E AS SEPARAÇÕES
DO SEU TEMPO*
Ildo Perondi**
Resumo: o judaísmo oficial da época de Jesus era marcado por muitas separações, como
puro - impuro; judeu - estrangeiro; homem - mulher; escravo - livre. Muitas
dessas separações eram fruto das tradições que foram desenvolvidas no período
pós-exílico e prejudicavam, sobretudo, os pobres e marginalizados. Jesus de
Nazaré enfrentou várias delas. Mesmo sendo acusado de não cumprir a Lei, Ele
desmascara a hipocrisia daqueles que, baseados na tradição, acabavam anulando
e desprezando a própria vontade e os mandamentos de Deus para observar as
suas próprias tradições (Mc 7,9). Em sua prática, Jesus supera essas separações
e acolhe as pessoas excluídas, promovendo a justiça. Ao propor uma ruptura
diante do ensinamento dos mestres da época, Jesus não vai contra a revelação das
Sagradas Escrituras, mas, usando de critérios objetivos, dá aos textos sagrados
a justa interpretação, colocando a Palavra de Deus a serviço da vida do povo e
revelando o verdadeiro rosto de Deus. Esta prática de Jesus ilumina a realidade
atual marcada por sintomas de discriminação, intolerância e pelos novos muros de
separação e nos convida a práticas de inclusão, misericórdia e justiça.
U
m olhar sobre o que acontece no mundo aponta para nuvens estranhas no ar.
Os movimentos intolerantes crescem. Ideias perigosas são difundidas por lide-
ranças políticas, mediáticas e, sobretudo, religiosas, e que proliferam graças à
utilização de meios modernos e recursos poderosos para difundir suas propostas.
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* Recebido em: 13.09.2018. Aprovado em: 12.10.2018.
** Doutor em Teologia Bíblica (PUC-Rio). Mestre em Teologia Bíblica (Universidade Urba-
niana de Roma). Professor de Sagradas Escrituras no Curso de Teologia e no Programa de
Pós-Graduação em Teologia (PPGT - PUC PR). E-mail: ildo.perondi@pucpr.br
AS PRINCIPAIS SEPARAÇÕES
- Senhores - escravos: Enquanto os senhores eram livres, os escravos não tinham li-
berdade. Embora haja controvérsias em torno de se em Israel houve a prática
da escravidão ou em que períodos históricos, é evidente que se há leis sobre
como tratar os escravos é porque existiam escravos e, consequentemente, tam-
bém senhores que escravizavam. No tempo de Jesus havia várias formas de
escravidão, tanto de judeus como de estrangeiros (JEREMIAS, 2005, p. 403-
As três últimas separações geraram até uma oração de louvor a Deus, por meio da qual
o sábio judeu se dirige ao Criador agradecendo porque não o fez gentio (não
nasceu estrangeiro), nem escravo, nem mulher (McKENZIE, 1984, p. 636).
Com este sistema de separações, o judaísmo oficial excluía justamente as pessoas mais
vulneráveis, os mais fracos, os pobres e sofredores. Algumas destas separa-
ções eram fundamentadas em textos da Torá, mas foram radicalizadas por tra-
dições orais elaboradas ao longo da história.
As inovações que Jesus propõe o tornam uma pessoa perigosa, porque contrapõe a
estrutura socio-econômica-religiosa de seu tempo consolidada pelo sistema
opressor do império romano e pelos dirigentes judeus, por isso era visto pelas
autoridades religiosas e políticas como um subversivo. O fundamento para a
salvação para Jesus vem das Sagradas Escrituras. No entanto, a novidade que
ele apresenta provém do fato de que ele não as utiliza como os mestres da
época. “O que se está ensinando em Israel já não serve como ponto de partida
para construir a vida como Deus a quer” (PAGOLA, 2010, p. 289). Então Jesus
propõe um modo de responder à nova situação criada pela irrupção do Reino
de Deus.
Jesus se mantém fiel àquilo que é o essencial revelado nas Escrituras; porém entende
que não é possível remendar o que já está caduco e superado. Propõe uma
reforma radical sem colocar remendos em roupa velha, “mas vinho novo em
odres novos” (Mt 9,17; Lc 5,38). Neste sentido, Jesus não recorre às Sagradas
Escrituras para analisá-las e extrair delas o seu conhecimento, a exemplo do
que faziam os mestres da Lei e os fariseus. Nos textos sagrados, Jesus busca a
fonte para revelar a vontade de Deus que ilumina o projeto do Reino de Deus
(PAGOLA, 2010, p. 289).
Ao ouvir seu ensinamento, as pessoas ficavam admiradas e maravilhadas porque Jesus
“ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mc 1,22; Lc
4,32). Este reconhecimento vem da parte do povo simples, trabalhador, exclu-
ído e marginalizado, cansado de ouvir as pregações, baseadas nas Escrituras,
que procuravam justificar a sua condição de povo oprimido: “Este povo que
não conhece a Lei, são uns malditos” (Jo 7,49). Jesus, ao contrário, interpreta
as Escrituras a serviço da vida, evidencia que “o cumprimento da Lei sem con-
siderar a vida e a necessidade das pessoas era equivalente a invalidar a Palavra
de Deus” (NAKANOSE; MARQUES, 2004, p. 100).
As pessoas sabiam que Jesus não era um Mestre como os doutores da Lei e que não
havia estudado com os mestres famosos da época, como Gamaliel, Hillel ou
Shammai, mas o reconhecem pela autoridade que tem em falar de Deus e do
seu projeto. Também o lugar de ensinar não é o mesmo dos mestres. Jesus vai
A METODOLOGIA DE JESUS
Estes três pontos: ruptura, continuidade e nova prática geram a superação de uma situação
para que se realize um verdadeiro cumprimento entre a realidade nova que se es-
tabelece e que segue em continuidade com a revelação antiga. Este esquema está
presente em todas as superações daquelas situações em que Jesus propõe uma
superação. Jesus torna-se, assim, o verdadeiro intérprete das Sagradas Escritu-
ras, sem anulá-las. E retira dos textos sagrados aquelas normas rígidas e quase
impossíveis de serem praticadas que a tradição acrescentou às Escrituras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abstract: the official Judaism of the time of Jesus was marked by many separations, as
pure X impure; Jew X Foreign; man X woman; slave X free. Many of these sepa-
rations were the fruit of the traditions that developed in the post-exilic period
and especially affected the poor and marginalized. Jesus of Nazareth confronted
several of them. Even though he is accused of not complying with the Law, he un-
masks the hypocrisy of those who, based on tradition, eventually nullifying and
neglecting God’s own will and commandments to observe their own traditions
(Mk 7, 9). In his practice, Jesus overcomes these separations and welcomes the
excluded, promoting justice. In proposing a break from the teachings of the mas-
ters of the time, Jesus does not go against the revelation of the Holy Scriptures,
but using objective criteria, he gives the sacred texts the correct interpretation,
placing the Word of God at the service of the people’s life and revealing the true
face of God. This practice of Jesus illuminates the current reality marked by
symptoms of discrimination, intolerance and by the new walls of separation and
invites us to practices of inclusion, mercy and justice.
Referências
BARBAGLIO, G. Jesus, Hebreu da Galileia: pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011.
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis: Vozes, 1972.
ECHEGARAY, H. A prática de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1990.
FREYNE, S. Jesus, um judeu da Galileia. Nova leitura da história de Jesus. São Paulo: Paulus, 2008.
GARCIA, P. R. Jesus e as tradições legais de Israel. Conflitos de interpretação em torno das
tradições legais no judaísmo do primeiro século. Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 99, n. 3, p.
91-97, 2008.