrulhou. O caixeiro negro que fazia
entregas trouxe-lhe o pacote, pois o farmacêutico não tornou a
aparecer. Ao chegar em casa, tirou o papel; na tampa da caixa,
debaixo da caveira e os dois ossos, estava escrito: “Para ratos”.
Assim, no dia seguinte, nós dizíamos: “Ela vai suicidar-se”, e
achávamos que era a melhor solução. Quando começáramos a vê-la
com Homer Barrou, tínhamos dito: “Vai casar-se com ele”. Depois,
dizíamos: “Ela ainda acabará por persuadi-lo”, porque o próprio
Homer observava – gostava da companhia dos homens e sabia-se
que bebia com os rapazes no Elk´s Club – que não era feito para
casamento. Mais tarde, dissemos: “Pobre Emily”, por detrás das
venezianas, quando ambos passavam, nas tardes de domingo, na
carriola vistosa, Miss Emily de cabeça erguida e Homer Barrou com
o chapéu de lado e um charuto entre os dentes, segurando as rédeas
e o chicote nas luvas amarelas.
Então, algumas senhoras começaram a declarar que aquilo era uma
vergonha para a cidade e um mau exemplo para a gente moça. Os
homens não ousavam intervir, mas, finalmente, as mulheres
forçaram o pastor batista – a gente de Miss Emily era episcopal – a
ir procurá-la. O pastor negou-se sempre a contar o que acontecera
durante a entrevista e recusou-se a voltar à sua casa. No domingo
seguinte, saíram juntos novamente e, no outro dia, a mulher do
ministro escreveu aos parentes de Miss Emily, em Alabama.
Dessa forma, ela teve pessoas de seu sangue outra vez debaixo de
seu teto e nós ficamos todos à espera dos acontecimentos. A
princípio, nada aconteceu. Depois, ficamos convencidos de que iam
se casar. Soubemos que Miss Emily fôra à joalheria e encomendara
um jogo de toucador para homem, todo de prata, com as iniciais H.
B. gravadas em cada peça. Dois dias mais tarde, fomos informados
de que comprara um enxoval masculino completo, inclusive uma
camisola de dormir, e dissemos: “Estão casados”. E ficamos

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contentes, porque as duas primas eram mais Grierson ainda do que
Miss Emily jamais o fora.
Não tivemos grande surpresa quando, terminado o calçamento das
ruas, Homer Barron partiu. Sentimo-nos um pouco decepcionados
por não ter havido nenhuma manifestação pública de regozijo, mas
julgamos que se tivesse afastado para preparar a ida de Miss Emily,
ou para lhe dar a oportunidade de se livrar das primas. (Por essa
época formáramos uma verdadeira cabala, e éramos todos aliados
de Miss Emily no sentido de ajudá-la a alijar as primas). O que é
certo é que elas partiram ao fim de outra semana. E, como
esperávamos, no terceiro dia após essa partida, Homer Barron estava
de volta à cidade. Os vizinhos viram o negro abrir-lhe a porta da
cozinha, uma tarde ao escurecer.
Foi essa a última vez que vimos Homer Barron. E, durante algum
tempo, não tornamos também a ver Miss Emily. O negro ia e vinha
com a cesta das compras, mas a porta da entrada continuava fechada.
Uma vez ou outra conseguimos avistá-la à janela por alguns
instantes, como naquela noite em que os homens foram à sua casa
espalhar a cal; durante mais de seis meses, porém, ela não apareceu
nas ruas. Compreendemos que isso também era de esperar; como se
aquele aspecto do caráter de seu pai, que tantas vezes constrangera
sua vida de mulher, fosse virulento e furioso demais para morrer
assim.
Quando a vimos novamente, Miss Emily tinha engordado muito e
seus cabelos estavam ficando grisalhos. Nos anos seguintes, foram
ficando cada vez mais grisalhos, até o momento em que, tendo
adquirido um tom cinzento-de-aço, sua cabeleira não mudou mais
de cor. Até o dia de sua morte, aos setenta e quatro anos, aqueles
cabelos conservavam ainda esse vigoroso tom cinzento-de-aço,
como os cabelos de um homem ativo.
Desde aquela época, sua porta ficara fechada, exceto no decorrer de
um período de seis ou sete anos, quando ela, quarentona, dava aulas
de pintura em porcelana. Instalara, num aposento do andar térreo, o
atelier onde as filhas e netas dos contemporâneos do Coronel
Sartóris lhe eram enviadas com a mesma regularidade e dentro do
mesmo espírito com que as mandavam à igreja, nos domingos,
munidas de uma moedinha de vinte centavos para a hora da coleta.

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Nesse ínterim, Miss Emily se vira dispensada do pagamento de
impostos.
A nova geração tornou-se, então, a espinha dorsal e a alma da
cidade, as alunas cresceram e dispersaram-se, e não lhe mandaram
as filhas com as caixinhas de tinta, os aborrecidos pincéis e os
modelos recortados das revistas ilustradas femininas. A porta
fechou-se sobre a última aluna e ficou fechada desde então. Quando
a cidade adotou a distribuição gratuita do correio, Miss Emily foi a
única pessoa que se negou a consentir que fixassem um número de
metal acima de sua porta e uma caixa postal ao lado. Não houve
argumento que a convencesse.
Dias, meses e anos, vimos o negro, cada vez mais grisalho e
curvado, entrando e saindo com a cesta de compras. Anualmente,
em dezembro, mandavam-lhe a declaração de impostos, que o
correio devolvia na semana seguinte, com a nota de não haver sido
reclamada. Uma vez ou outra, nós a avistávamos diante da janela do
andar térreo – tinha, evidentemente, fechado todo o andar superior
da casa – semelhante ao busto esculpido de um ídolo no seu nicho,
e nunca chegamos a saber se estava olhando para nós, ou se nem
sequer nos via. E assim passou ela de geração para geração –
querida, inevitável, impenetrável, tranquila e perversa.
E, então, ela morreu. Caiu doente no seu casarão cheio de sombras
e de pó, tendo como único auxílio o negro caduco. Nem ao menos
soubéramos que estava doente, pois havia já muito tempo que
desistíramos de arrancar qualquer informação ao negro. Não falava
com pessoa alguma, talvez nem mesmo com ela; sua voz se tornara
áspera e rouquenha como uma voz que não serve nunca.
Morreu num dos quartos do andar térreo, numa cama de nogueira
maciça com cortinados, a cabeça grisalha erguida por um travesseiro
amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol.
O negro encontrou a primeira das senhoras na porta da frente;
deixou-as entrar, com suas vozes sussurradas e sibilantes, com seus
olhares rápidos, furtivos e curiosos, e depois desapareceu. Meteu-se
pela casa a dentro, atravessou-a toda, saiu pelos fundos e sumiu para
sempre.

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A duas primas não tardaram a chegar. Fizeram o enterro no segundo
dia. A cidade em peso compareceu para ver Miss Emily coberta por
um montão de flores compradas, o retrato, a carvão, de seu pai
profundamente pensativo, acima do caixão, cercado pelas senhoras
sibilantes e macabras. No saguão e no gramado, homens, muito
velhos – alguns nos uniformes de confederados muito bem
escovadinhos – falavam de Miss Emily como se fosse uma de suas
contemporâneas, imaginando que tinham dançado com ela, e até
mesmo, talvez, que a tinham namorado, confundindo o tempo e a
progressão matemática, como fazem os velhos, para os quais o
passado não é uma estrada que se vai encurtando, porém uma vasta
planície nunca atingida pelo inverno, dividida para eles, agora, pelo
estreito gargalo da ampulheta dos últimos dez anos.
Nós todos já sabíamos da existência, naquela região, do andar
superior, onde ninguém pisara há quarenta anos, de um quarto
fechado que seria preciso arrombar. Esperamos que Miss Emily
estivesse docemente enterrada, antes de forçá-lo.
A violência com que pusemos a porta abaixo pareceu encher o
quarto de uma poeira penetrante. Era como se uma mortalha, tênue
e acre, se estendesse sobre todas as coisas daquele quarto, mobiliado
e enfeitado para urna noite de núpcias: sobre as desbotadas cortinas
de pesada seda cor-de-rosa, sobre os quebra. Luzes rosados das
lâmpadas, sobre a penteadeira, sobre os delicados objetos de cristal,
sobre as peças do aparelho de toucador para homem, com seus
dorsos de prata embaciados, tão embaciados que nem se distinguiam
os monogramas escurecidos.
Entre os pertences do toucador, estavam jogados um colarinho e
uma gravata, como se tivessem acabado de tirá-los naquele
momento; quando os levantamos, deixaram na superfície uma pálida
meia lua traçada na poeira. O terno de roupa estava dobrado
cuidadosamente numa cadeira, debaixo da qual se viam os dois
sapatos mudos e as meias largadas no chão.
E o homem estava deitado na cama.
Durante muito tempo, ali ficamos, imóveis, olhando para o seu
ríctus profundo e descarnado, O corpo devia ter, a princípio,
repousado na atitude de carícia, abraçado a outro corpo, mas agora
o grande sono que sobrevive ao amor, o grande sono que vence até

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mesmo as carícias do amor, dominara-o afinal. O que restava dele,
em decomposição dentro do que restava de sua camisola de dormir,
tornara-se inseparável do leito em que jazia; e sobre ele, assim como
sobre o travesseiro vazio ao seu lado, estendera-se aquela camada
espessa de paciente e obstinada poeira.
Notamos, então, que no segundo travesseiro havia a marca funda de
uma cabeça. Um de nós encontrou qualquer coisa caída sobre esse
travesseiro e, debruçando-se, enquanto a leve, impalpável poeira
acre e seca, nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de cabelo
de um tom cinzento-de-aço.

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