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Caderno de Direito Constitucional – 2006

Marçal Justen Filho

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Direção
Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon

Conselho
Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira

Coordenador Científico do Módulo de Direito Constitucional


Juiz Federal Jairo Gilberto Schäfer

Assessoria
Isabel Cristina Lima Selau

___________________________________________
CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Organização
Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling

Revisão
Leonardo Schneider
Maria Aparecida Corrêa de Barros Berthold
Maria de Fátima de Goes Lanziotti

Capa e Editoração
Alberto Pietro Bigatti
Marcos André Rossi Victorazzi
Rodrigo Meine

Apoio
Seção de Reprografia e Encadernação

Contato:
E-mail: emagis@trf4.gov.br
Fone: (51) 3213-3041, 3213-3043 e 3213-3042
www.trf4.gov.br/emagis

2
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Marçal Justen Filho

Apresentação

O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do


Tribunal Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em
encontros mensais, voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes
federais substitutos da 4ª Região, que atende ao disposto na Emenda
Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre outros, propiciar aos
magistrados, além de uma atualização nas matérias enfocadas, melhor
instrumentalidade para condução e solução das questões referentes aos casos
concretos de sua jurisdição.

O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto


desta Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender
às necessidades dos participantes.

O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como


artigos, jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores
brasileiros e estrangeiros compilados pela EMAGIS e destina-se aos
magistrados da 4ª Região, bem como a pesquisadores e público interessado
em geral.

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Caderno de Direito Constitucional – 2006
Marçal Justen Filho

Índice:

Ordem Econômica e Financeira


Ministrante: Marçal Justen Filho

Ficha Técnica......................................................................................................................................... 02
Apresentação......................................................................................................................................... 03

Texto: Capítulos 10, 11 e 12 - in “Curso de Direito Administrativo”, 2006 - 2ª edição, Editora


Saraiva, São Paulo.
Autor: Marçal Justen Filho

Os princípios da ordem econômica ................................................................................................... 05


Capítulo X – Tipos de Atividade Administrativa: a regulação econômico-social
X.1 – Definição....................................................................................................................................... 07
X.2 – A configuração de um Estado Regulador..................................................................................... 08
X.3 – Regulação e poder de polícia....................................................................................................... 11
X.4 – A competência regulatória............................................................................................................ 12
X.5 – O instrumental jurídico para a regulação..................................................................................... 12
X.6 – O âmbito subjetivo da regulação................................................................................................ 14
X.7 – O âmbito de abrangência objetiva da regulação.......................................................................... 14
X.8 – A intervenção estatal na Ordem Econômica................................................................................ 15
X.9 – As finalidades da regulação: a regulação econômico-social...................................................... 18
X.10 – As agências reguladoras independentes................................................................................... 22
X.11 – O desempenho de atividades regulatórias setoriais.................................................................. 33

Capítulo XI – Tipos de atividade administrativa: serviço Público


XI.1 – Definição...................................................................................................................................... 35
XI.2 – A natureza institucional do serviço público.................................................................................. 37
XI.3 – Os três aspectos do conceito de serviço público........................................................................ 37
XI.4 – O serviço público é uma intervenção estatal no domínio econômico.......................................... 38
XI.5 – A qualificação da atividade como um serviço público................................................................. 40
XI.6 – Os serviços públicos no direito brasileiro.................................................................................... 40
XI.7 – O regime jurídico no serviço público........................................................................................... 43
XI.8 – A chamada “crise do serviço público” e as tendências à renovação do instituto........................ 47
XI.9 – A sobrevivência do serviço público............................................................................................. 53
XI.10 – As classificações de serviço público......................................................................................... 53

Capítulo XII – Tipos de atividade administrativa: exploração direta de atividade econômica


pelo Estado
XII.1 – Definição..................................................................................................................................... 55
XII.2 – A questão da ordem econômica................................................................................................. 56
XII.3 – O desempenho direto de atividade econômica propriamente dita............................................. 56
XII.4) Os pressupostos da atuação direta do Estado no domínio econômico....................................... 58
XII.5) As entidades administrativas........................................................................................................ 60
XII.6) Função administrativa e exercício direto de atividade econômica............................................... 60
XII.7) A submissão ao regime de Direito Público................................................................................... 61

Anexo
Apresentação da aula em PowerPoint................................................................................................... 63

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

"Curso de Direito Administrativo"


2006 - 2ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, p. 456-577
Marçal Justen Filho

IV.9.3) Os princípios da ordem econômica


O desenvolvimento da atividade administrativa é potencialmente apto a interferir
com o desenvolvimento da atividade econômica. Aliás, há quem diga que alguns institutos
administrativos são manifestação da atividade econômica, tema ao qual se retornará
adiante. É relevante assinalar que a disciplina da ordem econômica não pode ser ignorada
pela administração pública, ao longo do desenvolvimento de seus encargos.
São considerados como princípios da ordem econômica (a) o capitalismo e a
propriedade privada, (b) a livre iniciativa, (c) a livre concorrência.

IV.9.3.1) O capitalismo e a propriedade privada


Um princípio fundamental da ordem econômica reside na propriedade privada,
inclusive dos meios de produção. O Brasil consagra sistema econômico capitalista,
caracterizado pelo reconhecimento da utilização pelos particulares dos bens econômicos
para obtenção de lucro e acumulação de riqueza (Constituição, art. 170).
Essa organização econômica se alicerça sobre a propriedade privada, protegida pela
Constituição em inúmeras passagens. O art. 5° faz referência a ela no seu caput e nos incs.
XXII a XXVI. O art. 170, inc. II, também alude à propriedade privada como princípio. Há
proteção indireta à propriedade por meio dos dispositivos contemplados nos arts. 5°, inc.
LIV, e 150, inc. IV.

IV.9.3.2) A livre iniciativa


A livre iniciativa é um princípio fundamental ao capitalismo. Consiste na vedação
ao Estado de impor compulsoriamente aos particulares a escolha quanto ao modo de
exploração econômica. Significa a liberdade de desempenho de atividades econômicas, de
modo que os particulares podem aplicar seus recursos econômicos como bem o
entenderem. A livre iniciativa está referida no art. 170, parág. único.
Lembre-se que a livre iniciativa não impede a existência de serviços públicos (art.
175), nem de monopólios estatais (tal como se vê nos arts. 176 e 177). Não se confundem
serviços públicos e monopólios estatais, tal como será exposto adiante.
Os serviços públicos são atividades essenciais à satisfação de necessidades
coletivas, retiradas do âmbito da livre iniciativa e cujo desempenho faz-se sob regime de
Direito Público. Já os monopólios são atividades de interesse econômico, que são
apropriadas pelo Estado por alguma razão de cunho político.
Mesmo no tocante às atividades econômicas propriamente ditas, admite-se a
subordinação da exploração privada à comprovação do preenchimento dos requisitos
mínimos, previstos em lei (art. 170, parág. único).

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IV.9.3.3) A livre concorrência


A livre concorrência significa a vedação à interferência estatal sobre os mecanismos
de competição econômica1. A atividade econômica sujeita-se aos mecanismos de mercado,
os quais influenciam a alocação de recursos e a formação dos preços. De modo direito, a
livre concorrência está protegida no art. 170, inc. IV, da Constituição. Mas comporta
proteção por outras vias, tal como se constata do art. 174, que restringe a interferência
estatal no âmbito da competição econômica.
Por outro lado, há disciplina de extraordinária importância, contemplada no art. 173
e seu § 1°, da Constituição. Ali se faculta ao Estado o exercício direto de atividades
econômicas, desde que preenchidos determinados pressupostos. Mas se estabelece que,
quando assumir diretamente o desempenho de atividades econômicas, o Estado se sujeitará
ao regime de Direito Privado, sendo vedada a atribuição a ele de algum benefício ou
vantagem não assegurado igualmente aos demais particulares.
A livre concorrência não elimina o dever de intervenção estatal para reprimir abusos
e desvios (art. 173, § 4°).

1
“Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos
comerciais do mesmo ramo em determinada área.” (Súmula 646 do STF).

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Capítulo X - Tipos de atividade administrativa: a


regulação econômico-social

X.1) Definição
A regulação econômico-social consiste na atividade estatal de intervenção
indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de modo permanente e
sistemático para implementar as políticas de governo e a realização dos direitos
fundamentais.

X.1.1) A regulação
A utilização do vocábulo “regulação” não é casual e não pode ser substituído por
“regulamentação”.
Na terminologia consagrada entre nós, a expressão “regulamentação” corresponde
ao desempenho de função normativa infra-ordenada, pela qual se detalham as condições de
aplicação de uma norma de cunho abstrato e geral,2 tal como dispõe o art. 84, inc. IV, da
Constituição.
O conceito de “regulação” é muito mais amplo e qualitativamente distinto.
Eventualmente, a “regulação” pode se traduzir em atos de “regulamentação”. O
aprofundamento no conceito de regulação se fará adiante.

X.1.2) econômico-social
Embora seja costumeira a alusão a “regulação econômica”, isso não significa que a
regulação seja dotada de uma única dimensão. Toda a regulação é concomitantemente
econômica e social. Isso significa que a intervenção estatal no âmbito econômico
corresponde sempre à promoção de valores sociais. Toda e qualquer atuação regulatória
consiste num conjunto de providências econômicas e sociais.

X.1.3) consiste na atividade estatal


A regulação econômico-social é um dos tipos de atividade estatal, que se traduz no
desempenho tanto de função administrativa como legislativa, jurisdicional e de controle.
Portanto, seria um equívoco imaginar que a regulação corresponde apenas ao exercício de
atividade administrativa.
Ademais disso, a regulação econômico-social compreende atuações provenientes
das diversas órbitas federativas.

X.1.4) de intervenção indireta


Uma característica essencial da regulação reside na sua natureza exclusivamente

2
Sob enfoque algo distinto, confira-se EROS GRAU, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 3ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2000.

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normativa. A regulação consiste na adoção de normas e outros atos estatais, sem se traduzir
na aplicação dos recursos estatais para o desempenho direto de alguma atividade no
domínio econômico-social. A regulação estatal consiste numa atuação jurídica, de natureza
repressiva e promocional, visando a alterar o modo de conduta dos agentes públicos e
privados.

X.1.5) sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados,


A regulação dirige-se a disciplinar preponderantemente a conduta dos particulares,
mas isso não exclui a submissão dos sujeitos públicos à regulação. Aliás, a submissão
inclusive das entidades estatais à regulação é uma característica marcante da concepção
regulatória. Isso se obtém pela consagração de entidades administrativas dotadas de forte
autonomia e de competência para vincular a própria administrativa direta centralizada.

X.1.6) de modo permanente e sistemático


A regulação se caracteriza pela organização de meios materiais e humanos, com a
criação de estruturas administrativas especializadas, visando a desempenho contínuo e
racional. A regulação consiste não apenas na produção de normas e atos decisórios, mas na
produção ordenada de normas e atos decisórios.
Como afirmou SELZNICK, a regulação consiste em um controle permanente e
concentrado, exercido por uma autoridade pública sobre atividades dotadas de um certo
valor social.3

X.1.7) para implementar as políticas de governo e a realização dos direitos


fundamentais
A regulação não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para promover
conscientemente os fins essenciais do Estado. A característica da racionalidade da
regulação se revela também nessa necessária vinculação entre as providências adotadas e os
fins políticos e os valores fundamentais buscados pelo Estado.

X.2) A configuração de um Estado Regulador


Sempre se reconheceram poderes de natureza “regulatória” ao Estado, eis que a
natureza do Direito se relaciona diretamente com o conceito de “regulação”. Mas as
expressões “regulação” e “Estado Regulador” têm conteúdo muito específico4.

X.2.1) A regulação como a opção preferencial pela intervenção indireta


A regulação consiste na opção preferencial do Estado pela intervenção indireta,
puramente normativa. Revela a concepção de que a solução política mais adequada para

3
Regulatory Policy and the Social Sciences, Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1985,
p. 363, apud GIANDOMENICO MAJONE, La Communauté européenne: un État régulateur, Paris:
Montcheristien, 1996, p. 16.
4
Em sentido similar, CALIXTO SALOMÃO FILHO, Regulação da Atividade Econômica: Princípios e
Fundamentos Jurídicos, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 13 e 14.

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obter os fins buscados consiste não do exercício direto e imediato pelo Estado de todas as
atividades de interesse público. O Estado Regulador reserva para si o desempenho material
e direto de algumas atividades essenciais e concentra seus esforços em produzir um
conjunto de normas e decisões que influenciem o funcionamento das instituições estatais e
não estatais, orientando-as em direção de objetivos eleitos.
Esse conjunto de normas chega a ser identificado como um ramo específico do
Direito, o Direito Econômico (ou o Direito Público da Economia).

X.2.2) A regulação não se confunde com o dirigismo estatal


O modelo regulatório diferencia-se do dirigismo econômico que, visando à
realização do projeto de Bem-Estar, foi praticado em inúmeros países.
O dirigismo consiste na supressão da autonomia empresarial privada (senão a
eliminação da própria empresa privada), assumindo o Estado competências amplas e
ilimitadas no setor econômico. Esse modelo caracterizava-se pelo planejamento
centralizado e rejeitava espaços alheios ao Estado para a implantação de projetos com outra
configuração.
O dirigismo manifestava-se como um projeto estatal de dominação tanto sob um
ângulo de extensão como de intensidade. Sob o ângulo da extensão, o dirigismo conduzia a
submeter ao poder estatal todas as atividades relevantes para o interesse coletivo. Sob o
prisma da intensidade, acarretava a intromissão estatal no íntimo das decisões pertinentes às
diferentes unidades empresariais.5
Ainda que seja impossível reconhecer a existência de um único modelo de
regulação, sempre prevalece a concepção da subsidiariedade. Isso significa a consagração
dos princípios gerais da livre iniciativa e da livre empresa, reservando-se ao Estado o
instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de
valores fundamentais.
Como assinala CARLOS ARI SUNDFELD, “A regulação é – isso, sim –
característica de um certo modelo econômico, aquele em que o Estado não assume
diretamente o exercício de atividade empresarial, mas intervém enfaticamente no mercado
utilizando instrumentos de autoridade. Assim, a regulação não é própria de certa família
jurídica, mas sim de uma opção de política econômica”.6

X.2.3) O modelo do “Estado Regulador”


A relevância reconhecida à regulação conduziu a doutrina a afirmar a existência de
um novo modelo de Estado. O Estado Regulador foi objeto de teorização especialmente por
GIANDOMENICO MAJONE.7
Segundo esse enfoque, é possível afirmar que o Estado de Bem-Estar Social evoluiu

5
Confira-se WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA, Primeiras linhas de Direito Econômico, 2ª ed.
at. por Terezinha Helena Linhares, Belo Horizonte: FBDE, 1992, p. 147 e ss.
6
Serviços Públicos e Regulação Estatal, em Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros –
SBDP, 2000, p. 23.
7
Confira-se em La Communauté Européenne: un Etat Régulateur, Paris: Montchrestien, 1996. Mais recente e
sob enfoque mais amplo, há obra de GIANDOMENICO MAJONE em co-autoria com ANTONIO LA
SPINA, Lo Stato Regulatore, Bologna: Il Mulino, 2000.

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para transformar-se num Estado Regulador. Os poderes regulatórios externam não apenas
uma mera circunstância da existência do Estado como instituição política, mas lhe
asseguram natureza própria e inconfundível.
O modelo regulatório propõe a extensão ao setor dos serviços públicos de
concepções desenvolvidas na atividade econômica privada. Somente incumbe ao Estado
desempenhar atividades diretas nos setores em que atuação da iniciativa privada, orientada
à acumulação egoística de riqueza, colocar em risco valores coletivos ou for insuficiente
para propiciar a sua plena realização. O Estado deve manter sua participação no âmbito da
segurança, da educação e da seguridade social, evitando a mercantilização de valores
fundamentais.
O modelo regulatório apresenta algumas modificações fundamentais em face aos
modelos clássicos de Estado de Providência.
A primeira relaciona-se com o âmbito de abrangência das atividades sujeitas aos
regimes de Direito Público e de Direito Privado. Por um lado, há a transferência para a
iniciativa privada de atividades desenvolvidas pelo Estado, desde que dotadas de forte
cunho de racionalidade econômica. Por outro, há a liberalização de atividades até então
monopolizadas pelo Estado, para propiciar a disputa pelos particulares em regime de
mercado.
A segunda peculiaridade da concepção regulatória de Estado reside na inversão da
relevância do instrumento interventivo. Anteriormente, preconizou-se o exercício direto
pelo Estado de funções econômicas. O novo paradigma privilegia a competência
regulatória. O Estado permanece presente no domínio econômico, mas não mais como
exercente direto de atividades.
A terceira característica reside em que a atuação regulatória do Estado se norteia
não apenas pela proposta de atenuar ou eliminar os defeitos do mercado. Tradicionalmente,
supunha-se que a intervenção estatal no domínio econômico destinava-se a dar suporte ao
mecanismo de mercado e a eliminar eventuais desvios ou inconveniências. Já o modelo
regulatório admite a possibilidade de intervenção destinada a propiciar a realização de
certos valores de natureza política ou social. O mercado não estabelece todos os fins a
serem realizados pela atividade econômica. Isso se torna especialmente evidente quando o
mecanismo de mercado passa a disciplinar a prestação de serviços públicos. A relevância
dos interesses coletivos envolvidos impede a prevalência da pura e simples busca do lucro.
A quarta característica do Estado Regulador reside na institucionalização de
mecanismos de disciplina permanente das atividades reguladas. Passa-se de um estágio de
regramento estático para uma concepção de regramento dinâmico. Como apontam LA
SPINA e MAJONE, a regulação deve ser entendida “como um processo, em que interessa
não apenas o momento da formulação das regras, mas também aqueles da sua concreta
aplicação, e, por isso, não a abstrata mas a concreta modificação dos contextos de ação
dos destinatários”.8

X.2.4) A disputa ideológica


O modelo do Estado Regulador ainda está sendo produzido. Há um ponto comum

8
Lo Stato Regulatore, cit., p. 28.

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nas diversas propostas encontradas: a redução da atuação direta do Estado.


Mas existem divergências de grande extensão. Num extremo, encontram-se os
defensores do absenteísmo estatal, partidários de concepções qualificadas como neoliberais.
Antagonicamente a eles, posicionam-se os que propugnam por uma intervenção estatal
exaustiva, mesmo que regulatória.
Os excessos de ambas as posições devem ser atenuados. A democracia exige a
garantia da autonomia individual e da sociedade civil, mas a realização dos valores
fundamentais a um Estado Social impõe a participação de todos os segmentos sociais.
É necessário promover a redução da intervenção direta do Estado, porque o custo
econômico pode se transformar em insuportável para a sociedade. Mas essa redução
somente pode ser admitida quando acompanhada da funcionalização de poderes
reconhecidos à iniciativa privada.
A retirada da atuação direta do Estado não equivale à supressão da garantia de
realização dos direitos fundamentais, mas apenas à modificação do instrumental para tanto.
Somente se admite a privatização na medida em que existam instrumentos que garantam
que os mesmos valores buscados anteriormente pelo Estado serão realizados através da
atuação da iniciativa privada.
Como assevera um autor, “as tarefas de ‘garantia’ e ‘regulação’ aumentam em
medida diretamente proporcional à diminuição da produção ‘direta’ de bens e serviços;
quanto mais o Estado se afasta dos fatores da produção, tanto mais deve reforçar as funções
orientadas a suprir a supressão das garantias legais inerentes ao sistema de produção
pública de bens e serviços”.9

X.3) Regulação e poder de polícia


Sob um certo ângulo, a regulação consiste na utilização permanente, racional e
intensificada das competências de poder de polícia.

X.3.1) O poder de polícia como instrumento da atuação estatal repressiva


Na concepção clássica, o poder de polícia era visto como uma competência estatal
orientada a reprimir o exercício de faculdades privadas, visando a assegurar a ordem
pública. A ampliação da complexidade sócio-econômica conduziu à necessidade de
ampliação do âmbito de intervenção estatal.
A regulação é um estágio posterior nessa evolução, em que o Estado restringe a
autonomia dos particulares, visando a constrangê-los ou a induzi-los a produzir as condutas
reputadas como socialmente úteis ou indispensáveis.

X.3.2) A regulação e a concepção promocional do direito


A regulação vale-se não somente da imposição da repressão (deveres de abstenção),
mas incorpora a promoção (deveres de fazer) como solução indispensável para atingir os
resultados pretendidos pelo Estado.

9
PAOLO LAZZARA, Autorità independenti e discrezionalità, Padova: Cedam, 2001, p. 72.

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No modelo regulatório, o Estado restringe sua atuação direta e as necessidades


coletivas são satisfeitas pela atuação apenas dos próprios particulares. A regulação estatal
perde sua conotação apenas repressiva e adquire contornos claramente promocionais.10
A distinção entre função repressiva e função promocional do direito é bastante
útil. BOBBIO assinalou que o Direito do séc. XIX preocupava-se, essencialmente, com a
repressão das condutas indesejáveis, elegendo a sanção como instituto fundamental. Ao
longo do séc. XX, tornou-se evidente que a concretização dos objetivos sociais depende da
mudança dos padrões de comportamento individuais. Não basta a abstenção, é necessária a
ação positiva de todos os sujeitos para realizar os valores fundamentais. As sanções
clássicas são incapazes de produzir essa transformação e surgem novos instrumentos
jurídicos destinados a incentivar a adoção das condutas desejáveis.
Surgem, então, as chamadas sanções positivas ou premiais. A norma jurídica
contempla, no mandamento, a determinação de que o sujeito terá direito a receber um
benefício. Ou seja, o esquema normativo visa não a punir, mas a premiar. Aquele que
cumprir uma certa conduta terá direito a um benefício em face do Estado.
A consagração desses novos modelos normativos representou uma alteração
significativa para o Direito Administrativo. Assim, por exemplo, admite-se que o sujeito
seja autorizado a edificar além dos limites normais se ele praticar uma determinada conduta
socialmente desejável.

X.4) A competência regulatória


Tal como se passa com as demais atividades administrativas, a regulação é atribuída
à competência dos diversos entes federativos e a discriminação de competências obedece
aos critérios constitucionais gerais. A competência regulatória envolve tanto competências
legislativas como administrativas11, tal como discriminadas constitucionalmente.

X.5) O instrumental jurídico para a regulação


A regulação compreende novos instrumentos jurídicos de intervenção estatal.

X.5.1) A multiplicação dos instrumentos regulatórios


Na visão clássica, o instrumento jurídico mais utilizado era a norma jurídica,
interpretada como um padrão de conduta de observância obrigatória sob coerção estatal.
Segundo essa concepção, as normas têm de ser dotadas de sanção, consistente numa
conseqüência de cunho negativo respaldada pelo poder estatal. A ausência de sanção
configura um defeito normativo. Essa proposta se relaciona com uma concepção de
intervenção estatal predominantemente autoritativa. Sob esse prisma, o Estado impõe e

10
A distinção entre funções repressiva e promocional do Direito reporta-se imediatamente ao pensamento de
NORBERTO BOBBIO. Seus escritos acerca do tema são clássicos e incomparáveis. Vale a pena consultar a
coletânea Dalla Struttura alla Funzione, Milano: Ed. di Comunità, 1977, especialmente os ensaios
compreendidos entre as p. 13 a 122.
11
Não sendo absurda a tese de que a regulação se produz também por meio da intervenção jurisdicional.

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exige comportamentos, os quais devem ser satisfeitos pelos particulares sob pena de sofrer
punições derivadas do exercício dos poderes de império público.
O Estado Regulador se vale, em larga medida, do instrumental normativo clássico.
Mas, adicionalmente, também recorre a outras vias para influenciar o comportamento
humano. Trata-se não apenas da já referida concepção promocional do Direito, em que a
obtenção das condutas desejadas é induzida por meio de sanções ditas positivas ou
premiais. Além disso, torna-se extremamente relevante um instrumento normativo que
poderia ser qualificado como atenuado.
Há manifestações estatais de incentivo, orientação, sugestão. Em muitos casos, o
Estado não determina, mas solicita a adoção de certos parâmetros. Em outros, há soluções
negociadas, em que se compõem os interesses através de avenças de cunho bilateral.
É problemático reconduzir essas espécies de providências estatais ao esquema
normativo tradicional. Perante esse, essas fórmulas de atuação estatal são classificadas
como “não jurídicas” ou meras manifestações irrelevantes. No entanto, constata-se que
esses instrumentos prestam-se a influenciar, de modo efetivo, a conduta dos seres humanos
e das empresas. Generalizou-se, em doutrina, a denominação “soft-law” (direito suave)
para indicar “uma declaração cujo intento é normativo (no sentido de dirigir-se a
influenciar a conduta dos destinatários), as mais das vezes adotadas pela Administração
Pública ou por organizações internacionais, mas definidas (geralmente pelos próprios
autores) como carentes de uma plena força jurídica vinculante”.12 Tal como exposto ao
início desta obra, essas figuras são consideradas por alguns como uma das características do
chamado Direito pós-moderno.13

X.5.2) Ainda a questão do poder, da violência e da democracia


A integração desse novo instrumental no direito depende da compreensão de que o
Estado se relaciona com a sociedade não apenas por via da violência. Tal como exposto no
começo desta obra, o poder é produzido pela atuação conjunta de diversos sujeitos. Na
sociedade democrática, a autoridade é gerada pelo reconhecimento do próximo como um
co-partícipe no processo de governança.
A regulação é uma concepção de governo que depende da afirmação de uma
democracia republicana. O Estado, atuando isoladamente, não é capaz de produzir todo o
bem necessário à satisfação das necessidades coletivas. É necessário o concurso dos
particulares para a redução das desigualdades. Mas a sociedade não assumirá sua parcela de
atuação se for tutelada pelo Estado por meio da pura e simples violência.
O Direito Administrativo incorpora a integração de esforços e compromissos entre o
Estado e a sociedade. Há mecanismos autoritativos, em que o Estado impõe unilateralmente
e mediante o monopólio da violência, certos objetivos e determinados padrões de conduta.
Mas os grandes objetivos e as mudanças radicais apenas podem ser obtidos por meio do
consenso, refletido em figuras jurídicas que não traduzem o exercício da violência.

12
LA SPINA – MAJONE, Lo Stato Regulatore, cit., p. 87.
13
Confira-se JACQUES CHEVALLIER, L’État post-moderne, Paris: L.G.D.J., 2004, p. 127 e ss.

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X.6) O âmbito subjetivo da regulação


A regulação é dirigida preponderantemente a disciplinar a conduta dos particulares.
Mas também as entidades estatais são subordinadas a elas.

X.6.1) A vinculação estatal espontânea


A atividade regulatória pode traduzir-se em planos, compromissos e deveres
jurídicos assumidos espontaneamente pelos órgãos estatais.
Esses deveres destinam-se a assegurar aos particulares segurança quanto às
perspectivas políticas futuras, reduzindo os riscos de certas atividades socialmente
desejáveis. Assim se passa, por exemplo, quando o Estado assume contratualmente o dever
de reduzir a tributação incidente sobre certas operações.

X.6.2) A atribuição de competência regulatória a entidades independentes


Mas uma alternativa inafastável é a atribuição da competência regulatória a
entidades administrativas autônomas em face do poder político, usualmente conhecidas
como agências reguladoras independentes. Essa opção se destina a atenuar a utilização dos
poderes normativos estatais para fins políticos imediatos.
O surgimento das autoridades administrativas independentes (aí abrangidas também
as agências) é uma experiência comum a todos os demais países ocidentais14. São entidades
integrantes da estrutura estatal, mas que apresentam peculiaridades que as diferenciam das
entidades administrativas tradicionalmente conhecidas nos países de tradição continental.

X.7) O âmbito de abrangência objetiva da regulação


No passado, chegou a se pensar que a regulação era uma solução adotada apenas
para as atividades econômicas e visando exclusivamente os valores econômicos. É
indispensável reconhecer que a regulação se desenvolve em vista de todas as atividades
desenvolvidas por particulares. Assim, alude-se a regulação do meio-ambiente, regulação
da educação, regulação da saúde e assim por diante.
A fragmentação do poder de polícia, fenômeno acima referido, conduz à
intervenção do Estado nos diversos setores da autonomia privada. Essas intervenções
setoriais, quando se traduzem em órgãos especializados dotados de atuação permanente e
continuada, configuram-se como uma forma de regulação estatal.

14
LA SPINA – MAJONE chegam a afirmar que a instituição de autoridades reguladoras, dotadas de uma
margem de autonomia, é indispensável para a instauração de um Estado regulador. Confira-se em Lo Stato
Regolatore, cit., p. 61. Sob um enfoque similar, CARLOS ARI SUNDFELD assevera que “A opção por um
sistema de entes com independência em relação ao Executivo para desempenhar as diversas missões
regulatórias é uma espécie de medida cautelar contra a concentração de poderes nas mãos do Estado,
inevitável nos contextos intervencionistas” (Serviços Públicos e Regulação Estatal, em Direito
Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros – SBDP, 2000, p. 25).

14
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

X.8) A intervenção estatal na Ordem Econômica


Mas a regulação exercitada no âmbito da Ordem Econômica apresenta especial
relevância.

X.8.1) A disciplina constitucional da Ordem Econômica


A Constituição de 1988 consagrou sistema capitalista, fundado na propriedade
privada dos meios de produção e no livre exercício das atividades econômicas. Mas foi
atribuída ao Estado a competência para intervir no domínio econômico.

O esquema abaixo facilita a compreensão da questão.

Indireta (art. 174)

Serviço Público15
Intervenção estatal (art. 175)
Direta
Regime de concorrência
Atividade econômica
(em sentido próprio)16
(art. 173) Regime de monopólio

X.8.1.1) A intervenção indireta ou normativa


A intervenção indireta ou normativa na ordem econômica consiste no exercício pelo
Estado de sua competência legislativa e regulamentar para disciplinar o exercício de
atividades econômicas, desempenhadas na órbita pública ou privada. Seu fundamento
constitucional direto está no art. 174.

A regulação consiste na opção pela intervenção indireta. Mas intervenção estatal


indireta não é sinônimo de regulação. Regulação é uma forma de intervenção indireta que
se caracteriza somente quando o Estado organiza um conjunto de órgãos especializados
para promover intervenção de modo permanente e sistematizado.

X.8.1.2) A intervenção direta17


A intervenção direta na ordem econômica é o desenvolvimento por meio de uma
entidade administrativa de atividades de natureza econômica, em competição com os

15
O instituto do serviço público será estudado no Capítulo XI, abaixo.
16
O exercício de atividade econômica (em sentido próprio) pelo Estado será examinado no Capítulo XII,
adiante.
17
A intervenção direta do Estado na Ordem Econômica será objeto de análise nos Capítulos subseqüentes.

15
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

particulares ou mediante atuação exclusiva.


A intervenção direta na ordem econômica comporta duas vertentes fundamentais.
Pode configurar serviço público ou atividade econômica propriamente dita.
O serviço público existe quando uma atividade econômica é necessária de modo
direto e imediato à satisfação de direitos fundamentais. Como decorrência, essa atividade é
atribuída à titularidade do Estado e submetida ao regime de Direito Público. Isso acarreta a
não aplicação dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. O art. 175 da
Constituição disciplina a matéria.
A atividade econômica propriamente dita reside no desempenho pelo Estado de
atividades que não são diretamente vinculadas à satisfação de direitos fundamentais. Essas
atividades podem ser desempenhadas sob duas modalidades. Ou o Estado as desempenha
em competição com os particulares ou atua sob regime de monopólio.
A regra é o desempenho da atividade econômica propriamente dita pelo Estado sob
regime de concorrência com os particulares (art. 173, caput e § 1°). Mas a Constituição cria
casos de monopólio, que se configuram como exceção e que estão relacionados,
basicamente, no art. 177.

X.8.1.3) Atividade econômica e serviço público


Não há uma distinção intrínseca entre atividade econômica e serviço público. O
serviço público consiste na organização de recursos escassos para satisfação de
necessidades individuais. Portanto, trata-se de uma atividade de natureza econômica.
Logo, o serviço público não pode ser diferenciado de modo absoluto de atividade
econômica, porque apresenta igualmente natureza e função econômicas. É possível
diferenciar serviço público de uma concepção mais restrita de atividade econômica. Logo,
atividade econômica é um gênero, que contém duas espécies, o serviço público e a
atividade econômica (em sentido estrito). Isso não significa que a evolução do cenário
jurídico esteja completa e encerrada. Existem atividades cujo enquadramento em uma das
duas categorias é problemática e que podem ser referidas como atividades de interesse
coletivo.

X.8.1.3.1) A diferença entre serviço público e atividade econômica


Sempre que uma necessidade humana for uma manifestação direta e imediata dos
direitos fundamentais (em especial, a dignidade humana), sua satisfação será imposta ao
Estado como um serviço público. Não é possível deixar que a satisfação da necessidade
seja subordinada à livre iniciativa e às leis de mercado. Se não existisse o serviço público,
haveria o risco de que as necessidades de muitas pessoas não fossem satisfeitas, tal se passa
por exemplo com o fornecimento de água tratada, energia elétrica, coleta e tratamento de
lixo, etc.
Por isso, as atividades materiais necessárias ao suprimento dessa necessidade e a
titularidade da competência para desempenho são atribuídas ao Estado. O serviço público
resulta da obrigatoriedade da satisfação de certa necessidade, independentemente da
capacidade econômica do interessado.
Em contrapartida, cogita-se de atividade econômica propriamente dita quando a
necessidade a ser satisfeita não envolver de modo imediato e direto os direitos

16
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

fundamentais, tal como ocorre com as atividades empresariais conhecidas


(comercialização de comestíveis, prestação de serviços não essenciais etc).
Nesse caso, há uma facultatividade na satisfação do interesse.

X.8.1.3.2) Serviço público e racionalidade econômica


A exploração dos recursos escassos necessários ao atendimento às necessidades
fundamentais envolve uma racionalidade muito mais intensa do que se passa a propósito
das demais atividades. Afinal, trata-se de servir às demandas mais essenciais dos seres
humanos – logo, devem ser adotadas todas as decisões que ampliem a eficácia na utilização
dos recursos, propiciando a melhor satisfação para o mais amplo número de beneficiários.
O desempenho das atividades materiais pertinentes à satisfação dessas necessidades
refletirá certos princípios imperiosos e inafastáveis.

X.8.1.3.3) O campo das atividades econômicas em sentido restrito


A atividade econômica em sentido estrito peculiariza-se pela possibilidade de
exploração econômica lucrativa, voltada à apropriação privada dos benefícios. A satisfação
dessas necessidades, caracterizada por uma relevância secundária em face dos direitos
fundamentais, envolve a livre alocação dos recursos. Cada sujeito privado poderá escolher a
atividade econômica propriamente dita a que se dedicará e para cujo desempenho alocará
seus recursos. Como decorrência, admite-se não apenas que o sujeito privado aplique
livremente seus recursos no desempenho da atividade econômica propriamente dita como
também que dela extraía a maior lucratividade possível, segundo princípios norteadores da
atividade empresarial. O núcleo do conceito de atividade econômica em sentido estrito é a
racionalidade econômica, visando à obtenção do lucro, segundo o princípio do utilitarismo.
De início, o conceito de atividade econômica em sentido estrito pressupõe a utilização
especulativa da propriedade privada, visando precipuamente à realização do interesse
egoístico dos particulares empreendedores.
O conceito de atividade econômica em sentido estrito se fundamenta, portanto, nos
princípios da exploração empresarial, da livre iniciativa e da livre concorrência. Pressupõe
que os sujeitos possam organizar os fatores da produção para obtenção de resultados não
predeterminados pelo Estado, com apropriação privada do lucro.

X.8.1.4) O surgimento de uma terceira categoria: o“serviço de interesse coletivo”


A análise jurídica permite apontar uma terceira espécie, que não está formalmente
referida na Constituição, mas que resulta do sistema jurídico. Trata-se de um conceito
intermediário entre serviço público e atividade econômica em sentido restrito. Abrange
atividades que apresentam características peculiares a ambos os conceitos e cujo regime
jurídico não é integral ou exclusivamente de Direito Público nem de Direito Privado.

X.8.1.4.1) O antigo conceito de serviços públicos virtuais


No passado, costumava-se aludir a serviços públicos virtuais para aludir a um grupo
de atividades econômicas muito similares aos serviços públicos, cuja regulação estatal era
muito intensa. Eram atividades econômicas privadas mas de interesse coletivo, que não

17
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

eram nem monopolizadas pelo Estado nem subordinadas a um regime jurídico


integralmente de Direito Público. Assim se passava, por exemplo, com hotéis, táxis,
farmácias, padarias e outros empreendimentos similares.
Essa categoria apresentava um cunho de residualidade, albergando atividades
bastante díspares entre si e destituídas de relevância econômica maior18.

X.8.1.4.2) A proposta da existência de “serviços de interesse coletivo”


A antiga figura dos serviços públicos virtuais não merece aceitação porque era uma
simples forma de justificar o tratamento diferencial para certas atividades, heterogêneas
entre si.
A categoria de serviços de interesse coletivo abrange um conjunto de atividades de
satisfação de interesses coletivos, mas destituídas de uma carga de essencialidade
imediatamente referida à satisfação da dignidade da pessoa humana. Não há necessidade ou
cabimento de submissão ao regime característico do serviço público. Até se pode
reconhecer que tais atividades continuam na titularidade do Estado e que, portanto, seu
exercício não se enquadra propriamente no âmbito da livre iniciativa. Mas é possível seu
desempenho por uma pluralidade de agentes econômicos, competindo entre si e gerando
um mercado de oferecimento de utilidades, capaz de produzir benefícios e vantagens para
os usuários.
Essa terceira espécie seria integrada por atividades que, anteriormente,
configuraram-se como serviços públicos e por outras que, originalmente privadas,
acabaram adquirindo relevância para fins coletivos. O regime jurídico aplicável a elas passa
a ser o de Direito Privado, mas fortemente impregnado por princípios restritivos da
autonomia privada. As competências fiscalizatórias estatais exercem-se de modo intenso
sobre essa categoria de atividades, impondo limites mínimos de qualidade, garantias de
desempenho, fiscalização em defesa dos usuários e assim por diante. Não há a pura e
simples submissão dessas atividades ao Direito Privado. Enquadra-se nessa categoria a
hipótese de “serviço público sob regime de Direito Privado”, a que se aludiu acima.
Somente podem ser submetidas ao regime intermediário algumas atividades,
aquelas que possam ser desempenhadas sem risco de comprometimento dos direitos
fundamentais. Há setores que exigem a manutenção do regime de Direito Público – ou mais
precisamente, há setores que exigem a manutenção do serviço público.

X.9) As finalidades da regulação: a regulação econômico-social


Na doutrina econômica, é usual apontar a regulação estatal como instrumento para
suprir as deficiências do mercado. Essa visão foi sendo alterada ao influxo dos
acontecimentos, especialmente na segunda metade do séc. XX. No entanto, pode dizer-se

18
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO reconhece que existem “atividades exercidas por
particulares, sem concessão, mas que se entendeu deveriam estar sob o impacto de regras publicísticas”
(Curso de direito Administrativo, cit., p. 621 e ss.).

18
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

que a alteração consistiu muito mais numa ampliação da dimensão da regulação19 do que
numa revisão essencial das concepções iniciais.

X.9.1) A proposta da auto-regulação do mercado


Algumas escolas econômicas afirmam que os mecanismos de mercado seriam aptos
a produzir, por si só e autonomamente, a realização dos fins de interesse público. Ainda que
cada agente econômico oriente sua atuação à obtenção da solução egoística mais
satisfatória, o resultado conjunto seria a satisfação do bem-comum.20 Sob esse ângulo,
regulação consiste no oposto ao livre funcionamento do mercado.
Essa concepção somente pode ser interpretada como uma formulação teórica. Nunca
se verificou concretamente, em país algum. Mais precisamente, a intervenção estatal é
condição de possibilidade da existência do mercado.21

X.9.2) A regulação exclusivamente econômica – a primeira “onda regulatória”


Mas a proposta regulatória se orienta a interferir sobre o mercado, de modo a alterar
a evolução normal dos fatos. Numa etapa inicial, a regulação se caracterizou como a
intervenção estatal destinada exclusivamente a suprir as deficiências e as insuficiências do
mercado.22 A regulação estatal se torna necessária (e legítima) quando não houver
condições de funcionamento satisfatório (eficiente) do mercado, o que se passa
essencialmente nos casos de ausência de concorrência perfeita.
As deficiências de mercado23 envolvem as hipóteses de (a) deficiência na
concorrência, (b) os chamados bens coletivos, (c) externalidades, (d) assimetrias de
informação, (e) desequilíbrio econômico.24 Ou seja:

19
Como observa BURKARD EBERLEIN, “na prática, a regulação de primeira ordem, orientada à
eficiência, é suplementada por uma regulação de segunda ordem, social ou política, que, muito
freqüentemente, relaciona-se com a correção de efeitos indesejados do mercado muito mais do que com a
correção de defeitos do mercado” (Regulating Public Utilities in Europe: Mapping the Problem, Florença:
European University Institute, EUI Working Paper RSC n° 98/42, p. 15).
20
Sobre o tema, confira-se MARIA ROSARIA FERRARESE, Diritto e Mercato, Torino: Giappichelli, 1992,
p. 3-76.
21
Nesse sentido, MARIA ROSARIA FERRARESE afirma que “A institucionalização do mercado é, então,
impensável se prescindir da existência de um garante externo, seja ele a moral ou o direito” (Diritto e
Mercato, cit., p. 72). Em sentido similar, EROS GRAU, O Discurso Neoliberal e a Teoria da Regulação em
Desenvolvimento Econômico e Intervenção do Estado na Ordem Constitucional. Porto Alegre: Sergio Fabris
Editor, 1995, p. 63. Esse autor, aliás, evidencia como os Estados pretensamente partidários de um enfoque
neoliberal adotam políticas fortemente protecionistas.
22
Como afirma CALIXTO SALOMÃO FILHO, “A regulação não visa a eliminar falhas do mercado, mas
sim a estabelecer uma pluralidade de escolhas e um amplo acesso ao conhecimento econômico, que jamais
existirá em um mercado livre” (Regulação da Atividade Econômica..., cit., p. 42).
23
Sobre o tema, confira-se ANA MARIA DE OLIVEIRA NUSDEO, A Regulação e o Direito da
Concorrência, em Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros – SBDP, 2000, p. 163 e ss. Da
mesma autora, para um estudo mais amplo e aprofundado, Defesa da Concorrência e Globalização
Econômica: o Controle da Concentração de Empresas, São Paulo: Malheiros, 2002.
24
Nesse sentido, GIANDOMENICO MAJONE, La Communauté européenne: un Etat régulateur, cit., p. 76.

19
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

deficiência na concorrência

bens coletivos (satisfação de necessidades essenciais)


deficiências
de externalidades
mercado
assimetria de informação

desequilíbrio econômico

X.9.2.1) Deficiência na concorrência


A deficiência na concorrência caracteriza-se quando não existe disputa suficiente e
equilibrada no mercado, o que impede que a concorrência econômica produza seus efeitos
positivos. A deficiência de mercado pode derivar de inúmeros fatores. O caso mais evidente
reside no monopólio.
Costuma-se denominar de direito anti-truste o conjunto de normas destinadas a
prevenir e a reprimir a deficiência na concorrência. No Brasil, a matéria está disciplinada
predominantemente pela Lei n° 8.884/1993.

X.9.2.2) Bens coletivos (satisfação de necessidades essenciais)


O mercado não pode satisfazer necessidades fundamentais, tal como se passa na
área de saúde, educação e assim por diante. Os mais desvalidos não dispõem de condições
de obter essas utilidades através do funcionamento espontâneo do mercado. O direito tem
de regular essas atividades, se não for o caso de transformá-las em serviço público.

X.9.2.3) Externalidades
Externalidade é uma circunstância econômica cujo custo não está contido nos
preços praticados. Usualmente, consiste na transferência (intencional ou não) para terceiros
de custos inerentes à atividade econômica25. Assim se passa quando o Estado (ou alguns
agentes econômicos determinados) são obrigados a suportar despesas decorrentes da
poluição causada por uma indústria. A regulação se orienta a evitar os efeitos danosos das
externalidades.

X.9.2.4) Assimetria na informação


A assimetria de informação significa, então, que os diversos agentes que participam
do processo econômico detêm diferentes graus de informação, o que significa que alguns
dispõem de melhor condição de escolha do que outros. A grande massa de sujeitos participa
das relações econômicas (e de outra natureza) sem dispor de conhecimento equivalente, de
modo que suas decisões são imperfeitas ou inadequadas. Um exemplo é o consumidor, que
costuma ser o maior prejudicado pelo fenômeno da assimetria de informações.

25
Nada impede, contudo, que a externalidade apresente um aspecto positivo, na acepção de que um operador
econômico seria beneficiado por circunstâncias alheias ao processo produtivo propriamente dito.

20
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

A regulação estatal tenta neutralizar o fenômeno. Lembre-se, no entanto, que o


problema da assimetria de informações atinge ao próprio Estado. Muitas vezes, a
informação é tão privilegiada e secreta que o próprio Estado sequer dela tem ciência e deixa
de adotar as providências adequadas por absoluto desconhecimento.

X.9.2.5) Desequilíbrio de mercado


Outro tema relacionado com a regulação envolve o processo de desequilíbrio
próprio do mercado. O processo de acumulação de riquezas, inerente ao capitalismo,
propicia movimentos cíclicos. Há períodos de desenvolvimento a que se seguem épocas de
crise e assim por diante. A atividade empresarial conduz ao lucro e à sua incorporação ao
patrimônio privado. Como efeito, há tendência à redução do ritmo de crescimento, o que
acarreta desemprego – fenômeno agravado pelo acesso permanente de novos sujeitos ao
mercado de trabalho.
A alternância de ciclos é inerente ao capitalismo e não deriva de eventos externos
marcantes. Isso conduz à concepção de que o Estado deve adotar as providências
necessárias a eliminar o desequilíbrio, evitando as causas que conduzem à crise e
propiciando fatores para o desenvolvimento.

X.9.3) A regulação social – a segunda “onda regulatória”


Essas concepções foram objeto de intensa revisão, a propósito do que se poderia
identificar como uma segunda onda intervencionista. Trata-se da regulação social, que
assume outras propostas. Constatou-se que o mercado, ainda que em funcionamento
perfeito, pode conduzir à não realização de certos fins de interesse comum.
A realização de inúmeros outros fins, de natureza sócio-política, também é buscada
pela regulação, que não pode restringir-se a preocupações meramente econômicas.
É necessário proteger o meio-ambiente, por exemplo. A racionalidade econômica
imediatista conduz à destruição do meio-ambiente.
A regulação também se orienta a garantir direitos de minorias e a promover outros
valores políticos, sociais e culturais.

X.9.4) A desregulação e a re-regulação


No início da década de 80, alguns países constataram que a atuação desordenada da
intervenção estatal ultrapassara o limite do cabível. A pluralidade de regras, contraditórias
ultrapassadas, dificultava a realização dos valores buscados. As finalidades essenciais
buscadas pelo Estado eram frustradas não pela sua omissão, mas por razões opostas. Havia
um excesso de regulação, o que impedia a obtenção dos melhores resultados.
Cada atividade era subordinada a um grande número de posturas, muitas delas
inúteis, contraditórias ou arcaicas. Surgiu a expressão custo regulatório, indicando o efeito
econômico que o cumprimento de posturas governamentais (muitas vezes, desnecessárias
ou inúteis) gerava.
Produziu-se, nos diversos países, uma reforma do Estado comprometida com a
desregulação e a re-regulação.

21
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

Como acentuou PAOLO LAZZARA, “o fenômeno da desregulação explica-se não


tanto como uma diminuição quantitativa das prescrições, mas, sobretudo em termos de
clareza, transparência e previsibilidade das normatizações”.26
Isso tudo produziu um movimento de “re-regulação”, o que significa a defesa da
substituição das regras inadequadas por outras, mais compatíveis com a nova realidade
social e tecnológica, menos onerosas para a sociedade em seu conjunto e produzidas
segundo parâmetros de participação da sociedade civil.

X.10) As agências reguladoras independentes


A adoção de um modelo regulatório de Estado conduz à fragmentação das
competências normativas e decisórias estatais. Surgem entidades administrativas
encarregadas da gestão setorial. Alguns afirmam que se produz o surgimento de um Estado
“policêntrico”, cuja configuração pode ser melhor representada como uma “rede
governativa”27. Nesse cenário, uma instituição fundamental consiste na agência reguladora.
NICOLE CECOOPMAN entende que a criação de agências reguladoras representa
uma modalidade de desregulação, no sentido da implementação de modos de intervenção
mais suaves. Ou, como assevera outro autor, “de empresário privilegiado, o Estado se
transforma em garantidor imparcial das regras do mercado”.28

X.10.1) Pressupostos de estudo do instituto das agências


A compreensão da figura da agência pressupõe pelos menos duas cautelas
fundamentais. A primeira envolve a ausência de um perfil jurídico único para as agências.
A segunda se vincula à necessidade de submissão da modelagem das agências ao sistema
jurídico pátrio.

X.10.1.1) A heterogeneidade do fenômeno


Não há um perfil único para “agência reguladora”. Cada agência apresenta
estrutura, função e regime jurídico próprio. Essa diversidade se verifica não apenas na
comparação entre os diferentes países, mas também ao interno de cada país.
A asserção é válida inclusive para o Brasil, cuja experiência vem repetindo as
características do processo de difusão das agências nos outros países.
O vocábulo agência é utilizado no Brasil para indicar figuras muito diversas. EGON
BOCKMANN MOREIRA observou que a expressão “agência” é utilizada “ora em
sentido vulgar (agência telegráfica, agência do correio, agência das capitanias dos
portos), ora em sentido específico (Agência Nacional de Telecomunicações-ANATEL...),
ora em sentido técnico indefinido (Agência Espacial Brasileira e Agência de Água).29

26
PAOLO LAZZARA, Autorità independenti e discrezionalità, Padova: Cedam, 2001, p. 70.
27
Substitui-se, assim, o modelo piramidal, de influência napoleônica. Confira-se em L’État post-moderne,
Paris: L.G.D.J., 2004, p. 76-77.
28
PAOLO LAZZARA, Autorità indipendenti e discrezionalità, cit., p. 69.
29
Agências Administrativas, Poder Regulamentar e o Sistema Financeiro Nacional, RDA 218/95, out/dez.
1999.

22
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

X.10.1.2) A adaptação do modelo estrangeiro à ordem jurídica nacional


A adoção de um modelo estrangeiro exige a sua adaptação aos princípios e regras
que estruturam o direito nacional30. Logo, as agências brasileiras não podem ser idênticas
às norte-americanas.

X.10.2) As agências reguladoras e executivas31


A tentativa de reforma do Estado brasileiro, na metade da década de 1990, conduziu
à difusão de agências.
Veja-se que o importante não é a denominação de agência, mas as características
jurídicas adotadas32.
É necessário diferenciar agência reguladora e agencia executiva. São duas figuras
diversas.

X.10.3) A distinção entre agências reguladoras e executivas


A distinção entre agências executivas e reguladoras foi copiada do direito norte-
americano, onde essa diferença tem algum sentido.
No Direito brasileiro, não é possível apontar precisamente as características que
identificam uma agência executiva. Trata-se de uma autarquia em geral. A Lei Federal nº
9.649/98 previu a possibilidade de qualificação de agência executiva a ser atribuída a
autarquias (ou fundações) que atendessem a certas exigências, especificamente a adoção de
um plano estratégico e a pactuação de um contrato de gestão.33
Agência executiva se identifica por um critério negativo: agência executiva seria
uma autarquia destituída de competências regulatórias, dedicada a desenvolver atividades
administrativas clássicas, inclusive a prestação de serviços públicos.
A Lei pretendeu reservar a expressão agência executiva para as autarquias
subordinadas a um plano estratégico e a um contrato de gestão. Isso não produz nenhum
regime jurídico peculiar, dotado de consistência suficiente para diferenciar uma autarquia
das demais.
Em face do Direito brasileiro, a expressão agência executiva poderia ser
considerada equivalente a autarquia especial. O aspecto distintivo que conduzisse ao
reconhecimento de uma agência executiva seria exatamente aquela que produziria o
surgimento de uma autarquia especial.
De modo diverso se manifesta PAULO MODESTO, que assevera que “A novidade
das agências executivas é que elas introduzem no Direito brasileiro um mecanismo flexível
de modificar o regime de autonomia ou independência de autarquias e fundações públicas

30
O fenômeno da globalização não eliminou esse obstáculo, embora possa conduzir a panorama distinto no
futuro. A superação das barreiras econômicas e a comunhão das experiências culturais poderão redundar
numa uniformização das ordens jurídicas, com efeitos benéficos e maléficos evidentes.
31
O autor dedicou atenção específica e mais aprofundada ao tema das agências na obra O Direito das
Agências Reguladoras Independentes, São Paulo: Dialética, 2002.
32
Pode haver agência denominada como comissão, conselho, tribunal ou qualquer outra expressão. Mas
também pode não se caracterizar como agência uma entidade que assim seja denominada.
33
Acerca do contrato de gestão, confira-se a exposição adiante realizada.

23
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

mediante um simples ato administrativo de qualificação”.34


Sob esse enfoque, a peculiaridade da agência executiva não residiria em
competências ou organização peculiares, mas na forma mais simples de atribuição de um
regime jurídico especial.

X.10.4) A agência reguladora independente no Direito brasileiro


A figura das agências reguladoras se insere no processo de dissociação entre a
prestação de serviços públicos e sua regulação. Mais ainda, é resultado da proposta de
assegurar que a disciplina dos serviços públicos seja norteada por critérios não
exclusivamente políticos.
É usual considerar as agências reguladoras como um fenômeno inovador. E alguns
reprovam tais novidades, imputando-lhe o cunho de inconstitucionalidade. No entanto, as
inovações trazidas, isoladamente consideradas, são muito reduzidas.
A maior parte das “novidades” já se encontrava em instituições administrativas
brasileiras muito antigas. Talvez a grande inovação trazida pela proposta das agências
reguladoras seja a concentração, em uma única instituição autárquica, de diversas
características que existiam isoladamente em certos órgãos.

X.10.5) Definição
Agência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime
jurídico que assegure sua autonomia em face da administração direta e investida de
competência para regulação setorial.

X.10.5.1) Agência reguladora independente é uma autarquia


Uma agência reguladora independente consiste, primeiramente, em uma autarquia.
Trata-se de uma entidade integrante da administração indireta, dotada de personalidade
jurídica de Direito público e sujeita ao regime jurídico correspondente a essa categoria.

X.10.5.2) especial, sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em face da
administração direta
A agência reguladora independente não é apenas uma autarquia. Trata-se de uma
autarquia especial, o que significa que a lei instituidora prevê algumas peculiaridades no
regime jurídico aplicável à entidade, propiciando uma margem de autonomia jurídica que
não se encontra na maior parte das entidades autárquicas. Isso envolve a redução do grau de
subordinação da entidade em face da administração direta.
Há um regime especial de investidura e demissão dos administradores das agências,
os quais são providos em cargos em comissão por prazo certo e sujeitos à demissão apenas
em virtude da prática de atos irregulares (tal como adiante será mais bem examinado).

34
Agências Executivas: a organização administrativa entre o casuísmo e a padronização, Revista Diálogo
Jurídico, Salvador, Centro de Atualização Jurídica, 2001, nº 6, p. 3. Disponível em
http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 08 de outubro de 2001. O estudo contempla uma análise
minuciosa e profunda sobre as características do instituto da agência executiva, sem paralelo na doutrina
pátria.

24
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

Além disso, a agência reguladora independente não se sujeita à revisão de seus atos por
autoridade integrante da administração direta, mas apenas perante o Poder Judiciário.
Ademais disso, pode configurar-se um regime de autonomia econômico-financeira,
por meio de receitas próprias destinadas a dotar a entidade de meios para o desempenho de
suas funções.
Mas não existe homogeneidade na configuração do regime jurídico das diversas
agências reguladoras independentes. Isso permite, inclusive, a variação de intensidade e da
extensão da sua autonomia.
A categoria é integrada por entidades dotadas de características não uniformes,
variáveis dentro de determinados limites. Sob esse ângulo, figuras novas e antigas podem
ser enquadradas nessa categoria. Assim, podem ser referidas a Agência Nacional de
Energia Elétrica – ANEEL, a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, a
Agência Nacional de Petróleo – ANP. Mas também seria possível fazer referência a
autarquias criadas há muito tempo, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
– CADE e à Comissão de Valores Mobiliários – CVM.

X.10.5.3) e investida de competência para regulação setorial


A agência reguladora independente é titular de competência regulatória setorial. Isso
significa o poder de editar normas abstratas infralegais, adotar decisões discricionárias e
compor conflitos num setor econômico. Esse setor pode abranger serviços públicos e (ou)
atividades econômicas propriamente ditas. E as decisões adotadas são vinculantes para os
diversos setores estatais e não estatais, ressalvada a revisão jurisdicional.

X.10.6) Considerações gerais sobre o regime jurídico das agências reguladoras


independentes
As agências reguladoras independentes não são um Poder à parte, além daqueles já
existentes. Tal deriva da ausência de estruturação orgânica e funcional em nível
constitucional. Afirma-se que o Ministério Público e o Tribunal de Contas são dotados de
autonomia em face dos três Poderes porque, na Constituição, há princípios e regras que dão
a essas duas instituições um status próprio. O mesmo não se passa com as agências
reguladoras.

X.10.6.1) A previsão constitucional de órgãos reguladores


Na Constituição Federal, existem apenas duas disposições atinentes a agências. O
art. 21, inc. XI, estabelece que cabe à lei criar um órgão regulador dos serviços de
telecomunicação. E o art. 177, § 2°, inc. III, prevê que a lei disciplinará a estrutura e as
atribuições do órgão regulador do monopólio federal sobre as atividades relacionadas a
petróleo. Esses dois dispositivos constitucionais não discriminam competências, nem
dispõem sobre a estrutura dos órgãos reguladores. Deles não se pode extrair que alguma das
competências previstas como de titularidade dos Poderes Legislativo e Judiciário teriam
sido reservadas para as agências reguladoras.
Logo, as agências reguladoras – inclusive aquelas explicitamente referidas nos dois
dispositivos constitucionais indicados – são instituições infraconstitucionais, sem a
dimensão de um Poder. Sem lei que as institua, organize e discipline, não haverá agências
reguladoras.

25
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

Mas não há obstáculo constitucional a que a lei (federal ou estadual, de acordo com
a esfera de atuação) crie e institua agências reguladoras, dando-lhes forma autárquica e
incluindo-as no âmbito do Poder Executivo.

X.10.6.2) A titularidade de competências administrativas


No exterior, afirma-se que as agências exercitam competências “quase-legislativas”
e “quase-jurisdicionais”. A afirmativa até poderia valer para o Direito brasileiro: basta
reconhecer que, sob uma aparência de atividades legislativas e jurisdicionais, existe apenas
a titularidade de funções administrativas.
A agência reguladora desempenha funções administrativas de diversa ordem. É
titular de competências regulamentares para editar normas em abstrato. Dispõe de
competência decisória para solucionar casos concretos. E lhe incumbe dirimir conflitos com
e entre particulares.
A agência reguladora desempenha atividade administrativa, a qual tanto pode ser
disciplinada legislativamente em termos vinculados como de modo discricionário. Isso
significa que a agência não é investida de competência para editar normas de cunho
legislativo. E seus atos são revisáveis pelo Poder Judiciário, nos limites em que cabe o
controle jurisdicional para atos administrativos.
Dito de outro modo, a existência de agências reguladoras não significa a inovação
sobre a distribuição do poder político estatal, tal como delineada constitucionalmente.
Todas as disputas sobre a atuação das agências são mera repetição das controvérsias que
existiam antes de sua instituição por lei infraconstitucional.
Isso não equivale a afirmar que as agências não importam efeitos relevantes na
organização do Poder Executivo. Esse é o ponto central: as agências representam uma
inovação significativa quanto ao desempenho da função administrativa.

X.10.6.3) A primeira peculiaridade das agências: a titularidade de competências privativas


O primeiro ponto relevante reside em que as competências atribuídas por lei às
agências reguladoras são retiradas da administração direta. Ou seja, a atribuição de
competências administrativas privativas em prol das agências equivale a reduzir os poderes
da administração centralizada. Isso significa que o Presidente da República, embora titular
do mais alto posto da República, não poderá deliberar sobre assuntos de competência das
agências.
Isso significa, inclusive, a ausência de revisibilidade ministerial dos atos praticados
pelas agências. Não cabe “recurso hierárquico” para o ministério, relativamente às decisões
praticadas pelas agências.

X.10.6.4) A segunda peculiaridade das agências: a titularidade de competência


regulamentar
Por outro lado, a agência é investida na competência para editar normas
regulamentares. A competência para editar regulamentos não é privativa do Presidente da
República, mas se distribui entre as diversas entidades integrantes da administração
pública. A redação do art. 84, inc. IV, da Constituição não significa uma reserva
constitucional privativa para o Presidente da República editar regulamentos. Não está
determinado que o único titular de competência para regulamentar as leis é o Presidente da

26
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

República.
Acolher o argumento da impossibilidade de atribuição de competências normativas
abstratas para outras autoridades administrativas acarretaria um verdadeiro caos para a
atividade administrativa do Estado, eis que seria impossível que o Presidente da República
concentrasse em suas mãos a competência para editar todos os regulamentos
administrativos.
A atividade administrativa teria de ser totalmente centralizada, incumbindo a todas
as demais autoridades – que não o Chefe do Executivo – produzir atos de natureza concreta.
Em sentido similar, ainda que com uma ressalva a propósito da questão
terminológica, LUÍS ROBERTO BARROSO reconhece que órgãos e entidades integrantes
da administração pública “titularizam, em certos casos, competências para expedir atos
administrativos normativos – gênero do qual o regulamento é espécie”.35
Na mesma linha, CAIO TÁCITO defende que a regulação estatal no domínio
econômico faz-se nos termos da lei. “Nada impede que, ao fazê-lo, a lei reserve aos órgãos
administrativos incumbidos da gestão da política adotada, uma parcela secundária de poder
normativo, de modo a ajustar os meios de ação às cambiantes manifestações da atividade
econômica, de difícil previsão”.36

X.10.6.5) A terceira peculiaridade das agências: a titularidade de competência


discricionária
As agências reguladoras são investidas de competências discricionárias para decidir
a solução mais adequada em face do caso concreto. Trata-se de competência própria da
administração e que já foi referida e examinada acima. Essa competência discricionária
compreende inclusive questões técnicas e regulatórias, no tocante à prestação de serviços
públicos e disciplina de atividades econômicas.
O que merece destaque é que essa competência é de titularidade privativa da
agência, de modo a impedir interferências de outros órgãos externos a ela.

X.10.6.6) A quarta peculiaridade das agências: cargo em comissão com prazo determinado
A administração da agência é atribuída a titulares de cargo em comissão, mas
investidos de mandato com prazo determinado, excluída a exoneração a qualquer tempo,
senão em face da comprovação de um elenco específico de causas.
Ou seja, há cargos cuja investidura se faz sem concurso público, exigindo-se o
preenchimento pelo interessado de determinados requisitos. A investidura se faz por prazo
determinado, com eventual possibilidade de recondução. O procedimento de nomeação
comporta participação de diversos órgãos ou autoridades. Uma vez empossados, os
administradores têm garantia contra exoneração fundada em simples critério de
conveniência. Somente se admite sua demissão, mediante demonstração de ação ou
omissão incompatível com os deveres inerentes à função.
O modelo foi objeto de impugnação por alguns doutrinadores. Para sumariar a

35
Princípio da Legalidade – Delegações Legislativas – Poder Regulamentar – Repartição Constitucional das
Competências Legislativas, reproduzido em BDA, jan 1997, p. 23.
36
Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres), Rio de Janeiro: Renovar, 2º vol., 1997, p. 1.089.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
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controvérsia, argumentou-se com a limitação constitucional à existência de apenas duas


categorias de cargos públicos. O art. 37, inc. II, da Constituição prevê que a investidura em
cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, ressalvadas
as nomeações para cargo em comissão (que comporta livre nomeação e exoneração). Logo,
haveria apenas dois regimes jurídicos compatíveis com a Constituição. Existem os cargos e
empregos cuja investidura se faria mediante concurso. Quanto a esses, poderia cogitar-se de
limitações ou restrições à faculdade de exoneração. Além desses, há cargos de livre
nomeação, independentemente da realização de algum tipo de concurso. O regime jurídico
para esses cargos compreende a faculdade de livre exoneração do ocupante, a qualquer
tempo.
Essa esquematização constitucional excluiria a possibilidade de conjugar-se a livre
investidura no cargo (sem concurso), por prazo determinado e com garantia contra
demissão discricionária.
Rejeita-se esse entendimento, remetendo-se o leitor ao exame do tema, no Capítulo
XIII, que versa sobre os agentes estatais. Tal como lá exposto, reputa-se que a Constituição
permite que a investidura em cargos em comissão seja condicionada a determinados
requisitos, tal como também autoriza restrições à livre exoneração de seus ocupantes.

X.10.6.6.1) A solução consagrada na Lei n° 9.986


A Lei n° 9.986 dispôs sobre os servidores das agências reguladoras. Qualificou os
cargos de diretoria como cargos comissionados de direção (CD I e CD II). Incorporou-se,
desse modo, a concepção de que cargos em comissão podem ser providos por prazo
determinado, subordinada a demissão à motivação e procedimento formal.

X.10.6.6.2) A demissibilidade dos administradores das agências


Insista-se em que os administradores podem ser demitidos, desde que comprovado
(mediante processo administrativo ou judicial) a infração a determinados deveres ou a
perda de requisitos essenciais para o exercício do cargo. O que não se admite é sua
exoneração ao sabor das conveniências políticas.

X.10.6.7) A quinta peculiaridade: a autonomia financeira


O modelo de agências reguladoras comporta a atribuição de autonomia financeira,
por meio da garantia de receitas vinculadas. Isso significaria a possibilidade de manutenção
de sua estrutura e de seu funcionamento sem dependência de disputas políticas sobre
distribuição de verbas orçamentárias.
Mas essa característica depende do setor em que a agência atua e das circunstâncias,
nem sempre se revelando possível sua existência.

X.10.6.8) Os limites da autonomia das agências reguladoras


Uma preocupação marcante reside na adoção de instrumentos de controle da
atuação das agências reguladoras.
Há limites de diversa ordem. A autonomia não significa independência em face aos
demais Poderes e órgãos de controle.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

Ademais disso, há limites mais precisos. É impossível a agência assumir a


formulação de políticas ou concentrar competências decisórias sobre questões essenciais ao
destino da Nação.
Um instrumento de controle das agências é o contrato de gestão.

X.10.7) Autonomia das agências e contrato de gestão


A referência constitucional ao contrato de gestão foi introduzida pela E. C. n° 19,
que deu nova redação ao § 8° do art. 3737.

X.10.7.1) A interpretação contratualista para a figura


Adotar interpretação literal para o art. 37, § 8°, acarreta a inconstitucionalidade da
disposição introduzida pela Emenda.
A administração indireta se produz por atos infraconstitucionais, de cunho
legislativo, tal como está no art. 37, caput e inc. XIX, da Constituição Federal. Daí deriva a
impossibilidade de ampliação de competências por via de um contrato. Ou a matéria está
contida e determinada em lei ou não o está. No segundo caso, a matéria não poderia ser
objeto de regulamentação por via contratual.

X.10.7.2) A interpretação conforme: “contratualização” em acepção ampla


O dispositivo do art. 37, § 8°, Constituição Federal merece interpretação conforme.
Nenhuma ampliação de competências poderá fundar-se em uma avença de natureza
contratual, infralegislativa. Incumbirá à lei determinar, nos limites da Constituição, a
autonomia assegurada aos órgãos integrantes da administração indireta. Qualquer ato
infralegal, denominado de contrato de gestão, será uma mera via de concretização de
determinações exaustivamente previstas em lei.
Nesse ponto, vale considerar a sistematização produzida pela doutrina francesa
acerca da matéria, envolvida num processo de contratualização da atividade administrativa.
No âmbito da doutrina francesa, a expressão contratualização da atividade
administrativa indica uma pluralidade de fenômenos distintos entre si.
Essa expressão indica, primeiramente, o incremento de um conjunto muito
conhecido de relações jurídicas, pactuadas entre a administração e particulares, para
prestação de serviços, aquisição de bens e assim por diante. Esse é o campo mais conhecido
dos chamados contratos administrativos.
Mas também se indica um processo distinto, consistente na substituição de relações
de autoridade por vínculos de natureza consensual. A esse propósito, desempenham grande
importância os chamados contratos de gestão. Busca-se aplicar ao âmbito das organizações
estatais todo o aparato de estruturação das relações entre particulares.

37
O dispositivo tem a seguinte redação: “A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e
entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus
administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou
entidade, cabendo à lei dispor sobre: I – o prazo de duração do contrato; II – os controles e critérios de
avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes; III – a remuneração do
pessoal”.

29
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

YVONE FORTIN alude à existência de diversas figuras, muito distintas entre si,
referidas como espécies do contrato de gestão38. Uma dessas figuras foi adotada, no Brasil,
a propósito das agências reguladoras independentes. É o que, na Europa, costuma ser
denominado contrato interno de gestão, também conhecido como contrato de performance.
É uma avença pactuada ao interno de uma estrutura administrativa, entre dois níveis
hierárquicos distintos e produzindo vinculação entre ambos. Usualmente, relaciona-se com
a dissociação entre núcleos que desempenham funções estratégicas e os encarregados de
atividades de gestão.
A categoria de “contrato interno de gestão” é desprovida de natureza contratual, em
sentido tradicional. “A utilização quase universal do termo ‘contrato’ para qualificar esses
acordos de gestão reflete a intenção de traduzir certas mudanças essenciais apresentadas
como uma ruptura profunda com o modo de gestão anterior, afetando as relações
hierárquicas entre as partes”.39
Uma característica essencial desse novo modelo consiste na relativa igualdade entre
as partes, o que se reflete na necessidade de negociação e formulação de estimativas
conjuntas acerca dos correspondentes desempenhos. Surge uma certa estabilidade na
eleição dos objetivos a atingir, eliminando-se um cunho de personalismo que era inerente a
um sistema napoleônico de condução dos corpos administrativos.
A sistemática dos contratos de gestão abrange, ademais disso, a substituição (total
ou parcial) de métodos tradicionais de controle, de natureza apriorística, por sistemas de
avaliação de desempenho. A nova modelagem envolve a verificação do atingimento de
certos resultados, com ampliação da margem de autonomia da autoridade administrativa
para seleção dos meios para melhor cumprir seus encargos.

X.10.7.3) A dimensão político-jurídica do fenômeno


Uma análise crítica desses enfoques é produzida por JACQUES CHEVALLIER,
para quem a chamada pós-modernidade jurídica propicia inovações contraditórias e
inovadoras, inclusive com a redução da distância entre os conceitos de ato jurídico
unilateral e contrato administrativo.40 Isso se verifica no âmbito da própria regulamentação
do funcionalismo, que presenciou na França a adoção de acordos entre administração e
servidores.
CHEVALLIER assinala que essas vinculações raramente se configuram como
contratos, no sentido tradicional da expressão. A situação legal e estatutária da maior parte
dos envolvidos atribui à avença uma mera condição de promessa. Em muitos casos, as
entidades envolvidas sequer dispõem de personalidade jurídica própria e distinta, do que
deriva a impossibilidade jurídica de um contrato sem sujeitos. Ocorre a consagração de um
novo modelo de gestão da coisa pública.

38
Introduction, em La Contractualisation dans le secteur public des pays industrialisés depuis 1980, Paris –
Montréal: L’Harmattan, 1999, p. 12-14.
39
YVONE FORTIN, Administrations Centrales et Gestion des Systèmes Contractuels: Les cas de la
Finlande, de la France, de la Norvège, du Royaume-Uni et de la Suède, em La Contractualisation dans le
secteur public des pays industrialisés depuis 1980, Paris – Montréal: L’Harmattan, 1999, p. 53.
40
Synthèse, em La Contractualisation dans le secteur public des pays industrialisés depuis 1980, Paris –
Montréal: L’Harmattan, 1999, p. 398.

30
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

A concepção monolítica, piramidal e hierárquica da administração pública é


sucedida por uma visão em que os diferentes agentes são também sujeitos: funcionários
públicos, empresas, usuários, cidadãos e podem interferir sobre o desenvolvimento da
atividade administrativa, que deixa de ser o reflexo da vontade discricionária, subjetiva e,
mesmo, inconseqüente da autoridade administrativa de mais elevada hierarquia.
A contratualização assegura a flexibilidade da atuação administrativa, permite a
participação dos diversos agentes sociais e amplia a responsabilidade dos diversos sujeitos
envolvidos. É instrumento de coordenação, para evitar que a pluralidade de instâncias
administrativas se traduza numa atividade contraditória e desordenada.

X.10.7.4) A interpretação adequada para o “contrato de gestão” brasileiro


Esses subsídios podem ser utilizados para a interpretação do contrato de gestão
brasileiro. Deve reputar-se que a expressão não foi utilizada em uma acepção técnico-
jurídica por parte da Constituição (art. 37, §8º, CF). Cabe tentar reconstruir a figura,
inclusive para apontar algumas virtudes.

X.10.7.4.1) Ausência de natureza contratual


Deve asseverar-se, primeiramente, a ausência de natureza contratual para a figura. A
figura examinada apresenta natureza consensual, mas não contratual. Não se trata de um
acordo de vontades destinado a gerar direitos e obrigações para uma ou ambas as partes,
com natureza ampliativa do universo de relações jurídicas de que participam.
Os partícipes da avença não podem sequer ser considerados como partes distintas e
autônomas. São sujeitos integrantes de uma mesma órbita jurídica, sem qualquer
contraposição ou dissociação de interesses.

X.10.7.4.2) Amplitude de efeitos


O dito contrato de gestão não é adequado a gerar direitos ou obrigações, com cunho
inovador. Versa sobre matérias subordinadas ao princípio da legalidade, o que significa que
todos os direitos e deveres atribuídos às partes derivam de previsão em lei. Logo, o
contrato de gestão não institui deveres ou direitos além daqueles já consagrados
legislativamente.
A lei fixará limites máximos de poderes e competências, cuja delimitação se fará
por meio de ato consensual posterior, de natureza infralegal. Usualmente, incumbiria à
autoridade superior, por meio de ato unilateral, disciplinar a extensão do poderes
reconhecidos às autoridades inferiores ou entidades sob seu controle. O que a Emenda
Constitucional previu foi a contratualização desse ato de aplicação da lei.
Ou seja, ao invés de produzir-se um ato administrativo unilateral, produz-se um ato
convencional, pelo qual autoridades superior e inferior pactuam o modo de aplicar a lei.
Logo, o contrato de gestão não é destituído de efeitos jurídicos – ainda que se possa
reconhecer que sua relevância se evidencia muito mais no plano político.
Não se podem admitir, no entanto, duas alternativas. A primeira é a substituição da
existência de lei por um ato de natureza convencional. O contrato de gestão pressupõe uma
lei estabelecendo os marcos específicos e explícitos sobre os temas que versará.

31
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

A segunda é o contrato de gestão ultrapassar os limites fixados em lei. Como é


evidente, a submissão da figura ao princípio da legalidade acarreta a invalidade de um
contrato de gestão contra legem.

X.10.7.4.3) Fixação de objetivos e metas concretos: as virtudes do contrato de


gestão
O contrato de gestão deve ser entendido como uma avença concertada entre
autoridades públicas, derivada do exercício de competências discricionárias versando sobre
determinado setor de atuação estatal. Trata-se da individualização e especificação de metas
concretas, estratégias determinadas e políticas específicas assumidas pelas autoridades
públicas encarregadas da gestão de um segmento delimitado de atividades. Por meio do
contrato de gestão, as autoridades produzem uma forma de regulamentação setorial,
exaurindo sua competência discricionária sobre o tema.
Sob diversos ângulos, a figura do contrato de gestão merece aplausos.

X.10.7.4.3.1) Virtudes do contrato de gestão


Em primeiro lugar, o contrato de gestão amplia a transparência administrativa.
Exterioriza-se, de modo formal, uma relação de compromissos do Estado. Indicam-se
objetivos, metas e estratégias, o que permite conhecimento (e, portanto, controle) por parte
da sociedade civil e de outros órgãos.
Depois, a definição formal de objetivos, metas e políticas produz a fixação de uma
política setorial. Isso importa o dever de racionalização das atividades estatais. Portanto,
surge uma espécie de instrumento norteador da atuação governamental estatal. Há o dever
de congruência das decisões posteriores em face daquelas adotadas em período pretérito.
Além de tudo, o contrato de gestão produz uma pauta de controle da atuação
concreta dos ocupantes de cargos públicos. Torna-se possível examinar se os objetivos
foram atingidos, se os compromissos foram cumpridos, se o desempenho foi satisfatório.

X.10.7.4.3.2) Eventual relevância jurídica do contrato de gestão


Não se pode excluir a relevância jurídica de contratos de gestão. Pode ocorrer que
terceiros impugnem decisões concretas adotadas pelos órgãos administrativos sob
fundamento de infração ao contrato de gestão. A incompatibilidade com o contrato de
gestão prévio pode autorizar a invalidação de decisão administrativa posterior, que se
revela incompatível com os planos de governo consagrados ou com os limites de
competência avençados.
Relevância equivalente apresenta como instrumento de controle interno e externo à
própria administração. Os órgãos parlamentares, os tribunais de contas e o próprio
Judiciário podem verificar a validade de decisões administrativas em face dos termos
constantes de contratos de gestão.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

X.10.8) A tentativa de uniformização da disciplina jurídica das agências


No Brasil, contrariamente ao que se passa em todos os demais países que adotaram
o modelo de agências41, pretende-se impor uma disciplina jurídica uniforme para as
agências reguladoras independentes. Esse é um esforço destinado ao fracasso, que se inicia
pela inútil pretensão de produzir um elenco de agências reguladoras independentes.
A heterogeneidade das figuras e a diversidade das características setoriais em que
atuam impedem a sua submissão a um regime único e uniforme. Portanto, as regras
aplicáveis a todas as agências são irrelevantes.
Outro fator relevante para a superação da disciplina uniforme já foi anteriormente
apontado. Uma lei geral das agências é uma lei ordinária. Cada agência é disciplinada por
lei de igual hierarquia. Isso significa que a lei própria de cada agência pode introduzir
inovações no âmbito da lei geral das agências.

X.11) O desempenho de atividades regulatórias setoriais


As atividades regulatórias são desenvolvidas não apenas por meio de agências
independentes, mas por via de inúmeros órgãos administrativos. Existem atividades
regulatórias setoriais, desenvolvidas pela atuação permanente e harmônica de inúmeros
órgãos estatais. É possível aludir não apenas à regulação econômica propriamente dita, mas
também a outros setores regulatórios.
Assim, há uma atividade regulatória estatal de meio-ambiente, que se traduz num
conjunto ordenado de atos normativos e de órgãos estatais orientados à defesa da ecologia e
à proteção do patrimônio natural. Inúmeros diplomas disciplinam o tema, nas diversas
órbitas federativas. No âmbito federal, pode lembrar-se a Lei n° 6.938/1981, que dispôs sob
a Política Nacional de Meio Ambiente.
Existe uma atividade regulatória estatal de defesa do consumidor, alicerçada na
Constituição e no Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/1990), que instituiu o
Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 105 e seguintes) e que é integrado por
órgãos de todas as esferas federativas.
Há uma atividade regulatória no setor cultural, que se manifesta inclusive pela
institucionalização de mecanismos de incentivo fiscal.
Por outro lado, a Lei Federal n° 10.257/2001 instituiu o chamado “Estatuto da
Cidade”, sistematizando competências municipais e impondo o seu desempenho segundo
políticas e planejamento predeterminados. A regulação urbana se caracteriza, inclusive, por
uma concepção de gestão democrática da cidade, o que reflete a tendência à superação dos
modelos autoritários do passado.
O peculiar em todos esses casos reside em que a atividade administrativa não se
dirige, de modo direto e imediato, a produzir o fornecimento de bens ou utilidades para
satisfação de interesses essenciais. Os mecanismos de Direito Administrativo são utilizados
para reprimir condutas indesejáveis e promover modificações nas estruturas sociais. Em

41
Além dos EUA, as agências reguladoras independentes se disseminaram de modo generalizado nos países
industrializados europeus.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

inúmeras hipóteses, a administração pública assume uma função de “defesa da sociedade”,


identificando e reprimindo condutas individuais abusivas, visando a evitar que a busca da
satisfação egoística do interesse privado redunde no prejuízo aos interesses transindividuais
difusos e coletivos. Em inúmeros casos, a administração pública é investida inclusive da
legitimação ativa para propositura de ações coletivas, tal como se vê no art. 82, incs. II e
III, e 91 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor.
Essa disciplina gera uma situação peculiar. Em inúmeros casos, os instrumentos
processuais utilizados para controle da administração pública podem ser utilizados por
provocação pela própria administração visando à repressão de condutas da iniciativa
privada.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
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Capítulo XI - Tipos de atividade administrativa: serviço


público
O conceito de serviço público desenvolveu-se na França, onde é utilizado para
indicar, de modo amplo, todas as atividades estatais. No Brasil, adota-se conceito mais
restrito, que não abrange inúmeras atividades estatais.

XI.1) Definição
Serviço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta
de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadas
diretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e
executada sob regime de Direito Público.

XI.1.1) Serviço público é uma atividade


O serviço público é uma atividade, o que significa a necessidade de estruturas
humanas e materiais para atuação permanente e sistemática. Sem essas estruturas
organizacionais não existe serviço público.

XI.1.2) pública
A natureza funcional da atividade de serviço público e a indisponibilidade dos
direitos fundamentais acarreta usualmente a atribuição da titularidade do serviço público
ao Estado. Essa é uma opção do direito positivo. Quando tal ocorre, o direito pode
autorizar a delegação do serviço público à prestação por particulares. Mas isso não
desnatura a existência de um serviço público, o qual será prestado por particulares
delegados do Estado.
Há uma forte tendência, apontada ao longo desta obra, de que o serviço público
seja desempenhado também por particulares. A sociedade civil assume o compromisso
de promover os direitos fundamentais e surgem organizações não estatais
comprometidas com atividades equivalentes às estatais. Tal como já afirmado, essas
atividades sofrerão a influência dos princípios fundamentais do serviço público.

XI.1.3) administrativa
O serviço público é uma atividade administrativa, o que exclui as atividades
legislativas e jurisdicionais. Prestar um serviço público não abrange compor
jurisdicionalmente um litígio nem produzir uma lei.

XI.1.4) de satisfação concreta de necessidades


O serviço público é uma atividade administrativa, mas nem todas as
competências do Executivo são serviço público. O serviço público é a satisfação
concreta de necessidades. Por isso, não abrange o exercício de competências políticas
inerentes à organização política do Estado, que traduzam o monopólio estatal da
violência e outras competências reflexas, que se relacionam à concepção de que “Todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente...” (Constituição, art. 1º, parágrafo único). Não se constituem em serviço
público, por exemplo, as funções políticas do Chefe do Poder Executivo, a execução de

35
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

sanções (inclusive penais), a fiscalização e arrecadação tributárias, os serviços de


segurança pública (interna e externa).

XI.1.5) individuais ou transindividuais,


O serviço público produz a satisfação de necessidades individuais, homogêneos
ou não, assim como a interesses transindividuais (coletivas ou difusas).
Isso significa não adotar a concepção de que apenas existiriam serviços públicos
quando fossem produzidas utilidades fruíveis individualmente pelo usuário. Reputa-se
que existem serviços públicos fruíveis individualmente e outros cuja fruição se faz
coletivamente. Varrer as ruas é um serviço público, que não é fruível individualmente.
Já o fornecimento doméstico de energia é um serviço público que atende interesses
difusos, coletivos e individuais. Aliás, há forte tradição em classificar os serviços
públicos em fruíveis uti singuli e uti universi, que influencia, inclusive, a disciplina
tributária42.

XI.1.6) materiais ou imateriais,


O serviço público traduz-se numa atuação comissiva, que gera inovações no
mundo natural. Não se configura numa omissão estatal nem na imposição pelo Estado
de vedações à conduta individual.
A atividade de serviço público consiste num fazer, que pode eventualmente
abranger também um dar. Exterioriza-se na prestação de utilidades materiais ou
imateriais.
Quando o Estado fornece cestas básicas para carentes, está prestando um serviço
público. Mas também está prestando serviço público quando fornece assistência
psicológica a pessoas portadoras de moléstias mentais. Outro exemplo é o serviço de
radiodifusão de sons e imagens. As atividades de rádio e de televisão se configuram
como serviço público, sem que se traduzam na oferta de utilidades materiais.

XI.1.7) vinculadas diretamente a um direito fundamental,


A atividade de serviço público é um instrumento de satisfação direta e imediata
dos direitos fundamentais, entre os quais avulta a dignidade humana. O serviço público
existe porque os direitos fundamentais não podem deixar de ser satisfeitos.
Isso não significa afirmar que o único modo de satisfazer os direitos humanos
seja o serviço público, nem que o serviço público seja a única atividade estatal norteada
pela supremacia dos direitos fundamentais.
Todas as atividades estatais, mesmo as não administrativas, são um meio de
promoção dos direitos fundamentais. Mas o serviço público é o desenvolvimento de
atividades de fornecimento de utilidades necessárias, de modo direto e imediato, à
satisfação dos direitos fundamentais. Isso significa que o serviço público é o meio de
assegurar a existência digna do ser humano. O serviço de atendimento a necessidades
fundamentais e essenciais para a sobrevivência material e psicológica dos indivíduos.
Há um vínculo de natureza direta e imediata entre o serviço público e a
satisfação de direitos fundamentais. Se esse vínculo não existir, será impossível

42
Assim, o art. 145, inc. II, da Constituição reflete essa concepção, ao restringir a abrangência das taxas
de serviço público aos serviços públicos específicos e divisíveis. A jurisprudência dos tribunais, com base
nessa disposição, rejeita a cobrança de taxa vinculada a serviços públicos genéricos e não divisíveis – o
que significa admitir sua existência.

36
Caderno de Direito Constitucional - 2006
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reconhecer a existência de um serviço público.


A advertência é relevante porque há atividades estatais que não se orientam a
promover, de modo direto e imediato, os direitos fundamentais. Essas atividades não
são serviço público e, bem por isso, não estão sujeitas ao regime de Direito Público. O
exemplo é a atividade econômica em sentido restrito, desenvolvida com recursos
estatais e sob regime de Direito Privado.

XI.1.8) destinada a pessoas indeterminadas


O serviço público destina-se ao atendimento de necessidades de sujeitos
indeterminados. Trata-se de um serviço ao público em geral. Não é serviço público a
atividade em que os benefícios não sejam oferecidos a um número indeterminado de
potenciais beneficiários.

XI.1.9) e executada sob regime de Direito Público


A atividade de serviço público é um meio de realizar fins indisponíveis para a
comunidade. Os direitos fundamentais não podem deixar de ser realizados. Por isso, as
atividades necessárias à sua satisfação direta e imediata são subordinadas ao regime de
Direito Público. A atividade de serviço público é subordinada ao regime de Direito
Público como conseqüência de sua natureza funcional.
Há um fim a ser atingido, o que exige a outorga dos meios necessários. O regime
de Direito Público é o meio formal para assegurar a satisfação dos direitos
fundamentais. Esse regime será estudado neste capítulo, de modo sumário,
especialmente tomando em vista o muito que já se escreveu nesta obra sobre o tema.
O regime de Direito Público próprio da prestação do serviço público
compreende competências anômalas.
Alguns autores têm cogitado de serviços públicos prestados sob regime de
Direito Privado, o que se traduziu concretamente na regulação dos serviços de
telecomunicação. Rigorosamente, serviço público sob regime de Direito Privado é uma
contradição em termos. A aplicação do regime de Direito Privado desnatura o serviço
público. A expressão serviço público sob regime de Direito Privado indica serviços
privados subordinados a uma regulação jurídica intensa, tema que será adiante referido.

XI.2) A natureza institucional do serviço público


O serviço público é uma instituição, constituindo-se em uma estrutura social
produzida pelos esforços conjuntos de uma pluralidade indeterminada de sujeitos, que
conjugam permanentemente seus esforços em vista de um conjunto de valores e ideais.
O serviço público institucionalizado transcende a identidade e a existência das
pessoas físicas e jurídicas, passando a ser um elemento formador da vida social. Como
uma instituição social, o serviço público norteia a conduta das pessoas.
Por isso, o serviço público é um atributo da sociedade, ainda que a competência
para sua organização e regulamentação seja formalmente atribuída ao Estado. Mas o
Estado não é “proprietário” do serviço público. Se fosse possível aludir a “propriedade
do serviço público”, certamente sua titularidade seria de toda a sociedade.

XI.3) Os três aspectos do conceito de serviço público


Afirma-se, tradicionalmente, que o conceito de serviço público se integra pela

37
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

presença de três aspectos.


Sob o ângulo material ou objetivo, o serviço público consiste numa atividade
de satisfação de necessidades individuais de cunho essencial.
Sob o ângulo subjetivo, trata-se de atuação desenvolvida pelo Estado (ou por
quem lhe faça as vezes).
Sob o ângulo formal, configura-se o serviço público pela aplicação do regime
jurídico de Direito Público.
A qualificação formal é logicamente dependente das outras duas. O serviço
público se peculiariza pela existência de um regime jurídico específico. Mas a aplicação
desse regime depende da presença de certos requisitos. Todo serviço público está sujeito
ao regime de Direito Público, mas nem toda atividade (estatal ou privada) é um serviço
público. Uma questão fundamental, portanto, reside em determinar quando e porque
uma atividade pode (ou deve) ser considerada serviço público e, desse modo, submeter-
se a um regime jurídico peculiar. Então, o regime jurídico fornece subsídios para
responder à pergunta “como está disciplinado o serviço público”, mas não propicia
elementos para outra indagação fundamental, sobre “o que pode ser considerado como
serviço público”.
Há certos requisitos necessários para uma atividade ser qualificada como serviço
público e, desse modo, sujeitar-se ao regime jurídico correspondente.
Raciocínio similar se aplica ao ângulo subjetivo do conceito de serviço público.
O serviço público é de titularidade do Estado mas daí não se segue que todo e qualquer
serviço prestado pelo Estado seja “serviço público”. Nem é correto (ao menos, perante
o Direito brasileiro) afirmar que o serviço se qualifica como público porque de
titularidade do Estado. Ao contrário, o serviço é de titularidade do Estado por ser
público. Portanto, atribuição da titularidade de um serviço ao Estado é decorrência de
seu reconhecimento como serviço público. Sob o prisma lógico jurídico, o serviço é
público antes de ser estatal.
Essa formulação deve ser complementada para apontar-se a tendência à
afirmação da prestação do serviço público por entidades não estatais, que atuam em
nome próprio e não por delegação pública. Surgem serviços públicos não estatais, o que
não significa o desaparecimento de serviços públicos privativos do Estado. Alguns dos
mais relevantes serviços públicos continuam a ser de titularidade exclusiva do Estado.
O aspecto material ou objetivo é mais relevante do que os outros dois, sob o
ponto de vista lógico. Os outros dois aspectos dão identidade ao serviço público, mas
são decorrência do aspecto material. Uma certa atividade é qualificada como serviço
público em virtude de dirigir-se à satisfação direta e imediata de direitos fundamentais.
Como conseqüência, essa atividade é submetida ao regime de Direito Público e, na
maior parte dos casos, sua titularidade é atribuída ao Estado.
Em síntese: um serviço é público porque se destina à satisfação de direitos
fundamentais e não por ser de titularidade estatal nem por ser desenvolvido sob regime
de Direito Público. Essas duas são conseqüências da existência de um serviço público.

XI.4) O serviço público é uma intervenção estatal no domínio


econômico
O serviço público é uma intervenção estatal no domínio econômico.
Em primeiro lugar, a prestação do serviço público pressupõe a utilização de
recursos limitados para satisfação de necessidades entre si excludentes. Isso envolve a
utilização de recursos econômicos.
Em segundo lugar, a qualificação de uma atividade como serviço público exclui

38
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

a aplicação do regime próprio do Direito Privado. A submissão de uma atividade ao


âmbito do serviço público acarreta a redução da órbita da livre iniciativa. Quanto mais
amplo o universo dos serviços públicos, menor é o campo das atividades de Direito
Privado. E a recíproca é verdadeira.

XI.4.1) O serviço público reflete decisões políticas fundamentais


Discutir serviço público conduz a enfrentar questões políticas e jurídicas
essenciais. Trata-se de definir a função do Estado, seus limites de atuação e o âmbito
reservado à livre iniciativa dos particulares. Essa é uma questão histórica e cada Estado
desenvolve um modelo peculiar. O elenco de serviços públicos reflete uma determinada
concepção política. A Constituição de cada país identifica a disciplina adotada para o
serviço público e a atividade econômica.

XI.4.2) Serviço público e controle do poder


Há serviço público quando a atividade se destina a satisfazer necessidades
relacionadas direta e imediatamente com os direitos fundamentais. Costuma-se pensar
que essa atividade é reservada ao Estado por deter ele as melhores condições de seu
exercício. Alude-se à exclusão dessa atividade do universo da atuação facultada à livre
iniciativa porque o Estado poderia desincumbir-se tão ou mais adequadamente dela do
que o faria a própria iniciativa privada.
Mas o serviço público reflete também uma decisão política relacionada com a
distribuição do poder na sociedade. Relaciona-se com a eficiência no modo de
satisfazer necessidades essenciais, mas também com o controle do poder econômico
privado.
Uma atividade é qualificada como serviço público por ser relacionada direta e
imediatamente com os direitos fundamentais. Mas essa qualificação deriva não apenas
da pressuposição de que o Estado disporia de melhores condições do que a iniciativa
privada para desempenhar certa função. Também pode ocorrer que a relevância das
atividades propicie tamanha quantidade de poder (político, econômico, cultural etc.) ao
exercente da atividade que se imponha como necessária a intervenção estatal para
produzir o equilíbrio social.
O exemplo mais evidente nesse campo é a televisão. No Brasil, configura-se um
serviço público, mas o Estado não pretende (nem nunca o pretendeu) assumir direta e
imediatamente o desempenho das comunicações televisivas. A atuação estatal brasileira
no âmbito dos serviços de televisão é absolutamente secundária. O que se pretende é
uma intervenção regulatória destinada a restringir o poder produzido a partir do controle
dos meios de comunicação de massa.43
Sob esse ângulo, adquire pleno sentido a afirmação de JUAREZ FREITAS de
que serviço público “é todo aquele essencial para a realização dos objetivos
fundamentais do Estado Democrático”.44 Trata-se de formulação especialmente
adequada ao modelo constitucional brasileiro de 1988.
A definição de “objetivo fundamental do Estado Democrático” permite variada

43
Isso não equivale a admitir que o Estado possa qualificar como serviço público, livremente, qualquer
atividade econômica, simplesmente para instituir controles públicos sobre o seu desempenho. Somente
podem ser consideradas como serviço público as atividades destinadas a satisfazer necessidades
relacionadas, de modo direto e imediato, ao princípio da dignidade da pessoa humana.
44
JUAREZ FREITAS, Estudos de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 33.

39
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

extensão. No Brasil atual, retrata a necessidade de promover democracia política,


econômica, social. O serviço público, no Brasil, tem de assegurar condições de
progresso econômico e eliminação de desigualdades regionais, respeitando os limites
constitucionais para intervenção estatal no domínio econômico.

XI.5) A qualificação da atividade como um serviço público


A instituição de um serviço público depende do reconhecimento jurídico da
pertinência daquela atividade para a satisfação dos direitos fundamentais. Costuma-se
aludir a publicatio ou publicização para indicar o ato estatal formal necessário à
qualificação de uma atividade como serviço público.
Esse ato de publicização deverá constar de uma lei. A instituição de um serviço
público por meio de ato administrativo é ilegal.
Essa consideração é de extrema relevância porque significa que, na ausência da
publicização legislativa, a atividade não é considerada serviço público, presumindo-se
sua qualificação como atividade econômica em sentido restrito.

XI.6) Os serviços públicos no Direito brasileiro


Na maior parte dos países, a Constituição é omissa sobre os serviços públicos
em espécie, cabendo sua determinação à lei. No Brasil, há inúmeras referências
constitucionais a serviço público.

XI.6.1) A previsão constitucional quanto a serviços públicos


Ao discriminar competências dos diversos entes federados, a Constituição
refere-se a certas atividades como serviços públicos. O art. 21 contém diversas
previsões acerca de serviços públicos (incs. X, XI e XII), o que conduziu parte
substancial da doutrina a reconhecer tais atividades como serviços públicos por
inerência.45 Quanto a eles, não haveria margem de qualquer inovação ou modificação
por parte do legislador infraconstitucional.
Esse entendimento é rejeitado. Reputa-se que as atividades referidas nos
diversos incisos do art. 21 da Constituição poderão ou não ser qualificadas como
serviços públicos, de acordo com as circunstâncias.
Existirá serviço público apenas quando as atividades referidas na Constituição
envolverem a prestação de utilidades destinadas a satisfazer direta e imediatamente os
direitos fundamentais.
Se houver cabimento de oferta de utilidades desvinculada da satisfação dos
direitos fundamentais, existirá uma atividade econômica em sentido estrito (ou um
serviço de interesse coletivo).
Essa interpretação se fundamenta em quatro argumentos: a subordinação a
requisitos previstos na lei ordinária, a previsão constitucional de “autorização”, a
discriminação de competências federativas, e a autonomia legislativa infraconstitucional
para a criação do serviço público.

XI.6.1.1) A subordinação a requisitos previstos na lei ordinária


Em primeiro lugar, a interpretação literal do art. 21 conduziria a resultados

45
Esse entendimento, aliás, era professado anteriormente pelo próprio autor.

40
Caderno de Direito Constitucional - 2006
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indefensáveis. Considere-se, para exemplificar, o dispositivo do art. 21, inc. XII, al.
“a”. Ali se determina que compete à União explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e
imagens. Se esse dispositivo impusesse a qualificação como serviço público de toda e
qualquer atividade relacionada à radiodifusão sonora e de sons e imagens, o resultado
seria despropositado. Qualquer atividade de transmissão de som por meio de ondas de
rádio seria um serviço público. Assim não o é, conforme interpretação mansa e pacífica.
Mesmo os defensores da tese de serviços públicos por inerência constitucional
reconhecem que nem todos os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens são
serviços públicos.
Idêntica interpretação prevalece a propósito de todas as previsões contempladas
no art. 21. É pacífico que o elenco do art. 21 tem de ser interpretado no sentido de que
haverá serviço público somente se presentes alguns requisitos específicos e
determinados – sobre os quais o aludido art. 21 silencia.
Exige-se o oferecimento de utilidades a pessoas indeterminadas, a exploração
permanente da atividade e outros requisitos fixados em lei ordinária.
Portanto, não basta a existência da norma constitucional para o surgimento do
serviço público. Mais ainda, a lei ordinária pode estabelecer que algumas atividades,
subsumíveis ao modelo constitucional, não serão serviço público, e nisso não haverá
qualquer inconstitucionalidade.

XI.6.1.2) A previsão constitucional de “autorização”


A interpretação é corroborada por um outro elemento literal, de não pequena
relevância. Os incs. X, XI e XII do art. 21 se referem à competência da União para
outorgar concessão, permissão ou autorização para o desempenho daquelas atividades.
Ora, a expressão autorização é incompatível com a existência de um serviço
público. Não se outorga autorização de serviço público – fórmula verbal destituída de
sentido lógico-jurídico. Somente se cogita de autorização para certas atividades
econômicas em sentido restrito, cuja relevância subordina seu desempenho à
fiscalização mais ampla e rigorosa do Estado. Sendo outorgada autorização, não existirá
serviço público. Logo e como o art. 21, incs. X a XII, da Constituição refere-se
expressamente tanto à concessão como à autorização a propósito de certas atividades,
tem de concluir-se que elas comportam exploração sob ambas as modalidades jurídicas.
Então, as atividades indicadas na Constituição configurarão, em alguns casos,
serviço público. Mas isso não elimina a possibilidade de sua qualificação como
atividade econômica em sentido restrito.

XI.6.1.3) A discriminação de competências federativas


Ademais, as disposições constitucionais referidas (em especial, o art. 21) não se
destinam a diferenciar serviço público e atividade econômica em sentido restrito. Sua
finalidade é promover a discriminação de competências entre os diversos entes federais.
A disciplina da atividade econômica (em sentido amplo) não foi consagrada no art. 21,
mas em outro Título Constitucional.
Mesmo reconhecendo a natureza sistêmica e orgânica da disciplina
constitucional e rejeitando argumentos meramente topológicos, não se pode deixar de
atentar para a finalidade dos diversos dispositivos constitucionais.

XI.6.1.4) A sistemática constitucional quanto a atividades de grande essencialidade


Por fim, essa sistemática foi admitida expressamente pela Constituição quanto a

41
Caderno de Direito Constitucional - 2006
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serviços públicos de elevado grau de essencialidade. No Título VIII – Da Ordem Social,


inúmeros dispositivos reconhecem que os particulares são investidos na autonomia de
desenvolverem, sob regime de Direito Privado (fortemente regulado), atividades
equivalentes ao serviço público. Isso se passa com a assistência à saúde (art. 199),
previdência privada (art. 202), educação (art. 209). Ainda no silêncio da Constituição, é
evidente o cabimento de atuação privada no âmbito da assistência social, cultura,
desporto, ciência e tecnologia.
Esses serviços públicos sociais e culturais são tão ou mais essenciais que os ditos
comerciais e industriais. Não teria cabimento que a solução constitucional para os
serviços públicos sociais e culturais fosse diversa daquela contemplada para os serviços
comerciais e industriais.
Não atende ao princípio da razoabilidade que o Estado seja obrigado a manter
escolas públicas mas que um particular possa valer-se de escola privada – e que idêntica
solução seja vedada no tocante à energia elétrica, por exemplo.

XI.6.2) A autonomia legislativa infraconstitucional para a criação do serviço


público
Em suma, cabe à lei ordinária determinar a publicização de uma certa atividade e
as hipóteses em que configurará serviço público. Isso não equivale a reconhecer uma
autonomia ilimitada para o legislador ordinário. Não é indiferente para a Constituição
que as atividades referidas nos incs. X a XII do art. 21 sejam tratadas como serviço
público ou como atividade econômica em sentido restrito. Tese dessa ordem é
indefensável e infringe os arts. 170, 173 e 175 da Constituição.
A Constituição determinou que as atividades referidas no art. 21, incs. X a XII,
serão qualificadas como serviço público quando estiver presente o pressuposto
necessário: a satisfação imediata de direitos fundamentais.
A aplicação prática da tese permite compreender melhor a orientação adotada.
Suponha-se o caso da energia elétrica. Considerando o atual estágio tecnológico e
cultural, é indispensável à dignidade da pessoa humana a ligação de cada residência à
rede de energia elétrica, de modo a assegurar o acesso a utilidades fundamentais.
Portanto, a infra-estrutura necessária ao atendimento a essa exigência e à prestação
dessas utilidades configura serviço público. Mas isso não significa que toda e qualquer
atividade relacionada à geração ou à oferta de energia elétrica caracterizará
necessariamente serviço público.
Se um sujeito produz energia elétrica para o próprio consumo – por exemplo,
para fins industriais –, a atividade não configurará serviço público. Quando muito,
haverá a fiscalização por parte do Estado. Essa conclusão é perfilhada de modo
incontroverso por parte da doutrina tradicional, a qual afirma que, no caso, estaria
ausente um pressuposto do serviço público (consistente no oferecimento de utilidades
para pessoas indeterminadas).
Uma empresa privada pode aplicar seus recursos para produzir energia elétrica,
colocando essa mercadoria no mercado, segundo as regras da livre-iniciativa. Não estará
obrigada a atender a todos os usuários possíveis, mas apenas que com ela quiserem
contratar. Essa alternativa não era técnica e economicamente viável há quarenta anos.
Existem duas situações inconfundíveis. Há o dever estatal de assegurar o
fornecimento de energia elétrica a todos os domicílios. Mas isso não significa que toda e
qualquer atividade de geração de energia elétrica seja um serviço público. Além da
geração da energia elétrica como um serviço público, pode haver geração como
atividade econômica privada.

42
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

O Estado é obrigado a promover a estruturação de um sistema de serviço público


de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Mas, uma vez existindo essa
estrutura de serviço público, é cabível o aproveitamento de situações marginais sob o
regime de Direito Privado, como atividade econômica em sentido restrito.
Essa característica deriva da própria evolução tecnológica, apta a ampliar a
produção de utilidades muito além das essencialmente indispensáveis à sobrevivência
ou à satisfação de necessidades básicas. A ampliação do conhecimento tecnológico
propicia novas configurações para o conteúdo dos serviços públicos, tal como
anteriormente apontado.

XI.6.3) Serviços públicos e a opção legislativa infraconstitucional


Segundo a tese ora adotada, a configuração de atividades como serviço público
faz-se essencialmente a partir do critério da referibilidade direta e imediata aos direitos
fundamentais. Algumas utilidades apresentam intensa pertinência a tanto, motivo pelo
qual foram referidas constitucionalmente. Isso não significa que a Constituição teria
transformado em serviço público toda e qualquer atuação relacionada a tais atividades.
Sempre se impõe como indispensável a vinculação com os direitos fundamentais.
Por outro lado, não se pode reputar que todos os possíveis serviços públicos
teriam sido referidos exaustivamente na dimensão constitucional.
Excluídos dois campos - aquilo que é obrigatoriamente serviço público e aquilo
que não pode ser serviço público – existe possibilidade de o legislador
infraconstitucional determinar outras atividades como tais, respeitados os princípios
constitucionais.

XI.7) O regime jurídico do serviço público


O regime jurídico do serviço público envolve a aplicação de princípios e regras
específicos, usualmente englobados na expressão regime de serviço público. Há uma
tendência à alteração dos pressupostos tradicionais.

XI.7.1) A titularidade estatal do serviço


Segundo os conceitos clássicos do Direito Administrativo, o serviço público é de
titularidade do Estado, ainda que sua gestão possa ser atribuída a particulares. Não se
aplicam os princípios de livre iniciativa, eis que a prestação do serviço público incumbe
ao Estado. Nem se poderia cogitar de livre concorrência, pois a titularidade estatal se
retrata no monopólio estatal. O fundamento constitucional dessa disciplina se encontra
no art. 175.
É costumeiro reconhecer que certas atividades são serviços públicos não
monopolizados pelo Estado. Quando desempenhados pelo Estado, serão serviços
públicos. Porém os particulares podem assumir essas atividades, hipótese em que
haveria atividade econômica. Assim se passa com as atividades de educação, de saúde,
de assistência social.
Tal como inúmeras vezes apontado, a titularidade estatal do serviço público não
impede o desenvolvimento de instituições da sociedade civil, que assumem a prestação
de algumas atividades de serviço público. Essas atividades equivalentes ao serviço
público deverão sujeitar-se a regime jurídico similar. As atividades de educação e de
saúde, embora desempenhadas por particulares, estão sujeitas a regime jurídico próximo
ao serviço público. Por isso, há a tendência a reconhecer que, em alguns setores, o
serviço público pode ser exercitado por particulares.

43
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

XI.7.2) A exclusividade na prestação do serviço


A exclusividade na prestação do serviço é, em princípio, uma decorrência do
monopólio estatal. Se determinado serviço público é de titularidade exclusiva do
Estado, sua prestação tende a ser promovida em regime de exclusividade.
Porém, poderá cogitar-se de ausência de exclusividade nos casos de serviços
públicos exercitados por particulares.

XI.7.3) Os chamados “princípios de serviço público”


É usual indicar alguns princípios fundamentais do serviço público, retratando
46
uma construção de ROLLAND. Diz-se que o serviço público é norteado pelos
princípios da continuidade, da igualdade e da mutabilidade.

XI.7.3.1) A continuidade
A continuidade significa que a atividade de serviço público deverá desenvolver-
se regularmente, sem interrupções. Dele derivam inúmeras conseqüências jurídicas,
entre as quais a impossibilidade de suspensão dos serviços por parte da administração
ou do delegatário e a responsabilização civil do prestador do serviço em caso em falha.
A continuidade do serviço público também justifica a utilização do poder de
coação estatal, para assegurar a supressão de obstáculos a tanto ou para produzir
medidas necessárias a manter a atividade em funcionamento.
Há uma contrapartida para a continuidade, que se traduz na intangibilidade da
equação econômico-financeira para o delegatário do serviço público, e para o usuário, o
direito a ser indenizado por todos os prejuízos decorrentes da descontinuidade da
prestação do serviço em situação de normalidade.
Lembre-se que o art. 37, inc. VII, da Constituição assegurou o direito de greve
aos servidores públicos, remetendo o tema à disciplina legislativa. Existem as Leis n°
7.783/1989 e 10.277/2001 que dispõem sobre providências atinentes à continuidade de
serviços públicos, em caso de greve.

XI.7.3.2) A igualdade
A igualdade envolve o tratamento não discriminatório e universal para todos os
usuários. Não se pode restringir o acesso aos benefícios do serviço público para os
sujeitos que se encontrem em igualdade de condições. Nesse ponto, o intérprete se
depara com a conhecida dificuldade inerente ao princípio da isonomia, relacionada ao
problema de identificar os limites da igualdade.
Os desdobramentos da igualdade são a universalidade e a neutralidade.

XI.7.3.2.1) A universalidade
A universalidade significa que o serviço público deve ser prestado em benefício
de todos os sujeitos que se encontrem em situação equivalente, de modo indeterminado.
Admite-se, como é da essência da isonomia, a discriminação fundamentada em critérios

46
Conforme JACQUES MOREAU, Droit Administratif, Paris: PUF, 1989, p. 333, sobre cujo texto se
assenta a exposição sobre o pensamento de ROLLAND. Acerca da questão, examine-se LAUBADÈRE,
VENEZIA e GAUDEMET, Traité de Droit Administratif, 15ª ed., Paris: L.G.D.J, t. 1, 1999, p. 905 e ss.

44
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

adequados.

XI.7.3.2.2) A neutralidade
A neutralidade consiste em vedar a prestação do serviço a qualquer circunstância
individual incompatível com o postulado da isonomia. Assim, não é possível produzir
privilégios fundados em sexo, raça, credo religioso ou local de domicílio, exceto quando
tais circunstâncias refletirem valores distintos, que demandem diferenciação.

XI.7.3.2.3) A isonomia e as tarifas


A igualdade se aplica também à formulação das tarifas, que devem ser fixadas
em valores idênticos para os usuários em situação idêntica. BERTRAND DU MARAIS
lembra que é válida a discriminação tarifária de pedágios de rodovias fundada na
intensidade do tráfego47. Por igual, admite-se a variação tarifária em função do horário
de fruição do benefício, desde que isso não inviabilize a prestação do serviço e haja
transparência de critérios na fixação dos valores.

XI.7.3.3) A mutabilidade ou adaptabilidade


A mutabilidade retrata a vinculação do serviço público à necessidade a ser
satisfeita e às concepções técnicas de satisfação. É da essência do serviço público sua
adaptação conforme a variação das necessidades e a alteração dos modos possíveis de
sua solução. Há um dever para a administração de atualizar a prestação do serviço,
tomando em vista as modificações técnicas, jurídicas e econômicas supervenientes. Isso
significa ausência de direito adquirido dos prestadores do serviço e dos usuários à
manutenção das condições anteriores ou originais48. Nessa linha, JEAN-FRANÇOIS
LACHAUME destaca que “A adaptação permanente do serviço público é analisada,
então, em função da necessidade de fazer evoluir os serviços públicos, em sua
organização e seu funcionamento, de tal modo que, em todos os momentos, eles
apresentem em face da satisfação do interesse geral a máxima eficácia”.49

XI.7.4) Os novos postulados do serviço público


O regime dos serviços públicos vai sendo ampliado, de modo a integrar outros
princípios fundamentais, que refletem a integração da pessoa do usuário no âmbito do
instituto.
Podem ser lembrados a adequação do serviço, a transparência e a participação do
usuário, a ausência de gratuidade e a modicidade de tarifas

XI.7.4.1) A adequação do serviço


A adequação do serviço é um pressuposto da própria mutabilidade. Consiste no
dever de prestar o melhor serviço possível, em vista das circunstâncias. Respeitado o

47
Droit public de la régulation économique, Paris: Presses de Sciences PO/Dalloz, 2004, p. 109.
48
Como afirma MOREAU, “o princípio da mutabilidade não pode não afetar a situação daqueles aos
quais o serviço fornece satisfação, conseqüência que põe em plena luz a questão do ‘estatuto’ do
usuário” (Droit Administratif, cit., p. 341).
49
Grands Services Publics, Paris: Masson, 1989, p. 263.

45
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

limite da possibilidade técnica e econômica, é obrigatório prestar o melhor serviço. O


Estado ou o delegatário tem o dever de eficiência, de pontualidade, de aperfeiçoamento
do serviço - enfim, estão juridicamente obrigados a promover um serviço adequado.

XI.7.4.2) A transparência e a participação do usuário


O usuário é interpretado como sujeito interessado na prestação do serviço e
alçado à condição de titular de interesses na sua concepção e organização. Ao invés de
um terceiro beneficiário de uma liberalidade estatal, o usuário é integrado como sujeito
responsável pelo serviço.
Por isso, o usuário passa a integrar as relações jurídicas atinentes à organização
do serviço e à própria delegação à iniciativa privada. Esse princípio significa o dever de
o Estado e o prestador do serviço fornecerem ao usuário todos os esclarecimentos e
admitirem a participação de representantes dos usuários na estrutura organizacional do
serviço público.

XI.7.4.3) A ausência de gratuidade


A essencialidade dos serviços e seu vínculo imediato com os direitos
fundamentais não acarretam sua gratuidade. Isso não significa afirmar que a fruição do
serviço público dependa de condições econômicas, mas consiste em reconhecer um
princípio geral de capacidade contributiva.
Todo o usuário deve contribuir para os serviços, na medida de suas
possibilidades, tomando em vista a intensidade dos benefícios auferidos e da própria
riqueza individual.
Por isso, os indivíduos carentes terão acesso aos serviços públicos, mas o
custeio das prestações realizadas em proveito deles deverá ser arcado por outrem. Isso
significa a existência de subsídios (provenientes dos cofres públicos ou da remuneração
exigida dos demais usuários).

XI.7.4.4) A modicidade tarifária


A modicidade tarifária significa a menor tarifa possível, em vista dos custos
necessários à oferta do serviço. A modicidade tarifária pode afetar a própria decisão
quanto à concepção do serviço público. Não terá cabimento conceber um serviço tão
sofisticado que o custo torne inviável aos usuários fruírem dos benefícios.

XI.7.5) Ausência de vínculo contratual e as competências anômalas


O serviço público é prestado porque assim o impõe a lei, que fixa as condições
gerais atinentes à prestação e à fruição. Essas condições são detalhadas por atos
administrativos e podem ser alteradas a qualquer tempo. A fruição do serviço público
não envolve um vínculo contratual entre o usuário e o prestador do serviço, mas uma
situação jurídica de natureza unilateral.
O usuário do serviço manifesta sua vontade no sentido de fruir os benefícios e de
subordinar-se ao regime jurídico pertinente ao serviço público. Não há acordo de
vontades, mas uma manifestação de vontade individual que é condição para a fruição do
serviço.
Assim e ao contrário do que imaginava o Direito Privado do séc. XIX, não existe
“contrato de prestação de serviço de transporte público”, nas hipóteses de serviço
público.

XI.7.6) As competências anômalas

46
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

O regime de serviço público comporta competências anômalas, que se externam


no relacionamento com os particulares, usuários ou não, do serviço público. Essas
competências anômalas se traduzem em deveres-poderes de diversa natureza, cujo
surgimento e exercício não dependem de concordância concreta do usuário.
A democratização dos serviços públicos conduz à intervenção de representantes
dos usuários na concepção das medidas, como instrumento de aperfeiçoamento da
atividade estatal e de redução do arbítrio.

XI.7.7) A aplicação subsidiária do direito do consumidor


Esse é o fundamento pelo qual o direito do consumidor se aplica
subsidiariamente aos serviços públicos. O direito do consumidor foi concebido como
instrumento de defesa daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades
econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do lucro. O
serviço público é um instrumento de satisfação dos direitos fundamentais, em que as
condições unilateralmente fixadas pelo Estado refletem o modo de satisfazer o maior
número de sujeitos, com o menor custo possível.
O regime de Direito Público, que se traduz em competências estatais anômalas, é
indispensável para assegurar a continuidade, a generalidade, a adequação do serviço
público. Se cada usuário pretendesse invocar o maior benefício individual possível, por
meio das regras do Direito do Consumidor, os efeitos maléficos recairiam sobre outros
consumidores.
Em suma, o Direito do Consumidor não pode ser aplicado integralmente no
âmbito do serviço público em virtude de uma espécie de solidariedade entre os usuários,
em virtude da qual nenhum deles pode exigir vantagens especiais cuja fruição
acarretaria a inviabilização de oferta do serviço público em favor de outros sujeitos.
Aliás e não por acaso, o art. 27 da E.C. n° 19/1998 previra que seria elaborada,
no prazo de 120 dias, uma lei de defesa do usuário de serviços públicos. A regra
reconhecia, então, a inviabilidade de aplicação automática e indiferenciada do Código
de Defesa do Consumidor ao âmbito dos serviços públicos.

XI.8) A chamada “crise do serviço público” e as tendências à


renovação do instituto
Ao longo do tempo, o instituto do serviço público tem experimentado seguidas
crises. Nos últimos anos, chegou a se proclamar sua morte. A concepção deve ser
entendida como a necessidade de adequação do instituto às circunstâncias sociais e
econômicas.

XI.8.1) A evolução tecnológica e seus efeitos


A relatividade do conceito de serviço público é propiciada inclusive por
variações tecnológicas, que produzem o surgimento ou a extinção de necessidades
comuns a todos os seres humanos.
Isso permite compreender a variação ocorrida ao longo do séc. XX. O conceito e
o elenco dos serviços públicos foram definidos no início daquele século, especialmente
em vista das grandes invenções e descobertas. Muitas décadas depois, o progresso
tecnológico gerou novos modos de atender às antigas necessidades tanto quanto
produziu novas demandas e exigências.
Um exemplo marcante é o dos chamados monopólios naturais, tradicionalmente
considerados como serviços públicos.

47
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

XI.8.1.1) O conceito de monopólio natural


Monopólio natural é uma situação econômica em que a duplicação de
operadores é incapaz de gerar a redução do custo da utilidade. O monopólio natural
envolve, geralmente, as hipóteses de custos fixos (atinentes à infra-estrutura necessária
à produção da utilidade) muito elevados. A duplicação das infra-estruturas conduziria a
preços unitários mais elevados do que a exploração por um único agente econômico.50
Ou seja, quanto maior o número de usuários do sistema, menor o custo para fornecer
outras prestações.
Nos casos de monopólio natural, a exploração econômica mais eficiente é aquela
desenvolvida por um único operador. A existência de dois operadores conduz à redução
da participação de cada um deles no mercado e gera preços mais elevados.
Os exemplos de monopólios naturais são os serviços prestados em rede, tal como
a energia elétrica, a telefonia fixa, a distribuição de água e coleta de esgoto, as ferrovias
etc.
Desde o final do séc. XIX até meados do séc. XX, houve forte tendência à
transformação dos monopólios naturais em serviço público.

XI.8.1.2) A evolução tecnológica e as inovações


A evolução tecnológica produziu inovações no âmbito econômico,
especialmente no tocante aos monopólios naturais. É o caso da energia elétrica. O
modelo econômico de oferta da utilidade “energia elétrica” foi construído a partir da
idéia de ciclo completo, em que uma única e mesma empresa dominava todas as
atividades pertinentes (desde a geração até a comercialização de energia). Mas o
progresso científico, ao longo das últimas duas décadas, propiciou alteração radical.
Novas tecnologias permitem a geração de energia por processos muito mais baratos e
com elevadíssima eficácia. Há plena possibilidade de competição no plano da geração
da energia.
Ou seja, a realidade contemporânea apresenta um panorama econômico-material
distinto daquele do início do Século XX.
O Direito reflete (também) o conhecimento científico e o domínio da técnica
vigentes em uma sociedade. Não é possível dissociar os institutos jurídicos da realidade
que os produziu e para a qual foram gerados.51
Em suma, as concepções clássicas sobre serviço público necessitam ser
adaptadas à realidade econômica e cultural.

XI.8.2) A influência comunitária européia


Por outro lado, a crise do serviço público foi incentivada pela inovações
derivadas da evolução da União Européia. Há uma proposta comunitária para revisão do

50
Na definição de ANA MARIA DE OLIVEIRA NUSDEO, o monopólio natural se configura quando
“os custos de produção por uma única empresa – em um determinado nível absorvível pelo mercado –
são decrescentes à medida que sua produção aumenta, seguindo essa tendência até alcançar toda a
produção do mercado” (Defesa da Concorrência e Globalização Econômica, cit., p. 40).
51
Nesse ponto, aliás, o autor mantém a postura epistemológica que o levou a propor uma revisão do
conceito de pessoa jurídica Confira-se o discurso inicial em A desconsideração da personalidade
societária no Direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.

48
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

regime jurídico dos serviços qualificados como públicos.52 A concepção francesa de


serviço público não foi recepcionada no âmbito comunitário, o qual optou por uma
solução de feição mais próxima às concepções anglo-saxônicas. No direito comunitário
europeu, sequer existe referência formal a serviço público. Fala-se em serviços
econômicos de interesse geral, determinando-se, como regra geral, sua submissão ao
regime jurídico das atividades privadas mas se admitindo, em face de circunstâncias
específicas, a adoção de regime jurídico diverso.53
A influência comunitária atenuou a distinção entre os regimes jurídicos de
atividade econômica privada e serviço público. Há uma forte tendência à uniformização
do regime jurídico ou ao surgimento de uma síntese dialética superadora de ambas as
soluções.
No modelo comunitário, rejeita-se a concepção de titularidade estatal dos
serviços públicos e, de modo muito especial, a configuração monopolista de sua
prestação. Mas o Tratado de Amsterdã de 1997 reconheceu formalmente que certas
atividades relacionadas à satisfação de necessidades econômicas gerais envolvem
diretamente valores de solidariedade social. A função solidarística dos serviços
econômicos de interesse geral ultrapassa os limites da mera dimensão econômica e foi
consagrada expressamente no nível comunitário.
A difusão comunitária desse novo modelo de atendimento às necessidades
coletivas não pode ser incorporada de modo automático ao Direito brasileiro.

XI.8.3) A dissociação entre a regulação e a prestação do serviço público


Uma característica marcante do novo serviço público reside na dissociação entre
as atividades de regulação e de prestação do serviço público. A competência regulatória
do serviço público é retirada dos órgãos encarregados de sua prestação. São criadas
entidades administrativas dotadas de autonomia mínima, a quem incumbe disciplinar o
desempenho dos serviços, visando a assegurar a imparcialidade, a democratização e a
transparência na gestão dos serviços.

XI.8.4) A extinção da uniformidade jurídica


Outra inovação é a extinção da uniformidade de regime jurídico. Torna-se
impossível aludir a “o serviço público”, em virtude da afirmação de uma multiplicidade
de serviços públicos, cada qual com regime jurídico diferenciado. Surge o direito das

52
Sobre o tema, entre nós, confira-se DINORÁ A. M. GROTTI, Teoria dos Serviços Públicos e sua
transformação, em direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros – SBDP, 2000, p. 39-71.
53
A expressão “serviço econômico de interesse geral” foi utilizada no Tratado de Roma e que ainda é
mantida no Tratado de Amsterdã de 1997. A exposição acerca da evolução do instituto do serviço público
no cenário comunitário extravasa largamente os limites desta exposição. O tema gerou enorme produção
bibliográfica. Há duas coletâneas de qualidade excepcional acerca da matéria, ambas derivadas de
colóquios produzidos na França. Uma tem o título Service Public et Communauté européenne: entre
l’intérêt général et le marché (Actes du colloque de Strasbourg 17-19 octobre 1996, sous la direction de
ROBERT KOVAR et de DENYS SIMON, Paris, La Documentation Française, 1998, dois volumes). A
outra é denominada Services Publics comparés en Europe: exception française, exigence européenne
(École nationale d’administration, Promotion Marc Bloch 1995-1997, Paris, La Documentation Française,
1997, dois volumes). Para um exame das posições mais recentes, consulte-se o excelente L’idée de
service public dans le droit des États de l’Union Européenne, organizado por FRANCK MODERNE e
GÉRARD MARCOU, Paris: L’Harmattan, 2001.

49
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

telecomunicações, o direito da energia elétrica, o direito da educação e assim por diante.

XI.8.5) A diferenciação qualitativa entre os serviços


O efeito fundamental dessa multiplicação reside na impossibilidade de
generalizações. Muitas das características clássicas dos serviços públicos continuam a
ser aplicáveis, mas apenas a alguns tipos de serviços. O rigor do regime publicístico
alcança os serviços mais essencialmente vinculados aos direitos fundamentais: os
relacionados à saúde, à assistência e à educação.

XI.8.6) A questão da exclusividade na prestação do serviço público


Um ponto nuclear das propostas de reforma do serviço público consiste na
proposta de eliminação da exclusividade na prestação.
Reconhece-se que o monopólio estatal é indesejável, mas que o monopólio
privado é insuportável. Portanto, qualquer transferência de serviço público para a
prestação de particulares deve conduzir a esquemas competitivos.
O art. 16 da Lei nº 8.987 fez referência à ausência de exclusividade em
concessões e permissões de serviço público.54 Inúmeros diplomas posteriores
reafirmaram a orientação, a propósito de setores específicos. A Lei Geral de
Telecomunicações e a legislação pertinente ao setor elétrico insistiram na concepção de
um sistema em que a prestação de serviços públicos não se traduzisse na configuração
de exploração monopolística, especialmente em face da ampliação da participação da
iniciativa privada nesses segmentos.
Como se extrai do art. 16 da Lei n° 8.987, a delegação do serviço público deverá
se fazer, em regra, com ausência de exclusividade. A determinação se orienta a
promover a competição e ampliar a eficiência na prestação dos serviços pelo
concessionário (permissionário). Ademais, pode refletir concepção característica do
direito do consumidor, atinente à liberdade de escolha por parte do usuário (art. 7°, inc.
III).
A exclusividade dependerá da impossibilidade material ou econômica de
desempenho do serviço público em regime de competição.

XI.8.7) O tratamento jurídico peculiar para os serviços em rede


Um conjunto de providências foi implantado a propósito dos serviços públicos
cuja prestação pressupõe uma infra-estrutura em rede, tal como se passa com a energia
elétrica, as telecomunicações, as ferrovias e as rodovias.

XI.8.7.1) Fragmentação (dissociação) das atividades de serviço público


Um ponto marcante das propostas de revisão do conceito de serviço público se
relaciona com a dissociação das atividades de serviço público. Seja por fatores de cunho
tecnológico, seja pela sofisticação da atividade econômica, tornou-se possível (senão
necessário) seccionar em vários núcleos autônomos a atuação de fornecimento das
utilidades.
O conceito clássico de serviço público considerava de modo unitário todas as

54
Sobre a matéria, assim dispôs o art. 16: “A outorga da concessão ou permissão não terá caráter de
exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o
art. 5° desta Lei”.

50
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

atividades necessárias à prestação de uma certa utilidade. A inovação reside em


verificar se existem atividades heterogêneas e, em caso positivo, diferenciá-las entre si,
aplicando a cada qual regras distintas. Reconhece-se inclusive que nem todos os
segmentos das atividades exigem exploração sob regime próprio de serviço público.
Produz-se a dissociação da atividade, inclusive para evitar que sua exploração
conjunta conduza a efeitos de abuso de poder econômico e dominação de mercado. Essa
tese se aplicou no âmbito da energia elétrica, tal como acima já referido.

XI.8.7.2) A ampliação da competição


O novo regime do serviço público busca ampliar a competição econômica, como
instrumento de limitação do poder econômico e de ampliação da eficiência na gestão
dos recursos necessários. OS efeitos positivos da competição econômica dificilmente se
verificariam se um mesmo sujeito dominasse as diversas etapas. É necessário evitar o
fenômeno de subsídio cruzado, pelo qual o agente econômico transfere custos da etapa
competitiva para aquela monopolizada, eliminando os efeitos positivos da competição55.
A fragmentação conduziu não apenas à dissociação de tratamento jurídico para
as diversas etapas econômicas componentes de uma certa atividade mas também à
introdução de mecanismos orientados a impedir o exercício cumulativo por um mesmo
e único sujeito de atividades de natureza distinta. Esses mecanismos consistem na
vedação ao desempenho das diversas atividades ou na imposição de rigorosa
dissociação de tratamento entre elas.

XI.8.7.3) A dissociação entre propriedade e exploração da rede


Os serviços públicos em rede configuram, usualmente, monopólios naturais. Isso
significa a impossibilidade econômica da duplicação da rede. Mas isso não impede a
competição. A primeira providência consiste na vedação a que o proprietário seja o
explorador da rede.
O proprietário da rede obterá resultados econômicos em virtude de sua utilização
por terceiros, não incumbindo a ele o monopólio de sua exploração.

XI.8.7.4) O compartilhamento da rede


Ademais, é perfeitamente possível que uma pluralidade significativa de
empresas se valham de uma mesma infra-estrutura, oferecendo utilidades diversas aos
usuários. O exemplo característico é a utilização da infra-estrutura de transmissão de
energia elétrica por uma pluralidade de empresas.

XI.8.7.5) O compartilhamento compulsório


Prevalece o dever de compartilhamento compulsório. O titular de uma infra-
estrutura econômica não pode invocar a propriedade como fundamento para negar sua
utilização por competidores, especialmente quando existente capacidade ociosa de
exploração. É a ele assegurada uma remuneração compatível e adequada pela primazia
na concepção do empreendimento – mas não o impedimento à livre competição.
A teoria foi desenvolvida no estrangeiro e é conhecida como essential facilities e

55
Assim, o usuário paga menos pela atividade prestada em regime de competição, mas seu benefício
desaparece por ser obrigado a pagar muito mais pelos serviços monopolizados.

51
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

Third Party Access (TPA)56. Não equivale a uma modalidade de desapropriação, eis que
o particular mantém o núcleo essencial das faculdades inerentes ao domínio. Não se
admite compartilhamento de infra-estruturas quando o proprietário delas necessita
integralmente para sua exploração empresarial. Ademais, a utilização não se faz
gratuitamente, mas mediante remuneração – a qual deverá ser orientada pelo princípio
da proporcionalidade, vedando-se a prática de preços abusivos como forma indireta de
inviabilizar o compartilhamento.

XI.8.7.6) O dever de interconexão e a atenuação do efeito de rede


Outro postulado é a vedação a padrões técnicos excludentes da competição,
questão extremamente relevante em vista do chamado “efeito de rede”. Há uma
ampliação geométrica da rentabilidade econômica com a ampliação da rede.
O grande exemplo se relaciona com os serviços de telefonia. Existindo conexão
entre apenas dois sujeitos, a utilidade da telefonia é reduzida. A ampliação do número
de terminais telefônicos produz a multiplicação geométrica das ligações. Por isso, a
competição depende do acesso conjunto e integrado de todos os competidores à rede de
telefonia. Um operador não pode adotar padrões técnicos excludentes do ingresso de
novos competidores no mercado.

XI.8.7.7) Submissão do tratamento dos prestadores de serviço a padrões comparativos


São introduzidos instrumentos técnico-jurídicos de simulação da competição,
especialmente quando o serviço público é prestado em regime de monopólio. Costuma-
se denominar essa hipótese de regulação por padrão de comparação (“yardstick
regulation”). Elege-se o prestador de serviço com o melhor desempenho e se subordina
todos os demais a tratamento equivalente, de modo a constrangê-los a ampliar a
qualidade (aí abrangida a eficiência) de sua atuação.

XI.8.7.8) Redução da intervenção estatal e produção de efeitos de competição


Todas as soluções acima referidas refletem a redução da intervenção estatal na
disciplina do serviço público. Em inúmeros países, constatou-se que a intervenção
estatal para disciplinar a prestação de serviços públicos acaba gerando novos problemas,
sem resolver os antigos. Produz-se um círculo vicioso regulatório, em que a tentativa de
eliminar problemas cria outros, o que demanda novas intervenções estatais que agravam
ainda mais a questão.
Aplicam-se instrumentos desenvolvidos na atividade econômica privada não por
reputar-se que o “mercado” é melhor do que o Estado – comparação destituída de
sentido e que nunca conduziria a alguma conclusão consistente. O único fundamento
apto para justificar juridicamente a redução da intervenção estatal, a supressão de
monopólios e exclusividades e a introdução de mecanismos de mercado reside na
constatação prática de que tais soluções ampliam os benefícios para coletividade e
produzem resultados mais satisfatórios do que qualquer outra alternativa.

56
Uma ampla exposição acerca da teoria (pouco conhecida no Brasil, mas largamente difundida no
estrangeiro), pode ser encontrada em MARIO SIRAGUSA e MATTEO BERETTA, La dottrina delle
essential facilities nell diritto comunitario ed italiano della concorrenza, Contratto e impresa/Europa,
anno quarto, vol. 1, 1999, CEDAM, p. 260-348.

52
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XI.9) A sobrevivência do serviço público


Não há cabimento em afirmar a morte do serviço público, proclamada por
autores de nomeada tal como ARIÑO ORTIZ. O instituto permanece existente como
manifestação direta e imediata da concepção política consagrada por cada povo.
A sociedade produz os meios de satisfação solidarística das necessidades
individuais e coletivas. Isso compreende institutos cuja estruturação não se subordina
integralmente à disciplina reservada para as atividades econômicas propriamente ditas.
Em todos os países do mundo, diferencia-se o regime jurídico privado, reservado para a
exploração econômica em sentido restrito, daquele aplicável às atividades relacionadas
com o interesse coletivo. As denominações reservadas para essas diferentes hipóteses
variam de país a país, tal como o conteúdo do regime jurídico correspondente e sua
extensão de abrangência. Mas sempre existe um núcleo reconduzível ao que se
denomina, entre nós, de serviço público.
A tendência à redução das tarefas atribuídas ao Estado deve ser examinada
segundo a dimensão dos princípios jurídicos fundamentais. A atividade estatal é
necessária e indispensável para a realização de valores fundamentais. Portanto, a morte
do serviço público apenas pode ser entendida como a extinção de atividades estatais
secundárias e irrelevantes, que foram indevidamente enquadradas como serviço público.
O serviço público somente desaparecerá se e quando houver viabilidade de
satisfação dos direitos fundamentais mediante atuação privativa da iniciativa privada,
sem a intervenção estatal – alternativa que não se afigura como plausível, pois conduz
ao desaparecimento da justificativa da existência do próprio Estado.

XI.10) As classificações de serviço público


Os serviços públicos podem ser classificados segundo diversos critérios,
tomando em vista a competência federativa, o grau de essencialidade e a necessidade a
ser satisfeita.

XI.10.1) Serviços públicos quanto à competência federativa


Os serviços públicos podem ser diferenciados em vista do ente federativo que os
titulariza. A classificação é relevante não apenas para individualizar o ente federativo
que deverá assumir a prestação do serviço como também a competência legislativa
correspondente.
Poderiam ser diferenciados os serviços públicos de competência comum e os de
competência privativa. Os de competência comum são aqueles atribuídos a todos os
entes federativos em conjunto, tal como a educação e a saúde. Já os de competência
privativa são de titularidade de determinada órbita federativa. A diferenciação se faz
segundo os critérios gerais de discriminação de competências federativas ou em vista de
regra constitucional específica.
Assim, a Constituição indica, de modo expresso, alguns serviços públicos como
de titularidade da União (art. 21, incs. X a XII). Outros serviços são identificados
segundo os critérios gerais. Assim, o transporte urbano de passageiros é de competência
municipal. O transporte de passageiros interurbano estadual é de titularidade do Estado-
membro. E a União é titular do transporte de passageiros interestadual e internacional.

XI.10.2) Serviços públicos quanto ao grau de essencialidade


É costumeiro diferenciar serviços públicos essenciais e não-essenciais. Trata-se

53
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

de uma diferenciação muito problemática, eis que todos os serviços públicos são,
teoricamente, essenciais. Mas a diferença pode ser admitida em vista da característica da
necessidade a ser atendida. Há necessidades cujo atendimento pode ser postergado e
outras que não comportam interrupção.
A distinção apresenta pertinência no tocante ao regime jurídico, especialmente
quanto à impossibilidade de interrupção.

XI.10.3) Serviços públicos quanto à natureza da necessidade a ser satisfeita


Quanto à natureza da necessidade satisfeita, os serviços públicos podem ser:

sociais: aqueles que satisfazem necessidades de cunho social ou


assistencial, tal como a educação, a assistência, a seguridade;

comerciais e industriais: aqueles que envolvem o oferecimento de


utilidades materiais necessárias à sobrevivência digna do indivíduo, tal
como a água tratada, a energia elétrica, as telecomunicações;

culturais: os que satisfazem necessidades culturais, envolvendo o


desenvolvimento da capacidade artística e o próprio lazer, tais como
museus, cinema, teatro.

54
Caderno de Direito Constitucional - 2006
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Capítulo XII - Tipos de atividade administrativa:


exploração direta de atividade econômica pelo Estado
O art. 173 da Constituição faculta ao Estado a exploração direta de atividade
econômica, submetendo a hipótese a pressupostos especiais e a regime jurídico próprio.
Esse tipo de atividade administrativa foi objeto de referência em inúmeras
oportunidades anteriormente.

XII.1) Definição
O exercício de atividade econômica pelo Estado consiste no desempenho por
entidade administrativa, sob forma e regime de Direito Privado, de atividade
econômica propriamente dita, nas hipóteses previstas na Constituição ou em lei,
quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou à satisfação de
relevante interesse coletivo.

XII.1.1) desempenho por entidade administrativa,


A função administrativa traduz-se numa atividade atribuída a uma entidade
administrativa, integrante de qualquer uma das três órbitas da federação – ressalvadas as
hipóteses em que a própria Constituição dispôs diversamente. Assim, por exemplo, o
art. 177 impôs o monopólio da União para certas atividades.

XII.1.2) sob forma e regime de Direito Privado,


O art. 173, § 1°, da Constituição proíbe que a administração direta se dedique à
atividade econômica propriamente dita, impondo a adoção de forma de Direito Privado.
O inc. II do mesmo dispositivo determina que se produzirá a sujeição ao regime jurídico
próprio das empresas privadas. O § 2° exclui a possibilidade de empresas públicas e
sociedades de economia mista gozarem de privilégios não extensíveis a entidades
privadas.

XII.1.3) de atividade econômica propriamente dita,


A Constituição diferencia o serviço público e a atividade econômica
propriamente dita, subordinando-os a regras diversas.
A atividade econômica propriamente dita se sujeita aos princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência.

XII.1.4) nas hipóteses previstas na Constituição


A própria Constituição contempla um elenco de situações em que o Estado
exercerá atividade econômica. Esses casos constam dos arts. 176 e 177.

XII.1.5) ou em lei,
O desempenho direto pelo Estado no domínio econômico, em hipóteses não
previstas na Constituição, depende de autorização legislativa.
Normalmente, essa autorização legislativa está contida na própria lei que
autoriza a criação de uma entidade administrativa dotada de personalidade jurídica de
direito privado. Como visto acima, a criação da entidade de direito privado depende de

55
Caderno de Direito Constitucional - 2006
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autorização legislativa (Constituição, art. 37, incs. XIX e XX). Essa lei, ao identificar o
âmbito de atuação da entidade estatal, contemplará implicitamente a autorização para
sua atuação.
Aplicam-se os comentários acima realizados, relativos à impossibilidade de
outorga, de autorização ilimitada e indeterminada. Não é constitucional delegar para a
entidade o poder de escolher as atividades às quais se dedicará. Quando muito, admite-
se a autorização atinente a um segmento delimitado de atividades.

XII.1.6) quando necessário aos imperativos da segurança nacional


Admite-se a atuação direta do Estado no domínio econômico quando tal se
impuser como imperativo de segurança nacional. A questão envolve três aspectos.
O primeiro consiste em tornar mais preciso um conceito indeterminado como o é
a segurança nacional. No período não democrático, invocava-se genericamente a
segurança nacional para legitimar as decisões políticas. No atual regime, essa solução é
inadmissível, o que não equivale a negar a existência nem a importância de razões de
segurança nacional. Mas é indispensável evidenciar um conteúdo específico para a
cláusula “segurança nacional”, evitando decisões fundadas em avaliação puramente
subjetiva e insuscetível de controle dos governantes.
O segundo se relaciona com as hipóteses em que uma atividade econômica se
relaciona com a segurança nacional. Em muitos casos, a segurança nacional se traduz
em atividades públicas propriamente ditas, relacionadas com o monopólio estatal da
violência. Nesses casos, não há cabimento de atuação econômica privada. Mas pode
haver casos em que uma certa atividade econômica se relacionará com a segurança
nacional. Cabe uma determinação mais precisa quanto a isso.
Por fim, é necessário determinar se a atividade econômica propriamente dita,
relacionada com a segurança nacional, será desempenhada segundo o regime jurídico
comum ou não.

XII.1.7) ou à satisfação de relevante interesse coletivo


Tal como “segurança nacional”, o “relevante interesse coletivo” é um conceito
indeterminado. Mas isso não gera uma espécie de presunção de legitimidade de
qualquer decisão política orientada a produzir a atuação estatal direta.

XII.2) A questão da “ordem econômica”


Tal como apontado em capítulos anteriores, é problemático definir “ordem
econômica”. A grande dificuldade reside na pluralidade de sentidos que o vocábulo
“econômico” apresenta. Muitas discussões refletem a divergência sobre o que se
entende por “econômico”.
Numa acepção ampla, bem econômico é todo o recurso escasso apto a satisfazer
uma necessidade humana, que comporte diferentes e excludentes utilizações. A
Constituição parece ter adotado essa concepção, especialmente porque dispôs sobre os
serviços públicos no Título VII, que versa sobre a Ordem Econômica e Financeira.

XII.3) O desempenho direto de atividade econômica


propriamente dita
O desempenho direto de atividade econômica propriamente dita pelo Estado se

56
Caderno de Direito Constitucional - 2006
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configura como excepcional.

XII.3.1) O capitalismo e a atuação econômica privada


A Constituição consagrou um regime capitalista, fundado nos princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência. Os serviços públicos são excluídos do âmbito desses
princípios.
Se o Estado pudesse assumir o desempenho direto das atividades econômicas
propriamente ditas e a elas aplicar privilégios e benefícios, estaria destruída a distinção
básica. Então, todas as atividades poderiam ser transformadas em serviço público,
inclusive aquelas destituídas de cunho essencial.
Assim não o é, eis que não se admite que o Estado qualifique como serviço
público atividade não vinculada diretamente aos direitos fundamentais. Não pode fazê-
lo nem mesmo por via do expediente de atribuir a si próprio benefícios no exercício de
uma certa atividade econômica.
Ou seja, a atividade econômica se sujeita a regras uniformes, que se aplicam a
todos os agentes – sejam eles particulares ou entidades administrativas estatais.
Para manutenção da ordem econômica constitucionalmente consagrada, é
indispensável que o Estado não goze de privilégios ou vantagens quando desempenhar
atividade econômica propriamente dita. Se assim não o for, haverá a destruição da livre
concorrência e o Estado eliminará as empresas privadas, não por ser mais eficiente mas
porque as leis a ele asseguram benefícios desiguais.
A criação de benefícios desiguais em favor do Estado, no desempenho de
atividades econômicas, é uma decisão política, somente admissível se autorizada
constitucionalmente. Um ponto relevante reside em que os Estados que adotaram essa
solução passaram a sofrer sérias dificuldades de ausência de eficiência econômica.
A solução constitucional brasileira não deixa margem de dúvida. Somente em
situações excepcionais o Estado desempenhará atividade econômica propriamente dita.
E, quando o fizer, será inconstitucional criar qualquer privilégio em seu próprio
benefício.

XII.3.2) O princípio da subsidiariedade


A atuação direta do Estado não é justificável mediante a mera invocação de
algum interesse público relevante. É necessário evidenciar que a intervenção direta do
Estado é a solução adequada e necessária para a satisfação de necessidades
determinadas. Aplica-se o princípio da proporcionalidade, o que significa que somente
se legitimará a intervenção estatal se outra alternativa não for mais satisfatória. Sob esse
prisma, o princípio da proporcionalidade se manifesta como princípio da
subsidiariedade.
O princípio da subsidiariedade impõe o dever de intervenção supletiva do Estado
no domínio econômico, intervenção essa que se legitima apenas quando a iniciativa
privada for incapaz de solucionar de modo adequado e satisfatório uma certa
necessidade.

XII.3.2.1) A concepção funcional e a democracia republicana


Deve ter-se em vista que os recursos públicos são escassos e limitados. Não há
cabimento de aplicar recursos públicos de modo inadequado, ignorando a prioridade
derivada da supremacia dos direitos fundamentais. Os recursos públicos não podem ser
destinados ao desenvolvimento de atividades secundárias, irrelevantes – mesmo que
lucrativas. A perspectiva da lucratividade não é uma justificativa suficiente para a

57
Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

assunção direta de uma atividade por parte do Estado.


O Estado recebe uma massa de recursos provenientes da sociedade para o
atendimento de necessidades essenciais. A exploração direta pelo Estado de uma
atividade econômica tem natureza funcional e, por isso, configura atividade
administrativa.

XII.4) Os pressupostos da atuação direta do Estado no domínio


econômico
A atuação direta do Estado no domínio econômico ocorre em três casos (art.
173).

casos previstos na Constituição


Desempenho direto pelo Estado imperativo de segurança nacional
relevante interesse coletivo

XII.4.1) Os casos previstos na Constituição


Os casos previstos na Constituição de atuação direta do Estado no domínio
econômico são, basicamente, aqueles previstos no art. 25, § 2° (gás canalizado local) e
no art. 177. Nesses casos, a Constituição impõe que o Estado atue no domínio
econômico em regime de monopólio. Trata-se de uma aparente contradição, somente
admitida em virtude da previsão constitucional do art. 177.

XII.4.1.1) Atividade econômica e monopólio estatal


Um princípio inerente à ordem econômica é a livre iniciativa e a livre
concorrência para as atividades econômicas propriamente ditas. Estabelecer que uma
certa atividade se configura como econômica em sentido próprio e impor monopólio
estatal é uma contradição aparente.
A Constituição afastou a livre iniciativa e a livre concorrência quanto a certas
atividades, em virtude de sua relevância política e econômica. As atividades referidas no
art. 177 não são destinadas a satisfazer direitos fundamentais, no entanto foram
reservadas ao monopólio estatal porque podem produzir reflexos sobre a soberania
nacional ou outros valores essenciais. O monopólio estatal reflete uma decisão política.

XII.4.1.2) Monopólio estatal e serviço público


O monopólio estatal não se confunde com o serviço público porque não se
destina a satisfazer, de modo direto e imediato, direitos fundamentais. No monopólio
estatal, existe uma atividade econômica que, por razões políticas, é atribuída ao Estado.
A grande distinção reside no regime jurídico da exploração. O serviço público é
prestado sob regime de serviço público, o que envolve competências anômalas
destinadas a permitir a satisfação dos direitos fundamentais. A atividade econômica
monopolizada é exercitada sob regime de Direito Privado.
Logo, o Estado não se beneficia, nas atividades econômicas monopolizadas, de
competências anômalas. Não pode invocar a necessidade de satisfação de direitos
fundamentais para restringir direitos ou interesses alheios.
Por outro lado, os particulares não podem invocar os princípios do serviço
público a propósito das atividades econômicas monopolizadas. Assim, ninguém pode
exigir que a si seja fornecido um derivado de minério nuclear, contrariamente ao que se

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

passa com uma utilidade objeto de serviço público.

XII.4.1.3) A questão do gás canalizado local


Essas considerações evidenciam que a hipótese contemplada no art. 25, § 2°, da
Constituição configura um caso de monopólio e não de serviço público. Ali se previu
incumbir ao Estado-membro explorar os serviços locais de gás canalizado. A referência
a “concessão” induz a existência de um serviço público, mas esse entendimento é
incorreto.
O fornecimento de gás é uma atividade econômica em sentido próprio. Ninguém
tem um direito fundamental a ser satisfeito mediante o fornecimento de gás, muito
menos de gás canalizado.
O dispositivo indica uma atividade econômica em sentido próprio, que foi
reservada constitucionalmente ao monopólio do Estado-membro, quando desenvolvida
localmente.

XII.4.2) O imperativo de segurança nacional


O imperativo da segurança nacional autoriza a intervenção estatal da União,
mediante a edição de lei.

XII.4.2.1) O conceito de segurança nacional


A segurança nacional consiste no conjunto de condições necessárias e
indispensáveis à existência e manutenção da soberania estatal e ao funcionamento das
instituições democráticas. Não é integrado por fatores precisos e predeterminados, mas
é o resultado da conjugação de circunstâncias, que variam segundo as condições
históricas.
A segurança nacional é um conceito relativo. Cada país apresenta circunstâncias
diversas no tocante à questão da segurança. Enfim, porque cada momento histórico
condiciona diversamente o tema da segurança nacional.

XII.4.2.2) O conceito de segurança nacional é indeterminado


Segurança nacional é um conceito indeterminado, o que acarreta a já apontada
característica de qualificação da realidade em três segmentos distintos. Há eventos
inquestionavelmente relacionados com a segurança nacional. Há aqueles que não se
relacionam com ela e existem hipóteses em que é incerta a qualificação. As dificuldades
surgem em relação a esse terceiro grupo de eventos.
Daí se infere a inconstitucionalidade de uma lei que pretendesse autorizar o
exercício de atividade econômica pelo Estado em hipótese claramente não referida à
segurança nacional.

XII.4.2.3) O núcleo do conceito de segurança nacional


A expressão “segurança nacional” indica uma situação de fato, caracterizada
pela existência e independência do Estado brasileiro, com a preservação dos valores
fundamentais da Nação. Portanto, a segurança nacional se relaciona com a soberania
estatal e com a preservação da nacionalidade.

XII.4.2.4) As atividades necessárias à segurança nacional


São indispensáveis à segurança nacional as atividades aptas à preservação da
soberania e da integridade da Nação, tal como aquelas cujo desenvolvimento possa
importar o surgimento de situações de risco.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

XII.4.2.5) A dificuldade da aplicação ao caso concreto


A aplicação da hipótese no caso concreto não é fácil. São poucas as atividades
econômicas em sentido próprio relacionadas à segurança nacional, que não tenham sido
desde logo apontadas pela Constituição.

XII.4.2.6) A promoção das atividades de segurança nacional é de competência da


União
A União é titular das competências políticas e administrativas relacionadas com
a promoção da segurança nacional. Os demais entes federativos detêm competência
quanto à segurança local. Logo, a previsão examinada apenas justifica a atuação
econômica direta da própria União.

XII.4.3) O relevante interesse coletivo


Muito mais freqüente é a utilização da cláusula do relevante interesse coletivo.
Essa fórmula é suficientemente ampla para abrigar as mais diversas decisões políticas,
cujo controle é admitido de modo teórico, mas com pouca aplicabilidade prática.

XII.4.3.1) A existência de um interesse coletivo relevante


Interesse coletivo relevante, tal como segurança nacional, é um conceito jurídico
indeterminado.
Para o fim do dispositivo, o interesse coletivo consiste na existência de uma
necessidade supra-individual, comum a um número relevante de pessoas, cuja satisfação
possa ser proporcionada pela atuação direta do Estado.
Anote-se que a Constituição aludiu a interesse coletivo relevante, qualificação
que não pode ser ignorada. Em tese, qualquer atividade econômica pode satisfazer o
interesse coletivo. Isso não basta, porque é indispensável um interesse coletivo
significativo, importante.

XII.4.3.2) A necessidade da intervenção estatal para sua satisfação


Segundo o princípio da subsidiariedade, somente se legitima a atribuição da
atividade econômica ao desempenho de uma entidade estatal na medida em que essa
seja a solução adequada e necessária para a satisfação do interesse coletivo relevante.

XII.5) As entidades administrativas


O exame das entidades administrativas constituídas para exercitar atividade
econômica propriamente dita ocorreu no Capítulo V, acima, .
Lembre-se que nem todas as entidades estatais dotadas de personalidade jurídica
de direito privado exercem atividade econômica em sentido próprio. Há aquelas que
atuam no setor dos serviços públicos (o que abrange, inclusive, as entidades
administrativas de apoio).

XII.6) Função administrativa e exercício direto de atividade


econômica
É indispensável ter em vista que o exercício de atividade econômica diretamente
pelo Estado continua a ser uma atividade administrativa, dotada de cunho funcional.

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Caderno de Direito Constitucional - 2006
Marçal Justen Filho

A atuação concreta da entidade tem de ser orientada por sua natureza funcional,
consistente na produção de utilidades para a coletividade.
Isso não significa negar às entidades estatais a autorização para buscarem o
lucro. Tal seria um despropósito, por dois motivos.
Primeiro, porque a ausência de lucratividade significaria a necessidade de
ampliação dos investimentos públicos. Uma estatal permanentemente deficitária deve
ser extinta, a não ser que exista uma forte justificativa para que o Estado e a sociedade
continuem a custear seu funcionamento.
Depois, porque a atuação deficitária perturba o mercado e pode configurar
prática incompatível com a competição. Se uma empresa estatal ofertar bens no
mercado por preços irrisórios, acabará por destruir a concorrência. A médio prazo, o
resultado será muito danoso para a economia em seu conjunto.
Mas a lucratividade da entidade estatal tem de ser compatível com a sua natureza
funcional. A entidade deverá produzir benefícios para a sociedade, satisfazendo
interesses coletivos relevantes e promovendo a segurança nacional.
Ademais disso, deverá ser um instrumento – indireto - de cumprimento por parte
do Estado a seus compromissos com a sociedade. Não é admissível que uma entidade
estatal, na busca do lucro, transforme-se numa via de destruição dos valores prezados
pela sociedade.

XII.7) A submissão ao regime de Direito Público


É vedado atribuir às empresas estatais, no desempenho de suas atividades, algum
privilégio não extensível aos particulares. Mas, no seu funcionamento, as empresas
estatais estão subordinadas ao regime de Direito Público, justificado pela natureza
funcional de sua atuação e na origem estatal dos recursos que movimentam.
Tal como antes exposto, isso se traduz na obrigatoriedade de observância de
licitação nas suas contratações administrativas, ressalvadas as hipóteses de atividades-
fim.
É possível afirmar que o regime jurídico pertinente à discricionariedade se aplica
às entidades administrativas exercentes de atividade econômica em sentido próprio. Sua
criação importa a atribuição de autonomia para a realização de escolhas empresariais,
que têm de refletir a busca da solução mais satisfatória para os interesses gerais.
A sociedade estatal deve privilegiar a satisfação dos valores e interesses
coletivos, deixando em segundo lugar a satisfação do interesse dos acionistas,
administradores e empregados.

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ANEXO

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A Ordem Econômica e
Financeira

Marçal Justen Filho

 ,  2 (VWDGR H R GRP¯QLR
HFRQ¶PLFR

, 3OXUDOLGDGHGHDOWHUQDWLYDVDFHUFD
GDLQWHUYHQ©¥RGR(VWDGRQR
GRP¯QLRHFRQ¶PLFR
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, $EVRU©¥RGR(VWDGRSHOR
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, 2(VWDGRGH%HP(VWDU
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, $LOXV¥RGDಯWHUFHLUDYLDರQHP
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, 3HUVSHFWLYDVHPDEHUWRR(VWDGR
5HJXODGRU


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Marçal Justen Filho
_________________________________________________________________________________

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,, 0RGHOREUDVLOHLURFRQVDJUD©¥R
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,, $UWrGD&)
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2UGHP(FRQ¶PLFDDUWGD&)
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,, 3ULQF¯SLRVJHUDLVDFHUFDGD
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,, ([HUF¯FLRH[FHSFLRQDOSRUSDUWH
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,, 5HJLPHMXU¯GLFRVHPSUHGH
'LUHLWR3ULYDGR


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_________________________________________________________________________________

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,,, 2VHUYL©RS¼EOLFR
,,, 'HILQL©¥RDWLYLGDGHS¼EOLFD
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,,, &ULW«ULRVVXEVWDQFLDLVQDWXUH]D
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,,, 5HFRQKHFLPHQWRGDQDWXUH]D
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,,, &RPSOLFD©¥RDWLYLGDGH
HFRQ¶PLFDPRQRSROL]DGDSHOR(VWDGR

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Marçal Justen Filho
_________________________________________________________________________________

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,,, $DXWRQRPLDOHJLVODWLYD
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VHUYL©RS¼EOLFR



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_________________________________________________________________________________

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,,, $WLWXODULGDGHHVWDWDOGRVHUYL©R
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,,, 5HJLPHMXU¯GLFRVHPSUHGH'LUHLWR
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,,, 2VFKDPDGRVಯSULQF¯SLRVGHVHUYL©R
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,,, 2WUDWDPHQWRMXU¯GLFRSHFXOLDUSDUD
RVVHUYL©RVHPUHGH



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_________________________________________________________________________________

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,,, 2FRPSDUWLOKDPHQWRGDUHGH
,,, 2FRPSDUWLOKDPHQWRFRPSXOVµULR
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_________________________________________________________________________________

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_________________________________________________________________________________

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DGPLQLVWUD©¥RGLUHWDHLQYHVWLGDGH
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_________________________________________________________________________________

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9, $WHUFHLUDSHFXOLDULGDGHGDV
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9, 2GHVHPSHQKRGHDWLYLGDGHV
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9,, $SURPR©¥RGRVGLUHLWRV
IXQGDPHQWDLVSRUYLDLQGLUHWD



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_________________________________________________________________________________

%LEOLRJUDILD

0$5‰$/-867(1),/+2&XUVR
GH'LUHLWR$GPLQLVWUDWLYRlHG
6¥R3DXOR6DUDLYDS




74

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