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E o Velho Guerreiro Voltou aos Céus

Uma Crônica por Luiz Liske


luizlisk@terra.com.b

Chego ao hangar da TAM no Aeroporto de Jundiaí às 7:30 do dia 3 de maio de 2002. Não sou o
primeiro, pois já encontro uns cinco ou seis entusiastas no portão. No dia 1º de Maio, depois de
testemunhar uma partida do motor Merlin, fui informado pelo pessoal da Rolls-Royce de que o piloto
chegaria naquela noite e que o primeiro vôo do Spitfire IX totalmente reformado dar-se-ia no dia 3 "if
the wheather allows". Foi quando decidi que também não trabalharia nesse dia. Antecipei as
providências necessárias e avisei a todos que não estaria disponível nem para atender celular. O dia está
encoberto, ameaçando chuva ou pelo menos uma garoa forte, como que colaborando para dar a cor
cinza, típica do clima inglês tão conhecido de fotos e filmes da Batalha da Inglaterra. Entro na área do
hangar e fico no umbral da porta principal, meio ressabiado, como um adolescente com medo de ser
expulso da festa a que não foi convidado.

E lá está ele, com a identificação JE-J, imaculado, brilhante, limpo e perfeito na sua beleza clássica.
Não importa quantas fotos já tenhamos visto, a visão do original provoca uma emoção difícil de
exprimir. A terceira dimensão, o tamanho, o cheiro e a proximidade fazem com que se tome
conhecimento pessoal da aeronave como ela realmente é. Apesar de conhecer sua história, suas
características, suas deficiências, sua importância como arma, o carisma e uma infinidade de outros
aspectos, descubro, de repente, que estou sendo finalmente apresentado a alguém que imaginava
conhecer e constato que esse conhecimento era, até aquele momento, incompleto para dizer o mínimo.

O tempo vai passando, vão chegando mais colegas. O evento não fora divulgado. Quem estava lá ficou
sabendo de maneira acidental, como eu, ou foi avisado por alguém que sabia. A idade cronológica da
platéia vai se definindo em dois grupos principais: os garotões, com idade até 25 anos, alunos pilotos
ou pilotos em início de carreira e os outros garotões, com cabelos grisalhos (ou sem cabelo) grupo esse
a que me incluía. Mas tenho a certeza de que se alguém aplicasse um teste psicológico sério no
conjunto de espectadores, naquele momento, a idade mental máxima detectável seria 16 anos. Era
como me sentia e aos demais.

Os comentários vão surgindo; perguntas são formuladas a esmo (e prontamente respondidas por
aqueles que têm a informação). Qual é o modelo? (Mark IX); Ano de Fabricação? (1943); Lutou na
guerra? (Sim, no Norte da África); Qual é a potência do motor? (Acho que uns 1800 HP... Não,
imagina, é 1400...) Que horas vai voar (Parece que é às 10:00... Não, é às 11.00). Vou percebendo que
todos lemos as mesmas revistas e livros, assistimos aos mesmíssimos filmes, construímos os mesmos
aeromodelos. Quem não é ou foi piloto é porque teve problemas de saúde (em 90%, de vista) ou de
dinheiro. Sinto a irmandade se formar, os vínculos se manifestando e, acima de tudo, a sensação
indelével de identidade de sentimentos. Cada um dos presentes sabe o que os demais estão sentindo.

Vai chegando mais gente. Puxa-se conversa com o pessoal do hangar. Começa a garoar mais forte,
dando uma boa desculpa para se entrar de vez no hangar e ninguém cria caso com a proximidade dos
curiosos com o avião. Por outro lado, ninguém toca o astro do espetáculo. A atitude mais comum dos
que se aproximam é colocar as mãos para trás, como meninos (e algumas poucas meninas) bem
comportados. E começa-se a tirar as fotografias. Todos querem ter a sua foto junto do herói do dia.

Aproveitando a liberdade de movimento tacitamente estabelecida, começo a fotografar a belezura de


vários ângulos e distâncias. Não sou o único. Um dos pintores do avião, responsáveis por um trabalho
que considero fora de série, aponta-me para o forro do escritório do hangar dizendo "é de lá que a vista
é bonita". Posso imaginar que tenha usado o local para "lamber a cria" por longos momentos. Puxo
conversa e pergunto quanto tempo foi gasto no trabalho de pintura. Ele só é capaz de dizer que foram 5
meses, com muitas jornadas diárias de trabalho de 12 a 16 horas, trabalhando dois homens no serviço
de pintura. Faço uma estimativa rápida e concluo que consumiram não menos que 1.200 homens horas.
Só na pintura. Comenta também que tiveram de refazer várias vezes o mesmo serviço, até chegar no
resultado desejado. Não perguntei nem ouvi explicação do porquê de a pintura ser em tinta brilhante, ao
invés de fosca, como no tempo da guerra.

Lá fora, a garoa forte transforma-se numa chuva fina, mas persistente. O receio agora é de que a chuva
impeça o vôo. E aos poucos, o grupo de fanáticos vai aumentando. Chegam vários amigos, conhecidos
e colegas de vôo a vela. Vai chegando o pessoal da TAM, fáceis de identificar, porque estão todos
usando o crachá da companhia. A impressão que tenho é de que quem não estava escalado veio ver o
vôo do Spit.

Lá pelas 9:45, chegam o piloto e os dois técnicos, todos funcionários da Rolls-Royce. O piloto, de
macacão de vôo e carregando o pára-quedas, faz um gracejo, dizendo que aquele clima britânico o faz
sentir-se em casa.

A chegada dos ingleses provoca alguns movimentos bem distintos. Vários espectadores querem
conversar e tirar fotos com o piloto, no que são todos atendidos, com a máxima gentileza. Creio que,
além de piloto de provas também atua e tem treinamento como relações públicas. Os dois técnicos,
acompanhados do pessoal brasileiro começam os preparativos da aeronave (verificações, cheques,
abastecimento de óleo, de CO2, verificação do nível do combustível, etc.) e quem não está nesses dois
grupos, começa a se afastar, para apreciar a cena de um ângulo mais amplo. Muito ajuda quem não
atrapalha ... Aproveito um momento em que o cockpit é deixado aberto e tiro uma foto do painel. Um
amigo examina de perto, esticando o pescoço para pôr a cabeça dentro da cabine e me chama "Liske,
vem cá, e sente o cheiro...". Como se planejado, quando o avião é dado como pronto, a chuva cessa e
surge um sol coado. O avião é empurrado para fora, de forma quase cerimonial.

Depois de posicionado o avião, o Sr. Ian Combe, curador do Museu Asas de Um Sonho e principal
responsável por fazer a aeronave voltar a voar e estar na condição em que se encontra, faz a única
intervenção dirigida ao público. Subindo numa escada de manutenção ele lembra a todos que estamos
na área de operação de um aeroporto, próximos a uma taxiway ativa e que todos os cuidados cabíveis
devem ser tomados. Lembra também o perigo que a hélice representa e solicita que todos mantenham
uma distância segura. Faço uma contagem rápida dos presentes, chegando a 55 pessoas.

E começa o espetáculo tão esperado. Primeiro, os técnicos fazem um cheque final em torno do avião;
em seguida, o piloto faz o cheque de pré-vôo regulamentar. Instala-se na cabine e um dos técnicos o
ajuda com o cinto de segurança.

Agora o silêncio da platéia pode ser medido e pesado. Todos querem ver, sentir e ouvir aquela máquina
funcionando. A partida é penosa; o sistema, de 12 volts, mal consegue acionar a hélice. O giro é lento,
errático e, às vezes, a hélice pára e retorna uns poucos graus, quando ocorre um contragolpe. Todos se
perguntam quanto tempo a bateria irá agüentar. Finalmente, o motor pega. E ronca. E vibra. E dá vida
àquela máquina. O ruído "é igualzinho ao do filme". Cheio, mas com um timbre completamente
diferente dos motores radiais. Parece ser "mais redondo". O escapamento também surpreende. A partida
praticamente não gera fumaça visível, indicando um excelente estado de funcionamento, sem queima
aparente de óleo. Agora, as nuvens se dispersam e impera um sol glorioso.

Começa o táxi, a aeronave se afasta em direção à cabeceira 35. O ruído diminui até quase sumir.
Depois de algum tempo, ouve-se o ronco, agora num crescendo, e posso vê-lo na corrida da decolagem.
Decola, sobe e, para minha surpresa por se tratar do primeiro vôo de teste, recolhe o trem.

Profissional e cauteloso, seguindo um programa previamente estabelecido, o piloto conduz o avião num
turno de pista, algumas curvas de média e grande inclinação, mas sempre a uma altura segura, entre
1000 e 3000 pés. Depois se aproxima e faz um rasante ao longo da pista. Afasta-se, subindo, retorna e
inicia um mergulho para um rasante sobre a platéia. Vendo-o quase de frente, picando e rugindo, a toda
velocidade, é possível ter uma idéia do que devia ser com as armas cuspindo fogo, num ataque ao solo.
Mais algumas manobras, nenhuma delas acrobática, abaixa o trem, entra na final, toca após ¼ de pista e
pousa em três pontos, usando quase toda a pista.

O avião retorna para o pátio do hangar, os técnicos sobem na asa e trocam impressões com o piloto. No
final, consigo ouvir o piloto dizer "Good work" para os dois e em seguida ergue-se da cabine apoiando-
se na haste do espelho retrovisor.

Os técnicos fazem uma rápida inspeção visual, procurando principalmente sinais de vazamentos. Fico
atento, na esperança de que removam o cowling, mas isso não ocorre. O único gotejamento de óleo é
proveniente do dreno do compressor, o que é perfeitamente normal.

Está previsto mais um vôo, quando deverão ser executadas algumas manobras acrobáticas.

Enquanto aguardo a segunda partida, vejo a cena que mais me comoveu. Um senhor, com idade
superior a 80 anos, é conduzido pela mão por sua filha. É cego e seu andar claudicante. Alguém
providencia uma cadeira. Curioso, aproximo-me e pergunto se trabalhou na aviação. Diz que foi
mecânico de aviões. Faz várias perguntas pertinentes. Não tenho coragem de perguntar mais nada.
Deve estar lá para ouvir o ronco do motor e para sentir o vento e o cheiro, pois ouço pedir para ficar
mais ou menos na direção da cauda.

A segunda partida já não é tão emocionante. A maioria da platéia está sentada na grama, na lateral do
pátio. A turma já se conhece, está mais descontraída; ouvem-se piadas e comentários. Tentam a partida.
Gastam uma bateria de terra, depois a de bordo. Por duas vezes o motor pega para morrer logo em
seguida. Pegam outro conjunto de baterias, mas então o motor de arranque esquenta e decidem dar um
tempo. Fico me perguntando como seria uma partida no tempo da guerra, sob um ataque, com aquele
equipamento. Essa era uma daquelas coisas que os filmes não mostram, nem os livros comentam, mas
que certamente aconteciam. Um engraçadinho comenta alto que "provavelmente, o que está
atrapalhando é a hélice alemã". Os mais próximos concordam prontamente.

Informado de que iriam demorar, decido ir até o bar do Aeroclube, do outro lado da pista. Foi de lá que
ouvi a segunda partida e assisti ao segundo vôo, numa posição privilegiada, podendo acompanhar toda
a corrida da decolagem. Ele se eleva a uns 9000 pés, e se afasta para o norte, ficando quase invisível. É
possível perceber vagamente que está fazendo manobras a grande altura. Depois retorna, e faz o show
para a galera. Curvas de grande, rasantes, meio oito cubanos. Um amigo comenta como a técnica é
diferente da usada em vôos acrobáticos, pois o motor fica sempre atacado, não ocorrendo aceleradas
nem capadas bruscas.

E por fim, vem para o pouso, novamente de três pontos. Para alegria dos alunos do aeroclube catrapa
três vezes, cada salto comemorado por um ÊÊÊHHH! da torcida.

Retorno ao pátio da TAM e encontro o pessoal ainda em estado de graça. Um colega de vôo a vela
comenta que viu mais de um rosto com os olhos marejados.

Resumindo, um dia e um evento inesquecíveis. Quando chego em casa, lá pelas 4 da tarde, ainda não
tenho nem 30 anos. Minha esposa me recebe com um sorriso maternal e condescendente.

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