Você está na página 1de 6

Conto: Justiça para o silêncio

Num dia como outro qualquer de trabalho, ela chega numa casa extremamente
humilde, dessas que nem têm tranca na porta e onde aparentemente havia
ocorrido uma tentativa de homicídio.

Entra devagar, seguida pela vizinha que atua como guia e curiosa de plantão.
Tudo esta na penumbra. A vizinha fala ao cangote da policial sem parar, relata
maus-tratos, as bebedeiras, diz que o Zé é um deplorável e que a Maria além de
deficiente física, é uma coitada e blá blá blá...

- Eu lhe agradeço imensamente por me acompanhar, mas preciso fazer umas


coisas aqui agora, a senhora poderia me deixar só? – Pede com um sorriso doce,
mas incisivo.

A mulher sai contrariada, batendo o pé. Sorri a nossa protagonista, parecia que
sua vida era mesmo contrariar os outros.

A vítima, uma mulher que além de não fazer qualquer movimento, permanecendo
o tempo todo deitada, ainda tem problemas de fala. Ela vivia ali com o marido
alcoólatra e quando levada ao hospital após ser socorrida por vizinhos, pois o
mesmo não estava em casa, gritava:
- éééééé......! éééééé.....! – nuns grunhidos indecifráveis.

E os populares em primeira instância, concluíram que o autor era o marido dela, a


quem ela mesma chamava de Zé, quer dizer, éééé, apesar de se chamar
Sebastião.

Era preciso levantar pistas rapidamente, pois ele encontrava-se detido no distrito e
apesar de embriagado, afirmava sem parar não ter sido ele o autor.
Olhando em volta, a policial respira profundamente. Maria a vítima, embora
apresentando um pequeno, mas profundo corte no ombro esquerdo, havia tido
que receber sangue. Estranho, na cama desarrumada havia uma mancha
pequena, de uns trinta centímetros. Abaixa-se, e de quatro olha debaixo da cama.

Meu Deus! Parece que o sangue da mulher está todo ali, numa poça enorme,
coagulado em alguns pontos. Sente um arrepio percorrer-lhe as costas. A mulher
havia sangrado lentamente ali sozinha, e enquanto não a encontravam, pela
impossibilidade de movimentar-se o sangue varou o colchão depositando-se gota
a gota no chão.

Nenhum instrumento pontiagudo por ali. Vasculha a casa. O agressor levara


consigo o objeto que utilizara para ferir a vítima. Estranho. Casa humilde, mas
arrumada. Sapatos enfileirados debaixo de uma cômoda. Notava-se que possuíam
somente alguns poucos utensílios de cozinha, mas todos muito limpos e dispostos
sobre um pano de prato limpo. Não era um cenário tipicamente habitado por um
homem que pratica maus-tratos, uma vez que segundo as informações colhidas,
era ele mesmo quem cuidava da casa. Sobre a mesa, migalhas de pão, uma
pequena faca suja de margarina. Procura mais um pouco, não há outras facas.
Sobre a pia, uma garrafa de pinga a menos da metade e três copos, dois sujos da
aguardente e o terceiro de café com leite. Bem, o Zé havia bebido e não havia
sido sozinho. E obviamente não havia bebido com a Maria que certamente bebeu
o café com leite.

Em meio aos grunhidos que produzia, a Maria meneava a cabeça negativamente


quando lhe perguntava se havia sido o Sebastião o agressor. Mas ela continuava
a pronunciar: - éééé...

Consegue apurar a policial que o Sebastião havia bebido com um amigo de


apelido Zé Caneca antes de sair de casa. O Zé Caneca deixou o local na
companhia de Sebastião, o dono da casa, e depois de andarem uns quarteirões
lado a lado, se separaram. É muito provável que o Zé Caneca tenha voltado ao
local sozinho.

Quando questionada a respeito, Maria balançava frenética e afirmativamente a


cabeça. Sim, havia sido o Zé.

Sebastião foi liberado naquele mesmo dia, e ficou acreditando que tudo estava
praticamente resolvido. Que bastavam os meneios de cabeça de sua mulher, e o
fato de ter estado no local para que o tal Zé fosse punido.

Da situação, pelo menos algo positivo havia sido produzido. O Sebastião tomou
um susto tão grande que não colocou mais uma gota sequer de álcool na boca.

Como já sabia que se depararia com a impossibilidade de colher depoimento da


vítima, tentou a policial localizar alguma testemunha. Nada. Quando já estava
desistindo, uma vizinha admitiu que suas duas filhas haviam visto um movimento
no quintal, mas as meninas tinham sete e nove anos, portanto, testemunho sem
valor em tribunal. A delicadeza das evidências fazia o Zé escorrer por entre os
dedos. Ela já pressentia, o caso ia morrer no esquecimento.

Seu coração se apertava, sentia-se muito cansada. A vida parecia valer tão pouco
diante de circunstâncias como estas... Sentia uma vontade enorme de desistir de
tudo. Estava cansada de ver pessoas abastadas tendo acesso a tudo nesta vida
como se possuíssem um cartão vip.

Voltava toda semana na casa de Maria, com qualquer desculpa, para ver como
estavam. Levava mantimentos, alguma ajuda, mas o Sebastião sempre queria
novidades sobre o caso, ou queria saber quando o Zé seria preso.
Aquilo a abalava imensamente. Saía dali e na primeira esquina que dobrava
parava o carro debruçando sobre a direção, pois os olhos marejados
atrapalhavam-na para dirigir.

Olhava o céu muito claro e desacreditava que pudesse haver uma eficaz justiça
para os pobrezinhos, para as criancinhas, para os velhinhos, para os
animaizinhos...

Meu Deus! O que fazia ela ali? Por que era obrigada a presenciar tamanha
injustiça? Eram respostas que ela achava que nunca teria. Achava...

Em cada uma de suas noites sem sono, ela sentia na boca o gosto amargo de ter
as mãos atadas. Uma incompetência muito mais profunda, pois o serviço estava
em dia, mas sua consciência arrastava-se como um pesado fardo. Lembrava de
Maria, e fazia seu trabalho com muito mau gosto por aqueles dias.

Algum tempo depois, num dia de trabalho noturno, resolveu distrair-se olhando os
casos recentes e quase não conseguiu conter uma exclamação de alegria diante
de uma ocorrência que não tinha nada de alegre.

Um homem aparentemente embriagado havia sido abordado por três indivíduos


que lhe jogaram certo líquido inflamável sobre o corpo e atearam fogo. Da vítima,
sabia-se que Zé Caneca era seu apelido.
- Deus me livre! – expressou verbalmente, com medo da satisfação que sentia.

O Zé Caneca não morreu, apesar de ter sofrido queimaduras de terceiro grau no


tronco. Teve sorte ainda, pois talvez os tais homens não tivessem caprichado na
quantidade de álcool.

Ela fez questão de contar o ocorrido para todo mundo. Era como se exorcizasse
um demônio que havia se instalado dentro de si quando afirmava a cada um:
- Está vendo? Se a justiça dos homens é falha, todos têm o que merecem uma
hora ou outra! – e ainda balançava a cabeça como que decretando.

É interessante como todos nós temos o costume de achar que sabemos o que é
bom, ou suficiente em relação aos erros e pecados dos outros. Pois é, ela
também. Achava que estava presenciando a perfeita justiça divina e por conta
própria decidiu que o castigo havia sido suficiente. Conseguiu até esquecer o
caso, passando a olhar a Maria e o Sebastião novamente de cabeça erguida.

O tempo passou calmamente, outros casos indo e vindo. Um dia, cerca de um ano
após o ocorrido, apareceu uma mulher que lhe queria falar, mas somente consigo.
- Eu quis falar com a senhora, pois sei que tem um bom coração, e este nem é um
caso de policia – dizia a mulher – É que eu tenho um vizinho. Ele leva uma vida
muito desafortunada. Sua vida caiu em desgraça desde que a mulher o largou, em
razão de uns boatos que surgiram, dando conta de que ele teria tentado matar
uma aleijada. A senhora vê o que é a maldade do povo. Apesar de ser um
bêbado, imagine que seria capaz de uma coisa dessas! Ninguém seria.

A policial estava em absoluto silêncio, estarrecida. Melhor não dizer nada, esperar
o que a mulher tinha para contar. A mulher prosseguiu:
- A questão é que ultimamente ele tem bebido demais, e acho que tem tomado
calmantes também. Ontem mesmo saiu de alta, pois não estava nem se
alimentando. Ele fica prostrado na cama. Se não tivessem chamado uma
ambulância, acho mesmo que ele teria morrido, e hoje eu notei que ele não sai de
casa desde cedo. Estou com medo que lhe aconteça algo e ninguém veja. A
senhora poderia ir lá, dar uma olhadinha? Eu sei que este não é seu serviço, mas,
a senhora saberia melhor a quem recorrer.

A policial ficou olhando a mulher, com milhões de pensamentos na cabeça. Deu


uma risadinha amarela e afirmou que veria o que podia fazer.
Quando a mulher saiu, sentou-se. Como havia sido tola em pensar que poderia
avaliar qual castigo o tal homem merecia. Que tola!

Mas agora ali estava, depois de ter chegado a pensar que não havia justiça. Se
fosse até lá, poderia salvar o homem. Se fosse omissa, ele poderia morrer lá
sozinho. Deu mais uma risadinha amarela diante da situação. Parecia uma
“pegadinha divina”.

Refletiu por um tempo e dessa vez não contou nada a ninguém. Saiu para ver o
céu aberto, pois para reportar-se a Deus sempre precisava olhar para a
imensidão, e fez a seguinte afirmação mentalmente, como num acordo de
cavalheiros:
- O prazo que dou é até amanhã. Confesso Senhor que não estou louca para
salvá-lo, mas não posso pensar que tenho direito de, categoricamente, me omitir.
Amanhã procuro saber dele, aí vou até lá.

No dia seguinte pela manhã ao chegar no trabalho, não precisou perguntar nada a
ninguém. Uma colega veio relatar que um homem havia sido encontrado em casa
em estado de extrema desidratação e desnutrição, após consumir remédios em
excesso associados a álcool, permanecendo prostrado sem conseguir levantar-se.
Foi encaminhado ao hospital, mas devido à debilidade em que se encontrava,
morreu logo que deu entrada.

E assim foi o ocorrido. Assim ela aprendeu a parar de buscar razões para todas as
coisas. Assim ela aprendeu que se nós somos tolos, a vida é sábia. Assim ela
aprendeu que se mergulhamos em determinadas circunstâncias, bem, podemos
sair molhados.

(Carmem L Marcos)
www.feminaliterata.com

Você também pode gostar