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EDITORA TEMPORÁRIA

Editora Temporária é um projeto de ocupação que propõe o encontro entre pessoas


interessadas em pensar publicações de pequenas tiragens com temas relacionados
à cidade e sua vivência. Através de uma chamada pública selecionamos projetos para
serem desenvolvidos e transformados em livros em aproximadamente três meses.
O tema da segunda edição (2017), foi a mudança urbana pela qual o Rio de Janeiro
passou devido aos grandes eventos esportivos que abrigou em 2014 e 2016.
Os designers Ana Costa, Tatiana Podlubny e Thiago Lacaz participaram conosco da
difícil tarefa de escolher 3 dentre 117 pesquisas de pessoas entre 12 e 70 anos, vindas
de diversos cantos do país. O livro De quem te protege a muralha? do historiador e
escritor Thiago Florencio é uma proposta de deriva pela região central do Rio de Janeiro.
Ele fala sobre uma grande muralha, que mesmo de curta sobrevivência, e cuja constru-
ção não tenha sido totalmente concluída, existiu na cidade do Rio de Janeiro. Em seu
projeto original de 1714 ela deveria atravessar a cidade desde o pé do Morro do Castelo,
margeando a atual Rua Uruguaiana, passar por cima do Morro da Conceição até findar
no Largo da Prainha, nos arredores da atual Praça Mauá. Por meio de uma caminhada,
marcada por encontros e descobertas, refizemos o trajeto da muralha, entendendo o
que era o dentro e o fora da cidade, o que era margem e o que era centro. A encaderna-
ção do livro reforça a ideia de 2 lados, dentro e fora, estabelecido e marginalizado, por
ter páginas costuradas dobradas, que só são visíveis se o leitor abrí-las lateralmente.
Zonzo: investigadores urbanos nasceu a partir de um convite a 28 crianças de 09 a
13 anos residentes na Favela da Babilônia, para narrar, mapear e reconstruir coletivamente
o espaço onde moram. Junto com a arquiteta Julia Sant’Anna e a estudante de direito
Carolina Movilla, as crianças brincaram, observaram, identificaram, desenharam e reco-
nheceram seu território, seus deveres e direitos, e se tornaram investigadoras urbanas.
O livro convida outras crianças, através dos registros desses meninos e meninas, a
zanzarem pela cidade como exercício para entender de onde vem, suas referências,
conhecer seu entorno, sonhar e reivindicar o lugar que querem viver. O livro é recheado
de propostas de investigação e descobrimento partindo da casa, da rua, do bairro até a
cidade. Uma publicação sobre mapeamento e urbanismo de crianças para crianças.
Mobilidade Performativa de Elilson Nascimento, propõe através da realização de
performances em ruas e em transportes coletivos, colocar em trânsito as transforma-
ções na cidade do Rio de Janeiro. O trabalho expõe relações teóricas entre mobilidade
urbana e arte da performance, enquanto narra transformações pontuais ocasionadas
pelo próprio ato performático no cotidiano da cidade.
A Editora Temporária foi idealizada pelas designers Clara Meliande e Tania Grillo e
teve sua primeira edição em 2013 no Centro Carioca de Design, quando foi contempla-
da com o edital Pró-Design do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro. Naquela edição foram publicados os livros A-125, Ca-
derno de observações ou coreografias do cotidiano, Cidade-andaime – estruturas
transitórias na cidade contemporânea e Processo impresso.
A segunda edição voltou ao Centro Carioca de Design em 2017, contemplada pelo
programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016.
Para mais informações sobre os livros ou sobre o projeto, entre em contato
conosco pelo facebook (www.facebook.com/EditoraTemporaria) ou pelo email:
editoratemporaria@gmail.com
por uma
mobili
dade Elilson

perfor
mativa
Por uma mobilidade performativa Elilson
Editora Temporária

Para (e com)

Eliane e Edmilson,
meus pais e amores supremos,
pela vida

Elza,
voz que salva e muda as horas,
pela bênção

Eleonora,
existência luminosa
e parceira de anticrimes,
pelo tanto de sim
Agradecimentos

Aos meus pais, pelo amor imensurável, por investirem de olhos fechados nas Romulo Torres, Rebeca Queiroz, Nei Marques, Heloisa Aguida, Maria Luisa Sá,
minhas escolhas e por terem me ensinado tudo que posso ser. Aos meus ir- Regina Medeiros, Carolina Lima, João Pedro Pontes, Thomás Aquino, Eduardo
mãos, Júnior, Diana e Fábio (in memorian) e às minhas sobrinhas, Kethillyn e Rios, Miro Spinelli, Mayara Yamada e Gabriela Leal. Amigos de longa data,
Nicole, pelo amor imperecível. Aos meus tios, tias, primos e primas. Ao meu amigos que o Rio me deu ou amigos de amigos: todos me cederam casa e
cunhado e aos meus vizinhos, igualmente familiares. foram casa por dias e semanas nos momentos em que cheguei na cidade ou
À professora Eleonora Fabião, pela orientação inefável, pelas injeções de não tive onde morar. Nunca poderei me esquecer.
vida e pelo trabalho que nos movimenta a – como ela diz – construirmos a ci- Francini Barros e Gunnar Borges, que iniciaram o Rio em mim. Isis Agra,
dade onde desejamos viver. Trabalho que vibratiliza este livro. João Gusmão, Hermínia Mendes, Mayara Millane, Renata Vieira e Juliana
Agradeço especialmente à Editora Temporária – Clara Meliande, Tania Serafim: parceiros das primeiras experimentações em espaços públicos. Patricia
Grillo e Maria Inês Vale – pela confiança, pelo cuidado, pela disponibilidade, Tenório, pela amizade que ensina e cuida. Anderson Damião, Lucas Feres e
pela oportunidade e por esse encontro tão poderoso que seguirá vibrando. Ao Samara Lacerda, que cuidaram de mim nas ruas em algumas ações. Caio
Thiago Lacaz, pela parceria. Tatiana Podlubny, Thiago Florêncio, Ana Costa e Jordão, que atenciosamente orientou algumas questões jurídicas sobre o tra-
Júlia Sant’Anna: outras energias luminosas deste projeto. balho que venho desenvolvendo. Maria Palmeiro, Flávia Naves e Felipe Ribeiro,
Aos professores Adriana Schneider, Carmem Gadelha, Dinah de Oliveira, agradeço pela escuta e pela fala às minhas questões estéticas-e-linguísticas. Ao
Gilson Motta, Livia Flores, Luiza Leite e Ronald Duarte, pelos ensinamentos Teatro Inominável e à Miúda, pelos momentos de troca e acolhida.
que reverberam nestas páginas. À Marlene Cardoso Bonfim e aos demais Aos colaboradores que estão nomeados ao longo deste livro por terem
funcionários que compõem o ppgac/eco/ufrj. Aos meus colegas de mestrado, performado, fotografado ou me acompanhado nas ruas: não tenho palavras
aos Cactus de modo especial. para agradecer tanta disponibilidade; especialmente André Rodrigues, amigo
À maioria das minhas professoras e dos meus professores, da Educação querido e performer genial, que gentilmente me acompanha em tantos tra-
Infantil ao Ensino Superior, pela formação que habita em mim. Singular- balhos desde que ainda éramos meros conhecidos.
mente, agradeço às professoras: Angela Dionisio, que foi e é como uma mãe Aos transeuntes que participaram das ações: um obrigado imenso pela
acadêmica. Cristina Rocha, que sempre me incentivou a escrever; e Edvânea confiança e abertura que geram concidadania. Aos colaboradores mais dire-
Maria, que tantas vezes potencializou minha escrita. tos, agradeço por concordarem com o registro de suas imagens.
Às minhas amigas e aos meus amigos do Recife, do Rio e de tantos luga- Por fim, à memória de minha avó, Maria Luiza Duarte, a única que tive.
res no mundo, pela sorte que é não caberem nesta página. Preciso, contudo, Retirante, mãe solteira, analfabeta. Abria o sorriso mais lindo que já vi quando
representá-los através de: Paulina Albuquerque, Romeo Lyra, Marina Duarte, eu lia meus deveres do caderno de alfabetização. Seu sorriso é este livro.
Plataforma de acesso sem catracas  7

Massa Ré  24 | 98

Pago 4 e 10  34 | 106

Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro  42 | 112

Gota  48 | 116

Transporte Olímpico  56 | 122

Estação Adílio  60 | 128

Pago 4 e 30  70 | 134

Massa Ré: variação clt  78 | 140

Abate  82 | 146

Transporte Olímpico: revezamento  88 | 154

Dialogismo  93
Plataforma de acesso sem catracas

Este livro é costurado por palavras, imagens, salivas, impressões digitais, in-
tervalos, espaços em branco e outros índices de encontros; interligado por
conjuntos precários de circunstâncias, escolhas, acasos, agenciamentos, acor-
dos, negociações, afetos, pesos, volumes, moedas, deslizes e atritos – dentre
outras propriedades e acontecimentos de palavras-e-corpos. Tenta preservar
nas entrelinhas esbarros, ruídos, timbres, cacofonias, tintas e peles. Pesa to-
neladas de ferro, concreto armado, gente, poeira e palavras. Balança, corre e
freia. Faz inúmeras baldeações. Tem temperatura variante, de modo geral, en-
tre 20 e 40 graus Celsius, múltiplas durações e um valor que se divide entre
pagamento de tarifas metropolitanas, compra de materiais precário-relacio-
nais, impressão e tiragem.
Seu conteúdo é cartografado pela descrição de ações performativas reali-
zadas em ruas e transportes coletivos da cidade do Rio de Janeiro entre 2016
e 2017. As ações e proposições teóricas que integram este livro estão vincula-
das à pesquisa de mestrado que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação
em Artes da Cena da ufrj, com orientação da professora Eleonora Fabião.
A abordagem central da pesquisa é a proposição e investigação de inter-re-
lações entre arte da performance e mobilidade urbana. Assim, o conteúdo
deste livro flerta, dentre outros aspectos, com o planejamento urbano da
cidade do Rio de Janeiro e suas transformações, com iniciativas poéticas e po-
líticas para praticar a circulação na cidade, com a experimentação dos trans-
portes coletivos como espaços performativos, com a relação entre caminhada
e história e com o interesse pela concidadania.
Nessa tessitura de movimentos com a organização dos espaços da cidade
e da circulação de seus corpos, as linhas de tráfego do livro compreendem
cartografias de transição que tenho experimentado entre os papéis de pas-
sageiro, espectador, pedestre e performer. Transição norteada por dois con-
ceitos basilares: “cartografia (corpo vibrátil)” e “programa performativo”, con-
cebidos, respectivamente, pelas pensadoras Suely Rolnik e Eleonora Fabião,
ambas em diálogo com o conceito de “Corpo sem Órgãos”, dos filósofos
Gilles Deleuze e Félix Guattari.
A teórica, psicanalista e crítica cultural Suely Rolnik recorre à geografia
para definir cartografia. Diferente dos mapas, que encerram-se como repre-
sentações estáticas, a cartografia é um “desenho que acompanha e se faz ao

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mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de portanto, é uma cartografia performativa que, sendo essencialmente política
sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos e corpórea, compreende a prática urbana para além da circulação. Os corpos
contemporâneos”. [1] A cartografia, assim, é terreno e prática de experimen- inseridos nessa práxis agregam resistência aos modelos impostos pelo pro-
tação política das relações múltiplas que podem ser agenciadas e reinventa- jeto urbano, os quais, de acordo com a autora, são da ordem do cerceamento,
das num feixe de vetores afetivos: entre o cartógrafo, seu corpo, sua história, da domesticação e da espetacularização.
os lugares, os corpos dos lugares, as histórias dos lugares e as camadas Ao contrário dessas operações, os corpógrafos “denunciam, por sua simples
temporais que passeiam entre atualidade e virtualidade permeando “estraté- presença e existência, a domesticação dos espaços mais espetacularizados, sua
gias das formações do desejo no campo social”. [2] Essas estratégias, para a transformação cenográfica”. [6] Assim, a prática de uma cartografia corporal
autora, definem a prática de um cartógrafo, substantivo que ela não restringe nega as limitações do planejamento urbano, o qual redoma possibilidades de
aos estepes da geografia, mas expande para identificar aquele que age na experimentação política em nome do fluxo incessante da impermanência, isto
“formação de outros mundos que se criam para expressar afetos contemporâ- é, de um direito de ir e vir que não incorpora necessariamente um agir.
neos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos”. [3] Nesse contexto, compreendo que ciclistas, skatistas, carroceiros, vendedo-
Um cartógrafo, dessa maneira, joga com a existencialidade. Consciente res ambulantes, pedintes, religiosos e artistas de rua agem desviando a lógica
de que os modelos organizacionais carregam uma obsolescência que não dá espetaculosa das cenografias do cotidiano. Inscrevem, através de suas ações,
conta de expressar as urgências e os pormenores das relações que se criam um engajamento maior de seus corpos aos espaços, adaptando-os às suas
entre os corpos e os espaços, tem o interesse de participar ativamente da diversas e específicas necessidades de circulação e sobrevivência. Os ciclistas
inscrição de outros desenhos nos mapas correntes. Tem, portanto, o desejo e os skatistas resistem entre a massa de veículos automotores, aderindo aos
de ser produtor para além de produzido. Para isso, entrega-se de “corpo e escassos espaços vazios das avenidas, num desenho que acompanha e des-
língua” à experiência cartográfica, na tarefa “de dar língua aos afetos que pe- mancha a lógica vigente. Os trabalhadores de carga imbricam-se aos seus
dem passagem através da utilização de tudo o que servir para cunhar matéria materiais de trabalho, rolando por cima das leis de organização da mobili-
de expressão e criar sentido”, visto que, para ele, “todas as entradas são boas, dade ao transmutarem toda sorte de asfalto, canteiros e calçadas em vias de
desde que as saídas sejam múltiplas”. [4] trânsito e de trabalho. Ambulantes, religiosos, pedintes e artistas transferem
Considero que a atividade do cartógrafo, conforme delineada por Suely ações de outra ordem e de outros espaços para o interior dos transportes co-
Rolnik, pode exemplificar os gestos e ações da performatividade urbana. Com letivos, atribuindo-lhes novas funcionalidades.
essa afirmação, posso referir-me não só aos artistas da performance, mas Quanto aos artistas da performance, acredito que podem atuar como
também àqueles que agem no meio urbano a partir da criação de outras um cartógrafo, engajando-se de corpo e língua no espaço urbano, pois o
linhas e engajamentos possíveis para a construção e realização de desejos:
quer seja essa realização da ordem da sobrevivência financeira, como fazem [1] Suely Rolnik, no livro Cartografia sentimental: transformações con-
os vendedores ambulantes, quer seja do exercício de uma circulação urbana temporâneas do desejo. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2011. O leitor
mais autônoma, como é o caso dos ciclistas. também pode encontrar um resumo do texto no portal do Núcleo de Estudos
É possível associar essa consideração ao pensamento da teórica Paola da Subjetividade da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, onde a
Berenstein Jacques, que especifica a ideia da prática cartográfica como cor- autora atua como docente. Acessar: <www.pucsp.br/nucleodesubjetividade>.
pografia urbana: “um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a [2-4] Citações de trechos de Suely Rolnik, presentes na obra referenciada
memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, na nota 1. [5-6] Considerações presentes no texto Corpografias urbanas,
uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita publicado pela revista Arquitextos, volume 093.7, em 2008. Para ler:
mas também configura o corpo de quem a experimenta”. [5] A corpografia, <bit.ly/2w5AEGb>.

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cartógrafo “vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalo- estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente po- [B] Performer, teórica da
rado”. [7] Nesse sentido, se a prática do cartógrafo é “imediatamente política, lidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por am- performance e professora
porque ela diz respeito à escolha de novos mundos, sociedades novas”, [8] a bos sem ensaio prévio”. [11] Um programa, esquematica- da Graduação em Direção
prática do artista da performance, de modo expropriador, apropriador, devo- mente, é um “enunciado que possibilita, norteia e move a Teatral e do Programa de
rador e desovador, portanto cartográfico, é inerentemente política. experimentação”, [12] um continuum prático e da prática Pós-Graduação em Artes da
Um performer que atua na urbanidade pode expropriar-se dos seus entre palavra e ação, verbo e corpo, corporal e social. Cena da ufrj, Eleonora Fabião
trajetos cotidianos, apropriando-se de caminhos desconhecidos, de corpos Os programas, sendo assim, são enunciados corpó- é a principal referência dos
desconhecidos, dos espaços e dos materiais da cidade, devorando as linhas reo-linguísticos, procedimentos que geram no perfor- pensamentos e ações pre-
que inscreve nas rotas urbanas, desovando, por fim, toda essa experiência em mer uma aderência ao meio, com seus múltiplos feixes sentes neste livro. Em 2015,
práticas de transvaloração. O artista da performance, ao executar suas ações espaciais, temporais e contextuais, através de um enga- Fabião publicou Ações (Rio de
performativas, pode mudar o valor das coisas, [9] transvalorando a cidade em jamento psicofísico que afasta automatismo e privilegia Janeiro: Editora Tamanduá),
movimento ao praticar novas maneiras de socialização. o aderir. Aderir às pessoas no agora, ao tempo do agora, livro que reúne trabalhos em
Performances urbanas, dessa maneira, podem ser lidas “como modos de ao espaço em que se é e se está, tentando negociar ati- performance que desenvolveu
adentrar a cidade por dentro, ou por baixo, e produzir vamente relações através do desencadeamento de ações. a partir de 2008 em ruas de
[A] Pensamento formulado relações para perturbar os processos neutralizados pela Ao agir programas, um performer articula seu corpo ao cidades como Rio de Janeiro,
pela artista e pesquisadora cotidianidade e as formas repetitivas de viver”. [A] O ar- corpo do organismo social, num movimento de “ade- Fortaleza, Nova York, Berlim
Brígida Campbell. No livro tista da performance – especialmente aquele que traba- rência-resistência” [13] que faz vibrar possibilidades de e Bogotá. A publicação fez
Arte para uma cidade sensível, lha nos ambientes públicos – põe em movimento, assim expansões éticas, estéticas, políticas, poéticas, urbanas… parte do seu “Projeto Mun-
Campbell descreve o trabalho como os corpos anteriormente descritos, o exercício de que desnudam a organização habitual, pois o performer dano”, apoiado pelo Rumos
de alguns dos principais ar- praticar a cidade. Se considerarmos que ele age como é um “desarticulador de processos ditos naturais”. [14] Itaú Cultural, e ainda conta
tistas da performance urbana um cartógrafo, por meio da multiplicidade de apropria- Todo esse movimento gerado pelos programas com ensaios críticos de teó-
brasileira, analisando o modo ções e expropriações, torna-se preciso especificar os pro- promove iniciativas que desenham perpendiculares ricos da performance sobre
como seus trabalhos criam, cedimentos de sua prática; compreender os programas curvilíneas de encontro e deslocamento na padroniza- o trabalho da artista. Para
como ela diz, “infiltrações que expandem a vibratilidade de seu corpo. ção retilínea da cidade, alimentando a vibratilidade do saber mais sobre Ações, visitar:
no cotidiano”, modificando a A performer e teórica da performance Eleonora corpo do performer no desencadeamento de encontros. <www.eleonorafabiao.com.br>.
lógica vigente e instaurando Fabião [B] elabora o conceito de programa performativo, Nesse sentido, um programa performativo pode ainda
outros modos de produção definindo-o como “motor de experimentação psicofísica
e relação no espaço urbano. e política”, acrescentando: “porque a prática do programa [7-8] Citações de trechos de Suely Rolnik, presentes na obra referenciada
O livro pode ser lido em: cria corpo e relações entre corpos; deflagra negociações na nota 1. [9] Yoko Ono, Hélio Oiticica e Eleonora Fabião são três artis-
<bit.ly/2u2dbUi>. de pertencimento; ativa circulações afetivas impensáveis tas que, sequencialmente, defendem o argumento de que o trabalho do ar-
antes da formulação e execução do programa”. [10] tista é mudar o valor das coisas. Esta consideração está presente no li-
Um programa performativo, assim, é o planejamento que permite o movi- vro Ações (2015), de Eleonora Fabião. [10-15] Trechos de autoria de
mento infindável de aberturas de janelas que caracteriza o acontecimento em si Eleonora Fabião. Conceitos apresentados no artigo “Programa Performativo:
da performance; programas são os disparadores da dramaturgia do imprevisí- o corpo-em-experiência”, publicado na Ilinx - Revista do Lume (Núcleo In-
vel operada pelas ações performativas e, por isso mesmo, constituem, segundo terdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp), volume 4, em 2013. Para
Fabião, o “enunciado da performance: um conjunto de ações previamente ler o texto, acessar: <bit.ly/2u48LAW>.

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ser um programa cartográfico, corpográfico, pois o cartógrafo, assim como o equação, sobra cidade? A compulsividade de trânsitos e movimentos parece não
performer, não segue protocolos normatizados, mas leva consigo critérios de conectar a cidade e seus cidadãos, mas apenas garantir que eles entrem e saiam,
contextualização para realizar sua prática. que passem sem parar – o que contraria até mesmo o conceito que se reveste
Um desses critérios, indubitavelmente, são as “injeções de prudência”, as no termo mobilidade. Sobre a palavra, a arquiteta brasileira Silke Kapp salienta
quais Fabião enfatiza como “regra imanente à experimentação”. [15] De modo que “a mobilidade é habitualmente considerada um bem, seja como possibili-
semelhante, Rolnik defende que a prudência deve ser uma regra para a ativi- dade de deslocamentos cotidianos numa mesma região (mobilidade urbana) ou
dade do cartógrafo, uma “regra de delicadeza para com a vida. Regra que agi- deslocamentos sazonais para além dela (mobilidade geográfica em geral), seja
liza mas não atenua seu princípio: essa sua regra permite discriminar os graus como possibilidade de mudança de domicílio (mobilidade residencial)”. [17]
de perigo e de potência, funcionando como alerta nos momentos necessários”. Especificamente a respeito da mobilidade urbana, a autora considera
[16] A prudência, desse modo, é um limiar que o cartógrafo, nos desenhos que na tríade liberdade/independência/autonomia, comumente associada à
que escreve nos territórios, e o performer, na prática de seus programas, não expansão das possibilidades de deslocamento defendida pelos projetos ur-
abrem mão, visando não perder de vista o quanto se suporta, na prática carto- banos, se reveste um projeto de alienação, já que manter as pessoas sempre
gráfica-corpográfica-performativa, o lançar-se à circulação imparável de afetos. em movimento equivale à dominação. Sua fala teoriza a falta de articulação
Considero que a inter-relação entre os conceitos discorridos, de cartogra- evidente na sucessão de contrastes que tem caracterizado as cidades: muitos
fia e programa performativo, podem tornar consanguíneos os papéis de pe- veículos para poucas vias, velocidade que não acompanha o tempo da cidade
destre, espectador em transportes coletivos e performer que experimento e – esta talvez a maior ironia – ausência de poder de escolha e decisão diante
e teorizo neste livro. Com isso, não desejo afirmar genericamente que todo das opções de tráfego. Ausência que, precisamente, li-
cartógrafo é performer: não se deve perder de vista a especificidade do pro- mita o cidadão à condição de usuário e passante, já que [B] O termo coreografia é
grama performativo, que é a intencionalidade artística. O que faço é aprovei- a circulação dos corpos nas cidades é orientada por um citado neste livro de acordo
tar a expansividade presente no conceito de cartografia e imbricá-la à ideia de controle sobre o tempo e sobre o espaço que gerencia com o teórico da dança André
programa na tentativa de debruçar-me de corpo e língua no espaço urbano e extensivamente o fluxo de pessoas e se camufla num Lepecki. No texto “Coreopolí-
no espaço de indissociabilidade entre teoria e prática da performance. ideário de organização. O espaço urbano, nesse con- tica e coreopolícia” (publicado
Sendo assim, com as ideias de programa e cartografia em mente e em texto, tem como imagem mais recorrente o vai e vem na Ilha – Revista de Antropologia
mãos, quero apresentar algumas estações teóricas sobre o planejamento ur- frenético e incessante, coreografia [B] meticulosamente da ufsc, em 2011), o autor uti-
bano que controla ruas e transportes coletivos e sobre as práticas performati- orquestrada pelos planos de mobilidade urbana. liza coreografia como instância
vas que instauram possibilidades extracotidianas nesses espaços. Nesse sentido, podemos considerar que o planeja- conceitual para se pensar as
mento urbano coreografa os corpos a partir de critérios relações entre estética e política,
ou preceitos que variam numa escala modulante do mais bem como analisar as camadas
primeira estação disfarçado ao mais evidente – conforme o espaço público de controle sobre os corpos na
Disposições coreográficas rotineiras: em questão: as ruas ou os transportes coletivos, os cená- circulação urbana. O texto pode
mobilidade no espaço urbano rios fundamentais da movimentação pela cidade. Nas ruas, ser lido em: <bit.ly/2v21otI>.

Transportes superlotados, engarrafamentos e correria desmedida são imagens [16] Trecho de Suely Rolnik, apresentado no livro referenciado na nota 1.
que já constituem o cenário de circulação compulsiva de centros urbanos como [17] Considerações presentes no texto “Alienação via mobilidade”, publi-
o Rio de Janeiro, desvelando paradoxos da mobilidade urbana: se o ir e vir é via cado na revista Oculum Ensaios, em 2012. O leitor pode conferi-lo em:
de regra, falta espaço e falta tempo. Violência e desconforto, há de sobra. Nessa <bit.ly/2tZhoc6>.

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a autonomia do condutor na suposta proteção da redoma particular do auto- Acredito que essa consciência aguda da cidade também pode ser atribuída
móvel, atritando os pés nos pedais para que as rodas deslizem no asfalto, trans- aos trabalhadores de carga, como os catadores de produtos recicláveis, que,
portando-o; e o caminhar do pedestre, que atrita e desliza os pés diretamente às carradas, trafegam pela cidade com suas carroças transmutando toda sorte
nos calçamentos, são, na verdade, condicionadas, cada uma a seu modo, pelas de asfalto, calçadas e canteiros em vias para se movimentar e para trabalhar.
leis e normatizações de trânsito, isto é, por uma infinitude de expressões verbais, Para se movimentar trabalhando. Para trabalhar em movimento. Trabalhar
visuais e arquitetônicas do controle sobre a mobilidade. Dentre essas expressões, movimentando o corpo que, imbricado ao material de trabalho, desliza e atrita
podemos destacar a geometria extremamente retangular das vias de circulação pés e rodas, simultaneamente, no chão. [D] Nesse movi-
nas ruas (e também nos transportes coletivos), com todas as faixas, setas, linhas mento, desviam-se das leis e experimentam modos mais [D] Essas observações ama-
e filas formatando o paradoxo de uma circulação quadrada, reta, que reforça autônomos de (sobre)viver na cidade. “Autônomo” talvez dureceram através do contato
uma mobilidade frenética e individual, inibindo eventuais interações em trânsito não seja o adjetivo mais preciso, pois os condutores de com a artista Nathália Mello,
que poderiam comobilizar concidadãos para além de passantes. carroças, indissociabilizando mobilidade e trabalho, são com a qual colaborei numa
Contudo, não se exclui no funcionamento da mobilidade urbana a ocor- marginalizados pelas relações capitalistas, que diminuem ação intitulada Ca[r]rinho. Du-
rência de ações desviantes que desenham no espaço público uma possível o valor de seus corpos e de sua profissão, relegando-os rante o doutorado em artes na
autonomia. Nas ruas, intervenções de caráter político e de caráter artístico, à condição de subemprego. Porém, embora explorados, Uerj, Mello desenvolveu uma
como manifestações, protestos, happenings e performances, podem inserir possuem uma astúcia coreográfica que os distingue dos pesquisa que articula, dentre
contrafluxo no fluxo imposto, provocando agenciamentos de tempo e de es- passantes convencionais no cenário urbano. outras, relações entre arte da
paço, promovendo a colaboração – ou mesmo a desaceleração – dos corpos Nos transportes coletivos – assim como o fazem performance, trabalho, corpo
transeuntes. Lógica semelhante operam ciclistas e skatistas quando vão de artistas, trabalhadores de carga, ciclistas e skatistas nas e memória. Seus projetos ar-
encontro à ausência de políticas públicas, tomando agência do modo de se ruas – vendedores ambulantes, religiosos, pedintes e tísticos podem ser conferidos
deslocar e por onde se deslocar, arriscando-se em cenários como a cidade do artistas podem jogar astutamente com as molduras em: <cargocollective.com/
Rio de Janeiro, onde, visivelmente, veículos motorizados têm privilégios na comportamentais e os preceitos de circulação na me- nathaliamellopapagoiaba>.
organização engendrada pela administração pública. dida em que invocam outras gestualidades e acordos,
Engajando-se fisicamente para transitar pela cidade, ciclistas e skatistas negociando e performando constantemente com a implementação de outras
bailam nos preceitos dos planos de mobilidade, opondo-se à ilusão da au- disposições coreográficas na rotina das cidades.
tomobilidade dos condutores de carro e também dos pedestres. Atritando e
deslizando seus veículos sem outro intermédio que não a implicação direta
do corpo com o chão e o espaço aberto, ciclistas e skatistas ainda gozam segunda estação
do poder de desviar, fazendo das ínfimas brechas dos Transportes coletivos: passarelas
[C] Fala do antropólogo Marc congestionamentos de carros espaços para exercer uma discursivas, espaços performativos
Augé, que descreve no texto liberdade movente. Afinal, “o sonho do ciclista é iden-
“Efeito pedalada”, publicado tificar-se na terra com o peixe na água ou a ave no céu, Os transportes coletivos são produto e produção dos planos de mobilidade
pela revista Piseagrama, o ci- mesmo quando é preciso aceitar as limitações que o es- urbana, os quais são engendrados pela coligação entre gestão governamental
clismo como um projeto de li- paço lhe impõe. Pois o mérito do ciclismo – a diferença e iniciativas privadas que arquiteta a malha urbana de transportes como a
berdade urbana. O texto pode dessa ilusão demasiado sedutora – é precisamente nos alternativa vigente e democrática para transitar. Escolho utilizar coletivos ao
ser conferido em: <www.pise- proporcionar uma consciência mais aguda do espaço e invés de públicos, pois, os transportes (e a palavra inclui aqui não somente a
agrama.org/efeito-pedalada>. do tempo”. [C] malha de veículos, mas também as áreas da cidade que são destinadas para

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construção e funcionamento de plataformas – estações de trem, metrô e atividade do olhar, são constantemente reprimidas. Essas ações, que quebram
balsa, rodoviárias…), embora difundidos como um bem público, constituem a monotonia funcional dos coletivos e desvirtuam as regras de utilização, são
um serviço tarifado. Evidentemente, dentre os tipos de transporte a contradi- familiares aos passageiros de um grande centro urbano como o Rio de Janeiro.
ção público x privado é mais diluída ou mais densa conforme as condições de Vendedores ambulantes, pedintes, religiosos e artistas têm ressignificado
acesso e utilização (vide os aeroportos). Logo, há uma seleção de público que, os corredores dos coletivos com suas performances. [E] Ações que acres-
por si só, torna nebulosa a ideia de um serviço público. centam funções tanto ao espaço – que ganha con-
Sendo assim, poderíamos considerar os transportes coletivos como um tornos de feira livre, “corredor filantrópico”, palco, [E] O conceito de perfor-
símbolo máximo e “institucionalizado” do controle sobre a mobilidade, pois, assembleia e púlpito religiosos – quanto aos passa- mance possui diversas abor-
projetados como bem-comum e difundidos como “patrimônios públicos”, geiros. À medida que estes compram os produtos dagens em distintos campos
são espaços que introjetam molduras comportamentais. Nesse sentido, oferecidos, doam ou negam esmolas, respondem do conhecimento como
talvez não seja hiperbólico considerarmos que o funcionamento dos trans- “amém” ou batem palmas, estão assumindo papéis linguística, artes e ciências
portes contradiz a própria ideia de coletividade, já que o controle urbano e a diversos e, mais ainda, co-construindo a interativi- sociais. Neste livro não há
constante e ininterrupta transitoriedade mecanizam o comportamento dos dade e autorizando a ocorrência de atividades que nenhuma intenção de definir
corpos e diluem possibilidades de concidadania. Essa mecanização, que está subvertem os planejamentos da mobilidade urbana, performance, tendo em vista
presente no pagamento de tarifas, no abrir e fechar de portas, na espera, na co-transformando espaços tão controlados em per- que, como já afirmou Eleonora
disposição dos assentos e a consequente forma que conferem aos corpos, na formativos. É preciso considerar também que mui- Fabião, “definir performance é
sinalização de paradas… é intensificada por recursos audiovisuais (notícias, tos passageiros expressam desdém e outras reações um falso problema” (consultar:
anúncios publicitários, avisos das empresas de transporte, notas sobre cele- negativas aos performers. Quando desautorizam as <bit.ly/2uCNehz>). O sentido
bridades, previsões astrológicas etc.) que entretêm a passagem do tempo e as performances, os passageiros tomam rédea do seu artístico de performance está
circunstanciais falhas no serviço da mobilidade. papel de usuários e recusam a transmutação em es- aqui associado à prática de
Minimizando o possível constrangimento dos passageiros em ocuparem pectadores, já que, tendo pago pelo serviço, podem programas performativos –
um espaço com desconhecidos num confinamento em trânsito e disfarçando contestar o descumprimento das leis de utilização e conceito de Eleonora Fabião.
a ineficácia dos planos de mobilidade, esses recursos preservam a moldura revogar seus direitos. Já quando me refiro a vende-
comportamental e diluem a inevitável copresença. Essa postura é um traço Nesse duplo movimento dos passageiros de dores ambulantes, religiosos
cultural que caracteriza os transportes desde o seu aparecimento: o filósofo convivência com as regras e conivência com os des- e pedintes como performers,
alemão Walter Benjamin, no famoso ensaio “O flaneur”, afirma que o surgi- vios, a migração do pedido de esmolas, da pregação estou utilizando o termo a
mento dos elétricos e dos trens, os primeiros meios de transporte coletivo, religiosa, da venda de produtos e da performance partir das considerações do
instaurou na sociedade “um predomínio da atividade do olhar sobre a do artística para as passarelas de ônibus, balsas e com- teórico estadunidense Richard
ouvido”, porque as pessoas passaram a ocupar o mesmo espaço por longos partimentos de trens e metrô virtualiza outros espa- Schechner, que expande a
períodos de tempo sem dialogar. ços: as calçadas das ruas ocupadas pelos pedintes, a ideia de performance para
Os meios de trans-porte têm operado, assim, uma dupla mudança: a igreja, a feira e o palco são cenários que atualizam, eventos cotidianos. O leitor
mudança de lugar (o deslocamento) enquanto função e a mudança de porte passageiramente, os corredores dos transportes. pode consultar o livro Perfor-
(o comportamento) enquanto condição. Mantém-se, por meio dessa dupla A existência de um corredor já propicia a “feira mance e antropologia de Richard
operação, o predomínio do olhar sobre o ouvir, a segregação entre corpos e livre” dos ambulantes, com o acréscimo ao imagi- Schechner (Mauad X, 2012),
fala, o transporte de usuários ao invés de concidadãos. Nesse atravessamento nário de uma feira: o vendedor é móvel e interage organizado pelo pesquisador
coreografado, ações que desviam o controle, atrelando a atividade do ouvido à corpo a corpo com os passageiros que, em repouso, Zeca Ligiéro.

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[F] Na cidade do Rio de visualizam [F] e recebem os produtos para avaliação, adjetivos e substantivos em grau diminutivo para realçar a humanidade deles
Janeiro, por exemplo, é costu- testagem e eventual consumo; os pedintes, que na rua em comparação à grandeza de Deus.
meiro que os ambulantes, ao tendem a ocupar um ponto fixo, aproveitam a passarela Além das relações de poder e solidariedade, outra tática recorrente nas
se apropriarem dos corredo- para fazer circular o pedido de esmolas; já os artistas, performances em transportes é o reforço da oralidade através de materiais
res, aproveitem as barras de sobretudo os músicos, transformam os limites dos va- escritos ou visuais. Os ambulantes estão sempre acompanhados de exposito-
ferro como encaixes precisos gões ou as portas centrais opostas ao lado de acesso/ res e “amostras grátis” e alguns fazem até demonstrações para convencer os
para suas mercadorias que, saída em “caixas cênicas”, onde podem apoiar corpos e “clientes” a comprarem, como também há, por parte dos pedintes, a utilização
presas a um gancho de açou- instrumentos; os pregadores religiosos, por seu turno, de recursos que podem atestar a veracidade de sua fala: receitas médicas,
gue, deslizam se movendo desenham púlpitos invisíveis quando se fixam num contratos de aluguel, fotografias de pessoas enfermas etc. A tentativa de legi-
junto com seus corpos. Essa ponto do corredor ou decidem quebrar a liturgia, tran- timar a fala não é um aspecto isolado, porém resultante de um sistema social
engenhosidade parece carac- sitando ao longo da assembleia para inculcar crenças e que se constituiu pelo valor conferido à documentação, visto que “vivemos
terizar o imaginário urbano da coletar “améns”. num mundo decididamente grafocêntrico”. [19] Entretanto, há também os
cidade há, pelo menos, duas No movimento de apropriação do espaço, esses que agem sem recorrer ao escrito nem ao oral. Há pedintes, por exemplo,
décadas, visto que aparece performers agem por meio de táticas discursivas que que não falam, não partilham questões pessoais ou comprovam suas necessi-
em uma das cenas do docu- compreendem formas assimiláveis da polifonia das ruas dades através de documentos, mas simplesmente optam pelo tradicional es-
mentário Língua – vidas em que aparecem, por exemplo, em expressões corriqueiras tender de mãos. Realizam, pois, uma tradução corporal de todo um discurso
português. No filme de 2001, como “dá licença, abençoado”, “dá licença, meu querido”, através de um gesto tipificado socialmente. Evidentemente, corpo e verbo
dirigido por Victor Lopes, um “com o perdão de interromper sua viagem, cidadão de coexistem na comunicação. Mas uma vez que o gesto, além de substituir a
ambulante carioca explica a bem”, “se você quiser e puder colaborar comigo”; que expressão verbal, pode torná-la redundante, isso não salientaria um compor-
funcionalidade do mecanismo. representam estruturas linguísticas que mantêm as tamento claramente dramático? Como se vê, nem só de verbo se performa
fronteiras entre o performer e o poder dos passagei- em transportes coletivos e, se dilatarmos essa consideração para além dos
ros, que, caso convencidos, podem ser solidários. As escolhas linguísticas compartimentos de metrô e dos corredores dos ônibus, talvez não seja hiper-
imbricadas nesses processos performativos de negociação acentuam o que bólico dizer que vivemos num mundo relacionalmente dramacêntrico, isto é,
R. A. Hudson [18] e outros autores da sociolinguística conceituam por rela- centrado nas ações, no corpo a corpo, na perform-atividade.
ções de poder e de solidariedade, as quais ganham corpo linguisticamente pelas Em resumo, considero que as estratégias performativas empregadas por
formas de tratamento e referência (substantivações, adjetivações e pronomi- vendedores ambulantes, pedintes, religiosos e artistas em transportes cole-
nalizações) que são reflexo e motor da organização social dos espaços. tivos, integrando discurso, espaço, materiais e espectadores, revertendo pre-
Quando um pedinte utiliza termos como “abençoado” e “cidadão” para cariedade em potência, efemeridade em praticidade, dialética em dialogismo,
se referir ao passageiro, possível doador de esmolas, realça a distinção social também podem constituir práticas da arte da performance. A realização de
entre eles. Por outro lado, se nomeia seu interlocutor por “irmão”, “querido” e ações performativas em ruas e transportes coletivos pode inscrever outras
“amado” e complementa com descrições sintáticas do modelo “você, que é pai
de família como eu”, o pedinte busca uma comunhão com o ouvinte, man- [18] O leitor pode consultar o livro Sociolinguistics, de R. A. Hudson.
tendo um diálogo que expressa uma troca discursiva horizontal. Constrói, Cambridge University Press, 1996. [19] Frase do linguista Luiz Antônio
dessa maneira, uma relação de reciprocidade que é, em si, a estratégia dis- Marcuschi, presente no texto Gêneros Textuais: configuração, dinamicidade
cursiva elementar do pedido de esmolas. Um pregador religioso, por sua vez, e circulação, publicado no livro Gêneros textuais – Reflexões e ensino
pode referir-se aos ouvintes de maneira veladamente depreciativa se utiliza (Parábola Editorial, 2011).

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lógicas de produção e relação, convertendo “passantes” e “usuários” em con- ordenado e obediente, para que circulem como uma massa córica. É talvez
cidadãos e inserindo práticas de experimentação no controle dos planos de caminhando em contrafluxo a esta lógica que as ações performativas refutam
mobilidade através de negociações éticas não somente para a experimentação definições, mas abraçam programas: enunciados que não guiam para ma-
estética, mas também para a cidade que passa em movimento. nutenção de hábitos e lógicas plenas, mas motorizam a coletividade, fazendo
eclodir práticas urbanas de concidadania.

linhas de transferência Com os conceitos até aqui apresentados, nos deslocaremos a seguir para a
Anti-programas performativos descrição de ações performativas realizadas em meio aos anti-programas vi-
gentes nas ruas e transportes da cidade do Rio de Janeiro, dispostas cronolo-
Ancorado no conceito de programa performativo – que tem orientado minha gicamente neste volume. Desejo que, ao longo deste deslocamento, sejamos
prática como performer e a inter-relação que tenho desenvolvido entre arte passageiros, pedestres, cartógrafos, concidadãos e performers. Juntos.
da performance e mobilidade urbana – sugiro que os planos de mobilidade
funcionam como anti-programas performativos: compostos por enunciados
de toda ordem (verbal, pictórica, arquitetônica…), controlam o transitar em
sociedade, estipulam previamente preceitos de conduta e de utilização arti-
culados com estratégias de poder sobre os corpos e, muitas vezes, inculcam
noções de pertencimento e cuidado para camuflar os cerceamentos que es-
gotam nosso agir social, nossa performatividade.
Ao contrário dos programas performativos, que são enunciados geradores
de encontros, de relações, de acordos e de descobertas, os anti-programas
da mobilidade urbana não se interessam em possibilitar experimentação,
porque norteiam a circulação no sentido mais mecânico da palavra, evitando
circuitos afetivos impensáveis e preservando estandardizações que embaçam
iniciativas políticas. [20] Os enunciados dos anti-programas são impostos,
introjetados, ativadores de passividade e diluidores relacionais, além de dis-
pararem uma oposição formal com os programas performativos: enquanto os
“programas têm enunciados claros e concisos, sem adjetivos e com verbos no
infinitivo”, [21] como conceitua Eleonora Fabião, os anti-programas circulam
enunciados concisos, mas com verbos no imperativo: “Deixe a esquerda livre”,
“Mantenha-se à direita”, “É proibido sentar-se no chão do trem” etc.
Esses enunciados não se restringem ao plano verbal, mas estão implícitos
na cenografia do controle: as fitas demarcando a direção dos corpos, as ca-
tracas fronteirizando o acesso, as esteiras que desaceleram contingentes, os [20] “Iniciativa política” é aqui citado de acordo com Eleonora Fabião,
assentos que retangularizam os corpos e preservam o porte de “usuário”… quando se refere, no texto “Programa Performativo: o-corpo-em-experiên-
Esses mecanismos podem desincorporar a pluralidade própria à coletivi- cia”, ao projeto político e teórico da filósofa alemã Hannah Arendt.
dade, isto é, formatar os corpos para que permaneçam como um conjunto [21] Conceito de Eleonora Fabião, no texto supracitado.

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embarque
Massa Ré

Programa Um grupo de brasileiros, trajando camisas com as ins-


crições 2016 (frente) e 1964 (costas), caminha lentamente,
silenciosamente e de costas pelas ruas da cidade com as mãos
espalmadas para baixo. Os pontos de início e término da cami-
nhada são preestabelecidos em consonância a fatos históricos.

Massa Ré #1, março de 2016 Realização Grupo de estudos


PTI, Teatro Inominável Performers Ana Paula Penna, André
Rodrigues, Andrêas Gatto, Carla Souza, Chris Ayumi, Diogo
Liberano, Elilson, Flávia Naves, Francisco Costa, Gleisse
Paixão, Hugo Grativol, Joana Poppe, Lúx Nègre, Márcio Machado,
Maria Baderna, Mayara Yamada, Regina Medeiros, Thaís Barros
e Virgínia Maria Percurso Cinelândia – Central do Brasil
Duração 3 horas Fotos Francisco Costa (p. 24, 33, 98-101)

Massa Ré #2, setembro de 2016 Performers-colaboradores Ana


Kemper, Inês Palmeiro, Jan Macedo, Jojo Rodrigues, Maria
Acselrad, Maria Baderna, Maria Luisa Mendes, Maria Palmeiro,
Nathália Mello, Otávio Leonidio, Patricia Kirilos Naegale,
Renata Caldas, Vanessa Matos e Yanna Bello Percurso Cinelân-
dia – Praça Mauá Duração 2 horas Fotos Ique Larica Gazzola
(p. 102-103)

Massa Ré #3, novembro de 2016 Performers-colaboradores Ana


Kemper, Camille Mello, Clarice Rito Plotkowski, Fernanda
Canavêz, Flavia Oliveira, Lucas Fontes, Luiza Leite, Maria
Baderna, Renata Caldas e Samara Lacerda Percurso Cinelândia –
Campo de Santana Duração 1h40 Fotos Ana Kemper (p. 104-105)

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A morte do ex-presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula de costas no contexto Brasil/2016, com inúmeras pessoas [B] Acredito que perfor-
da Silva, é anunciada. Estou sentado no chão de uma praça, em silêncio, com e organizações pedindo, por exemplo, o retorno de uma mances realizadas em coro
amigos e desconhecidos. Um agrupamento de brasileiros, vestindo roupas ditadura militar, pode, predominantemente, suscitar lei- descoreografam a massa ca-
nas cores verde e amarela, vem correndo de costas comemorando a notícia. turas de apoio ou concordância a um golpe de Estado? minhante nas ruas: se há uma
Não temos tempo para levantar. Somos pisoteados pela massa. No chão, so- A dubiedade não me parecia necessariamente negativa, uniformidade nos trajes e
bram nossos corpos desconjuntados, além de fragmentos em pano e papel mas havia a necessidade de incorporar outros elementos gestos dos performers, é jus-
com as cores da bandeira nacional. para fomentar os posicionamentos da experiência estética. tamente esse caráter uníssono
Acordei com a quentura de uma bota pressionando meu rosto. Mês de Além de esteticamente evitar as cores vermelho, verde e que desvirtua a “coralidade-
março, apenas o início de 2016. Naquela altura, várias brasileiras e brasileiros amarelo, escolhi o gesto das mãos espalmadas para baixo -correria” dos transeuntes, os
– incluindo um bebê em São Paulo e uma vira-lata na cidade do Rio de Ja- como o detalhe capital de dissonância na ação. quais, desacelerando os pas-
neiro – haviam sido agredidos, em diversas partes do país, por simplesmente O gesto saltou ao meu pensamento a partir do sos, também podem tornar-se
trajarem a cor vermelha e caminharem pelas ruas. O ex-presidente foi con- modo como cotidianamente viramos as mãos para multidão. Um exemplo de
duzido coercitivamente para depor: prisão televisionada com ares de final de frente, abrindo palmas e dedos, para demonstrar dúvida performance em coro é Rosa
campeonato futebolístico, no país do futebol em ano olímpico. O Congresso ou estupefação. Geralmente, esse gesto é acompanhado Púrpura, da artista Berna Reale.
Nacional encaminhou, os protocolos para a abertura do processo de impea- por expressões faciais e/ou atos de fala como “não sei Na performance, a artista
chment contra a Presidenta da República, Dilma Rousseff, democraticamente o que está acontecendo” e “o que está acontecendo?!”. aborda a questão da violência
reeleita por mais de 54 milhões de brasileiros. Percebi uma recorrência do gesto no meu corpo e nos sexual através da imagem de
Após o sonho, meu corpo entrou em abstinência de sono: era impossível corpos de pessoas próximas a cada vez em que se lia um coro de 51 mulheres que,
ignorar a imagem da massa de brasileiros correndo fervorosa de costas. Im- ou se ouvia a respeito dos protestos pela volta de uma marchando em ritmo militar,
possível, pois, além de estar, naquela época, estudando sobre o caminhar como ditadura militar, de violações cometidas nas ruas contra trajam saia rosa e boca de bo-
prática estética, [A] minha sensação era de que o sonho traduzia em imagens pessoas trajando roupas vermelhas, de prisões coerciti- neca inflável. Os trabalhos de
a história em marcha no país, com toda a onda fascista vas, de pedidos de impedimento presidencial, enfim, de Berna Reale podem ser con-
[A] A principal referência é a ganhando força e número nas ruas; sem mencionar to- acontecimentos que acometiam nos corpos um gesto feridos em: <www.bernareale.
obra Walkscapes (Gustavo Gili, dos os desmontes orquestrados contra a democracia: as- responsivo de estranhamento. com>. Outro exemplo é a
2013), do arquiteto e ensaísta pectos que, resguardadas as especificidades históricas de Esse caráter responsivo do gesto foi acentuado pela performance Cegos, do Desvio
italiano Francesco Careri. cada época, aproximam 2016 de 1964 – comparação que ideia de formar uma angulação entre os dedos que Coletivo, rede de criadores em
O autor aborda práticas de tem fomentado uma série de debates num país em que o apontam para o chão onde se pisa e o pulso inarredável artes da cena que, desde 2011,
sedentarismo e nomadismo termo golpe voltou a ser pronunciado. ao corpo que caminha: como se o gesto, constituinte desenvolve espetáculos, insta-
a partir de um resgate histó- Toda essa profusão de atuais e virtuais entre onirismo do e no corpo que anda para trás, pronunciasse: estou lações, intervenções urbanas e
rico dos modos de produção e realidade, imagem e palavra, estética e caminhar, entre sendo empurrado para trás, mas estou resistindo. Massa performances. Em Cegos, que
agrícola até os movimentos a história contada e o agora vivido, impulsionou a formu- Ré surge, assim, como um programa elaborado para ser já foi realizada em diversas
estéticos que praticam cami- lação do programa anteriormente descrito. Ao formulá-lo, agido em coro e nas ruas com o intuito de, a partir de cidades do Brasil e do mundo,
nhadas como programas artís- dei ênfase primeiramente à imagem da caminhada cole- uma postura aparentemente uníssona, [B] tentar agregar performers em trajes sociais
ticos, a exemplo da Internacio- tiva de costas e à inscrição dos dois momentos históricos a voz pluralmente dissonante nas ruas e das ruas, vi- caminham pelas ruas das ci-
nal Situacionista na primeira nas camisas, mas o gesto coligado ao traje logo insurgiu brando possíveis manifestações dos passantes, num mo- dades com os olhos vendados
metade do século xx. uma questão de ordem semântica: um grupo caminhar mento histórico de profusa e aguda divisão no país. e os corpos integralmente

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cobertos por argila. Transi- Foi preciso muito fôlego, isto é, resistência a toda lentidão ainda maior que a programada, sendo necessário um entendimento
tando pelas ruas dos centros sorte de confrontos, como também aderência radical ao rítmico para que nenhum componente do coro ficasse para frente. Essas estra-
financeiros e políticos das ci- programa nas três [1] realizações de Massa Ré para que tégias foram fundamentais para as demais realizações da ação.
dades, geralmente se dirigem a ação propusesse primordialmente diálogos em vez de Na primeira realização, muitos transeuntes das ruas do centro carioca
a algum prédio que simboliza embates; para que fosse propositiva e não reativa, pa- esboçaram diversas reações à ação, constituindo uma rede dialogicamente
o poder. Desde 2016, o Desvio rafrásica e não parodística. A primeira delas ocorreu no dissonante. Ainda na Cinelândia, um morador de rua se ergueu do chão às lá-
Coletivo também tem denun- dia 1º de abril de 2016, como ação do grupo de estudos grimas dizendo que aquilo não iria se perpetuar, pois não haveria golpe, ao passo
ciado, através da performance pti [2] da Companhia Teatro Inominável. [C] A escolha que outro transeunte, caminhando no contrafluxo da performance-contrafluxo,
Cegos, iniciativas fascistas e da data se deu pela incidência histórica: dia em que o indagou: quantos sanduíches de mortadela o governo está doando para vocês
desmontes operados contra o golpe militar de 1964 completou 52 anos. O percurso fazerem isso, seus petralhas?! Vários passantes perguntavam o significado
regime democrático brasileiro. que sugeri, respondendo à consonância histórica orien- da ação, alguns querendo entender o porquê do andar de costas, outros
Os trabalhos do grupo podem tada pelo programa, teve como ponto de partida a Praça questionando o motivo das datas grafitadas nas camisas; outros se detendo
ser conferidos em: <www.des- da Cinelândia, local onde ocorrem, de modo geral, di-
viocoletivo.com.br>. versos protestos na cidade e onde ocorreram, de modo [1] Massa Ré também foi performada em Recife, minha cidade natal, no fim
particular, manifestações contra o golpe jurídico-midiá- do primeiro semestre de 2016. As atrizes Analice Croccia e Hermínia
[C] Teatro Inominável é uma tico de 2016. Como ponto de chegada, a Central do Bra- Mendes, tendo acesso aos registros da primeira realização da ação no Rio,
companhia artística do Rio de sil, local onde o ex-presidente João Goulart professou, me contataram com o intuito de produzir e realizar a performance no cen-
Janeiro que tem produzido no dia 13 de março de 1964, para 200 mil pessoas, um tro do Recife. A performance durou cerca de três horas e teve como ponto
espetáculos teatrais e ações discurso [3] que, dias depois, foi deturpado pelos mili- de início e término da caminhada, respectivamente, o monumento Tortura
performativas desde 2008. tares e veiculado pela mídia como “comunista”, gerando Nunca Mais e a Praça do Derby. Além de Analice e Hermínia, peformaram:
A companhia também produz reações como a Marcha da Família com Deus pela Liber- Adilson Di Carvalho, Edcarlos Rodrigues, Evandro de Mesquita Diles,
uma mostra bienal de artes da dade [4] e ocasionando, por fim, a ditadura civil-militar Gustavo Soares, Hilda Torres, Márcia Cruz, Nataly Oliveira, Paula Caal e
cena, a Mostra Hífen de Pes- em 1º de abril daquele ano. Pollyana Cabral. A produção também teve apoio de Ana Paula Sá, Débora
quisa-Cena. Os trabalhos do O percurso programado para a caminhada de costas Campos e João Gusmão, além dos fotógrafos Rogério Alves e Gustavo Arruda.
grupo podem ser conferidos simbolizou, portanto, uma ponte entre as duas épocas [2] PTI é sigla para Performance e Teatro (Inominável), programa de estu-
em: <www.teatroinominavel. históricas. Durante as três horas de duração da primeira dos do Teatro Inominável a partir de articulações entre performance, tea-
com.br>. realização do programa, as mãos espalmadas para baixo tro e cidade. O programa foi aberto para um grupo de estudos com vinte
rapidamente viraram uma estratégia de cuidado para artistas-pesquisadores durante a Inominável Ocupação, projeto realizado
além do gesto estético: os tropeços ocasionados pelos tantos buracos e des- nos meses de março e abril de 2016, no Rio de Janeiro, em comemoração aos
níveis das calçadas não viravam quedas graças às mãos do performers que, sete anos da companhia. O título “Massa Ré” foi atribuído por Diogo
em cadeia no sentido contrário, cuidavam de si, apalpando-se. O ritmo da Liberano, diretor artístico da companhia, quando apresentei o programa ao
caminhada foi outra questão negociada em ato: andar de costas significa ver, grupo. [3] O discurso pode ser lido na íntegra aqui: <bit.ly/2v713n9>.
irremediável e detalhadamente, tudo que é a cidade que diariamente e apres- [4] Manifestação ocorrida na capital de São Paulo, cinco dias após o dis-
sadamente deixamos para trás. Do céu aos inúmeros corpos deitados no chão; curso de Jango na Central do Brasil. Apoiada pelos militares, teve como
dos monumentos às fezes de gente; das rachaduras aos entulhos de concreto pauta a destituição do então Presidente e, por consequência, do regime de
armado. Imagens que, por vezes, acometiam aos corpos dos performers uma governo. Detalhes podem ser conferidos em: <bit.ly/2u9v6Jo>.

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às possíveis razões das mãos espalmadas. Nesse trânsito de perguntas sem bicicleta e o nome da Presidenta cintilando na bandeira vermelha. Outros ci-
respostas, uma vez que o programa da ação frisava o silêncio dos performers clistas, estes policiais da Operação Centro Presente, com amplo espaço de pas-
durante a caminhada, uma transeunte foi mais enfática: por favor, me falem sagem na avenida, subiram na calçada onde a Massa Ré caminhava em contra-
alguma coisa! Digam qualquer coisa. Vocês já me fizeram parar, não é justo fluxo e calculadamente bateram com os guidões de suas bicicletas em nossos
eu ir embora sem entender. Como vou chegar em casa bem desse jeito?! En- corpos. Um policial militar nos olhou e fez sinal da cruz três vezes dentro de
quanto nós, continuando a caminhada, só vimos seu rosto e suas perguntas sua viatura. Dois homens, com os braços cruzados, olharam diretamente para
sumirem quando desistiu e se uniu aos tantos corpos que, compondo as ruas, a menina de 4 anos de idade que participava da ação nos ombros do seu pai,
eram vistos pelos nossos olhos em zoom out. dizendo: deixa o Bolsonaro vir, que ele vai dá um jeito nesse pessoal.
Com nossa ausência de respostas e com nosso bloco de passagem, man- Várias pessoas, ao longo do percurso, paravam para assistir e conversa-
chando o urbano em horário de pico, muitos transeuntes tentaram elucidar vam sobre “golpe de estado” e “ditadura militar”. Algumas questionavam
entre si, traduzindo nosso ato de corpo em atos de fala que, por seu turno, os significados do “protesto”, chegando uma transeunte a afirmar que para
revelavam traços de formação cultural, posicionamentos ideológicos sobre a representar bem o Brasil deveríamos todos caminhar de costas até cair num
história de nosso país ou mesmo aspectos do imaginário coletivo que foram bueiro. Participantes de protestos contra o atual governo aplaudiam a ação,
vibrados pelos gestos. gritando Fora Temer ou se juntando ao coro em massa ré.
Eles estão representando o próprio Brasil, não percebe? Estamos em 2016, Militares das forças armadas, armados com fuzis, nos olharam atenta-
é o ano de andar pra trás, por isso o 1964. Mas, o que houve mesmo em 1964? mente. Um deles, que parecia ser o comandante, ordenou que dois soldados
1964 foi o ano do golpe militar. 1964 não foi um ano de golpe, esses livros de nos orientassem a subir na melhor calçada. Certos diálogos se mantiveram
história foram escritos por comunistas. 1964 foi o ano da revolução militar, semelhantes em relação à primeira realização: se poucas pessoas ainda per-
quando eles tentaram salvar o país das investidas comunistas, mas não deu guntavam o sentido de 1964 nas camisas, muitas diziam que éramos desocu-
certo, né? O que significa dezesseis meia quatro? O que aconteceu em 1964? pados, como um cobrador de ônibus que, de dentro do seu trabalho, ofereceu
Por que estão fazendo isso hoje? Hoje se comemora o quê? Fora Dilma!!! os pratos de sua casa para que lavássemos. No fim do trajeto, nos deparamos
Olha, um tributo a Michael Jackson! E essas mãos aí para frente, hein? É com centenas de pessoas ocupando a Praça Mauá, onde fica o Museu do
samba, é? A gente num tá no país do samba? Pois bora sambar! (disse um Amanhã. Havia um palco enorme com uma banda gospel entoando canções
passante, no comércio popular da Saara, literalmente sambando). e professando frases sobre a importância da família brasileira. Ficamos ali
Numa segunda experimentação, no dia 7 de setembro de 2016, a ca- parados por um tempo, respirando e reacostumando o corpo para caminhar
minhada de duas horas, da Praça da Cinelândia até o Museu do Amanhã, de frente. Ao nosso lado, observando extensivamente cada um dos nossos
atravessou parte do percurso reservado para o desfile militar. Ocorreu pre- corpos, um policial militar cuja tarjeta anunciava seu nome: Michel.
cisamente uma semana após a destituição oficial da Presidenta Dilma e da No dia 19 de novembro de 2016, em terceira experimentação do programa,
instituição de Michel Temer no cargo executivo. Os meses de intervalo em a Massa Ré caminhou, durante uma hora e quarenta minutos, da Cinelândia
relação à primeira experimentação trouxeram à tona, por conta da rapidez até a Praça da República (Campo de Santana). A reação de ordenar que procu-
com que se transformou o quadro político do país, uma participação mais rássemos uma ocupação continuou recorrente, sobretudo por parte de traba-
ativa dos passantes. lhadores ocupados no momento simultâneo à passagem da Massa. Também
Um ciclista, enrolado com uma bandeira da campanha presidencial de se mantiveram expressões de apoio, com transeuntes conversando sobre os
Dilma Rousseff, parou seu trajeto para assistir nossa ida de costas, aproxi- rumos políticos do país ou caminhando um pouco de costas conosco, além
mando-se algumas vezes a cada vez que nos distanciávamos. Até o ponto em de um ciclista que bateu nas mãos de algumas das performers, como se esti-
que seguiu, fazendo sumir demoradamente aos nossos olhos seu corpo, sua vesse nos cumprimentando. Essas respostas foram mais contidas em relação

Massa Ré 30 | 31
a gritos de desocupados!, que bando de otários! e dedos girando ao lado das
cabeças, acusando, sem palavras, nossa “loucura”.
Na Lapa, um morador de rua foi mais enérgico: isso é macumba! Isso
é macumba! Gritava, esbravejando o corpo compulsivamente. Em um dos
bares, uma pergunta em particular determinou pós-conversas entre os par-
ticipantes da ação. Um homem, sentado com a família, indagou: mas, afinal,
o que vocês apoiam? Eu não consigo entender se são contra ou se querem
1964. Ao seu lado, uma mulher, sem expressão de dubiedade, disse: está claro
que eles apoiam o Lula e a Dilma, é só olhar pra eles.
Essa dubiedade, marca da execução do programa nas ruas, tendo em vista
os múltiplos e dissonantes verbos expressos pelos transeuntes, talvez seja
consequência da inversão em zoom out que a performance injeta à lógica do
“gesto mais quotidiano” [5] que é o caminhar: gesto comum da marca civiliza-
tória nas sociedades, o que apreende uma perspectiva historicista engendrada
por uma “noção topográfica e militar da força que marcha à frente, que detém
a inteligência do movimento, concentra suas forças, determina o sentido da
evolução histórica e escolhe as orientações políticas subjetivas”. [6] Massa Ré
pode desvirtuar, assim, a forma própria da construção subjetiva da circulação
urbana, profanando a expressão absoluta e primeira da ordem e do progresso:
o andar para frente.

[5] Consideração do filósofo italiano Giorgio Agambem, no texto “Notas


sobre o gesto”. Ensaio publicado no volume 4 da Revista ArteFilosofia,
do Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte (Ufop,
2008). Acessar: <bit.ly/2tHfQn0>. [6] Trecho do livro A partilha do
sensível: estética e política, do filósofo francês Jacques Rancière
(Editora 34, 2009).

Massa Ré 32 | 33
Pago 4 e 10

Programa Com um carrinho de supermercado contendo duas almofa-


das da minha casa, um protetor solar, uma garrafa de água mi-
neral e alguns copos descartáveis, levantar um cartaz com os
dizeres: “Pago R$ 4,10 para você andar no meu carrinho.
*Sujeito a condições”. Aos transeuntes interessados, explici-
tar as condições: 1) aceitar ser registrado em foto e em ví-
deo; 2) fazer, dentro do carrinho, o percurso entre duas esta-
ções de metrô. Percursos Largo da Carioca – Cinelândia;
Cinelândia – Largo da Carioca Duração 3 horas Fotos Willams
Costa (p. 34, 106-111)

34 | 35
A formulação deste programa performativo foi motivada pelo aumento da Cinelândia e 550 metros até a Estação Uruguaiana. Mas eu estou de saia…
passagem do metrô, que, de R$ 3,70, passou a custar R$ 4,10. O reajuste foi Não faz mal, eu tenho almofadas, água, protetor, você vai confortável e, se
estrategicamente efetivado pela Invepar [1] no sábado, 2 de abril, pois, aos quiser, cobre as pernas com uma delas. Não é tão fácil assim, você fala assim
fins de semana, a quantidade de usuários é consideravelmente menor, o que porque é homem. Mas, olha, eu iria, se não estivesse tão atrasada, eu iria. Em
precisamente inibe iniciativas de manifestação. O aumento era assunto de seguida, outra mulher tocou no meu ombro e perguntou se aquilo era uma
conversas que eu discretamente escutava ou que propositalmente estimulava performance protestando contra o metrô. É assim que você vê? Ué, você está
nas ruas, nas paradas de ônibus e nas próprias estações de metrô, onde a na frente do metrô e utilizando o mesmo valor! Então, tá interessada? Vamos
nova tarifa era anunciada em placas fixadas nas bilheterias, nas catracas de lá! Eu não posso, além do mais aquela câmera ali já me registrou. A mim
acesso e nos vagões. também, ué, ela e mais aquelas viaturas de polícia. Mas é que eu trabalho no
Estrategicamente, decidi agir o programa no dia 4 de abril de 2016, segun- metrô! Jura? Sim, faço parte da Invepar. Olha, deixa eu te dar meu cartão. Se
da-feira, primeiro dia útil após o reajuste. Com o programa em mente e com você quiser conversar sobre mobilidade urbana qualquer dia, é só me escre-
os objetos em mãos, convidei dois colaboradores, André Rodrigues e Willams ver. Mais rápido do que eu poderia imaginar, já estava em relação corpo a
Costa, para, respectivamente, registrar a ação em vídeo e em foto. Agendei corpo com o metrô institucional. Faltava, é claro, o metrô cotidiano.
com eles o início do trabalho para 13h30, no Largo da Carioca, centro da ci- Posteriormente, alguns grupos de desconhecidos se posicionaram ao redor
dade. Assim, as opções de trajeto para os interessados em andar no carrinho do carrinho. Muitos não acreditavam na veracidade do anúncio e, ao ver as câme-
e receber o pagamento seriam da Carioca até alguma das estações vizinhas: ras, soltavam risadas: tá tirando com nossa cara? A gente não quer aparecer no
Cinelândia ou Uruguaiana. Sílvio Santos nem no YouTube, hein? Duas mulheres passaram tomando sorvete.
Parti com os materiais da rua Washington Luís, Centro, até o Largo da Uma delas parou e tentou negociar um aumento no valor, disse que menos de 5
Carioca, num percurso que compreendeu 1,6 km de tempo. No caminho, a reais era muito barato para ir de uma estação até a próxima dentro de um carri-
negociação já foi estabelecida através dos acordos necessários com carros, pe- nho. A amiga se arredou prontamente quando percebeu o registro das imagens,
destres, árvores, lixeiras, placas, buracos, desníveis e com a ausência de ram- algo que a negociadora demonstrou não se importar. Percebi que era preciso que
pas de acessibilidade em inúmeras calçadas para que o corpo-carrinho pu- as câmeras se afastassem um pouco para que as conversas pudessem fluir e eu
desse transitar em meio a olhares de curiosidade, espanto, desdém… Olhares mesmo anunciasse a existência do registro, já que era uma das condições de pa-
em sua maioria direcionados para o conteúdo transportado. De modo geral, gamento. As conversas, então, passaram a ter uma duração maior.
a composição dos materiais é que recebia os olhares. Poucos transeuntes qui- Uma mãe andando com auxílio de uma bengala disse que estava levando
seram conferir quem carregava aquele quê. a filha ao dentista, mas que, na volta, caso eu ainda estivesse por ali, a menina
Às 13h30 posicionei-me com o carrinho na frente da saída A da Estação Ca- participaria e ela me ajudaria a carregar, pois tinha adorado a atitude, em suas
rioca, no epicentro do Largo. Quando fui passar o protetor solar – o mesmo que palavras, contra o metrô. Vários transeuntes liam o cartaz à distância, desacele-
seria compartilhado com os possíveis passageiros – um jogo impôs-se: o chão do ravam os passos, contornavam meu corpo e se aproximavam, como uma mu-
Largo da Carioca não é plano. Logo, o carrinho não ficava parado, sendo necessá- lher que contestou o tamanho do veículo. Aí só cabe criança. Cabem adultos,
rio um ligamento incessante entre alguma parte do meu corpo e alguma parte do
corpo do carrinho. Levantei o cartaz com o anúncio e vários passantes olhavam, [1] Invepar (sigla para Investimento e Participações em Infraestrutura
comentavam e soltavam gargalhadas apontando para mim. Era impossível não S/A) é uma empresa privada que, através de edital público de concessão,
retribuir os sorrisos, mas tentava me manter convidativamente sério. detém ações e administra, dentre outros, o Metrô Rio, o Veículo Leve so-
Com poucos minutos, uma mulher, tapando uma risada na boca, me bre Trilhos (VLT) e a avenida expressa Linha Amarela. Em 2016, a empresa
abordou. Ah, mas o percurso é muito longo! São apenas 750 metros até a foi alvo das investigações da Operação Lava-Jato.

Pago 4 e 10 36 | 37
eu garanto. Alguém já foi? Ainda não, mas pode ser você. Não sou um expe- interrompeu, dizendo que já havia passado três vezes por ali. Queria passear
rimento tão barato, meu filho! Disse, às risadas, atraindo dois senhores. Um comigo, mas reclamava de dores nas pernas e frisava o fato de trajar vestido.
deles parou entre nós, conheceu o programa, tocou no meu ombro direito e O homem, que não entraria nem por milhares de reais, incentivou que ela
seguiu, sem palavras. O outro continuou e conversou durante trinta minutos. embarcasse, elogiando o trabalho que faríamos.
Contou suas experiências trabalhando na rua, me identificou como artista e Foi, então, que o homem com dreads voltou com mais dois amigos, apre-
apresentou sua arte: fazia mosaicos com pedaços de vidro colados em pedras sentando-os pelo nome, mas sem nunca dizer o seu. Um deles não morava
portuguesas que encontrava soltas pelo chão. Disse também que a venda da- por ali, mas conhecia os demais por fazer bicos naquela região. O segundo
quele material ajudaria uma ong para crianças e, se desculpando por tomar me pediu água e me olhou energicamente enquanto eu relatava as condições,
tempo do meu trabalho, me fez um pedido: será que você não poderia apre- saindo abruptamente da área quando soube que seria filmado. A mulher de
sentar o meu trabalho para o Luciano Huck? Ou me encaminhar até ele? Mas vestido e o trabalhador toparam entrar no carrinho. Disse que priorizaria ela,
eu não o conheço, eu não sou da televisão. Ah, não? Não, mas o senhor pode que chegou antes, mas o agenciador da minha ação saiu em defesa de seu
escrever uma carta ou e-mail, não? Não, aposto que eles não leem. E se foi. amigo, argumentando para minha quase colaboradora: a senhora não vai fi-
Voltei a erguer o cartaz e, simultaneamente, passei a prestar mais atenção car confortável aí dentro, deve doer. E ainda está de vestido! Ela prontamente
na eferverscência de movimentos daquele largo: incontáveis trabalhadores concordou, ao passo que o homem entrou no carrinho rumo à Cinelândia.
iam e vinham carregando carroças com jornais, botijões de água mineral, O agenciador nos acompanhou, dizendo que seria o próximo, voltando
móveis… Um fiteiro mais ao fundo ecoava uma trilha sonora que variava da Cinelândia à Carioca. Durante todo o percurso tentou, repetidas vezes,
entre And IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII, will always love youuuuu; é o amoôôr, que mexe reajustar o preço. Mantive-me firme no cumprimento do programa e o pas-
com minha cabeça e me deixa assim. Um fio de cabelo no meu paletóóóó, sageiro concordou, dizendo que o negócio foi claro e fechado, pedindo que
além de “Meu pintinho amarelinho” em versão flauta. Cortando a soundtrack, o amigo não incomodasse. Mas ele seguiu querendo me apontar por onde ir.
um homem sem camisa, dreads no cabelo, bastante interessado sobre o pro- Nos momentos em que os buracos da cidade e a minha condução quase pro-
grama. Expliquei e ele seguiu, dando legal para mim e para as câmeras. Ra- vocaram um acidente, ele interveio: se derrubar ele, vai me pagar cem reais,
pidamente, reapareceu no largo, desta vez acompanhado. Trouxe aquele que, hein? Parei para respirar e procurar um calçamento mais uniforme, afinal era
segundo ele, era seu irmão mais velho. Moravam juntos na rua, ali perto, na indispensável manter a segurança do passageiro e também do meu próprio
feirinha de artesanato da Carioca e, por isso, chamavam-se de irmãos. O ir- corpo, que já estava escoriado pelo carrinho.
mão, após segurar bem o cartaz e avaliar minhas palavras foi resoluto, em- O passageiro disse que não me preocupasse, pois tudo daria certo e que a
bora embriagado: não concordo, não quero, não me interesso e vou dormir. adrenalina valeria os 4 e 10. Ele passou a erguer o cartaz e anunciar a ação: é
Em seguida, outro homem tentava falar comigo, mas não conseguia parar quatro e dez! É quatro e dez que ele paga para andar nesse carrinho! É quatro
de rir. Nesse meio tempo, um executivo o cumprimentou e tirou uma foto do e dez! Vai perder, é? Quatro e dez, vambora! Tem mais vaga aqui! Na super-
meu anúncio, sem mais palavras. Após discutir comigo cada palavra presente fície da Estação Cinelândia, ele quis deixar os dez centavos, mas relembrei o
no cartaz, procurando descobrir quem eu era e de onde vinha, o homem nosso trato. O agenciador, então, virou passageiro e, antes de tudo, confir-
disse: logo vi que você não era um qualquer. Não entendi, o que é e o que mou mais uma vez quem eu era e para quem trabalhava, dizendo que era de
não é ser um qualquer? Você não se veste, fala ou tem aparência física de um se desconfiar receber um dinheiro assim, fácil. Você sente que está recebendo
qualquer. Franzi a testa e desejei prolongar a discussão, mas meu trabalho um dinheiro fácil? Sem responder, analisou os objetos componentes do carri-
ali estava para outra pauta. Então, você não quer receber 4 e 10? Levo e pago nho, ajustou as almofadas como queria, bebeu um pouco de água e pergun-
para qualquer um que quiser. Nem se você me pagasse 20 mil reais eu iria tou a serventia do protetor solar. Passou o creme nas axilas, sentou e, para a
nesse carrinho até a Cinelândia, ainda mais a Cinelândia! Uma passante nos câmera, disse alô, Rede Globo, mandando que eu seguisse.

Pago 4 e 10 38 | 39
Pediu que motoristas parassem no sinal verde para que passássemos, me-
xeu com transeuntes, especialmente com turistas, solicitou ajuda dos amigos
ambulantes, acenou para as calçadas, gritando pela atenção das pessoas e
anunciando quanto valia andar naquele carrinho. Queria ser visto e foi visto
por todos e, justamente quando atravessávamos as obras de construção do
“Novo passeio público da Rio Branco. Um legado da Prefeitura do Rio para
você” – conforme indicavam as placas –, passou a utilizar o cartaz de anúncio
como cartaz de protesto.
Ô, moça, eu não aguento mais pagar o metrô. Ô, gente, e esse aumento
para quatro e dez?! Não dá mais, não tem paz (Paes?). Quatro e dez?! Isso aí é
um roubo? É 157? [2] É um crime de mau trato? É 171? [3] Ei, ele tá pagando
4 e 10! Tá barato que tá dedéu, mas vamo lá. Reconhecendo que anunciava e
protestava enquanto eu conduzia o carrinho em silêncio, ele reivindicou seu
labor: olha, eu mereço mais, hein?! De fato, ele era um passageiro sem passi-
vidade, ele era o performer da ação, gritando para a cidade, entre poeira, en-
tulhos e passantes, os assuntos da ordem do dia. Ao passarmos pelo vlt [4]
(ainda) em construção, abordou os homens que faziam a obra: não dá, ô, o
vlt vai acabar ou não vai? Amigo! O vlt, ó, eu não aguento mais pagar metrô.
Eu tô aqui andando pra poder pagar.
Quando voltamos para a Carioca, cruzamos com o irmão que havia desis-
tido por conta do registro fotográfico. Olha ele, lá. Ele desistiu quando viu as
câmeras, maluco. É que ele tá foragido, matou quatro mulheres. Percebi que
o homem seguia me encarando. Confesso que a informação, que nunca sabe-
rei ser verídica, me desestabilizou. Comecei a me sentir estranhamente cul-
pado por ter conhecimento do fato, mas seguimos. No ponto final, ele ainda [2] Referência ao artigo 157 do Código Penal brasileiro, decretado em
quis reavaliar o pagamento, porém fui enfático: quatro e dez é quatro e dez. 1940: “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante
Ele aceitou o pagamento e, cumprimentando um de seus “irmãos” que estava grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer
por ali, disse que chamaria os demais. Falei que encerraria a ação por ali, pois meio, reduzido à impossibilidade de resistência”. Fonte: <bit.ly/
precisava liberar os colaboradores. Ele foi mesmo assim e o irmão que con- 1Mb06gM>. [3] Artigo 171 do Código Penal, também de 1940, que prescreve
tinuou ao meu lado falou: você deve ter bastante dinheiro, hein? Não tenho, como crime “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo
não, senhor. Pra tá distribuindo assim… Mas eu nem queria o dinheiro, ele alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil,
foi otário. Dava pra ter roubado esse carrinho fácil fácil. Chamei os colabora- ou qualquer outro meio fraudulento”. Fonte: <bit.ly/1kg5YcO>. [4] O Veí-
dores e fui devolver o veículo. culo Leve sobre Trilhos, inserido no projeto “legado olímpico”, foi a
principal reforma na mobilidade urbana do centro carioca para os Jogos
Rio 2016. Falarei mais detidamente sobre o assunto na descrição da per-
formance Transporte Olímpico.

Pago 4 e 10 40 | 41
Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro

Programa Em estações, paradas e no interior de transportes


coletivos, palestrar sobre a origem etimológica da palavra
“troncal”, termo utilizado para nomear, a partir de 2015, novas
linhas de ônibus que foram implementadas em decorrência da ex-
tinção de outras cinquenta, como parte do projeto urbanístico
para a realização dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Vestir traje so-
cial que tipifique a imagem de um palestrante. Utilizar régua e
flipchart ou um conjunto de cartazes soltos, pedindo ajuda para
que passageiros e transeuntes segurem as folhas. Percursos Esta-
ção Central do Brasil; calçadas e paradas de ônibus do Centro e
de Botafogo; corredores de ônibus e de metrô Duração palestras
de aproximadamente 8 minutos Fotos Michele Cinque (p. 42,
112-115)

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Peço licença para incomodar o silêncio de sua espera ou viagem. Se alguém No caso, são dez troncos, dez troncais, porque estamos na cidade farta,
se incomodar com a altura da minha voz, é só sinalizar que eu paro. Mas se maravilhosa e olímpica, a cidade que recebe os principais eventos econômi-
apenas uma pessoa se interessar pela palestra, é só sinalizar que eu me apro- cos, sociais e culturais do planeta. Mas será que isso corresponde ao uso real
ximo um pouco mais. Agradeço muito se puderem e se quiserem me ouvir por da palavra no Rio?
alguns instantes. Para ficar ainda mais evidente esta explicação e o uso da palavra no Rio de
Janeiro, vamos analisar o sufixo -al, o qual também vem do latim primitivo, de
Saudações às ilustres usuárias e aos ilustres usuários dos transportes da ci- -allis, que carrega o significado de coletividade (como ocorre em grupal) ou
dade do Rio de Janeiro! ainda características climáticas (como ocorre em tropical). Porém, não posso
Estou aqui representando a Blefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, mais negar-lhes a informação de que -al também está presente em vários termos
especificamente a Paes Palhão Mobilidade e Comunicação Limitadas, uma que trazem em si uma carga semântica bastante negativa, isto é, palavras que
empresa que se interessa em desvendar alguns fenômenos relativos ao uso têm um sentido pesado, nebuloso. Exemplos: mal, banal, ilegal, imoral, boçal,
da língua portuguesa nas cidades do Brasil. O principal objetivo desta pales- sacal, curral. É neste tronco, nesta família de palavras que troncal está vinculada
tra é esclarecer um fenômeno linguístico que vem angustiando os habitantes aqui no Rio de Janeiro. Vejamos um exemplo que comprova essa familiaridade:
da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo os usuários dos transportes coletivos:
Um prefeito boçal impôs uma mudança sacal, fingindo ser banal, que nos
Troncal, a palavra que vem dominando o cotidiano carioca.
trouxe um baita mal. Seria o troncal imoral?
O que significa a palavra Troncal? Alguém aqui saberia e/ou poderia me
responder? Mas suponho que todos estejam bastante familiarizados com a Percebam que -al está presente em todos esses termos exemplificando o
existência dessa palavra, afinal todos têm utilizado ônibus nomeados por Tron- significado de Troncal. Como um projeto de radical racionalização, o Troncal
cal. Pois, bem, vim aqui para dar-lhes a informação sobre a origem dessa pala- vem ganhando força nas ruas do Rio de Janeiro, de modo que passa a mo-
vra. Para isso, precisamos revisar como se dá a formação de palavras na língua dificar outras palavras. Os verbos ocultar e camuflar, por exemplo, vão, mo-
portuguesa. Dentre os inúmeros processos de formação de palavras, aquele dificados pelo uso, ganhando as formas de ocultal e camuflal. Vou explicar o
que nos interessa é a derivação. Como a palavra já aciona, deriv-ação é a ação porquê: o Troncal, hoje a entidade de maior destaque no transporte coletivo
de derivar, ou seja, formar palavras a partir de outras. Há três partes principais carioca, existe para ocultal ou camuflal – como vocês preferirem – o sumiço
para a formação de palavras por derivação: nós temos o radical, que corres- de algumas desaparecidas desta cidade. Neste momento, agradecendo a
ponde a palavra primitiva, originária, e nós temos os afixos. O prefixo, que é presença e a escuta dos senhores e senhoras e quebrando um pouco a forma-
adicionado antes do radical; e o sufixo, que é acrescentado após o radical. Fi- lidade de meu trabalho, gostaria que fizéssemos um minuto de silêncio por
cou claro? Vai ficar ainda mais claro quando analisarmos a palavra troncal. essas desaparecidas, as quais faço questão de nomear:
Em troncal nós temos tronc-, que é o radical, oriundo do latim primitivo,
119, 121, 123, 125, 126, 127, 128, 132, 136, 143, 154, 155, 157, 161, 162, 170, 172, 173,
significando “tronco”. Tronco, como nós sabemos, é a parte que espalha to-
177, 178, 180, 183, 184, 190 (não é a polícia), 305, 314, 317, 318, 332, 354, 360, 382,
dos os galhos e sustenta toda a copa, possibilitando a comunicação entre as
405, 420, 421, 423, 425, 438, 501, 502, 503, 504, 505, 511, 512, 535, 569, 570, 573,
partes da árvore. Troncal, nesse sentido, é adotado pela Blefeitura do Rio de
574 e 957, ufal!
Janeiro para representar um sistema de transportes que consegue articular
toda a cidade. Vejamos um exemplo: Mais de cinquenta linhas de ônibus desaparecidas e trocadas, muitas de-
las, pelo troncal. Ou seja, todos nós, nesta cidade, mandados para o troncal.
Troncal corresponde ao tronco do Rio de Janeiro.
Trata-se de um troncal cinquental, nesta cidade tropical!

Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro 44 | 45


Antes de me despedir, quero deixar de antemão algumas informações. Já
existem alguns projetos em trâmite para expansão do uso da palavra troncal.
Estejam atentos para a futura alteração dos nomes de alguns serviços públicos
da cidade do Rio de Janeiro: o Theatro Municipal, por exemplo, não demora
muito, será chamado de Theatro Troncal; a Central de Atendimento da Blefei-

Em 2017,
tura, não demora muito, assumirá, definitivamente, o nome de Troncal de Aten-
dimento. Além disso, dada a influência que esta cidade, Rio de Janeiro, exerce
sobre o país, alguns linguistas já preveem que em 2025, ou seja, 10 anos após a
aparição do troncal, o Brasil ganhará mundialmente a alcunha de país troncal.
Eu peço que, gentilmente, repassem essas informações e me despeço dei-
xando um novo lema possível para nossa cidade:

Blefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: o seu direito de ir e vir mandados para


o troncal!

Esse negócio de troncal é só para racionalizar quem não mora na Zona Sul, né?

o troncal passou a ser


Isso sim! Toma aqui 5 reais para beber água e fazer mais palestras. Desculpa,
mas chegou o meu ponto. Como posso ouvir o final? Mas, se você é da Prefei-
tura, por que o segurança te expulsou da Central? Agora
Troncal foi uma das ações in- vou ter que ir contigo até a calçada e chegar atrasada em
tegrantes do vídeo Piloto para casa! Só saio daqui quando aprender o que danado é
um trem transcultural, filmado troncal! Poxa, cara! Finalmente vocês da Prefeitura vieram
pelo cineasta italiano Michele aos ônibus explicar isso tudo. Tá achando que é fácil ser
Cinque, com produção de trocador e nem saber explicar o próprio nome do ônibus?!
Cecília Dinardi e curadoria Esse negócio de Troncal complicou até pra gente. Vocês da
dos professores Alessandra Prefeitura consultaram quem? Bem, eu só posso respon-
Vanucci e Charles Feitosa. der pela Blefeitura. Ele é meu vizinho! Agora eu sei o que
O vídeo, que documenta ações ele faz da vida. De onde é essa empresa? Paes Palhão?!
performativas no cotidiano de Não posso mais segurar os cartazes, meu ônibus chegou…
superlotação dos trens do Rio Ah! Eu posso esperar pelo próximo. Sobe na calçada, o
de Janeiro, foi realizado dentro motorista quase te atropelou de propósito! Aqui no metrô
do projeto Lab Creative, patro- não pode fazer isso. Isso? Conversar? Protestar! Mas não
cinado pelo Festival Multipli- é um protesto. Isso e isso. Isso ou isso? Eu não sei mais
cidade e pelo People’s Palace andar na minha cidade, eles arrancaram a cidade da gente.
Projects. Assista ao vídeo em: Eu queria saber por que eles meteram esse negócio de
<bit.ly/2vOpo3o>. troncal e a civilização não sabe o significado original?!

Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro 46 | 47


Gota

Programa Um balde de plástico vermelho made in Brazil com ca-


pacidade para 13,6 litros é o objeto-guia para uma quase de-
riva, uma caminhada-busca por quem estiver bebendo água ou
trabalhando com água. A caminhada só se completa quando o re-
cipiente estiver transbordante com as águas doadas pelos tran-
seuntes, gota a gota, com as próprias mãos. Toda a água cole-
tada é revertida em ações de lavagem, de escrita e de
exposição oral. Nas ocasiões de leitura das narrativas escri-
tas a partir da performance, caminhar do local de residência
até o local de exposição, quando possível, ou caminhar e uti-
lizar algum transporte, sempre recolhendo água de transeuntes
para preencher o conteúdo do balde vermelho. Ao expor as nar-
rativas, misturar as páginas do texto com a água coletada. Ao
término, engolir boa parte da água e despachar o restante na
rua. Percursos Mercado Popular da Saara – Largo da Carioca;
UFRJ (Campus Praia Vermelha); Lapa – Botafogo; Vila Isabel –
Méier; Praça da República – Ilha do Fundão e Praça da Repú-
blica – Santa Teresa Duração Múltiplas durações de até 13,6
litros Fotos Anderson Damião (p. 121), Francisco Costa
(p. 48), Jéssica Zambello (p. 120), Miro Spinelli (p. 119)
e Wilton Montenegro (p. 116-118)

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“Gota” é um substantivo feminino da língua portuguesa que designa uma por favor, agradeço, mas preciso apenas de uma gota ou do quanto você qui-
pequena porção de líquido que, ao escorrer, tem forma de glóbulo ou, na lin- ser e puder me dar. Avistei uma mulher sentada na frente de uma lanchonete
guagem popular, forma de pingo. “Gota” também é o nome de uma doença, com uma garrafinha de água quase no fim. Pedi e ela cedeu sem falar nada,
sem cura ou tratamento definitivo, caracterizada por uma artrite inflamatória apenas com um questionamento que não virou palavra, mas continuou preso
provocada por uma concentração de ácido úrico nas articulações, sobretudo na testa franzida. Logo alguns trabalhadores começaram a interagir, não por
nas articulações do pé, as articulações do caminhar. “Gota serena” é como a conta do balde, mas por conta da bandeira: Brasil! Brasil! Ele deve tá tirando
fase de alívio dessa doença passou a ser chamada no Nordeste brasileiro e onda do 7 x 1 ainda, né não? Nada! Deve ser protesto ou besteira de gringo.
acabou se aglutinando à língua como uma expressão de intensidade. “Gota Gringo? De alemão esse aí só tem a cor do bigode.
d’água” também é uma expressão de intensidade fincada na língua portu- Posteriormente, parei um casal pelo mesmo pedido. E as mesmas testas
guesa falada em todo o Brasil, que indica um esgotamento de paciência, franzidas. E o mesmo gesto de doar sem nem um suspiro de vacilação. Aden-
uma situação-limite. “Gota serena” e “gota d’água” são expressões populares trei numa lanchonete e pedi ao funcionário um pouco de água da torneira.
extraídas de ditados populares que nunca serão obsoletos, desde que o Nor- Ele pegou meu balde e foi interrompido por uma colega de trabalho, talvez
deste permaneça falando, desde que a música e a peça de Chico Buarque, sua superior: melhor usar a torneira lá de dentro. Fiquei abiudando a ação
um carioca, continuem sendo escutadas, lidas, encenadas. “Gota serena” e dele e frisei: não precisa encher, moço, só preciso de um pouco mesmo.
“gota d’água”, portanto, indicam a capacidade de perpetuação linguística, de A mulher, me olhando da cabeça aos pés, com o mesmo franzir na testa, não
permanência dos ditados populares. Mas vitalidade semelhante à dos ditados questionou, apenas pediu que eu saísse do balcão para não atrapalhar o fluxo.
populares possuem os discursos de ódio. Voltei para a rua e parei um homem com garrafinha, era um estrangeiro. Não
de outra cidade como eu, mas um estrangeiro de outro país. Para quê?!, ele
tentou com um português meio difícil de saber se era hispânico ou inglês.
#1 Respondi com a ação e ele sorriu, atendendo, enquanto seus amigos me
olhavam com a tal testa franzida. Mais adiante deixei passar duas mulheres
Maio de 2016. Mercado Popular da Saara, rua Senhor dos Passos. Dois obje- conversando. Uma delas tinha uma garrafa de água. Voltei. Moça, um pouco
tos comprados na Saara: um balde de plástico na cor vermelha, made in Brazil, da sua água?! Para beber? Não, para completar meu balde. Ah, sim, olha, per-
com capacidade para 13,6 litros e com data de validade indeterminada e uma guntei porque se você estivesse com sede eu ia comprar uma garrafa para
bandeira verde e amarela, made in China, com tema positivista, 1m30 de com- você. Sem testa franzida, aquela mulher me mostrou o que havia em comum
primento e 2 m de largura, também com validade indeterminada. Vestido entre a sua resposta e a de todos os outros, com ou sem testa franzida. A ex-
com camisa preta, bermuda preta e um par de tênis amarelos, integrei ao plicação era outro ditado popular vindo à tona do fundo da minha infância no
meu corpo os dois objetos como duas próteses de trabalho, como dois guias Recife até ali, no meio da rua do Rio de Janeiro: água não se nega a ninguém.
para a minha caminhada, como duas peças indumentárias. Amarrei a ban- Em seguida, entrei em outra lanchonete. O funcionário pediu autorização
deira ao pescoço, com dois nós fortes, e deixei que ela caísse sobre minhas ao dono, que consentiu. Já tá bom?, perguntou ele. Tá ótimo! Continuei e pa-
costas, feito uma capa de herói carnavalesco. Com a mão direita carreguei o rei uma senhora no meio de uma calçada, esquina da rua dos Andradas com
balde inicialmente vazio. a Senhor dos Passos. Entre sacolas e mesas de ambulantes, ela questionou:
Aproximadamente às 13h30 iniciei minha coleta. O primeiro homem abor- Para quê?! Para preencher o balde. Não, meu filho, essa água aqui eu comprei
dado estava tomando água numa garrafinha plástica. Perguntou para que pra beber!, respondeu indignada, com a voz franzida. Às vezes, se nega água
era, escolhi responder com a ação: preciso encher este balde até o limite. Ah, a alguém. Um homem vestido de terno entrou na Igreja de Nossa Senhora
bom! Pensei que você estivesse com sede, já ia oferecer a garrafa toda. Não, do Rosário, na rua Uruguaiana, com um copo de água mineral: imagem

Gota 50 | 51
suficiente para impulsionar minha entrada na igreja vestindo bandeira e Parar as pessoas estando parado não dava certo. Parar as pessoas estando
balde que já pesava cinco ou seis litros. Posicionei-me ao lado dele, que re- também em movimento era o que tinha enchido o meu balde até ali. Faltava
zava de olhos fechados. Aguardei o fim da reza cautelosamente. Na primeira pouco. Do outro lado do Largo, no posto da Polícia Militar, percebi que um
abertura de olhos após o sinal da cruz, exclamei: moço! Ah, claro, mas, poxa, é pm me observava. Olhei para ele algumas vezes e o botijão de água mineral
que eu nem bebi ainda. Não quero toda a água, pode beber. Quero só uma de vinte litros, na cor rosa, saltou à minha vista. Como poderia ignorá-lo?
gota. Um gole. Um gole pro balde. Ele fez sinal de pera com a mão direita Voltei a carregar o balde pela alça com a mão direita e fui até o posto. Bati
e bebeu metade da água. A outra metade despejou no meu balde. Agradeci à porta e o policial veio me atender. O senhor poderia me doar um pouco de
a boa ação e ele saiu com um sinal da cruz e um ou dois olhares para trás. água? Vi que tem bastante na guarita. Para quê?! É uma promessa, respondi,
Na calçada da igreja, um mendigo parou de pedir esmolas para ler a minha aproveitando a dramaturgia que a senhora do churros escreveu para nossa
bandeira chinesa. Ordem e progresso. Olha aí. O-R-D-E-M-E-P-R-O-G-R-E- ação. Uma promessa?! Olha! A bandeira faz parte? Claro, claro. Tudo faz parte,
-S-S-O. Enormes. Enormes, né? Será? Será que o Brasil tem? Será que vale moço, até o senhor. Pois eu vou lhe dar a minha água. Não, moço, pode ser a
carregar ele nas costas? O Brasil. Tá merecendo isso, hein? Respondi: será?, do botijão! Não, prefiro dar da minha garrafinha. O pm abriu uma marmita
com um som que desceu por dentro da garganta e segui. e despejou toda a sua água pessoal. Não é uma promessa? Espero que seja
No meio da rua Uruguaiana, na calçada que divide a rua, avistei no shopping para uma coisa boa, hein?!
chão uma garrafinha próxima a um tapete com acessórios confeccionados Segui para o meio do Largo, faltava cada vez menos para completar os
manualmente. Pedi a gota e o camelô equatoriano me ajudou com um sorriso treze litros. Mas um homem bêbado com camisa do Flamengo pulou no meu
e um sí. Mais à frente, uma carrocinha de churros, duas senhoras, um rapaz e pescoço, acho que atraído pela bandeira. Falou coisas como Brasil! Ê! Protegi
três garrafas de água mineral pela metade, como expositoras. Após me doarem o balde, alguma água já tinha caído. Ele perguntou o que eu estava fazendo,
um pouco de água, já à distância uma das senhoras me parou: ei, menino! Isso respondi. Perguntou se servia o líquido que tomava num copo de guaravita.
aí é uma promessa, é?! Sorri. Não disse nem que sim nem que não. Ela falou Só serve água, afirmei. Não adiantou: ele mergulhou o copo com cachaça na
coisas que a rua não me deixou ouvir, mas possuía o famigerado franzir na minha coleta de águas. Agarrou o balde, agarrei de volta. Na peleja pela água,
testa. Acenei, troquei o balde de mão: comecei a negociar com o acréscimo de evitei que mais líquido fosse derramado e ele jogou outra coisa dentro do balde,
oito ou nove litros de volume ao meu corpo. Entrei em mais uma lanchonete. antes de se atirar ao chão e dizer que estava passando mal. Voltei toda a minha
A funcionária perguntou desconfiada: isso é para que, hein?! Eu me coloquei a atenção para ele e perguntei se queria uma garrafa de água. Pediu a do balde.
tarefa de preencher este balde com o maior número possível de águas diferen- Esta não serve. Esta não é para beber. Esta é o meu trabalho. Mas é a minha
tes, é isso. Ah, tá. Acho que entendi. Agradeci e saí atravessando a rua, fora da cachaça. Eu quero a minha cachaça. O senhor jogou porque quis, eu não pedi.
faixa de pedestres. Corri um pouco, mas a água ameaçou derramar. Um moto- Bem, o senhor tá passando mal? Vou comprar uma garrafinha de água. Ele se
rista de ônibus colaborou e deixou que eu atravessasse com calma. levantou, pedindo dinheiro em vez de água. O ambulante carioca o conhecia:
Largo da Carioca. Quase 15 horas. Uma parada ou a água caía. Troquei deixa o cara em paz. Mas ele continuava pedindo o dinheiro, enquanto me
de mão algumas vezes, tentei carregar o balde como cesto, abraçando-o na agarrava de novo. Eu abraçava de volta, cuidando para preservar as águas do
barriga. Depois como balaio na cabeça. De todos os modos a água caía um balde. Descansei o balde no chão e, finalmente, percebi a outra coisa que ele ha-
pouco ou ameaçava cair. A alça de ferro parecia que não aguentaria tanto via jogado. Era um saco plástico com cocaína. Pensei: se ele tá me cobrando a
tempo. Começou a bater um desespero, começou a me faltar água na boca. cachaça que jogou porque quis, imagina quando notar a falta do pó? O homem
Se a alça romper, vou ter que recomeçar toda a coleta. Decidi parar e olhar bebeu a água e voltou para o chão. O vendedor mandava ele ficar quieto e me
todo o Largo da Carioca, esperar que alguém passasse bebendo água ou se- aconselhava: vai rápido e em paz. Tirei o saquinho de coca do balde e despachei
gurando um copo, uma garrafa… Ninguém. Alguém! Mas não dava tempo. no chão. Certa quantidade já estava homogênea à água. Prossegui.

Gota 52 | 53
Parei duas mulheres, acho que eram mãe e filha. É que ainda nem bebi, é palavra de ordem para que o corpo progrida sem órgãos. Voltei à outra mar-
respondeu a provável filha. Ah, tudo bem. Que susto. É que a gente tinha gem do Largo, perto da Caixa Cultural, esquina da Almirante Barroso com a Rio
entendido outra coisa. Tome um pouco, disse a possível mãe segurando no Branco. Me despi do balde e da bandeira e, com esfregão e sabão amarelo (neu-
coração. Depois outra carroça de churros. Um pouco dessa água que tá aca- tro), lavei-a por quase vinte minutos com treze litros de águas coletadas em duas
bando para terminar de encher meu balde? Não, moço! Trabalho com essa horas. Esfreguei até que o lema positivista ficasse nebuloso: quase escrito, quase
água, ela ta aí para expor a mercadoria. Entendo, mas eu também trabalho apagado; sem ordem, ainda com progresso, turvamente. Lavei até que todas as
com água, falta pouco, por favor. A garrafa vai cair se ficar vazia, moço, tá águas sumissem do balde e corressem pelo chão da cidade.
quase no final. Não sei ao certo por qual razão, mas insisti até que ela me Cidade que agrega toda sorte de encontros, violências, dramaturgias, polí-
cedesse dois dedos de água, bastante contrariada. Tá bom. Pega aí e bota que ticas, poéticas e palavras. Ação performativa que pode literalizar ditados popu-
eu tô ocupada, não tá vendo, não?! lares com o corpo, com os corpos e sua polifonia de águas. Água mineral, água
Parei mais adiante para assistir três músicos tocando na rua. Os trabalha- da torneira, água de transeunte brasileiro, água de transeunte estrangeiro,
dores do vlt ainda em construção riam de longe, apontando para a bandeira água de comerciantes brasileiros, de ambulantes brasileiros, água de ambu-
e para o balde. Eu não consegui escutar e eles não tinham água, então dobrei lante estrangeiro, água com saliva de brasileiro, saliva de gringo, saliva de am-
a esquina para entrar na saída A do metrô Carioca, na rua Bittencourt da Silva. bulante, saliva de religioso, saliva de policial militar. Água com testas franzidas.
Isso é por causa da crise do Brasil?!, perguntou um idoso trabalhando como Água com cachaça e com cocaína. Cocaína, cachaça, discursos, impressões
engraxate. Não deixa de ser, respondi. Tem que prender a Dilma, não é? Oi? digitais, trabalhos e origens agregados e diluídos em água para lavar de uma
Tem que prender a safada da Dilma, não é? Respirei. Tinha planejado coletar bandeira seu lema convertido em símbolo de golpe. Entre a coleta, a lavagem,
todo tipo de água e ouvir o que a rua tinha a dizer ao me ver com uma ban- a escrita e as experimentações de exposição oral, fala a fala, mão a mão, gota a
deira verde e amarela e com um balde vermelho. Não aguentei, precisava gota, numa deriva de palavras, a cidade vai compondo a formul-ação de um
perguntar e responder. Por que prendê-la?! E por que safada?! E Cunha?! novo ditado: não se nega receber água de ninguém.
Temer?! Bolsonaro?! Aécio?! Não deveriam estar presos?! Não são safados?!
O homem que tinha o sapato engraxado, fumando maconha, balançou a ca- Para ler a narrativa #2 de Gota, peço que o leitor esteja acompanhado de
beça concordando comigo. Outro senhor, mais ao canto, parou de engraxar água. Em copo ou em garrafa, pouca ou muita, gotas ou litros. E acesse:
um sapato e bravejou: já sei para que serve essa água, é para lavar a sua lín- <www.revistaensaia.com/gota>.
gua, não é?! Entendi que precisava seguir. Gota foi originada no âmbito
Entrei na área do metrô Carioca, perto das escadas rolantes. Pedi a água do projeto Desilhas, orientado
de uma passante. Mas não tem nada! É só uma gota que eu preciso mesmo. pelos professores Livia Flores
Ela entregou a garrafa toda franzida, com a testa também franzida, e foi em- e Ronald Duarte, no ppgav/
bora. Voltei ao Largo da Carioca. O balde já estava cheio. O que fazer com ufrj. A narrativa apresentada
toda aquela água? Treze litros de água, uma bandeira para ser lavada em foi originalmente publicada no
praça pública e outro ditado popular na ponta da saliva: roupa suja se lava em vol. 4, nº 3 da Ensaia, revista de
casa. Era no Largo da Carioca que eu queria terminar a ação. O chão de lá já dramaturgia, performance e es-
tinha recebido gotas dos meus encontros e até cocaína. critas múltiplas organizada por
Dois olhares me fizeram ter cuidado: o bêbado que poderia cobrar a cocaína pesquisadores da UniRio. Para
e o pm que poderia revogar o auxílio à promessa. Ao mesmo tempo quis lavar ali, conhecer o periódico, acesse:
justamente pelos dois olhares, mas na rua chega um momento em que prudência <www.revistaensaia.com>.

Gota 54 | 55
Transporte Olímpico

Programa Vestindo uma roupa de atividade física, utilizar a


estrutura de uma parada de VLT como barra de treinamento.
Alongar e aquecer o corpo numa sequência de exercícios reali-
zada no ponto, entre passantes, árvores, placas e usuários do
trem. Posicionar-se ao lado do veículo, na calçada, e apostar
uma corrida com ele. Correr junto com o VLT, parando e reto-
mando a corrida conforme as paragens e retomadas do veículo.
Ultrapassar e ser ultrapassado. Duração 650 metros e mais al-
guns minutos Fotos Maria Palmeiro (p. 56, 122-127) * Perfor-
mance realizada a partir de proposição de Eleonora Fabião, que
também me presenteou com o título.

56 | 57
Trajando short curto, par de tênis e camisa vermelha de proteção uv, estou tá apostando corrida com o trem, é isso mesmo! Aposto que ele vai ficar é
utilizando a área da Estação Cinelândia do vlt como academia. Após uma tonto na rua. Mas ele ganha? Duvido! O shortinho dele tá demais! Mas é fácil
sequência de exercícios – como polichinelos –, alongo meu corpo nas barras mesmo, ele para toda hora! É o trânsito, né? Tem hora que ele fica paraaaado.
de ferro e vidro; no chão, flexões de marinheiro, que são cadenciadas pelo E também pelo semáforo! Ele vai ficar mais magrinho ainda! Ih… quero ver
sino de um dos trens prestes a seguir; árvores como apoio para esticar os se ele vai atravessar a Presidente Vargas!
membros do corpo; corridas rápidas entre transeuntes e futuros passageiros; O motoqueiro que guia o vlt começa a buzinar e sorrir: bora! Bora!
meio-fio da parada como estepe. Minha ginástica está sendo mirada por se- A condutora prende o sorriso, mas solta a buzina. Policiais e ambulantes do-
guranças do Centro Cultural da Justiça Federal, passantes, turistas, policiais minam a calçada, me empurrando para a beira do trilho. Ao passo que uma
do “Centro Presente”, ciclistas, trabalhadores de carga e vendedores de pipoca passageira ironiza: se morar em Bangu é ótimo, porque ele já vai pela ave-
e picolé. A trilha sonora, além de toda a profusão de vozes que compõe a Ci- nida Brasil, né? Fazendo exercício, é uma beleza! Olha, excelente! Meu Deus
nelândia e dos piiiiii e blem blem do vlt, é um funk pancadão que de alguma do céu! Esse Rio de Janeiro… Olha lá! Ele já cansado e tá mandando parar.
banca de jornal grita: e vai e vai e vai e vai! Gente do céu… (Estamos indo para a Sete de Setembro. Desembarque pelo
Ô, amigão, só evitar de fazer isso aí, tá? Adverte o funcionário do vlt lado direito. We are going to the Sete de Setembro. Exit on the right).
depois que fiz o último exercício: flexões nos trilhos. Agacho-me ao chão, Aceno para o motoqueiro e os passageiros seguem avaliando meu desem-
ao lado do trem, em posição de largada. Uma garota aperta o botão para penho: bem doido, né? Ai, já valeu pelo dia! Ele deve ser de alguma maratona.
embarcar. Agora não dá mais, diz uma passageira dentro do veículo. Pontu- Isso é maluquice! Ó, lá, ele lá na frente! Ele ainda chega primeiro que o vlt.
alidade britânica! Exclama outra. O vlt parte e inicio minha corrida. Dentro Cadê ele? Eu, hein, tá doido?! Mas ele consegue acompanhar, hein? Mas nem
do transporte, as pessoas comentam a ação. Olha lá! Ele tá correndo com o sempre ele tá passando, às vezes ele tá ficando. Mas é isso aí que ele quer,
vlt. Tá indo rápido, olha lá! (Próxima parada: Carioca. Desembarque pelo lado acompanhar. Atenção! A partir de 05/09/16: usuário sujeito à multa no valor
direito). Ah, ele não pega! (Next stop: Carioca. Exit on the right). É cada coisa, de R$ 170, 00 (cento e setenta reais) pelo não pagamento de passagem no vlt.
viu? Parece doido. E ele tá tranquilo, ó, í. Vai pra maratona! Veja só! Todas
essas conversas trafegam com velocidade média de 15 km/h. Do lado de fora,
não posso escutar o que dizem, porém vejo e vivo a engrenagem da cidade.
Enquanto sigo à risca as paradas e acelerações do veículo, disputo o pouco
espaço da calçada, mantendo-me atento para não atropelar ninguém.
À frente do vlt, uma motocicleta o conduz, buzinando para que pedestres
não atravessem os trilhos e, portanto, não sejam atropelados. Uma mulher cruza
mesmo assim, pois as faixas de pedestre estão distantes e os semáforos acen-
dem a luz vermelha por menos tempo que a verde. Não chega, contudo, à outra
margem da avenida. Ela fica ali, nas divisórias de ferro e vidro que separam os
trilhos do asfalto, ambas as áreas planejadas para veículos. Mas logo consegue
atravessar, uma vez que a longa fila de carros e ônibus não se move. A existência
do bonde modernoso não inibe a quantidade de outros meios de transporte.
Meu Deus do céu… Quem tiver na rua vai pensar que ele é maluco! Em
vez de empregar essa energia toda em coisa mais útil, né? Quem tiver na rua
vai dizer: ih, sai da frente, vem um maluco aí! Ele vai correr com o trem? Ele

Transporte Olímpico 58 | 59
Estação Adílio

Programa Nas estações de trem da SuperVia e, principalmente,


dentro dos vagões, carregar junto ao corpo um tecido branco
com aproximadamente 1,80 m de altura cortado diagonalmente em
duas partes iguais, um poema impresso, um carretel de linha
grossa vermelha e uma agulha. Com os materiais, performar com,
para e sobre Adílio Cabral dos Santos, o vendedor ambulante
que foi atropelado por três trens no dia 28 de julho de 2015
na Estação Madureira. A performance é constituída pelos se-
guintes procedimentos: 1) deitar o tecido cortado no chão da
Estação Central do Brasil e, com o auxílio de algum passante,
dar o primeiro ponto de linha vermelha para, então, carregá-lo
junto ao corpo dentro dos vagões; 2) pedir licença aos passa-
geiros e aos vendedores ambulantes e falar sobre Adílio, re-
lembrando o caso e introduzindo a ação; 3) ler o poema “Adí-
lio”, de autoria de Jonatas Onofre; 4) oferecer agulha e linha
grossa vermelha para que os passageiros interessados em cola-
borar com o tributo-ação costurem, ponto a ponto, os dois pe-
daços de tecido, unindo-os; 5) com o tecido costurado, descer
na Estação Madureira e lá, às vistas de todos, pichá-lo com a
inscrição Estação Adílio; 6) levantar, dentro da estação, o
tecido como bandeira, respondendo às possíveis conversas;
7) vestir um colete de trabalho semelhante ao que utilizam os
trabalhadores da SuperVia e ocupar a passarela de acesso à es-
tação, deitando o tecido-corpo no chão; 8) impedir que as pes-
soas pisem no tecido e, claro, sempre conversar sobre Adílio.
Percursos Estações e vagões de trem da SuperVia Duração 5 ho-
ras Fotos André Rodrigues (p. 6, 60, 128-132)

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Estação Adílio, realizada com estruturas discursivas e corporais que se asse- aos trens. Era preciso pedir ajuda para dar o primeiro ponto de linha ver-
melham, inevitavelmente, às práticas dos corpos-ambulantes que vendem, melha e, então, começar a ação dentro dos vagões. Várias pessoas passaram,
pedem, pregam e se apresentam artisticamente em vagões de trem, é uma algumas até por cima do pano, mas ninguém conseguia parar para me ouvir.
ação-tributo em memória do corpo de Adílio Cabral Quando muito, respondiam sobre pressa e sobre não saber costurar.
[A] A trajetória de Adílio pode dos Santos, [A] vendedor ambulante carioca que mor- Uma funcionária da SuperVia me olhou ao chão junto com tecido, agulha
ser conhecida através da crô- reu atropelado nos trilhos da Estação Madureira, onde e carretel de linha vermelha grossa. Tentei chamá-la, mas passou rápido de-
nica “Por cima, não: ‘acima’”, trabalhava diariamente. O corpo de Adílio foi primei- mais. Levantei e perguntei a um segurança do trem se ele poderia me ajudar.
que rendeu ao jornalista Vitor ramente atingindo por um trem do modelo chinês, o Me ouviu e negou sem palavras, não sei se não queria, se não podia ou se
Hugo Brandalise, em 2016, diretão, de mais alta velocidade. Em seguida, já escan- não sabia o que querer. Vários passantes, várias tentativas, muitos vultos. Até
uma menção honrosa no galhado nos trilhos – por onde andava certamente para que uma mulher de 54 anos e que há 54 anos vive no Rio de Janeiro e utiliza
Prêmio Jornalístico Vladmir evitar a apreensão de sua mercadoria – foi atropelado a Central do Brasil, como fez questão de informar, me atendeu. Mesmo res-
Herzorg de Anistia e Direitos pela segunda vez por um trem sem-serviço, que corria, saltando que não entendia nada de costura, assim como eu, aceitou parar
Humanos. O texto deve ser sem passageiros, direto para a Central do Brasil. para tentarmos. Um segurança interveio e disse que eu não poderia estar ali
lido em: <bit.ly/2vqMTMs>. Da Central do Brasil saiu uma ordem que desenca- fazendo aquilo. Conversando com ela e pedindo sua ajuda? Moço, ele não tá
deou a circulação mundial da notícia sobre a morte de atrapalhando nada. Fique tranquilo, só vou dar esse ponto de costura e se-
Adílio: um terceiro trem, dessa vez com passageiros e parado nos trilhos após guiremos. A essa altura, já havia contado o que simbolizava aquele pano e ela,
freagem do condutor, foi autorizado a atropelar pela terceira vez o corpo negro que nunca tinha ouvido falar sobre o caso Adílio, se disse horrorizada: agora
que, trajando roupa branca e carregando sacos de balas, “morreu na contra- eu faço questão de contribuir.
mão atrapalhando o tráfego”. [1] A autorização foi materializada pelo gesto das Posteriormente, embarquei no vagão. Aguardei de pé, no fundo do pri-
mãos de um dos funcionários da empresa SuperVia, gerida pelo grupo Ode- meiro acesso, as portas se fecharem e o trem seguir. No intervalo entre es-
brecht, que é detentor da concessão pública do trem carioca e praticamente um pera e saída da composição, meu corpo com tecido branco e carretel verme-
sinônimo do termo “corrupção” no Brasil. O gesto, que consistiu num abanar lho começou a gerar conversas. O trem deu partida e iniciei com o ritual que
de mãos convocando o condutor do trem a passar por cima de Adílio, com a repeti em todos os vagões e estações durante cinco horas de trabalho: falei
justificativa de não interromper o direito de ir e vir dos usuários, eclodiu uma ca- meu nome, disse o que estava fazendo e, claro, falei sobre Adílio, pedindo
deia de excesso de sentido sobre a cidade maravilhosa onde também explodem licença para participar da viagem, agradecendo de ante-
bueiros e desabam ciclovias. As camadas desse excesso de sentido iniciaram mão aos que quisessem e pudessem escutar e ajudar, como [B] Nascido em 1991 na ci-
ainda na Estação Madureira, com pessoas condenando o gesto e filmando o fazem os vendedores ambulantes ao performarem em dade de Paulista, Pernambuco,
acontecimento, o que fez o caso ganhar repercussão na imprensa internacional. transportes coletivos. Jonatas Onofre é multiartista,
No intuito de realizar em possível colaboração com transeuntes do trem Após a apresentação pessoal, lia sempre o poema “Adí- atuando principalmente na
carioca um gesto de tributo à memória do corpo de Adílio, desenvolvi o pro- lio”, escrito a meu pedido pelo poeta Jonatas Onofre: [B] literatura e na música. Suas pu-
grama anteriormente descrito em dezembro de 2016, mais de 500 dias após blicações incluem livros indi-
a barbárie cometida contra o corpo de Adílio. Iniciei, às 13h30, uma ação-tri- viduais e textos em coletâneas
buto na Estação Central do Brasil. Passei das catracas e fiquei no meio de de poetas. Seu trabalho pode
todos os passantes, observando atentamente cada vendedor ambulante que ser conferido em: <soundcloud.
corria e gritava. Balbuciei o nome “Adílio” a cada inspiração profunda ou sa- [1] Verso da canção “Construção”, de Chico Buarque, com/jonatas-onofre> e <jona-
culejo de pés. Estendi os dois pedaços de pano no chão, numa área de acesso do álbum homônimo lançado em 1971. tasonofre.bandcamp.com>.

Estação Adílio 62 | 63
o corpo, aos músculos, equilibrada dos que gemem e
encardindo às tiras na tua pálpebra rangem
à vista das janelas, de intestino, esquerda, teus dentes,
assim, imagem última do homem que foste sabendo que não podes
de bruços, do perecimento, restarão as roupas, responder,
não tem outra serventia, estás: mal cortadas, fazemos o gesto
que esta: dar passagem à menos que um tatuagens no antebraço, covarde:
corrente elétrica, cão dilacerado nas costas, apagamos, apagam-se
às moscas, na rodagem, nome de mãe, outros umas luzes
ao segundo trem e um pombo pouco depois horrores sabendo que não podes
à vida que não podes atravancar, do esmagamento só teus, nunca alguma defesa,
tu sob rodas, mais sabendo, sim.
um inseto espremido entre gravados, com erro, nós preenchemos o
o apartado dedos, sem unhas, na memória, lugar onde não estás ausente
dos vivos, não com nossos passos, nossa
dos justos, tens permissão a humanidade, a minha, pressa
dos que tem pressa e para a dessa gente, grita nosso preço,
preço, redistribuir em teus ouvidos lotamos esse segundo
do pacote sujo, alguma aspereza, como a que para sempre trem
de balas impregnou a sola de teus últimos esvaziados: e cruzamos tua espinha,
apartado passos “e daí?” teu suspiro,
não podes mais, não tens – sobre & sob a sabendo que não podes tua vez
nunca tiveste - sandália, sem dedos, responder, até a próxima
permissão sem pernas para dentro estação
para escapar das toneladas do vazio
atravancar de ferro e gente, é que se faz carne
nem sem tempo, a palavra
teu próprio sangue as coisas má,
nos trilhos, dessa paisagem do teu vazio,
não tens permissão não podem morto,
para estanca-lo, muito menos esperar do vazio morto dessa
reconduzi-lo que o vento cidade,
como complete onde nos culpamos,
um rio de nojo seu trabalho como irmãos,
voltando e coagule e cuspimos em honra
às veias, a última gota dos incomuns, dos desviados,

Estação Adílio 64 | 65
Quando terminei a primeira leitura do poema e pedi a colaboração, mos- sorriso de indignação, me chamasse para colaborar. Um rapaz, próximo ao
trando a agulha, uma senhora retrocedeu. Agarrou uma criança e disse que homem sem hábitos para costura, pediu que eu voltasse pois ele costuraria.
a cidade está muito perigosa e que eu certamente trabalhava com magia negra. Num vagão de outro trem, outros homens repetiram o gesto do primeiro. Um
Tentei acalmá-la e parti para os assentos seguintes. Duas passageiras costu- deles me disse: acho muito válido isso aí que você tá fazendo, mas eu não vou
raram comigo, uma delas lembrava do caso. Descreveu como se sentiu ao costurar, né? Você sabe, homem não costura… Ué, e eu não sou homem?!
saber da notícia, falou que aquele gesto (a leitura do poema que fiz, a costura Uma passageira, que havia retirado os óculos escuros para me ouvir mais
que ela fazia) era necessário, citando alguma frase de Nietzsche para afirmar atentamente, me chamou com a mão esquerda e costurou o tecido, também
a importância da arte no meio da loucura toda em que vivemos, que a arte avaliando minha prática: eita, mas você não entende nada de costura, né?
é quem lida melhor com a barbárie do mundo, algo mais ou menos assim. Como compra uma agulha grossa dessa? Em seguida, ela deu vários pontos
Agradeci e fui para o lado, abordando outra passageira. A agulha, no entanto, no tecido, alterando o planejamento do programa, que era unir as diagonais.
emperrava no tecido e uma delas questionou: você não entende nada de cos- Perto dela, uma mulher também sabia do caso e pontuou o tecido, me aben-
tura, não é? Essa agulha é muito grande, essa linha muito grossa e esse te- çoando na sequência. Outra passageira, esta profissionalmente costureira,
cido muito duro. Sorri e disse que minhas escolhas foram aprovadas por um também aconselhou que eu trabalhasse com uma linha mais fina, recomen-
vendedor de aviamentos da Saara. A mulher que me acusou feiticeiro, ao ver dando tamanho e marca de agulha. Um homem abriu os olhos e disse que
a dificuldade para costura, disse: Ih, homem, tá bom de tu procurar outro tra- dava muita moral para o meu gesto, voltando a dormir.
balho, porque esse aí não vai dar certo, não! É este trabalho que me faz querer Fora dos trens, falando sobre Adílio em alguma estação, um passante, com
viver e ele já está dando certo. farda da Comlurb, aconselhou qual trem eu deveria pegar para seguir em di-
Criei, depois do primeiro vagão, duas estratégias: 1) sempre perguntava reção à Madureira: aquele ali! É o mais cheio! Vai ter muita gente! Vai ser im-
o nome de cada colaboradora(o) e se ela ou ele sabia ou lembrava do ocor- portante pra você. Ele deu dois pontos de costura. Agradeci e atendi. No trem
rido com Adílio; 2) durante a apresentação oral, observava quais passageiros superlotado, encontrei brecha entre duas meninas que não sabiam do caso.
estavam mais atentos: aquele que retirou o fone de ouvido, aquela que por- Uma foi pesquisar na hora e começou a ler em voz alta o texto “Por cima, não:
ventura se emocionou, ou outro que fazia legal para mim… Era para esses ‘acima’”, do jornalista Vitor Hugo Brandalise. Mais ao lado, se manifestou um
que eu primeiramente me dirigia e solicitava a costura, por considerar que ambulante, com olhos marejados, uma mão com saco de balas no peito e ou-
aceitariam e desencadeariam um fluxo colaborativo. Por vezes acertei, por tra que tocou no meu ombro: ei, eu era amigo do Adílio!
outras não, como no caso da senhora que me acusou de bruxo e só parou de Dentre pessoas recusando e outras me chamando para costurar, uma
reprovar a ação quando uma passageira, costurando o tecido de frente para evangélica me acusou de idolatria e tentou me doutrinar: você deveria lou-
ela, disse: é apenas um ato simbólico. É isso. Simples assim. Um senhor es- var ao senhor. Falei que homenagem não era sinônimo de idolatria e, para
tendeu a mão para mim. Pensei que era um cumprimento, mas ele entregou exemplificar, contrastei com o par rezar/orar, mas a situação piorou e ela
algumas moedas. Devolvi e informei que a única colaboração que peço para o conseguiu alguns adeptos. Prossegui com o trabalho e ela continuou me re-
trabalho, além da escuta, é a costura. Ele colaborou. provando, balançando a cabeça e exclamando sobre mim como se eu já não
Ao longo do trabalho, nos vagões e durante as pausas nas estações, vários estivesse presente. No trem seguinte, ambulantes pararam o serviço para
passageiros estranharam a ação. Muitos recusaram costurar ou ignoraram escutar a ação, voltando a anunciar seus produtos apenas no instante em que
meu pedido. Vários outros conversaram comigo ou entre si, muitos falavam terminei de enunciar Adílio. Uma mulher começou a contar para os demais
sobre a cidade e a necessidade do que chamavam de gestos humanos. Muitos passageiros que chorou quando viu a reação da mãe do Adílio numa reporta-
conversavam, mas não costuravam: alegavam não saber ou não gostar desse gem. Um homem não sabia do caso, mas costurou, dizendo que vivemos um
hábito, como frisou um homem, fazendo com que uma mulher, com um tempo em que as pessoas só querem passar por cima das outras.

Estação Adílio 66 | 67
Na área de embarque de uma das estações, uma mulher me associou a Depois de quase uma hora nesse fluxo, conversando com alguns pas-
um grupo de teatro que atua nos trens, comentando que eu estava diferente santes e instaurando perguntas em outros, um segurança saiu da estação,
e perguntando pela magrinha que anda sempre comigo. Falei que era engano, pedindo que eu parasse de atrapalhar o direito de ir e vir das pessoas. Ironi-
mas ela insistiu, dizendo que já conhecia nossas piadas, mandando parabéns camente, o mesmo argumento utilizado para justificar o injustificável em
ao grupo por estarmos fazendo uma coisa diferente, costura. Perguntei a um 28 de julho de 2015. Carregando o tecido nos ombros, voltei para a estação,
homem, com farda da prefeitura, se ele achava interessante grafitar o pano pegando um trem rumo à Central. Lá, de onde saiu a ordem do terceiro atro-
dentro da Estação Madureira. Disse que não havia nada de errado, mas que pelamento, o mais des-vela-dor da cidade e também do corpo, com toneladas
seria polêmico. Você quer ser polêmico? Prossegui. de ferro e de gente passando por cima de Adílio. Saí da Estação e fui até as
Estação Madureira. Deitei o tecido no chão e deixei que ele se manifes- ruas procurar a tubulação de vento mais próxima com o intuito de amarrar às
tasse por alguns momentos entre trens e pessoas que passam. A costura grades de ferro, com sujeira e graxa, o trabalho coletivo feito para Adílio.
conferiu-lhe um formato triangular, escondendo as dimensões das diagonais. Ao lado da tubulação, contudo, havia dois guardas. Perguntei se havia algum
Vesti um colete semelhante ao utilizado pelos trabalhadores da SuperVia e no problema em fazer aquilo e expliquei que seria apenas para registrar uma ima-
trabalho coletivo pichei Estação Adílio. Levantei do chão, na plataforma, bem gem. Mas o que significa esse trabalho? Por que tem que amarrar o pano ali?
acima dos trilhos onde Adílio morreu, e ergui o trabalho como bandeira. Mo- Eu sou estudante de artes, moço. É um trabalho da faculdade em homenagem
radores da Serrinha vieram perguntar e conversamos. Um homem e seu filho ao Hélio Oiticica, sabe? Ele tinha uns tecidos que se movimentavam, daí tenho
de oito anos vieram perguntar e conversamos. Um guarda da SuperVia in- que registrar uma foto desse material em movimento. Ah, bacana! Mas, olha, a
terferiu, solicitando que eu não fizesse protesto naquela área, pedindo que eu gente não tem comando para autorizar. Volta lá na Estação e procura o chefe
tirasse o tecido do chão. Agora é minha roupa, respondi, colando-o ao corpo da segurança, ele é a cara do Márcio Garcia. Desci e localizei o sósia, mas outro
e continuando a falar sobre o que a cidade fez com Adílio. O segurança disse funcionário interpelou e, ao ouvir a justificativa do meu pedido, disse não. Mas,
que eu estava avisado e que se tratava de uma questão colaborativa: me ajude eu não posso falar com ele? Os outros seguranças me orientaram assim. Tudo
e eu lhe ajudarei – acionando o rádio de comunicação. bem, você quer ouvir não diretamente dele? Porque eu já te disse o que ele vai
Saí da estação e fui para a passarela de acesso, deitando o tecido no meio da te dizer. Tudo bem, respondi, ao passo que o chefe foi chamado. Repeti a expli-
passagem, em horário de pico, impedindo, com as mãos espalmadas para frente, cação e fui prontamente autorizado. Sem dúvidas! Não vou nem passar o rádio.
que ele fosse pisoteado. Depois, com as mãos para trás, deixando que o colete de Só voltar lá e fazer sua fotografia. Bom trabalho lá na faculdade, viu?
guarda imprimisse sua função enquanto meu olhar velava o corpo. Pronunciei Com o consentimento do chefe de segurança, amarrarei o tecido nas gra-
estação adílio, falando por cima, a cada vez que os alto-falantes pronunciavam des de tubulação de ar da Central do Brasil. Por instantes, além de repetir o
Estação Madureira. Crianças pisavam no tecido e adultos se desculpavam. Ho- gesto de adicionar graxa ao corpo, o ferro trouxe o vento dos trilhos, vibrando
mens e mulheres olhavam uma, duas, três vezes para trás e perguntavam entre o nome de Adílio para a cidade que, rapidamente, voltou a esquecê-lo.
si: quem é Adílio? Muita gente pulava o tecido, atendendo ao meu gesto. Um ho-
mem, em particular, se assustou e falou que era absurdo aquele tecido no meio
da passagem às cinco e pouca da tarde. Expliquei minha posição e ele, acalmado,
frisou que continuaria difícil para as pessoas entenderem aquilo. Minha ação ou
a morte de Adílio? Ele seguiu e uma senhora, cristã, não me acusou de idolatria,
mas abençoou a ação. Disse que foi injusto e inaceitável o que aconteceu com
Adílio, mas que, embora minha intenção de fazer justiça com as próprias mãos em
terra fosse bonita, só nos céus ocorreria a justiça à qual ninguém escaparia.

Estação Adílio 68 | 69
Pago 4 e 30

Programa Com um carrinho de supermercado contendo duas almofa-


das de minha casa, um colete de trânsito, um protetor solar,
uma garrafa de água mineral e alguns copos descartáveis, le-
vantar um cartaz com os dizeres: “Pago R$ 4,30 para você andar
no meu carrinho. *Sujeito a condições”. Aos transeuntes inte-
ressados, explicitar as condições: 1) aceitar ser registrado
em foto e em vídeo; 2) fazer, dentro do carrinho, o percurso
entre duas estações de metrô. Percursos Largo do Machado – Ca-
tete; Catete – Largo do Machado; Largo do Machado – Flamengo
Duração 3 horas Fotos André Rodrigues (p. 70, 134-139)

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No dia 2 de abril de 2017, exatamente um ano após o último reajuste e no- do vai e vem de usuários nas escadas rolantes do metrô. Posicionei-me à vista
vamente no fim de semana, a tarifa do metrô aumentou vinte centavos. Na de todos eles e levantei o cartaz com o anúncio, ora apontando-o diretamente
tarde de 3 de abril de 2017, primeiro dia útil após o aumento, agi o mesmo para quem saía do metrô, ora apontando-o para o outro lado do largo.
programa, com a alteração, é claro, do valor de pagamento. Dessa vez o cen- Após inúmeros transeuntes interagirem à distância, uma mulher resolveu
tro de realização foi o Largo do Machado e as opções de translado oferecidas conversar: olha, mas você é malandro, hein? Bom protesto contra o metrô.
foram Largo do Machado/Catete, Catete/Largo do Machado e Largo do Ma- Seria incoerente eu participar, pois não uso o metrô. Acaba que o gasto não
chado/Flamengo. Se na primeira realização eu percorri com o carrinho cerca compensa, tenho impressão que ele liga nada a nada. E outra: não tenho
de 2 km entre minha antiga residência e o Largo da Carioca, agora o objeto trabalho formal e todo custo está fazendo falta. Aliás, de que adianta trabalhar
precário-relacional foi retirado no acervo do curso de Direção Teatral, da formalmente no país onde nem se pode mais se aposentar?! Destaquei que
Escola de Comunicação (ufrj – Campus Praia Vermelha) e conduzido até o me interessava por não-usuários do metrô, mas ela disse que só iria se eu a
Largo do Machado, compreendendo a extensão de 3,5 km de tempo. deixasse em Laranjeiras, onde não há metrô. Falei que não poderia desvir-
Durante o percurso, a maior familiaridade com o objeto e a atenção com os tuar o programa e ela me deu dicas de ordem estética: as letras desse cartaz
desníveis da rua, adquiridos através da primeira experiência, me possibilitaram poderiam estar mais escuras, mais desenhadas, sabe? Você também poderia
estar mais atento aos passantes. Confirmei que a maioria absoluta das pessoas encaixá-lo num suporte de madeira preso ao carrinho, assim ficaria com o
com as quais cruzamos o caminho, eu e o carrinho, conferiu o conteúdo do corpo solto e não cansaria os braços. Agradeci e ela se despediu: vou torcer
objeto, com olhares rápidos ou minuciosos. Muitos franziam a testa, cerravam para que você consiga realizar o trabalho e para que somente pessoas de bom
os olhos ou balançavam a cabeça ao perceberem que as vias pedestres eram coração entrem nesse carrinho.
atravessadas por um carrinho cuja carga se resumia a duas almofadas, uma Imediatamente à ida dela, os homens que vendiam tickets para o Cristo
garrafa de água mineral, um protetor solar, um cartaz e um colete de trânsito. Redentor formaram um círculo em torno do meu trabalho. Expliquei as
Fiz questão de olhar nos olhos das pessoas que fitavam o material. Con- condições e um deles aceitou ser passageiro. Troquei mais algumas palavras
tudo, o olhar delas nunca ultrapassava minhas mãos, isto é, limitava-se até o sobre o percurso, mas ele, irritado e autoritário, ordenou: vambora! Vambora,
limite do carrinho. Inclusive conhecidos passaram por mim sem cumprimen- que eu tô trabalhando! Fomos em direção ao Catete, num caminho onde
tar. Como se meu corpo e o corpo do carrinho constituíssem um só corpo, quase não há espaço: muitos camelôs e pedestres disputando as calçadas.
mas sem rostidão, pois o objeto acumula o destaque no campo perceptivo Um amigo dele nos acompanhou e, enquanto gentilmente me ajudava a
das ruas e deve disparar palavras como subemprego, precariedade, vulnerabi- subir e descer algumas rampas, falava que nunca tinha reparado que as dis-
lidade social… Talvez assim ocorra com os demais e inúmeros trabalhadores tâncias entre as estações eram tão curtas e que a tarifa não levava em conta o
de carrinho que atuam nas ruas da cidade: eu mesmo esbarrei em alguns e fator distância. Chegamos à Estação Catete e eles voltaram ao Largo do Ma-
percebia o meu olhar direcionado para seus objetos. A diferença é que havia chado para trabalhar. Vários trabalhadores dos comércios, oficial e ambulante,
sempre um cumprimento entre eles e eu, como se nossos objetos de trabalho além de seguranças, caixas e serventes, pediam que eu mostrasse o cartaz e
nos identificasse como pertencentes a uma mesma communitas, enquanto os perguntavam as condições. A maioria afirmava que, caso não estivesse tra-
demais passantes pareciam resumir nossos corpos aos nossos carrinhos. balhando, iria. Um vendedor de livros, no entanto, disse que não iria, mas a
Chegando ao Largo do Machado, aproximadamente às 14h30, girei o olhar esposa, sim, pois era desse jeito, maluca. Você tá querendo dizer que eu sou
por 360 graus e logo me deparei com um grupo considerável de crianças maluco, é isso? Quero dizer que todos nós que estamos na rua, anunciando,
cheirando cola, uma viatura de polícia, idosos sentados à sombra, um grupo trabalhando e movimentando a cidade, somos malucos.
de homens abordando transeuntes com bilhetes para o Cristo Redentor, um Mantive-me de costas para as escadas rolantes da saída da estação, fazendo
floriculturista, dois ou três homens pedindo doações para o GreenPeace, além com que os usuários virassem de costas para ler o anúncio. Aos que entravam,

Pago 4 e 30 72 | 73
também virava o cartaz para as respectivas direções, mas poucas pessoas inte- faz parte. O chão da cidade, as rodas do carrinho e o seu peso é que fazem
ragiam. Virei para o ambulante mais próximo, o qual, dentre outros trabalha- meu corpo. Ao término do trajeto ela quis recusar o pagamento. Vá tomar
dores, já explanava o programa da ação para os passantes curiosos, e disse que uma cervejinha, eu não participei pelo dinheiro. Foi por tudo, menos pelo di-
aquela estação parecia difícil para negociar. Ele me perguntou onde eu já havia nheiro. Anúncio é anúncio, acordo é acordo. Deixo os 30 centavos, então. De
trabalhado e concluiu: ah! No Centro deve ter sido ótimo, passa todo tipo de modo algum. Pois, então, vou lá pagar a passagem do metrô.
gente. Aqui, meu filho, é Zona Sul. Você não sabe que o povo tem mais fres- Ela embarcou na Estação Largo do Machado, onde o grupo de vendedores
curas? Um passageiro, saindo do metrô, embora considerasse aquilo divertido, de tickets estava ainda maior. Eles me anunciavam entre si: é ele que paga
disse que tinha pernas. Outra desacelerou, tirou os óculos, leu o cartaz e parou pra fazer o rolê! Vai lá! Um deles veio e questionou o valor. Disse que há anos
a alguns metros. Sem esboçar alguma reação, ela se manteve ali por quase não utilizava o metrô e, por isso, nem sabia da tarifa. Não vou porque estou
quarenta minutos, até o momento em que alguém entrou no carrinho. trabalhando, mas eu gostei disso, porque pega nossa inteligência, hein? A
Uma camelô estrangeira, descarregadores de abastecimento para os super- gente tem que pensar além de sorrir. E não deixa de ser um bom protesto,
mercados e até um pai com a esposa e quatro filhos demonstraram interesse, disse, voltando a abordar os pedestres. Dois meninos com cola nas mãos se
porém seus horários de trabalho impuseram indisponibilidade. Todos pergunta- aproximaram. Antes que eu falasse, um dos ofertadores interveio: isso aí é pra
vam até que horas eu pagaria, porque participariam assim que estivessem livres. adulto, não pode criança. Eles dispersaram e o vendedor prosseguiu: essas
Três senhoras, a princípio incrédulas, fizeram um círculo em torno do carrinho. crianças são todas malucas, cara! Um perigo constante! Posteriormente, um
Quanto você está ganhando para fazer isso? Mas ele está perdendo, não? E esse grupo de quatro amigas parou e começou a discutir quem andaria no carri-
carrinho vai comportar a gente? Isso aí é pra criança andar! A cada explicação, nho. A mãe de uma delas se uniu à conversa, alertando que o percurso até a
elas riam e conversavam até revelarem, para minha surpresa, que eram des- Estação Flamengo seria longo e que, portanto, o valor era baixo. Mas é esse
conhecidas entre si. Haviam parado, simultaneamente, para comentar sobre o valor que a gente pagaria se fosse pra lá de metrô, alertou uma das amigas.
cartaz e o carrinho. Uma delas entrou no metrô, a outra voltou a trabalhar e a Uma delas insistia que deveriam aceitar, pois acreditava que estavam sendo
terceira decidiu entrar no carrinho, com notável desaprovação de sua filha. filmadas à distância. Tenho certeza que isso é coisa do Luciano Huck e que, se
Enquanto a filha andava distante de nós com vergonha do que fazíamos, eu entrar, vou ganhar muito dinheiro. Deixei claro que ela ganharia apenas 4
ela me dizia que aquilo era uma oportunidade de loucura e de coragem, um e 30 e que eu não trabalhava para o Luciano Huck, tampouco trabalharia. Ela
atravessamento que mudou a rotina do dia e que a permitia desopilar tudo insistia na versão e, no impasse, uma garota, que já havia passado pelo Largo,
de uma vez. A cada rampa e a cada curva exclamava que eu era mesmo um voltou para entrar no carrinho.
maluco e que ela era ainda mais por estar ali dentro. Os camelôs do Catete Preciso me organizar, porque estou sem calcinha. E dura! Essa grana vai
nos aplaudiam e gritavam conseguiu! Ele conseguiu! Olhaí, o verdeiro me- ajudar a inteirar o maço de cigarros que há dias eu não consigo comprar. Ao
trô na superfície! Ela, apontando os celulares em ação, dizia que viraríamos longo do caminho, enquanto ela filmava o percurso, pediu que eu tivesse
estrelas do YouTube. Duas senhoras passaram por nós, uma pilotando um atenção, pois, quando criança, já se acidentara fazendo aquilo. Era turista, de
carrinho motorizado e a outra sendo conduzida numa cadeira de rodas por Londrina e estava no Rio desde o carnaval. Vou embora amanhã, porque não
uma enfermeira. À última, sugeriu que o carrinho de supermercado poderia dá mais. O dinheiro acabou e não consigo mais. Alguém mantém dinheiro e
ser outra opção. A mim, garantiu que indicaria o veículo aos seus pacientes arruma trabalho nesta cidade? Perguntou ela, dizendo que era professora de
cadeirantes. Alguns policiais e guardas fitavam nossa ação e ela temeu que artes, assim como sou professor de português. Português? Mas você não é
fôssemos advertidos. Ríamos a cada risada que nos atravessava e ela agrade- artista? Estudo artes da cena, sim. Ah, claro, eu sabia que isso era uma perfor-
cia a experiência, mandando eu descansar ou dividir o peso. Meus braços se mance! Conversamos também sobre a diferença entre bairros tão próximos:
imbricavam ao carrinho que, por sua vez, constituía a minha imagem. O peso no caminho para o Flamengo as calçadas estavam mais livres e limpas, quase

Pago 4 e 30 74 | 75
não havia ambulantes e o comércio não era popular. Só a acessibilidade que
continua horrível, né? – considerava a cada vez que o carrinho tropeçava no
asfalto, propondo que eu escrevesse um trabalho sobre isso. Desviei não
apenas de buracos, mas de homens que secavam a minha passageira e quase
atropelavam o carrinho.
Crianças passeando em carrinhos de bebê acenavam para ela e um homem
nos ofereceu uma amostra grátis de bolo. Paramos e conversamos sobre limão,
chocolate e trabalho. Ele panfletando. Eu performando. Ela passeando. Os três
trabalhando, mas sem empregos formais. Seguimos e o foco da filmagem dela
se transferiu das rampas e buracos para as grafitagens. No fim do trajeto, ela
disse que pensaria mais sobre acessibilidade. Dei cinco reais e trinta e pedi
um real de troco. Ai, nem acredito que vou comprar minha carteira de cigarro!
Voltamos a conversar um pouco sobre a falta de complementaridade entre
ausência de dinheiro e viver no Rio de Janeiro. Na parede ao nosso lado, na
frente da Estação Flamengo, ela apontou para mais alguns grafites. Um deles
dizia: sem mimimi. Vou lá pegar o meu metrô e depois comprar o meu cigarro,
ela despediu-se. Vou lá devolver o meu companheiro de trabalho!

Pago 4 e 30
Massa Ré: variação clt

Programa Um grupo de brasileiros caminha lentamente, silencio-


samente e de costas pelas ruas da cidade. Na mão esquerda er-
guida para cima, cada membro expõe sua carteira de trabalho.
Nas mãos direitas, espalmadas para baixo, pedras portuguesas
que estavam soltas nas calçadas da cidade. As mãos não seguram
as pedras, estas seguem apoiadas pelas palmas abertas. O grupo
caminha em pontos da cidade onde há concentração de trabalha-
dores, como o mercado popular da Saara. Os pontos de início e
término da caminhada são preestabelecidos em consonância a fa-
tos históricos. Percurso Cinelândia – Panteão Duque de Caxias
Duração 3 horas Performers-colaboradores Allan Corsa, Dani
Câmara, Flávia Naves, Murilo Ferrari, Oquitavio Neto, Pedro
Ambrosoli, Pedro Caetano Eboli e Rogério Gonçalves
Fotos Magno Scavone (p. 78, 140-145)

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Abril de 2017, Cinelândia. O grupo uniformiza o gesto pendular com os das lojas: vão trabalhar, bando de loucos! Outros correm para a frente das
braços, baixando a mão direita com pedra e erguendo a mão esquerda com lojas e confessam: a gente queria andar junto, mas estamos trabalhando. Es-
documentação, e forma um paredão para iniciar a caminhada de costas. Am- tamos trabalhando também. Um menino indaga, de mãos dadas com a mãe:
bulantes, garçons, turistas, passantes, policiais militares, frequentadores e ô, tio, o que quer dizer isso, aí? O que é pra você? É… na minha casa todo
moradores da praça assistem e comentam a ação. Olha a pedra! Vão fazer mundo perdeu o emprego. Vocês também?
uma obra, é? Agora pode andar com documento assim na rua? E esse docu- Essas pedras é que tá difícil de entender. Olha o microchip e o cartão de
mento tem serventia? E tem seguridade? memória! Olha a rosca! Quem vai comer a minha rosca? Pra comer minha
O paredão se afunila em corredor por conta de inúmeras barracas de arte- rosca paga 3 reais. É 3 reais! Aí, magrão, tem uma vaguinha lá na pedreira,
sanato com produtos expostos e trabalhadores comerciando. Uma candom- não? O suco acompanha o salgado, hein? Cinco reais! É por isso que eu vou
blecista se aproxima e passa a andar de ré conosco: no lugar da pedra e da continuar trabalhando por conta própria. O que é isso aí que eu não entendi
documentação, um tambor. Há um ônibus parado com vários PMs, que nos nada? A carteira pra pedir o trabalho e a pedra pra dá-lhe uma pedrada se o
apontam e sorriem. Na calçada, outras perguntas se movimentam: vão até cara não der o trabalho, é isso? Praça da República: policiais militares estão
onde? Tão dando trabalho onde? Ei, ô, leva a minha carteira! encostados nas grades do Campo de Santana, um deles fuma. Entre um
Largo da Carioca. Há poucos espaços livres no chão, que é um imenso trago e outro, nos diz: é isso aí, galera! Apoio total! Mandem ver! Seguimos
shopping de mercadorias. Ei, rapaz! Se pisar, vai pagar, hein? Uma mulher de costas na Presidente Vargas até o prédio do Ministério do Trabalho. Foi
grita fora temer e cola adesivos com esses dizeres em alguns de nós. Sem desativado faz tempo. Tem só um órgão aqui, mas tá tudo fechado, informa
pedir permissão. Agradece e vai. Jornais, tapiocas, roupas, açaí, hot dog, sal- um segurança patrimonial.
gado mais refresco, malas, latão é 3,99! Olha o chip! Corto chip! A rua inteira A performer Flávia Naves sugeriu que, ao término da caminhada, invertês-
é uma quermesse. Chegamos à Uruguaiana. semos a direção do andar e a posição das mãos. Novo paredão: mãos direitas
Um homem, deitado num banco de cimento, vai virando todo o corpo, para o alto, segurando as pedras; mãos esquerdas para baixo, exibindo as
parte a parte, para nos acompanhar. Compro Ouro, informam mulheres e carteiras. Caminhada de frente. Um gari ergue sua vassoura para o alto e dá
homens-placas. Atenção! vlt em circulação. Se eu pegar minha carteira posso uma gargalhada. Panteão Duque de Caxias, em frente ao antigo Ministério da
caminhar junto? Sim, venha! Não tem ninguém pra olhar a mercadoria! Ven- Guerra, obra e órgão do Estado Novo. Ao alto, estátua com soldado a cavalo.
de-se apostilas para concursos. Profusão de produtos e de mascates, o paredão No chão, performers com pedras levantadas para o alto. Vem correndo um
virou um corredor estreito. O que significa isso? – perguntam duas ambulan- capitão da polícia militar: ei! Me deem as pedras! Mas qual o problema de
tes. O que é pra vocês? Ué, a gente que tá perguntando! Vendo bonsai! Olha caminhar com pedras? Atos preparatórios não são infrações. Entreguem as
o pendrive. Películas de vidro, bolsas, meias e cuecas, quem quer? Quem vai pedras, é para o bem de vocês. As pessoas podem interpretar mal o trabalho
levar? Essa pedra é pra matar o Temer? Deve ser pra jogar na Dilma! de vocês. Vocês podem ser confundidos com black blocs, a cidade está cheia
Metrô Uruguaiana. Essa carteira tem que ser assinada! Um vendedor deles. Vamos, este é o meu trabalho!
de carteiras anuncia num alto-falante: fo-ra te-mer. Um ambulante puxa a
carteira de trabalho do bolso, cata uma pedra do chão e caminha de costas
conosco. Avenida Presidente Vargas. Ih, ó os malucos com as pedras! Policiais
Militares descansam em todas as calçadas, há manifestações programadas
em toda a cidade. Olha o chocolate! Essa pedra é o Temer? Apedreja ele! Qual
é a revolta? Sem vi-o-lên-cia! Onde tem trabalho? Cês trabalham na pedreira,
é? Rua Senhor dos Passos, mercado popular da Saara. Trabalhadores gritam

Massa Ré: variação clt 80 | 81


Abate

Programa Com uma máscara de boi em arame eletroluminescente,


utilizar os serviços de trem e metrô da cidade do Rio de Ja-
neiro nos horários de pico. Cumprir todo o ritual: fila para
compra de bilhete, acesso, espera e tráfego. Manter o contato
visual sempre que for encarado por alguém, mas conversar ape-
nas quando outros passageiros iniciarem o diálogo. Percursos
Central – General Osório (manhã, metrô) e Carioca – Madureira
(noite, metrô e SuperVia) Duração total 3 horas Máscara
Rafael Turatti Fotos Tânia Grillo (p. 146, 150-153) e Thiago
Lacaz (p. 82, 147-149)

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Manhã de sexta-feira, Estação Central do Brasil. Um mar de gente desembarca vezes seu rosto faz um movimento como se fosse cuspir, porém retrocede.
dos trens e corre para o subsolo do metrô. Visto a máscara, mas a massa em À esquerda do meu corpo, um homem não consegue parar de me encarar.
coreografia-correria é inalcançável, tendo o seu ritmo demarcado pelas estei- Mesmo quando algum passageiro nos atravessa ou coloca uma bolsa entre
ras rolantes, pelas fitas de acesso à bilheteria, pelas catracas de embarque e nossos rostos, ele pende o corpo para o lado e segue me fitando. Sigo fitando
por cercas e seguranças que controlam a entrada nos trens. Desço as escadas cada um deles, mas nenhuma conversa se verbaliza. Desembarco, passo por
e um novo mar de gente corre em direção ao metrô. Seguranças me olham e escadas rolantes, esteiras, entro em novos vagões. Sempre esbarrado e fitado.
começam a acionar os rádios de comunicação. Passageiros se cutucam e me Testas se franzem sequencialmente. Um homem tira o fone do ouvido e per-
olham. Alguns falam coisas inaudíveis e se olham. Outros riem, acenam ou gunta: você é do energético? Balanço a cabeça e ele prosegue: estou tentando
balançam a cabeça, franzindo as testas e soltando ar pelas narinas. entender, mas, olha, realmente já se vê de tudo nesse metrô.
Fila para compra de bilhetes. Cada cabine é demarcada por uma coluna de Começo de noite, estação de metrô Carioca. Antes das catracas, um se-
gente em inércia nervosa. Uma mulher cobre um dos olhos com a mão di- gurança me interrompe. Meu superior lhe viu passar e me acionou. Não é
reita, outra bate freneticamente o calcanhar direito no chão e faz todo o corpo permitido acessar o metrô com máscaras. Minha máscara não é fechada, não
tremer. Um homem solta um ar tremido pelos lábios, fazendo um barulho de estou infringindo nenhuma regra. Eu conheço as regras do metrô. Eu estou
motor. Outro coça a barba com rapidez e aspereza, por mais de um minuto. informando que você não vai utilizar o metrô desse jeito, ordena o segurança,
Muitos estão com os pescoços curvados para os celulares, outros retiram com rosto avermelhado e dedo em riste apontado para minha cabeça. Por
e colocam os fones de ouvido e ainda há outros que mantêm o corpo reto que não? Ele pagou como todo mundo e está fazendo um trabalho artístico.
olhando para as cabines. Alguns corpos me olham com estranhamento, ou- Qual o problema?, interfere uma usuária do metrô. Ela faz com que outro se-
tros riem e registram fotos nos celulares. A espera é objetivamente cotidiana: gurança reavalie a situação: na verdade, o problema não é a máscara. A ques-
não parece perturbada pelo emaranhado de vozes e passos que invade a esta- tão é não machucar ninguém. O senhor vai embarcar no horário de maior
ção a cada comboio de gente correndo para fazer baldeação. O que causaria lotação. Pedimos, por favor, que tenha cuidado.
uma cabeça de gado? O que todos querem é comprar e seguir. De fato, deixo passar dois trens superlotados. O terceiro para, as portas se
Na bilheteria, a funcionária me percebe por pouco. Após as catracas, um abrem e penso em deixá-lo ir. Um homem embarca de costas, colocando a
segurança me aborda. Não é permitido utilizar o metrô assim. Assim? Isso, bolsa para frente do corpo. Não tenho bolsa, mas sigo sua artimanha. A ponta
mascarado. Minha máscara não é fechada, não estou infringindo nenhuma da minha máscara quase bate na porta, não fossem duas mulheres que se
lei. Para onde o senhor está indo? Trabalhar. Trabalhar? Eu trabalho assim. esmagam entre meu corpo e a saída. Aponto a cabeça para cima. Elas duas
Tudo bem, bom trabalho! Só cuidado para não machucar ninguém, ok? Ok, começam a discutir para saber quem empurrou quem. Uma terceira mulher
tamo junto! Dentro dos vagões, as poucas pessoas que conversam falam da sorri. Como eu, ela encaixa os dedos na saída do alto-falante – único espaço
chuva: quando chove é um alívio. Metade das pessoas não consegue pegar sem mãos. Desembarco na Central do Brasil e sigo até a bilheteria da SuperVia.
o metrô. Metade?! Mas olha como a gente tá! Estou de frente a uma porta, Passo das catracas e nenhum segurança me interpela. Dois policiais militares
imprensado entre as barras de ferro e quatro ou cinco passageiros. À direita, também trabalham dentro da estação. Adiante, mais quatro seguranças. Há três
sentados no banco, quase no limite da outra porta, um homem e uma mu- ou quatro trens parados. A cada porta, quinze a vinte pessoas estão paradas de-
lher riem e me apontam. Estamos falando mesmo de você!, ele diz, tocando cidindo se embarcam ou se já garantem uma vaga para o próximo. Circulo por
a lateral da cabeça com o dedo indicador e apontando-a rapidamente para toda a plataforma. Ambulantes vendem doces caseiros, pipocas, balas, fones de
mim, como se batesse continência. Perto dele há um senhor que, em pé, me ouvido, pele e cerveja. Um deles me cumprimenta: e valeu, boi!
olha de soslaio, arregalando as narinas no movimento de expiração. Sentada Embarco no penúltimo vagão do trem em direção a Japeri. Trata-se de um
de frente para mim está uma senhora que me olha de um jeito parecido, por semidireto, com poucas paradas. Decido que desembarcarei em Madureira.

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Na plataforma, alguns homens discutem qual o termo mais apropriado para pessoas conversam! A gente passa mais tempo juntos, né?, expõe outra pas-
me definir: Corno! Viado! Bambi! Corno ou bambi, o negócio é que esse aí é sageira. Meu querido, aqui é padrão Japeri. A gente leva horas se esmagando,
assumido. Pessoas riem dentro e fora do vagão. Pergunto a uma mulher qual mas se diverte. Já já entra alguém vendendo uma gelada! Uma passageira,
o lado de desembarque para a Estação Madureira. Porta da esquerda! Me- ainda comparando o metrô com o trem, diz que o transporte, feito a cidade, é
lhor já chegar junto. Será que consigo? Consegue. Nem se preocupe, que na desigual: no meu trabalho, mesmo! Trabalho num hospital lá em Botafogo. Há
próxima estação até eu vou parar lá, mesmo sem querer, ela brinca. Consigo uma regra clara: pela porta da frente, só entram os médicos e clientes. De en-
e, lá fora, os homens continuam a me adjetivar. Ao meu lado, um homem fermeiro pra baixo, só pode entrar pelos fundos.
indigna-se e fica do meu lado: eles nem param pra entender o propósito do Fico em silêncio, soltando forte o ar pelas narinas. Do meio do vagão, um
trabalho e já vão falando besteira. É com ele que sigo conversando. braço se estica e a mulher me cutuca: o que você acha que vai mudar fazendo
Seu amigo questiona: mas qual seria o propósito? Ou ele saiu assim de essas ações? Solto um riso de alegria nervosa: conversar com você já está mu-
bobeira? Estou trabalhando, respondo, entrando na conversa sobre mim. Que dando muito pra mim. Agradeça por ter o direito de ter coragem de andar
trabalho é esse, homem? Pergunta uma passageira. Antes de responder, tento assim. Se hoje fosse os anos 70, você ia ser preso no ato, ela diz, redirecionando
encontrar um apoio para o corpo, mas todas as barras de ferro estão conges- a pauta da conversa. O cenário político do país é avaliado. Figuras políticas são
tionadas. Cada braço e cada perna esbarram em outros braços e pernas. No avaliadas. Pessoas retiram os fones de ouvido e entram na discussão. Passagei-
emaranhado de gente, encontro a solução: há dois homens que conseguem ros me perguntam o que acho sobre Dilma, Lula e Temer, nessa ordem. Res-
encostar os dedos no ferro ou no teto da composição e utilizam o braço es- pondo com sinceridade e com cautela, tentando acolher as divergentes opiniões.
tendido como suporte para o outro braço. Mimetizo a gambiarra corporal e Mas você concorda que o golpe de hoje é mais brando que o de antes, não é?,
converso: às vezes trabalho dentro dos transportes, realizando algumas ações. questiona a mesma mulher. É difícil afirmar o que a gente ainda está tentando
E você sempre utiliza esse boi? O que você já fez no trem? Falo sobre entender. E o Bolsonaro?, pergunta a funcionária do hospital com regras escra-
Estação Adílio e algumas pessoas lembram do caso. Uma mulher relativiza vocratas. Por esse tipo de trabalho que ele faz, claro que ele não gosta dele, fala
a barbárie: mas ele estava nos trilhos, né? O que a SuperVia poderia fazer? categoricamente a mulher que relativizou o crime contra Adílio. Você está com-
O que ela poderia não fazer é atropelar o homem de pletamente certa, respondo. Ela passa a defender o projeto político do militar.
[A] O termo “Figura” é citado novo, responde outra passageira. Aos poucos, a conversa Trocamos algumas palavras sobre direitos humanos, mas o trem fica ainda
em referência ao trabalho de ganha adeptos e uma inimaginável roda ensaia se for- mais lotado e é impossível manter as conversas olho no olho, mesmo de sos-
Flávia Naves. A performer, mar, mas se desmancha sucessivas vezes. Por inúmeras laio. Chegamos em Madureira? É a próxima! – quase todo o vagão responde
que também é Caio, é mestre vezes o trem para. No sentido oposto, outros trens tam- em coro, para minha surpresa. Aviso à colaboradora que, imprensada em
em performance pelo ppgca/ bém estão parados ou com velocidade reduzida. Engar- algum dos vagões, fotografa a ação. Ih, tem mais boi infiltrado por aí, brinca
uff, e investiga modos de rafamento de trens, já viu?! Só que na frente desse trem uma passageira. Vai abrir, chegou Madureira, outro coro me avisa. Pessoal,
desarticular processos nor- só tem o trilho livre, vai entender! – brinca um homem. muito obrigado por me acolherem, por me ouvirem, por falarem. Voltem
matizadores através da ação Eita! Agora é que vai encher em São Cristóvão. Em Ma- bem pra casa! As pessoas se despedem. Alguns voltam a colocar os fones de
de performar Figuras. O leitor dureira, então, aí é que vai ficar gostoso! Adverte uma ouvido. Ela não queria saber o que você quer mudar? A minha sexta-feira já
pode conferir seu texto “corpo mulher. O homem que ficou do meu lado pergunta o foi diferente. Aliás, vai ser difícil barrar essa cabeça de boi – brinca o amigo do
Figura”, presente no livro que acho sobre os transportes do Rio. Decido descrever homem que esteve do meu lado. Cuidado com o chifre na hora de descer, ele
Subversões do protocolo: uso im- o passeio que fiz com a figura gado no metrô. [A] continua. E com o vão! É enorme. Dá uns dez do vão do metrô!
próprio (ppgca/uff, 2016) em: Ah! Por acaso o metrô tava tão apertado e lento assim?
<bit.ly/2uk1p7V>. Balanço a cabeça e complemento: aqui, pelo menos, as

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Transporte Olímpico: revezamento

Programa Quatro performers, vestidos como atletas, utilizam a


área de uma das paradas do VLT como academia de ginástica. Na
parte da frente de suas camisas está inscrito, como folha de
identificação de maratona, “Lê gado olímpico”. Nas costas de
cada um, com fonte tipográfica dos Jogos Olímpicos, estão des-
critos alguns dos crimes olímpicos cometidos pelo Estado:
1) Operação Hashtag: Valdir Pereira da Rocha, morto por lin-
chamento; 2) Ciclovia Tim Maia: 44 milhões, 20 metros, 2 mor-
tos; 3) Investimentos: 40 bilhões, 11 operários mortos; 4) Ci-
dade olímpica: 17 dias de jogos, 31 mortos, 95 baleados. Após
os exercícios, três performers embarcam no VLT, validando o
cartão de tarifa. O quarto corre do lado de fora, disputando
com o trem. A cada estação, um performer desembarca para cor-
rer e o anterior embarca. Seguem nesse revezamento, sempre va-
lidando seus cartões de passagem. Performers-colaboradores
Andrêas Gatto, Gunnar Borges e Maria Palmeiro Duração aproxi-
madamente 3 km e alguns minutos Fotos Thiago Lacaz (p. 88,
91, 154-159)

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Desde quando vocês fazem esse protesto?, aproximou-se uma funcionária do
vlt, enquanto alongávamos nossos corpos na barra de ferro e vidro do ponto.
Protesto?! Só vamos correr. Vocês são atletas? Performers. Performers?! Ah…
Olha, só cuidado para não quebrar o vidro, está bem? Aquelas duas barras
ali, nas rampas do final do ponto, foram quebradas na última manifestação.
O pessoal corre quebrando tudo.
[…]
Ué?! Mas vocês não vão correr? Por que estão embarcando no vlt? Per-
guntou a funcionária ao Andrêas, o último a validar o cartão.
Ah, você consegue pegar na maior moleza! – gritou um homem, na cal-
çada, ao me ver disparar ao lado do vlt.
Dois mortos? Mas foi bem mais que isso, hein?, disse uma passageira ao
ler a camisa de Gunnar.
O legado não pode parar? Perguntou um passageiro a Maria, ao vê-la re-
embarcar no trem.

O lê gado não pode parar.

Transporte Olímpico: revezamento 90 | 91


Dialogismo

Programa Contatar pessoas desconhecidas via e-mail: desconhe-


cidos indicados por amigos, leitores deste livro, conhecidos
de leitores deste livro... Agendar encontros em paradas de
ônibus ou estações de metrô, trem e barca, num horário e per-
curso que sejam rotineiros dessas pessoas (por exemplo: o ho-
rário e a linha de transporte para ir ao trabalho). Aguardar
as pessoas nos locais combinados com venda nos olhos ou com os
olhos simplesmente fechados. Acompanhar o percurso no trans-
porte coletivo, conversando sobre a cidade do Rio de Janeiro,
ouvindo o que essas pessoas têm a dizer sobre a cidade e, de
modo particular, sobre a sua rotina na cidade. Gravar as con-
versas com o consentimento dos colaboradores. Se for negado,
escrever sobre o encontro logo após o término da ação. Solici-
tar, no final do trajeto-conversa, que o colaborador decida se
posso vê-lo ou não. A partir dos escritos ou gravações, sele-
cionar dizeres sobre a cidade do Rio de Janeiro. Montar pai-
néis em lambe-lambe com as frases e fixá-los em muros da ci-
dade: pontos de ônibus, entorno das estações de metrô, bares,
centros culturais, ruínas... A autoria das frases não será
creditada ao falante, nem à performance, mas às linhas de
transporte que mediaram/mediarão os encontros (exemplo: 433 –
Vila Isabel – Prado Júnior).

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Este programa é uma estação em construção. Comecei a realizá-lo em março de O programa Dialogismo, assim como a performance Gota, coincide com um
2016, período da minha chegada no Rio de Janeiro e do início do mestrado no aspecto teórico sobre a arte da performance que tem sido minha aposta e,
ppgac/ufrj. Ainda consegui combinar encontros com três desconhecidos, indi- possivelmente, encaminhe minha pesquisa daqui para frente. Tenho acredi-
cados por amigos ou conhecidos, mas depois me entreguei de corpo e língua aos tado que a realização de performances urbanas, com todas as negociações
demais programas. Nas três ocasiões, estive vendado com um tecido preto. corpo a corpo na cidade e um forte vínculo com a oralidade – a qual pode não
O primeiro encontro iniciou na área externa da estação de metrô Fla- fazer parte do programa do artista, mas expressa-se na geração de conversas
mengo. Minha colaboradora chegou 30 minutos após o combinado e, nesse entre os passantes que se deparam com as ações extracotidianas – traz à tona
intervalo, pessoas perguntaram se eu queria ajuda; outras se aproximaram um dramacentrismo, isto é, uma centralidade do agir social. Em uma lógica
do meu corpo e permaneceram em silêncio e alguns homens, enfurecidos, cotidiana tão demarcada pelo acúmulo de manifestações verbais e visuais, que
chegaram a dizer: pro cara tá brincando de cabra cega a essa hora, enquanto condicionam a circulação e molduram o comportamento dos corpos, perfor-
a gente tá indo trabalhar, ele só pode ser um petralha. Quando minha co- mances urbanas podem tornar centrais o corpo a corpo, as ações entre os cor-
laboradora chegou, seguimos para a Estação São Cristóvão – até então um pos, a performatividade da cidade.
ambiente inédito para o meu corpo. Quando as portas se abriram, a luz do No desejo de que este livro siga cartografando encontros na cidade, com a
sol me indicou que se tratava de uma área ampla e aberta: meu corpo travou. cidade e sobre a cidade, gostaria de propor ao leitor um convite à colaboração
Ué, você não é ator?! Vambora que eu tô atrasada, disse ela, puxando-me pelo a partir do programa Dialogismo. Se for do seu interesse, peço gentilmente
braço numa corrida que só terminou no fim das escadas de saída. que entre em contato através do e-mail dialogismorj@gmail.com, para que
O segundo foi na rua Riachuelo, centro da cidade, nas proximidades do possamos combinar nosso encontro em movimento. Se puder e se quiser,
Bairro de Fátima. A espera durou 45 minutos: um garoto gritou olá ao pé do também pode emprestar o livro e repassar, consequentemente, o e-mail para
meu ouvido; uma mulher mandou eu me ligar; um gato (acho que era um uma amiga ou amigo. Seus amigos, meus ainda desconhecidos concidadãos.
gato) roçou nas minhas pernas durante 15 minutos; um homem perguntou
mototáxi?!; uma sacola de plástico pousou no meu peito e duas pessoas
conversaram sobre beterraba. O colaborador, no entanto, nunca apareceu.
Mesmo após os 45 minutos de encontro com a rua.
O terceiro encontro teve início num ponto de ônibus da Praça Paris e
seguimos, eu e o colaborador, até a UniRio (Praia Vermelha). O cobrador per-
guntou se eu era cego. Não, ele é artista. Ah, é?! Conversamos sobre estudar
artes no Rio e sobre qualidade de vida. Falei que estava um pouco assustado
com os custos. Ele disse que a coisa havia piorado, mas ainda assim valeria a
pena: em qual outro lugar você pode pegar um ônibus e chegar rápido numa
praia, numa cachoeira ou numa floresta? Ainda dá para não enlouquecer
aqui. Depois, ele tirou uma selfie nossa e avisou que desceríamos no próximo
ponto. Quando dei por mim, ele já estava na calçada. O cobrador pediu que
o motorista esperasse. Bati a cabeça em duas barras de ferro e, finalmente no
asfalto, percebi que recebi o troco da passagem a menos.

Dialogismo 94 | 95
reembarque
Massa Ré 98 | 99
Pago 4 e 10 106 | 107
Troncal, uma palestra sobre a palavra no Rio de Janeiro 112 | 113
Gota 116 | 117
Transporte Olímpico 122 | 123
Estação Adílio 128 | 129
Pago 4 e 30 134 | 135
Massa Ré: variação clt 140 | 141
Abate 146 | 147
Transporte Olímpico: revezamento 154 | 155
158 | 159
Editora Temporária – 2ª edição

idealização e realização
Clara Meliande e Tania Grillo
produção Maria Inês Vale

Este projeto foi contemplado no


programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016.

Por uma mobilidade performativa


isbn 978-85-94126-02-3
1ª edição, Rio de Janeiro, 2017
Distribuição gratuita

FRANCISCO COSTA
autoria Elilson Gomes do Nascimento
edição Clara Meliande e Tania Grillo
design Thiago Lacaz

Os colaboradores e participantes das ações


concordaram com o uso de suas imagens.
Quanto aos transeuntes, o artista se
esforçou para informar sobre o registro.

tipografia Nexus Sans e Nexus Typewriter


impressão Indigo Elilson (Recife, 1991) vive no Rio de
papel ColorPlus Roma e Offset Janeiro. Acompanhe seus projetos
tiragem 150 exemplares em: www.elilson.com

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