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Almeida Prado e Anton Bruckner: a música “quase

programática” em duas épocas distintas

MS-105 - A - Tópicos Especiais em Música Popular - Música Popular


Brasileira: indústria cultural e identidade

Professor José Roberto Zan

Ivan Corilow

RA. 831103
Almeida Prado e Anton Bruckner: a música “quase programática”
em duas épocas distintas

1. Religiosidade e expressão em Almeida Prado e Bruckner

A arte de expressar atmosferas extra musicais tem sido uma das


características dos compositores da música instrumental erudita. Anton Bruckner,
compositor do último período romântico, era católico fervoroso e tinha a declarada
intenção de transmitir também nas suas sinfonias aquilo que era muito mais
facilmente perceptível em outros gêneros utilizados por ele - salmos, missas,
motetos, cantatas, onde a combinação de texto e música mais facilmente exprimiam
as intenções do compositor. No Romantismo um gênero musical estava em alta: a
música programática: “música de uma narrativa ou espécie de descrição, o termo é
freqüentemente estendido para toda a música que tenta representar conceitos extra
musicais sem recorrer a palavras cantadas. O termo "música de programa" foi
introduzido por Liszt, que também inventou a expressão poema sinfônico para
descrever o que é, talvez, o exemplo mais característico dela. Ele definiu um
programa como um prefácio 'adicionado a uma peça de música instrumental, por
meio da qual o compositor pretende guardar o ouvinte contra uma interpretação
errada poética, e para dirigir sua atenção para a idéia poética da totalidade ou de
uma parte específica dele ". Muito poucos dos programas de poemas sinfônicos
próprios de Liszt são de caráter narrativo. Ele não considerava a música como um
meio direto de objetos que descrevem, mas ele pensou que a música poderia
colocar o ouvinte no mesmo estado de espírito, como poderiam os próprios
objetos1”. Bruckner não foi um compositor de música programática, não lançou mão
diretamente deste recurso nas suas sinfonias. KUNG (2008) 2 declara, referindo-se a
Bruckner: “...seu processo de composição é pelo menos, de acordo com expressos
testemunhos próprios, inspirado, acompanhado e determinado por ideias, imagens e
representações extra musicais....não elabora programas, mas utiliza determinados
conteúdos representativos como “tijolos” para suas criações musicais autônomas”.

1The Digital Grove Dictionary, 1911 Edition - CD-ROM. (2 CD Set). Published by CD


Sheet Music (HL.220502).St. Verona, NJ, 2008

2 KUNG, Hans. Música y Religión: Mozart, Wagner, Bruckner. Trotta, Madrid, 2008. p.
125, 126.
Portanto, foi através de estilo próprio e gestos sonoros3 característicos que ele
incorporou ao seu discurso musical expressões de júbilo, louvor à criação divina,
luto, tristeza, contemplação, meditação, quietude.

“Arcos Sonoros da Catedral Anton Bruckner” (1996), composta pelo


compositor brasileiro Almeida Prado, revisita alguns gestos sonoros de Bruckner e
foi escrita quando se comemorava o centenário da sua morte. Além da primeira
audição, foi interpretada várias vezes pela Sinfônica de Campinas e obteve o prêmio
APCA como melhor trabalho sinfônico experimental de 1996 4. A obra foi escrita na
última fase do compositor, correspondendo ao seu pleno amadurecimento e
consequentemente a um período de síntese, podendo ser classificada como “Tonal
Livre”. Nela são encontrados procedimentos da fase anterior, a “pós-moderna”, como
citações, colagens e revisitações a formas tradicionais. Também há uma fusão de
materiais que se aproxima do surreal 5 (A peça pode ser ouvida em
http://www.youtube.com/watch?v=CKjyz5-1n_4). Outra característica sempre
constante na vida e obra do compositor é o sentimento místico e religioso - em
entrevista a Jurandy Valença ele diz: “A música é uma linguagem subjetiva, abstrata.
Então, através dessa abstração, tentei passar uma certa alegoria, uma certa emoção
que levasse as pessoas a uma vibração com Deus.” 6 Desta forma é notória então a
presença da temática religiosa na obra e no pensamento dos dois compositores.
Vale ainda ressaltar que Almeida Prado nunca foi um compositor que adotasse
princípios técnicos estanques, mantendo-se livre para tomar os recursos necessários
a cada momento.7

Na fase em que o compositor se encontrava, a última, de maior liberdade,


de incorporar o neo-romantismo, de rever e recorrer a muitos procedimentos

3 MANNIS (2011) define gesto musical como um termo de sentido amplo. Entre as
diversas definições dadas por ele, destacamos: “maneira pela qual uma imagem, ou uma idéia, ou um

conceito são representados sonoramente e/ou musicalmente”

4 MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fonteira,
2005. p. 403.

5 SCARDUELLI, Fabio e FIORINI, Carlos Fernando. A obra para violão solo de Almeida Prado: um
panorama histórico, estético e idiomático. Trabalho apresentado no I Simpósio Acadêmico de Violão da
Embap, 2007. p. 3.
6 VALENÇA, Jurandy. Almeida Prado, uma luz para os ouvidos. Correio Popular, Campinas, 17 de fev.
De 1993.
7 NEVES, José Maria. Música brasileira contemporânea. São Paulo, Ricordi, 1981. p. 188.
composicionais já utilizados por ele, de adotar o surreal, o incoerente, é possível
levantar uma questão: ele estava simplesmente determinado a descrever alguns
gestos de Bruckner, buscando uma relação qualquer com ele ou realmente propunha
uma nova obra, expressando as suas atmosferas e gestos sonoros, porém com
intenção e pensamento novos, coerentes com o conjunto da sua própria obra?

2. Relações e Ferramentas

Neste texto estabelecemos uma relação do presente tema com os artigos


“Canção do Exílio” de Lorenzo Mammi e “De “A preta do acarajé” (Dorival Caymmi) a
“Carioca” (Chico Buarque): canção popular e modernização capitalista no Brasil”, de
Walter Garcia, buscando neles “inspiração” no tocante à sua construção, fazendo
comparações sobre algumas proposições e recorrendo a ferramentas analíticas
neles encontradas que são úteis à análise e considerações sobre esta obra de
Almeida Prado.

As ideias e ferramentas de análise que pudemos extrair dos textos são:

• Narração de acontecimentos e dados históricos já acompanhados de


elementos de análise, dando uma fluência melhor ao texto.

• Contextualização da obra na fase e estilo do autor.

• Descrição clara e detalhada da obra (aqui ativemo-nos a alguns trechos


representativos).

• Procura de elementos indicadores de hipóteses, relacionando, ao mesmo


tempo, as duas obras.

• Comparação dos aspectos harmônicos.

• Análise sob os pontos de vista estésico e poiético, estabelendo assim as


relações dos vários procedimentos composicionais entre si próprios e entre as
atmosferas que se desejam expressar.

• Posicionamento de certo distanciamento pós análise, juntando as peças e


tentando enxergar o todo, a intenção , não se deixando levar pelo óbvio e
expressando opinião pessoal.
3. Atmosferas e Gestos Sonoros

A primeira sinfonia de Bruckner foi completada em 1866 e ele continuou a


escrevê-las até pouco tempo antes de sua morte, em 1896. Reações antagônicas,
de admiração e rejeição foram geradas pelas obras, o que pode ter sido a
motivação de várias revisões posteriores feitas pelo compositor. Embora não
programáticas, o próprio Bruckner cita alguns trechos de suas sinfonias como
expressões de alegria, tristeza e dores, chegando a referir-se à “coda” do primeiro
movimento da oitava sinfonia como “a hora dos mortos” 8. Estas e outras expressões
estão frequentemente relacionadas com os gestos característicos do compositor,
sendo por meio deles concebidas, o que nos leva agora a considerar alguns
exemplos dos seus gestos e atmosferas e como eles são interpretados por Almeida
Prado.

Bruckner cresceu junto a montanhas e vastas florestas e o seu louvor à


natureza criada9 é expresso através de um de seus gestos mais característicos, que
inspirou o título da peça de Almeida Prado - denominado de "majestosos crescendos
acumulados", é formado por fragmentos temáticos obsessivamente reiterados 10
escritos em grandes crescendos, normalmente seguidos de afrouxamento,
lembrando assim a figura de um grande arco sonoro. É o louvor expresso de forma
monumental através destes crescendos que se afrouxam e vão reaparecendo em
seguida com maior intensidade. Este gesto aparece em toda a obra sinfônica de
Bruckner e Almeida Prado relê este gesto três vezes na sua peça. Detalharemos a
terceira aparição, antes de um grande uníssono em “tutti”. Com o crescendo e clímax
mais intenso do que as duas primeiras aparições, a mesma atmosfera expressa por
Bruckner aparece aqui, porém com procedimentos composicionais diferentes. São
construídos três planos sonoros- o primeiro em arpejos alternando duas tonalidades
nas clarinetas, o segundo, um ritmo em ostinato tocado pelo tímpano e o terceiro,
uma melodia mais expressiva nos violoncelos e contrabaixos com os intervalos entre
cada nota aumentando aos poucos e atingindo uma forte intensidade antes dos
8 TRANCHEFORT, François-René. Guia da música sinfônica- Anton Bruckner. Tradução de Laura
Lúcia da Costa Braga. Rio de Janeiro, 1986. Editora Nova Fronteira. p. 161.
9 SEROTSKY, Paul. Notes: Bruckner (1824-1896) – Symphony Nº 9.
http://www.musicweb-international.com/Programme_Notes/bruckner_sym9.htm

10 GAULT, Dermot. The New Bruckner- Compositional Development and the


Dynamics of Revision. Ashgate Publishing Limited, 2011. p. 17
primeiros instrumentos. O clímax então atingido nos remete a um segundo gesto de
Bruckner: o uso de figuras incisivas nos metais tocados juntos com toda a massa
orquestral acompanhados de figurações sinuosas, como que pequenas ondas de
notas rápidas nas cordas agudas, tudo numa forte intensidade. Aqui Almeida Prado
faz duas modificações, porém mantendo agora uma sequência harmônica mais
tradicional, próxima da ultilizada por Bruckner- os metais tocam notas longas,
imitando um órgão, instrumento no qual Bruckner se especializara, e as cordas
agudas tocam notas não tão rápidas, porém incisivas, cortantes, com intervalos
grandes entre si, desempenhando o papel anteriormento feito pelos metais em
Bruckner.

Falando em harmonia, cabe aqui uma comparação: Lorenzzo Mammi fala


da melodia modal de “Sabiá”, nos moldes de Villa-Lobos que, segundo ele recorria a
uma harmonia mais simples que a de Tom Jobim, usando frequentemente
sequências tradicionais de acordes e notas acrescentadas com caráter mais
timbrístico e expressivo. Nas suas sinfonias Bruckner é influenciado pelos
cromatismos de Wagner, que estava em evidência, mas mantinha-se ao mesmo
tempo fiel, entre outros elementos, à harmonia de compositores contemporâneos e
recentes como Brahms, Schubert e Beethoven. Almeida Prado utiliza um sistema
harmônico diferente em cada uma das três partes da obra, ora mantendo-se fiel ao
passado, ora relendo-o, ora rompendo com ele. Na primeira parte o principal
procedimento utilizado é o tonalismo livre. Assim denominado pelo próprio
compositor, estão presentes neste sistema acordes da harmonia tradicional, porém
sem obedecer necessariamente as progressões harmônicas e encadeamentos do
sistema tonal. Os acordes, arpejos e melodias baseados nas tonalidades podem se
agrupar de forma justaposta ou sobreposta, sem a necessidade de um centro tonal.
Também podem ser incluídos os clusters, o que pode trazer mais nebulosidade à
harmonia. Uma das consequências deste sistema é a possibilidade de construir e
alternar atmosferas ou imagens nebulosas e claras. É possível notar também no
decorrer da primeira parte um aumento gradativo das imagens claras, como se
Almeida Prado quisesse expressar um “crescendo de clareamentos”, ampliando a
ideia de Bruckner de crescendo em intensidade sonora. A predominância de
harmonias em relação a melodias também é notada e é aqui onde há um maior
número de gestos revisitados por Almeida Prado.
Na segunda parte, o “Adagio”, é onde encontramos uma harmonia mais
atrelada a Bruckner e ao Romantismo, embora com certa liberdade. Durante toda
esta parte são ouvidos acordes tradicionais, às vezes com notas acrescentadas,
porém com uma progressão harmônica mais livre. É onde podemos perceber o neo-
romantismo. Também aparece mais um gesto expressando uma atmosfera
bruckneriana: melodia basicamente nos primeiros violinos e acompanhamento em
estilo cordal11 nas outras cordas. Ao contrário da primeira parte, este é o momento
de meditação e contemplação. SEROTSKY (2011) referindo-se aos adagios de
Bruckner diz: “...cada adagio é o coração da sua respectiva sinfonia: é aqui que o
melódico encontra-se com o monumental, o rapsódico romântico funde-se com o
austero sinfonista- num adagio de Bruckner o crente simples ajoelha-se para orar na
maior catedral de todas”. Este gesto não ocorre somente nos adagios e também é
descrito como passagens contrastantes “como uma oração”, presentes em trechos
das quatro primeiras sinfonias de Bruckner. São passagens em estilo cordal, nas
cordas, aparentemente separadas do seu contrexto imediato, incorporando uma
função de passagem responsiva no discurso musical. Aparentemente derivadas das
Missas, elas ocorrem quando o texto pede expressão concentrada e quietude
meditativa12. No Adagio de Almeida Prado, auxiliado pela harmonia, mas expresso
principalmente pela pouca movimentação da melodia e do acompanhamento e pela
dinâmica em piano, este gesto traz a sensação de tranquilidade, repouso, quietude,
estabilidade e atemporalidade.

A terceira parte, “Vivo”, é a mais distante da harmonia bruckneriana: é


formada por figurações em ostinato em compasso quinário. Os intervalos entre as
notas destas figurações são de oitava inicialmente, logo acrescendo-se quintas,
quartas, terças e sextas, nonas, segundas menores e maiores, trítonos, nesta
ordem. Intervalos continuam sendo acrescidos, assim como vem acontecendo com
grupos instrumentais desde o início até tornar-se difícil qualquer distinção harmônica
e de figurações. É a atmosfera de júbilo profuso. Quanto à forma há uma alusão aos
Scherzos de Bruckner devido à presença de ostinatos e grande massa orquestral.

Durante dez anos Bruckner viveu em St. Florian trabalhando como

11 O estilo cordal é a escrita vertical, por blocos de acordes com pouca movimentação, como um coral
luterano, por exemplo.
12 GAULT, Dermot. The New Bruckner- Compositional Development and the
Dynamics of Revision. Ashgate Publishing Limited, 2011. p. 19
professor e organista, tornado-se um renomado instrumentista. Esta experiência
influenciou-o como compositor e trouxe um novo componente à sua escrita,
particularmente à orquestracão de suas sinfonias - a mudança brusca de grupos
instrumentais da orquestra como se fosse uma troca de registros do órgão. Este
recurso torna-se bastante útil para expressar uma mudanca repentina de atmosfera.
Um exemplo disto são as passagens "como uma oração", orquestradas com
instrumentos diferentes do trecho imediatamente anterior, produzindo a sensação de
passagem responsiva ou mudança de atmosfera. Almeida Prado recorre a este
gesto, o último a ser comentado aqui, na primeira parte de sua obra, logo depois do
primeiro dos crescendos acumulados não só modificando a atmosfera do crescendo,
como transformando aos poucos a nova atmosfera através de rápidas mudanças
não só nos grupos instrumentais como nos tipos de acordes.

4. Concluindo

É difícil mensurar o sucesso (ou não) da nossa proposição de relacionar


dois textos sobre música popular no Brasil com os compositores presentes no nosso
projeto de pesquisa. Não sei se mais penoso do que encontrar e relacionar ideias
de melodias, harmonias e textos além do aparente e do óbvio, o que tão
brilhantemente foi alcançado por Lorenzo Mammi e Walter Garcia.

Seja através de textos, melodias, música instrumental, pintura,


movimentos ou qualquer expressão artística, o ato de descrever, representar ou
exprimir sentimentos e atmosferas chega próximo à sublimação quando feito com
aplicação e talento por verdadeiros artistas.

Acredito que Almeida Prado obteve sucesso no seu projeto em “Arcos


Sonoros da Catedral Anton Bruckner”; esta análise demonstra os meios pelos quais
ele percebe e interpreta Bruckner com originalidade e maestria ao relacionar
presente e passado, austeridade formal e liberdade, mantendo-se coerente com a
sua obra como um todo e com o seu misticismo e religiosidade.
Bibliografia

GAULT, Dermot. The New Bruckner- Compositional Development and the Dynamics
of Revision. Ashgate Publishing Limited, 2011

KUNG, Hans. Música y Religión: Mozart, Wagner, Bruckner. Trotta, Madrid, 2008.

MANNIS, José Augusto. Processo criativo: do material à concretização,


compreendendo interpretação-performance. II Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ,
2011, Resumo.

MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fonteira,
2005.

SCARDUELLI, Fabio e FIORINI, Carlos Fernando. A obra para violão solo de Almeida
Prado: um panorama histórico, estético e idiomático. Trabalho apresentado no I Simpósio
Acadêmico de Violão da Embap, 2007.

SEROTSKY, Paul. Notes: Bruckner (1824-1896) – Symphony Nº 9.


http://www.musicweb-international.com/Programme_Notes/bruckner_sym9.htm

The Digital Grove Dictionary, 1911 Edition - CD-ROM. (2 CD Set). Published by CD


Sheet Music (HL.220502).St. Verona, NJ, 2008.

VALENÇA, Jurandy. Almeida Prado, uma luz para os ouvidos. Correio Popular,
Campinas, 17 de fev. De 1993.

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