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De boas intenções o inferno está cheio

ou Quem se responsabiliza pelas crianças que estão na escola e não


estão aprendendo?

Telma Weisz

Vivemos um momento importante na educação brasileira, porque de


mudança, e não sem tempo. Hoje, os esforços de todos os bem-
intencionados organizam-se da maneira que podem para combater uma
cultura que no último meio século dizimou milhões de crianças brasileiras: a
cultura da repetência. Mas enfrentamos, como em todos os grandes
movimentos de mudança, armadilhas que, se não forem percebidas,
atrasarão o avanço que estamos tentando fazer em direção a uma educação
eficiente e de boa qualidade para todos.

Uma dessas armadilhas consiste em acreditar que, engajados na nova e boa


palavra de ordem 'o aluno não deve ser reprovado', os professores passarão
a aprová-lo, enviando-o para a série seguinte munido de todas as
competências necessárias para cursá-la com sucesso. Como se até então
não o fizessem simplesmente por descaso com seu próprio trabalho, ou por
acreditarem que professor bom é o que reprova.

Essa situação costuma ser mais dramática no contexto das primeiras séries
do ensino fundamental, que é quando são tomadas decisões de importância
vital: se o aluno aprende a ler e a escrever nos dois primeiros anos e será
promovido, ou se ficará retido ali, ano após ano, até desistir da escola; se,
mesmo sem aprender, será promovido e engrossará o número dos que, cada
vez mais, chegam analfabetos à 4a série; se, mesmo precariamente
alfabetizadas e sem nenhuma competência para compreender textos mais
complexos, classes inteiras de 4a série iniciarão o segmento da 5a à 8a séries
para fracassar diante da necessidade de aprender por meio da leitura.

Em recente experiência acompanhando o projeto de formação em serviço


em um município nordestino1, foi possível analisar um fenômeno de que
tínhamos notícia, mas que nunca havia sido empiricamente verificado e,
principalmente, nunca tinha sido quantificado: os professores têm
dificuldade para reconhecer quanto seus alunos aprenderam e se estão ou
não em condições de serem aprovados para a série seguinte.

O que vemos na tabela a seguir é o resultado de uma ação cujo objetivo era
ao mesmo tempo de avaliação e de formação. A intenção primeira era
informar o olhar dos educadores em formação, utilizando um instrumento
que permitisse analisar as idéias dos alunos sobre o sistema de escrita e,
portanto, avaliar com razoável precisão se estariam ou não alfabetizados.
Escritas Escritas Escritas Escritas % de
anteriores silábicas silábico- alfabéticas alunos
à alfabéticas
fonetização
1a 586 (45%) 276 189 (15%) 225 (18%) 1.276
série (22%) (49%)
2a 30 (4%) 21 (3%) 103 (14%) 578 (79%) 732
série (28%)
3a – – – 452 452
série (100%) (17%)
4a – – – 162 162
série (100%) (6%)
O que
Total 2.622 encontramos
(100%) aponta para a
enorme
dificuldade que os professores têm de verificar o que os alunos já sabem e o
que não sabem. Se considerarmos os alunos que produzem escritas silábico-
alfabéticas e alfabéticas na 1a série, no início do ano – 414 alunos, 33% dos
alunos as 1a série –, e que poderiam perfeitamente acompanhar uma 2a
série, pois podem ler e escrever, ainda que com precariedade, verificamos
que eles foram retidos porque os professores não tiveram condições de
avaliá-los adequadamente e acabaram utilizando indicadores como 'letra
bonita' ou 'caderno bem-feito' para decidir o destino escolar de seus alunos.
Quando o professor trabalha com esse tipo de indicador, até mesmo avanços
na aprendizagem acabam prejudicando o aluno. Por exemplo, quando o
aluno aprende a ler, é comum que ele comece a 'errar'na cópia. Isto é, deixa
de copiar letra por letra e começa a ler e a escrever grandes bloco de
palavras, em geral unidades de sentido, o que faz com que cometa erros de
ortografia ou escreva palavras grudadas. Tal fato, que é na verdade
indicador de progresso, acaba sendo interpretado como regressão, pois o
professor não tem clara a diferença entre copiar e escrever. Constatação
reforçada por outro dado interessante: a presença de 51 alunos não-leitores
(7%) na 2a série. Esses alunos foram promovidos porque eram bons
copistas, e isso parece ter impedido o professor de perceber que não sabiam
ler e escrever.

Os números da última coluna da tabela, que não são tão diferentes do que
acontece no resto do país, mostram o impacto da cultura da repetência:
49% dos alunos estão na 1a série, 28% estão na 2a série, 17% na 3a série e
apenas 6% conseguiram chegar à 4a série.
É de situações como essa que estamos partindo ao buscar saídas para a
cultura da repetência com a ambição de criar uma educação menos
exclusora. E nossa falta de clareza sobre a questão também vem de longa
data. Darcy Ribeiro costumava dizer que atribuir nossos extraordinários
índices de fracasso escolar a uma hipotética incompetência da escola era
uma rematada tolice. Que a nossa escola era não só competente como
também eficiente, pois preparava a população para aceitar a exclusão e
atribuí-la à sua própria incapacidade. Reprovar 50% dos alunos ao fim da 1a
série – situação que não existia em nenhum outro país – era algo que só
podia ser explicado dessa maneira.

A partir de 1982, com os primeiros governos democráticos em Estados e


municípios, esforços no sentido de mudar esse quadro vêm sendo feitos por
várias secretarias de educação, desde a instituição de ciclos até programas
para melhorar a formação dos professores. Apesar de sucessos pontuais,
quando se olha para o país, o avanço é quase imperceptível.

Há quem contradiga essa posição, defendendo que a mudança da 'cultura da


escola' – que agora, em vez de se orgulhar, deve envergonhar-se de
reprovar – dará conta de levar adiante a transformação pretendida. Isto é
falso. A cultura de uma instituição como a escola pública não resulta da
vontade pessoal de ninguém. As pessoas vivem dentro dela de forma não-
consciente e tendem a pensar o modo de funcionamento institucional como
natural, e não como cultural, como algo que sempre foi e sempre será.

Nessa cultura, a produção de multirrepetentes em massa decorre da visão


de que o aluno é sempre responsável por sua aprendizagem. Essa maneira
de olhar para a questão do fracasso escolar, embora não produza
diretamente a repetência maciça, é certamente responsável pela aceitação
institucional do fenômeno, por sua naturalização. Tanto que, quando se trata
de crianças de apenas sete anos, consideradas pelo bom senso jovens
demais para tanta responsabilidade, a suposta falta de empenho é
transferida para a família.

Por isso, situações extremas, como a da classe cujas notas aparecem no


documento a seguir, não costumam provocar grande comoção nas escolas
onde acontecem, nem ter qualquer conseqüência além da própria repetência
dos alunos.Apesar da aparente distribuição do fracasso entre todas as áreas
– as notas são semelhantes tanto em português como em matemática,
estudos sociais ou ciências – sabemos que, na 1a série, o que determina a
reprovação é o fato de o aluno não estar alfabetizado. E sabemos que os
sistemas escolares brasileiros, tanto estaduais como municipais, têm uma
longa história de insucessos na alfabetização inicial.
A despeito de todas as boas intenções, o atual esforço de transformação da
educação brasileira será sugado pelo buraco negro da nossa incapacidade de
alfabetizar os alunos no início da escolaridade obrigatória2. Prova disso é
que, para desespero dos que sabem para onde isso sempre nos tem levado,
estamos assistindo à transformação da generosa idéia de progressão
continuada nessa perversão que está tornando-se conhecida como
'promoção automática'.

Para a sociedade, que hoje assiste atentamente à discussão sobre a


necessidade de melhorar a qualidade da escola pública, ambas parecem a
mesma coisa – afinal, em ambas o aluno não repete o ano. No entanto, a
progressão continuada dentro de ciclos não se resume à não-reprovação. A
hipótese que a fundamenta é a de que as crianças que chegam ao fim de
uma série sem terem aprendido tudo o que precisavam não devem
recomeçar, no ano seguinte, do zero, e sim continuar aprendendo a partir de
onde estavam. Contudo, para que isso aconteça, elas precisam de mais
ensino, de apoio pedagógico e, principalmente, do respaldo de um coletivo
de professores convencidos de que a aprendizagem de cada um de seus
alunos é um desafio profissional.

Quando havia a reprovação, a professora da 1a série observava seus alunos


no início do ano letivo e rapidamente podia dividir a classe entre 'os que vão'
e 'os que não vão'. Como a cultura escolar está impregnada da idéia de que
'os que não vão' não vão por serem menos ou pouco capazes, a professora
podia abandoná-los. É claro que a profecia inicial realizava-se no fim do ano
com a reprovação dos que não 'iam'.

Atualmente, com a progressão continuada, as classes continuam divididas


entre 'os que vão' e 'os que não vão', mas com uma pequena diferença:
antes eram os que 'vão aprender e passar de ano e os que não vão aprender
nem passar de ano' e agora todos 'passam de ano', porém só alguns 'vão'
aprender. Nas escolas de 1a a 4a séries, começam a se tornar freqüentes as
classes de 3a e 4a séries de alunos que não sabem ler nem escrever. E, como
se isso não bastasse, começam a aparecer também as 5as séries nas
mesmas condições. Estamos a caminho de produzir analfabetos com
certificado de oito anos de escolaridade?

A escola brasileira continuará a ser uma poderosa máquina de exclusão


social enquanto não conseguir alfabetizar todas as crianças. E as tentativas
de mudança que desconsiderarem que isso subjaz à cultura da repetência
acabarão repetindo a cínica aula de realismo político que o escritor italiano
Lampedusa3 põe na boca do representante da nobreza em seu livro II
Gattopardo: 'É necessário que as coisas mudem para que permaneçam as
mesmas'. Ou, como dizem os franceses, plus ça change, plus c’ést la même
chose4.
Notas
1
Projeto desenvolvido no município de Batalha, em Alagoas. Alguma
informação sobre esse projeto pode ser encontrada no número 129
(março/abril de 2000) da revista Nova Escola, editora Abril.
2
Na verdade, o processo de alfabetização começa bem antes e deveria estar
presente na educação infantil, como costuma acontecer com os filhos da
elite.
3
Giuseppe Tomasi, príncipe di Lampedusa, romancista siciliano que escreveu
o romance II Gattopardo, em que traça um panorama da decadência da
aristocracia da qual o autor fazia parte. A partir desse livro, o cineasta
italiano Luchino Visconti realizou o extraordinário filme de mesmo nome.
4
Tradução livre: 'quanto mais muda, mais igual fica'.

Telma Weisz é doutora em Psicologia da Aprendizagem pela USP e


consultora do MEC para projetos de formação de professores.

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