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A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"
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JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO
O embaraço crítico
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O sítio de Rouen
" Ver BENEDICT, Philip. O cenário em que Montaigne situa os curiosos fatos narrados
Rouen during lhe Wars of em seu ensaio era catastrófico. Quando a regente Catarina de Médicis
Religion. Cambridge University
Press, 1981, pp. 1-45, e decidiu enviar seu filho, o rei Carlos IX, à época um garoto de 12 anos,
MOLLAT, Michel (dir.). a Rouen, havia cerca de seis meses que a cidade fora tomada pelos
Histoire de Rouco. Toulouse,
Edouard Privat Editeur, 1979.
protestantes, causando uma série de problemas à coroa". Em primeiro
lugar, a sedição dos habitantes protestantes da capital da Normandia
"-Sobre o cerco de Rouen, ver
CHERUEL, André. "Siege
era uma ameaça à politica de tolerância religiosa que a rainha tentava
de Rouen en 1562". Revoe implantar na França, com a ajuda do Chanceler Michel de L'Hospital;
de Rouco et de Normandie. em segundo lugar, o cerco à cidade custava caro aos cofres reais, pois
Dix-huitième année. Rouco,
Imprimerie de A. Péron, 1850, tnn número expressivo de soldados e armamentos havia sido enviado
pp. 169-179 ; BEAURAIN, para combater os insurgentes, sem sucesso; finalmente, o longo sítio
Narcisse. La Porte Saint-
Hilaire. Episodes d'Histoire
à cidade provocava problemas de abastecimento em Paris, em razão
Locale. Rouen, Imprimerie das dificuldades de navegação sobre o rio Sena, o mesmo que passava
Léon Deshays, 1880, pp. 19- por Rouen. Após frustradas tentativas de armistício, o exército real
29 ; FLOQUET, A. Histoire
du Parlement de Normandie. investiu violentamente sobre a cidade até conseguir abrir uma brecha
Rouen, Edouard Frere Editeur, no muro, na altura da porta Saint Hilaire, no dia 25 de outubro de
MDCCCXL, Tome II, pp.
380 ssq. ; MOLLAT, Michel
1562. Três dias depois, o rei entra na cidade, simbolizando a retomada
(dir). Op. cit., pp. 179-203. do poder político, militar e religioso. Todos os testemunhos oculares
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no país dos canibais. Esta informação é fornecida en passant, mas se Laroux, 1897, pp. 241-242.
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revela preciosa para nós, pois tal curiosidade não poderia se explicar
se o cenário real do encontro com os canibais não fosse uma entrada
real, com tudo o que isso implicava em luxo e cerimonial.
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cultura cristã, de maneira que se fixou em doze o número de grupos Universitaires de France,
de estrangeiros cativos. O objetivo era criar uma associação entre o rei 1928; GUENÉE, Bernard
&LEHOUX, Françoise. Les
francês e a figura do Cristo (e seus doze apóstolos) ou do Messias (e as entrées royalesfrançaises de 1328
doze tribos de Israel), com base numa ideologia de caráter nacionalista à 1515. Paris, Editions du
fabricada por humanistas a serviço da monarquia, como justificativa CNRS, 1968.
para o projeto francês de expansão geopolítica, em âmbito americano, 24Uma das mais significativas
e de proeminência política, em âmbito europeu 24. ilustrações dessa ideologia
se deu durante a entrada
Dentre os grupos de "nações estrangeiras" exibidos em Bordeaux em Rouen de Henrique H
naquela ocasião, havia três formados por índios brasileiros. O encontro e Catarina de Médicis nos
dias 1° e 2 de outubro de
se deu da seguinte maneira: o representante de cada um dos doze 1550, através de alegorias
grupos subiu ao palanque do rei e fez, em sua lingua nativa, uma e de espetáculos como uma
arenga" ao monarca francês. Esses discursos eram traduzidos por encenação teatral em escala
natural (posteriormente
intérpretes franceses. Os testemunhos oculares desse fato não fazem batizada de "festa brasileira"
nenhuma alusão ao conteúdo dos discursos e nem mencionam qualquer pela historiografia francesa)
e uma naumaquia (simulação
reação inusitada dos presentes aos mesmos. O primeiro escrivão do
de um combate naval). Pela
Parlamento de Bordeaux, maitreJacques de Pontac, fez uma descrição abundância de elementos
minuciosa da entrada. Ele registrou, por exemplo, pouco antes do para analise e pela relevância
histórica do acontecimento,
início do desfile do corpo social da cidade, um incidente envolvendo considerado por especialistas
o primeiro presidente do Parlamento de Bordeaux, Jacques Benoist de como a mais espetacular das
Lagebaston, e o próprio rei, o adolescente Carlos IX, então com quinze entradas franceses do século
XVI, o assunto merece que se
anos. Entediado com o longo e cansativo discurso de boas-vindas que lhe dedique todo um artigo,
Lagebaston pronunciava, Carlos IX interrompeu-o bruscamente e, o que esperamos poder fazer
oportunamente.
levantando-se de sua poltrona, fez uma breve mas incisiva declaração
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Os argumentos apresentados até aqui em favor da tese segundo <, 11 n'y a eut rien de
remarquable jusques à
a qual Montaigne blefou ao escrever seu ensaio sobre os canibais Bordeatuc, ois la despence et
brasileiros, especialmente no que se refere ao cenário do encontro les inventions surmonterent
dos índios com o monarca francês, encontram confirmação em outro toutes les atures. Là trois cens
chevaux se presenterent au
episódio acontecido durante a estadia do rei em Bordeaux. Aos 11 Roi, douze bandes de Grecs,
de abril de 1565, dois dias após a entrada propriamente dita, teve Turcs, Arabes, Egyptiens,
Canariens, Mores, Ethiopiens,
lugar, em sessão solene no Parlamento de Bordeaux, uma cerimônia Indiens, Taprobaniens,
conhecida como "lit de justice". Esta consistia em um encontro entre o Cannibales, Margajats et
rei, autoridade máxima da justiça, e os magistrados locais, encarregados Thaupinambous ; desquels les
chefs firent leur interprete. II
de aplicar as leis e executar as ordenações e decretos reais. A cerimônia y eut d'autres magnificences
foi instituída pelo avô de Carlos IX, Francisco 1, em 1527, e seu nome moina dignes du mestier de
l'historien. ». D'AUBIGNÉ,
deriva dos longos bancos ("/its") sobre os quais se sentava a audiência 34. Agrippa. Histoire Universelle
O rei se colocava acima de todos, sobre um estrado ricamente decorado [1612-1620]. Tome II, livre
e sob o pálio que simbolizava suas prerrogativas divinas. A origem quatriesme, chapitre V, p. 227.
da palavra se deve ao fato de que outrora as assembléias das cortes 34 Ver HANLEY, Sarah. Le
de justiça se reuniam, duas vezes ao ano, numa quarta-feira, quando Lit de Justice des Reis de France.
Paris, Aubier, 1991.
o presidente fazia a crítica da justiça e dos juízes. A r alavra francesa
,
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" Lagebaston era acusado pelos mercuriak deriva do latim mercurialis, e foi tomada como adjetivo da
católicos, que eram maioria
na região, de ser indulgente
palavra mer credi (quarta-feira). O "lit de justice" de Carlos IX seguiu
com os protestantes e de não a tradição, pois foi realizado numa quarta-feira. Durante a sessão,
aplicar corretamente as sansões o rei geralmente cobrava, através do seu porta-voz, o Chanceler, a
aos reformistas, previstas
em certos decretos reais, correta aplicação da justiça, arbitrava processos difíceis e também
Infringindo a autoridade do ouvia as "remonstrances", que eram críticas e sugestões feitas para
presidente do Parlamento,
François de Peruse Descars,
o aperfeiçoamento das instituições judiciárias. Naqueles anos, a
grande senechal da Guiana, monarquia encontrava dificuldade em fazer o Parlamento de Bordeaux
interrompeu ruidosamente aplicar devidamente os decretos reais, em razão de divergências
uma assembléia do Parlamento
que Lagebaston presidia. Este políticas internas ligadas ao conflito entre católicos e protestantes. A
dissolveu a reunião e conseguiu sessão foi aberta com um breve pronunciamento do rei, que passou em
mandar evacuar o afrontador
e seu séquito. Dias depois, a
seguida a palavra ao Chanceler Michel de L'Hospital, encarregado de
cena se repetiu. Lagebaston admoestar os parlamentares recalcitrantes. Montaigne estava presente
acusou então um grupo de à sessão, enquanto conselheiro, e foi um dos alvos de L'Hospital.
parlamentares, que teriam se
aliado ao arcebispo da cidade e Primeiramente, pelo fato de ter-se envolvido, dois anos antes, numa
a algumas lideranças políticas querela entre o presidente Lagebaston e o lugar-tenente Descars,
da região, de tramarem sua
destituição, entre eles o
autoridade militar em serviço na região", em seguida, pelo fato de estar
jovem conselheiro Michel de nos preparativos para o casamento com a filha de um dos presidentes
Montaigne. Chamado para dar do Parlamento, Joseph de La Chassaigne, o que geralmente não
explicações, Montaigne recua,
não sem antes fazer críticas era bem-visto pela monarquia, na medida em que os casamentos
à gestão de Lagebaston. O "arranjados" entre famílias de burgueses enobrecidos que ocupavam
incidente é contornado, em
parte provavelmente devido
cargos nos parlamentos, como era o caso dos Eyquem de Montaigne
aos laços de amizade entre a e os De La Chassaigne, tendiam a fortalecer a influência política desse
família de Montaigne (uma segmento social já economicamente importante, em prejuízo dos
das mais tradicionais daquele
parlamento) e Lagebaston. interesses reais 36. L'Hospital iniciou sua mercurial citando o exemplo
Mas o assunto será de antigos reis gregos, sucessores de Alexandre, os quais teriam
relembrado, sem declinação
de nomes, por L'Hospital
mudado de opinião a respeito da suposta "barbárie" dos romanos ao
durante sua mercurial, observarem, do alto de um promontório, a inteligente ordenação das
Ver o texto do discurso de fileiras de soldados do exército inimigo. Do mesmo modo, acrescenta
L'Hospital no tomo II do
Ceremonial françois, publicado L'Hospital, se algum estrangeiro observasse a organização daquela
por Théodore e Denys corte de justiça não diria que se tratava de uma corte de bárbaros,
Godefroy, em 1674. Sobre a
intervenção de Montaigne,
como havia antigamente no país, mas de franceses, um povo civilizado.
ver HAUCHECORNE, F. A metáfora soava irônica aos ouvidos dos parlamentares bordeleses,
"Une intervention ignorée acusados posteriormente pelo chanceler de serem indisciplinados
de Montaigne au Parlement
de Bordeawc .. Bibliothèque e inconseqüentes, por quererem se colocar acima da autoridade do
d'Humanisme et Renaissance, rei, da rainha e do seu conselho, criando obstáculos à execução dos
tomo IX, pp. 164-168.
decretos e interpretando-os da maneira que lhes convinha, além de
Montaigne estava noivo de protagonizarem cenas que feriam o decoro parlamentar.
Françoise de La Chassaigne,
com quem iria casar-se pouco
Ora, basta iriciar a leitura "Dos Canibais" (I, 31) para se dar
tempo depois, no dia 23 de conta que essa mesma metáfora foi utilizada por Montaigne para incitar
setembro de 1565. L'Hospital seu leitor a refletir sobre a relatividade dos conceitos de "bárbaro" e
estava certamente a par dos
projetos matrimoniais das "selvagem". Antes de ir buscar na "Vida de Pyrrhus", biografia do rei
duas famílias de parlamentares grego escrita por Plutarco 37, a metáfora de que precisava para iniciar
bordeleses e faz alusão ao
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sua defesa dos índios, Montaigne a ouvia primeiramente pela boca de fato dizendo que se alguém
quisesse saber dos nomes dos
Michel de L'Hospital, no Palácio de l'Ombrière, sede do Parlamento parlamentares presentemente
de Bordeaux. O chanceler iniciou assim sua mercurial: implicados, ele poderia
informar : . Il y en a aussi qui
sont grandement scandalisez
Et incontinent ledis Chancelier, après avoir salué le Roy de faire des mariages par
et s'être remis en la chaire, a dis qu'aucun qui ons cydevant force, 8c quand on sçait
quelque heretiere, quant &
tenu le lieu qu'il tient ons consommé leurs propos à louer la quant, c'est pour Monsieur
justice, l'institution des Parlemens et l'autorité d'iceux, qui le Conseiller, on passe outre
étoit une chose louable, mais qu'il dirois ce qui lui semblerois nonobstant les inhibitions, je
ne nommeray pas ceux qui en
propre et convenable à celui; et qu'il y avois eu des grands sant chargez à présent, mais si
Roys successeurs d'Alexandre, [à] sçavoir le Roy des Epirotes vous voulez communiquer avec
moy je vous les nommeray ..
et le Roy de Massedonien, lesquels ont eu guerre contre les GODEFROY, Théodore e
Romains, et étant approchés prés le camp desdits Romains, Denys. Le Ceremonialfrançoá,
etant avertis par un découvreur qu'ils avoient au camp desdits tomo II , p . 582. Grifo nosso.
Romains, et iceux Romains marchoient en bataille, ils eurent " PLUTARCO. Les vice des
envie de les voir et à ces fins monterent en un lieu eminent &mames ilustres. Traduction de
Jacques Amyot. Edition établie
0111 ils virent marcher les dits Romains en si bon equipage et et annotée par Gérard Walter.
ordre qu'ils dirent incontinent: Voila une armée qui marche Paris, Gallimard, 1951, p. 886.
non à la Barbare mais à la grecque. Paulemile [Paulo Emílio]
après avoir vaincu les Massedoniens fis un grand banquet
lequel ordonna et fit sa place au milieu et disoit que c'étoit
vu meshuy d'ordonner une armée comme un festin, à pareille
raison s'il y avoit icy quelques Etrangers qui vissens cet ordre ils
diroient que ce n'est point une Cour des Barbares, comme ils
etoient anciennement en ce pays, mais une Cour des Français.
Les Roys predecesseurs ons eté imitateurs des Romains et faits
meilleures plusieurs de leurs François de faire."
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Conclusão
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