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Indígenas Munduruku e mineração: uma análise sócio-jurídica sobre um difícil, dramático e

crescente conflito social

Pseudônimos: Lima Castro e Simone Kaiowas

Resumo: Os recentes episódios a respeito da iniciativa do Governo Federal em aprovar o Projeto de


Lei nº 191 de 2020 trouxe à tona uma questão delicada entre as atividades de mineração e os povos
indígenas que não são casos isolados ou fatos históricos recentes. Este artigo analisa com foco nas
Terras Indígenas do Munduruku um conflito de décadas marcado por inúmeras violações de direitos
indigenistas, bem como de Direitos Humanos de uma forma geral garantidos pela Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, destacando os prováveis motivos de sua intensificação a
partir do início da atual presidência da República iniciada em Janeiro de 2019.

Palavras-chave: Direitos Indígenas. Mineração. Garimpo de ouro. Terras Munduruku.


Violação de direitos.

1. Introdução
O Projeto de Lei (PL) nº 191 de 2020 entrou na pauta de discussão da sociedade civil brasileira
no mês de junho deste ano quando associações de povos indígenas se dirigiram ao Distrito Federal
para de alguma forma pressionar o Congresso Nacional a retirar tal matéria da pauta de discussão dos
parlamentares (cite-se que outras matérias também foram alvos das manifestações, como o Projeto
de Lei 490 de 20071).
A polêmica em torno de tal iniciativa legislativa tem bastante sensibilidade em territórios
como as Terras Indígenas do Munduruku localizadas no sudoeste do Estado do Pará, foco da análise
deste trabalho devido a episódios recentes e bastante graves de brutais violações de Direitos Humanos
ocorridas com os povos nativos em prol do interesse crescente e voraz de setores ligados à mineração
e à prática do garimpo, lícito ou ilícito, que inclusive vêm trabalhando politicamente, segundo
reportagens de jornalistas cujo trabalho é focado nas atividades da mineração no Brasil, em um
intenso lobby com os Poderes Executivo e Legislativo de maneira a pressionar pelo avanço de leis,
como o já citado “PL”, para que se flexibilize drasticamente direitos constituídos tanto pela Carta
Magna promulgada em 1988 quanto pela Lei nº 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio).

1 Disponível em https://apiboficial.org/2021/06/08/povos-indigenas-ocupam-cupula-do-congresso-
nacional-em-manifestacao-contra-o-pl-490/
Nesse sentido, não é um detalhe que o Governo Federal tenha colocado a aprovação do Projeto
de Lei nº 191 de 2020 como uma de suas 35 prioridades enviadas à Câmara dos Deputados 2. Esta
ação demonstra de forma muito nítida a força política que tais setores possuem junto aos Poderes
Executivo e Legislativo da República Federativa do Brasil.
Importante citar que a iniciativa em questão, que possui certa complexidade social que além
do poder de influência junto aos políticos profissionais e por diversas violações de direitos como
ameaças e atentados, também passa pela cooptação de alguns indígenas que ganham poder em
associações ou até mesmo cargos de mandato popular via eleições diretas3, vem sofrendo resistência
e oposição das lideranças indígenas que temem pelo destino de suas terras já tão violados devido a
práticas ininterruptas de garimpo ilícito de ouro que datam, segundo denúncias ao poder público,
desde pelo menos 19874.
Ademais, cite-se que o próprio Ministério Público Federal (MPF), através da Procuradoria
Geral da República, emitiu uma nota pública apontando as flagrantes inconstitucionalidades do PL
em questão segundo análise interna da instituição5. Segundo o MPF:

A mineração e as obras de aproveitamento hidrelétrico em terras


indígenas mereceram atenção especial do Constituinte de 1988,
justamente pelo potencial dano e ameaça à vida e à cultura dos povos
indígenas. No artigo 231, a Carta Magna estabelece que “o aproveitamento
dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a
lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com
autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”
(§ 3º). Determina ainda que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos
jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse
das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante
interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar” (§ 6º)
(...)

Pela própria avaliação do parquet, a lei representará uma afronta a um direito expresso no
próprio texto da Carta Magna de 1988. Caso seja aprovada e sancionada pela presidência da República,
pode ser que haja a possibilidade de ajuizar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o
Supremo Tribunal Federal (STF).

2 Matéria jornalística disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/725714-confira-a-lista-de-


prioridades-do-governo-na-camara-e-no-senado/. Acesso em 21 ago. 2021.
3 Matéria jornalística disponível em https://reporterbrasil.org.br/2021/07/quem-esta-por-tras-do-lobby-
pelo-garimpo-ilegal-de-ouro-nas-terras-dos-munduruku/. Acesso em 21 ago. 2021.
4 Matéria jornalística disponível em https://observatoriodamineracao.com.br/escalada-de-violencia-de-
garimpeiros-contra-indigenas-no-para-leva-a-pedido-de-intervencao-federal/. Acesso em 21 ago. 2021.
5 Nota Pública da Procuradoria Geral da República sobre a mineração em terras indígenas:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/document20210622T105111.842.pdf. Acesso em 21 ago. 2021.
No entanto, sabe-se que o ritmo do Poder Judiciário costuma ser lento, principalmente em
casos concretos de alto grau de complexidade de análise jurídica e social. Diante dessa característica
do judiciário brasileiro, é impossível não temer que um cenário social que já é bastante grave possa
piorar em dimensões incalculáveis.

2. As terras Munduruku e a busca pelo ouro


Localizadas no Estado do Pará em seu sudoeste e à margem direita do rio Tapajós, a terra
indígena (TI) Munduruku possui uma área de 2.382 hectares e junto com a TI Sai Cinza (também
localizada no alto do mesmo rio) e a TI Kayabi abrigam cerca de 145 aldeias da tribo Munduruku
(cerca de 14 mil pessoas) segundo a nota técnica do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente
à Mineração (CNDFTM)6.
Não é segredo que de 2019 para o atual ano houve tensionamentos da comunidade
internacional diante de um fato atestado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE): a
prática de desmatamento aumentou exponencialmente na gestão do atual Governo Federal. Algo que
provocou (e continua a provocar) represálias do Presidente da República e do então Ministro do Meio
Ambiente contra o órgão7. Destaque-se que uma das regiões mais desmatadas, um processo ainda em
curso, é justamente a região das TI Munduruku e Sai Cinza.
Importante destacar que a despeito do agravamento da prática contra o meio ambiente e dos
conflitos sociais presentes na região, a divergência de indígenas e mineração (garimpo) não é um fato
recente provocado pela apenas pela ascensão de Governos Federal e Estaduais simpáticos às pautas
dos garimpeiros. A questão é um fato histórico que vem desde 1987 no mínimo e com circunstâncias
tão complicadas quanto deletérias. Afinal, os registros históricos, apontados inclusive pela nota
técnica do CNDFTM, mostram que a prática de garimpo ilícito foi instaurada pela própria FUNAI
nos anos 80.
Tamanha é a dificuldade de se lidar com o difícil caso que nos anos 90, técnicos da própria
FUNAI, distintos daqueles que nos anos 80 muito provavelmente ainda eram oriundos do período da
Ditadura Militar, identificaram a presença de um garimpo ilegal que continua ativo até o atual ano de
2021. Um ponto importante: a liderança do movimento garimpeiro da região do Tapajós é ligada a

6 Nota Técnica do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Disponível em
http://emdefesadosterritorios.org/wp-content/uploads/2021/04/Resumo-Executivo-4.pdf, p.2. Acesso em
21 ago. 2021.
7 Matéria jornalística disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-13/governo-bolsonaro-
enfraquece-o-inpe-e-retira-do-orgao-divulgacao-sobre-dados-de-queimadas.html. Acesso em 21 ago.
2021.
um delegado da Polícia Federal que foi preso no ano de 2020 sob a acusação de fornecimento de
informações a donos de garimpos na região8.
Dessa informação, percebe-se de forma muito preocupante a incapacidade das instituições do
poder público responsáveis por tomar iniciativas que poderiam solucionar tanto casos como o das TI
Munduruku quanto de outros que possuam alguma semelhança. Afinal, o registro inicial das tensões
datam antes mesmo da promulgação da Constituição da República promulgada em 1988 e até hoje o
problema não foi solucionado. Ao contrário: se agravou.
O início das tensões nas Terras Indígenas Munduruku, assim como em outras da região
amazônica, se dá por um evento que carrega semelhanças históricas com o que ficou conhecido como
“Corrida do Ouro” entre o fim do século XVII e no curso do século XVIII – prática que foi bastante
recorrente de um episódio da História do Brasil que ficou conhecido como “Entradas e Bandeiras” -
onde a busca por metais preciosos também foi caracterizada por verdadeiros banhos de sangue,
principalmente das populações indígenas e de escravos fugitivos de seus senhores.
Por mais distante que seja a origem de um determinado problema social, sempre é importante
relembrar fatos históricos da República Federativa do Brasil para que se possa compreender de uma
forma mais clara e reflexiva as origens de um caso concreto complexo como o citado para a partir daí
se procurar alternativas, políticas ou jurídicas, em prol de uma solução efetiva onde o respeito aos
Direitos previstos na Constituição da República sejam soberanos e respeitados.

3. A mineração e a influência sob o poder público


Assim como o conflito da mineração com os indígenas nas TI Munduruku tem cerca de trinta
e quatro (34) anos (para não falar de origens mais antigas já citadas), não é novidade que os grupos
ligados às atividades de mineração legais e ilegais possuem muita influência com os políticos
profissionais.
A despeito de haver momentos onde o poder é exercido por governos que supostamente não
sejam simpáticos às suas causas, o poder de influência sempre foi muito forte no parlamento federal.
E no atual período histórico onde o Governo Federal é declaradamente simpático às pautas dos
garimpeiros, as ligações que outrora eram relativamente discretas passaram a ser bastante visíveis.
Uma prova disso pode ser identificada pela amizade da principal liderança dos garimpeiros que atuam
na região da Amazônia e no Estado de Roraima (RR) com o Vice-Presidente da República9.

8 Nota Técnica do Comitê Nacional em Defesa dos territórios Frente à Mineração. Disponível em
http://emdefesadosterritorios.org/wp-content/uploads/2021/04/Resumo-Executivo-4.pdf , p.3. Acesso em
21 ago. 2021.
9 Matéria jornalística disponível em https://observatoriodamineracao.com.br/a-intensa-agenda-e-a-
amizade-de-hamilton-mourao-com-empresarios-do-garimpo/. Acesso em 21 ago. 2021.
Aliás, a presença do líder citado e de outras do ramo costuma ser bastante frequente em
agendas não só do Vice-Presidente como também do Ministério de Minas e Energia, do Ministério
do Meio Ambiente (principalmente quando o mesmo era chefiado por Ricardo de Aquino Salles, hoje
ex-Ministro do Meio Ambiente e protagonista de inúmeras polêmicas – inclusive com indícios de
atividades criminosas ainda em investigação – e aliado de primeira hora dos garimpeiros), entre outros.
No âmbito estadual, importante citar de maneira breve o Estado de Roraima (RR) por também
ser palco dos conflitos aqui relatados e por motivos bastante preocupantes em termos sociais e
jurídicos. No início deste ano, a Assembleia Legislativa de Roraima aprovou em comissão um projeto
de iniciativa do Governador do Estado – que politicamente é alinhado às pautas políticas do Governo
Federal – que tem o intuito de liberar a prática do garimpo no Estado com o agravante que uma
emenda apresentada por um Deputado Estadual alinhado ao Governador autorizaria a utilização de
mercúrio na atividade10.
Os casos exemplificados mostram de forma cabal o peso e a influência política que as
lideranças representantes do garimpo possuem no debate público. Tal influência, percebe-se, é
tamanha a ponto de em momentos supostamente desfavoráveis aos mesmos eles terem força política
para inviabilizar qualquer tentativa de avanços institucionais em prol de uma pauta que seja favorável
ao progresso sustentável e com amplo respeito aos direitos indígenas e aos direitos humanos em sua
totalidade (dos de âmbito universal aos positivados pela Carta Maior promulgada em 1988). E em
momentos favoráveis, a possibilidade deles instituírem um retrocesso em alta velocidade é um risco
real.
Não é exagero afirmar que o atual design institucional inaugurado pela Carta Magna de 1988
está enfrentando um dos seus maiores desafios de sua curta história. As possibilidades de retrocessos
são tão grandes que uma Constituição que é considerada por notáveis doutrinadores do Direito
Constitucional pátrio como a “Constituição do Índio” tem possibilidade de sofrer alterações em prol
de um grupo politico antagônico de atividades tão questionáveis ou até mesmo criminosas.
Na lição do jurista Uadi Lammêgo Bulos:

A previsão do indigenato na Constituição de 1988 demonstra que as


relações das comunidades indígenas com suas terras excede o âmbito
privatístico. A posse das glebas, tradicionalmente ocupadas pelos
índios, vai muito além das normas de Direito Civil, porque há um
sentido cultural, ecológico, humano, envolvido em tudo isso.11

10 Matéria jornalística disponível em https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/01/11/aprovado-em-


comissao-projeto-para-liberar-garimpo-em-rr-gera-criticas-e-instituicoes-pedem-retirada-da-
proposta.ghtml. Acesso em 21 ago. 2021.
11 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. p. 1666-1667. São Paulo. Saraiva
Educação, 2018.
Lammêgo Bulos prossegue em suas lições:

Ora, as terras dos índios não são fontes de negócios, nem negociatas,
porque constituem seu hábitat, seu modus vivendi, coisa que o
individualismo das normas civilísticas não consegue tutelar. Daí a
importância da tutela constitucional ao indigenato, pois é nos preceitos
constitucionais que a matéria adquire o seu merecido lugar de destaque,
a começar pela previsão das terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios.12

O douto jurista fala de forma correta e contundente sobre a importância e valor das chamadas
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios cujo alcance estaria além da tutela normalmente
aferida ao Direito Civil brasileiro. Não à toa, o tema está devidamente positivado pelo caput do artigo
231 da Constituição da República e detalhado no §1º do mesmo dispositivo.

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.13

Além dos direitos constitucionais positivados, o ordenamento jurídico nacional possui uma
gama de dispositivos legais em prol do povo indígena. Alguns exemplos são o já citado Estatuto do
Índio (Lei nº 6.001 de 1973), o Decreto nº 1.775 de 1996 (que dispõe sobre o processo administrativo
de demarcação de terras indígenas), o Decreto nº 1.141 de 1994 (que contempla ações de proteção
ambiental, saúde e apoio às atividades produtivas para as comunidades indígenas) entre outros.
Porém, quem vive, conhece e entende a processualidade histórica da República Federativa do
Brasil compreende que um arcabouço jurídico bem estruturado – mesmo que com ótimas intenções
– não produz os seus efeitos se o mesmo for alvo de uma fortíssima influência política antagônica.

12 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. p. 1666-1667. São Paulo. Saraiva
Educação, 2018.
13 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil : texto
constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional nº 105/2019.
Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas: Brasília, 2020. 141 p. ISBN: 978 85-528-0064-
4.
Inclusive com riscos reais de retrocessos sem ao menos ter gerado efeitos mais fortes e robustos em
prol da proteção dos direitos dos povos originários do país.

4. Violações extremas de direitos humanos: o aumento sistemático da tensão política entre


indígenas Munduruku e garimpeiros
Diante da gravidade do contexto social, jurídico e político analisado no artigo, não surpreende
o aumento da animosidade entre os representantes da mineração e os indígenas. Inclusive, segundo
alguns estudiosos, a demarcação das terras da Raposa Serra do Sol (RR) foi um provável vetor da
explosão do aumento da animosidade dos garimpeiros com indígenas, ambientalistas e afins, algo que
possibilitou a ascensão paulatina de políticos profissionais de viés conservador e ligados às pautas do
garimpo, das mineradoras e do agronegócio. Se antes eles já eram detentores de grande influência em
seus territórios, hoje possuem uma força política ainda maior.
O aumento da animosidade, por óbvio, chegou ao Estado do Pará complicando ainda mais um
cenário político que já era bastante difícil e sensível. A prova da dificuldade do momento enfrentado
na região são os sucessivos episódios de violência promovidos por garimpeiros aos habitantes das TI
Munduruku e às sedes das associações de indígenas ou de ambientalistas que buscam auxiliar a
proteção dos direitos legais previstos no ordenamento jurídico e também mediar conflitos.
Fatos bastante graves como ataques a tiros e incêndios estão cada vez mais frequentes, onde
os grupos se sentem tão respaldados que simplesmente não se importam nem mesmo com a legislação
penal vigente. Diante do exposto, vale ressaltar que esses mesmos grupos (garimpeiros e alguns
indígenas aliciados pela mineração) entraram em confronto com a Força Nacional de Segurança e a
Polícia Federal – que estavam na região para remover os garimpeiros ilegais – e praticamente
expulsaram ambas (o Ministério Público Federal criticou de maneira incisiva a retirada das forças
após esse triste evento14) e incendiaram a residência de uma liderança indígena Munduruku que se
mantém contrária à liberação irrestrita do garimpo na região. Os mesmos grupos também costumavam
se rebelar contra as iniciativas do IBAMA e do ICMBio que inúmeras vezes exerciam um papel
fundamental, mesmo insuficiente, contra tais atividades ilícitas. Entretanto, por se sentirem
respaldados pelos governos locais e do país e também pela já sabida iniciativa do governo de Jair
Messias Bolsonaro de esvaziar esses órgãos, uma atividade que era insuficiente, porém fundamental,
praticamente se tornou inexistente.
Importante lembrar que IBAMA e ICMBio são órgãos que podem – e devem – ser
fundamentais e decisivos nessa tensão. Isso porque nos locais onde há a prática de garimpo legal e

14 “MPF critica retirada de forças federais de região sob ataque de garimpeiros e pede proteção a lideranças
no PA”. Disponível em http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-critica-retirada-de-
forcas-federais-de-regiao-sob-ataque-de-garimpeiros-e-pede-protecao-a-liderancas-no-pa/. Acesso em 21
ago. 2021.
ilegal, e na região das TI Munduruku não é diferente, há um grave risco de contaminação por Mercúrio
conforme apontado na nota técnica do CNDFTM e também por matérias de jornalistas que
acompanham as atividades com frequência15.
Esse tipo de envenenamento, cujo médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena apontou
a contaminação por mercúrio da população Munduruku como muito acima do nível que é considerado
seguro pela Organização Mundial da Saúde, tem efeitos mais devastadores nas mulheres e nas
crianças. Isso porque o índice de contaminação das mulheres em idade fértil, que foi considerado
bastante alto e grave, transmitem o mercúrio para seus possíveis filhos tanto no período da gestação
quanto na amamentação dos recém-nascidos. Vale lembrar que a periculosidade da substância
metálica reside na capacidade de provocar problemas gravíssimos como lesões irreversíveis no
sistema neurológico, no coração e na glândula tireoide por exemplo.
Diante de um quadro bastante difícil, onde garimpeiros somados a alguns indígenas cooptados
pelas associações ligadas à mineração e aos garimpos legais e ilegais, perderam completamente o
pudor e qualquer tipo de respeito pelo ordenamento jurídico vigente por se sentirem plenamente
respaldados pelos governos de âmbito Federal, Estadual e Municipal, o Ministério Público Federal
não viu outra alternativa a não ser solicitar à Procuradoria Geral da República o acionamento do
Supremo Tribunal Federal para que a Suprema Corte declare a grave violação de Direitos Humanos
que passou a ocorrer sistematicamente na região e requisite a intervenção federal no estado para o
seguinte fim:

Garantir o provimento da segurança jurídica na região Jacareacanga, com o


objetivo de conter a escalada de ataques de garimpeiros contra lideranças
indígenas, associações e, em última análise, o próprio povo Munduruku. (..)
O MPF vê uma situação de descontrole da segurança pública –
responsabilidade do estado do Pará – que justifica a intervenção federal. Pela
Constituição brasileira, a intervenção pode ser solicitada pelo PGR ao STF
para que a União assegure a observância dos direitos da pessoa humana (art.
34, VII, 'b'), dentre os quais por exemplo a vida e a liberdade associativa, os
quais se encontram severamente violados em Jacareacanga/PA diante da
ineficácia da atuação do Estado do Pará, “notadamente com a finalidade de
fazer cessar o projeto sistemático de ataque aos direitos humanos
titularizados, individual e coletivamente, pelo povo Munduruku”.16

15 Matéria jornalística disponível em https://reporterbrasil.org.br/2021/02/as-mulheres-munduruku-estao-


envenenadas-por-mercurio-e-temos-provas-denuncia-lider-indigena/. Acesso em 21 ago. 2021.
16 “MPF quer intervenção federal no PA para deter conflito entre garimpeiros e indígenas em Jacareacanga
e entorno (atualizada)”. Disponível em http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-quer-
intervencao-federal-no-pa-para-deter-conflito-entre-garimpeiros-e-indigenas-em-jacareacanga-e-
entorno/. Acesso em 21 ago. 2021.
O momento é bastante crítico e não há como prever um futuro não temerário que não passe
pela ação enérgica do poder público contra esses setores. Para isso, há diversas possibilidades dentro
do próprio ordenamento jurídico para coibir as ações desses grupos e garantir assim direitos previstos
no próprio texto constitucional da pátria como promover uma ampla articulação com entidades como
Ministério Público, associações indígenas, forças armadas e forças de segurança para que ações
criminosas com esse grau de violência possam ser cessadas o quanto antes.
´
Importante citar que uma articulação com o Poder Legislativo em prol de determinadas
modificações legais e constitucionais que pudessem permitir com maior eficácia a efetivação desses
direitos também seria muito bem-vinda e necessária. Afinal, o controverso cenário calamitoso não é
um episódio isolado. É histórico.
Todas essas iniciativas poderiam ser tomadas por um Governo Federal que tivesse como
preocupação maior seguir os marcos legais positivados como compromisso institucional e promover
alterações apenas em prol de um aperfeiçoamento das instituições. Entretanto, o que se vê no Brasil
está muito longe de ser um governo comprometido com causas minimamente sociais e muito menos
com o legítimo direito dos povos indígenas. Pelo contrário: a intenção é respaldar diversos interesses
escusos (entre eles, o dos garimpos legais e ilegais).

5. Conclusão
Diante de um quadro de tamanha gravidade, não há como ter receio pelo futuro próximo da
necessária reparação promovida pelo ordenamento jurídico nacional que, através da Constituição da
República promulgada em 1988 – conhecida tanto como “Constituição Cidadã” quanto “Constituição
do Índio” – e também por vários dispositivos legais que a complementam, assegurou aos povos
indígenas diversos direitos inalienáveis como por exemplo o seu necessário direito originário à terra.
O que se tem na Região Norte do Brasil é um momento cujo caos é tão grande a ponto do
próprio MPF precisar solicitar ao STF uma requisição de intervenção federal porque a violência dos
setores ligados ao garimpo já ultrapassou uma barreira a ponto dos mesmos conseguirem expulsar
forças de segurança pública nacionais do território onde exercem suas práticas ilícitas, se encontrando
num quadro que o histórico sociólogo francês Émile Durkheim define como anomia social. Isso com
o pleno aval de grandes lideranças ligadas às mineradoras e às atividades mais arcaicas de garimpo
de terras.
Lideranças essas cujos pensamentos remetem aos setores mais retrógrados que fazem parte da
construção histórica e sociológica do país e que através de suas ações não demonstram se preocupar
minimamente com a devastação humana e ambiental. A exploração deve ser obrigatoriamente
irrestrita, voraz e sem qualquer intuito que vise o ser humano e a mãe natureza. E enquanto não houver
algum tipo de reforma no desenho institucional do Estado brasileiro, muito provavelmente esses
setores continuarão se articulando politicamente de maneira decisiva e eficaz. Seja em seus momentos
de bonança ou nos de relativo ostracismo.
Portanto, percebe-se que uma das saídas para a solução do impasse aqui colocado passa
obrigatoriamente pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Seja pelo seu
aperfeiçoamento em prol de garantir uma maior eficácia dos direitos contidos na Carta Magna, seja
pelo redesenho institucional do Estado brasileiro, não há outra opção. Uma República saudável se faz
pelo exercício dos direitos e das leis vigentes. E para que isso seja feito, o Governo Federal e a própria
União têm o dever de primar e exigir pela efetivação dos mesmos.

Referências Bibliográficas:
BRASIL. Associação Nacional dos Procuradores da República. Índios, Direitos Originários e
Territorialidade. / Associação Nacional dos Procuradores da República. 6ª Câmara de Coordenação e Revisão.
Ministério Público Federal. Organizadores: Gustavo Kenner Alcântara, Lívia Nascimento Tinôco, Luciano
Mariz Maia. Brasília: ANPR, 2018.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional
promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional nº 105/2019. Senado
Federal, Coordenação de Edições Técnicas: Brasília, 2020. 141 p. ISBN: 978 85-528-0064-4.
BRASIL. Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Diário Oficial da
União: seção 1, Brasília-DF, p. 13177, 21 dez. 1973.
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Repórter Brasil, jul 2021. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2021/07/quem-esta-por-tras-do-lobby-
pelo-garimpo-ilegal-de-ouro-nas-terras-dos-munduruku/. Acesso em 21 ago. 2021.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2018.
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO; PROJETO INTEGRADO DE PROTEÇÃO ÀS POPULAÇÕES E
TERRAS INDÍGENAS DA AMAZÔNIA LEGAL; COOPERAÇÃO TÉCNICA ALEMÃ – DEUTSCHE
GESELLSCHAFT FÜR TECHNISCHE ZUSAMMENARBEIT. (Orgs.). Levantamento Etnoecológico
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