Você está na página 1de 38

A IMORTALIDADE DA ALMA HUMANA

SEGUNDO SANTO TOMÁS DE AQUINO

Carlos Ancêde Nougué

Entre as doutrinas filosóficas que têm o homem por dado


real,1 ou seja, no campo do realismo, duas concepções se
encontram em lados diametralmente opostos quanto ao modo
de considerar a nossa natureza. E, se se admite que o homem
é um dado real no sentido estrito do termo, se se admite que
ele possui verdadeira consistência substancial — cada um de
nós é o mesmo indivíduo desde o nascimento até o último
suspiro — então como o conceber precisamente? De
Demócrito2 a Marx, o materialismo explica-o já por um
condicionamento físico-mecânico, já por um condicionamento
econômico.3 Por sua parte, o ultra-espiritualismo considera o
homem como uma espécie de anjo encerrado num corpo,
trate-se quer do platonismo,4 quer do cartesianismo.5

1 Se o digo, é porque há doutrinas que o negam: o idealismo fenomenista,


que não vê em nós senão um feixe de fenômenos físicos, e o idealismo
reflexivo, que não vê em nós senão um mero ato, um mero élan criador.
2 Filósofo grego do século V a.C. Ele fazia consistir o ser numa infinidade

de átomos. Ria-se continuamente da loucura humana, e é não raro oposto


a Heráclito, a quem o mesmo motivo fazia chorar.
3 Não o posso aprofundar aqui (deixando-o para outro Comentário), mas

concluo: o materialismo é radicalmente falso, contraditório nos seus


próprios termos, e teria sido um natimorto não fossem os seus múltiplos
artifícios retóricos e sofísticos.
4 Para Platão, a alma encontra-se no corpo “como o piloto no seu navio”.
5 Se é evidente que o católico Descartes pretende salvaguardar a unidade

do homem, resta-nos porém saber se suas pretensões são fundadas.


Segundo ele, a alma é “a coisa pensante”, e o corpo “a coisa extensa”,

11
Continuemos a tratar o ultra-espiritualismo. Ora, ele
indubitavelmente não dá conta das inegáveis correlações que
há no homem entre a vida psíquica e a vida orgânica (sono,
traumatismos, lesões cerebrais etc.). Nem Platão, nem
Descartes, nem os discípulos de ambos — todos sempre
dualistas — são capazes sequer de conceber tais fenômenos
como as correlações que de fato são. Mas, se o ultra-
espiritualismo não é uma resposta veraz à falsidade
materialista com respeito à natureza humana, onde se
encontrará a verdadeira resposta? Na solução tomista, como
veremos. Como em todas as questões, o tomismo assoma
aqui como solução entre posições antinômicas — como
“cume entre dois vales”.6
Há porém que dizer, de início, que a solução tomista
começa (só começa) pela assimilação da solução que
Aristóteles dá ao problema da natureza humana: a alma é a
forma substancial do corpo. Trata-se da aplicação à natureza
humana da teoria aristotélica do hilemorfismo. Detenhamo-nos
nela.
O hilemorfismo (de hylê = matéria + morphê = forma) pode
ser provado por diversos argumentos, e efetivamente é por
diversas vias que os seus defensores o provam. Iniciemos
pela via extraída da oposição entre determinadas
propriedades (atividade e passividade, quantidade e

atuando a primeira sobre a segunda através de um ponto da glândula


pineal (o conarium)!... “Seu discípulo independente Regius via no homem
uma unidade acidental, e, apesar das invectivas do mestre, parece
efetivamente que ele é aqui mais cartesiano que o próprio Descartes. —
Spinoza, por seu turno, considera que a união da alma e do corpo em
Descartes é mais obscura que as mais obscuras entidades escolásticas, e
busca alhures (paralelismo). Atitude também insatisfeita com o
cartesianismo ortodoxo encontra-se em Leibniz e Malebranche” (Louis
Jugnet, La pensée de Saint Thomas d’Aquin, Paris, Nouvelles Éditions latines,
1999, p. 92, n. 28). Jugnet é um dos principais comentadores modernos de
Santo Tomás de Aquino.
6 Esta feliz imagem é de Louis Jugnet.

12
qualidade etc.). Tome-se aqui esta última oposição, e o
evidente acerca dela: a quantidade e a qualidade são
irredutíveis uma à outra. Mas como o explicar, já que são os
mesmos corpos que apresentam ao mesmo tempo
propriedades quantitativas e propriedades qualitativas? É
que estes dois fenômenos concomitantes não se dão sob o
mesmo aspecto ou ângulo. Sendo irredutíveis entre si,
qualidade e quantidade não podem ter o mesmo princípio,
não podem ter a mesma “raiz inteligível”.7 Por isso é preciso
admitir que cada corpo é composto (conquanto não o seja de
modo visível nem tangível, donde só o possamos conceber
por análise ou indução racional) de dois princípios, nenhum
dos quais o constitui totalmente, sendo antes ele, o corpo
individual, a síntese, a convergência indissociável de ambos
estes princípios. Um deles, raiz da quantidade, é a matéria
prima (idêntica em todos os corpos), e o outro, fonte da
qualidade (ou seja, fonte de especificação e de finalidade), é a
forma ou forma substancial, que é diferente ou própria em cada
tipo de ente, e que faz cada ente ser o que é e atuar como
atua.
Desenvolva-se agora outro argumento, e façamo-lo
tomando como exemplo o fenômeno da nutrição seguida da
assimilação. Que se dá aqui? Que se dá quando qualquer
animal come? A ciência pode descrever, neste fenômeno, uma
diversidade de processos físico-químicos, mas a filosofia da
natureza interessa-se aqui por outra coisa, a saber: a
constatação de que qualquer animal, uma vez nutrido,
elimina determinados elementos dos corpos que ele comeu,
mas ao mesmo tempo guarda deles alguma coisa que ele
mudou, que ele transformou nele mesmo, incorporando-o ao
seu próprio ser. Assim, se se ingeriu carne, ela já não se
encontrará na carne nem no sangue de quem a ingeriu. Dela,
algo desapareceu e algo permanece no corpo do animal que a

7 Esta expressão também é de Louis Jugnet.

13
ingeriu. Como o expressar? Assim: na alimentação, elementos
estranhos ao corpo de determinado animal tornam-se parte
dele, existindo agora de modo completamente novo;
incorporam-se ao todo que é este animal, determinados pela
forma (morphê ou eidos) própria dele.8 Algo, todavia, subsiste,
e é o substrato material, a potencialidade que recebeu a forma
nova, a forma do animal que se alimentou, em lugar do que
determinava a forma anterior. Mas acautelemo-nos, desde já,
de uma absurdidade freqüentemente cometida a respeito da
teoria hilemórfica, afirmando: a matéria não é, de modo
nenhum, algo constituído independentemente de alguma
forma. Tudo quanto há na criação — ainda que se trate de
uma partícula atômica ou de um cômoro — é já uma síntese
matéria-forma. É já uma dualidade ontológica. É impossível a
existência de matéria sem forma9 (assim como é impossível a
existência de forma sem matéria10). Por conseguinte, a
matéria prima não é algo que se possa figurar visível nem
imageticamente, não é algo que se possa pensar nem
conceber. Se sem ela nos seria impossível compreender a
curiosa mescla de estabilidade e mudança que é uma
modificação substancial como a que se dá na alimentação, e

8 Vê-se claramente por esta afirmação que “a palavra ‘forma’


absolutamente não é sinônimo de ‘figura’, como na linguagem vulgar
(‘uma folha de forma triangular’), mas vai muito mais longe, designando
um princípio radical, uma fonte de ser, de tipo qualitativo e dinâmico, que
não se alcança senão ao cabo de uma inferência, a partir de um dado
imediatamente constatado” (Louis Jugnet, op. cit., p. 84).
9 Donde a radical oposição do tomismo à doutrina de Duns Scot. — O

sistema teológico de John DUNS SCOT (1266-1308), frade franciscano,


contribuiu decisivamente para pôr à margem, durante séculos, o realismo
tomista, e para minar os próprios alicerces do cristianismo.
10 A questão da sobrevivência da alma humana — ou seja, da forma

humana — após a morte do corpo suscita um problema à parte, cuja


solução apresentarei mais adiante.

14
se é indubitavelmente real,11 ela no entanto não tem por si
mesma nenhuma propriedade no estado atual.12 Segundo a
fórmula tomista, a matéria prima não é, por si mesma, “nec
quid” (ou seja, não tem essência independente da que dá a
forma ao composto hilemórfico), nem “nec quale” (ou seja, não
tem nenhuma qualidade isolada, dado que esta não se pode
conceber senão com relação à forma que lhe é o princípio e a
explicação), nem “nec quantum” (não tem extensão atual, pois
que qualquer corpo, qualquer extensão é já um composto
hilemórfico, não sendo a matéria prima senão a fonte passiva
para o corpo total, a capacidade de este ser extenso). Em
termos aristotélicos, a matéria prima é pura potência.
A noção de potência requer, sem dúvida, vigoroso e
profundo esforço de análise inteligível; mas sem ela é
impossível conceber nem explicar a natureza íntima da
matéria e, mais especialmente, a mudança que esta sofre. Ora,
se a matéria prima não fosse pura potência, se de algum
modo ela fosse já alguma forma, toda e qualquer mudança já
não seria senão acidental ou secundária, e não haveria
diferença senão de grau, por exemplo, entre o mudar
permanecendo o mesmo e o fato de nascer e morrer — ou
seja, estar-se-ia diante de um contra-senso.13

11 Por entrar em composição com um ser real, “ela não é uma simples
possibilidade lógica, uma pura abstração idealista que não seria a fonte de
absolutamente nada” (Louis Jugnet, op. cit., p. 85).
12 Entenda-se “estado atual” no sentido metafísico, ou seja, como “estado

de ato”. Já o veremos.
13 Apresentou-se aqui a prova pelo aspecto mais decisivo. Mas também se

pode, como o faz Louis Jugnet (in ibid., pp. 85-86, n. 18), partir
filosoficamente das mutações que redundam numa síntese química de tipo
não-vivente. “O acetileno é diverso do carbono mais o hidrogênio. O
ácido clorídrico é diverso do cloro mais o hidrogênio. Pouco importa que
a microestrutura dos componentes seja ainda reconhecível, sem certo
sentido, no composto, porque a fisionomia de conjunto (se nos podemos
exprimir assim) do corpo considerado é nova, se o novo agrupamento de
propriedades manifesta ao filósofo, como dado primeiro e irredutível, a

15
Pois bem, para trilharmos com segurança o caminho que,
retornando ainda à questão do hilemorfismo, nos levará por
fim à concepção tomista da alma humana, demos um salto à
metafísica e detenhamo-nos algo longamente nas noções de
ato e potência.
Este par de noções é, indubitavelmente, o centro não só de
todo o aristotelismo mas de todo o tomismo, e responde a
uma indagação igualmente central: Numa metafísica do ser,
na qual o princípio de identidade absolutamente não se
resume a uma lei do pensamento, sendo também, e
sobretudo, uma expressão do real, como considerar a
mudança e o devir? É justamente esta a questão que sempre
dividiu, e ainda divide, os filósofos, lançando-os em
antinomias e aporias14 perpétuas, e que porém se resolve de
todo pela doutrina perene. Vejamo-lo.

presença de uma natureza nova. Não é preciso que o detalhe mesmo das
propriedades seja oposto ao que precedia. Repitamos com Aristóteles [e
até com] os fenomenólogos e ‘gestaltistas’: o todo não se explica pelas
partes, mas as precede e lhes é irredutível. — A maneira como um
composto hilemórfico ‘se altera’ e dá nascimento a um corpo novo
(vivente ou não-vivente, o esquema é o mesmo em ambos os casos) foi
perscrutado com diligência e lucidez pelos autores da escola tomista, [a
começar pelo] próprio Santo Tomás (Comentário ao De generatione et
corruptione de Aristóteles, por exemplo) [...]. Contentemo-nos [aqui] com
dizer que esta análise guarda todo o seu valor filosófico quaisquer que
sejam as ilustrações científicas discutíveis dadas pelos escolásticos citados.
Encontrar-se-á no [...] Curso de Filosofia de Régis Jolivet [Rio de Janeiro,
Agir, 1955] [...] um excelente estudo da questão, e que mostra que estas
visões são conciliáveis com a física moderna.”
14 Em filosofia, chama-se antinomia ao conflito entre duas asserções

demonstradas ou refutadas aparentemente com igual rigor. Já aporia vem


do grego aporía, que quer dizer propriamente “ausência de passagem ou
de meio”, ou “embaraço, dificuldade, necessidade”; em Aristóteles,
significa “dificuldade por resolver”, ou, mais precisamente, “apresentação
de duas opiniões contrárias e igualmente racionais em resposta a uma
mesma questão” (HAMELIN, Systeme d’Aristote, p. 233, citado em André
LALANDE, Vocabulário Técnico e Científico da Filosofia, São Paulo, Martins
Fontes, 1999).

16
Dois dados impõem-se imediatamente, aqui: a existência
da mudança, que é uma evidência sensível, e, por outro lado,
a exigência de identidade, que se manifesta pela inteligência,
e que traduz a irredutibilidade entre o ser e o não-ser. Sucede,
todavia, que estes dois dados não se conciliam facilmente, o
que leva muitos filósofos a sacrificar ou a mudança (e a
pluralidade que dela decorre), ou a identidade.15 Ora, não se
pode negar o fato da mudança, a não ser que se professe uma
teoria céptica do conhecimento e, por ela, se considere ilusão
tudo quanto nos fornecem os sentidos. Mas permaneçamos
no terreno do bom senso, e tomemos por exemplo um objeto
que muda — um vegetal que rebenta: um eucalipto, um
cipreste, um carvalho. Esta nova maneira de ser é
absolutamente real, e não há negá-la. E ela é de todo nova;
não existia tal qual existe agora; não estava assim constituída
antes de se manifestar exatamente assim. O carvalho não está
pré-formado na glande, assim como o embrião animal não
está pré-constituído nas células parentais. Como tal se pode
dar? Por uma criação ex nihilo, ou seja, a partir do nada? De
modo algum, e antes de tudo porque a idéia de criação não se
pode conceber senão com respeito a uma causa infinita e
perfeita, e não com respeito a agentes criados e limitados,
sejam estes visíveis ou invisíveis; mas também porque, se tal
propriedade16 nova, ao aparecer, fosse uma criação em
sentido estrito ou literal, ela se aplicaria sobre o ente que lhe é
o sujeito — ou seja, aplicar-se-ia a ele do exterior — e
portanto não estaria em continuidade dinâmica com os

15E isto desde a Antiguidade grega. De um lado, dizia Parmênides que


qualquer mudança é impensável, contraditória; do outro lado,
abandonava Heráclito a identidade, afirmando que não nos podemos
banhar duas vezes no mesmo rio (o que levaria a pensar, como de fato
sucedeu, que não nos podemos banhar num mesmo rio nem sequer uma
vez, pois que nada permanece nem nunca propriamente é).
16 Tome-se aqui propriedade em sentido lato, a englobar qualquer

modificação: na extensão, na localização, na cor, na textura etc.

17
estados que a antecederam. O que se dá é que tal propriedade
nova já se encontra, sim, com anterioridade no sujeito, mas
num modo de ser todo particular: justamente, em potência.
A potência não se pode ver, nem tocar, nem medir, porque
não se pode ver, nem tocar, nem medir o que de alguma
maneira já se realizou, o que, pois, está já em ato. À potência
apenas a inferimos ou concluímos, tornando assim inteligível
ou pensável a mudança. Não há “imaginar visualmente o ente
em potência como uma espécie de feto no seio da mãe”;17 há
que pensá-lo com relação à noção de ato, porque este, sim, é
que corresponde ao dado factual. A potência não é como um
ato truncado ou apenas esboçado.
Como lembra ainda Louis Jugnet,18 muitos filósofos
modernos consideram que esta propriedade não passa, antes
da sua manifestação, de pura possibilidade lógica, uma pura
abstração, sem conteúdo ontológico. Pois precisamente aí,
nessa negação, é que reside a ruína do seu pensamento: entre
o puro possível de ordem nocional (ou seja, o que poderia
existir se tal ou qual condição se desse) e o atual (ou seja, o
que está efetivamente dado) há a potência real (ou seja, o que é
mais que o possível e menos que o atual), e sem esta noção
todo e qualquer sistema filosófico não redundará senão em
aporias.
Retomemos o raciocínio de forma agora esquemática: todo
e qualquer ente pode ser ou ainda possível, ou já real, e, sendo
já real, pode estar ou em potência ou em ato. Não há de ser de
outro modo, porque admitir que uma propriedade nova (o
eucalipto, o cipreste, o carvalho) é real e dizer, em seguida,
que antes de ela manifestar-se havia somente uma
possibilidade lógica seria dizer, de maneira contraditória, que
um efeito real pode advir de uma causa ou fonte não-real.
Ora, o puro possível não é nada constituído, e, se o resultado

17 Louis Jugnet, ibid., p. 109.


18 Idem.

18
ou ponto de chegada é real ou atual, só o é pelo fato de a
fonte ou ponto de partida ser, obrigatoriamente, real (ainda
que real potencial), e não mera possibilidade conceptual.19
A noção de potência é analógica, quer dizer, é correlativa à
noção de ato: trata-se sempre de potência de tal ou qual ato,
donde haver numerosos tipos de potência, sem nada em
comum entre si senão o fato simples de ser potência e não ato
(sem se tratar com isto, insista-se, de puro possível). Assim, a
compreensão do par matéria/forma, do qual tratamos mais
acima, só se pode dar pela aplicação destas noções de
potência e ato.20 Ademais, há que distinguir a potência passiva
(capacidade receptiva, ou potência de padecer) da potência
ativa (ordenada à ação). Esta última tende, naturalmente, por
sua própria natureza, a passar ao ato, mas ainda assim
permanece autêntica potência; não é de modo algum ato, nem
sequer ato esboçado. Esquematicamente outra vez, mas em
plano superior: todo e qualquer ente pode ser ou ainda
possível, ou já real, e, sendo já real, pode estar em potência ou
passiva ou ativa, ou pode estar em ato.
Pois bem, a idéia mestra desta metafísica é a superioridade
do ato, como tal, sobre a potência, e a sua anterioridade, em

19 Veja-se o que diz Aristóteles (in Metafísica Θ, 3, 1.046 b 29–1.047 a 4)


contra o céptico Protágoras: “Pretender que não se tem realmente
potência senão quando se atua (de fato), e que lá onde não se atua já não
há potência, seria sustentar que aquele que não constrói não pode
construir, ou que já não há construtor a partir do momento em que ele não
constrói, ou, enfim, que o artista que cessa de exercer a sua arte já não a
possui. Mas, então, por que aquisição súbita pode pôr-se ele a trabalhar?”
É a resposta definitiva à negação da potência e todas as absurdidades que
dela decorram.
20 O mesmo se diga com respeito ao par essência/existência, o qual,

porém, não se pode estudar nos limites deste Comentário. Mas digamos
com Louis Jugnet (ibid., p. 110): “É graças à noção de potência que a
metafísica aristotélica e, mais ainda, a tomista possui esta mescla de
flexibilidade e estabilidade, de amplitude e concentração, de alta
abstração e simplicidade familiar que muitos dos seus adversários lhe
reconheceram.”

19
termos absolutos, com relação a ela. Por que superioridade?
Porque tudo o que está efetivamente realizado, ou seja, tudo
o que é, está em ato. Dizer ato é dizer perfeição.21 Um ente que
muda é, assim, imperfeito: está prestes a adquirir ou perder
algo, o que lhe denota a finitude ou contingência. O que lhe
denota a pobreza ontológica. A mudança, isto é, a passagem
da potência ao ato, “não tem sentido senão em relação ao ato
para o qual tende. É maximamente absurdo crer que há mais
no devir que no ser, mais na caça do que na presa”.22
Evidentemente, uma realidade existe em potência antes de
estar em ato,23 mas, globalmente, o ato é anterior à potência:
toda e qualquer mudança, quer dizer, toda e qualquer
passagem da potência ao ato, supõe a ação de algo já em ato
(motor); além disso, e sobretudo, acima de todos os motores
movidos há o Primeiro Motor Imóvel, não fazendo aqueles
senão transmitir-lhe a atividade primária. Em suma: Primeiro
Motor Imóvel = Ato Puro (sem mistura de potência alguma)
= Deus.24
Mas é precisamente da distinção entre ato e potência que
nos advém uma questão filosófica de solução complexa, sobre
a qual, se queremos chegar seguramente ao termo deste
Comentário e compreender sem lacunas a visão tomista da
alma humana, tenho de me debruçar algo exaustivamente.
Formulo-a: Se a potência é limitada por si mesma, o ato não

21 Obviamente, perfeição não no sentido moral, mas no metafísico.


22 Louis Jugnet, ibid., p. 111.
23 Só não o estará se criada ex nihilo, como o Universo na origem e a alma

humana em cada concepção.


24 Isto, como bem afirma Louis Jugnet, “condena radicalmente todo o

panteísmo evolutivo” (idem), e particularmente, digo eu, o teilhardismo e


suas variações modernistas: Cristo jamais poderia ter sido um homem que
se fez Deus, e afirmar o contrário é a absurdidade das absurdidades.
Condena, por outro lado, e igualmente, as visões gnósticas (como a
guénoniana), segundo as quais acima do manifestado está o Não-
manifestado, a divindade Potência, o deus Nada. Cf. Santo Tomás, In XII
Metaph., lect. 5; Contra Gentiles, I, c. 16, e Sum. Theol., Ia, q. 2, a. 3.

20
pode ser limitado senão por uma potência na qual ele seja
recebido, ou então pelo seu papel potencial com respeito a
um ato superior.
Determinada potência é sempre a capacidade real de
determinada perfeição. Esta noção, todavia, implica em si
mesma limitação — é que ela remete a um aspecto da
realidade constituído precisamente por tal capacidade e não
por nenhuma outra, ou seja, por uma capacidade de certo
grau e não por uma capacidade de grau superior. Ora, se
quanto à potência não há perguntar o que a limita, por ser
patente a resposta, o mesmo não se dá com respeito ao ato.
Que não se lhe busque a razão da limitação na atividade da
causa que o põe na existência, fazendo-o justamente finito e
limitado — será vão. Esta tentativa, feita por Suárez,25 ao
mesmo tempo que recorre a uma explicação exterior à
realidade considerada, sem explicá-la de dentro da sua
finitude essencial, esquece que a causa exterior, Deus, não
pode produzir o ato como limitado senão enquanto é ele
recebido precisamente numa potência que o limite. Desse
modo, a forma é limitada pela matéria prima que a recebe,
assim como a existência é limitada pela essência receptora.26
Por natureza e por definição ato quer dizer perfeição, e tende a
comunicar-se e expandir-se sem nenhuma limitação
intrínseca. Ele não traz em si a idéia de limitação. O real não
pode, sem ferir o princípio de não-contradição,27 ser o que

25 Francisco Suárez, jesuíta espanhol (Granada, 1548-Lisboa, 1617),


professou uma teologia eclética, soi-disant inspirada em Santo Tomás de
Aquino. É autor importante e prolífico, e entre as suas principais obras se
contam Disputationes metaphysicæ, uma Defensio fidei (1613, contra Jaime I
da Inglaterra) e extensos comentários da Suma Teológica.
26 Refiro aqui o par essência/existência somente à guisa de ilustração,

porque, como já disse, não o poderei tratar neste texto.


27 Este princípio afirma que “o que é não é o que não é”, ou, em termos

mais precisos: “Algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo nem sob o
mesmo aspecto”. Em termos lógicos, a negação de uma proposição

21
tende a conferir a perfeição e o que, a um só tempo e sob
idêntico aspecto, limita ou impede esta mesma perfeição.28
Este é o fundamento da metafísica tomista.29
Como se disse mais acima, o ato é limitado pela potência,
ou por seu papel de potência com relação a um ato superior.30
Acrescente-se, agora, que se a potência é limitada por si
mesma, enquanto tal ou qual capacidade, ela no entanto
guarda certa indeterminação que como requer o ato que a
completa. Assim, a matéria prima, que é pura potência, é por
si mesma despida de forma, e a aquisição de dada forma, que
a faz fixar-se em dada espécie, determina-lhe o contorno
ontológico e inteligível — tem-se, agora, um composto
hilemórfico.
Aliás, não há conceber tal limitação do ato — da perfeição
— pela potência como se se tratasse de esta atuar sobre
aquele para o deter ou fazer retrair. Sim, porque o ato não é
limitado pela potência senão enquanto é tal ato, ordenado a
tal potência e não a nenhuma outra. Ato e potência não são
coisas já formadas, mas elementos do real que só se dão
correlativamente — que só são um pelo outro.31

afirmativa verdadeira será falsa e vice-versa, pois o contrário do falso é o


verdadeiro.
28 “A existência, em particular, não implica em si mesma nenhuma

limitação. Se não é recebida e limitada por uma potência, ela é infinita e é


Deus. Mas só Ele está neste caso. Nos entes finitos, sucede o inverso [...]”
(Louis Jugnet, ibid., p. 113).
29 Cf. de Santo Tomás De ente et essentia, c. 5; In I Sent., d. 43, q. 1, a. 1; Q.d

de veritate, q. 2, a. 2, ad. 5; Quodl., III, q. 2, a. 1; Sum. Theol., Ia, q. 7, a. 1;


Contra Gentiles, I, c. 43; Compendium theologiae, c. 18.
30 Veja-se o caso da forma substancial, que é ato com respeito à matéria que

ela faz ser isto ou aquilo. Mas o par forma/matéria, que constitui a
essência dos seres corporais, está ainda em potência com respeito à
existência.
31 Trata-se aqui de uma relação transcendental, ou seja, aquela em que um

aspecto do real é tão-somente implicação ou participação de outro. —


Transcrevo aqui as seguintes páginas fundamentais de Louis Jugnet (idem,
pp. 113-115) sobre a delicada questão filosófica da participação, a qual,

22
conquanto não tenha que ver diretamente com o tema deste texto, é
porém capital para o justo entendimento do tomismo. “Este [...] problema
suscita por si mesmo toda a questão da participação, no sentido metafísico
que reveste especialmente em Platão, e, ademais, introduz o problema
histórico das relações entre platonismo e aristotelismo em Santo Tomás,
questão difícil [...] que, ainda recentemente, reteve a atenção de eminentes
especialistas na história das escolástica. [...]
Uma coisa, antes de tudo, é bem evidente: que a idéia de participação
desempenha em Platão papel considerável, ainda que por vezes difícil de
apreender e de definir com precisão. Ao contrário, apesar de certas
expressões utilizadas sobretudo em lógica, Aristóteles manifesta com
respeito a esta noção certa desconfiança, e até evidente aversão. Isso se
explica pelo fato de que a metafísica platônica corta o mundo sensível do
mundo das Idéias — o que é de todo oposto ao estudo aristotélico das
essências, insertas no sensível — e de que ele desconhecia o papel capital
da causalidade eficiente em benefício de uma causalidade formal aliás
extrínseca (a do modelo sobre o objeto afeiçoado à sua semelhança).
Outro fato de todo incontestável é que a palavra e a coisa se encontram
a cada passo em Santo Tomás de Aquino. Que se passou? Deve-se dizer
que Santo Tomás é, no fundo, um agostiniano ou um platônico que deve
pouco a Aristóteles (Romeyer), ou que, ao contrário, se ele aceita a palavra
participação, é para dar-lhe significado muitíssimo oposto à perspectiva
platônica (Geiger)? Julgamos nós inaceitáveis estas duas posições, a
primeira porque tenta construir um Santo Tomás segundo o seu coração,
mas amputado de tudo o que, nele, é tão autenticamente aristotélico, que
os adversários medievais de Aristóteles se esforçaram por que o
condenassem de mistura com interpretações árabes e averroístas do
filósofo grego; a segunda porque, na sua preocupação de aristotelizar
Santo Tomás, termina por fazê-lo retornar, para além das influências
platônicas e neoplatônicas incontestáveis (e que consideramos sobretudo
felizes e benéficas a certos respeitos), a um aristotelismo demasiado
estreito. Sem dúvida, Santo Tomás acentua a causalidade eficiente contra
o monoideísmo [estado de alma em que esta se acha dominada por uma
idéia central] da causalidade exemplar, que se encontra, de Platão mesmo
aos agostinianos medievais, e até aos soi-disant aristotélicos árabes, talvez
mais platônicos do que se pensa. Sem dúvida, ele não aceita a tendência
platônica a realizar abstrações e a confundir a composição do real com a
dos nossos conceitos. Admitido isto, porém, parece-nos absolutamente
infeliz insistir nos aspectos por vezes algo estreitamente empíricos do
aristotelismo (que se atribuem ao próprio Santo Tomás), lançar o
descrédito, sem fazer as necessárias distinções, sobre a idéia de sistema

23
Pois bem, retornando já da visita que fizemos à metafísica,
digamos que por tudo quanto já vimos não poderia haver em
cada ente senão uma só e única forma substancial. Há que
rejeitar toda e qualquer solução pluriformista. Cada forma
superior assume o papel que teria desempenhado a forma
precedente no composto inferior. Por exemplo: num ser vivo,
vegetal ou animal, é a forma deste que assume até o papel de
determinante físico-químico com relação à matéria prima —
“o que pode o mais pode o menos”, escreve Louis Jugnet.32
Não existe isso de um agregado de compostos químicos
assumidos por uma forma superior que se justaporia a eles,
como a embuti-los de alguma maneira nela mesma. Se assim
fosse, cada ente só teria uma unidade acidental, não sendo a
sua forma senão uma mera forma mais, e não uma fonte
substancial de determinação e de finalidade.
No terreno cosmológico, ademais, é indubitável que o
hilemorfismo constitui explicação de todo satisfatória — a
pluralidade dos tipos explica-se tanto pela pluralidade das
formas como pela sua hierarquia. A pluralidade dos
indivíduos no interior de dado tipo explica-se por ser a forma

(indispensável a qualquer pensamento coerente), e pretender opor a teoria


tomista da participação à teoria platônico-agostiniana, sob pretexto de que
esta é sobretudo um “essencialismo”, ao passo que Santo Tomás seria um
pensador “existencial”. Nós [...] pensamos, ao contrário, [...], que a [noção
da] participação do Ser divino, do Esse, pelas criaturas se deve à
convergência da revelação judaico-cristã e da filosofia platônica, e que ela
não deve grande coisa a Aristóteles. Sem dúvida, ela absolutamente não
se opõe aos princípios fundamentais do aristotelismo. Ao contrário, na
forma de distinção real entre essência e existência, consideramos que ela
se infere de todo naturalmente da teoria aristotélica do ato e da potência.
Mas sem o catalisador platônico jamais Santo Tomás teria podido elaborar
a sua metafísica. Pode-se pois dizer em certo sentido que o tomismo é,
segundo a palavra de Fabro, ‘um platonismo especificado pelo
aristotelismo’.”
32 Ibid., p. 86.

24
específica multiplicável em porções de matéria diferente.33
Com isso se podem compreender tanto as semelhanças como
as dessemelhanças existentes entre os corpos, sem redução da
pluralidade a uma unidade que mutilaria o real. Para o
hilemorfismo, o que há é unidade na diversidade: os seres da
mesma espécie são diferentes, mas têm o mesmo eidos ou idea
(= forma). Cada ser é substancialmente um, mas é
metafisicamente composto de um princípio potencial e de um
princípio atual.
Quanto às próprias formas, a explicação deve em última
análise buscar-se na mesma Causa Primeira, o que, por
implicar as provas desta Causa única, não posso obviamente
tratar aqui. Mas antes de tornar à questão mesma da alma
humana há ainda por ver, no ápice da escala dos entes
materiais, o mundo dos viventes.34
Os argumentos mecanicistas, que são incapazes já de dar
conta do mundo inorgânico, falham de todo ao deparar com
o mundo dos viventes. Eles consistem em afirmar que não há
nos viventes forças irredutíveis aos fatores físico-químicos.
Tudo no organismo de tais entes se dá em razão de reações
mais ou complexas destes fatores. Além disso, como função
alguma é absolutamente própria ao domínio da vida, os
limites entre o inorgânico e o orgânico, se existem, são de
todo imprecisos e indiscerníveis.
Mas não será absolutamente evidente que os organismos
não são meros agregados de elementos justapostos nem
máquinas altamente complexas? Quanto a serem agregados,
nem é preciso redargüi-lo aqui. Quanto a serem máquinas,
diga-se simplesmente que, ao contrário das máquinas, que
deixam de funcionar pela falta de uma pequena peça, os
organismos dispõem de capacidade de adaptação, quando

33 Isto remete a outro problema que não se pode tratar aqui: o da


individuação da substância.
34 Para uma idéia da visão que Santo Tomás tem da vida, cf. Sum. theol., Ia,

q. 18, a. 1 a 3, e q. 78, a. 1 e 2; e In II De Anima, lect. 1 a 5.

25
não de regeneração. Claro está, tudo quanto se passa num
ente vivo é materialmente físico-químico; a digestão, por
exemplo, rege-se por reações químicas ligadas à estrutura
molecular e ao processo de seu equilíbrio. Esta constatação,
todavia, não nos deve perturbar de modo algum, pois que se
trata aqui de algo além, do modo mesmo como as leis da matéria
se aplicam aos organismos. Tome-se a assimilação. Um ente vivo
transforma nele mesmo elementos que lhe são exteriores —
transforma, e não meramente os justapõe. É portanto “ridículo
dizer, com certos mecanicistas retardatários, que o
equivalente da nutrição se encontra nos cristais: nestes
encontra-se uma adição de elementos que obedece a leis de
estrutura harmoniosa, que põem em cena o mecanismo a
partir do nível da matéria inanimada [...], mas esta adição
permanece de tipo muito diferente de um fenômeno
verdadeiramente vital”.35 Ademais, o desenvolvimento de
cada organismo se dá de maneira completamente diversa do
que querem fazer crer os postulados mecanicistas. Veja-se o
caso da embriogênese:36 nada mais finalista37 do que ela, quer
a consideremos em conjunto, como a passagem de duas
células iniciais a um organismo não raro muitíssimo
complexo, quer a consideremos em pormenor, como o órgão
da visão, que se desenvolve anteriormente a qualquer
necessidade atual de funcionamento.38 Mais que isto, o
organismo defende-se desde o desenvolvimento inicial até a
morte; tenha-se disto o exemplo da luta contra as infecções, o

35 Louis Jugnet, ibid., p. 89.


36 Ou seja, a produção ou origem do embrião, chamada também
embriogenia.
37 Ou seja, que tem determinado fim ou finalidade.
38 Calcula-se que, dadas as treze condições requeridas para que o olho

funcione, há 999.985 possibilidades contra 15 de que falte ou falhe uma


daquelas condições. E, contudo, não é a cegueira nem as más-formações
oculares o que se impõe como regra — todo o contrário. O matemático é
aqui amplamente suplantado pelo biológico, pelo vital, pelo que
caracteriza essencialmente a vida.

26
da regeneração de certos membros ou órgãos, e o da própria
reprodução, que não é senão o outro nome da luta contra a
aniquilação das espécies.39
Se porém já vimos a irredutibilidade do orgânico ao
inorgânico, resta ainda por ver a diferença, no reino do
vivente, entre o vegetal e o animal. O primeiro, conquanto se
inclua incontestavelmente no reino da vida, dado que nasce,
luta, assimila, medra e se reproduz, com o que manifesta
aspectos essenciais daquela finalidade que caracteriza o ente
vivo, não possui todavia “consciência” sensível sequer. Ele
não é dotado de sistema nervoso central, nem de nervos, nem
de órgãos propriamente ditos, os quais são a condição de
qualquer consciência sensível, ainda que mínima. (Ser difícil
classificar tal ou qual ente vivo como vegetal ou animal não
nos pode conduzir a negar, de modo algum, a distinção de
princípio entre ambos.) Só no animal se encontra a sensação,
a memória sensível, o instinto,40 o prazer, a dor e tantas
outras coisas mais, conquanto não a vontade nem a razão,
próprias unicamente do homem.
E, antes pois de passarmos enfim à alma humana, tenho
de insistir um pouco mais em como Santo Tomás resolve a
questão do psiquismo animal. Para ele não há negar aos
animais certa atividade sensível, certa ação sensorial,

39Quanto a serem os vírus-proteínas intermediários entre o inorgânico e o


orgânico — verdadeiro cavalo-de-batalha dos antifinalistas — veja-se o
estudo de Hansjurgen Standinger (in Universitas, Stuttgart, setembro de
1947, cit. por Louis Jugnet, ibid., p. 90, n. 25), que o nega peremptória e
fundadamente. E, se em 1928 o professor Needham, biólogo de
Cambridge, afirmava (vide Luois Jugnet, idem): “Atualmente, a zoologia
deriva da bioquímica comparada, e a fisiologia da biofísica”, já em 1941 se
retificava: “A organização biológica não pode reduzir-se a uma
organização bioquímica, pois nada pode reduzir-se a outra coisa”. Tenhamos
sempre no espírito esta última e preciosa afirmação.
40 Ou estimativa, que no homem, por sujeita ao espiritual, se chama

cogitativa. Esta distinção, fundamental, terá porém de aguardar outra


oportunidade para que a estudemos.

27
absolutamente comprovável tanto pela sua constituição como
pelo seu comportamento;41 mas igualmente não há explicar
por uma suposta razão o que se explica tão-somente pelo
instinto, pela memória sensível, pelas sensações. Falta aos
animais o que caracteriza precipuamente a atividade
intelectual, a saber: a linguagem articulada, as noções
abstratas, os progressos técnicos, as preocupações estéticas,
éticas e religiosas.42
Em suma, o animal possui efetivamente uma alma, uma
forma dotada de consciência sensível, ou melhor, uma forma
que é fonte de tal consciência;43 mas esta alma não sobrevive
à destruição do corpo. Ela é sempre coextensiva, de alguma
maneira, às condições materiais ou orgânicas de base, e
desaparece com elas.44
Com o homem tudo se passa diferentemente, mui
diferentemente. E, se por um lado o conhecimento de que
somos capazes refuta o materialismo, é impossível por outro
lado que o nosso princípio pensante apenas se acrescente ao
corpo, considerado este como substância distinta. Estamos,
pois, quanto à alma humana, em terreno inteiramente
tomístico, ou seja, na solução que também a este problema dá
Santo Tomás, sob a luz da Revelação, valendo-se de
Aristóteles, e erigindo-se outra vez, com mais esta síntese
cabal, como cume entre dois vales. Vejamo-lo detidamente,

41 Como escreve ainda Louis Jugnet (in idem, p. 91), “seria absurdo dizer
que diante de um chicote brandido um rapazinho foge por ter medo,
enquanto um animal faria o mesmo pro mera reação mecânica, como o
supõe o insustentável paradoxo cartesiano dos animais-máquinas”.
42 Acerca disto, vide Santo Tomás, Sum. theol., Ia, q. 75, a. 3, e Contra

Gentiles, II, c. 82.


43 Lembremo-nos sempre de que é o composto hilemórfico o que atua e

padece, e nunca a forma nem a matéria isoladamente.


44 Como lembra ainda Louis Jugnet, a alma dos animais “não se aniquila

(nem retorna ao puro nada), mas a teoria metafísica ato/potência permite


compreender perfeitamente tanto o seu aparecimento como o seu
desaparecimento”.

28
começando por retomar de outro ângulo, e à guisa de suma, o
que aqui já se disse ou deixou implícito.
O homem não é, como os Anjos, puramente espiritual;45 é
dotado de corpo, ou melhor, de corpo material, extenso,
constituído de partes diferenciadas. O conjunto destas partes,
todavia, não constitui mero agregado acidental; tem, ao
contrário, unidade substancial. Cada um de nós constata,
desde tenra infância, que sou eu que me locomovo, sou eu que
me alimento, e sou eu que sofro esta ou aquela dor, não a
minha cabeça, nem a minha perna contundida no pique.
Tudo quanto tenho por dentro, vísceras, veias, sangue, assim
como tudo quanto tenho por fora, pele, pêlos, unhas, pertence
inteiramente a mim; não tem nenhuma autonomia vital. Os
atos que executa a minha mão direita como a esquerda não
são executados senão por mim mesmo; toda e qualquer ação
ou movimento que me parta dos órgãos ou membros são não
só de minha inteira propriedade mas de minha inteira
responsabilidade. Ora, se sou eu que existo, e de todo, em
mim mesmo, e se é para a minha vida que estão dispostos
todos os meus órgãos ou partes do corpo, então sou o que sou
no sentido metafísico preciso de substância.
Prossigamos neste último ponto. Há em todas as
substâncias materiais, donde também no homem, um
princípio que lhes determina a matéria segundo o modo de
existência próprio a cada uma — têm pois uma forma
substancial. E é justamente esta forma o que rege não somente
a disposição das diversas partes no todo mas a própria
existência deste todo e toda a sua atividade. Pois é à forma
substancial do homem e de todos os outros entes vivos,
vegetais como animais, que chamamos alma. “A alma pode

45Alhures falarei dos Anjos segundo, ainda e sempre, Santo Tomás de


Aquino.

29
portanto definir-se, em metafísica, como a forma substancial
dum corpo vivo.”46
O óbvio, por conseguinte: a alma e o corpo não são dois
entes distintos, mas dois distintos princípios do mesmo ente.
Sem uma alma, não há um corpo; há, sim, por exemplo, a
matéria prima (incognoscível, como já vimos) que comporá um
corpo humano, mas tão-só isso, não ainda este próprio corpo.
Um cadáver não é, de modo algum, um corpo humano; aqui,
sim, é que temos um agregado acidental de células,
despojado de toda e qualquer unidade essencial ou
substancial. E tanto é assim, que cada uma das suas partes
seguirá doravante evolução própria, sem nenhuma
dependência para com as demais, sem nenhuma
subordinação a nenhuma lei reguladora do conjunto. Se há
unidade do corpo, é porque há uma alma; mais: se há corpo, é
porque ele está conformado por uma alma, ou melhor, pela
sua indissociável ou inextricável alma.
Relembremos ademais que, como a de todos os viventes, a
alma é a única forma substancial do homem — é impossível,
como vimos, haver mais de uma forma substancial num
mesmo ente. E é a alma humana que, unida inextricavelmente
ao corpo humano, lhe regula e governa toda a atividade, quer
no propriamente humano, quer no que tem em comum com
os vegetais e os animais. “As próprias formas dos elementos
químicos que constituem o corpo”, como também já vimos,
“desaparecem como formas autônomas. Subsistem
virtualmente, pelas suas qualidades, integradas na disposição
do conjunto; mas é à lei deste que os elementos se
subordinam — lei, de resto, que engloba a sua lei própria, e
não os violenta”.47

46 Manuel Corrêa de Barros, Lições de Filosofia Tomista, Porto, Livraria


Figueirinhas, 1945, pp. 241-242.
47 Ibid., p. 242.

30
Quanto mais perfeita seja a substância material, tanto mais
complexa lhe será a forma. Trata-se de uma síntese, ou seja,
são seus elementos constituintes as leis das substâncias de
ordem inferior que nela se encontram reunidas; e, se tem
todas as perfeições existentes nestas, tem também as
perfeições que lhe pertencem exclusivamente, como todo que
é. É porque todas estas perfeições, as inferiores como as
superiores, formam um só e único feixe — em ordem a um só
e único fim, o fim de um único e só ente — que se dá uma
unidade substancial, e é porque se dá esta unidade
substancial que há, necessariamente, requerida por esta
última como o seu princípio de existência, uma forma
substancial.
Por outro lado, haver no homem, como em todos os entes
vivos, uma única e mesma forma substancial não impede —
todo o contrário — que haja nele, como igualmente em todos
os entes vivos, diversas formas acidentais. É que, se a alma
única dispõe a matéria do corpo e suas partes consoante o
que lhe exige a essência mesma de homem, o que porém é
indiferente a esta essência (gênio, altura, peso, cor etc.) será
acidente, ou seja, acidente determinado por formas distintas
da alma, secundárias pois, e no entanto inerentes ou a ela ou
ao conjunto de alma e corpo.
Pois bem, esta é a teoria aristotélica da alma como forma
substancial do corpo, justamente a teoria que, como já deixei
dito, Santo Tomás de Aquino não só retomará como
desenvolverá e completará. Dirá o Doutor Comum, de modo
conciso e preciso: a alma é aquilo “por que o homem existe, e
é corpo, ente vivo, animal e homem”.48
Assim, por quanto já se disse aqui, há que forçosamente
inferir a impossibilidade de localizar a alma; tentar fazê-lo
seria considerar a alma ou como parte material do corpo, ou
como ente distinto do corpo e que atue sobre ele, como queria

48 Sum. theol., Ia, q. 76, a. 6, sol. 1.

31
Descartes, por meio de dado órgão. Ora, como a alma é uma
forma, ela é necessariamente imaterial; se está sujeita à
extensão, estando por essa razão, obrigatoriamente, onde o
corpo estiver, só o está precisamente porque é forma deste
corpo. Mas dentro do corpo absolutamente não tem lugar
determinado, nem está distribuída por todo ele; está toda, isto
sim, em todo o corpo ou em cada uma de suas partes. Está em
todo o corpo, naturalmente, porque todo ele se rege por ela,
quer na sua disposição, quer na sua atividade; e não está
distribuída pelo corpo todo, mas está toda, isto sim, em todo o
corpo ou em cada parte dele, porque como toda e qualquer
forma, ou seja, como princípio de unidade, é indivisível. É a
ordem do conjunto do corpo, e como tal exige que cada parte
deste conjunto seja exatamente o que é, sem tirar nem pôr.
Acrescente-se a quanto acabei de dizer, todavia, a seguinte
precisão: “a alma está toda em todas as partes do corpo
segundo a totalidade da sua perfeição [...], mas não segundo
toda a sua virtualidade”,49 dado que destina cada porção de
matéria a formar um só e determinado órgão.
Como, porém, ante a negativa de buscar uma localização
para a alma, salvaguardar a distinção obrigada entre matéria
e forma? Respondo com Manuel de Barros: “Longe de
supormos a alma como que um fluido derramado no corpo
ou concentrado num dos seus órgãos — e, duma ou doutra
maneira, contido nele — devemos, diz Santo Tomás, dizer de
preferência que é a alma que contém o corpo, porque lhe dá a
sua unidade.”50
Mas, não obstante ser a atividade do corpo toda
dependente da alma, e não se poder atribuir nenhuma das
nossas ações (voluntárias ou involuntárias) ao corpo sem a
participação regente da alma, não é contudo a alma o motor

49Sum. theol., Ia, q. 76, a. 8, concl.


50Manuel Corrêa de Barros, ibid., p. 244. Para as próprias palavras de
Santo Tomás a este respeito, vide Sum. theol., Ia, q. 76, a. 3, concl.

32
do corpo no sentido de que lhe fosse a causa eficiente dos
movimentos e atos; ela não é fonte de energia física que o
fizesse mover. Não, a alma não é causa eficiente, mas causa
formal:51 todos os movimentos do corpo provêm ou da
energia que ele recebe do meio circundante, ou das
energias diversas que ele armazena nos seus órgãos, sendo a
alma simplesmente a lei consoante a qual estas energias se
canalizam, distribuem e aproveitam no corpo. Di-lo Santo
Tomás de Aquino: “a alma não põe o corpo em movimento
por sê-lo [...], mas pela faculdade motora, que, para existir,
exige que o corpo exista em ato, o que se deve à alma”.52 Mas
que causa será o corpo no composto que ele, digamos,
“partilha” com a alma?
O corpo, ou seja, a matéria do corpo é a causa material da
atividade humana no domínio da sensibilidade como no da
vida vegetativa; constituinte intrínseco e inextrincável do
composto que é o ser humano, é indispensável ao exercício
pela alma das atividades que requeiram contato com os
demais corpos — “e nisso, diga-se entre parênteses, está para
Santo Tomás o motivo por que o homem tem uma alma e um
corpo”.53
Não é possível, por conseguinte, encontrar no homem
atividades que fossem regidas pelo corpo. Mas, se alma é o
princípio que faz concorrer todas as operações para um só
fim, regendo toda e qualquer atividade humana, o corpo é o
meio que permite à alma buscar, no mundo material, os

51 Não é possível desenvolver aqui a teoria tomista das causas, tendo de


contentar-me em dar um sucintíssimo resumo das quatro clássicas: diz-se
causa eficiente a condição do fenômeno que produz outro fenômeno; causa
final a condição daquilo em razão de que algo se produz; causa formal a
condição daquilo por que algo é determinado ente; causa material a
condição daquilo de que determinado ente é feito.
52 Sum. theol., Ia, q. 76, a. 4, sol. 2.
53 Manuel Corrêa de Barros, ibid., p. 244.

33
elementos indispensáveis à vida do homem. É o corpo um
elemento intrínseco da ação da alma.
Mas da atividade humana faz parte o pensamento, e é o
pensamento algo totalmente imaterial. Esclareça-se: é-o não
no processo de elaboração de idéias, mas no conhecimento, que
é o seu ato sumo. Vejamo-lo de perto.
Ao conhecer determinado objeto, o homem identifica-se
com ele; toma como lei do pensamento a lei da existência
deste objeto, produzindo-lhe tal lei no espírito, como
conclusões, as mesmas conseqüências a que, como
propriedades concretas, dá ensejo na realidade. Mas a forma
mesma deste objeto agora conhecido, a qual passa a reger a
inteligência, passa a existir nesta, ademais, de modo
totalmente diverso do modo como existia no objeto — passa a
existir aqui abstratamente, ou seja, imaterialmente. Quando
determinada forma se realiza na matéria prima, esta a
concretiza, ou seja, a materializa, enquanto a mesma forma
determina a potência da mesma matéria prima a certo modo
de ser, excluindo-lhe a sujeição a quaisquer outras formas; na
inteligência, todavia, a forma do objeto não existe senão na
sua universalidade, sem característica alguma da
individuação que lhe confere a matéria (e que lhe confere
necessariamente, dada ser esta, com efeito, a sua função
precípua). Compreender as propriedades de um retângulo
não é conhecer nenhum retângulo determinado, mas o
retângulo, ou seja, o retângulo em geral, razão por que a
forma de todo e qualquer retângulo concreto, porque forma
geral, só existe no espírito de modo imaterial; além disso, sem
deixar de ser exatamente o que é, o homem recebe a forma do
objeto conhecido. Ora, a faculdade que por ambos estes
motivos se identifica com tal forma não pode pois ser senão,
igualmente, imaterial.
E, assim como sou eu que sinto e sofro, não pode haver
dúvida quanto a ser também eu que penso. O pensamento é
inquestionavelmente um ato do homem individual, e, como o

34
princípio da unidade da atividade humana é a alma, pensar é
por conseguinte uma das suas operações. Se, porém, como
acabamos de ver, é imaterial o pensamento, a alma executa
esta operação não como executa as demais, isto é, através do
corpo, mas independentemente deste — por si mesma. No seu
ato propriamente intelectual, pensar, ou melhor, conhecer é uma
faculdade exclusiva da alma.
Desse modo, sendo embora a forma substancial do corpo,
é todavia mais que isto; a sua atividade não se cinge a animar
o corpo, tendo uma operação absolutamente própria: o
conhecimento stricto sensu, isto é, o conhecimento universal
ou abstrato. “Há uma faculdade só da alma: a inteligência,
que lhe dá acesso ao mundo das idéias encarnadas nas
coisas.”54 Por isso dizia Santo Tomás que a alma humana é
uma classe à parte dentre todas as formas substanciais; ela é
propriamente espiritual, não estando, ainda segundo o Doutor
Comum, de todo imersa na matéria.55
A alma humana é a única que excede a potência da
matéria; tem a seu exclusivo cargo uma operação que a
matéria não pode executar. Mas, se assim é, qual nos será a
origem da alma? Insista-se, para responder adequadamente a
esta questão, em algumas noções metafísicas.
A matéria, ou seja, a matéria prima é pura potência, e é
apta a existir numa infinidade de formas, razão por que, do
ângulo inverso, se encontram tais formas em potência na
mesma matéria prima. Por determinada causa eficiente, uma

54Ibid., p. 246.
55 Cf. Sum. theol., Ia, q. 76, a. 1, concl. — “Às outras formas chamamos
materiais, não que nelas, em si mesmas, haja matéria — já vimos que a
forma é um princípio duma ordem totalmente diversa da da matéria —
mas porque exigem a matéria para a sua existência e para todas as suas
operações. Não realizam senão o que é realizável pela matéria; não
excedem a potencialidade da matéria. São, unicamente, ato do que na
matéria há em potência” (Manuel Corrêa de Barros, ibid., p. 246).

35
de tais formas passa a existir em ato, a substituir, assim, todas
as que a precederam, e que agora tornam a existir meramente
em potência. Eis tudo quanto pode toda e qualquer causa
eficiente: “fazer passar ao ato o que antes existia em potência;
fazer regressar à potência o que anteriormente era ato”.56
Pois bem, já o vimos, a atividade da alma excede em
determinado ponto o que há em potência na matéria: se quase
todas as suas operações estão no campo do que, sob a ação de
dada e apropriada forma, pode a matéria, na intelecção,
todavia, a matéria em nada intervém. Nunca jamais a
matéria, independentemente da forma que a ordene e
governe, pode elevar-se ao plano do pensamento, dado ser
este uma atividade absolutamente incompatível com o caráter
concreto daquela. Assim, a alma humana não existe
totalmente em potência na matéria, mas, se tal é fato, é
porque em verdade ela, a alma humana, absolutamente não está
em potência na matéria, dado que toda e qualquer forma,
incluída a alma humana, é indivisível. A alma humana não
poderia estar apenas parcialmente em potência na matéria;
julgá-lo possível seria, conseqüentemente, considerá-la
divisível. Sim, há em potência na matéria um sem-número de
formas aptas a realizar alguns dos atos da alma humana; mais
precisamente, está em potência na matéria o colaborar com a
alma nas operações que por seu intermédio esta realiza. Não
estando, contudo, compreendida a alma humana na
potencialidade da matéria (“não existe a síntese onde lhe falte
um elemento”, afirma de modo lapidar Manuel de Barros57),
há que buscar-lhe a origem em outra fonte.
Ora, se antes de existir em ato a alma humana
absolutamente não existia em potência na matéria que
formava os demais corpos (“a simples possibilidade de
existência, sem um suporte real, não é existir em potência”,

56 Manuel Corrêa de Barros, ibid., p. 247.


57 Idem.

36
diz outra vez de modo lapidar Manuel de Barros58), é porque
ela absoluta e simplesmente não existia. A alma humana,
portanto, não pode ser senão uma criação direta de Deus. Já se
tentou explicar-lhe o surgimento por divisão de outra alma;
mas tal é impossível, pelo motivo já visto de que as formas
absolutamente não se dividem, nem quantitativamente (como
tal se daria, se as formas não têm extensão por si mesmas?),
nem qualitativamente, dado que determinada forma perder
algumas das qualidades que a constituem implicaria, pura e
simplesmente, ela deixar de ser.
Cada alma humana, repitamo-lo alto e bom som, é criada
diretamente por Deus: é produzida do nada, e portanto o seu
início é absoluto. E Ele a cria para informar a matéria corporal
quando esta já está disposta para a receber. Não se veja nisto
um milagre, de modo algum; ao contrário, faz parte do plano
geral da natureza, tal qual o estabeleceu e ordenou o próprio
Senhor. Assim como criou os anjos como entes eternos, e
“assim como criou seres materiais capazes de se
transformarem uns nos outros por causa da capacidade
receptiva existente na matéria”,59 assim cria o Altíssimo as
almas humanas uma a uma, sempre que haja as condições
materiais requeridas para a sua existência.
A alma humana, como vimos, não há de gerar-se senão
por criação a partir do nada, dado não existir em potência na
matéria. Como devemos entender, então, neste processo, as
condições materiais da produção da alma humana? Devemos
entendê-las como causa ocasional desta produção, e não como
causa eficiente sua.60

58Idem.
59Ibid., p. 248.
60 O talentoso e, como diria Julian Marías, outrora promissor filósofo

espanhol Xavier Zubiri (morto há uns vinte anos) é emblemático da má


vontade que o mundo tem votado ao tomismo desde há sete séculos. E
emblemático porque, sendo embora de fato talentoso, desperdiçou este
dom de Deus ou com ligeirezas como dizer, em poucas linhas, que a alma

37
Pois bem, a esta altura já podemos acompanhar o
raciocínio tomista quanto à imortalidade da alma humana, o
objeto deste Comentário. Ora, é o já referido fato de exceder
em parte da sua atividade a potencialidade da matéria que
nos força a procurar, para a alma humana, não só uma
origem diversa da das almas vegetativas e sensíveis, mas
também um destino após a morte diverso do destas. Ao
procurá-los, todavia, há também que responder a uma
censura muito comum no mundo moderno: a de que o
tomismo incorre em contradição por sustentar a teoria da
alma como forma do corpo e, ao mesmo tempo, afirmar a
imortalidade do princípio pensante. Ponhamos, então, mãos à
obra.
Se dizemos que a alma é a forma do corpo, é em razão da
unidade de cada ente, incluído cada ente humano,61 e da
indubitável interdependência radical dos nossos diversos
aspectos. Mas não há jamais negar que as formas materiais
não podem existir senão pela matéria. Uma vez que a matéria
que informavam passou a reger-se por outras formas
substanciais, deixam de existir em ato, tornando a existir em
potência na mesma matéria. Indissolúveis embora em si
mesmas, foram porém destruídas por acidente —
desapareceram as condições indispensáveis à sua existência.
Assim, se dizemos que a alma dos animais não sobrevive à

não existe, ou com afirmações pelo menos patentemente falsas como dizer
que um dos males do tomismo foi aceitar, sem contestação e in totum, a
teoria aristotélica das quatro causas. Ora, ademais de ser esta teoria
intrinsecamente larga o bastante para desdobrar-se em função de novas
necessidades filosóficas, foi precisamente Santo Tomás quem mais a fez
assim expandir-se. Para o mostrar, basta-me aqui referir a conclusão
acima, em que intervém uma causa ocasional, e esta refulgente luz teológica
emitida da Suma Teológica do Doutor Comum: Se a ressurreição de Cristo
é a causa eficiente da nossa ressurreição, a Crucifixão do Senhor é a sua
causa meritória.
61 Registre-se aqui que na Criação, além dos Anjos, não são stricto sensu

entes senão os homens.

38
destruição corporal, é porque o seu psiquismo não ultrapassa
suficientemente as condições orgânicas para sobreviver a
elas; ao passo que, se dizemos que a alma humana é
indestrutível e imortal por natureza,62 é justamente pela nossa
óbvia atividade “emergente”63 e eminente, a saber, a
atividade propriamente intelectual — formação do conceito,
julgamento e raciocínio64 — e volitiva, não sendo este seu
último aspecto, de modo nenhum, algo como um feixe de
tendências orgânicas.
Ora, por uma aplicação tão simples quão inelutável do
princípio de causalidade,65 conclui-se que a referida atividade
intelectual-volitiva, conquanto condicionada extrinsecamente
pelo sensível,66 dele difere essencialmente e pela sua própria
natureza, o que não se daria se ela não fosse efeito de um
princípio imaterial: a alma humana. Esta forma espiritual,
como já vimos, não depende da matéria para todas as
modalidades da sua existência, ou seja, tem ela, como
também já vimos, uma operação em que não intervém a
matéria: a operação intelectual propriamente dita.67 E por
isso, ainda que privada do corpo, não se destrói por acidente
como as demais formas. Além disso, não pode ela decompor-
se, dado não ser composta de partes distintas como o é o
corpo; ora, se a alma fosse composta de partes distintas, algo

62 E “não por nenhum milagre nem por nenhuma derrogação das leis do
criado”, como diz com precisão Louis Jugnet (in ibid., p. 93).
63 A feliz expressão é outra vez de Louis Jugnet (in idem).
64 Cf. Jacques Maritain, A Ordem dos Conceitos — Lógica Menor.
65 O valor deste princípio ressalta especialmente nas provas da existência

de Deus, e decorre do âmago mesmo do realismo tomista.


66 Cf., ainda em Jacques Maritain, A Ordem dos Conceitos — Lógica Menor, o

problema da origem das idéias e da abstração.


67 Para evitar complexidades ainda maiores e impossíveis de resolver

neste texto, não posso insistir aqui no aspecto volitivo da alma humana,
nem no caráter da atividade intelectual propriamente dita.

39
as teria de unir, e seria este algo, então, o próprio princípio de
unidade, a própria forma, deixando-o de ser aquela.68
Ademais, como não pode nascer senão por criação a partir
do nada, a alma humana não pode desaparecer senão por
aniquilamento. Só Deus o poderia fazê-lo, só Deus a poderia
aniquilar, assim como só Ele a pode criar. Fá-lo-ia? Em
hipótese alguma! Deus não aniquila nunca aquilo que Ele
próprio criou, e crer o contrário seria incorrer em raso
pietismo. A Sua Justiça confere a cada ente, de modo infalível,
o exigido pela natureza de que Ele mesmo o dotou, donde
estas palavras que Santo Tomás tomou emprestado a Santo
Agostinho: “quanto às coisas naturais, não se deve considerar
o que Deus pode fazer, mas o que convém à natureza de cada
uma”.69 Se Deus deixa desaparecer as formas materiais, é
precisamente, como vimos, porque elas dependem de todo da
matéria, e porque “convém a essa mudar de forma para
refletir, pela sua potencialidade de certo modo infinita, a
infinidade do poder criador”.70 É que, em verdade e stricto
sensu, nenhuns entes materiais são aniquilados — eles
transformam-se. E até a mesma alma vegetal e a mesma alma
animal são formas que propriamente não desaparecem com a

68 Como a alma, segundo estas palavras precisas de Louis Jugnet (in ibid.,
pp. 93-94), “enquanto espiritual, evidentemente não é afetada de
nenhuma composição física, ela é inacessível a toda e qualquer
composição, sendo a morte algo próprio do múltiplo e do composto
enquanto tais. A imortalidade da alma [humana] é um corolário da sua
espiritualidade, a qual se induz simplesmente da observação imediata da
atividade intelectual. Dizemos bem: induz-se. A filosofia aristotélica e
tomística não reconstrói o universo ‘more geometrico’, à maneira
espinosista, a poder de definições a priori, de deduções racionais puras; ela
supõe sempre um dado de experiência. Falando propriamente, nem
empirismo nem racionalismo, aqui como alhures.” Cf. Santo Tomás, In XII
Metaph., lect. 3; Sum. theol., Ia, q. 75, a. 6; Contra Gentiles, II, c. 79-81; Q.d. de
anima, a. 14, entre outras.
69 Sum. theol., Ia, q. 76, a. 5, sol. 1.
70 Manuel Corrêa de Barros, ibid., p. 250.

40
transformação da matéria de que são princípio; não se
aniquilam, propriamente; como que continuam a existir
dissolvidas nos novos corpos, como potência. A alma
humana, porém, é propriamente imortal, ou, como se dizia
entre os escolásticos, é uma forma substancial subsistente.
Mas resta uma questão tão delicada quão complexa: Que
espécie de vida pode ter a alma humana quando separada do
corpo, sempre de acordo com o que exige a sua mesma
natureza? Como vimos, em todas as atividades vegetativas e
sensíveis se requer o corpo, razão por que elas hão de cessar
inteiramente na alma separada. A inteligência, todavia, como
igualmente vimos, é independente da matéria, no seu ato
sumo de conhecimento, assim como correlativamente
também o é a vontade, no seu ato livre.71 Desse modo, pois, a
atividade cognitivo-afetiva pode continuar a exercer-se na
alma separada do corpo — a vida da alma separada do corpo
após a morte é vida da inteligência. Isto todavia ainda não
resolve de todo o problema, porque, se de certo modo já se
disse o que é a vida da alma separada do corpo, ainda porém
não se disse como é esta vida. Ora, na vida presente as idéias
mediante as quais a inteligência conhece o seu objeto têm
origem nos sentidos, e são elaboradas graças ao auxílio tanto
da memória como da imaginação; e, como tudo isto depende
do corpo, e como portanto não se pode exercer com a
dissolução deste, as idéias que a alma dele separada é capaz
de conhecer hão de ter origem diversa. E como não seria
assim se, mudado o modo de existir, é absolutamente natural
que mude também o modo de operar?
Há três modos possíveis de operar a alma separada do
corpo: 1) ela pode ter o conhecimento intuitivo da sua própria
natureza, que atualmente não conhece senão por reflexão
acerca da sua mesma atividade; 2) pode ser-lhe dado
conhecer a essência de outras almas separadas e a dos Anjos;

71 Vide, acima, nota 67.

41
3) pode, por fim, receber as idéias diretamente de Deus, de
modo infuso.
Não obstante, e se é certo que nenhuma destas maneiras
de conhecer ultrapassa a capacidade da inteligência humana,
e se, ademais, por serem conhecimento direto do inteligível,
sem o concurso das coisas sensíveis, podemos dizê-las em si
mesmas mais perfeitas do que o conhecimento por abstração
dos seres concretos, elas, no entanto, são para a própria alma
humana menos perfeitas. Por que tal equívoca realidade?
Porque, como é feita para se aplicar às coisas particulares, a
nossa inteligência não consegue abarcar de um só lance todas
as conseqüências contidas em dado princípio geral; esta
capacidade só a tem a inteligência angélica. “Guardadas as
proporções, dá-se com ela, diz S. Tomás [cf. Sum theol. Ia, q.
89, a. 1, concl.], o que se dá com as pessoas poucos
inteligentes, que não compreendem uma questão posta em
abstrato, com generalidade, e só conseguem compreendê-la
pela multiplicação dos exemplos concretos.”72 No universo
das idéias gerais, que se dão transparentemente aos Anjos, a
alma humana vê de modo menos claro que no universo das
idéias abstraídas do sensível.73

72Manuel Corrêa de Barros, ibid., p. 251.


73E lembra Manuel de Barros (idem): “Note-se que a elevação dos nossos
pensamentos nesta vida não deixará de ser um auxílio para a alma
separada; ficam dela, no espírito, vincos, hábitos intelectuais, que facilitam
a compreensão do que então lhe for dado conhecer. Quanto mais nos
habituarmos, em vida, a ver as coisas de alto, mais capazes seremos de
aproveitar o alimento concentrado, digamos assim, que o nosso espírito
então receberá.” Pois era isto mesmo o que expressava, ainda que de
maneira muitíssimo confusa e em meio a numerosos equívocos, toda a
tradição de ascetismo intelectual que se estendeu dos pitagóricos a
Aristóteles e até aos estóicos, com proeminência no Banquete de Platão. É o
que se deve sempre dizer: uma coisa era o esforço heróico da alma
humana para elevar-se filosoficamente, antes de Cristo e sem os dados da
Revelação, ao conhecimento natural das coisas divinas, conhecimento este
perdido ou dificultado pelo pecado original, e outra, de todo contrária, é a
queda que significa o trabalho de destruição da Doutrina Perene, iniciado

42
Permanece, todavia, uma dificuldade quanto às almas
separadas do corpo: Como individualizá-las? Sim, porque se
é impossível haver dois seres imateriais distintos que
pertençam à mesma espécie,74 poderia parecer igualmente
impossível distinguir entre si as almas humanas após a
separação do corpo. Sucede porém que as almas humanas, ao
contrário dos Anjos, não são formas espirituais puras: o fato
de terem animado corpos entre si distintos é já o bastante
para diferenciar entre si as almas humanas. “As almas
separadas”, diz Manuel de Barros,75 “são portanto
individuadas pela sua relação — relação essencial — para
com certo e determinado corpo, que o foi o seu.”
Que foi o seu? Não, não somente — também o corpo que
tornará a ser o seu. Que nos veio conseguir o Verbo que,
encarnado, habitou entre nós? Pelo mérito único da Sua
Paixão e Morte na Cruz, e pela eficiência da Sua própria
Ressurreição, veio-nos conseguir um destino imensamente
mais glorioso até do que a vida imortal no Jardim do Éden: a
visão amorosa da Face e Essência de Deus, com a alma
reunida ao corpo ressuscitado. Ora, apesar da sua real
grandeza e dignidade, a alma humana não tem direito
natural a tal condição, e é incapaz de por si mesma conhecer

por Duns Scot e prosseguido até hoje por todos os esoterismos,


materialismos e relativismos. A filosofia da Antiguidade greco-romana
está para a filosofia pós-Santo Tomás assim como, mutatis mutandis, o
antigo povo eleito está para o atual judaísmo: se o antigo povo eleito se
curvava diante da Revelação, a filosofia greco-romana se curvava diante
da realidade como inteligível; e, se os judeus cujo véu do templo se rasgou
não reconheceram e seguem sem reconhecer o Messias, a filosofia
posterior ao Doutor Comum nega-se, por variadas formas, a reconhecer o
real enquanto real, ou seja, enquanto inteligível, e nega-se a vê-lo sob as
luzes do Logos, que se nos veio dar graciosamente.
74 Assim, cada Anjo é como uma espécie própria é à parte.
75 Ibid., p. 252.

43
diretamente a Essência do Senhor;76 para que isto ocorra, será
preciso que Deus mesmo nos exalte a alma por uma luz toda
especial, ou seja, por pura obra e dom gratuito da Sua
Bondade.
Retomemos agora, para concluir, a delicada questão da
alma humana77 com respeito ao corpo. Como nos é dado
conhecer, se a alma soube não afastar-se de Deus nesta vida,
ela gozará a posse d’Ele já antes da ressurreição (e na maioria
dos casos após um tempo de provas e purificação no
Purgatório). Pois bem, em sentido estritíssimo este estado da
alma separada é, de seu, superior e preferível à nossa condição
terrestre pós-expulsão do Paraíso; mas o corpo, conquanto
após a Queda se tenha transformado em ocasião de lágrimas
e de pecado, o corpo, repito, não é nunca uma prisão78 —
sempre, e ainda na terra após a Queda, ele é parte da pessoa
humana total. Por isso, ou seja, precisamente por esta
perspectiva hilemórfica,79 a ressurreição dos corpos é uma
das peças chaves da restauração escatológica de todas as
coisas.80 “Inconcebível numa visão hiperespiritualista do

76 O nosso conhecimento natural de Deus limita-se a vê-Lo pelo que Ele


não é. É sempre um conhecimento negativo.
77 Para o conjunto das palavras do próprio Santo Tomás de Aquino a

respeito da alma separada, cf. especialmente Sum theol. Ia, q. 89 inteira;


Contra Gentiles, II, c. 81; Q.d. de anima, a. 15, 17 e 18; Quodl. III, q. 9, a. 1.
78 Digo-o do ângulo metafísico, e independentemente da expressão de

muitos místicos, como Santa Teresa d’Ávila e o próprio São Paulo. Ambos
estes ângulos são absolutamente justos, embora, obviamente, não pelo
mesmo aspecto.
79 Nunca nenhum Concílio contradisse esta perspectiva, muito pelo

contrário. Veja-se, por exemplo, o Concílio de Viena (1311-1312), que


condena como herético quem quer que negue ser a alma a forma do corpo
humano. E, conquanto esta definição não canonize explicitamente o
sistema tomista, ela porém se opõe inflexivelmente a qualquer dualismo
que destrua a unidade do homem.
80 O termo escatologia que se usa em teologia formou-se a partir do grego

éschatos, ē, on, “último”, “extremo”, “final”, e expressa tanto a “doutrina


acerca da consumação do tempo e da história” como o “tratado acerca do

44
mundo (por que tal arbitrariedade da parte de Deus, após
esta libertação que é a morte?)”, a ressurreição, como escreve
com toda a justeza e precisão Louis Jugnet, “guarda a sua
gratuidade, mas torna-se perfeitamente lógica num
espiritualismo como o que acabamos de expor. (Definição do
IV Concílio de Latrão, que não faz senão retomar neste ponto
o ensinamento apostólico; cf. Santo Tomás, Sum. theol., Suppl.,
q. 77-86 [...].) Igualmente, torna-se inteligível nesta concepção
do homem tudo o que concerne à transmissão da graça
através dos sinais sensíveis (sacramentos e sacramentais) e ao
papel da liturgia [...], com o que se escandaliza um
racionalismo tacanho, falto de apreender a riqueza e a exata
correspondência da natureza humana.”81

Anexo

O SENSO COMUM
E A IMORTALIDADE DA ALMA
A razão natural alcança a espiritualidade e, portanto, a
imortalidade da alma humana. Di-lo Spinoza: “Sentimus nos
æternos esse”,82 e afirma Santo Tomás: “omne habens
intellectum naturaliter desiderat esse semper”.83 Por certo

fim último do homem”. Distingue-se, pois, obviamente, do termo


“escatologia” que se formou a partir do grego skato- (< grego skδr, skatós,
“excremento”), e que quer dizer justamente “tratado acerca dos
excrementos”.
81 Louis Jugnet, ibid., pp. 94-95.
82 Cf. P. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P., Le Sens commun — La Philosophie de

l‘Être et les formules dogmatiques, Paris, Desclée de Boruwer & Cie.,


Éditeurs, 1936, pp. 119-120.
83 Sum. theol., Ia, q. 75, a. 6 (“o homem deseja naturalmente existir

sempre”). E acrescenta, no mesmo passo: “e ele sente que este desejo


natural não pode ser vão”. “O que se encontra entre os negros africanos

45
este desejo natural se funda no sentido que temos do ser, ou
seja, nisto que a inteligência espontânea intui sem no entanto
conseguir formular: “o ser, meu objeto formal, abstraído de
toda a matéria, do espaço e do tempo; pura relação a ele, eu
sou da mesma ordem que ele”.84 Objetava Taine: também o
boi que matamos deseja naturalmente continuar a viver. É
fato; mas tanto este próprio desejo animal como o
conhecimento sensível em que se funda não desbordam o
espaço nem o tempo. Como escreve ainda o Padre Garrigou-
Lagrange, “o animal deseja naturalmente viver hic et nunc,
mas não sempre no sentido pleno do termo”.85 Por seu turno,
tanto o natural desejo humano de imortalidade como a razão
em que se funda dizem respeito não a tal ou qual ser
particular, a tal ou qual bem particular, mas ao ser e ao bem
absolutos. O homem primeiro concebe naturalmente uma
beatitude absoluta, inamissível, e em seguida naturalmente a
deseja. Temer perdê-la, “tal seria já não ser plenamente
feliz”.86
A filosofia — mais precisamente Sócrates, Platão e Santo
Agostinho — precisou esta intuição: a inteligência percebe
que o seu objeto, a saber, as verdades necessárias, universais,
eternas, domina o espaço e o tempo;87 ora, ela, a inteligência,
é da mesma ordem que o seu objeto, e, como ele, é superior
ao tempo; por conseguinte, toda a nossa atividade racional e
moral é de ordem superior a tudo quanto em nós há de
morrer. Tudo isto o sentimos, naturalmente. E Santo Tomás

de modo mais particularmente surpreendente, por causa do seu estado


primitivo, é a inquietude, a espera de uma libertação definitiva e de uma
plenitude que não deixe nada a desejar. Grosseiros preconceitos, claro
está, alteram-lhes a idéia que fazem da vida futura” (P. Reg. Garrigou-
Lagrange, O. P.,ibid., p. 120, n. 1).
84 P. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P., ibid., p. 120.
85 Idem.
86 Idem.
87 Domina por abstraído deles, do hic et nunc.

46
precisa, ao estudar as análises aristotélicas do inteligível: A
inteligência humana apreende-se como uma relação ao ser;
ora, o ser enquanto ser abstrai de toda a matéria; por
conseguinte, a inteligência, essencialmente relativa a
semelhante objeto, é absolutamente imaterial.88 “Esta prova
tradicional da espiritualidade e da imortalidade da alma,
prolongamento da intuição do senso comum, é demasiado
desconhecida dos filósofos cristãos dos nossos dias” —
escreve ainda o Padre Garrigou-Lagrange.89 E os que lhe
contestam o rigor não vêem o que Aristóteles e Santo Tomás
compreendem por objeto formal da inteligência, o qual
aparece em toda a sua pureza se o consideramos no terceiro
grau de abstração, ou abstração metafísica. Acompanhemos o
pensamento de Aristóteles.90 Algumas ciências (como as
ciências naturais) abstraem somente da matéria sensível
individual (conquanto também considerem a matéria sensível
comum: o químico, por exemplo, faz abstração das
particularidades de determinada molécula de água para
investigar as propriedades sensíveis da água), e este constitui
o primeiro grau de abstração. As ciências matemáticas, por
seu lado, abstraem da matéria sensível comum, mas para
considerar tão-somente a quantidade contínua ou discreta, e
este constitui o segundo grau de abstração. A metafísica, e a
lógica, e moral, por fim, abstraem de toda e qualquer matéria,
para considerar unicamente o ser enquanto ser e suas
propriedades, ou ainda entes que se definem pela sua relação
ao ser enquanto ser, ou seja, “os entes intelectuais e sua
atividade propriamente intelectual e voluntária”.91 Já nada há
de material nem, por conseguinte, de quantitativo quer no ser
e suas propriedades transcendentais (unidade, verdade,

88 Cf. Sum. theol., Ia, q. 50, a. 2, e q. 75, a. 5, a. 6; Metaph., 1, I, lect. I, 2, 3, e 1.


XI, lect. 3 etc.
89 P. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P., ibid., p. 121.
90 Met., 1, X, c. III. Cf. Coment. de Santo Tomás, 1. IX, lect. 3.
91 P. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P., ibid., p. 122.

47
bondade), quer nas divisões primeiras deste mesmo ser
(potência e ato, essência e existência etc.).
Pois bem, é neste terceiro grau de abstração que a
inteligência se apreende a si mesma como essencialmente
relativa ao imaterial. As próprias ciências inferiores, a saber, as
do primeiro e segundo graus de abstração, não se lhe tornam
inteligíveis senão na medida em que podem esclarecer-se
pelos mesmos princípios do ser, permanecendo este o objeto
formal, o princípio de inteligibilidade universal. A
inteligência, pois, como o seu objeto, como as razões de ser e
as relações que ela apreende, é necessariamente imaterial.
Mas que quer dizer, aqui, precisamente, imaterial?
“Intrinsecamente independente de um órgão”, escreve o
Padre Garrigou-Lagrange. “Ela não depende do corpo senão
extrinsecamente, enquanto ela não pode pensar sem imagens.
Ora, a intelecção imaterial não pode proceder senão de uma
substância imaterial [...]. Conclua-se, portanto, que alma
humana é imaterial, intrinsecamente independente do corpo
que ela informa e domina, e que, por conseguinte, ela pode
subsistir sem ele.”92 Ademais, se é, como de fato o é,
absolutamente simples (simples como o seu mesmo objeto),
ela então é naturalmente incorruptível e imortal.93 Só Deus, que
a criou, a poderia aniquilar; mas Ele move os seres como
convém à própria natureza deles, e não cessa de conservar no
ser a criatura que não só pode, por definição, durar para
sempre, mas que também naturalmente o quer e anseia.
“Esta prova tomada do objeto formal da inteligência, o ser,
não é senão o prolongamento da intuição do senso comum:
‘Omne habens intellectum naturaliter desiderat esse
semper’.”94

92 Ibid., p. 123.
93 Cf. Sum. theol., Ia, q. 75, a. 5 e a. 6.
94 P. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P., ibid., p. 123.

48

Você também pode gostar