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RACIONALIDADE COMUNICATIVA E EMOÇÕES: UMA POSSÍVEL RELAÇÃO

Odair Neitzel
Docente no curso de Filosofia/Pedagogia – UFFS
Doutorando na Universidade de Passo Fundo
odair.neitzel@uffs.edu.br

Claudecir dos Santos


Docente no curso de Ciências Sociais – UFFS
claudecir.santos@uffs.edu.br

Eixo temático 3: Racionalidade, Barbárie e Educação Inclusiva


Resumo
A presente investigação é fruto de pesquisas bibliográficas e busca refletir sobre a possíveis
implicações das emoções na constituição de uma racionalidade comunicativa. Partindo da
concepção de racionalidade de Habermas, o texto procura aproximar esta concepção com a
problematização da teoria das emoções e da neurociência, mostrando que estas de alguma
forma deverão estar contempladas neste modelo de fundamentação racional. Nossa tese é de
que as emoções estão na base de constituição da competência comunicativa e da interação por
gestos, teoria defendida e demonstra Georg Herbart Mead e uma das quais Habermas busca
subsídios para o sua Teoria do Agir Comunicativo. Se estão presente na concepção de razão
comunicativa, elas também estarão presentes nos sentimentos que permeiam a vida social, nos
processos de coordenação social e das tomadas de decisão pessoal, e que por nós será
ilustrado nos sentimentos de vergonha, compaixão e medo.

Para começo de conversa...


O tema da racionalidade sempre nos interessou. Pensar de alguma forma como as
pessoas formulam, argumentam e fomentam razões para justificar suas ações, valores,
escolhas, etc., sempre nos fascinou. Raciocinar, entre outras coisas, diz respeito aos processos
mentais pelos quais uma pessoa busca razões para se orientar nas mais diversas situações
existenciais.
A racionalidade, por ser um tema intrigante, tem nos levado a diversas buscas
compreensivas, no entanto, nesse momento, estamos inclinados a afirmar que o modelo
habermasiano de racionalidade é o que melhor dá conta dos processos de coordenação das
ações sociais. Seja frente às aporias, solipsísmos e limitações do modelo de racionalidade que
marcou a modernidade, seja frente às tendências teóricas que pretendem nos encurralar em
uma proposta de racionalidade sem um aporte minimamente processual ou lógico.
O modelo habermasiano representa uma forma madura de raciocinar, pois amplia os
horizontes da razão permitindo incorporar no processo argumentos que não se restrinjam a
pressupostos lógico-matemáticos ou experimentais. Contudo, apesar desta abertura, pelo
menos em nossa concepção, permanecem algumas dúvidas sobre a participação das emoções
e dos sentimentos em uma proposta de racionalidade processual e comunicativa. A questão é:
qual é o papel das emoções na teoria do agir comunicativo ou qual é o lugar das emoções
neste modelo de racionalidade e na própria estruturação da capacidade humana de agir
comunicativamente?
Para Habermas, racionais são pessoas capazes de fazer afirmações fundamentadas e,
além disso, justificar tais proposições perante o crivo da argumentação crítica. Ou seja, ser
racional implica em expressar certas condições, tais como estas destacadas por Bolzan: “ser
racional significa ser capaz de apresentar justificativas razoáveis, agregar argumentos
aceitáveis que se configurem em motivos suficientemente fortes, enquanto boas razões, para
suportar a crítica que se faz presente no embate argumentativo” (BOLZAN, 2005, p. 85).
Os discursos não se dão ao acaso, mas se dão sob as pretensões de validade ou de
verdade. Ou seja, ao proferir discursos, o emissor deve usar apropriadamente a linguagem e
pretender que os discursos sejam verdadeiros, sinceros e inteligíveis. A teoria do discurso,
portanto, é uma teoria moral. Agir comunicativamente é agir eticamente e, para tanto, é
preciso assumir um comportamento comunicativo, ou seja, de agir comunicativa e
moralmente. Põem-se então a questão sobre como nos tornamos capazes de agir e raciocinar
comunicativamente?
Nesse sentido, a teoria habermasiana é uma proposta que alargou a concepção de
racionalidade para além de um modelo instrumental e lógico positivo. E, nesse sentido, para o
propósito de nosso texto, assumimos que a racionalidade comunicativa tem implícito em sua
característica processual, a participação e as implicações dos estados emocionais. As emoções
são determinantes nos processos de decisão, organização, constituição de valores,
estabelecimento leis, na efetivação de ações justas, entre outras ações sociais-políticas-
culturais.
Em seu projeto de ciências reconstrutivas (NOBRE; REPA, 2012) Habermas busca
compreender os processos de constituição dos sujeitos, o modo como se tornam capazes e
competentes comunicativamente, em perspectiva filogenética e ontogenética, sustentando-se
em autores como Mead, Piaget, Austin, Weber, Durkheim, Parsons entre outros. Em sua
reconstrução, porém, não se ocupa explicitamente com o papel das emoções e dos sentimentos
ou de como estes tem ou não implicações para o sujeito desenvolver a capacidade racional
comunicativa.
A partir destas considerações sobre o pensamento de Habermas, é preciso a essa altura,
minimamente entender como este pensador se sustenta nas investigações de Georg Herbart
Mead e sua teoria da interação por gestos, para em seguida mostrar a importância das
emoções neste processo e, por fim, ainda ilustrar como as emoções estão presentes nos
processos intersubjetivos e de coordenação da vida social.

Habermas e Mead...
Habermas busca compreender, sustentando-se em Mead, como os seres humanos
passam da interação por gestos para interação por símbolos. O ponto de partida está na
“linguagem mediante gestos” (conversation of gestures), que se daria em duas etapas: uma
linguagem mediante sinais simbólicos e a etapa da fala diferenciada e proposicional. Nesse
cenário, gestos significantes, são simples, sem articulação sintática, e possuem significado
semelhante para, pelo menos, dois sujeitos participantes da interação.
Esses sinais por sua vez, só fazem sentido dentro de um contexto. Por si só o sujeito
não tem a capacidade de identificar sinais linguísticos. Os sinais linguísticos podem ser
substituídos por sinais logomórficos, não linguísticos, produzidos artificialmente (tambores,
sinos, fumaça), como por exemplo, um cacique que exibe uma lança. Porém já são sinais com
significado convencional, não dependendo diretamente do contexto natural. Essa é uma fase
subsequente do desenvolvimento da linguagem, de uma fase onde “a comunidade linguística
só tem à disposição sinais – sistemas primitivos de gritos e de sinais.” (HABERMAS, 2012b,
p. 14).
Mead parte de uma interação entre cães para demonstrar como se estabelecem as
primeiras convenções sociais.
Eu utilizei o exemplo dos cães em luta para introduzir o conceito de ‘gesto’. A ação
de cada um dos dois cães se torna um estímulo que influencia respectivamente a
reação do outro. Existe, portanto, uma relação entre eles; e, no momento em que o
outro cão reage à ação, este também se transforma. E o fato de um cão estar prestes a
atacar outro transforma-se num estímulo que leva o outro a modificar sua posição ou
atitude. No momento em que isso ocorre, a atitude modificada do segundo cão
desencadeia no primeiro uma nova atitude modificada. Temos, pois, uma troca de
gestos (Mead apud HABERMAS, 2012b, p. 14–15).

A reflexão genética de Mead tem como ponto de partida o conceito de significado


natural ou significado objetivo tomado de empréstimo da observação comportamental. Esta
relação por gestos se apresenta em uma tripla relação, (1) do gesto e o primeiro organismo,
(2) entre o gesto e o segundo organismo, (3) entre o gesto e as consequentes ações
correspondentes a ele.
[...] à medida que o segundo organismo reage ao gesto do primeiro, mediante um
comportamento determinado, e o primeiro organismo reage, por seu turno, aos
elementos iniciais que provocam tal reação comportamental, ambos tornam patente
o modo como interpretam ou compreendem, respectivamente, o gesto do outro.
(HABERMAS, 2012b, p. 18).
Cada um atribui um significado típico ao gesto do outro, empresta um entendimento ao
gesto do outro, mas este só vale para ele mesmo. Para explicar tal passagem da interação por
gestos à interação simbólica, Mead toma o mecanismo de “aceite da atitude do outro” (taking
the atitude of the other). Com base em Piaget e Freud, Mead concebe a internalização como
intimização de estruturas de sentido objetivas.
Retomamos estas concepções de Mead e Habermas para refletir o seguinte: se os
sujeitos são capazes de se problematizar fora de si, no encontro com os outros ou com a
realidade objetiva, significa que já existe referências a priori1. Ou seja, vou ao outro com
alguns pressupostos, por mais primitivos que sejam. Poderíamos ilustrar essa argumentação
recorrendo a Popper em Conjecturas e refutações, quando este afirma que conhecer está
ligado as expectativas que o sujeito carrega e que antecedem o contato e o fenômeno com que
se depara. Os sujeitos sempre carregam expectativas em qualquer relação, inclusive
expectativas inerentes aos sujeitos quando nascem, por exemplo, no caso do bebê, de que será
amamentado. Popper chama atenção para um "conhecimento", não válido a priori, mas
"psicologicamente ou geneticamente apriorístico" (POPPER, 2008, p. 77) e, portanto, anterior
a observação. Esse argumento nos leva a considerar as “expectativas inconscientes e inatas"
(POPPER, 2008, p. 77). Só é possível reconhecer algo, significar, simbolizar à medida que
possuímos um arcabouço de pressupostos que permitam de algum modo categorizar um
determinado estímulo ou experiência.

Damásio, emoções e sentimentos....


Diante desta problemática acreditamos que as pesquisas recentes de Antônio Damásio
sobre a mente humana e suas consequentes reflexões podem ser um caminho para pensar a
questão das emoções, sua implicação para os processos de racionalização e seus aportes em
temas sociais ético-políticos. As emoções são um conjunto de reações e sensações
desencadeadas pelo corpo como resposta a determinados estímulos que podem ser de origem
interna ou externa. Essas reações e estímulos são mapeados e memorizados pelo nosso
cérebro e constituem o que Damásio (2011, p. 32–33) chama de “imagens mentais”. Ou seja,
são complexos sistemas sinápticos que se constroem a partir de reações do corpo como
resposta a determinados estímulos sociais. O cérebro realiza um complexo processo de
mapeamento do corpo destes estados emocionais e constrói imagens, que são à base de

1
O fato de afirmar que existe uma estrutura a priori não significa que estamos defendendo o inatísmo. Estamos
dizendo que existem estruturas que permitem categorizar ou interpretar o fenômeno, por mais primitivas que
sejam.
surgimento do self, e por sua vez da consciência. Assim, podemos dizer que as emoções ou
estados passionais são sentidas, vivenciadas e registradas.
É oportuno a esta altura fazer uma distinção maior entre emoções e sentimentos.
Segundo Damásio, quando nos referimos a emoções como medo, tristeza, vergonha, mesmo
que nem sempre seja óbvio, estamos nos referindo a mecanismos de regulação da vida em si
e, portanto, na sociedade humana, de regulação política e moral. Do ponto de vista da
neurociência, emoções “são programas de ações complexos e em grande medida
automatizados, engendrados pela evolução”(ibid, p. 142) e que são a resposta a certos
estímulos que o corpo recebe, provocando reações ou sensações em nosso corpo. Já
sentimentos, são as percepções destes estados, estímulos e reações que acontecem em nosso
corpo. “São imagens de ações, e não ações propriamente ditas. [...] são principalmente
percepções daquilo que nosso corpo faz durante a emoção, com percepções do nosso estado
de espírito durante esse mesmo lapso de tempo” (ibid, p. 42).
Há sistemas sinápticos que aparentam “programas” que resultaram de constantes
processos de aprimoramento e evolução do cérebro humano, o que para nós se apresenta
como instintos e reações que são intrínsecas a toda a espécie humana. Outros programas e
processos precisam ser desenvolvidos e incorporados a nossa mente e tomam por base as
emoções que são inatas aos seres humanos. São esses programas e conjuntos de reações
sinápticas que precisamos aprender (emoções, raciocínios, fala, coordenação de diversas
funções, etc.) para nos constituirmos como seres humanos, que raciocinam, se comunicam,
criam, relacionam, etc. O aprendizado implica, dito de modo simples, em construir complexas
redes sinápticas para guiar e embasar os processos de relação e comunicação social entre
outras funções superiores do cérebro.
Importante é pensar que as emoções são estados passionais em um primeiro momento
que acometem nosso corpo. Ou seja, são um conjunto de reações provocadas por diversos
neurotransmissores liberados por glândulas e outros mecanismos. Estes estados emocionais
foram implementando mecanismos de controle e de coordenação destas reações e se tornando
em complexos programas sinápticos, que podem ser instintos, memórias, etc., e que permitem
que o sujeito reaja e aja de acordo com determinados estímulos captados pelos sentidos.
A evolução humana, basicamente, desenvolveu a capacidade de memorizar estas
emoções. São registros sinápticos de “programas” sinápticos mais básicos. Isso é um passo
fundamental para a evolução humana e para a própria capacidade de pensar e raciocinar
humanos, pois permite a origem do self e da consciência de si. Com a capacidade de
memorização dos processos sinápticos torna-se possível, em certa medida, o controle ou o
governo de estados emocionais. Não é mais necessário neste patamar que o corpo desencadeie
emoções para reconhecer as mesmas. Estímulos podem resgatar memórias, e assim, quando
determinados processos conseguem acionar um conjunto de memórias, podemos realizar
certas generalizações e produzir o que entendemos por consciência.
É claro que aqui isso está posto de modo ligeiro e simplista, já que o nosso propósito é
demonstrar de alguma forma que as emoções estão implicadas quando raciocinamos
comunicativamente. Sobre a ligação das emoções com a ação moral, podemos entender que:
os programas sinápticos básicos que pertencem a espécie humana se desenvolveram durante o
processo evolutivo humano e são herdados geneticamente. Dentre os mecanismos que
herdamos estão, por exemplo, as sensações de dor e de prazer, essenciais para se conceber as
emoções2.
Damásio identifica dois grupos de emoções, que para o nosso objetivo de compreensão
do papel das emoções como componente da argumentação racional, se torna de extrema
importância. Há aquelas que Damásio denomina de (1) “Emoções de Fundo” como as
sensações de entusiasmo e o desânimo, geralmente desencadeados por estados internos como,
por exemplo, doença e fadiga, ou por estados de humor; um segundo grupo são as que
Damásio denomina de (2) “emoções sociais”. Todas as emoções são mais ou menos sociais,
mas este segundo grupo é “inequivocamente social”. São emoções como “compaixão,
embaraço, vergonha, culpa, desprezo, ciúme, inveja, orgulho, admiração”. Sendo as emoções
em maior ou menor medida social, afirma-se que estas possuem papel fundamental “nos
grupos sociais” (DAMÁSIO, 2011, p. 161). Na escala evolutiva humana, as emoções sociais
são recentes e em sua maioria exclusivamente humanas. É o caso da compaixão, baseada no
sofrimento mental e social dos outros e que difere da compaixão pela dor física.
Ao que tudo indica, dor e prazer são instrumentos primordiais de aprendizagem. Por
exemplo: mesmo que haja uma comunicação elementar entre a mãe e o bebê, ela se dará,
entre outras coisas, pelas sensações de dor e prazer3. Estas nos parecem ser emoções de
“fundo”, fundamentais para o desenvolvimento de faculdades ou mecanismos mais complexos

2
A dor e o prazer podem ser considerados os estados emocionais mais elementares. Muitas expressões e obras
sinalizam a dor e o prazer como sensações sobre as quais se sustentam ou estruturam as emoções. Como
exemplo podemos tomar o próprio título do livro de Yves de La Taille (2004)– Vergonha, a ferida moral ou o
texto de Goudsblom (2009) – Vergonha: uma dor social -, ambas associando vergonha com a sensação de
padecimento ou dor.
3
Isso pode ser dimensionado para uma discussão educacional, em que somente educar pelo prazer não dará conta
de apresentar a criança um elemento essencial para a existência humana. Aprender a lidar com a dor é
fundamental para lidar com as mais diversas situações vitais e existenciais. Ora, querer educador somente a
partir do prazer é ineficiente e limitado. É restritivo. A dor e seus desdobramentos emocionais são essenciais. Só
é possível potencializar o aprendizado a partir de tudo o que integra o ser humano.
como de comunicar e pensar. E isso é resultante de um processo filogenético de
desenvolvimento da espécie humana e de muitas outras espécies. Isso provavelmente explica,
por que alguns macacos reagem a situações de injustiça, pois a situação de sofrimento pode
acionar memórias de sensação de dor do expectador.
Porém, muitos destes programas sinápticos são problemáticos quando pensamos a vida
associada humana ou do homem “civilizado”. O estágio de desenvolvimento humano que diz
respeito às sociedades organizadas e civis é uma pequena parte deste processo evolutivo das
emoções. Muitos das nossas capacidades instintivas já estavam prontas, provavelmente, antes
desse período. Assim, muitos destes “programas” sinápticos desenvolvidos para um estágio
primitivo de sobrevivência são inadequados para as sociedades desenvolvidas. Nesse sentido,
o instinto reprodutor, precisa ser educado e governado. Isso implica na construção de
significados e sentidos - programas sinápticos superiores - que permitam ao ser humano esse
governar suas emoções.
Assim, aprender também significa desenvolver essas capacidades que, de alguma
forma, serve para governar as emoções. Isso é possível à medida que consideramos que
entendemos como estes podem causar danos e malefícios, dor e sofrimento, físicos e sociais,
pelo seu governo inadequado. Porém, mesmo assim é preciso considerar que somente por que
temos noção de dor e prazer, emoções de fundo e primitivas, é possível desenvolver emoções
sociais como medo, compaixão, vergonha etc. As emoções permitem a construção de um
repositório de significados (programas sinápticos) e que podem ser acionados para dizer o que
4
o nosso corpo pode ou não fazer, ou expressar comunicativamente o que nossa mente
processa.
Nesse sentido, retornamos ao exemplo de Mead sobre a luta entre os cães, para
sinalizar como os sujeitos constituem certas representações. Os cães são capazes de realizar
certas interpretações reacionárias. Mas como um cão pode interpretar o outro cão? A reação
do outro de alguma forma aciona alguma memória, quer sobre dor ou algo similar, e ao fazer
uma leitura da expressão do outro, aciona determinado programa sináptico emocional de dor,
defesa, de sofrimento, de medo, para agir ou reagir de acordo. As expressões que assumem

4
Vale lembrar que nossa memória não é estática, a consciência e a percepção do self são processos dinâmicos. A
consciência é constantemente reestruturada pelos estados emocionais da pessoa. O repositório de sentidos é
constantemente atualizado. Em algumas situações, estes estados emocionais podem levar a memórias de si
perigosas e patológicas. Assim, quanto maior a quantidade de significados ou memória, maior será o controle e
capacidade de raciocínio. Mas acima de tudo significa que os estados emocionais, tanto de fundo como sociais,
interferem constantemente nas faculdades superiores e vice-versa. Nisso se sustenta a educação, ou seja, a
maleabilidade do cérebro. Não basta adquirir certas capacidades mentais, mas é preciso constantemente reeducá-
las.
determinadas emoções em nossa face ou jeito de agir pode acionar sentido de uma
determinada emoção.
Em relação as expressões faciais podemos dizer que são interessantes instrumentos de
expressões emocionais do ser humano e de muitas espécies, além de extremamente
importantes nas relações sociais, mas problemáticos, reconhece Elias (2009, p. 40), pois as
limitações e imprecisões do recurso facial são afetadas por questões temporais. O autor adite,
porém, que o recurso da expressão facial tem no ser humano a condição para reconhecer
sinais faciais humanos. Da mesma forma que em Mead e na interação por gestos, somente é
possível reconhecer esses sinais se estivermos de posse de elementos que permitam interpretar
expressões faciais. A condição é que tenhamos em nosso repositório de significados memórias
sobre essas expressões faciais, memórias que se constituíram entre outras coisas, por estados
emocionais, e que, segundo Elias, “muitas das quais ainda são naturais” (ELIAS, 2009, p. 41–
43).

Algumas emoções...
A partir disso sinalizamos como as emoções integram as tomadas de decisões e de
busca pelo melhor argumento e de como estes de alguma forma estão na base dos processos
de pensamento e de raciocínio comunicativo. As emoções são elementos que permitem
perceber o mundo e a realidade em que nos inserimos. A partir das emoções construímos
estruturas sinápticas que, à medida que se complexificam, permitem interpretar, tomar
decisões, avaliar, fazer juízos e, em síntese, raciocinar.
As emoções têm implicações para as decisões e juízos orientados inteligentemente,
mas que em si não são boas ou más. Segundo Nussbaum (2012, p. 22), as emoções são parte
essencial do sistema de decisão moral, porém, se não houver uma clareza e governo sobre o
que sentimos, de suas implicações para nossos juízos, estes podem nos levar a tomar decisões
equivocadas. As emoções podem levar a juízos verdadeiros ou falsos e podem ter
pressupostos bons ou maus para ações morais.
Tratamos até o momento de mostrar de modo sintético como as emoções estão na base
do desenvolvimento de nossa capacidade cognitiva. Elas são à base de constituição de
sentidos e significados que permitem com que os sujeitos se comuniquem, interpretem e
pensem. Mas como efetivamente as emoções se inserem nas tomadas de decisão de nosso dia
a dia? O que são os sentimentos socialmente reconhecidos e experimentados pelos sujeitos?
Como se apresenta no espaço de relações e de inter-relações as emoções e como tomam parte
na ética, na política e nas relações sociais?
Para refletir sobre esses questionamentos, exploraremos os sentimentos de vergonha,
compaixão e medo. Escolhemos estes por que permitem que os abordemos de modo razoável
e sem muitos prejuízos por não serem referências típicas do sensacionalismo da indústria
cultural. Segundo Johan Goudsblom, para a espécie humana aprender e desenvolver as
capacidades cognitivas é fundamental ter “domínio de nossas emoções” (2009, p. 51).
Nesse sentido, a primeira emoção social que trataremos é a vergonha. É o sentimento
de perda de si, não por que eu tenha cometido uma falta, mas simplesmente pelo fato de que
‘caí’ no mundo, no meio das coisas e preciso da “mediação de outrem para ser o que sou”
(SARTRE apud LA TAILLE, 2004, p. 73). Sobre isso, Camps afirma que o sentimento de
vergonha “consiste em um sentimento derivado da perda da imagem que se tem de si mesmo,
da perda de reputação, do descrédito diante de um outro ou diante da sociedade”(2012, p.
111)5. A consciência nesse caso é uma vergonha nascente.
O sentimento de vergonha está associado a vida social e aos códigos de conduta moral
dos grupos sociais. Estes são de alguma forma modos de manutenção da vida dos grupos
sociais. O sentimento de vergonha nesse sentido é positivo à medida que mantém esse grupo
e, de certo modo, implica em processo de ajustamento e inserção dos sujeitos a vida social.
Porém, pode se tornar problemática à medida que este sentimento é imposto de modo violento
aos sujeitos, sob a feição de preconceito e de discriminações, provocando, inclusive, a
marginalização e a exclusão social de muitos sujeitos.
Com estes argumentos podemos sustentar que, raciocinar comunicativamente significa
considerar que o argumento emocional é importante e decisivo à medida que permite ajustar
os sujeitos às normas de conduta de um grupo social. Porém, como mostra Camps, a ideia de
coerção social nem sempre é bem aceita, principalmente, pelo seu potencial de manipulação
social. A coerção não é bem vista socialmente por impor limites à vida social. Socialmente
somente se aceita a coerção quando aparenta por si mesma um bem. A publicidade coage as
pessoas e limita sua liberdade e autonomia, porque consumir aparenta ser algo agradável e
bom e não oferece objeções sociais.
Em relação ao sentimento de compaixão, este ocupa lugar central no pensamento de
importantes autores que se ocuparam do tema, entre eles podemos citar Rousseau. Em seu
projeto de construção de uma sociedade contratual justa e igualitária, Rousseau enxerga no
sentimento de piedade o elo entre os sujeitos, a passagem para o amor-de-si-próprio para o
amor aos outros. Educando o Emílio a sentir piedade é possível edificar uma sociedade justa.

5
Cf. “Efectivamente, la vergüenza consite em el sentimento derivado de la caída de la imagen que uno tiene de
sí mismo, la perdida de reputación, el descrédito ante algún outro o ante la sociedad”.
Dalbosco afirma, em relação ao sentimento de piedade no Emílio de Rousseau, que “se o
amor-de-si se refere à conservação do indivíduo, a piedade tem a função de preservar a
espécie e, por isso, embora seja um sentimento individual, ela exige obrigatoriamente a
presença do outro”(2011, p. 37). É pela piedade e sua dimensão moral que os sujeitos tornam-
se capazes de estabelecer laços sociais e reconhecer os outros como semelhantes ou iguais a
si.
Para Rousseau a piedade é o primeiro sentimento relativo que toca o coração humano.
Nesse caso, educar a criança para sentir piedade implica em educar a criança para que “saiba
que existem seres semelhantes a ela que sofrem o que ela sofreu, que sentem as dores que ela
sentiu e outras que deve ter ideia de que também poderá sofrer” (2014, p. 304)6.
Em relação as leis e os códigos que regulamentam a vida social, a maioria
desconsidera a compaixão sem reconhecer a sua necessidade ou a sua recomendação. Não se
faz leis tomando por base emoções, mas as leis não possuem efeitos sem as emoções. Não
considerar, por exemplo, a necessidade de compaixão, é colocar os cidadãos em certa
condição de risco. Benevolência, compaixão ou piedade, são sentimentos que nos
caracterizam como humanos, não podendo ser tomados como substitutos ou ser substituídos
pela justiça legal. A justiça é uma ferramenta pela qual podemos administrar instituições
sociais e políticas e tem a função de proteger os cidadãos. Porém, não pode dar conta e nem
alcançar todos os sujeitos, e, portanto, não se pode garantir justiça unicamente com recursos
às instituições legais. Justiça carece de compaixão7.
O medo por sua vez, assim como o sentimento de vergonha e de compaixão, possui
um sentido positivo e outro negativo. Emoções em si não são positivas e nem negativas. O
que as torna problemáticas são seus excessos e desgovernos. Os medos podem ser provocados
por meias razões sem fundamento e lógica ou vice-versa. Aristóteles, na Retórica, define
medo como um “pressentimento de que vamos sofrer algum mal que nos aniquila”. Afirma
ainda, que sentem medo as pessoas que “pensam que podem vir a sofrer algum mal e os que

6
Em três máximas sobre o sentimento da piedade, Rousseau afirma que a piedade só pode se originar à medida
que nos sensibilizamos com a dor e não pela felicidade alheia (1ª); percebemos que não estamos isentos dela
(2ª); e não podendo a piedade ser medida pelo mal que o outro padece, mas pelo que sentimos pelos outros(3ª)
(ROUSSEAU, 2014, p. 305–307).
7
O sentimento de compaixão também assume o papel de mecanismo dos vínculos sociais. “O reconhecimento da
condição de ser suscetível de sofrer humilhação é o único vínculo social de que se necessita ”(Rorty apud
CAMPS, 2012, p. 145). Camps ainda destaca que somos seres falhos e, portanto, ter compaixão é uma
característica de certo modo intrínseca ao ser humano. Esse é o pressuposto necessário que torna possível a
ética, razão pela qual inclusive reconhecemos o ser humano como finito, limitado em sua possibilidade de
conhecer, e sem verdades últimas. Diante disso, ariscamos dizer que uma ética verdadeiramente humana se funda
sobre a compaixão.
pensam que podem ser afetados por pessoas, coisas e momentos” (ARISTÓTELES, 2005, p.
174, 1383a).
O medo (e a maioria das emoções) é um estado de ânimo em razão desta crença, que
pode se confirmar ou não. O medo mira o futuro. Não temos medo de fatos passados
(eventualmente de suas implicações futuras). A essa altura de nossa argumentação cabe a
distinção entre emoções epistêmicas e fáticas. Todas as emoções estão relacionadas com o
medo de que algo ocorra. É algo incerto e que se apresenta como um perigo ameaçador. As
emoções fáticas se relacionam com o pesar, e epistêmicas se relacionam com esperança,
preocupação, etc. A diferença está nos motivos. A emoção epistêmica, em relação ao medo,
está ligada a certo saber, na crença de que algo possa acontecer e, por saber das implicações, é
considerado perigoso ou inapropriado para sua situação (CAMPS, 2012, p. 182–183).
No contexto da atuação profissional, as emoções que predominam são o que pode ser
entendido por emoções epistêmicas. São diferentes de emoções fáticas que podem mobilizar
ou paralisar os sujeitos, como no caso da melancolia. Porém, o medo, que é uma emoção
epistêmica, envolve estados cognitivos. Não saber se o avião chegará ao destino ou não, se
obteremos êxito ou não em um exame, nos causam medo.
O medo epistêmico em Camps é apresentado de modo positivo e serve de mobilização
do sujeito. Este buscará trajetos alternativos para o medo de viajar de avião; estudará mais
para o exame. O medo, quando epistêmico, incita os indivíduos a agir e tomar medidas para
minimizar um perigo ou o acaso.
Em relação ao medo, é preciso ainda considerá-lo como instrumento de manipulação.
É possível ver como o medo é usado como ferramenta de manipulação política a partir das
notícias vinculadas diariamente pela mídia de massa. Na luta para se ganhar uma eleição, por
exemplo, os partidos políticos expressam diversas formas de medo aos eleitores, fazendo-os
acreditar que determinadas propostas políticas poderão ser catastróficas. Nos últimos tempos
isso tem sido tão forte que propostas que não atinam medo encontram dificuldades para
prosperarem. Portanto, a política é biopolítica e implica em “proteção” ao sujeito a tudo o que
lhe possa causar danos. Em nosso entendimento, essa “proteção” aos sujeitos, será alcançada
através de uma formação educacional integral que considere as emoções como parte
fundamental dos diferentes processos de ensino e aprendizagem.

Enfim...
O que tentamos mostrar é que, se a proposta de uma racionalidade comunicativa é a
mais adequada para pensar e coordenar os processos sociais, esse modelo de racionalidade
trará implicitamente, mesmo que não tenha sido explicitamente tratada por Habermas, à
questão das emoções. Se agir comunicativamente é agir moralmente, é preciso considerar que
esta ação é possível através das emoções. Emoções podem ser de fundo ou sociais, mas ambas
têm implicações constantes nos processos de significação e interpretação da realidade.
Em nossa exposição tentamos de alguma forma sinalizar que são imputáveis como
racionais os sujeitos que possuem a capacidade argumentativa e comunicativa, competência
que tem a participação importante das emoções, pois estas permitem ao sujeito desenvolver
competências para significar e raciocinar. As emoções possibilitam ao sujeito se relacionar,
compreender e estabelecer entendimentos sobre as leis e a organização da vida social justa.
É preciso estar atento para não tomar a problemática a partir de uma concepção
reducionista, o que traria prejuízos para a educação e para autonomia das pessoas. Ignorar o
tema implica em ser conivente com o uso das emoções como ferramentas de manipulação
social e mercadológica. É preciso zelar e se posicionar criticamente diante do modo
inescrupuloso que é usada a temática das emoções em documentos, sistematizações
curriculares entre outros. É com essa percepção e preocupação que finalizamos esse texto,
esperando que ele suscite novos debates capazes de aprofundar as temáticas levantadas.

Referências
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