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A arte do blefe:

Montaigne e o "mito do bom selvagem"

José Alexandrino de Souza Filho

José Alexandrino de Souza Filho é professor de língua e literatura francesas


da Universidade Federal da Paraíba. É doutor em literatura francesa
pela Université Michel de Montaigne (Bordeaux 3), onde defendeu a
tese "Civilisation et Barbarie en France au temps de Montaigne", sob
orientação de Prof. Claude-Gilbert Dubois.
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

Este artigo é dedicado, num primeiro momento, à análise


e discussão do episódio da visita dos índios canibais brasileiros à
França, tal como o escritor e filósofo Michel de Montaigne o descreve
no ensaio "Dos Canibais". Nosso objetivo é demonstrar que ele foi
inventado a partir de determinados fatos históricos, os quais o ensaísta
alterou em prol dos seus objetivos literários, intelectuais e políticos.
Historicamente falando, a visita e, sobretudo, a "conversação" com
os indígenas é um blefe; literariamente, é uma pequena obra-prima
de sagacidade e imaginação criadora. Num segundo momento,
propomo-nos trazer à luz, com base em documentos, as verdadeiras
circunstâncias históricas que serviram de inspiração ao ensaísta francês,
qual o suporte bibliográfico de que se serviu e como esses elementos
aparecem no texto.
i Étienme Jodelle (1532?-1573) Montaigne não foi o primeiro francês a elogiar a vida natural e
escreveu uma . Ode >, em despreocupada dos índios brasileiros. Os poetas Jodelle' e Ronsard 2,
homenagem a André Thevet,
o autor das Singularidades da expoentes de um movimento cultural de valorização da língua e
França Antartica (1557), onde literatura francesas, a Plêiade, o precederam nesta seara. Em 1580,
exalta a figura o selvagem livre
e nu em oposição ao civilizado
Montaigne publicou, no livro I dos Ensaios, um capítulo inteiramente
hipócrita, em versos como consagrado a descrever a vida, os costumes e os valores dos povos
esses: "Ces barbares marchent "primitivos" do Brasil. Montaigne escreve o ensaio propondo ao
tout nus, Et nous, nous
marchons inconnus, Fardés, seu leitor um exercício de reflexão que começa pela relativização do
masqués". Ver THEVET, conceito de "bárbaro" e "selvagem", ilustrado por uma anedota (no
André. Op. cit. Edition
intégrale, établie, présentée &
sentido de "relato sucinto de um fato curioso"), passa pela descrição
annotée par Frank Lestringant. do meio-ambiente local, o tipo de moradia, a alimentação, as crenças,
Paris, Editions Chandeigne, o modo de vida e os valores da sociedade indígena, e se encerra com
1997. pp. 311-313.
a descrição da visita de um grupo de indígenas brasileiros à cidade
2 Pierre de Ronsard (1524- francesa de Rouen. Este episódio contribuiu grandemente para a
1585) fez o elogio da vida
simples do indígena brasileiro fortuna literária do ensaio e Montaigne entrou para a história como
em seu DIscours contre um dos precursores de idéias de caráter "socialista" e revolucionário,
fortune (1560), em termos
na medida em que denunciou, pela voz dos canibais, a injustiça social.
semelhantes aos de Jodelle:
"(...) le peuple inconnu, Erre Um exemplo disto é o quadro pintado por Moreau le Jeune, no século
innocemment tout farouche da Revolução Francesa, representando a chegada de Jean-Jacques
et tout nu, D'habits tout aussi
nu qu'il est nu de malice". Ver Rousseau aos Campos Elíseos, o paraíso da sociedade perfeita e da
RONSARD, P. de. auvres felicidade coletiva, onde é recebido, com um aperto de mão, por Platão,
complètes. Edition établie,
o ideólogo da República, tendo a seu lado Montaigne 3.
présentée et annotée par Jean
Céard, Daniel Ménager et Montaigne escreveu, oito anos depois, quando do lançamento
Michel Simonin. Tome II, pp. do livro III, outro ensaio chamado "Dos coches" (III, 6), em que trata
777-779.
da colonização do Novo Mundo. Neste, embora o escritor se detenha
3 Ver reprodução em MELO no trágico fim das civilizações do México e do Peru, aniquilados pela
FRANCO, Afonso Arinos de.
O Índio brasileiro e a Revolução barbárie espanhola, Montaigne retoma a mesma idéia exposta no
francesa. As origens brasileiras ensaio sobre os índios brasileiros: esses povos são ingênuos e puros
da teoria da bondade natural.
como as crianças, pois ainda não haviam sido corrompidos por nós
Rio de Janeiro, José Olympio
Editora, 1976. e nossa civilização. Uma das chaves interpretativas utilizadas pelos

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A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

humanistas consistia em associar os ameríndios aos homens da idade


do ouro de que falava o mito pagão celebrado por Hesíodo, Platão e
os poetas latinos Catulo, Ovídio e Virgílio, em razão da semelhança
imaginada entre as condições de vida daqueles povos (simplicidade,
abundância de recursos naturais, suposta longevidade, sociedade
igualitária etc.) e o tempo, na narrativa mitológica grega, em que os
homens viviam numa espécie de paraíso, em harmonia e bem-estar
coletivos. Os "selvagens" do Novo Mundo foram também comparados
aos cristãos primitivos, por terem supostamente a alma pura e serem
receptivos à doutrina cristã.
No contexto intelectual da época, os ensaios "americanos" de
Montaigne pretendem se contrapor àqueles que diziam serem os
índios intelectualmente e moralmente inferiores aos europeus, o que
poderia justificar sua eliminação física ou escravidão. Nesse sentido, ele
apresenta provas da "suficiência" intelectual dos índios, citando duas
((
canções" que, segundo ele, nada têm de "bárbaro", pois revelariam, ao
contrário, uma rica imaginação e dotes "literários" que nada ficariam
a dever às européias.
Quando geralmente se faz alusão ao ensaio de Montaigne,
costuma-se citar o episódio da "conversação" com os índios como
sendo um fato verídico, um exemplo do choque de culturas advindo
da descoberta da América. Alguns especialistas, porém, já observaram,
há muito, que o conteúdo da conversação foi inventado pelo escritor, o
qual teria posto na boca dos canibais brasileiros palavras que ele próprio
gostaria de proferir. Um caso clássico de "engenharia literária", de
criação de um artifício retórico para, pela voz de outrem, fazer passar
suas próprias idéias, como Montesquieu faria depois com Usbek, seu
porta-voz nas Cartas Persas.4 Essa interpretação, que pressupõe um
olhar crítico "não ingênuo", não apresentava, porém, elementos de
provas ou indícios objetivos que fundamentassem um julgamento
circunstanciado. A explicação se deve talvez ao fato de Montaigne ser
muito persuasivo, como aliás já observara Afonso Arinos, um crítico
atento às "armadilhas" do charme literário do escritor :

Se nos libertarmos da influência feiticeira que este mago das


idéias exerce sobre quem o lê, se nos defendermos contra o
prodigioso encantamento que das suas páginas imortais se
desprende, que encontramos em Michel de Montaigne ?
Um cerebral, que olhava a natureza como se ela fosse um
sistema, cuja chave reveladora fosse o raciocínio, e que via no
Cf. ATKINSON, Geoffrey.
homem apenas o instrumento dócil desse sistema superior. Les Nouveaux Horizons dela
Um revolucionário para quem a ereção da natureza em Renaissance Française. Paris,
Librairie Droz, 1935, pp.
sistema lógico equivalia à elaboração de uma teoria subversiva
355-356.

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JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

e vitoriosa, porque inevitável e fatal. Artifício semelhante


serviria, depois, aos marxistas hegelianoss .

A partir do momento em que são investigadas as circunstâncias


históricas relativas aos fatos narrados no ensaio, começa-se a perceber
que há elementos contraditórios, os quais criam certo embaraço
crítico, mas estimulam a pesquisa. Comecemos por apontar as
inverossimilhanças históricas do texto.

O embaraço crítico

Antes de submeter o texto montaigniano à análise histórica, é


oportuno transcrever aqui o episódio de que vamos tratar. Ao final do
ensaio, Montaigne conta como se deu a "visita" dos índios canibais,
segundo seu próprio testemunho:

[A] Trois d'entre eux, ignorans combien coutcra um jour à


leur repos et à leur bon heur ia connoissance des corruptions
de deça, et que de ce commerce naistra leur ruyne, comme
je presuppose qu'elle soit desjà avancée, bien miserables de
s'estre laissez piper au desir de la nouvelleté, et avoir quitté la
douceur de leur ciel pour venir voir le nostre, furent à Roüan,
du temps que le feu Roy Charles neufiesme y estoit. Le Roy
parla à eux long temps; on leur fit voir nostre façon, nostre
pompe, la forme d'une belle ville. Apres cela quelqu'un en
demanda leur advis, et voulut sçavoir d'eux ce qu'ils y avoient
'MELO FRANCO, A. A. de.
trouvé de plus admirable: ils respondirent trois choses, d'ou j'ay
Op. cit., pp. 121-122. perdu la troisiesme, et en suis bien marry; mais j'en ay encore
MONTAIGNE, Michel
deux en memoire. Ils dirent qu'ils trouvoient en premier lieu
de. Les Essais. Edition de fort estrange que tant de grands hommes, portans barbe, forts
Pierre Villey. Paris, Presses et armez, qui estoient autour du Roy (il est vray-semblable
Universitaires de France,
1999, pp. 213-214. As que ils parloient des Suisses de sa garde), se soubsmissent à
diferentes camadas do texto obeyr à un enfant, et qu'on ne choisissoit plus tost quelqu'un
montaigniano são indicadas,
respectivamente, pelas letras:
d'entr'eux pour commander; secondement (lls ont une façon de
[A], correspondente à primeira leur langage telle, qu'ils nomment les homrnes moitié les uns
edição dos Ensaios, de 1580, des autres) qu'ils avoyent aperçeu qu'il y avoit parmy nous des
[B], referente à segunda edição,
de 1588, e [C], que remete hommes pleins et gorgez de toutes sortes de commoditez, et
aos numerosos acréscimos que leurs moitiez estoient mendians à leurs portes, décharnez
manuscritos feitos pelo autor
em seu exemplar pessoal (hoje
de faim et de pauvreté; et trouvoient estrange comme ces
conhecido com "Exemplar moitiez icy necessiteuses pouvoient souffrir une telle injustice,
de Bordeaux", conservado qu'ils ne prinsent les autres à la gorge, ou missent le feu à leurs
na Biblioteca Municipal da
cidade) e incorporados às maisons. 6
edições posteriores.

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A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

Existem dois tipos de dificuldade para dar credibilidade


histórica ao relato, tal qual Montaigne o apresenta no ensaio "Dos
Canibais" (I, 31). O primeiro deles se refere às circunstâncias em que os
eventos teriam acontecido. Os especialistas e biógrafos de Montaigne
que detiveram-se nos detalhes desse episódio se confrontaram com
o problema de validá-lo historicamente, uma vez que o escritor situa
na cidade de Rouen o encontro dos índios brasileiros com o rei
francês Carlos IX. Do nosso conhecimento, apenas três estudiosos
investigaram a questão. Após minuciosa pesquisa, Alphonse Grün
concluiu: o Maintenant, comment expliquer le passage des Essais,
la presence simultanée à Rouen de Charles IX, de Montaigne et
des sauvages ? Je ne sais; dans l'impossibilite de concilier les faits, je
ne puis que risquer des conjectures 0 7 . Marcel Françon, em artigo
publicado no Bulletin de la Société des Anis de Montaigne, examinou
a questão, mas deixou perguntar no ar: "Il y eut bien des sauvages, à
l'entrée de Charles IX, à Troyes, le 23 mars 1564, et à Bordeaux, le 9
avril 1565 ; mais je n'en ai pas vu de mentions eu 1562, ai à Rouen.
Montaigne a-t-il confondu ces différentes « entrées royales » (en 1550,
1564 et 1565) ? A-t-il utilisé des descriptions de sauvages, plus qu'il
n'ait vu lui-même des Brésiliens ? »8 . Finalmente, Michel Simonin,
especialista em Montaigne e biógrafo de Charles IX, se confrontou
com os mesmos problemas que seus predecessores: "Quand cette
entrevue, à laquelle Montaigne dit avoir assiste et même participé
puisqu'il nous apprend un plus loin qu'il s'est lui-même entretenu
avec leur truchement, c'est-à-dire leur interprete, a-t-elle réellement
eu lieu? Ii ne sernble pas qu'elle ait été à ce jour rnise en doute. Mais oi
la placer? II est difficile de la fixer aux jours suivants la chute de la
ville en 1562, mais tout aussi onéreux de l'imaginer l'année suivante,
comme nous le verrons. L'auteur des Essais a-t-il commis ici une
confusion et devons-nous lire « Bordeaux » plutôt que « Rouen »,
lorsque Charles IX fit étape dans cette ville au cours de son grand GRÜN, Alphonse. La
tour et ou des Indiens lui furent presentes ? » 9. Não há nenhum vie publique de Michel de
outro registro, à parte o de Montaigne, dando ciência da presença de Montai gne. Etude biographigue.
Geneye, Slatkine Reprints,
índios brasileiros no ano de 1562, durante parte do qual a cidade de 1970, pp. 143-144. Primeira
Rouen esteve sitiada. Além disso, o contexto em que o escritor situa o edição: 1855.
encontro parece não corresponder à descrição feita pelo mesmo. Uma FRANCON, Marcel.
das inverossimilhanças históricas do texto montaigniano, admitindo- Montaigne et les Brésiliens.
se por um instante a implausível possibilidade que nenhum outro Notes sur les Chansons
bresiliennes BSAM,
testemunho desses fatos tenha chegado até nós, posto que o rei se série, n° 16, oct-dée 1975, pp.
fazia acompanhar de expressivo número de nobres e cortesãos letrados, 73-75. A citação encontra-se
à p. 74.
deve-se ao fato dele ter situado o encontro em uma "bela cidade". Não
que a capital da Normandia e epicentro do comércio do pau-brasil SIMONIN, Michel. Charles
IX Paris, Fayard, 1995, pp.
não fosse uma bela cidade. Era sim, e mais: Rouen era a segunda mais 105-106. Grifo nosso

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JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

importante, mais populosa e próspera cidade francesa do século XVI,


depois de Paris". Mas o cenário de uma cidade semi-destruída, após
mais de seis meses de violentos confrontos armados entre o exército
católico francês e as milícias de insurgentes protestantes, parece não
se adequar, naquele momento, à descrição que dela se dá. Montaigne
fala também de "nossa pompa" e "nossas maneiras", o que sugere uma
ambientação de luxo e uma atmosfera solene. Ora, essas informações
remetem a um acontecimento típico da época: as entradas reais.
O segundo tipo de inverossimilhança aparece no próprio
ensaio, quando confrontamos alguns elementos da narrativa com os -
conhecimentos históricos de que se dispõe sobre as entradas reais.
Montaigne conta que os índios brasileiros se escandalizaram diante
do espetáculo da desigualdade social na França, em que os pobres
mendigavam à porta dos ricos. As entradas reais eram espetáculos
grandiosos, minuciosamente preparados com antecedência, e um dos
procedimentos consistia em evacuar os mendigos para fora dos muros
da cidade antes da chegada do rei. Ora, como poderia ser possível
que os índios brasileiros pudessem ter notado desigualdades sociais
na França se essas haviam sido temporariamente abolidas? Como
poderiam ter visto mendigos se eles não estavam lá? Investiguemos
primeiramente o que se passou em Rouen "no tempo em que o re;
Carlos IX lá estava", segundo Montaigne.

O sítio de Rouen

" Ver BENEDICT, Philip. O cenário em que Montaigne situa os curiosos fatos narrados
Rouen during lhe Wars of em seu ensaio era catastrófico. Quando a regente Catarina de Médicis
Religion. Cambridge University
Press, 1981, pp. 1-45, e decidiu enviar seu filho, o rei Carlos IX, à época um garoto de 12 anos,
MOLLAT, Michel (dir.). a Rouen, havia cerca de seis meses que a cidade fora tomada pelos
Histoire de Rouco. Toulouse,
Edouard Privat Editeur, 1979.
protestantes, causando uma série de problemas à coroa". Em primeiro
lugar, a sedição dos habitantes protestantes da capital da Normandia
"-Sobre o cerco de Rouen, ver
CHERUEL, André. "Siege
era uma ameaça à politica de tolerância religiosa que a rainha tentava
de Rouen en 1562". Revoe implantar na França, com a ajuda do Chanceler Michel de L'Hospital;
de Rouco et de Normandie. em segundo lugar, o cerco à cidade custava caro aos cofres reais, pois
Dix-huitième année. Rouco,
Imprimerie de A. Péron, 1850, tnn número expressivo de soldados e armamentos havia sido enviado
pp. 169-179 ; BEAURAIN, para combater os insurgentes, sem sucesso; finalmente, o longo sítio
Narcisse. La Porte Saint-
Hilaire. Episodes d'Histoire
à cidade provocava problemas de abastecimento em Paris, em razão
Locale. Rouen, Imprimerie das dificuldades de navegação sobre o rio Sena, o mesmo que passava
Léon Deshays, 1880, pp. 19- por Rouen. Após frustradas tentativas de armistício, o exército real
29 ; FLOQUET, A. Histoire
du Parlement de Normandie. investiu violentamente sobre a cidade até conseguir abrir uma brecha
Rouen, Edouard Frere Editeur, no muro, na altura da porta Saint Hilaire, no dia 25 de outubro de
MDCCCXL, Tome II, pp.
380 ssq. ; MOLLAT, Michel
1562. Três dias depois, o rei entra na cidade, simbolizando a retomada
(dir). Op. cit., pp. 179-203. do poder político, militar e religioso. Todos os testemunhos oculares

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A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

O sítio de Rouen em 1562. Gravura


atribuída a André Thevet. Inverossímel
cenário do encontro e "conversação"
entre o rei Carlos IX e os índios
canibais brasileiros, segundo conta
Montaigne

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da queda de Rouen são unânimes em afirmar que a cidade estava


semi-destruída; no dia 1° de novembro, o rei compareceu à missa na
imponente catedral da cidade, mas o estado dela era de uma "nudez
deplorável"" ; alguns estimaram em 4.000 o número de mortos".
Montaigne fazia parte dos membros da corte que acompanhavam
o rei até Rouen. Na época, ele era conselheiro do Parlamento de
Bordeaux e havia sido enviado em missão à capital, onde prestou
juramento de fé católica no Parlamento de Paris, no dia 12 de junho,
antecipando-se aos seus colegas bordeleses. Se não há indícios que
permitam confirmar as informações do ensaio, em contrapartida, o sítio
de Rouen parece ter fornecido outros elementos para a composição,
pois um dos personagens citados estava presente naquela ocasião. É
possível que Montaigne tenha avistado, e talvez mesmo conversado
com Nicolas Durand de Villegagnon, durante o cerco à cidade. O ex-
comandante da França Antártica participou ativamente das batalhas
contra os protestantes locais, mas saiu ferido por um disparo de arma
de fogo. Ao seu lado, encontrava-se Antoine de Bourbon, um dos
chefes militares da operação e pai do futuro rei Henrique IV, que veio
a falecer. Montaigne diz no seu ensaio que colheu as informações sobre
os índios brasileiros através de um empregado seu, que teria vivido
"dez ou doze anos" no Brasil e que teria participado da aventura da
França Antártica, sob o comando de Villegagnon. Este homem, que
ele define como "simples e rude", poderia lhe fornecer, de maneira
mais pura e fidedigna, as informações de que precisava, justamente
porque era ignorante. Os iletrados, dizia Montaigne, os que não têm
pretensões intelectuais, eram mais confiáveis do que os relatos dos
viajantes e os livros dos cosmógrafos, pois eles não têm geralmente
preconceitos ou interesse em alterar aquilo que efetivamente viram.
Eles não teorizavam, apenas descreviam objetivamente aquilo que
viram com seus próprios olhos. Os cosmógrafos, por pretenderem tudo
12 « Le 1" novembre 1562,
descrever, freqüentemente alteravam as informações ou as deturpavam,
jour de la Toussaint, le otite segundo suas opiniões pessoais ou preconceitos. Ao tecer esses
catholique interrompu depuis
le 3 mai, recommence ; on
comentários, Montaigne pensava certamente no cosmógrafo André
célebre à Notre-Dame une Thevet, o primeiro historiador do Brasil, autor das Singularidades da
grande messe à laquelle França Antártica (1557). Jean de Léry, um dos protestantes enviados
assistait Charles IX et toute sa
cour. Nudité déplorable de la por Calvino à pedido de Villegagnon, acusava Thevet, no seu livro
cathédrale de Rouen, lors de la Historia de uma viagem feita à terra do Brasil (1578), de ser falsário e
cérémonie ”. FLOQUET, A.
de "mentir cosmograficamente". Não é possível afirmar com segurança
Op. cit., p. 468.
que este empregado que Montaigne diz ter tido existiu de fato, ou
"D'AUBIONE, Agrippa. se foi mais uma invenção do escritor para dar credibilidade ao seu
Histoire universelle. Editée avec
une introduction et des notes discurso. Vários críticos já observaram que a maioria das informações
par André Thierry, Tome II, apresentadas por Montaigne estavam disponíveis em livros publicados
Livre III, Chapitre X, p. 93.
sobre o Brasil, sobretudo os de Thevet e Léry. Afonso Arinos de Melo

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A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

Franco, por exemplo, fez um minucioso trabalho de cotejo entre o


texto de Montaigne e a florescente literatura "geográfica" sobre o Novo
Mundo, mostrando de onde provavelmente o ensaísta colheu essa ou
aquela informação". A presença de Villegagnon durante o sítio de
Rouen poderia dar margem a especulações extremadas, como pensar
que ele se fizesse acompanhar de alguns "selvagens" brasileiros. Sabe-
se que o ex-comandante da França Antártica regressou à França, em
meados de 1559, acompanhado de um grupo de índios, os quais teriam
sido "ofertados" a personalidades da corte, amigos e parentes, como
seu irmão Philippe Durand, prefeito de Provins, sua cidade natal".
Embora teoricamente possível, a hipótese carece de fundamentação
histórica, em razão, como já dissemos, da inexistência de testemunhos
(tanto mais em se tratando de uma presença tão inusitada), e também
pelo fato de Villegagnon estar preocupado em limpar sua imagem e
recuperar prestígio junto à corte. Ele era objeto de uma campanha de
difamação pelos protestantes, que o comparavam ao ciclope Polifermo,
em razão da sua personalidade violenta e do tratamento desumano
dado aos reformistas no Brasil. Além disso, ele teve que prestar contas
ao rei pelo fracasso da colônia. Ainda assim, Villegagnon conseguiu
uma indenização do rei de Portugal pelos prejuízos sofridos". É pouco
crível que ele se fizesse acompanhar de índios brasileiros, pobres
guerreiros armados apenas de arco e flecha para combater numa guerra
feita à base de armas de fogo, além de se expor ao ridículo perante o
rei e a corte.
As dúvidas levantadas pelas inverossimilhanças do texto
montaigniano começam a ser esclarecidas a partir do momento em
que sabemos que os personagens envolvidos nessa história — o rei
francês, os canibais brasileiros e Montaigne — estiveram realmente
m MELO FRANCO, Afonso
presentes em outra ocasião, cerca de três anos depois, na cidade de Arinos. op. cit., pp. 113-118.
Bordeaux, onde Montaigne nasceu e morava, durante a entrada real de
Carlos IX. Diferentemente do inverossímil encontro em Rouen, o de IS Sobre a participação
de Villegagnon no sitio
Bordeaux é fartamente documentado. A análise dessa documentação de Rouen, ver o relato do
ajuda a esclarecer passagens obscuras do ensaio ao mesmo tempo em pároco de Provins, Claude
HATON. Mémoires. Le récit
que mostra as reais circunstâncias do encontro, desvelando o blefe. des événements arco nplis de 1553
Existem outras informações relevantes e que parecem confirmar à 1582, principalement dans la
Champagne et la Brie. Publiés
as suspeitas. Montaigne conta, logo após a passagem do encontro
par M. Félix Bourquelot.
dos índios com o rei, a conversa que ele próprio teria tido com os Paris, Imprimerie Impériale,
canibais. Segundo o ensaísta, a comunicação não se estabeleceu MDCCCLVII, Tome 1, p.
287.
satisfatoriamente por causa das limitações intelectuais (bestise) do
seu intérprete (truchement) francês. Montaigne perguntou aos índios Ver HEULHARD, Arthur.
Villegagnon, roi d'Anzérique.
como seu chefe ("roi") era acolhido pelos moradores das aldeias sob seu
Un homme de mer au XVI' siècle
comando, quando as visitava. Ou seja, como eram as "entradas reais" (1510 1572). Paris, Ernest
-

no país dos canibais. Esta informação é fornecida en passant, mas se Laroux, 1897, pp. 241-242.

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JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

revela preciosa para nós, pois tal curiosidade não poderia se explicar
se o cenário real do encontro com os canibais não fosse uma entrada
real, com tudo o que isso implicava em luxo e cerimonial.

Je parlay à l'un d'eux fort long temps; mais j'avois un


truchement qui me suyvoit si mal, et qui estoit si empesché
à recevoir rnes imaginations par sa bestise, que je n'en peus
tirer guiere de plaisir. Sur ce que je luy demanday quel fruir
ii recevoit de la superiorité qu'il avoit parmy les siens (car
c'estoit un Capitaine, et nos matelots le nommoient Roy),
il me dict que c'estoit marcher le premier à la guerre ; de
combien d'hommes II estoit suyvy, il me montra une espace de
lieu, pour signifier que c'estoit autant qu'il en pourroit en une
telle espace, ce pouvoit estre quatre ou cinq mille hommes ;
si, hors la guerre, toute son authorité estout expirée, ii dict qu'il luy
eu restoit cela que, quand ii visitoit les vilages qui dependoient de
luy, ou luy dressoit des sentiers au travers des hayes de leurs bois,
par ofl ilpeutpasser bien à l'aise"
MONTAIGNE, Michel de.
17

Op. cit., p. 214. Grifo nosso. A entrada de Carlos IX em Bordeaux


" MONTAIGNE, Michel
de. (Euvres computes. Textes Para contextualizar essa entrada, é necessário lembrar as
établis par Albert Thibaudet et circunstâncias que a motivaram. Elas nos remeterão uma vez mais a
Maurice Rat. Introduction et
notes par Maurice Rat. Paris, Rouen. Depois da retomada em 1562, Catarina de Médicis escolhera
Gallimard, 1962, pp. 1347- essa cidade para que seu filho Carlos IX declarasse sua maioridade.
1360.
A cerimônia se deu no dia 17 de agosto de 1563, no Parlamento
'9 Ver GRAHAM, Victor da Normandia. A esse respeito, é necessário descartar qualquer
E. 8c McALLISTER possibilidade de Montaigne ter estado presente à mesma, já que
JOHNSON, W. The royal
tour of France by Charles IX ele vivia nessa época uma dolorosa experiência: a agonia e a morte,
and Catherine de' Médici. acontecida em Germignan, perto de Bordeaux, no dia 18 de agosto
Festivais and Entries. Toronto,
Un iversi ty of Toronto de 1563, do seu grande amigo Etienne de La Boétie. Em 1571, ele
Press, 1979; BOUTIER, publicou a carta que enviou ao pai descrevendo as duas angustiantes
Jean, DEWERPE, Alain 8c.
semanas passadas junto ao leito de seu querido amigo'''. Após a
NORDMAN, Daniel. Un tour
de France royal — Le voyage de declaração da maioridade do seu filho, Catarina de Médicis organizou
Charles IX (1564-1560. Paris, uma espécie de "tour de France" real, cujos objetivos eram mostrar aos
Editions Aubier Montaigne,
1984. franceses seu novo rei, resolver problemas políticos, administrativos e
religiosos em diferentes regiões e cidades do país, além de encontrar-
2" JOUAN, Abel. Recuei! se com sua filha Elizabeth, rainha da Espanha, e tratar de questões
et Discours da voyage da roy
Charles IX [etc.]. A Paris, politicas com o duque d'Albe, representante de Felipe II, em Bayonne,
Pour Jean Bonfons Librairie, perto da fronteira espanhola.' 9 A grande viagem durou mais de dois
en la rue neufve nostre Dame,
à l'enseigne S. Nicolas. anos (de 24 de janeiro de 1564 a 1° de maio de 1566), durante os quais
m.D.Lxvi. Avec privilege o sommelier do rei, Abel Jouan, manteve um diário narrando os fatos
du roy.
acontecidos em cada etapa e as distâncias percorridas 20. Conforme já

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A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

dissemos, dentre os preparativos para a visita do rei, estava a evacuação


dos mendigos e desocupados para fora dos muros da cidade. O
Parlamento de Bordeaux deliberou, então, "purger la Ville de tous
vagabons 8c. mal vivans" 21 . O rei fez sua entrada em Bordeaux no dia
9 de abril de 1565, e os "Registros secretos" do parlamento da cidade
atestam a presença, entre seus membros, do conselheiro Michel de
Montaigne, que desfilou diante do palanque do rei, juntamente com
seus colegas magistrados 22.

Durante o desfile, Montaigne pôde certamente assistir ao


encontro dos representantes das "nações estrangeiras" com o rei- 2 ' Cf. GODEFROY,
adolescente Carlos IX (então com 15 anos). Era costume das entradas Théodore &Denys. Le
reais da época exibir grupos de estrangeiros exóticos, que desfilam Ceremonialfrançois, tomo I,
p. 912.
na condição de cativos. O costume se explica pelo fato das entradas
reais francesas terem sido inspiradas no modelo dos "triunfos" « Registre secret du
Parlement de Bordeaux »
romanos que eram celebrados por ocasião do retorno dos generais (cópia Verthamon), tomo 16,
(Julio César, Paulo Emilio etc.) à Roma, depois de terem vencido pp. 570-574.
os bárbaros". Dessas campanhas militares, eles traziam, além das Ver CHARTROU, Josephe-
riquezas do butim de guerra, alguns nativos como prova do sucesso. Marie. Les Entrées Solennelles et
Durante o Renascimento francês, este costume pagão foi adaptado à Triomphantes à la Renaissance
(1484 1551). Paris, Les Presses
-

cultura cristã, de maneira que se fixou em doze o número de grupos Universitaires de France,
de estrangeiros cativos. O objetivo era criar uma associação entre o rei 1928; GUENÉE, Bernard
&LEHOUX, Françoise. Les
francês e a figura do Cristo (e seus doze apóstolos) ou do Messias (e as entrées royalesfrançaises de 1328
doze tribos de Israel), com base numa ideologia de caráter nacionalista à 1515. Paris, Editions du
fabricada por humanistas a serviço da monarquia, como justificativa CNRS, 1968.
para o projeto francês de expansão geopolítica, em âmbito americano, 24Uma das mais significativas
e de proeminência política, em âmbito europeu 24. ilustrações dessa ideologia
se deu durante a entrada
Dentre os grupos de "nações estrangeiras" exibidos em Bordeaux em Rouen de Henrique H
naquela ocasião, havia três formados por índios brasileiros. O encontro e Catarina de Médicis nos
dias 1° e 2 de outubro de
se deu da seguinte maneira: o representante de cada um dos doze 1550, através de alegorias
grupos subiu ao palanque do rei e fez, em sua lingua nativa, uma e de espetáculos como uma
arenga" ao monarca francês. Esses discursos eram traduzidos por encenação teatral em escala
natural (posteriormente
intérpretes franceses. Os testemunhos oculares desse fato não fazem batizada de "festa brasileira"
nenhuma alusão ao conteúdo dos discursos e nem mencionam qualquer pela historiografia francesa)
e uma naumaquia (simulação
reação inusitada dos presentes aos mesmos. O primeiro escrivão do
de um combate naval). Pela
Parlamento de Bordeaux, maitreJacques de Pontac, fez uma descrição abundância de elementos
minuciosa da entrada. Ele registrou, por exemplo, pouco antes do para analise e pela relevância
histórica do acontecimento,
início do desfile do corpo social da cidade, um incidente envolvendo considerado por especialistas
o primeiro presidente do Parlamento de Bordeaux, Jacques Benoist de como a mais espetacular das
Lagebaston, e o próprio rei, o adolescente Carlos IX, então com quinze entradas franceses do século
XVI, o assunto merece que se
anos. Entediado com o longo e cansativo discurso de boas-vindas que lhe dedique todo um artigo,
Lagebaston pronunciava, Carlos IX interrompeu-o bruscamente e, o que esperamos poder fazer
oportunamente.
levantando-se de sua poltrona, fez uma breve mas incisiva declaração

253
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

sobre a proibição do porte de armas de fogo, uma das medidas


adotadas pelo Chanceler Michel de L'Hospital para tentar conter
a violência dos conflitos entre católicos e protestantes 25. Maitre De
Pontac apenas registra que o representante ("capitaine") dos gregos,
uma das "nações estrangeiras", "subiu ao palanque e fez ao rei sua
" Messire Jacques Benoist arenga", para acrescentar em seguida que "il faisoit beau voir" o desfile
de Lagebaston, premier dos povos exóticos. Outros testemunhos da cena (dos quais falaremos
President, lui a fait une si
grande et longue harangue que adiante), disseram que todos os representantes discursaram diante
le Roy s'en fachant lui a coupé do rei. Tratava-se provavelmente de discursos formais, previamente
propos et sans attendre ce qu'il ((
encomendados" pelo cerimonial com o objetivo de exaltarem a figura
eut achevé a dit : Je lotie ma
justice du bon devoir qu'elle a do rei. A partir desse cenário inusitado, a imaginação de Montaigne
fait et si] y a aucun qui tienne criou uma "conversação" que não existiu de fato, e o escritor pôde,
encore les armes en la maio,
j'en ferai telle justice qu'elle dessa maneira, emprestar voz aos canibais para mostrar a relatividade
sera exemplaire aux autres ; das culturas e criticar o descaso das autoridades em relação aos mais
ayant dit ceci, s'est leve de son
necessitados.
siege ensemble lesdits quatre
presidens, moi et le premier Por que Montaigne, afinal de contas, trocou o cenário do
huissier et avons demeuré encontro entre o rei francês e os canibais brasileiros, transferindo
sur ledit echaffaut attendans
Ia Compagnie de la ville qui para Rouen fatos que aconteceram em Bordeaux? Porque ao fazer a
passoient...... Registre secret ação se passar na capital da Normandia, Montaigne estava livre para
du Parlement de Bordeaux
(cópia Verthamon), tomo 16,
pôr na boca dos canibais suas próprias idéias e sentimentos, o que
pp. 908-909. não poderia se dar no caso de Bordeaux, em que a cena das arengas
das doze "nações estrangeiras" foi testemunhada por muitos dos seus
L'Antiquité de Bourdeaus et de
Bourg, presentée au Roi Charle concidadãos, alguns dos quais poderiam eventualmente desmenti-lo.
neufiesme, le treziesmejour du Além do mais, quando ele publica o ensaio, em 1580, Carlos IX já
mais arAvri hm mille cing cens
soixante & cing, a Bourdeaus, &
não era vivo.
lhors premierement publiée, mais
depuis reveza', & augmentée, &
Documentação impressa
a reste autres unun.ltion enrichie
de plusieurs figures, par son
aucteur Elie Vinet. A Bourdeaus, A entrada de Carlos IX em Bordeaux suscitou a publicação de
Par Simon Millanges, rtie Saint
pres Ia maison de la ville,
duas obras. A primeira delas, escrita especialmente para a ocasião,
1574. A primeira edição, de é a Antiquité de Bourdeaus, primeira história da cidade, escrita pelo
1565, foi impressa em Poitiers humanista Elie Vinet, diretor do Colégio da Guiana, onde Montaigne
por Enguilbert de Marneuf,
pois Bordeaux ainda não tinha estudou'''. No século XVI, floresceu na França, bem como em outros
editora. países europeus, um novo gênero literário: as Antiguidades, que eram
27Montaigne conta, no a reconstituição erudita da história de uma cidade, tendo como base,
capítulo De l'institution principalmente, os vestígios arqueológicos e os testemunhos de
des enfans (I, 26), que
representou papéis em algumas
geógrafos e historiadores gregos e latinos. A obra foi entregue ao rei
dessas peças, quando aluno: pelo próprio autor na sexta-feira, dia 13 de abril de 1565, conforme
"[B] j'ai soustenu les premiers consta do subtítulo da obra, quando da apresentação de "passetemps"
personnages és tragedies latines
de Bucanan, de Guerente et de para divertimento do rei, em visita ao Colégito. Esses consistiam
Muret, qui se representerent en em peças de teatro latinas escritas por ex-professores do Colégio,
nostre college de Guienne avec
digo ité ”. MONTAIGNE,
como os humanistas Georges Buchanan e Marc-Antoine Muret, e
Michel de. Op. cit., p. 176. representadas pelos alunos 27. Como algumas semelhanças textuais

254
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

Mapa da cidade de Bordeaux em 1548 à partir do qual Efie


Vinet elaborou o seu, apresentado ao rei Carlos IX em abril
de 1565.
O desfile do corpo social aconteceu fora dos muros da
cidade, em frente ao Convento dos Cartuxos (à direita). Lá
Montaigne pôde assistir ao encontro entre o rei francês e os
representantes das doze "nações estrangeiras", dentre as quais
três grupos de índios brasileiros. Este é o verdadeiro cenário
do "conto canibal".

255
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

levam a crer, esta publicação talvez tenha servido de inspiração a


Montaigne para acrescentar, na edição de 1588, uma passagem em
que fala das areias do Médoc, região costeira a noroeste de Bordeaux,
caracterizada pela formação de dunas devido à ação dos ventos e das
correntes marítimas. Na sua Antiquité, Vinet reconstituiu também a
história do vilarejo galo-romano de Noviomagus, com o qual a antiga
Burdigala (futura Bordeaux) disputava a hegemonia comercial da
região, na época da ocupação romaria. Este vilarejo foi destruído em
conseqüência de um terremoto no século VI e foi, posteriormente,
encoberto pelas areias, com exceção de algumas cumeeiras mais
elevadas:

[B] En Medoc, le long de la mer, mon frère, sieur d'Arsac,


voit une sienne terre ensevelie soubs les sables que la mer
vomit devant ele ; le faste d'aucuns bastimens paroist encore ;
ses rentes et dornaines se sont eschangez en pasquages bien
" MONTAIGNE, M. de. maigres. Les habitants disent que, depuis quelques temps, la
Op. cit., p. 204. O texto de
Vinet que talvez tenha servido mer se pousse si fort vers eux qu'ils ont perdu quatre lieuês de
de inspiração a Montaigne se terre. Ces sables sont des fourriers : [C] et voyons des grandes
encontra no § 38 da Antiquité
de Bourdeaus.
montjoies d'arène mouvante qui marchent d'une demi lieue
devant elle, et gaignent pais. 25
" a Thomas Richard, au
Lecteur Salut.:Veu que le
debvoir de mon estat requiere A segunda publicação é uma brochura contendo a descrição
de satisfaire en partie à ia dos acontecimentos de abril de 1565. L'entrée du Roy à Bordeaux foi
grande cupidité de sçavoir,
laquelle est en toutes gens publicada em Paris pelo impressor Thomas Richard, cerca de dois
qui n'ont point leur naturel meses depois, a partir de uma carta que um "amigo bordelês" lhe teria
corrompo ou detourné par
autre vacation repugnante, j'ay
enviado descrevendo os fatos relevantes da entrada, segundo conta no
bico voulu imprirner quelque prefácio29. Este documento nos é precioso, pois ilumina uma passagem
chose de l'Entrée de Borde= : do relato de Montaigne em que ele, humoristicamente, diz não
comme j'ay peu sçavoir 8c
entendre par les lettres d'un lembrar-se de todas as "observações canibais". Além das lembranças
mico amy. (...) Ensemble pessoais que os acontecimentos testemunhados ocularmente podiam
plusieurs autres choses tant
magnificques, qui ont esté
lhe fornecer, a passagem em questão parece ter estimulado a imaginação
tãt aggreables à nostre Roy do escritor no sentido de inventar um discurso e atribuí-lo aos canibais,
Charles neufiesme, que toutes isentando-se assim de qualquer responsabilidade pelas opiniões ou
les atures Entrées ne sont à
comparer à celle cy. Parquoy il idéias que esse discurso pudesse suscitar. Comparemos os dois textos,
vous plaira avoir mon vouloir o de Thomas Richard e o de Montaigne, respectivamente:
en gré, faict te 3. jour de
Juing. 1565... Entrée do Roy
à Bordeaux, avecques lei Carmes J'ay bien voulu imprimer quelque chose de l'Entrée de
Latins qui luy ont esté presentez, Bordeaux : comme j'ay peu sçavoir & entendre par les lettres
& au Cbancelier. A Paris, De
l'Imprimerie de Thomas Richard, d'un mien am.y. Et suis bien marry que je n'ay peu recouvrer
à la Bible d'or, devant le College les harangues que feirent au Roy douze Nations étrangeres
de Reims, 1565, fol. Ai (v°).
chascune en sa langue : laquelle diversité de langage est fort
" Idem, ibidem. Grifo nosso. familiere aux Matelots Bordelois:"

256
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

[A] ils respondirent troischoses, d'oU j'ay perdu la troisiesme, et


en suis bien many ; mais j'en ay encore deux en memoire.".
3 ' MONTA1GNE, Michel de.
Op. cit., p. 213. Grifo nosso.
A relação publicada por Richard nomeia as três tribos de
32 « Oultre ce y avoit le Roy
índios brasileiros que desfilaram para o rei como sendo formadas por de Ia Bazoche bien en ordre
"Ameriques", "Sauvaiges" e "Bresellans"". O historiador protestante, ayant ses gens à cheval &
Lancelot Voisin de La Popelinière, na sua Histoire de France (1581), grande compagnie de gens de
pied bien equippés. Lequel
parece ter se baseado na relação precedente para fazer sua descrição suyvoient apres trois c tz
da entrada de Bordeaux, uma vez que ele repete, na mesma ordem, hommes bien armez qui
menoient douze Nations
as denominações dadas aos índios brasileiros pelo amigo bordelês estrangeres captives devant le
do impressor. Outro historiador protestante, Agrippa d'Aubigné, é Roy : chascune Nation habillée
mais preciso quanto ao nome das tribos. Em sua Histoire universelle à sa mode. C'est à sçavoir les
Grecs à la grecque : Les Tures
(1612), ele dá nome aos três grupos de brasileiros: os "Cannibales", à Ia turcoise : Les Arabes à
os "Marjagats" e os "Thaupinambous"". Segundo a nomenclatura la arabesque : fEgyptiens à
l'egyptienne : Taprobains à
da época, popularizada em parte graças à publicação do livro de la taprobaine Ameriques
André Thevet sobre o Brasil, os "canibais" correspondiam aos índios à l'amerisque : Indiens à
potiguara do nordeste brasileiro (assiduamente freqüentado pelos l'indienne : Canariens à la
canarique : Les Sauvaiges à
contrabandistas franceses em busca do pau-brasil nordestino, de melhor la sauvag-ine : Les Bresellans
qualidade e maior cotação), os "marjagás" designavam os tupiniquins, à la bresellane : Les Mores à
la moresque : Les Eutopiens
etnia indígena aliada aos portugueses e inimiga dos franceses, e os à l'eutopienne. Et chascun
"thaupinambous" eram, evidentemente, os tupinambás do sudeste Capitaine de ces douze Nations
brasileiro, especialmente os do litoral paulista e fluminense. captives a faict harengue
au Roy eu son langaige :
qui estoit interprete par un
A mercurial de Michel de L'Hospital truchernent. ». L'entrée da Roy
Bordeaux, fol. A iii (r").

Os argumentos apresentados até aqui em favor da tese segundo <, 11 n'y a eut rien de
remarquable jusques à
a qual Montaigne blefou ao escrever seu ensaio sobre os canibais Bordeatuc, ois la despence et
brasileiros, especialmente no que se refere ao cenário do encontro les inventions surmonterent
dos índios com o monarca francês, encontram confirmação em outro toutes les atures. Là trois cens
chevaux se presenterent au
episódio acontecido durante a estadia do rei em Bordeaux. Aos 11 Roi, douze bandes de Grecs,
de abril de 1565, dois dias após a entrada propriamente dita, teve Turcs, Arabes, Egyptiens,
Canariens, Mores, Ethiopiens,
lugar, em sessão solene no Parlamento de Bordeaux, uma cerimônia Indiens, Taprobaniens,
conhecida como "lit de justice". Esta consistia em um encontro entre o Cannibales, Margajats et
rei, autoridade máxima da justiça, e os magistrados locais, encarregados Thaupinambous ; desquels les
chefs firent leur interprete. II
de aplicar as leis e executar as ordenações e decretos reais. A cerimônia y eut d'autres magnificences
foi instituída pelo avô de Carlos IX, Francisco 1, em 1527, e seu nome moina dignes du mestier de
l'historien. ». D'AUBIGNÉ,
deriva dos longos bancos ("/its") sobre os quais se sentava a audiência 34. Agrippa. Histoire Universelle
O rei se colocava acima de todos, sobre um estrado ricamente decorado [1612-1620]. Tome II, livre
e sob o pálio que simbolizava suas prerrogativas divinas. A origem quatriesme, chapitre V, p. 227.
da palavra se deve ao fato de que outrora as assembléias das cortes 34 Ver HANLEY, Sarah. Le

de justiça se reuniam, duas vezes ao ano, numa quarta-feira, quando Lit de Justice des Reis de France.
Paris, Aubier, 1991.
o presidente fazia a crítica da justiça e dos juízes. A r alavra francesa
,

257
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

" Lagebaston era acusado pelos mercuriak deriva do latim mercurialis, e foi tomada como adjetivo da
católicos, que eram maioria
na região, de ser indulgente
palavra mer credi (quarta-feira). O "lit de justice" de Carlos IX seguiu
com os protestantes e de não a tradição, pois foi realizado numa quarta-feira. Durante a sessão,
aplicar corretamente as sansões o rei geralmente cobrava, através do seu porta-voz, o Chanceler, a
aos reformistas, previstas
em certos decretos reais, correta aplicação da justiça, arbitrava processos difíceis e também
Infringindo a autoridade do ouvia as "remonstrances", que eram críticas e sugestões feitas para
presidente do Parlamento,
François de Peruse Descars,
o aperfeiçoamento das instituições judiciárias. Naqueles anos, a
grande senechal da Guiana, monarquia encontrava dificuldade em fazer o Parlamento de Bordeaux
interrompeu ruidosamente aplicar devidamente os decretos reais, em razão de divergências
uma assembléia do Parlamento
que Lagebaston presidia. Este políticas internas ligadas ao conflito entre católicos e protestantes. A
dissolveu a reunião e conseguiu sessão foi aberta com um breve pronunciamento do rei, que passou em
mandar evacuar o afrontador
e seu séquito. Dias depois, a
seguida a palavra ao Chanceler Michel de L'Hospital, encarregado de
cena se repetiu. Lagebaston admoestar os parlamentares recalcitrantes. Montaigne estava presente
acusou então um grupo de à sessão, enquanto conselheiro, e foi um dos alvos de L'Hospital.
parlamentares, que teriam se
aliado ao arcebispo da cidade e Primeiramente, pelo fato de ter-se envolvido, dois anos antes, numa
a algumas lideranças políticas querela entre o presidente Lagebaston e o lugar-tenente Descars,
da região, de tramarem sua
destituição, entre eles o
autoridade militar em serviço na região", em seguida, pelo fato de estar
jovem conselheiro Michel de nos preparativos para o casamento com a filha de um dos presidentes
Montaigne. Chamado para dar do Parlamento, Joseph de La Chassaigne, o que geralmente não
explicações, Montaigne recua,
não sem antes fazer críticas era bem-visto pela monarquia, na medida em que os casamentos
à gestão de Lagebaston. O "arranjados" entre famílias de burgueses enobrecidos que ocupavam
incidente é contornado, em
parte provavelmente devido
cargos nos parlamentos, como era o caso dos Eyquem de Montaigne
aos laços de amizade entre a e os De La Chassaigne, tendiam a fortalecer a influência política desse
família de Montaigne (uma segmento social já economicamente importante, em prejuízo dos
das mais tradicionais daquele
parlamento) e Lagebaston. interesses reais 36. L'Hospital iniciou sua mercurial citando o exemplo
Mas o assunto será de antigos reis gregos, sucessores de Alexandre, os quais teriam
relembrado, sem declinação
de nomes, por L'Hospital
mudado de opinião a respeito da suposta "barbárie" dos romanos ao
durante sua mercurial, observarem, do alto de um promontório, a inteligente ordenação das
Ver o texto do discurso de fileiras de soldados do exército inimigo. Do mesmo modo, acrescenta
L'Hospital no tomo II do
Ceremonial françois, publicado L'Hospital, se algum estrangeiro observasse a organização daquela
por Théodore e Denys corte de justiça não diria que se tratava de uma corte de bárbaros,
Godefroy, em 1674. Sobre a
intervenção de Montaigne,
como havia antigamente no país, mas de franceses, um povo civilizado.
ver HAUCHECORNE, F. A metáfora soava irônica aos ouvidos dos parlamentares bordeleses,
"Une intervention ignorée acusados posteriormente pelo chanceler de serem indisciplinados
de Montaigne au Parlement
de Bordeawc .. Bibliothèque e inconseqüentes, por quererem se colocar acima da autoridade do
d'Humanisme et Renaissance, rei, da rainha e do seu conselho, criando obstáculos à execução dos
tomo IX, pp. 164-168.
decretos e interpretando-os da maneira que lhes convinha, além de
Montaigne estava noivo de protagonizarem cenas que feriam o decoro parlamentar.
Françoise de La Chassaigne,
com quem iria casar-se pouco
Ora, basta iriciar a leitura "Dos Canibais" (I, 31) para se dar
tempo depois, no dia 23 de conta que essa mesma metáfora foi utilizada por Montaigne para incitar
setembro de 1565. L'Hospital seu leitor a refletir sobre a relatividade dos conceitos de "bárbaro" e
estava certamente a par dos
projetos matrimoniais das "selvagem". Antes de ir buscar na "Vida de Pyrrhus", biografia do rei
duas famílias de parlamentares grego escrita por Plutarco 37, a metáfora de que precisava para iniciar
bordeleses e faz alusão ao

258
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

sua defesa dos índios, Montaigne a ouvia primeiramente pela boca de fato dizendo que se alguém
quisesse saber dos nomes dos
Michel de L'Hospital, no Palácio de l'Ombrière, sede do Parlamento parlamentares presentemente
de Bordeaux. O chanceler iniciou assim sua mercurial: implicados, ele poderia
informar : . Il y en a aussi qui
sont grandement scandalisez
Et incontinent ledis Chancelier, après avoir salué le Roy de faire des mariages par
et s'être remis en la chaire, a dis qu'aucun qui ons cydevant force, 8c quand on sçait
quelque heretiere, quant &
tenu le lieu qu'il tient ons consommé leurs propos à louer la quant, c'est pour Monsieur
justice, l'institution des Parlemens et l'autorité d'iceux, qui le Conseiller, on passe outre
étoit une chose louable, mais qu'il dirois ce qui lui semblerois nonobstant les inhibitions, je
ne nommeray pas ceux qui en
propre et convenable à celui; et qu'il y avois eu des grands sant chargez à présent, mais si
Roys successeurs d'Alexandre, [à] sçavoir le Roy des Epirotes vous voulez communiquer avec
moy je vous les nommeray ..
et le Roy de Massedonien, lesquels ont eu guerre contre les GODEFROY, Théodore e
Romains, et étant approchés prés le camp desdits Romains, Denys. Le Ceremonialfrançoá,
etant avertis par un découvreur qu'ils avoient au camp desdits tomo II , p . 582. Grifo nosso.

Romains, et iceux Romains marchoient en bataille, ils eurent " PLUTARCO. Les vice des
envie de les voir et à ces fins monterent en un lieu eminent &mames ilustres. Traduction de
Jacques Amyot. Edition établie
0111 ils virent marcher les dits Romains en si bon equipage et et annotée par Gérard Walter.
ordre qu'ils dirent incontinent: Voila une armée qui marche Paris, Gallimard, 1951, p. 886.
non à la Barbare mais à la grecque. Paulemile [Paulo Emílio]
après avoir vaincu les Massedoniens fis un grand banquet
lequel ordonna et fit sa place au milieu et disoit que c'étoit
vu meshuy d'ordonner une armée comme un festin, à pareille
raison s'il y avoit icy quelques Etrangers qui vissens cet ordre ils
diroient que ce n'est point une Cour des Barbares, comme ils
etoient anciennement en ce pays, mais une Cour des Français.
Les Roys predecesseurs ons eté imitateurs des Romains et faits
meilleures plusieurs de leurs François de faire."

Montaigne, por sua vez, iniciou seu ensaio com a mesma


metáfora :

[A]Quand le Roy Pyrrhus passa en Italie, apres qu'il eut


reconneu Fordonnance de l'armée que les Romains luy
envoyoient au devant : Je ne sçay, dit-il, quels barbares sont
ceux-ci (car les Grecs appeloyent ainsi toutes les nations
estrangieres), mais la disposition de cette armée que je voy,
n'est aucunement barbare. Autant en dirent les Grecs de celle
que Flaminius fit passer en leur pais, [Cl et Philippus, voyant ,8 . Registre secret du
Parlement de Bordeaux .
d'un tertre l'ordre et distribution du camp Romain en son (copia Verthamon), Tomo
royaume, sous Publius Sulpicius Galba. [A] Voylà comment 16, pp. 610-612. Ver também
GODEFROY, Th. &D. 0,p.
il se faut garder de s'atacher aux opinions vulgaires, et les faut dr., Tomo II, pp. 580-584
juger par la voye de la raison, non par la voix comrnune."
'9 MONTAIGNE, Michel de.
Les Essa is, I, 31, p. 202.

259
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

Montaigne e a injustiça social

Mesmo já tendo certeza de que as "observações canibais"


são de autoria do próprio Montaigne, assim corno o cenário do
encontro, nos parece oportuno fazer algumas considerações a respeito
da dificuldade em conciliar a suposta "revolução social" contida no
discurso canibal com o conservadorismo político do ensaísta. Já
dissemos que esse aspecto foi responsável, em grande parte, por
fazer figurar Montaigne na galeria dos ilustres precursores das idéias
de caráter "socialista". Trata-se de um mal-entendido, pois não há
nada mais estranho ao pensamento de Montaigne do que a idéia
de "revolução social". O escritor foi, tanto em política como em
religião, um conservador. Ele acreditava que era preferível manter a
ordem vigente, ainda que imperfeita, do que aventurar-se em idéias
reformistas ou revolucionárias, cuja eficácia era duvidosa. Na disputa
religiosa que dividiu a França em dois blocos antagônicos, ele não
hesitou e manteve-se fiel ao catolicismo. Politicamente falando, era
um monarquista convicto, sem deixar, porém, de ser crítico em relação
às obrigações e à responsabilidade do poder real. Montaigne escreveu
a segunda "observação canibal" à maneira de um aviso, mas que se
transformou em "profecia". Aviso, porque sua intenção era alertar
as autoridades do seu país sobre o perigo potencial representado
pela existência de uma parcela da população vivendo em condições
precárias, sem moradia, alimentação e roupas. Profecia, porque a
segunda "observação canibal" antecipou o grande movimento de
idéias que marcou profundamente, ao longo dos séculos seguintes, o
pensamento político e econômico.
O alerta lançado pelo escritor Montaigne encontra confirmação
em uma carta que o prefeito Montaigne enviou ao rei Henrique
III, irmão e sucessor de Carlos IX. Por dois mandatos consecutivos
(entre 1581 e 1585), Montaigne foi prefeito de Bordeaux, tendo
sido indicado para o cargo por nomeação real, pouco tempo depois
da publicação dos Ensaios (1580). Em carta datada de 31 de agosto
de 1583, Montaigne, juntamente com os membros do conselho
municipal da cidade, faz suas "remonstrances" ao rei, com a intenção
de assegurar o « repos universel de ce royaume >> e reclama da pesada
carga de tributos a que o povo era submetido 40. Ele lembra que as
antigas leis partiam do princípio de que « toutes impositions doibvent
estre faites esgalement sur toutes personnes, le fort portant le foible »
e que era « tres raizonnable que ceulx qui °nu les moiens plus grands,
4" A carta foi descoberta pelo
arquivista Detcheverry e se ressentent de la charge plus que ceulx qui ne vivent qu'avec hazard
publicada no Courrier de la et de la sueur de leur corps ». As coisas não aconteciam, porém, dessa
Gironde de 21 de janeiro de
1856.
forma, diz o prefeito-escritor. Ele enumera os impostos pagos pelo

260
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

povo, denuncia os privilégios fiscais dos ricos e se faz porta-voz da


insatisfação popular, em tom veemente:

De façon que désormais quand ii conviendra impozer quelque


dace ou imposition, II faudra qu'elle soit portée par le moindre
et le plus pouvre nombre des habitants des villes, ce qui est
du tout impossible. 41

Montaigne lembra ao rei Henrique III o que seu irmão Carlos


IX tinha feito em benefício dos mais pobres: a obrigação de cada
cidade de alimentá-los e assisti-los. O prefeito ajuda a entender por
que o escritor pôs na boca dos índios brasileiros questões que estavam
na ordem do dia:

Et de tant que la misere du ternps a este si grande puis le


malheur des guerres civilles, que pluzieurs personnes de tous
sexes et qualités sont réduicts, à la mendicité, de façon que on
ne veoid par les villes et champs, qu'une multitude effrennée de
pouvres, ce qui n'adviendroit sy l'édict faict par feu de bonne
memoire le Roy Charles, que Dieu absolve, estoit gardé :
contenant que chasque paraoisse seroit tenue nourrir ses
pauvres, sans qu'il leur feut loysible de vaguer ailleurs. 42

Montaigne não desejava absolutamente uma "revolução" nem


tampouco cria que a pobreza, o desequilíbrio econômico e a injustiça
social pudessem ser resolvidos colocando fogo nas casas dos ricos (dos
quais ele fazia parte). Ele faz um apelo ao bom senso e à inteligência
daqueles que estavam no poder, a fim de evitar uma revolta popular.
No "conto canibal", ele ousou elaborar um discurso incendiário, mas
este não traduz necessariamente a maneira como ele entendia que o
problema deveria ser resolvido. Por detrás da máscara dos canibais,
personagens de uma ficção elaborada conscientemente, Montaigne
pôde dar livre curso à sua indignação civil. Quando comparamos a
carta a Henrique III com a segunda "observação canibal", fica evidente
que ambas traduzem a mesma aspiração do escritor-prefeito por uma
sociedade justa e fraterna. Ele defende a causa dos pobres de Bordeaux,
não porque sonhe com uma sociedade igualitária ou utópica, mas antes
porque se preocupa em evitar a desordem e a ruína das instituições.
Montaigne não questiona absolutamente a organização social e as
diferenças de classe entre as pessoas, mas reclama uma assistência
" MONTAIGNE, Michel de.
digna aos mais necessitados, afim de que não se revoltem contra o CEuvres complètes, p. 1374.
Estado e instaurem o caos na sociedade.
42 Idem, p. 1377.

261
JOSÉ ALEXANDRINO DE SOUZA FILHO

Conclusão

Ao cabo do nosso percurso através dos artifícios utilizados pelo


escritor para fazer sua defesa da humanidade dos índios, constamos
que a entrada e a estadia de Carlos IX em Bordeaux forneceram
os elementos a partir dos quais Montaigne escreveu seu ensaio.
Por um lado, a entrada ofereceu o cenário para a criação daquilo
que poderíamos chamar de "conto canibal", ou seja, o episódio da
[(
conversação" do rei francês com os canibais brasileiros, por outro,
a estadia forneceu, através da mercurial pronunciada por Michel de
L'Hospital, a metáfora com a qual Montaigne inicia seu ensaio. A
entrada forneceu ainda a documentação que serviu, por um lado,
como estímulo à imaginação criadora do escritor, através da passagem
citada da relação impressa por Thomas Richard, e, por outro, talvez
como inspiração para a passagem sobre as areias do Medoc, através
da Antiquité de Bourdeaus de Elie Vinet.
"O dito selvagem, antes de ser descoberto, foi inventado": com
essas palavras o historiador italiano Guiseppe Cocchiara sintetizou
a maneira como os europeus descreveram, representaram e julgaram
os povos ditos primitivos desde o século XVI 43 . O conhecimento
de sua existência estimulou a imaginação de certos humanistas
renascentistas que projetaram sobre eles idéias ou lhes emprestaram
voz e sentimentos, de acordo com suas intenções e engajamentos.
Talvez melhor do que seus colegas humanistas renascentistas ou
filósofos iluministas, Montaigne mereça ser chamado de "inventor"
do "bom selvagem". Vimos como ele habilidosamente construiu seu
ensaio, alterando datas, lugares e fatos, mesclando lembranças pessoais
e sugestões livrescas, para protestar e alertar pela voz dos canibais. O
blefe enaltece a figura do escritor, confirma sua arte, ao mesmo tempo
em que ilumina os "bastidores" de sua criação literária.
Num ensaio significativamente chamado "Da força da
imaginação" (I, 21), ele explica o uso que fazia de histórias fabulosas
ou inventadas. O que importava, dizia, não era se o fato tinha ou não
acontecido realmente, mas o conteúdo de verdade que ele pudesse
transmitir. As histórias fabulosas, desde quando teoricamente
possíveis, podiam ser tão edificantes quantos os exemplos fornecidos
pelas verdadeiras. O importante, afinal, era o efeito que elas pudessem
causar no leitor, em beneficio das ideias que o escritor desejava veicular.
Se atentarmos bem, aquilo que constamos ao longo da análise, já foi
dito pelo próprio escritor, que explica assim sua arte do blefe, tão
43 COCCHIARA, Guiseppe.
//mito dei lnion selvaggio
magistralmente exemplificada no ensaio sobre os índios brasileiros:
Introduzione alla storia de//e
teorie etnologicbe. Messina, Casa
Editrice G. d'Anna, 1948, p. 7.
[C] Aussi en l'estude que je traitte de noz mceurs et

262
A ARTE DO BLEFE: MONTAIGNE E O "MITO DO BOM SELVAGEM"

mouvernens, les tesmoignages fabuleux, pourveu qu'il soient


possibles, y servent cornme les vrais. Advenu ou non advenu,
à Paris ou à Rome, à Jean ou à Pierre, c'est tousjours un tour
de l'humaine capacité, duquel je suis utilement advisé par ce
recit. Je le voy et en fay mon profit egalement en umbre qu'en
corps. Et aux diverses leçons qu'ont souvent les histoires, je
prends à me servir de celle qui est Ia plus rare et memorable.
Ii y a des autheurs, desquels la fim c'est dire les evenemens.
La mienne, si j'y sçavoye advenir, seroit dire sur ce qui peut
advenir. (...) [C] Aux exemples que je tire ceans, de ce que
j'ay °ui, faict ou dict, je me suis defendu d'oser alterer jusques
aux plus legeres et mutiles circonstances. Ma conscience ne
falsifie pas un jota, ma science je ne sçay."

44 MONTAIGNE, M..chel de.


Les Essais, I, 21, p. 106.

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