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SÉRIE MEMÓRIA
E PATRIMÔNIO
UNILASALLE 11
Patrimônio e Memória:
narratividade, rememoração, reminiscência
Zilá Bernd
Cleusa Maria Gomes Graebin
Raquel Alvarenga Sena Venera
Organizadoras
Editora Unilasalle
Canoas, 2019
SÉRIE MEMÓRIA
E PATRIMÔNIO
UNILASALLE 11
Patrimônio e Memória:
narratividade, rememoração, reminiscência
Editora Unilasalle
Canoas, 2019
La vida no es la que vivimos
sinó como la recordamos para contarla.
Gabriel García Marquez
Sumário
Apresentação ........................................................................................... 9
As organizadoras
I - Memória
Muito nos orgulha essa efetiva parceria com o PPG – Patrimônio Cultural,
da UNIVILLE, bem como com o Programa de Pós-Graduação em Memória Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO – e com o Programa de Pós-
Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de
Pelotas, cujos estudos, desenvolvidos nas áreas da Memória e do Patrimônio, dialogam
incessantemente com as pesquisas realizadas no âmbito do PPG-MSBC/UNILASALLE.
O livro conta com doze contribuições que foram dividias nas duas grandes
áreas: apresentamos seis capítulos em torno da Memória e seis em torno do
Patrimônio. Honradas estamos com a contribuição de dois colegas do exterior:
Pierre Ouellet, da Université du Québec à Montréal e membro da Société Royale du
Canada, e Maria Laura Gili, da Universidade Nacional de Villa Maria (Argentina).
Contamos ainda com a ilustre participação da pesquisadora e professora da
Universidade Estadual Campinas Jeanne Marie Gagnebin que, por seus estudos
e traduções da obra de Walter Benjamin, tornou-se referência obrigatória para
todos os que se aventuram pelas sempre surpreendentes sendas de Mnemosine.
Contamos, além dos professores pesquisadores do PPG-MSBC do Unilasalle, com
a sempre estimulante parceria de nossos congêneres, do PPG-PC da Univille, do
PPG-MS da Unirio, assim como a de colegas do Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPel. Esse entrecruzamento de saberes
vem enriquecer as grandes áreas de Memória e Patrimônio.
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A primeira parte é composta por ensaios que giram em torno das noções de
Tempo e Memória, ou melhor dizendo, das relações entre Temporalidades e Memória.
O primeiro capítulo, de autoria de Pierre Ouellet, intitula-se O tempo remanescente:
resistência da história e persistência da memória, salientando a importância da
utilização das temporalidades Kairós e Aïon na literatura, já que representam,
respectivamente, o tempo do Acontecimento e a perspectiva do Eterno, sendo que
Cronos, o tempo cronológico, é apresentado como o tempo devorador, aquele que
nos leva à morte, seguindo as tradições mitológicas. Esse capítulo foi elaborado em
língua francesa, especialmente para o presente volume e sua tradução foi confiada
à professora Zilá Bernd para a versão para o português. A seguir, o capítulo Tempo
e memória: rememoração e reminiscência em narrativas das Américas, de autoria de
Zilá Bernd em parceria com sua orientanda, primeira doutora do PPG - MSBC,
Tanira Rodrigues Soares, estabelece o viés comparatista entre narrativas de filiação,
colocando em perspectiva o romance Quase memória de Carlos Heitor Cony, da
Academia Brasileira de Letras, e a narrativa autoficcional de Pierre Ouellet: La vie de
mémoire, apontando para as relações literárias interamericanas. O terceiro capítulo,
de autoria da professora Jeanne Marie Gagnebin, da UNICAMP, pesquisadora do
CNPq e reconhecida estudiosa e tradutora da obra de Walter Benjamim, intitula-se
O presente do passado. O quarto capítulo intitula-se: Rosângela Rennó: memória,
arquivo e narrativa visual, de autoria de Nadja de Carvalho Lamas, professora do
PPG-Patrimônio Cultural da Univille, com doutorado em Artes visuais pela UFRGS.
Trata-se de refinada análise da obra de Rosângela Rennó, artista plástica nascida em
1962 em Belo Horizonte. Ainda nessa primeira parte, que gira em torno da Memória
Social e também de suas relações inalienáveis com o Patrimônio, apresentamos a
pesquisa de Heidi Ferreira da Costa (Parque Arqueológico e Ambiental de São João
Marcos ) e de Maria Amália Aves de Oliveira que é atualmente Coordenadora do
Programa de Pós Graduação em Memória Social (PPGMS/UNIRIO). O capítulo
intitula-se: Lembranças, esquecimento e rememoração : o caso da cidade de São
João Marcos (RJ), vilarejo histórico destruído para dar lugar a uma hidroelétrica.
Concluindo essa primeira parte, o capítulo de Luciano Lunkes, doutor pelo PPG-
MSBC/Unilasalle, versa sobre as culturas da celebridade e da performatividade,
focalizando as autoficções de três renomados chefs de cuisine.
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relatam pesquisa no Vale dos Butiazais de Giruá, bem cultural ambiental do Rio
Grande do Sul. Também na área do patrimônio ambiental e cultural, Jonathas Kistner
e Dione da Rocha Bandeira da UNIVILLE, discorrem sobre A negação do patrimônio
cultural JÊ em Blumenau, Santa Catarina: entre conflitos e memória e identidade.
Nossos colegas da UFPEL trazem à tona narrativas da História Oral transcritas
no texto: Relações familiares no ofício de benzer: narrativas dos praticantes em São
Miguel das Missões/RS. O capítulo a seguir reporta desafiadoras reflexões no âmbito
da memória e da religiosidade afro-brasileira, em capítulo intitulado: A feijoada
de Ogum: ancestralidade, memória e patrimônio no Ilê Axé Ogunjá. de Artur Cezar
Isaia (UNILASALLE e UFSC) e de seu doutorando do PPG-MSBC/UNIASALLE,
Sandro Rodrigues da Silva. Para finalizar com chave de outro a presente edição da
série Memória e Patrimônio, Raquel Alvarenga Sena Venera, da Univille, desenvolve
inovador Ensaio sobre o funcionamento dos discursos de vida e de morte nas narrativas
dos patrimônios: desafios da memória.
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I - Memória
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O tempo remanescente :
resistência da história e persistência da memória1
Pierre Ouellet
O tempo não passa: ele resiste, insiste, persiste. Ele não tem apenas uma
existência; ele é também subsistência; ele não se contenta em viver, ele sobrevive.
A memória é a forma na qual ele perdura, na qual nós o suportamos, deveria dizer,
suportando-o como uma ferida, o tempo permanecendo em sofrimento como um
negócio não solucionado, suspenso para sempre, ao qual nós não nos resolvemos,
como as Shoah e os Goulag que conhecemos ao longo da história, cuja profundidade,
para não dizer o abismo, nunca é preenchido nem inteiramente esvaziado pelo
trabalho do luto que não cessamos de experimentar por longo tempo após.
3 Révolu em francês.
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Ele palpita. Ele não cessa de trazer os recém-nascidos, de publicar inéditos. O passado
é o único mundo no qual se podem fazer descobertas” (Moix, 2019, p. 39), graças à
memória, precisamente, que age, com a mesma força da imaginação para reavivar
esse “estado nascente” do tempo que não constitui nosso passivo, a pesada herança
de dívidas, de taxas, de encargos ou dívidas em atraso que pode-se atribuir ao que
se chama “dever de memória”, mas um verdadeiro ativo, uma infindável riqueza, um
fundo abissal de recursos ou uma fonte inesgotável de ressurgências de todo gênero
que nos permite reinventar o tempo a cada minuto, em se recuperando com as águas
vivas, que guardam uma memória ativa do surgimento originário graças ao qual o
tempo nos aparece, a temporalidade sendo um “aparecer” bem mais do que um “ser”,
de natureza espectral, fantomática, a exemplo da ficção literária, bem mais do que um
sendo da natureza empírica, ontológica a qual podemos tocar como um corpo sólido.
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e perturbações, sacudidas e agitações que dão lugar a esses sismos que chamamos
de Acontecimentos, rupturas históricas como a Shoah, a Kolyma, Hiroshima cuja
lembrança é um “sobrevir” ainda para a memória que dela temos, onde elas persistem
não apenas no presente mas mais além do próprio tempo, ou existem somente no seio
de um longínquo passado onde seriam propriamente findas.
É o que Alain Fleischer demonstra em seu último livro Le récidiviste 4no qual
ele não se contenta em contar o caso de um criminoso culpado de crimes de repetição,
mas ilustra no próprio ato da narração ou da rememoração ao qual ele atribui o
caráter repetitivo de toda a história, criminal ou não, que é sempre a volta de um
tempo recalcado que retorna à consciência desde as profundezas mais inconfessáveis,
sejam ligadas ao encontro amoroso – como o livro de Yann Moix era no que se refere
à ruptura amorosa – ou às mudanças que a Mittleeuropa conheceu da metade do
último século onde se desenrolam os acontecimentos que ele nos faz recordar.
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Escapamos da mesma maneira que o criminoso fugitivo foge de seus crimes
e de suas vítimas como de sua sombra ou de seu passado, esse fantasma em que se
transforma, esse espectro que ele arrasta atrás de si, nas lembranças mais penosas
de sua vida, ainda mais se ele foge da polícia ou da justiça, à qual ele substitui as
leis da memória, o direito do passado sobre todo o presente e todo o futuro, como
faz o escritor que retém o tempo ao contá-lo, reiterando a presença obsedante da
cadência de sua narrativa e de seu fraseado, fazendo disso um caso, um caso de
espécie que ele declina em todos os sentidos até à insensatez, como acontece com
O recidivista/reincidente onde o presente e o passado moram em um mesmo espaço,
ou seja, a cidade de Brno na Moldávia, onde o narrador já velho realiza o encontro
com sua própria pessoa na idade de 16 ou 17 anos, no pós-guerra, no coração de
um desses países do Leste onde uma outra guerra, mais surda e mais traiçoeira, que
qualificaríamos de fria, iria em seguida nos assombrar.
Falamos de persistência retiniana para designar as imagens remanescentes que
o olho conserva uma vez que o objeto percebido tenha desaparecido. O remanescente
designa “o resto, o supérfluo, o alívio de uma refeição” ou coletivamente, “aqueles
que restam, os sobreviventes, os descendentes, os herdeiros”, como diz o Dictionnaire
historique de la langue française de Alain Rey, que não deixa de acrescentar que ele
deriva do verbo manere significando “restar, parar, passar uma estadia e permanecer”,
(de onde a palavra manoir em francês), ao qual o prefixo re- acrescenta um valor
mais uma vez frequentativo, iterativo, repetitivo, evocando a recidiva (recaída), à
qual toda narrativa adere a exemplo da própria memória, se julgarmos pela expressão
“morada memorial” à qual Frances Yates recorre para falar do caráter de retenção das
artes mnemônicas.
Remanescência e permanência mnésicas são análogas à persistência retiniana
na medida em que o que foge ou desaparece com o tempo deixa traços, restos,
relevos dos quais somos os herdeiros, os descendentes; esses restos permanecem na
consciência, mesmo adormecida, onde a voz narrativa os desperta como é o caso
de Le recidiviste5, esta narrativa que vê de olhos fechados sobrevivências reiteradas,
renovadas ou duplicadas no passado mais longínquo.
A imagem da cidade de Brno na Moldávia, que constitui o espaço histórico
e geográfico onde o acontecimento remanescente ocorre, a narrativa de Alain
Fleischer é esta “morada memorial” onde o tempo fica em permanência, mesmo que
pareça terminado há muito tempo, porque toda percepção narrativa é propriamente
reticular: ela retém em sua armadilha, sua trama ou sua rede, essa membrana do fundo
do olho designado pela retina, o que aparentemente já desapareceu, mas continua a
5 O reincidente.
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perfilar-se nesta visão de um abaixo, após ou atrás que é o ponto de vista daquele que
conta os fatos e gestos de algum duplo que ele tenta prender em sua rede, cuja vida ele
“recidiva”, a vida com se ele fosse seu herdeiro, descendente, sobrevivente.
Fleischer escreve:
Em um espaço e um tempo que resistiriam ao folhear rápido
das páginas da existência sob um dedo impaciente e distraído,
se perpetuariam para sempre, nos prometendo até o êxtase
ou nos condenando ao desespero de revivê-las sem fim,
alguns momentos particulares, para sempre memoráveis,
pedaços escolhidos do que foi vivido (FLEISCHER, Le
récidiviste, p. 14).
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prolongamento virtualmente infinito do passado em uma presença e um futuro onde
ele perdure, uma manutenção ou uma “origem” 6 sem fim, um tempo em potência ou
uma potência de tempo que se atualiza indiferentemente em um antes ou um depois,
como se fosse o prolongamento do instante em eternidade, do Kairos em Aion, para
falar como os gregos da antiguidade, ou seja, de um momento oportuno em uma
perenidade providencial.
“Dar um saldo para fora da fila dos assassinos”, dizia Kafka, “não mais escrever a
história do ponto de vista dos vencedores, mas das vítimas”, desejava Benjamin, despertar
o “reincidente” que somos no seio da História em uma narrativa que metamorfoseia
os gritos e o ranger de dentes em um recitativo, uma melopeia ou um refrão onde
o ar do que veio antes, o canto primeiro, a chave original ressoem em perpetuidade:
não mais deixar o tempo nas mãos somente de Cronos, primeiro grande assassino da
cosmogênese, segundo Hesíodo, mas confiá-lo a outras formas de temporalidade como
Aion ou Kairos os quais somente a ficção ou a poiesis, no sentido forte do termo, pode
explorar em profundidade, e todas as suas dimensões, inclusive as mais inverossímeis,
6 Avenance em francês.
7 Ver Rosenzweig, Franz. L´étoile de la rédemption. Paris : Seuil, 2003. Coll La couleur des
idées. E Benjamin, Walter. Essai sur le concept d´Histoire. Paris : Payot, 2014.
21
como as que fazem do passado mais longínquo a passagem obrigatória em direção ao
futuro ou à retenção memorial do findo ou acabado; a distensão de nosso tempo em
uma prolongação sem fim, que tem o valor de uma autêntica revelação, não mais no
sentido do Apocalipse, como previa a escatologia própria às épocas históricas, mas no
sentido do Reino imaginado por Benjamin e Rosenzweig, onde o tempo reina e irradia
todas as direções em uma re-volução ou uma re-volta de cada instante na eternidade.
Tudo começa por Cronos, filho de Urano, o céu, e de Gaia, a terra, que,
juntos não cessam de copular e de engendrar múltiplos deuses – Zeus, Poseidon,
Hades, Hera, etc. – depois numerosos Titãs, do verbo Teino que quer dizer “tenro
como uma arma, uma lança, um arco ou um escudo” ou “carregar a mão”, o que
anuncia a violência inerente a um dos mais virulentos entre eles: Cronos, o Tempo,
que Hesíodo descreve como “o mais bem armado” ou “ o mais terrível dos filhos” e
que é nomeado Cronos, “o de pensamento retorcido”. “Ele é tomado de ódio por seu
genitor”, esclarece o autor da Teogonia.
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anos ela (a Terra) engendrou as poderosas Erínias (ou Fúrias) e os grandes Gigantes,
resplandecendo no brilho das armas, tendo em suas mãos longos dardos” (HESÍODO
2014, p. 55-57, versos 174-187).
Eis o crime original, do qual Cosmos e História nasceram, engendrados pela
separação definitiva do Céu e da Terra, pelo Vazio criado entre eles pela castração de
Urano e a espécie de partenogênese sem fim que conduzirá Gaia a engendrar muitos
clones de Cronos, gerações e gerações de Gigantes e de Erínias. Possuídos por uma
mesma cólera que os leva a estender os braços como se lançam os dardos, para não
dizer a foice com a qual eles castram... decapitam, como se faz hoje --- espalhando
sangrentos detritos sobre o futuro, projetando-os até nós.
Cronos, o tempo vingador, é o primeiro de uma progenitura que encadeia
crime sobre crime, assassinato sobre assassinato, estabelecendo a Lei da História tal
como Anaximandro fixou desde o nascimento da filosofia: “Onde há para os seres
geração, é isso que gera também a destruição, segundo o que deve ser; pois eles
fazem justiça e reparação, uns aos outros, de sua mútua injustiça, segundo a ordem
do Tempo, em Anaximandro”.8
Nós somos estes Gigantes e estas Erínias que descendem de Cronos, com uma
arma na mão, um grito de guerra na ponta da língua com a qual projetamos ao longe
nossa fúria, nosso veneno, como antes o Tempo crônico projetou a semente de seu
genitor em pedaços ensanguentados que nos recobrem ainda hoje.
Mas nós não descendemos somente de Cronos: viemos também de Aion e
Kairos, que são um outro par de deuses, cujo objetivo não é o de perpetuar a guerra
entre o céu e a terra, através do ressentimento, mas o de tornar o céu propício ao solo,
o de fazer da terra uma protegida do céu.
Estas duas divindades são ligadas: elas marcam a relação complexa entre
o instante e a eternidade, que escapa à ordem sintática do encadeamento lógico
das causas e dos efeitos, senão dos fatos entre eles, que deu lugar ao desencadear
de violências que a História conheceu, e diz respeito à dimensão paradigmática da
temporalidade. A palavra paradeigma, que traduzimos por “modelo” ou exemplo,
originário do verbo para-deiknumi , que vem de “mostrar lado a lado”, “colocar em
paralelo”, “expor junto”, “com-parar”, “fazer aparecer em comum”, aparentado que é
de para-dexomai, que significa “receber de uma mão para outra”. Não estamos mais
na lógica do estender a mão com uma arma, conforme a etimologia do verbo teino,
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que deu origem à palavra Titã, nem “dar golpes”, mas receber algo em herança, como
exemplo ou modelo, para que possamos comparar, colocar em paralelo, como se
passássemos a testemunha no tempo com tanta facilidade quanto passamos a palavra
no diálogo... e isso, não apenas de uma geração à outra, de uma progenitura à outra,
mas entre congêneres, no lado a lado no âmbito de uma mesma época, de um mesmo
“instante” que valha pela “eternidade”..
Aion e Kairos são ambos representados alados, figurando assim a união entre
céu e terra, a origem e o fim , a fonte e o alvo, o Tempo não estando mais ligado à foice
com a qual separam-se e cortam-se as cabeças e os sexos para que reine o vazio sem
fim entre as águas de cima e as águas de baixo, vazio que não é possível preencher
sem “os pedaços sangrentos”, mas através do voo que permite ir e vir entre o mundo
celeste e o mundo terrestre, eternidade e instantaneidade, origem e fim, o abismo que
os separa podendo ser atravessado de um só golpe de asas.9
Lembremos o que Gilles Deleuze afirmou com relação a Aion, que ele associa
à “internidade” ou ao “internal”, caro a Charles Péguy, ou melhor, segundo ele, do que
“eternidade como tal”, afim de acentuar o caráter intensivo e imanente que diz respeito
a “instante”, o instante mágico, precisamente, que, como iremos ver, é Kairos: “toda a
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linha de Aion é percorrida pelo instante, que não cessa de se deslocar sobre ela e falta
ao seu próprio lugar” (DELEUZE, 1969, p. 227), uma vez que Aion é um puro devir,
não identificável, não situável, no qual o tempo não se mede, não se representa, nunca
se objetiva: é um tempo que não “existe”, mas “insiste e subsiste” (Deleuze, 1969, p.
76). É o tempo do instante puro, dividido em um passado e um futuro ilimitados,
sem começo nem fim, uma espécie de origem ou de advento onde nenhum fato bruto
se instala em um dado de natureza empírica, mas onde o acontecimento - o eventual,
o virtual, o ficcional, sempre em potência, antes de passar ao ato ou à a atualidade - se
apresenta a todo momento em uma doação infinita, um dom permanente, como na
“passagem de mão a mão” própria ao tempo paradigmático onde é um testemunho
que se transfere entre indivíduos comparáveis, antes de ser uma lâmina ou uma foice
que apontamos em direção ao outro entre pessoas opostas.
Pensa-se aqui na Ereignis heideggeriana, traduzida por François Fédier
como Origem [l´Avenance]10 (HEIDEGGER, 2013) que é um pouco mais do que o
“acontecimento”. Já que Aion não se pensa sem Kairos, o instante propício, o instante
de graça que vem depois da “boa hora” – de onde a palavra bonheur (felicidade) – o
que é bem vindo, que advém sub-repticiamente, mas que sentimos anteriormente,
algo de amável, de acolhedor, de propício, de favorável, que constitui uma espécie
de advento: um tempo em potência, em gestação, que esperamos e para o qual nos
preparamos ao mesmo tempo - : É uma ocasião, uma oportunidade, a chance que
deve ser agarrada “no instante”, sem o que ela passa desapercebida.
O in-stante de in-stare : manter-se dentro, no tempo, nem acima nem
ao lado, mas no seio, o mais próximo de sua matriz, da noite de onde ele vem, do
nascimento que ele revive a todo momento, em um evento denotado por Aion, na
internidade própria à in-sistência, e não somente na existência, o instans do latim,
designando o premente e não o presente do presenteísmo, mas o prae-sens, que é
uma forma de pressentir [prae-esse : ser antes, adiantar-se], de sentir o que acontece
de mais importante, como o confirmam dois dos sentidos antigos da palavra prae-
sens:.o potente e o enérgico, o possível ou o eventual, de um lado, e, de outro, o
propício e o favorável, o benéfico e o que pode trazer ajuda.
O que vem a propósito, o que cai bem, o que chega a tempo, porque o tempo
pode ser propicio e benéfico contrariamente ao que deixa entender Cronos “o do
pensamento retorcido”, o Titã maléfico que Hesíodo teria colocado no começo de
10 “Avenance” : pode ser traduzido como “origem”, ou como “vindouro“ aquilo que advém;
já “Avenant” equivaleria a “advindo”; “Avènement” , corresponde a “advento”. (Consulta
realizada com o tradutor Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ).
25
nosso mundo, no nascimento de nossa humanidade, no estado de in-fans ou
d´in-stans , no momento em que entramos no tempo e a existência ( lá onde nos
colocamos: stare) como na palavra ou no pensamento (lá onde falamos e pensamos:
fari (dizer enunciar), cuja raiz grega phéno- como em fenômeno, designa a “aparição”:
“o que se mostra”, “o que aparece”.
11 Deusa da Noite.
12 Survivance des lucioles, de Didi-Hubermann, em português se traduz por Sobrevivência
dos pirilampos ou vaga-lumes.
26
Kairos, reconstituem o traço de união mágico entre Gaia e Urano, sob a Noite mística que
recobria sua paixão como se eles participassem de uma única e mesma carne, as águas de
cima e as debaixo se misturam como a semente ao suco do amor.
Aion e Kairos encontram seu lugar no seio de espaços que não existem, assim
como o tempo que eles nomeiam não é exatamente o tempo, ou melhor, trata-se de
uma forma de tempo, de tonalidade ou de tonicidade, de Stimung ou ar do tempo, o
canto do tempo, de pulsação senão de baixo contínuo, de zangão ou de ultrapassado...
Esses lugares não dizem respeito a uma simples extensão, de uma res extensa, no
sentido do empirismo ou do racionalismo cartesiano, de um substrato amorfo sobre
o qual os fatos se inscrevem ou se destacam como uma figura sobre um fundo, mas
antes de ser um desdobramento ou uma expansão sem limites que corresponde
menos ao factual e ao atual do que ao possível e ao eventual, ao virtual e ao potencial,
ao que o inglês chama de contra factual e que nós designamos pelo condicional, um
dos modos verbais próprios aos enunciados ficcionais e não apenas aos fatos brutos
denotados pelo indicativo.
Não é o espaço onde as coisas são, mas o meio, o ar ou a atmosfera nos quais
o Acontecimento acontece, como quer Kairos, a ocasião feliz ou infeliz graças à qual
alguma coisa surge de uma fonte desconhecida, de um ângulo morto, como diria
Fleischer, que perfura a espacialidade e lhe dá uma profundidade que a linearidade
27
cronológica da história não permite perceber, pois que está ligada à visão periférica
que uma “perspectiva atmosférica” ou um “sentimento oceânico” de natureza não
linear e não ortogonal permitem experimentar e pressentir.
Aion reúne em uma só Via, sem ponto de partida ou de chegada, sem bordas
nem cercas, os inumeráveis caminhos do tempo que podemos pegar a qualquer
momento, mesmo os mais secretos e os mais imprevisíveis, todos compatíveis,
ou seja, as virtualidades ou as eventualidades próprias ao poder infinito de uma
temporalidade que não se reduz jamais a sua atualização, a sua presentificação ou
a sua representação como pura atualidade ou simples presente, assim como nós o
veneramos como novo Deus no “Presenteísmo”.15
É a sombra dos fatos que reina nas estepes (Puszta), ou seja, a ficção do tempo
toma a forma e a força de seu próprio elã, ao invés dos “estados de fato” inertes ou
amorfos que constituem seu conteúdo. São os sub fatos ou o seu retorno mais vivo
do que nunca, sua sobrevivência reavivada, revivificada, na floresta ou na estepe
eterna onde eles insistem, resistem, bem mais do que existem no sentido próprio, que
compõem a trama de um universo do qual sabemos que ele não repousa tanto sobre o
fio dos acontecimentos quanto sobre a primeira meada da qual os fios de nossas vidas
não foram ainda cardados ou desembaraçados. Por isso o onirismo e a anamnese, o
28
profetismo e a reminiscência, mas também a escatologia e a melancolia são as vias
de acesso privilegiadas a essa temporalidade onde tudo permanece virtualmente
possível, prestes a surgir de baixo, dos sub fatos, dos subterrâneos da História. Em
resumo: da pós-historicidade, se quisermos entender a preposição latina post (pós)
não como “depois”, mas também como “o que está atrás” ou então “abaixo”, com o que
nós não acabaremos nunca.
A História não cessa de nos assombrar sob a figura de Aion ou de Kairos que
a enterra e canta seus cantos fúnebres, na consciência sempre viva que ela persiste
abaixo enquanto fantasma ou sub-tempo. de modo que estamos diante de uma
temporalidade do possível e do eventual, da potência pura e da virtualidade infinita,
que a ficção fleischeriana, como toda fábula autêntica incarna com energia, sem
nunca se desprender completamente das sombras da História das quais sabemos que
continuam a projetar seus ”fragmentos sanguinolentos”, desde as cavernas mais ou
menos obscuras do sonho e da memória.
Referências
29
FLEISCHER, A. Les angles morts. Paris: Seuil, 203. Coll. Fiction & Cie.
FLEISCHER, A. Alma Zara. Paris: Grasset, 2015.
FLEISCHER, A. La traversée de l´Europe par les forêts. Paris: Leo Scheer, 2004.
HARTOG, F. Régimes d´historicité. Expérience du temps et présenteisme. Paris:
Seuil, 2003. Coll. XXI siècle.
HEIDEGGER, M. Apports à la philosophie. De l´avance. Paris: Gallimard, 2013.
Coleção Bibliothéque e philosophie.
HESIODO. Théogonie. Un chant du cosmos. Traduzido e comentado por Aude Piya
Wacziarg Engel. Prefácio de Barbara Cassin. Paris: Fayard, 2014.
HUSSERL, E. Leçons pour une phénoménologie sur la conscience intime du
temps. Paris: PUF, 1996. Coleção Épimétée.
MOIX, Y. Rompre. Paris: Grasset, 2019.
NIETZSCHE, F. Le gai savoir. Citado por Alain Fleicher em Le récidiviste. Paris:
Seuil, 2019. Coll. Fiction et Cie.
REY, A. Dictionnaire historique de la langue française. Paris: Le Robert, 2010.
Artigo « Rémanent », p. 1899.
VOLODINE, A. Terminus radieux. Paris: Seuil, 2014.
YATES, F. L´art de la mémoire. Traduzido por Daniel Arrasse. Paris: Gallimard,
1987 (1966).
30
Tempo e memória: recordação, rememoração e reminiscência
em narrativas das Américas
Zilá Bernd
Por sua vez, Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, em 1926, e
desenvolveu uma carreira na área jornalística e literária brasileira iniciada nos anos
de 1950, estendendo-se até seu falecimento em 2018. No seu percurso existencial,
por meio de suas participações nos meios de comunicação, merecem destaque
suas atuações como redator, contista, ensaísta, editor, diretor, tradutor e escritor de
roteiros para telenovelas, filmes e documentários, além de romancista premiado no
Brasil e no exterior. Ocupou a cadeira número 3 da Academia Brasileira de Letras
(ABL) em 2000 e recebeu diversas premiações pelas obras publicadas. Dentre seus
romances, destaca-se Quase memória, ganhador do Prêmio Jabuti e Livro do Ano,
ambos em 1996, conferidos pela Câmara Brasileira do Livro.
Salienta-se que tanto Pierre Ouellet, quanto Carlos Heitor Cony são escritores
reconhecidos em seus países de origem, bem como no cenário literário internacional,
conferindo significativa importância às suas produções no que diz respeito aos
estudos interdisciplinares da memória, especialmente no que concerne aos aspectos
ligados à filiação que remetem diretamente à relação existente entre pai e filho, tão
bem exposta em La vie de mémoire e Quase memória.
32
Narrativas de filiação
33
Neste fluxo narrativo, a memória, o esquecimento e a imaginação/ficção irão
compor o enredo intercalando o presente, passado e futuro sem nenhuma preocupação
em situar o leitor e apresentar detalhamentos dos contextos inerentes aos fatos
ocorridos e que estão sendo narrados. A anterioridade e a ancestralidade são fatores
preponderantes, pois é por seu intermédio que o narrador se reconhece como herdeiro
ou rompe com os laços afetivos que ligam sua existência a de seus antepassados,
renegando-os.
A concepção indicada por Borges pode ser percebida nos estudos de Aleida
Assmann (2011), pois o processo de recordação remete à memória enquanto potência,
opositora ao processo mecânico de armazenamento. Aleida Assmann (2011) situa
os estudos da memória a partir de dois pontos: Ars, como armazenamento, ligado
à memória artificial e ao processo mecânico (mnemotécnica) desenvolvida a partir
da lenda de Simônides, e; vis como potência, processo de recordação que forma
identidades e considera a dimensão do tempo como crítica, em razão de que o ato de
lembrar não é deliberado.
A recordação procede basicamente de forma reconstrutiva:
sempre começa do presente e avança inevitavelmente para
um deslocamento, uma deformação, uma distorção, uma
revaloração e uma renovação do que foi lembrado até o
momento da sua recuperação. Assim, nesse intervalo de
latência, a lembrança não está guardada em um repositório
seguro, e sim sujeita a um processo de transformação
(ASSMANN, 2011, p. 34).
34
(2009, p. 59), a rememoração “[...] no sentido benjaminiano da palavra quer dizer uma
memória ativa que transforma o presente. ‘Nós articulamos o passado, diz Benjamin,
nós não o descrevemos, como se pode tentar descrever um objeto físico, mesmo com
todas as dificuldades que essa tentativa levanta’” (GAGNEBIN, 2009, p. 40).
O ato de rememorar se insere no contexto das narrativas em estudo, uma vez que
Representa aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos,
aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com
hesitação, solavancos, incompletude, aquilo que ainda
não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A
rememoração também significa uma atenção precisa ao
presente, em particular a estas estranhas ressurgências
do passado no presente, pois não se trata somente de não
esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente.
A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa a
transformação do presente (GAGNEBIN, 2009, p. 55).
35
Cabe mencionar que a rememoração difere da reminiscência, termo utilizado
por Aristóteles (2018), e que está relacionado à capacidade de raciocínio e de razão
com que são dotados os seres humanos. A reminiscência é uma busca consciente
por informações do passado, é constituída pela intencionalidade e pela vontade,
desencadeando um processo de pesquisa e de investigação que adota uma certa ordem,
sequência e associação.
Para Márcio Seligmann-Silva (2006, p. 33). “A reminiscência é definida
como a recuperação intencional de um conhecimento ou de uma sensação”, sendo
constituída pelos princípios de associação e ordem, isto é, o processo faz uso de uma
espécie de silogismo, em que o raciocínio lógico e a dedução são os responsáveis pelo
encadeamento das proposições e, ao final, indicarão um desfecho e/ou resultado. Nas
palavras de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2008, p. 449) silogismo é um método
de “dedução formal em que, postas duas proposições, as premissas, delas se tira uma
terceira, a conclusão”.
No entender de Aristóteles (2018), para ocorrer um ato de memória faz-se
necessária uma coincidência entre a lembrança do objeto e a do tempo da sua ocorrência,
caso alguma delas estiver ausente, será apenas uma reminiscência, e argumenta que
“[...] a memória pertence, como dissemos, a todos os animais que possuem a noção
de tempo; a reminiscência, que inclui ao mesmo tempo vontade e racionalidade, é
privilégio exclusivo do homem a quem a natureza dotou da faculdade de querer e de
raciocinar (2018, p. 02)”.1
Apropriando-nos das concepções de Aristóteles (2018) sobre memória e
reminiscência, podemos mencionar que a memória se caracteriza pela completude
da lembrança do passado, isto é, a imagem gravada na mente retorna no presente;
já a reminiscência está diretamente ligada à presença de fragmentos na busca pelo
acontecimento passado, pois é através desses pedaços, resquícios, restos ou vestígios
que se reconstrói todo o conjunto.2 Nesse sentido, o emprego da intencionalidade,
da razão, do querer e dos princípios (associação e ordem) encontram justificativa na
constituição da reminiscência.
1 “[...] la mémoire appartient, comme on l’a dit, à tous les animaux qui ont la notion du
temps; la réminiscence, où il entre à la fois volonté et raisonnement, est le privilège exclusif
de l’homme, que la nature a seul doué de la faculté de vouloir et de raisonner”
2 La mémoire a lieu quand le souvenir est entier, et qu’on se rappelle les choses dans toute
leur étendue; la réminiscence au contraire a lieu quand une partie des choses seulement
se reproduit et qu’une autre partie ne se reproduit pas. Alors, à l’aide d’un fragment, on
reconstruit l’ensemble entier.
36
É possível relacionar rememoração e reminiscência com as manifestações
das memórias involuntária e voluntária abordadas por Marcel Proust3, uma vez que
a rememoração está interligada com o espontâneo, o improviso, uma manifestação
de maneira súbita e breve, surge como um feixe de luz iluminando um passado do
qual não se tinha consciência de sua existência. Ele ressurge com uma luminosidade
que impressiona e carrega consigo sensações e emoções que estavam adormecidas,
esquecidas, guardadas em algum espaço da constituição humana e, de maneira
inesperada, emergem revelando-se em toda sua plenitude.
A memória involuntária é instável, extrassensorial. Reside
na textura de um tecido, no sabor de uma bebida, na grave
sonoridade de um contrabaixo. [...]. A sua duração é variada,
não depende da nossa vontade. Ela pode permanecer,
ser insistente e perturbadora. Ela chega sem permissão,
trazendo imagens que não nos são queridas.
[...]. A memória involuntária, chega por meios inesperados,
pode desconfortar ou também acalentar. Por ser imprevisível
pode surpreender negativamente ou positivamente.
Também pode trazer respostas, mas talvez elas venham a
servir somente para indagações futuras (PIFFER, 2016, p.
39).
3 Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor francês, mais conhecido pela
sua obra À la recherche du temps perdu, publicada em sete volumes entre 1913 e 1927. Uma
das passagens mais significativas da obra de Proust se refere à sensação experimentada a
partir do paladar, pois é no momento em que um pedaço da madeleine é embebido em uma
xícara de chá, que o narrador rememora momentos de sua infância, demonstrando o quanto
a memória pode guardar emoções adormecidas, porém latentes nos indivíduos.
37
recordação é utilizado frequentemente nos estudos da Aleida Assmann (2011),
rememoração está ligado aos estudos de Walter Benjamin e aprofundados por Jeanne
Marie Gagnebin (2009; 2014) e Martha Lourenço Vieira (2007), já a reminiscência
remonta aos estudos de Aristóteles (2018), revisitados por Márcio Selligman-Silva
(2006), entre outros.
38
eu o invento, por falta de tê-lo vivido” (OUELLET, 2002, p. 19)4. Embora esse relato
do autor tenha se originado de um convite da Radio Canada para que o escritor falasse
sobre sua vida, em muitas passagens podemos flagrar espaços de rememoração, ou seja,
aqueles que se originam de uma memória involuntária que emerge a partir do convite
de narrar fatos de seu passado, com ênfase para aqueles que afloram em sua volumosa
produção poética e romanesca.
Vamos nos deter na análise da figura do pai. A relação com o pai se constitui
como memória ferida: o cenário ligado à figura paterna é de um vazio afetivo total.
Assim, a escritura se constitui em jogo afetivo com o leitor e em meio de preencher
esquecimentos e decepções. Escreve para ser amado de modo incondicional por seus
leitores. Rememorar e imaginar: no âmbito da escritura “nos inventamos bem mais do
que rememoramos” (OUELLET, 2002, p. 26)5.
Nessa medida, para Pierre Ouellet, escrever sobre sua vida é dar-se como
exemplo, mesmo que negativo. A memória é como um terremoto, uma agitação que faz
com que não tenhamos certeza de nossos próprios fundamentos, já que as lembranças,
os sonhos e as perdas se misturam.
O tempo da memória não é o tempo cronológico, o que nos devora e nos leva
para a morte, mas o tempo dos acontecimentos sensíveis (Kairós). E é esse tempo
que é revisitado na rememoração que é espontânea, involuntária, trazendo consigo
emoções inesperadas, presentes na escritura de La vie de mémoire, pequeno livro
em que cenas da vida familiar são postas a nu. Para o autor, escrever ao ritmo das
rememorações, provoca a impressão de que sempre falta alguma coisa nesse conjunto
impreciso e diverso que se elabora ao fio da sensibilidade e da dor.
39
Se a rememoração é, no sentido benjaminiano, “uma memória ativa que
transforma o presente”, o terceiro capítulo do livro, intitulado “La langue paternelle”,
é uma tentativa de reelaborar o presente a partir das ressurgências das memórias
paternas, tentando lembrar-se da voz do pai quando esse lhe disse: “Toda a dor do
mundo tu carregarás, meu filho” (OUELLET, 2002, p. 79).7 Tal fragmento permanecerá
na memória do filho por toda a vida. Depois disso, o pai não fala mais ou a memória
obscureceu sua fala e toda a urgência do filho está no ato de quebrar – pela escritura
– essa tradição de silêncio de sua família. Escreve, portanto, na esperança de ouvir a
voz do pai na palavra escrita.
O que vem à sua lembrança são palavras obscuras que aludem ao mundo
como “um grande abismo de indiferença que nos ameaça sem explodir” (OUELLET,
2002, p. 85).8 E será somente ao relatar esses fragmentos memoriais que o narrador
consegue ouvir a voz do pai, a voz fantasmagórica do pai. Portanto, o ato de escrever
é, na verdade, um truque, uma estratégia para fazer o pai falar, para que ele ouça
novamente sua voz. Sente que, ao escrever, tornar-se a voz off do pai.
Através das palavras escritas na narrativa, o autor coloca na boca de seu pai as
“palavras de homem” que não se calam em sua recordação e passa a sentir a mão do
pai que jamais pousou sobre seu ombro de criança. “Meu pai é a única pessoa que eu
nunca chamei por seu nome. Esse nome permanecerá em mim um nome sem voz”
(OUELLET, 2002, p. 91).9
40
reconhecer a impureza das origens em toda sua feiura, confessar as faltas cometidas e
assim se libertar da memória vergonhosa” (BOUCHARD, 2009, p. 23).
41
receber um embrulho cujas especificidades remetem às peculiaridades do pai tornou
aquele dia muito especial, pois permitiu que a memória do filho revisitasse o passado
e intensificasse um vínculo fraternal, considerando-se que a morte pode fortalecer
o esquecimento. É importante destacar que o rompimento do convívio diário não
afastou as memórias do filho, mas o pacote veio fazer ressurgir, de modo vibrante e
com entusiasmo, a presença constante do pai na vida do narrador.
42
registrando-as no romance Quase memória.
43
recordação e da rememoração. “[...] Nem vontade tenho de olhar o relógio. O tempo
parou. Entretanto, nunca o tempo foi tanto tempo” (CONY, 1995, p. 171).
Carlos Heitor Cony ressalta que é a primeira vez que dedica um tempo único
e especial, esquecendo todos os compromissos imperativos que fazem parte do seu
cotidiano, volta-se integralmente a desfrutar da presença paterna, senti-lo em toda a
sua complexidade e expansividade, generosidade e companheirismo. O pai tinha como
características marcantes o otimismo, o perfeccionismo e o entusiasmo pela vida, pois
para ele o importante era viver intensamente todos os dias. “Viver era mais importante
para ele. E ele descobrira que as coisas boas (ou que ele considerava boas) podiam ser
conseguidas com pouco ou com nenhum dinheiro” (CONY, 1995, p. 60).
44
memórias ligadas ao cenário de convívio entre pai e filho, como a preparação para
ingressar no seminário; as maneiras mais inusitadas que o pai tinha de se mostrar
presente; as inúmeras invencionices que realizava no ambiente familiar e de amigos; as
histórias contadas, sempre acrescentando algo insólito e pitoresco; o envelhecimento, a
doença e a perda paterna; a ocupação do lugar do pai na sala de Imprensa da Prefeitura;
a descoberta da amante e de toda a estrutura familiar paralela. Ao (re)criar alguns dos
momentos em que a presença paterna foi singular em sua vida, é possível identificar
que recordação e reminiscência interligam-se no retorno ao passado.
45
A realidade do presente, vivenciada pelo narrador, é capaz de conferir outras
(re)interpretações do passado e, com isso, gerar novas percepções e entendimentos dos
acontecimentos, bem como permitir que uma projeção de futuro possa ser realizada.
Assim como o pai, que a cada final de noite se preparava para dormir e projetar o
próximo dia para fazer “grandes coisas”, o narrador também se projeta em direção ao
amanhã, “Amanhã... amanhã vou guardá-lo, tal como o pai o deixou. Quando digo
‘amanhã’ nesse tom (amanhã...) penso nele quando dizia, cada noite, antes de dormir:
‘Amanhã farei grandes coisas!’” (CONY, 1995, p. 209).
46
levam os leitores a reavaliar seus conceitos e sua consciência de estar-no-mundo.
São narrativas que “incomodam” justamente pelo fato de realizar “o inventário das
ausências” para transmiti-las através de uma escritura cáustica, gerando sentido e
restaurando memórias feridas.
12 Tout ce qui est porte la marque de ce qui n´est plus (OUELLET, 2002, p. 101).
47
Referências
GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
48
RICOEUR, P. Temps et récits III. Paris: Seuil, 1985.
SELIGMANN-SILVA, M. A escritura da memória: mostrar palavras e narrar imagens.
In: Remate de Males, 26(1), jan.-jun. 2006. Disponível em:<https://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636053>. Acesso em: 08 jan. 2019.
SOARES, T. R. Tessituras da memória. Lembrar, narrar e ressignificar. Tese de
doutorado em MSBC defendida em 6 de agosto de 2019, na Universidade La Salle
(Canoas/RS).
VIART, D. Récits de filiation. In: La littérature française au présent: héritage,
modernité, mutations. 2. ed. Paris: Bordas, 2008.
VIEIRA, M. L. A metaforização da memória ou a Dialética da rememoração em
Walter Benjamin. In: VIEIRA, Marta Lourenço; SILVA, Izabel de Oliveira (orgs.).
Memória, subjetividade e educação. Belo Horizonte: Argumentum, 2007. p. 19-29.
WOOK. Obras de Pierre Ouellet. Disponível em: <https://www.wook.pt/autor/
pierre-ouellet/1787180>. Acesso em: 26 jun. 2019.
49
O presente do passado
Jeanne Marie Gagnebin
Gostaria de propor aqui, porque para isso a filosofia pode realmente ser
de auxílio, algumas distinções conceituais oriundas das reflexões de Paul Ricoeur
52
ao comentar os trabalhos da “Comissão Verdade e Reconciliação” na África do Sul.
Primeiro vou distinguir entre várias formas de esquecimento, às vezes até opostas; e,
num segundo momento, tentarei esclarecer a relação entre a narração do passado e
aquilo que, nas palavras do grande historiador Michel de Certeau, podemos chamar de
ritos de sepultamento dos mortos.
Como se sabe, no mínimo desde Freud e Proust, o esquecimento não é
somente uma não-memória, um apagar dos rastros, uma página em branco. Existe
também aquilo que Paul Ricoeur, na sua suma, La mémoire, l’histoire, l’oubli, chama
de “esquecimento de reserva”, isto é, um manancial de lembranças não-conscientes,
diria Proust, inconscientes, diria Freud2, que pode se transformar num precioso aliado
no processo da recordação quando o sujeito do lembrar desiste de tudo controlar no
campo restrito de sua consciência. Existe igualmente, como afirma toda filosofia
de Nietzsche, uma dimensão feliz do esquecimento, uma alegria e uma leveza que
permitem fazer as pazes com o passado, geralmente depois de um longo, dolorido e
generoso processo de elaboração, leveza e alegria que possibilitam não carregar mais
o passado como uma pedra nos ombros, mas reaprender a dançar e a inventar outras
figuras de vida no presente. Essas dimensões positivas do esquecimento nunca negam
ou apagam o passado, mas transformam seu estatuto vivido no presente, permitem que
se viva sem ressentimento, diz Nietzsche, sem cair na perpétua repetição, diz Freud,
permitem a instauração do novo.
Ora, a imposição do esquecimento como gesto forçado de apagar e de
ignorar, de fazer como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida
no passado, esse gesto vai justamente na direção oposta dessas funções positivas do
esquecer para a vida. Impor um esquecimento significa, paradoxalmente, impor
uma única maneira de lembrar, portanto um não lembrar, uma “memória impedida”
(“une mémoire empêchée”), diz Ricoeur (2000, p. 576). Nesse contexto, todas políticas
de anistia, promulgadas em várias circunstâncias por vários estados, servem no
máximo (e é isso o que geralmente pretendem) a tornar possível uma sobrevivência
imediata do conjunto da nação enquanto tal, mas não garantem uma coexistência
em comum duradoura. Essas políticas são antigas, não são nenhuma invenção de
militares brasileiros, argentinos ou chilenos. Ricoeur cita (2000, p. 586) a famosa
anistia promulgada em Atenas em 403 a. C., depois da vitória dos democratas sobre
a oligarquia e o governo dos Trinta Tiranos. Todos cidadãos atenienses3 tiveram a
2 Uma diferença de conceitos que estabelece toda distinção entre Freud e Proust, mas não
pretendo me demorar nessa análise aqui!
3 Um número bastante restrito de pessoas, portanto, se se calcula que havia cerca de
400 000 moradores em Atenas sob Péricles, mas que só 10% deles eram cidadãos (isto é,
53
obrigação de jurar que não lembrariam em público das infelicidades e dos males do
passado, para tentar evitar o desastre da sedição (stasis) interna e do consequente
enfraquecimento diante dos inimigos externos. Somente assim, os membros da
cidade podiam reconstruir um mínimo de paz cívica, condição da retomada da vida
em comum. O mesmo objetivo é visado pelo “Edito de Nantes”, promulgado pelo
rei francês Henrique IV, em 1598, depois das guerras fratricidas de religião, que
opuseram católicos e protestantes. Ambos os exemplos são claros: a proclamação da
anistia intenta a possibilidade de reconstrução de um mínimo de convivência entre
duas frações importantes da nação dilacerada.
Nesse contexto, aliás, podemos nos perguntar sobre o alcance da lei da Anistia
no Brasil: visava ela realmente apaziguar a memória de duas partes importantes do
povo brasileiro no seu conjunto ou se tratava, como tantas vezes no Brasil, de um
arranjo (precário) entre duas frações opostas da assim chamada “elite”? De qualquer
maneira, a anistia configura sempre uma política de sobrevivência imediata, às
vezes realmente necessária, mas não pode pretender ser uma política definitiva de
regulamento da memória histórica. Tanto é assim que se democratas e partidários da
oligarquia, católicos e protestantes não se trucidam mais, tampouco se reconciliam,
mas empreendem posteriormente outros tipos de luta.
Assim, a anistia não consegue o que sua semelhança fonética com o termo de
amnésia promete: ela não pode nem impedir nem mudar o lembrar, ela não pode ser
um obstáculo à busca da “verdade do passado”, como se diz, aliás de maneira bastante
ambígua. Ela somente pode criar condições artificiais, talvez necessárias, que tornam
possível uma retomada mínima da existência em comum no conjunto da nação. Ela
configura uma trégua, uma calmaria provisória, motivada pelo desejo de continuar a
vida, mas não é nenhuma solução, nenhuma reconciliação, ainda menos um perdão.
Num livro anterior, Ricoeur já insistia com força no caráter antitético da anistia e do
perdão. Escreve ele:
Si je m’arrête quelque peu à la question de l’amnistie, c’est
dans la mesure où, en dépit des apparences, elle ne prépare
aucunement à la juste compréhension de l’idée de pardon. Elle
en constitue à bien des égards l’antithèse. (...) A l’interdiction
de toute action en justice, donc à l’interdiction de toute
poursuite de criminels, s’ajoute l’interdiction d’évoquer les
faits eux-mêmes sous leur qualification criminelle. Il s’agit
donc d’une véritable amnésie institutionnelle invitant à
faire comme si l’événement n’avait pas eu lieu. (...) Le prix
54
à payer est lourd. Tous les méfaits de l’oubli sont contenus
dans cette prétention incroyable à effacer les traces des
discordes publiques. C’est en ce sens que l’amnistie est
un contraire du pardon, lequel, comme on va y insister,
requiert la mémoire. C’est alors à l’historien (dont la tâche
est rendue singulièrement difficile par cette instauration
de l’oubli institutionnel) qu’il revient de contrecarrer par le
discours la tentative pseudo-juridique d’effacement des faits
(RICOEUR, 1995, p. 205-206).4
Essas palavras de Ricoeur, sempre tido como um autor tão comedido, são
contundentes: a anistia representa uma “incrível pretensão” de manipulação da
memória pública, é uma “tentativa pseudo-jurídica de apagamento dos fatos”.
Poderíamos também concluir: se ela constitui em certas situações um pis-aller, ela
não é nenhuma solução durável, mas só uma pausa para reconstituição posterior do
estabelecimento de uma verdadeira ordem político-jurídica. Ela tampouco significa
perdão. Tanto Jacques Derrida, que também trabalhou sobre a “Comissão de
Verdade e Reconciliação” quanto Ricoeur, concordam em lembrar que o perdão se
inscreve, como seu nome o diz em várias línguas, numa economia do dom, da dádiva,
economia incomensurável a qualquer ordem jurídica, no fundo a qualquer economia
mesma. Ele assinala a presença de uma esfera de relações humanas mais alta (que
pode ou não se fundamentar na esfera religiosa), um território sobre o qual nenhum
sistema jurídico pode pretender legiferar, justamente porque indica algo que não é da
ordem da lei, mas que só pode ser dado, nunca imposto.
Por que pode uma anistia somente ajudar a restaurar as condições mínimas
de uma retomada da vida em comum, portanto somente produzir uma ação de curta
duração, nenhum benefício a longo prazo? Porque a memória efetiva não se deixa
controlar, somente se deixa calar, às vezes também manipular, mas volta. Ela não se
deixa controlar nem pelas ordens do eu consciente, nem pelos mandos do soberano,
rei, padre ou militar. É essa independência do lembrar que sempre preocupou,
55
certamente de diversas maneiras, tanto os filósofos quanto os políticos – e também os
psicanalistas. As lembranças são como bichos selvagens que voltam a nos atormentar
quando menos queremos. Por isso, dizem Freud, Nietzsche e Proust, mais tarde
Adorno e Benjamin, Ricoeur e Derrida, por isso convém muito mais tentar acolher
essas lembranças indomáveis, encontrar um lugar para elas, tentar elaborá-las, em
vez de se esgotar na vã luta contra elas, na denegação e no recalque.
5 Citação de Vladimir Jankélévitch: “Celui qui a été ne peut plus désormais ne pas avoir été : désormais
ce fait mystérieux et profondément obscur d’avoir été est son viatique pour l’éternité”. Tradução da
edição brasileira: « Aquele que foi já não pode mais não ter sido: doravante, esse fato misterioso,
profundamente obscuro de ter sido é o seu viático para a eternidade.” (A memória, a história, o
esquecimento. Editora Unicamp, 2007. Tradução de Alain François.
56
mas designa um trabalho (Verarbeitung, Bearbeitung, Erarbeitung, Aufarbeitung6)
mais amplo que o individual, trabalho de transformação de um passado soterrado:
quando não “trabalhado” - ou, nos termos da metáfora arqueológica, quando não
se persevera nos trabalhos de escavação, triagem, reconhecimento e nomeação dos
fragmentos esparsos - esse passado encobre aquilo que poderia ser o indício de outro
devir. Outros devires do passado que não chegaram a se realizar, que foram derrotados
ou, simplesmente, ignorados. E outros devires do presente, reduzido a uma camada
rasteira e monótona, pretensa continuidade de uma história tida como necessária. O
esquecimento imposto prejudica o trabalho do historiador, em particular no Brasil, e
impede uma relação do país em seu conjunto a seu passado, passado este que deveria
ser objeto de pesquisas, de estudos, de discussões entre todos.
57
um partido ou de uma tendência, mas porque milita por uma memória do passado
que permite não só salvar a memória dos vencidos, mas também liberar outras
possibilidades de luta e de ação no presente do historiador – no seu caso, um presente
paralisado pelo fascismo e pelos dogmatismos tanto da historiografia burguesa
quanto do marxismo ortodoxo e stalinista. Essa enunciação no presente acarreta
como consequência que história “a contrapelo” do passado (“gegen den Strich”, tese
VII) e reflexão crítica sobre o presente coincidem. Ora, a questão dos mortos e do
destino que lhes reserva a historiografia dominante é absolutamente crucial, ela é o
trunfo de uma luta no presente que a tese VI torna mais precisa:
Chaque époque devra, de nouveau s’attaquer à cette rude
tâche : libérer du conformisme une tradition en passe d’être
violée par lui. Rappelons-nous que le messie ne vient pas
seulement comme rédempteur mais comme le vainqueur de
l’Antéchrist. Seul un historien, pénétré ((de la conviction))
qu’un ennemi victorieux ne va même pas s’arrêter devant
les morts – seul cet historien-là saura attirer ((peut-être
Benjamin veut-il plutôt dire ‘attiser’)) au coeur-même des
événements révolus l’étincelle d’un espoir. En attendant, et
à l’heure qu’il est, l’ennemi n’a pas encore fini de triompher
(BENJAMIN, 1974, p. 1262).8
Citei a tradução para francês do próprio Benjamin; ela talvez não seja muito
elegante, mas ela tem o mérito de muitas vezes tornar seu pensamento mais preciso.
Assim, onde o texto alemão diz: “auch die Toten werden vor dem Feind, wenn er
siegt, nicht sicher sein” (literalmente: “os mortos, eles também, não estarão a salvo
diante do inimigo, se ele vencer”), Benjamin realça, na versão francesa, a atividade de
profanação do inimigo, “que não se deterá nem diante dos mortos”. Essa tendência à
profanação marca de maneira precisa o limite onde o poder político se converte em
mera violência, violência mítica diria Benjamin, fora do espaço de uma sociabilidade
comum. Espaço de violência, o sabemos desde os relatos dos sobreviventes, pelo
menos tais quais os analisa Giorgio Agamben, que parece surgir como o nomos
implícito do estado moderno enquanto estado de exceção instituído.9 A insistência
8 Cada época deverá novamente enfrentar essa rude tarefa: libertar do conformismo uma
tradição que está sendo por ele violada. Lembremos que o Messias não vem somente como
redentor, mas como o vencedor do Anticristo. Somente um historiador convencido que
um inimigo vitorioso não vai se deter, nem diante dos mortos – somente esse historiador
saberá insuflar no coração mesmo dos acontecimentos a centelha de uma esperança. Até
agora, e nesse momento, o inimigo ainda não cessou de vencer.
9 Ver Giorgio Agamben, Homo sacer: Il potere sovrano e la nuda vita, Einaudi 1995, trad.
brasileira: Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2004.
58
de Benjamin no perigo que correm os mortos de serem, por assim dizer, mortos
mais uma vez, lança uma luz paradoxal sobre a resistência do poder ditatorial, depois
democrático, a procurar e identificar os desaparecidos. Tratar-se-ia não só de não
querer confessar os crimes cometidos. Tratar-se-ia mais ainda de afirmar que cabe
ao poder político decidir do destino dos mortos como já dizia Creonte na Antígona
de Sófocles: as “leis não escritas” dos sobreviventes, que desejam ainda respeitar a
prática humana (e sagrada) do funeral e da inumação10, não têm força de lei.
Não gostaria de terminar essa comunicação com a imagem de túmulos
proibidos, mas, sim com outro pensamento de Benjamin, quando evoca aquela “fraca
força messiânica” que cabe à cada geração do vivos de hoje para tentar redimir a si
mesmos e, também, redimir os mortos que nos interpelam. E como se houvesse, diz
Benjamin na tese II, um “encontro secreto” marcado entre os mortos do passado e
os vivos do presente. Essa ressurgência súbita faz das lutas do presente um campo
onde ressoam muitas vozes, não só as nossas, mas também outras, vozes cheias de
coragem e de esperança, das gerações passadas. “Os mortos se apoiam nas lutas dos
vivos para continuarem suas batalhas”, afirma num recente artigo Vladimir Safatle11.
Esses “espectros do tempo”, assim o título do artigo, não aparecem somente ao
nosso lado. Também povoam o imaginário e o ideário daqueles que detêm o poder.
Mas os derrotados de ontem nos transmitem suas esperanças e suas forças, mesmo
derrotados e mortos ou, talvez, justamente porque foram derrotados e mortos.
Estranha convivência na qual um gesto passado ressurge no presente, cheio de
inventividade, de alegria e de impertinência, um gesto que não garante nada, mas
que nos empurra para continuar.
Não posso deixar de mencionar, por fim, a ação poético-política que aconteceu
em Recife dia 25 de outubro de 2018. O artista Paulo Bruscky 12 citou a ação do seu
conterrâneo, Cícero Dias que, em 1943, com o auxílio de um amigo piloto, fez chover
sobre Paris, ocupada pelos nazistas, uma chuva de papel com o poema “Liberdade”
do poeta e resistente Paul Eluard. Bruscky subiu numa escada e jogou ao vento, numa
praça central de Recife, folhas com a tradução do poema (por Carlos Drumond de
Andrade e Manuel Bandeira).
10 Essa alusão à Antígone de Sófocles me foi sugerida pelo belo artigo de Vladimir Safatle em
O que resta da ditadura, org. por Edson Teles e Vladimir Safatle, São Paulo: Boitempo,
2010. p. 252.
11 Folha de São Paulo, Caderno C, página 10, 28 de setembro de 2018.
12 Paulo Roberto Barbosa Bruscky é um artista multimídia e poeta brasileiro conhecido por
sua ampla participação no movimento da arte conceitual brasileira. Seu pai era um artista
da Bielo-Rússia que estava em turnê pelo Brasil quando conheceu sua mãe, no Teatro
Santa Isabel.Wikipédia
59
Cito esse ato ocorrido no passado, desconhecido pela maioria dos transeuntes.
O gesto do artista torna esse ato subitamente presente e potente, apesar de nosso
desânimo. Concluo, então com algumas estrofes desse longo poema (21 estrofes),
citando as estrofes 1, 2, 11, 12 , 19, 20, 21 .
Liberdade
60
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome
Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome
Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome
Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome
Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome
61
No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome
Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome
No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome
Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome
Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
62
Escrevo teu nome
Na saúde recobrada
No perigo dissipado
E te chamar
Referências
MORSS, S. The gift of the past, palestra proferida no Congresso Walter Benjamin.
Porto Alegre, PUC/RS, 28 de setembro de 2018.
63
Revista Piauí, outubro de 2018, p. 45.
64
Imagens silenciadas na poética de Rosângela Rennó
3 Tradução livre do original “[...] fue uno de los primeiros historiadores que se plateó el
estúdio del paradigma del archivo en el arte contemporâneo”
4 Em português Passagens, editora UFMG de 2006.
66
de painéis, em que trabalha com a noção de memória histórica e história como
recordação.
5 Tradução livre do original “[...] como tal, exige unificar, identificar, classificar, su manera de
proceder nos es amorfa o indeterminada, sino que nace com el propósito de coordinar un
‹‹corpus›› dentro de un sistema o una sincronía de elementos seleccionados previamente en la
que todos ellos se articulan y relacionan dentro de una unidad de configuración predeterminada.”
67
Imemorial (1994),6 é uma instalação, de Rosangela Rennó, apresentada
pela primeira vez, em Brasília, durante a exposição Revendo Brasília (1994-1995),
realizada na Galeria Athos Bulcão, no Teatro Nacional de Brasília. Em 1995 foi
exposta no Ed. Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.
68
Aleida Assmann (2011), ao abordar a memória cultural faz um sensível
aprofundamento sobre a memória, a recordação e o esquecimento. Na discussão
sobre memória funcional e memória cumulativa, enfatiza que estes são dois modos
de recordação. Sua construção teórica parte da teoria literária, mas constitui-se
interdisciplinar, pois transita nos campos da filosofia, da psicanálise, da teoria da
história, da egiptologia e da teoria da arte. Ao discutir a distinção de história e
memória traz também a perspectiva de filósofos, sociólogos e historiadores. Em
Maurice Halbwachs identifica as lembranças comuns como elemento de coesão do
grupo, o que denominou como “memória de grupo”, cuja “estabilidade da memória
coletiva está vinculada de maneira direta à composição e subsistência do grupo”
(ASSMANN, 2011, p. 144). Halbwachs fazia clara distinção entre memória coletiva
e memória histórica, pois a primeira “assegura a singularidade e a continuidade de
um grupo”, enquanto a segunda “não tem função de asseguração da identidade”
(ASSMANN, p. 144). Para esse sociólogo as memórias coletivas só existem no plural,
enquanto a memória histórica integra muitas narrativas, existindo no singular. Se a
memória histórica se especializa a memória coletiva obscurece as mudanças.
69
necessidade de explicitar sua própria origem” (ASSMANN, 2011, p. 151). Entretanto,
há uma face negativa, pois os “dominadores querem ser lembrados e, para isso, erigem
memoriais em homenagem aos seus feitos” (ASSMANN, 2011, p. 151).
Rosângela, afirma
as pessoas sumiam. Às vezes sumiam porque sumiam,
largavam a mala ali e iam para sertão ou porque morriam
70
[...] Um país enorme voltado para o futuro, só pensa no
futuro e atropela tudo em função do futuro [...] Era meio
impressionante lidar com essa coisa de imaginar sessenta
mil funcionários, construindo... Quase setenta mil operários
construindo Brasília e os que morriam você não dava nem
conta [...] eu nunca tinha ouvido nada sobre Brasília até eu
ver, ler o depoimento [...].10
10 Entrevista citada.
71
da GEB (1956 – 1960) e sua dissertação Trabalho e Violência na Construção de Brasília
(1996), defendida na UNB, em 1982, Brasília: o outro lado da utopia.
Os retratos cujos rostos estão esmaecidos, pela intervenção da artista, não têm
nomes, são anônimos, mas, colocados simbolicamente como lápides, prestam-lhe justa
homenagem, finalmente, têm um lugar. Um lugar protegido, perene e simbólico, o lugar
da arte.
Espelho Diário,12 2001, tem como conceito operacional na sua poética o arquivo,
porém não o arquivo institucional, como na obra Imemorial, mas o arquivo pessoal. No
período de oito anos, 1992 a 2000, Rosângela coletou reportagens de jornais que tratassem
de temas relativas a mulheres cujos nomes eram Rosângela, com imagem ou não.
72
O conjunto constituído neste arquivo, teve como metodologia e princípio
arquivístico, a entrada das imagens ou reportagens no mesmo dia de sua publicação.
Posteriormente este arquivo, em forma de diário-colagem, foi encaminhado para
Alícia Duarte, escritora que transformou as matérias jornalísticas em narrativas
autobiográficas, no gênero diário. Foram criadas 133 histórias de Rosângelas.
73
circunstância está a estratégia estilística dos litotes. A total
negação da imagem revela e faz resplandecer o desejo último
de fotografia (HERKENHOFF, 1996, p. 27).
Rosângela faz parte dos artistas que lidam com a fotografia e a imagem
de modo a colocá-la sempre em questionamento, em estado de tensão. Embora
fotógrafa, recusa-se a fotografar, abre mão desse ofício e apropria-se de imagens
feitas por outros, imagens anônimas feitas por fotógrafos anônimos, populares,
que deixam os rastros de seu trabalho pelas lixeiras, mas, também, encontradas em
obituários, nos jornais diários ou em álbuns. São essas imagens descartadas, cujas
histórias são desconhecidas, anônimas que passam a ter uma outra evidência, saindo
do esquecimento e tornando-se ato de resistência.
74
Referências
RENNÓ, R.; PENNA, A.a D. Espelho Diário. Belo Horizonte: Editora UGMG; São
Paulo: EDUSP e Imprensa Oficial, 2008.
75
Lembrança, esquecimento e rememoração: o caso da cidade
de São João Marcos (RJ)
Introdução
De acordo com Oliveira (2014), São João Marcos localiza-se na serra entre
as atuais cidades de Mangaratiba e Angra dos Reis e tem como marco de fundação o
ano de 1733, com a construção de uma capela em homenagem ao santo homônimo.
A cidade de São João Marcos atingiu o auge da prosperidade econômica e social
no século XIX com a expansão da cultura cafeeira no estado do Rio de Janeiro. Na
denominada Era do Café, no período de maior destaque econômico local, as fazendas
de São João Marcos respondiam por 1% de toda a produção cafeeira do país e um
de seus habitantes mais bem-sucedidos financeiramente chegou a adquirir uma ilha,
a Marambaia, para auxílio na comercialização de escravos trazidos da África. Tal
importância econômica resultou num rico conjunto arquitetônico comparável às
cidades de Paraty (RJ) e Ouro Preto (MG) e seus moradores sustentavam com orgulho
o título de “cidadão marcossense” mesmo muito depois do declínio econômico da
cidade, que se iniciou com a decadência da economia cafeeira na região.
78
estes eram representantes de um padrão arquitetônico de valor histórico. Sob este
argumento, no ano de 1939, o núcleo urbano foi tombado pelo Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – SPHAN; entretanto, em 1940 o presidente Getúlio
Vargas revogou o tombamento através do decreto-lei nº 2.269.
79
O esquecimento
80
Esta é a geração que ainda sobrevive até os dias de hoje e seus sucessores possuem
uma memória de São João Marcos baseada puramente em fotos e narrativas. Trata-
se uma memória cuja referência não tem como recorrer a uma experiência pessoal
e acaba ancorando-se ainda mais fortemente na imaginação e na afetividade.
81
Na dimensão dos registros
82
O caráter autoritário que compõe uma dimensão do processo de destruição
de São João Marcos favorece um tipo de esquecimento que tomado pela perspectiva
de Ricoeur (2007) vincula-se ao que o autor define como memória manipulada, isto
é, um esquecimento possibilitado pelo ato de seleção no manejo da narrativa oficial,
afinal, “pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases,
refigurando diferentemente os protagonistas da ação, assim como os contornos dela”
(RICOEUR, 2007, p. 455).
83
o aspecto de semi-cumplicidade entre os atores deste esquecimento (aqueles
que esquecem, os esquecidos e os que fazem esquecer). Segundo ele, esse tipo de
esquecimento não seria possível se não houvesse um esquecimento de fuga, a recusa
em tentar se informar, um “querer-não-saber.” Desta forma, o autor critica a passividade
quase conivente de parte da sociedade em relação ao discurso ideológico.
84
propriedades, até recibos por serviços prestados. Desta forma, muito além de um
mero empecilho burocrático, qualquer informação histórica, econômica ou social que
estes documentos pudessem guardar foi simplesmente esvaziada de seu valor. Neste
sentido, de acordo com Assmann (2009; p. 368) o “controle do arquivo é controle da
memória” e nessa linha de raciocínio, o tratamento conferido aos arquivos de São
João Marcos sugere a reafirmação de um grupo vitorioso após um triunfo político.
A rememoração
85
coletivo, justamente por sido processada a partir de ausências contraditórias no que
tange a seu passado notório. Sendo uma das principais produtoras de café do país, São
João Marcos, por setenta anos, não era citada na história do Vale do Café, inclusive,
desconhecida para muitos municípios pertencentes a essa região. No ano de 2008, a
Light Serviços de Eletricidade S.A., através do Instituto Light para o Desenvolvimento
Urbano e Social, iniciou um processo entendido no âmbito da empresa como
“decisão de reverter o processo de esquecimento, recuperando a história de São João
Marcos”. A proposta de “reverter o processo de esquecimento” e “recuperar a história
de São João Marcos” estava relacionada à noção de responsabilidade social adotada e
difundida pela empresa naquela ocasião. Tal proposta materializou-se na construção
do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos, concebido para ser a
soma dos conceitos de parque arqueológico, museu de território e reserva particular
de proteção natural, com vistas ao “atendimento das necessidades recreativas e
educacionais das populações que lhe são próximas, além daquele de promotor do
turismo no município, papeis estes facilitados pela sua proximidade às cidades do
Vale do Paraíba e à Região Metropolitana do Rio de Janeiro” (informação retirada do
material de divulgação do Parque - 2009).
86
do público visitante não tem conhecimento do episódio da destruição até tomarem
ciência da existência do empreendimento, sendo justamente o desconhecimento
da existência da cidade de São João Marcos e sua história de opulência e declínio
que tem tornado o Parque um atrativo local. Paralelamente, as atividades do
Parque, diferentemente da proposta inicial, que se centrava em atrair visitantes
através do estímulo ao turismo cultural; voltou-se para o fortalecimento de um
Programa Educativo direcionado para alunos de escolas públicas e privadas. Nesta
proposta, destaca-se um conjunto de memórias que foram selecionadas para serem
apresentadas e divulgadas para os visitantes. Em tal seleção é possível perceber uma
mensagem que busca reconciliar a imagem da empresa promotora da “destruição”
de São João Marcos com o presente e para tal, evidencia seu papel de idealizadora e
mantenedora do Parque.
87
Trazendo a reflexão de Ricoeur relativas ao abuso da memória para o caso de
São João Marcos, considera-se que as lembranças individuais foram afetadas por um
evento traumático e para a superação de tal conflito, seriam necessários um trabalho
de memória e um trabalho de luto no intuito de mitigar problemas resultantes de
uma situação histórica onde há memórias em disputas, sendo essas objeto de negação
de uns e de afirmação de outros. Detendo-nos no trabalho da memória (ou de
rememoração) para refletir sobre o caso da memória da cidade de São João Marcos
na atualidade, depreende-se que essa equivale a uma ressimbolização daquelas
lembranças, pois há aqui uma dificuldade em se desligar do objeto que teve lugar em
dado momento pretérito e a necessidade de uma sentença de paz entre o passado e o
presente que ainda adere a este. Nesse trabalho da memória, o Parque Arqueológico e
Ambiental de São João Marcos tem se apresentado como suporte, ou seja, como uma
rememoração ainda que de uma memória manipulada.
88
o abuso da memória e o consequente abuso do esquecimento, a repetição da memória
selecionada que configura a rememoração materializada no Parque Arqueológico e
Ambiental de São João Marcos considera-se, tal como Ricoeur (2007, p.86) que “o
trabalho de luto é o custo do trabalho da lembrança; mas o trabalho da lembrança é
o benefício do trabalho de luto”, relação essa que no caso analisado implica também
com o trabalho de libertar-se da perda. Terminado o trabalho do luto operou-se a
passagem da repetição da lembrança para a recordação da mesma e nessa etapa do
processo, de acordo com o Ricoeur, os envolvidos no trauma configuram-se livres
e abertos a possibilidade de uma memória reconciliada, onde a rememoração atua
ainda como protetora de identidades.
Considerações finais
89
Referências
90
A exclusão do universo feminino
nas narrativas de cozinheiros celebridades
Luciano Lunkes
92
para subirem na posição [...] até conseguirem, aprendendo
com um dos dez maiores chefs do mundo […] Trabalhar
num haras de campeões como aquele aperfeiçoa bastante
(BOULUD, 2004, p. 31).
Há uma exigência extra: é preciso ter juventude. Preste atenção,
pois estas cartas são cartas para um jovem chef, não para um
novo chef. Sendo bem sincero, se você tiver trinta anos de
idade, eu não estou escrevendo para você, pois as demandas e a
competição que há neste trabalho exigem que tenha começado
cedo, como eu, como você (BOULUD, 2004, p. 88).
1 O nome original da obra de Boulud é Letters to a young chef (Cartas a um jovem chef).
2 Assim como Boulud, os demais chefs da pesquisa recorrem à imagem potente do cavalo para
descreverem a si mesmos e aos demais “garanhões” veteranos das cozinhas profissionais.
93
considerarmos algumas premissas de Mallory (2011), passamos a entender que esse
artifício faz parte de um discurso estratégico que tem, por objetivo, uma “purgação
higienizante” (p. 211) dentro da cultura da alta cozinha contemporânea, cujo efeito é a
desvalorização e o apagamento do trabalho feminino dentro desse ambiente profissional.
Embora a participação delas tenha sido historicamente marginalizada e pouco
reconhecida, a pesquisadora americana afirma que a desvalorização do trabalho
feminino dentro da alta gastronomia se intensificou, paradoxalmente, a partir da
revolução de maio de 1968 e do advento da Nouvelle Cuisine.3 Szmosis (2018), em seu
estudo sobre a feminilização da confeitaria e os papeis de gênero dentro da indústria
americana da alimentação, corrobora as conclusões de Mallory. Ela argumenta que,
embora os atuais discursos da mídia e dos cozinheiros masculinos afirmem que o
gênero não determina mais o sucesso dos chefs, ambos falham em reconhecer as
formas subliminares pelas quais os papeis tradicionais de gênero ainda impactam a
cultura da alta gastronomia, perpetuando antigas realidades. Para ela, a linguagem
utilizada por ambos - como ocorre nos discursos de Boulud - continua a reforçar
os papéis tradicionais de gênero, confinando a mulher a atividades culturalmente
associadas a elas, como a confeitaria, as quais, hoje, elas dominam.
Assim, a homenagem carinhosa de Boulud à cozinha feminina, como
veremos, pode ser lida como parte do mito da igualdade de gênero, que distrai e
encobre apropriações e desigualdades sistêmicas. Embora a equidade entre homens
e mulheres nunca, de fato, ocorreu da cozinha profissional, a democracia de gênero,
segundo Mallory (2011), havia sido prometida pelos jovens revolucionários que
criaram a Nouvelle Cuisine nos primórdios dos anos setenta, todos eles, homens que
atualmente se encontram na faixa etária aproximada de Boulud e acima dela. No
entanto, a menção genérica e “en passsant” de Boulud à única representante feminina
presente na totalidade das 159 páginas de sua autobiografia (com exceção à breve fala
sobre a garçonete top model),4 destoa radicalmente do mar de referências masculinas
3 A nouvelle cuisine foi um movimento que se iniciou na França do pós-maio 68 e gerou uma
grande mudança na maneira como a comida atua ainda hoje na cultura. Caracterizado como um
movimento revolucionário, estético, político e cultural, a “nouvelle cuisine” lançou sementes que
tiveram impactos profundos e duradouros, não apenas nas práticas alimentares dos franceses, mas
na cena gastronômica internacional e contemporânea como um todo. O movimento representa o
triunfo de uma “nova ideologia culinária” sobre um estilo antigo (ancienne), meticuloso e pomposo,
que havia dominado a França e o mundo por décadas e até então. Esse movimento encontra-se
presente na base de várias das discussões da alta gastronomia contemporânea e fortemente atuante
nos relatos dos chefs da pesquisa.
4 “Tenha cuidado com o lugar da moda, com a garçonete top model e uma comida assim, assim.
Procure um lugar em que sinta alma na cozinha, no pessoal e no salão” (BOULUD, 2004, p.
25). É interessante o tom de advertência de Boulud nessa fala, que estabelece uma conexão entre
“lugar de moda”, comida “assim, assim”, garçonete “top-model” e carência de “alma” em todos
94
encontradas no mesmo texto, que cita, nominalmente, uma lista considerável de
grandes mestres e gurus (todos franceses) do panteão gastronômico, cozinheiros
virtuosos que influenciaram toda uma cultura culinária e se tornaram os mentores
das gerações seguintes:
Como a pessoa mais inferior na escala, eu tinha a obrigação
de ir diariamente, nas primeiras horas da manhã, em busca
dos produtos no mercado de Lyon. E adivinhe quem mais
estava lá? Os lendários e obsessivos chefs de Lyon e dos
arredores, que eram a vanguarda da cozinha francesa: os
irmãos Troisgros, Paul Bocuse, George Blanc e Alain Chapel
(BOULUD, 2004, p. 27).
eles. É contrastante também o tom pejorativo da expressão “lugar de moda” na fala da garçonete
comparado ao tom celebratório do “restaurante de moda” utilizado na fala em que e refere ao
chef Roger Vergé. Em seu livro, Boulud reduz a participação feminina na alta gastronomia à
duas únicas representações ambas identificadas de forma genérica e anônima: uma associada ao
âmbito familiar-doméstico-nutricional e desvinculada do mercado produtivo (e reprodutivo) e a
outra (a garçonete top-model), mulher jovem e sedutora, que disponibiliza seus atributos físicos
excepcionais (e biológicos) para vender a arte do chef.
95
levando-nos a crer que há, de fato, certo componente religioso ainda agindo na cultura
da gastronomia célebre, onde grandes restaurantes, quando aclamados, são chamados
de templos sagrados e seus chefs, de sacerdotes culinários:
Guérard, em Eugénie les Bains, era o grande sacerdote
da cozinha voltada para os ingredientes e para a leveza
(BOULUD, 2004, p. 35).
Embora entendamos que se trate, a princípio, de metáforas elogiosas ou formas
poéticas que a mídia e os pares encontram para ressaltar a importância cultural desses
estabelecimentos e de seus mentores, suspeitamos, por outro lado, que esses arroubos
de lirismo religioso poderiam acusar a existência de um fenômeno maior, ainda
atuante, que impõe valores de um catolicismo enraizado e em funcionamento, mesmo
que de forma sub-reptícia, latente ou inconsciente. Orlandis (1993), em seu livro A
Short Story of the Catholic Church, afirma que a influência da Igreja Católica é vasta
e marcante nas sociedades ocidentais e tem impacto ainda significativo nas visões
culturais estabelecidas sobre os papéis sexuais e de gênero, cabendo, à mulher, um
papel secundário, embora não menos importante, dentro de sua hierarquia.
A elas, a tradição bíblica católica (da mesma forma como Boulud o faz em seu
livro) oferece dois modelos centrais de representação do feminino, que se polarizam:
Eva (a garçonete top model)5 e Maria (vovó). Se a maternidade nutridora e a devoção
mariana recebem um status exaltado dentro da fé católica, por outro lado, Orlandis
(1993) afirma que o papel de Eva foi definitivo para o desenvolvimento da noção
ocidental da mulher enquanto sedutora, indigna e impura. Embora Maria seja o
modelo didático e positivo do feminino, a centralidade obsessiva da mãe celeste na
devoção cristã não anula sua condição secundária enquanto mulher. João Paulo II, ao
citar o discurso de Paulo VI,6 comemorativo ao dia internacional da mulher do ano
de 1975, reafirma sua crença de que mulheres e homens têm vocações específicas de
acordo com suas naturezas e que a maior contribuição das mulheres à igreja é nutrir
a fé das comunidades cristãs. Em ambas as declarações, os papas reiteram o papel
nutridor da mulher perante a ordem divina.
Apoiada nos evangelhos e alegando a escolha de Cristo por apóstolos
exclusivamente masculinos, a igreja do século XXI ainda não concede, à mulher,
o direito ao sacerdócio. Embora não admita, a recusa em ordená-las comprovaria,
segundo Orlandis (1993), a visão tradicional dessa instituição quanto à natureza
5 Por coincidência (ou não), as mulheres de Boulud poderiam ser analisadas enquanto
metáforas de representações católicas do feminino: Maria e Eva.
6 Christifidelis Laici: http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/en/apost_exhortations/
documents/hf_jp-ii_exh_30121988_christifideles-laici.html
96
espiritual e moral supostamente inferior da mulher.7 Para a Igreja, ser sacerdote é um
serviço especial que faz jus somente a um homem, porque há uma natureza sacramental
inerente a eles. Embora a atual igreja reconheça a igualdade entre homens e mulheres
perante Deus, ela afirma que os papéis de ambos são ainda distintos. Enquanto a eles,
a instituição oferece o sacerdócio, cabe, a elas, o papel de nutridoras da fé. Devemos
reconhecer, aqui, que há algo consideravelmente familiar operando na cultura secular
dos restaurantes. É inegável certa ressonância entre os preceitos da instituição católica e
a recusa, por parte da mídia e dos cozinheiros masculinos, em reconhecer as mulheres
chefs enquanto “sacerdotisas” da arte culinária, uma alcunha constantemente atribuída
aos homens como condecoração a uma excelência culinária dotada de aura supra-
humana, transcendental, “alquímica”, “espiritual”, “mágica”, xamânica:
A tarefa do chef – usar o calor para transformar os
ingredientes – é a coisa mais próxima da alquimia que já
conheci [...] um efeito de mágica (BOULUD, 2004, p. 40).
Se, por um lado, a doutrina católica ainda afirma que a ordenação é status sagrado
destinado unicamente ao homem, devido à sua natureza sacramental determinada
pela lei divina, por outro lado, encontramos mitos semelhantes em diversas culturas
alimentares, incluindo a cultura da alta gastronomia. Em vários de seus artigos sobre a
Cuisine de Femme, publicados durante a década de setenta, Gault e Millau reproduzem
antigos mitos sobre as mulheres, salientando suas fraquezas e inaptidões culinárias.
Trata-se de dois dos críticos gastronômicos mais influentes da França, fundadores
da publicação francesa (o Guia Gault e Millau, concorrente do Guia Michelin) que
revolucionou a crítica de restaurantes na década de setenta, ao mesmo tempo em que
patrocinou a Nouvelle Cuisine, inaugurando a era da gastronomia espetacular e dos chefs-
celebridades como a conhecemos hoje. Ao se defenderem das acusações de sexismo
decorrentes desses artigos, ambos insistem que “suas afirmações estavam baseadas em
fatos sociológicos verificáveis” (MALLORY, 2001, p. 124).
7 “Conservem-se as mulheres caladas nos templos, porque não lhes é permitido falar, mas
estejam submissas como também a lei o determina” (Apóstolo Paulo, 1 Coríntios, capítulo
14, versículo 34). “Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem, em casa, a seu
próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja.” (Paulo, 1Co 14. 35).
97
ser uma atividade que exigia qualidades consideradas mais masculinas, como força
física, astúcia e bravura, cabia, ao homem, a provisão da carne. Segundo ela, é ainda
comum, em várias comunidades rurais, que o abate de animais domésticos de pequeno
porte seja considerado um trabalho feminino. Animais de grande porte, como gado e
porcos, são vistos como trabalho masculino; não por razões de mera força física, mas,
também, por questões ritualísticas, pelo significado sacerdotal da ação (p. 19).
98
reconhecermos; a grossura e a aspereza daquele pedaço de carne,
seria um currículo, que diz aos outros a quanto tempo e quanto
tem sido duro. O mindinho da mesma mão ficou deformado,
torcido, recurvo na ponta – resultado da má postura na hora
de bater algum molho ou creme [...] há também arranhões,
perebas no dorso das mãos [...] algumas manchas brilhantes
[...] minhas unhas, restou pouco delas, têm sangue animal seco
e uma enorme equimose preta debaixo da unha do polegar [...]
tenho uma ponta de dedo chafandrada na mão esquerda [...] há
alguns sulcos de um centímetro na palma da mão esquerda [...]
as feridas nos nós dos dedos são tantas [...] outros insultos à carne
ficaram anônimos, provas de sucessão de cozinhas empilhadas
uma em cima da outra (BOURDAIN, 2016, p. 384-392).
Assim como o sacrifício, também a ideia de transformação (cara aos chefs) está
ligada à noção do sagrado. Luard (2001) afirma que, dentro do princípio bíblico, todo
o bem terreno pertence ao Criador celeste. Se a comida sacrificial é oferecida em seu
estado natural, o Pai está sendo convidado a receber o que lhe pertence, sua própria
criação. Por essa razão, oferecer a Ele as coisas em seu estado bruto, como elas são, não
é satisfatório. Elas devem, de alguma forma, ser melhoradas e transformadas em algo
diferente de seu estado natural. Como ocorre com a transformação da água em vinho,
do grão em pão, da carne morta em carne assada, a conversão da comida “camponesa”
99
da vovó em “comida de verdade” é considerada, pelos próprios chefs masculinos, um
processo alquímico, mágico, natural aos espíritos criativos, guerreiros e inventivos. As
mulheres, para muitos deles, estariam inaptas para essa tarefa, pois são consideradas
inferiores, tanto criativa quanto “espiritualmente”.8
100
enquanto objetos de prazer, o único lugar destinado a elas é a cama. A exemplo de
Anthony Bourdain, Bocuse não se constrange em narrar sua intimidade, expondo
suas proezas sexuais ao lado de façanhas culinárias, ligando a alta gastronomia à
esfera do sexo, ambos terrenos pertencentes ao mundo dos falocratas.11
Declarações como essas, pronunciadas por um porta-voz do porte de Bocuse,
não são raras de se encontrar no campo. Voltando um pouco no tempo, encontramos,
por exemplo, discursos semelhantes em Auguste Escoffier. Cozinheiro, restaurateur
e escritor francês, Escoffier é considerado um dos mais importantes expoentes no
desenvolvimento da cozinha francesa moderna e, também, a pessoa que retirou as
mulheres definitivamente da cozinha profissional, criando o mito de que esse espaço
de expertise – um domínio do artístico e não do doméstico - é matéria exclusiva para
os homens. Partindo de sua experiência enquanto cozinheiro do exército francês
durante a primeira guerra, Escoffier introduziu um estilo militarizado na cozinha
profissional, impondo disciplina e respeito em uma cultura tida - até então – como
desordenada, indisciplinada, formada por bêbados ineficientes e desregrados.
Considerado o Henry Ford da cozinha (DÓRIA, 2012), Escoffier criou o sistema
hierarquizado de brigadas e o processo de produção no âmbito profissional. Seu estilo
sistemático trouxe uniformidade, regramento, método científico e racionalidade à
gastronomia francesa. Segundo ele, a mulher deveria, em razão de sua natureza
doméstica, manter-se unicamente dentro do espaço da casa, distante da cozinha
profissional, que é naturalmente masculina:
Nas tarefas domésticas é muito difícil encontrarmos um
homem se igualando ou excedendo uma mulher; mas cozinhar
transcende um mero afazer doméstico, trata-se, como eu disse
antes, de uma arte superior. A razão pela qual na culinária os
louros são “apenas masculinos” não é difícil de encontrar. [...]
(ESCOFFIER, apud TRUBEK, 2000, p. 125-126).12
A partir deste ponto de sua fala, Escoffier passa a argumentar sobre a
superioridade masculina a partir da suposta diferença “natural” entre os gêneros,
polarizada entre praticidade, inata ao feminino, e senso artístico, uma qualidade
essencialmente masculina. Essas são variações das mesmas alegações encontradas
nos discursos da Igreja, de Bocuse, de Gault e Millau. Escoffier finaliza seu discurso
dizendo que, a elas, faltam disciplina, observação, imaginação, atenção aos detalhes,
foco e objetividade. Assim, a cozinha militarizada de Escoffier baniu as mulheres do
101
ramo da hotelaria, deixando o campo limpo para o domínio masculino. Entretanto,
por se tratar da transferência de um saber tradicionalmente
feminino para um universo masculino, foi necessário, para
Escoffier, formalizar todos os gestos, criar um vocabulário
controlado e assim por diante: parecia a “invenção” da
cozinha masculina num mundo em que os homens nada
sabiam previamente sobre o cozinhar e do qual, por exigir
iniciação e treinamento, as mulheres da cozinha doméstica
ficariam apartadas (DÓRIA, 2012, p. 265).
102
(la mère de la mère), como uma curiosidade que não deve ser esquecida, oferecendo, à
vovó (e às mulheres), o papel de mero “ingrediente” de sua arte de verdade.
103
à uma purificação. Como prova da “sanitização da memória oficial de Les Mères e
das mulheres”, ela cita a Larousse Gastronomique, que considera o arquivo oficial
da memória da gastronomia francesa (p. 214). Embora a edição de 1996 contenha
inúmeros verbetes biográficos dedicados a grandes chefs homens, a enciclopédia se
refere a Les Mères Lyonnaises de forma genérica, assim como Boulud faz com as vovós.
De acordo com o verbete, Les Mères Lyonnaises é um apelido carinhoso dado por
vários cozinheiros que se interessaram pela cozinha feminina de Lyon no final do
século XIX. Não há, em todo o texto, qualquer indicação da real importância dessas
mulheres para a Nouvelle Cuisine e para a cozinha do século XX:
Embora a citação do Larousse dê crédito às mães (Les Mères)
como fonte de inspiração dos pratos aperfeiçoados que eles
serviram [...] a enciclopédia, ao mesmo tempo, enfraquece o
significado delas enormemente, observando a forma pouco
profissional e sua gama limitada, e relega o status delas ao de
simples cozinheiras, locais ou regionais, em vez de garantir
que sua comida possa ser vista como uma forma de culinária
francesa (ou nacional)15 (MALLORY, 2011, p. 215).
Segundo a pesquisadora, o anonimato do apelido genérico Les Mères garantiu
que o “vírus das mulheres chefs fosse contido” (p. 215). Para Szmodis (2018), os papéis
de gênero continuam a impor ideologias16 que afetam a cultura dos restaurantes. A
retórica francesa replicada por chefs (como Boulud) desvincula, não por acaso, a
comida feminina caseira das habilidades técnicas, científicas e artísticas da cozinha
masculina de elite. Segundo Szmodis, a associação da cozinha doméstica feminina
com a haute cuisine é prejudicial aos homens porque cria uma ameaça de feminização
da cozinha masculina. Como o trabalho feminino é frequentemente desvalorizado
financeiramente pela sociedade frente ao trabalho masculino, a preocupação dos chefs
homens reside na desvalorização de suas posições caso sejam associadas à feminilidade,
como ocorre atualmente na confeitaria, uma área dominada por elas e desprestigiadas
pela cultura masculina estereotipada, que não a vê como sendo masculina. Segundo
o relatório salarial americano de 2010, a confeitaria preenche 84% de suas posições
com lideranças femininas; em comparação, apenas 10% dos cargos de chef executivo
são ocupados por mulheres. Focados na carne, signo sacerdotal masculino, os chefs
entendem que o açúcar simboliza o universo feminino:
15 A tradução é minha.
16 “A ideologia aparece como um ‘véu’ cobrindo a realidade – a dominação de uma classe
sobre as outras a partir das relações de produção e da divisão entre trabalho e capital”
(GRAEFF, Lucas. Cultura e ideologia (relação). In: BERND, Zilá; KAYSER, Patrícia
(Org.). Dicionário de expressões da memória social, dos bens culturais e da cibercultura.
Canoas: Unilasalle Editora, 2017, p. 66).
104
Guérard, em Eugenie les Bains, era o grande sacerdote da
cozinha voltada para os ingredientes e para a leveza. Seu
caminho para o estrelato tinha sido pouco usual – a confeitaria
(BOULUD, 2004, p. 35).
Por um lado, o rôtisseur precisa ter uma ligação intuitiva com
a carne e, por outro, precisão militar. É preciso ser excelente
cozinheiro para ser rôtisseur [...] Um bom rôtisseur só tem a
parte exterior para observar, e precisa ser capaz de imaginar
a transformação dos sucos [...] prever tudo o que vai se
passar dali até os pratos (BOULUD, 2004, p. 43).
A confeitaria tem um histórico de não ser valorizada pela mídia e pelos chefs
masculinos, mesmo quando ocupada por homens. Enquanto produtor de códigos, o
açúcar está ligado a várias associações linguísticas, como meiguice, inocência, doçura,
amor, ternura, suavidade. Para Mallory (2011) e Szmodis (2018), ele está associado
à feminilidade e ao sexo, à ideia de “mulher como sobremesa”, uma metáfora que
circula na indústria profissional dos restaurantes. A evolução desta metáfora, segundo
Szmodis, conduz à percepção das mulheres enquanto doces e ao entendimento das
sobremesas enquanto campo natural do feminino, distantes da ligação máscula com
a carne. Curiosamente (talvez nem tanto), as mulheres são também bem aceitas
enquanto cozinheiras étnicas, um campo da culinária, por si só, desprestigiado pela
105
cultura dos templos gastronômicos, que, como o faz com os doces, destitui o étnico da
condição de “cozinha de verdade”, mesmo quando estas cozinhas estão sob controle
masculino, como já vimos anteriormente, no capítulo dedicado a Samuelsson.
106
seguintes. Até então, os franceses estavam mais focados na preparação primorosa de seu
vasto repertório tradicional culinário e na teatralidade do serviço do que no impacto
visual minimalista-vertiginoso e na autenticidade de combinações experimentais e
incomuns da nova vanguarda. Com o surgimento dessa nova cozinha, as convenções
do espetáculo e da cultura da celebridade passaram a reger a indústria dos restaurantes.
Os novos astros da nova onda eram todos homens, jovens, criativos e rebeldes, que se
espelhavam no culto à juventude que emergia na cultura de massa. Não é ao acaso que
Boulud compara a cidade de Lyon e seus chefs vanguardistas à cidade de Liverpool e
aos Beatles. Era desta forma que os revolucionários se percebiam. Eles eram, afinal, os
Beatles das panelas.
107
alimentar para recair sobre assuntos mais urgentes da nação, que demandavam
o reestabelecimento da memória apoteótica e hegemônica de uma França
enfraquecida frente aos olhos do mundo e da própria sociedade. Para Mallory
(2011), uma cozinha representativa da França, liderada por homens jovens, fortes e
militarizados, preencheria o papel simbólico da liderança masculina deixada vazia
por líderes políticos e militares. Além disso,
Não seria adequado para esses jovens definirem a Nouvelle
Cuisine como uma adoção de uma culinária feminizada e
praticada por mulheres em lares burgueses. Consequentemente,
mesmo que a preparação e a apresentação dos alimentos
tivessem, de fato, alguns atributos estereotipicamente
“femininos” (comida mais leve, porções menores, vegetais do
tamanho infantil, receitas mais simples, cardápio reduzido),
os chefs responsáveis por essas mudanças tinham que parecer
viris e capazes de liderar a França e o mundo através desta
revolução culinária e cultural (MALLORY, 2011, p. 213).17
17 A tradução é minha.
108
A promessa de inclusão das mulheres, tanto na Nouvelle Cuisine (égalité e amitié),18
quanto na revolução da Revolução Francesa (liberteé, égalité e fraternité), de certa
maneira, fracassou. Os anos que seguiram o estopim da revolução culinária revelaram que
a promessa foi cumprida somente em parte, uma parte que, na verdade, reforçou antigos
mitos estereotipados do feminino ao invés de romper com eles. O guia Gaul e Millau,
que informava os cidadãos comensais colocando-os ao par das novidades da gastronomia,
apresentando à nação os novos talentos da nova cozinha nacional e suas criações inventivas,
passou a citá-las em suas indicações e referências, embora preferindo reverenciá-las pelos
seus atributos ornamentais (como decoração, aparência, roupas “sexies”, saltos altos,
maquiagens) e suas qualidades subjetivas (amorosas, doces, inocentes, leves, simpáticas,
charmosas) além de destacar a clientela famosa, digna de nota. Esses mesmos críticos se
abstêm de levar em conta a qualidade da comida e o trabalho/sacrifício envolvido no seu
preparo, como normalmente o fazem em suas críticas quando se referem aos chefs homens
(lembrando que Boulud faz uma única menção a uma presença feminina no âmbito
profissional que ele considerou digna de nota: a garçonete sexy). Assim, apesar da grande
promessa de uma revolução feminina que seria promovida pela Nouvelle Cuisine, o que se
cumpriu, na verdade, foi o surgimento de uma nova aparência feminina no ambiente da
cozinha (sexy e espetacularizada) que não se parecia, em nada, com a figura tradicional
das Mères e da vovó (MALLORY, 2011, p. 128).
109
de si e de sua cozinha, Samuelsson passou a ser mais um integrante do jogo masculino
hegemônico. Podemos especular que isso ocorreu porque, “embora” étnico, Samuelsson
é, ainda, um homem. Igual a Samuelsson, Vovó e Les Mères -, a despeito de serem
herdeiras naturais de uma cultura tida como refinada - para acenderem ao alto patamar
da culinária, precisam também ser refinadas, transformadas, depuradas. O que as torna
diferentes de Samuelsson, no entanto, é que, a elas, não é dada a mesma chance de
fazê-lo sozinhas. Os sacerdotes farão isso por elas, pois “são incapazes”. Nesse sentido,
é interessante retomar novamente as afirmações de Rojek (2001), Mallory (2011)
e Orlandis (1993), para os quais a religião (apesar da “morte de Deus”) ainda rege a
cultura contemporânea ocidental e se faz fortemente presente em uma cultura culinária
altamente propensa à ritualização e à semantização de suas práticas.
110
os beneficia, pois o não dito, neste contexto, se materializa em exclusão, em “limpar o
caminho”. Entendemos que o silêncio desses chefs20 cria a enorme parede branca que os
“enquadra”, fornecendo os contornos que salientam “uma” memória oficial da cozinha
francesa (POLLAK, 1989, p. 7). É a neutralidade dessa parede branca que faz saltar
aos olhos a vivacidade do quadro oficial, revelando que não são eles, afinal, quem as
enquadram: é essa neutralidade que emoldura suas relevâncias.
Referências
20 Bourdain, dentre os três chefs do estudo, é o único profissional que expressa “alegria” em dividir o
espaço da cozinha com mulheres. No entanto, a mulher enaltecida de Bourdain se encontra distante
do estereótipo do papel feminino: “Beth se auto-intitulava a ‘vaca da grelha’. Era fantástica na hora
de colocar os tolos e os falastrões nos seus devidos lugares [...] Cozinheiras mulheres, por mais que
sejam raras neste mundo machista onde impera a testosterona, são uma delícia de se ter por perto.
Trabalhar com uma mulher durona, boca-suja e faladeira é uma verdadeira alegria [...] tive a felicidade
de trabalhar com mulheres realmente machonas – elas não tinham nada de dondocas. Ela sempre
quis ter um comportamento igual aos dos colegas homens (BOURDAIN, 2016, p. 91).
111
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112
I - Memória
114
Patrimonio inmaterial, relatos orales y herencias sociales.
Reflexiones sobre su registro
Introducción
116
Ahora bien, hacia 1960 comenzó a evidenciarse el estado de discusión sobre
los paradigmas y la crisis de la historia; a partir de allí, los cambios iniciados por la
Escuela de Annales, fundada en Francia en 1929 por Marc Bloch y Lucien Febvre,
se profundizaron junto al aporte de los historiadores marxistas en la vertiente
inglesa especialmente. Estos cambios incluyeron un mayor acercamiento disciplinar,
teórico y metodológico entre las distintas ciencias sociales (antropología, sociología,
economía, política, etc.) de lo cual resulto una nueva perspectiva historiográfica: la
historia total y la historia social como superación de la tradicional historia política y
suponiendo una mirada desde debajo de los procesos sociales (CORAZA DE LOS
SANTOS, 2001, p. 33-34). La idea de una historia total suponía también abarcar
aspectos estructurales aunque, en términos espaciales, implicó la regionalización de
los estudios y la focalización en espacios pequeños, en contraposición a la historia
nacional el siglo XIX.
117
Y además remarca el sentido social de la historia cultural y su interés por
observar las representaciones asumidas, un comportamiento particular de un grupo
particular, etc. Reivindica la historia social diferente que busca explicar la relación
individuo – estructuras o agentes sociales – contextos sociales, en tanto activos y
constructivos de sus entramados sociales.
118
Ello implica trabajar con relatos orales que permitan captar las expresiones del sentir
común sobre los bienes culturales, arquitectónicos, artísticos o paisajísticos. Y recuperar,
así, los hechos que forman la trama oculta de la memoria colectiva.
119
restauración de edificios, etc.), para abarcar aspectos socioculturales diversos.
120
y construcciones, aumento del valor de los terrenos en las áreas urbanas centrales
(RIGOL y ROJAS, 2012, p. 44). La industrialización y sus efectos en las áreas urbanas
se volvió un problema para todas las grandes ciudades en el siglo XX:
…la disyuntiva de la conservación o no de lo antiguo deja
de ser estrictamente cultural para convertirse en tema
económico e higiénico-sanitario.” (Rigol y Rojas; 2012: 44).
• 1931. Carta de Atenas o Carta del Restauro. Planteo una serie de normas
para la intervención patrimonial, orientadas a reconocer cuando una
intervención es nueva, sin confundirse con la original, respetando las obras
de todos los tiempos; el respeto a la fisonomía urbana al construir nuevos
edificios, especialmente n áreas próximas a edificios antiguos (45).
• 1933. 2° Carta de Atenas. Planteo criterios higienistas y la contradicción
entre conservacionismo y demolicionismo (47).
• 1964. Carta de Venecia. Se expreso entorno al problema de la veracidad
histórica y los contextos: el monumento esta unido a su medio.
• 1965. Se crea en Varsovia el Consejo Internacional de Monumentos y
Sitios (ICOMOS) destinado a la conservación, protección, rehabilitación
y mejora de monumentos, conjuntos arquitectónicos y sitios.
• 1972. UNESCO el documento de la “Convención sobre la protección
del patrimonio mundial, cultural y natural”, introdujo definitivamente el
concepto de bien cultural mas allá del monumento y entorno empleados
hasta entonces.
121
Por otra parte, se asistió a la incorporación de nuevos aspectos: el ético en
la discusión sobre la gestión patrimonial teniendo en consideración los asuntos
económicos, de reconocimiento y so que el mismo implica. Y el educativo, en la línea
sociedad-patrimonio:
… la determinación de la valoración por parte de los
diferentes grupos sociales es sumamente compleja y depende,
en gran medida, tanto del nivel escolar como de la gestión
comunitaria educativa desarrollada hasta el momento en el
sitio (RIGOL y ROJAS, 2012, p. 69).
Las autoras sostienen acera del vínculo entre ética y patrimonio que se
involucran asuntos de proyección social, el concepto de lo valiosos, su ampliación, la
tradición y la autenticidad:
… compromiso con la cultura como realidad y derecho de la
sociedad… (RIGOL y ROJAS, 2012, p. 228).
122
Los estudios sobre el patrimonio cultural suponen la apropiación de aquello
que es intrínseco a nuestras existencias en cuanto humanidad; nuestra herencia
cultural. En el sentido pedagógico de Paulo Freire, a su vez, asocia el compromiso
pedagógico a la responsabilidad ética, al decidir cada vez para quien se construye
saber. Dado que se trabaja en el reconocimiento de formas de la herencia social de
las comunidades, sus experiencias humanas, tengan ellas reconocimiento público o
no lo tengan (TAMANINI, 2013, p. 8). La corresponsabilidad social supone elaborar
narrativas en dialogo y disputa con los textos de la historia oficial. Esto permitiría
pasar de la idea de una sociedad que recibe un patrimonio heredado a comunidades
que se asumen herederas de un patrimonio cultural.
123
política y suponiendo una mirada desde debajo de los procesos sociales. Y que el
registro de la memoria oral supone indagar en la memoria colectiva.
Entre los principales ejes que los asistentes, trabajadores del sistema educativo
y muesos de la de la Región de La Libertad, Perú, plantearon en las jornadas de trabajo
se pudieron observar los siguientes:
• Autenticidad
• Veracidad
• Modificaciones de prácticas
• Confianza en el vínculo entrevistador-entrevistado
• Vinculo pasado-presente
• Malestar del entrevistado por tergiversación de lo relatado
• Critica histórica que ponga en duda el relato en búsqueda de la verdad
• Relatos fundacionales transmitidos de generación en generación, dando
cuenta de experiencias ancestrales
• Modificaciones y continuidades
• Memorias colectivas
• Memorias sobre vínculos familiares
• Saberes culinarios transmitidos de madres a hijas en ambientes de cocina
y familiaridad
• Secretos de familia en formas de cocción e ingredientes especiales
(sabores propios, familiares y regionales) (cebiche mixto)
• Sabores étnicos de afrodescendientes. Sabores-etnia-clase-
discriminación-pobreza-trabajo rural (chafainita, shambar)
124
• Ajiaco de Cui. Testimonio de Gloria Jara sobre su preparación:
“El plato que yo he escogido es el Cui con Ajiaco o Ajiaco de cui. Ajiaco de
cui también le dicen. Es un plato típico de la sierra liberteña. Mi madre era natural
de un caserio cercano a Otuzco que se llama Casmiche. Pero cuando se caso se fue
a Chimbote y con ello llevo sus costumbres y herecnia gastronómica. Recuerdo… ya
mucho no recuerdo porque ella fallecio, eh… criaba sus cuies, sus animales, llevaba
esa costumbre y… y preparaba este cui, asi como sus familiares, para épocas festivas,
cumpleaños, bautizos, etc. Particularmente como anécdota yo les cuento, que este plato
me acompaño a mi y a mi familia en épocas de bonanza como también en épocas en
que no había dinero. Cuando no había dinero, mi madre… la veíamos que… nosotros
teníamos la cocina a gas, pero la veíamos a ella que se iba al corral y preparaba su
fogón. Y nosotros ya sabíamos: hoy comemos cui (rie). Ponía su olla de agua a hervir
y nos decía: vengan niños, ayúdennos a coger el cui. Se cogían tres cuies, éramos dos
hermanas, se cogía dos cuies, los mataba y nos daba para pelarlos. Y ahí nos contaba
sus anécdotas de como ella los había comido en su tierra eh… bueno y asi, entre risas
y anécdotas eh… lo terminábamos de pelar y nos enseñaba a prepararlos. En realidad
no era muy, este… muy difícil.
El secreto era, este… para mi, el secreto es estar alegre para que no se te pase de
sal ni se queme el cui. Después… pelarlos y macerarlos con un poco de ajo, de pimienta
y la sal al gusto, lo… ponía la sartén y lo freía. Pero a la par también estaba cocinando
sus papas, luego los pelaban, pelaban la papa y preparaba un aderezo solamente con aji
panca y aji amarillo. No necesitaba de mucho condimento. Particularmente el secreto
para tener un buen ajiaco de cui es este… es elegir un buen cui, no muy tierno ni
muy viejo. Porque si es muy tierno, se va a deshacer y si es muy viejo, va a estar duro
y entonces sería un poco difícil, pero no es imposible también de preparar si ya era
viejo. Porque le daba un hervor para que cocine un poco, y después lo freia. Como les
dije, era para épocas festivas, por ejemplo cuando había un bautizo eh… la compadres
preparaban su Ajiaco de cui, pero de manera particular freían dos cuies enteros y los
escuchaba cuchicheando a las tías con mi mama: y como se ha portado el compadre? Le
regalo algo? (rie) si el compadre le regalo algo, entonces se merecía darle un cui entero,
su fuente con sus papas, se lo llevaba… bueno esa es mi historia de vida.”
125
chimbotanos, que más los identifican. Y resume la historia de mi familia. Lo que
más recuerdo de mi casa es este plato. Se hacía en momentos de alegría. A los 11, 12
años descubrí que era afrodescendiente. Mi abuelo, por parte de madre, era negro.
Sobre 1915 llego a la hacienda Tambo real, en Chimbote. Allí conoció a mi abuela y
formo una familia. Como costumbre heredo la elaboración del plato del bisabuelo.
Después, con el paso del tiempo, lo tomo mi madre. Ahora, nosotros, somos cinco
hermanos, todos lo preparamos: bofe, res, ajíes amarillo, colorado (básicos de la
comida peruana), yerba buena (que le incrementa el sabor). El plato resume una
parte de la historia de la familia con la que se siente identificado. La chafainita es una
de los platos más difíciles de encontrar en la ciudad. Es afrodescendiente.”
“El plato se hace para Semana Santa. Es el plato típico de Moche, reconocido
como patrimonio cultural del pueblo. Sus ingredientes son específicos, si cambian
se modifica la tonalidad y el sabor del plato: cabrito, pavo, cebolla de cola de rabo,
huevos, garbanzos, perejil, tomatillo, ají de sopa, leche a base de arroz, de color
naranja por el azafrán. El azafrán se siembra, cosecha y guarda en el pueblo para
fechas festivas. Si no hay, se reemplaza con el achiote, en algunos casos, o con sibarita
(aunque le cambia el sabor), sopa de pan (de color verde) es la base del plato, con el
pan del día. El tipo de pan utilizado, lo modifica.
126
primero lo probé en mi tierra natal que Cusco. Después lo probé por trabajo en el
altiplano, en Puno. Y… ya pues también en Trujillo. Este… los sabores varían sin
embargo son deliciosos en los tres lugares, la preparación es sencilla, es como…
se parece en algo a la preparación del cebiche común, es solo que, como esta
acompañado de mariscos, vamos a tener que sancocharlo aparte, a los calamares,
los langostinos y también este… debemos dejar bien limpio las conchas de abanico.
Dejar limpias, libres de arena… todo. Y después, el pescado ya limpio y cortado en
cuadritos, vamos a mezclar con las demás… con los demás ingredientes, siempre
revisando el sabor… siempre revisando si está bien de sal, vamos a ir echando los
demás ingredientes que son el ají, el ajo, este… la cebolla como vemos, y esto se va
a ir mezclando. Después, eh… vamos a probar también el sazón, que tal esta, y ya
por ultimo vamos a echar el… el limón. Les decía, la historia de este cebiche mixto
es porque.. en Cusco, tenía una amiga que trabajaba en el Frigorífico, así se llama el
lugar, donde puedes encontrar un buen cebiche. Este… otra zona donde uno podía
encontrar un cebiche, por lo menos en aquella época de estudiante… era frente a la
Universidad Nacional del… la San Antonio, en Cusco… hay un sitio que también
me trae recuerdos de una ruta de aca que es El Cortijo, entonces, eh… ahí, frente
a la san Antonio, había una cebicheria para estudiantes, que se llamaba El Cortijo,
se sigue llamando me parece, entonces, a fin de semestre… obligado, teníamos
que ir al Cortijo y degustar un buen Cebiche Mixto. Y en Puno, me recuerda
bastante porque, este…., tuve una amiga que trabajaba en una cebicheria y a veces
para presentar iba con papas, no con ensalada, pero era delicioso igual. Y aquí en
Trujillo, ya! Fue la explosión… risas… porque? Porque ehhh, bueno.. en el sur se
usaba muy poco el rocoto, bueno al menos yo usaba muy poco el rocoto. Aquí en
el norte, aparte de picar, te ponen rocotitos alrededor, entonces ya… es por eso que
he elegido el cebiche mixto que es muy, muy agradable. Gracias.”
“He escogido el plato Shambar, es un plato típico acá en Trujillo, que se sirve
conocidamente los días lunes. Lo he escogido porque este plato formo una tradición
en mi casa cuando vivíamos papa, mama y mis hermanos. Mi padre me contaba que
su abuelo, su papa de su papa, tenía una hacienda por Santiago de Chuco y el vivo
por esa zona y era la costumbre de todos los días lunes: servir este espesado que es
una sopa de trigo con menestras, jamón,… bueno la verdad yo no sé cómo se prepara
porque nunca lo he preparado, nunca lo he aprendido y.. pero si, era una costumbre,
era una tradición en mi casa cuando nosotros éramos pequeños. Todos los días
127
lunes, no era en el almuerzo, era en el desayuno… era el plato de Shambar. Y mi
papa era el único dia de la semana donde nos hacía participar a toda la familia en la
elaboración de este plato. Cada uno teníamos una parte específica en la elaboración.
En mi caso, yo me encargaba de limpiar el trigo, de ponerlo a remojar y como era del
dia domingo para el lunes, los días lunes nos levantábamos temprano a preparar el
Shambar, bueno.. mi padre lo preparaba y nosotros cada uno aportaba su parte, era
el desayuno este plato espesado… no. Mi padre falleció hace dieciocho año y ahí se
rompió la tradición. Porque falleció y mi mama cambio el Shambar por la lentejita
serrana, que es hasta ahora lo que generalmente consumimos los días lunes. y en la
actualidad cada ve que tengo la oportunidad de consumir el Shambar me acuerdo de
mi padre, como nos hacía participar a todos en la elaboración de este plato y como
nos contaba parte de su historia, como lo comían en la sierra, donde lo conocían
con otro nombre allá, y en la actualidad pues también se consume en Chiclayo, en
Cajamarca… pero es tradición aquí en Trujillo. Gracias.”
Conclusión
En las últimas décadas del siglo XX, junto a la mayor complejización del
conocimiento, las ciencias sociales se han caracterizado por presentar numerosos
interrogantes a sus problemas de investigación. Los diferentes campos disciplinarios
debieron volver a reflexionar sus temas centrales procurando responder a nuevos
cuestionamientos. El patrimonio cultural es uno de éstos temas que se presenta en
la actualidad en el cruce de distintas disciplinas, utilizando en su estudio métodos,
técnicas y conceptos antropológicos, sociológicos, históricos, éticos y documentando
antiguos paisajes culturales y tecnológicos, tradiciones genuinas e inventadas,
objetos públicos en la sociedad del capitalismo tardio. También se corresponde a la
actual lectura del tema, asumir la perspectiva ética que permita elucidar el problema
y así aportar criterios de reflexión sobre la relación de conflicto planteada entre
los diferentes sectores sociales que convergen en el estudio de los bienes culturales
materiales y simbólicos en contexto latinoamericano. El empleo de los relatos orales
en el registro de la memoria y en la identificación de las distintas formas de identidad
que constituyen el patrimonio cultural debiera estar atento a estas problemáticas.
128
culinarios transmitidos de madres a hijas en ambientes de cocina y familiaridad; o
bien acerca de secretos de familia en formas de cocción e ingredientes especiales
(familiares y regionales) se expresan contextos sociales que dieron origen o
reprodujeron formas y prácticas específicas, más allá del relato sobre la experiencia
individual que le hace de soporte.
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ROCCHIETTI, A. M.; GILI, M. L. El Nuevo Lugar de la Cultura. El patrimonio
cultural desde la perspectiva antropológica. CD-R. Facultad de Ciencias Humanas.
Universidad Nacional de Río Cuarto, 2002.
SCHOLZ de A. K. M. A Lapa e o Tropeirismo. Instituto do Patrimonio Historico e
Artistico Nacional. Curitiba, editora Total, 2006..
TAMANINI, E. Seminario Patrimonio Cultural y comunidad. Universidad
Nacional de Villa Maria. Comunicación personal. Inédito, 2013.
130
O Vale dos Butiazais de Giruá:
bem cultural ambiental do Rio Grande do Sul1
Sangue guarani
Emprestou a cor vermelha ao teu chão
Terra dos dourados cachos de butiá
Ao sol de janeiro perfumando o ar
(MAICÁ, 2011)2
132
Há mais de um século, pertence à família Fernandes, herança que perpassa
duas gerações. De acordo com Marizete Fernandes, uma das herdeiras, o Vale foi
comprado por seu avô José e quando de seu falecimento, foi herdado por sua avó
Domingas e passado para seus filhos. “Na verdade, é uma grande herança, uma riqueza
bem grande, pelo valor cultural, pelo valor natural” (MARIZETE, Depoimento oral,
2016). A família Fernandes usufrui economicamente da comercialização da fruta e
atribui valor científico ao Vale, permitindo o trabalho de pesquisadores, escolares e
outros e, também, compreendendo a sua relevância cultural e ambiental.
Rosa Lia Barbieri, pesquisadora da EMBRAPA, no documentário “Amamos
Butiá” (2015), salienta a ameaça sobre os butiazais, em virtude da expansão de áreas
agrícolas e urbanas, o que implica no fato dessas paisagens tornarem-se raras no Rio
Grande do Sul. O butiá é recurso cultural e econômico, devido ser matéria-prima
para artesãos e culinaristas..
Buscando a preservação do Vale dos Butiazais de Giruá, seu proprietário,
Walzumiro Fernandes, faz seu manejo, providenciando, inclusive, a sua certificação
como Floresta Plantada com Espécie Nativa (Certificado 001/2010), pelo
Departamento de Florestas e Áreas protegidas, órgão da Secretaria do Meio Ambiente
do Estado do RS. Em entrevista declarou:
Eu resolvi plantar porque estava no fim. Os butiazeiros
estão ficando muito velhos e daí eu resolvi então a plantar.
E daí tinha que legalizar e tudo. Fui para Porto Alegre e
está legalizado. O pouquinho que eu plantei — quarenta
pés, os primero quarenta pés — estão todos legalizadinho
e depois estou plantando, cada ano planto um pouco. Já
tem mais de uns cento e poucos plantados (VALZULMIRO
FERNANDES, 2015).
Valzulmiro planta mudas de butiá para preservar o Vale, porém, nem todas as
mudas são nativas, da espécie yatai, característica do espaço giruaense e de algumas
localidades uruguaias, de acordo com Rivas e Barbieri (2014). O Vale já teve mais de
1000 pés de butiá; contando em 2016 com menos de 300. No município de Giruá,
a Lei nº 089/2000 proíbe o corte de butiazeiros, tendo como pena para o infrator, o
plantio de 15 novas mudas.
Moradores de Giruá relatam que o Vale dos Butiazais (Fig. 3) tem sido
preservado porque os butiazeiros estão relacionados a antigas tradições indígenas
como a Guarani, como também, por as terras que ocupam não se adequarem à
agricultura da soja e trigo, por exemplo. Valzumiro, ainda criança,
[...] cortava folha do butiá para fazer colchão. Depois
terminou a fábrica de fazer colchão de crina e aí deixaram
133
só para comer fruta e vender na beira da estrada. E foi
conservado porque a maioria dos butiazais foi arrancada pra
plantação de linhaça e trigo, depois virou em soja também [...]
foi arrendado pra uns linhaceiros que vieram outro lugar e foi
arrendado e foi arrancado todos butiazeiros. Só sobrou aquele
reduto ali porque não era próprio pra terra, não era terra de
campo alto, assim né, sobrou aquele porque era mais baixo
e ficou, ficou até hoje (VALZULMIRO FERNANDES, 2015).
A partir de 2016, o Vale passou a fazer parte da Rota Internacional dos Butiazais5
que integra três países, a saber: Brasil, Uruguai (principalmente no Departamento
de Rocha) e Argentina, onde desde 1960 existe o Parque Nacional El Palmar, em
Entre Rios (ver mapa na Figura 4). Pesquisadores da Embrapa Clima Temperado, de
Pelotas, trabalham no sentido da conservação e reconstrução da memória cultural do
butiá, a partir de seminários que versam sobre o tema em diversos municípios do Rio
Grande do Sul, Brasil e também no exterior (EMBRAPA, 2016).
5 Rota dos Butiazais: rota turística criada em novembro de 2015, envolvendo a valorização
dos butiazais do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina. Tem como objetivo a preservação
da biodiversidade associada aos butiazais e butiás. A Rota compreende Pescaria Brava,
em Santa Catarina; Torres, Vacaria e Pinhal da Serra, na divisa dos Estados de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul; Passo Fundo, Giruá, Quaraí, Barra do Ribeiro, Barão do
Triunfo, Tapes, Pelotas, Santa Vitória do Palmar, no Rio Grande do Sul; Castillos, Rocha,
San Luís, no Uruguai; e Entre Ríos, na Argentina.
134
Figura 4 – Mapa com a Rota dos Butiazais (2016).
135
Esta palmera actóctona llega a vivir más de 200 años. Tiene
flores amarilla sen conjuntos densos y frutos anaranjados
y dulces. Junto a la yatay crecen arbustos como la chilca
y hierbas de floración notable como diversas margaritas
y verbenas (PANFLETO DO PARQUE NACIONAL EL
PALMAR, 2015).
136
Figura 5 - Quadro “Ficha técnica do butiá”
Família Arecaceae
Nome Científico butia odorata
Nome Comum Butiá
Porte arbóreo, crescimento lento e contínuo, podendo
Características da planta
atingir até 12 metros de altura e idade superior a 200 anos.
Áreas de ocorrência Pampa brasileiro e uruguaio
Consumo in natura, geleias, sucos, licores, sorvetes, bolos,
Uso dos frutos
doces, bombons, molhos, artesanato.
Uso das folhas Artesanato
Uso da Planta Ornamental
Período de floração Setembro a janeiro
Cores das flores Amarelas, rosadas ou púrpuras
Período de frutificação Fevereiro a abril
Diferentes tonalidades de amarelo, alaranjado, avermelhado,
Cores dos frutos maduros
púrpura ou esverdeado.
Número de cachos por planta Pode produzir até 7 cachos por planta.
Número de frutos por cacho Pode produzir até 1.300 frutos por cacho.
Peso do cacho Pode atingir15kg.
Peso do fruto inteiro De 7g a14g.
Porcentagem de polpa por fruto Cerca de 70%
Sementes por fruto De 1 a 3 (as sementes ficam dentro do coquinho).
Fonte: Rosa Lia Barbieri; Mercedes Rivas (2014)
137
Butiazais de Giruá, este foi grande produtor de crina vegetal e a distribuía em toda a
região missioneira, nas décadas de 1960 e 1970. Inclusive, dispunha de uma máquina
artesanal que cortava e afinava as folhas.
As comunidades que vivem em lugares de ocorrência dessas palmeiras,
historicamente utilizam os frutos para diferentes fins. Segundo Noronha, Barbieri e
Sosinski Junior (2015) utiliza-se o butiá na alimentação, com frutos in natura, pratos
e bebidas típicas – sagu de butiá e os licores -, no artesanato – as folhas e caroços.
Atualmente, a utilização do fruto foi potencializada em diversas frentes de consumo:
Os frutos são consumidos frescos ou usados para produzir
vários tipos de alimentos (geléias, sorvetes, bombons e
mousses, bebidas: sucos, licores e cachaça com butiá) e
artesanatos. As amêndoas também são consumidas e usadas
em diversos produtos alimentícios, principalmente no
Uruguai, como biscoitos, tortas, bombons e o tradicional
“café de coco” (RIVAS; BARBIERI 2014, p. 26).
138
Ao refletir sobre essas informações, partimos da concepção de ser o Vale, um
espaço de memória, isto é, vivido e percebido como suporte de memórias individuais
e de grupos; um espaço de recordação, segundo Assmann (2011), em se tratando
de afetos e envolvimentos emocionais que ampliam a sua conservação. Nora (1993)
afirma que a memória se enraíza no concreto e cita, como exemplos desse “concreto”,
o espaço, o objeto, a imagem etc. É possível afirmar, portanto que as lembranças
de Marizete e de Valzumiro Fernandes, por exemplo, encontram-se localizadas no
tempo e no espaço do butiazal.
Também, o aproximamos do que o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional-IPHAN conceitua como paisagem cultural, ou seja, “[...] porção
peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem
com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou
atribuíram valores” (IPHAN, Lei 127 de 30/04/09, Artigo 1º).
Nesse sentido, iniciamos investigação para elaborar uma espécie de Ficha
Técnica para compor descrição de butiazais, com informações que venham a justificar
a indicação não só do Vale dos Butiazais, mas de outros butiazais do Rio Grande do
Sul, para serem chancelados como paisagem cultural.
De acordo com o IPHAN:
Quando julgar do seu interesse, qualquer cidadão brasileiro
pode solicitar ao Iphan o reconhecimento de determinada
porção do território nacional como Paisagem Cultural
Brasileira. Feito o pedido, será aberto um processo
administrativo, que será analisado e emitido um parecer.
Aceita a proposta, ela será julgada pelo Conselho Consultivo
do Patrimônio Cultural, para que seja tomada a decisão final
(PAISAGEM, 2009, p. 31).
A seguir, apresentamos um breve levantamento sobre estudos a respeito de
paisagem cultural.
139
reconhecimento em termos de preservação do patrimônio cultural.
Desde o final do século XIX e ao longo do século XX, disciplinas como a
geografia, têm dado atenção para a discussão sobre a ideia de paisagem cultural
relacionando bens culturais e naturais, nas suas dimensões materiais e imateriais.
No Brasil, desde a criação do IPHAN em 1937, já havia a preocupação com os bens
arqueológicos, etnográficos e paisagísticos, embora que ainda não se usasse a ideia de
paisagem cultural. Segundo a Constituição de 1988, no seu Artigo 216, “constituem
o patrimônio cultural brasileiro, [...] os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Ribeiro (2007) informa que a compreensão dessa categoria do patrimônio
tem avançado no país, com reflexões teóricas e metodológicas que dão suporte
aos processos de inventário, identificação, diagnóstico e preservação. Os estudos
realizados fora do Brasil também trazem aportes relevantes para possibilidades de
ações e estratégias que se adequem às nossas realidades e legislação.
Em 1992, pela Convenção da UNESCO, dá-se a definição da
categoria paisagem cultural e critérios para sua inclusão na Lista de
Patrimônio Mundial. No Brasil, a categoria foi incorporada pela Portaria
no. 127 de 2009, do IPHAN, instituindo, também um instrumento
jurídico para sua proteção — a chancela, que significa “porção peculiar
do território nacional, representativa do processo de interação do homem
com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas
ou atribuíram valores” (IPHAN, 2009).
Segundo Scifoni, o que define paisagem cultural:
[...] é a sua escala de abrangência: a paisagem cultural
diz respeito à determinada porção espacial ou recorte
territorial. A paisagem cultural é entendida, assim, sempre
como conjunto espacial composto de elementos materiais
construídos associados a determinadas morfologias
e dinâmicas naturais, formas estas que se vinculam a
conteúdos e significados dados socialmente. O recorte
espacial é estabelecido a partir de uma condição peculiar e
representativa de determinadas relações estabelecidas entre
os grupos sociais com a natureza. Ou seja, do ponto de vista
da preservação, o que identifica as paisagens culturais a serem
protegidas é o caráter peculiar dessa relação tecida ao longo
do tempo e que se revela a partir das formas específicas de
uso e apropriação da natureza pelo trabalho humano. Essas
relações podem tanto materializar-se na sua morfologia,
140
como podem ser explicitadas por meio de valores que lhe
são atribuídos socialmente (2016, s/p).
141
A partir da Figura 6, pode-se visualizar o processo de institucionalização da
salvaguarda de paisagens culturais. Para a UNESCO, o conceito de paisagem cultural
integra as relações entre os humanos e seu ambiente, entre o cultural e o natural,
as noções de sentido, significado, pertencimento, valor atribuído ao lugar e sua
singularidade.
Costa e Serres (2016) discutem a expansão do conceito de patrimônio e dos
instrumentos de preservação, a partir da categoria paisagem cultural. A relação
natureza-cultura, material-imaterial (em esfera integrada), inseriu diferentes tipos
de bens e referências culturais de grupos até então ignorados ou invisibilizados. A
noção de Paisagem Cultural parece indicar um novo posicionamento no contexto
patrimonial, com a inclusão de construções de memórias e pertencimentos no que
tange ao discurso sobre patrimônio cultural.
Nesse sentido, Castriota (2017) informa que a introdução da categoria
paisagem cultural traz três deslocamentos no campo de estudos do patrimônio
cultural. O primeiro rompe com a separação entre natureza e cultura ao reconhecer
que a atividade humana deixa seus reflexos no território. O segundo deslocamento
importa na relação estreita entre a paisagem cultural com saberes e fazeres
tradicionais no manejo da natureza, o que remete ao patrimônio material e imaterial
e aos lugares de aprendizagem sobre a relação entre povo, natureza e ecossistemas.
O terceiro deslocamento remete à ideia de patrimônio genético, pois ao salvaguardar
as paisagens culturais, preserva-se a diversidade genética da Terra. Nesse sentido,
elementos culturais e naturais precisam ser pensados e trabalhados em conjunto.
Para a Unesco a delimitação da paisagem cultural tem de levar em conta a sua
extensão e limite, a fim de garantir a sua inteligibilidade e funcionalidade, podendo
ser um recorte ilustrativo e representativo das qualidades e caráter da totalidade. Dos
dez critérios para a inscrição de bens culturais ambientais na Lista de Patrimônio
Cultural, destacamos:
[...] II. Mostrar um intercâmbio importante de valores
humanos, durante um determinado tempo ou em uma área
cultural do mundo, no desenvolvimento da arquitetura ou
tecnologia, das artes monumentais, do planeamento urbano
ou do desenho de paisagem; III. Mostrar um testemunho
único, ou ao menos excepcional, de uma tradição
cultural ou de uma civilização que está viva ou que tenha
desaparecido; ou IV. Ser um exemplo de um tipo de edifício
ou conjunto arquitectónico, tecnológico ou de paisagem,
que ilustre significativos estágios da história humana; ou V.
Ser um exemplo destacado de um estabelecimento humano
tradicional ou do uso da terra, que seja representativo de
142
uma cultura (ou várias), especialmente quando se torna(m)
vulnerável(veis) sob o impacto de uma mudança irreversível;
ou [...] VII. Conter fenômenos naturais excepcionais
ou áreas de beleza natural e estética de excepcional
importância; ou VIII. Ser um exemplo excepcional
representativo de diferentes estágios da história da Terra,
incluindo o registo da vida e dos processos geológicos no
desenvolvimento das formas terrestres ou de elementos
geomórficos ou fisiográficos importantes; ou IX. Ser um
exemplo excepcional que represente processos ecológicos e
biológicos significativos da evolução e do desenvolvimento
de ecossistemas terrestres, costeiros, marítimos ou aquáticos
e comunidades de plantas ou animais; ou X. Conter os
mais importantes e significativos habitats naturais para a
conservação in situ da diversidade biológica, incluindo
aqueles que contenham espécies ameaçadas que possuem
um valor universal excepcional do ponto de vista da ciência
ou da conservação (UNESCO, 2009).
143
natural, mais do que por sinais culturais materiais, que
podem ser insignificantes ou mesmo inexistentes (IPHAN,
2008, p. 21).
144
Seu objetivo era a “defesa das paisagens culturais
em geral e, mais especificamente, do território
dos Pampas e das paisagens culturais de fronteira”.
a Carta de Bagé ou Carta da Paisagem Ali estão listadas as características gerais que
Cultural (IPHAN; agosto de 2007). configurariam uma Paisagem Cultural Brasileira,
a preservação, intervenção diferentes sítios
que poderiam ser contemplados e o modo de
funcionamento dessa certificação, no âmbito nacional.
objetivo de definir novos mecanismos para o
Carta da Bodoquena ou Carta das
reconhecimento, a defesa, a preservação e a valorização
Paisagens Culturais e Geoparques
da Serra da Bodoquena, bem como de outras paisagens
(IPHAN; setembro de 2007).
análogas existentes em território nacional.
Estabelece a chancela da Paisagem Cultural
Brasileira, definida como uma “porção peculiar do
território nacional, representativa do processo de
Portaria IPHAN, nº 11, de 30/04/2009.
interação do homem com o meio natural, à qual
a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou
atribuíram valores”.
Institui Grupo de Trabalho para atualização da
política da paisagem cultural brasileira, a retomada
Portaria nº 104, de 23 de março de 2017 do instrumento da chancela e a reformulação
das estratégias institucionais para sua efetiva
implementação.
Institui a Política de Patrimônio Cultural Material
do Iphan.7 No Título V traz glossário no qual
se define Chancela, Diagnóstico, Dossiê de
Candidatura, Estudos Temáticos e Técnicos, Gestão
compartilhada, inventário de Conhecimento,
Portaria nº 375, de 19 de setembro de Mesorregião, Microrregião, Paisagem Cultural,
2018 Plano de Conservação, Planos de Gestão,
Preservação, Referências Culturais, Valor,
Valoração, aplicáveis ao processo de chancelamento
de paisagem cultural. No Art. 107, parágrafo V,
estabelece prazo para a publicação de revisão da
Portaria IPHAN nº 127, de 30 de abril de 2009.
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Scifoni (2016); Costa (2018); IPHAN (2009, 2017; 2018).
7 IPHAN. Portaria nº 375, de 19 de setembro de 2018. Disponível em http://www.in.gov.br/web/
dou/-/portaria-n-375-de-19-de-setembro-de-2018-41601031 Acesso em 5 ago. 2019.
145
A partir do quadro da Figura 8, é possível acompanhar o processo de construção
da categoria paisagem cultural. Como bem aponta Costa (2018), nos deparamos
com informações fragmentadas que estão disseminadas em Boletins, Verbetes,
Cartas Patrimoniais, Portarias, Decretos, dissertações, teses, artigos científicos etc.,
o que dificulta compreender o processo de implementação da chancela de Paisagem
Cultural Brasileira. De qualquer maneira, é relevante registrar que:
[...] a categoria de paisagem cultural, tal como foi instituída
pelo órgão federal, no Brasil, traz outros pontos de vista
e tratamento da questão, que não devem ser confundidos
com estas experiências anteriores do tombamento do sítio
paisagístico. [...] A adoção desta nova categoria no Brasil
deu-se sob a influência das práticas internacionais [...]
(SCIFONI, 2016, s/p.).
146
dos grupos sociais relacionados à paisagem cultural; a participação e mobilização
social, modificação no conceito, enfatizando o território como associado às práticas
culturais dos grupos sociais.
A partir dessas reflexões, discutimos na sequência, possibilidade do Vale dos
Butiazais de Giruá, ser proposto como candidato à chancela de Paisagem Cultural
Brasileira.
Os Butiazais, tendo como exemplo o Vale dos Butiazais de Giruá, podem ser
compreendidos como testemunhos excepcionais de uma tradição cultural, como
exemplo de ecossistema que ilustra períodos significativos da história do Rio Grande
do Sul e do Brasil. Neste sentido, é representativo de culturas indígenas, de imigração
europeia e de interação de humanos com o ambiente e está associado a ideias, crenças,
obras artesanais, culinária, obras literárias e à construção de memórias. Também
representa área de beleza natural e, como exemplo de ecossistema, é habitat de espécies
que têm valor na salvaguarda de outros ecossistemas. Dos dez critérios indicados
pela UNESCO, em um primeiro levantamento empírico, sem maior profundidade, os
Butiazais do Rio Grande do Sul, preenchem, no mínimo, cinco dos exigidos.
Os Butiazais também podem ser definidos como paisagem cultural, de acordo
com as definições do IPHAN, considerando-se que da imbricada relação do homem
com a natureza surge, segundo o IPHAN, uma característica fundamental de paisagem
cultural: “[...] a ocorrência, em determinada fração territorial, do convívio entre a
natureza, os espaços construídos e ocupados, os modos de produção e as atividades
culturais e sociais, numa relação complementar capaz de estabelecer uma identidade
que não possa ser conferida por qualquer um desses elementos isoladamente (IPHAN,
2009).8 A particularidade observada nesse conceito remete vividamente ao trabalho
junto aos butiazais, à relação de uso sustentável e à identidade conferida aos artesãos e
culinaristas do butiá.
Os Butiazais se coadunam com o que diz a Carta de Bagé, ou seja, paisagem
cultural é “[...] o meio natural ao qual o ser humano imprimiu as marcas de suas ações
e a paisagem formas de expressão, resultando em uma soma de todos os testemunhos
resultantes da interação do homem com a natureza, e, reciprocamente, da natureza com
o homem”. As características de patrimônio imaterial e paisagem cultural adéquam-
se de forma a salientar a interação cultural e identitária. Mesmo que esses conceitos
sejam de âmbito nacional, pode-se empregá-los à história local de forma a sobrelevar
147
a paisagem como espaço “[...] mediador para a vida, e constitui-se em espaço de
referências múltiplas [...] um recurso comum e partilhado” (GASTAL; COSTA, 2010).
148
Por conseguinte, outro conceito “[...] el conjunto de creaciones que emanan
de una comunidad cultural fundadas en la tradición, expresadas por un grupo o por
individuos y que responden a las expectativas de la comunidad en cuanto expresión de
su identidad cultural y social”,10 alude aos trabalhos feitos em torno das tradições do
Vale, incluindo saídas a campo para pesquisas nas áreas culturais e ambientais.
Pelegrini (2006) ressalta que “[...] os movimentos em defesa do meio ambiente
também foram importantes para a ampliação da noção de patrimônio, para que
incluísse não apenas a cultura, mas também a natureza” (p. 28). Desenvolvendo
junto aos visitantes salvaguardas de patrimônio e reconstrução da memória local,
rememorando os primeiros habitantes dessa terra. Acrescenta-se, portanto:
Quando pensamos no que recebemos de nossos antepassados,
lembramo-nos não apenas dos bens materiais, mas também
da infinidade de ensinamentos e lições de vida que eles nos
deixaram. [...] os ditados e provérbios que sabemos de cor e
que nos guiam por toda a vida são exemplos de um patrimônio
imaterial inestimável. (PELEGRINI, 2006, p. 08).
Não há modo de passear pelo Vale dos Butiazais de Giruá, sentir o cheiro
de butiá e não ser conduzido à infância, aos doces e compotas produzidos
pelos familiares. Até mesmo vídeos produzidos tendo o escopo desta pesquisa,
reproduzem imagens que remetem ao convívio e aos hábitos alimentares
que se perpetuam até a maioridade. Essas recordações são importantes
para a compreensão do patrimônio comunicado de geração em geração e o
reconhecimento de sua história, ancorada em lembranças.
149
disponível em <https://www.gov.br/pt-br/servicos/obter-chancela-da-paisagem-
cultural?campaign=orgao>.
150
Inventário de conhecimento; Mesorregião; Microrregião; Planos de Gestão;
Referências Culturais; Valor.
A Ficha Técnica13 para descrição do Vale do Butiazal de Giruá, ora apresentada,
configura-se como uma forma de contribuição para a salvaguarda desse ecossistema.
Campo 1
Informações gerais sobre a Região, Estado da Federação, Microrregião, onde está situado o
conjunto espacial candidato à chancela de Paisagem Cultural Brasileira.
Campo 2
Informações gerais sobre o Município onde se encontra o conjunto espacial.
Campo 3
Informações gerais sobre o Distrito/Povoado (se for o caso).
Campo 4
Histórico: Informações históricas do Município/Distrito.
Registrar dados históricos sobre o município/distrito/povoado quanto à sua origem, forma
de ocupação, trajetória política, administrativa, econômica. Informar sobre aspectos sociais,
fazendo referência à presença de povos originários, imigrantes, migrações, movimentos sociais/
religiosos, entre outros.
Campo 5
Aspectos Naturais: Registro de informações ambientais sobre a Microrregião/Município/Distrito
e de elementos da paisagem natural (matas, rios, arroios, reservas biológicas, outros).
Campo 6
Manifestações culturais: Registro de manifestações culturais, citando datas/períodos de
ocorrência, locais, particularidades, entre outros que tenham referência com o conjunto espacial
objeto do inventário.
Campo 7
Designação: Registro da denominação do conjunto espacial.
Campo 8
Informações gerais sobre o conjunto espacial: registrar informações sobre a denominação/
localização e coordenadas geográficas; superfície do sítio; delimitação do espaço; mapa; carta
topográfica; imagens fotográficas, outros.
13 Esta Ficha Técnica é um dos produtos da dissertação Festa do Butiá em Giruá: memórias
e trajetória (2003-2016). Visa a salvaguarda do Vale dos Butiazais de Giruá, RS, Brasil.
151
Campo 9
Subcategoria: Informações sobre a categoria do espaço: agenciado, não agenciado pelo homem;
paisagem contemplativa, paisagem integrada em área rural ou urbana.
Campo 10
Acesso: Informações referentes à forma de acesso ao sítio (pontos de referência, estradas,
condições de acesso.
Campo 11
Responsável: Registrar dados sobre o responsável pelo conjunto espacial.
Campo 12
Propriedade/situação da propriedade: Registro sobre a propriedade do conjunto espacial.
Campo 13
Análise do entorno: Registro de dados que informem sobre o conjunto espacial no contexto
natural e cultural, os espaços adjacentes, proximidade com marcos referenciais do município,
informações sobre aspectos geomorfológicos, solo, vegetação, entre outros.
Campo 14
Justificativa: Registro de dados, levando em consideração elementos de paisagem associativa,
representada pela intervenção humana.
Campo 15
Proteção legal: Registro de informações sobre o tipo de regulação, a instância (Federal, Estadual,
Municipal); situação da regulação (existente, proposta); tipo de proteção.
Campo 16
Grau de integridade/autenticidade: Avaliação do grau de integridade/autenticidade do conjunto
espacial no momento do inventário.
Campo 17
Análise da integridade: Resultado da análise do grau de integridade, indicando riscos potenciais
e fatores de degradação.
Campo 18
Intervenções/atividades desenvolvidas: informações referentes às intervenções realizadas no sítio
até o momento do inventário; medidas de conservação; usos do sítio e seus entornos; medidas
mitigadoras visando à conservação da integridade do conjunto espacial.
Campo 19
Uso: Informações se ocorrem visitações públicas com restrições ou sem restrições; se ocorrem
atividades privadas, turismo, agropecuária, agricultura, área não utilizada.
Campo 20
Declaração de valor universal: Registro de fontes documentais históricas que comprovem o valor
universal do conjunto espacial.
152
Campo 21
Critérios adotados (de acordo com a Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial pela
UNESCO até 2005). Ver critérios em RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio.
Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007, p. 36-37.
Campo 22
Pacto de Gestão: Registro de convênios/parcerias que envolvam poder público e sociedade civil/
iniciativa privada. RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro:
IPHAN/COPEDOC, 2007, p. 36-37.
Campo 23
Plano de Gestão: a partir do Pacto de Gestão, proposição de plano de manejo para o bem cultural.
O Plano envolveria:
Decreto Municipal de adesão à chancela
Relatório de levantamento das espécies
Conservação e promoção do conjunto espacial
Políticas e programas relacionados
Projeto educativo da candidatura
Programa de aceleração do crescimento
Nível de proteção
Gestão
Treinamento e capacitação
Infraestrutura turística
Campo 24
Referências bibliográficas: registro das fontes bibliográficas pesquisadas.
Campo 25
Referências documentais: registro das fontes documentais: registros escritos, imagéticos. Fontes
orais: entrevistas. Outros documentos.
Campo 26
Informações complementares: informações não especificadas na Ficha de inventário.
Campo 27
Documentação fotográfica: informações sobre fotografias produzidas durante o inventário para
fins de arquivamento.
Fotógrafo:
Tipo de imagem:
Data:
Local:
153
Campo 28
Documentação oral: Entrevistas com proprietários do Vale dos Butiazais, visitantes, usuários,
moradores do entorno do Vale, produzidas durante o Inventário para fins de arquivamento.
Entrevistador(a):
Tipo de entrevista:
Local:
Data:
Campo 29
Equipe envolvida na descrição:
Levantamento:
Data:
Revisão:
Data:
Fontes: Elaborada por Adriana Aparecida Felini e Cleusa Maria Gomes Graebin (2016/2019), a
partir de RIBEIRO, 2007. SCOFANO, 2012. KROB, e BOHRER, 2010.; IPHAN (2009, 2017; 2018).
Considerações finais
154
Referências
155
FERNANDES, V. In: Valzumiro Fernandes: depoimento [mar. 2016]. Entrevistadora:
Adriana Felini. Entrevista concedida para a Dissertação Festa do Butiá em Giruá
(2003-2016): Memórias e Trajetória (UNILASALLE).
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157
A negação do Patrimônio Cultural Jê em Blumenau, Santa
Catarina: entre conflitos de memória e identidade1
Jonathas Kistner
Introdução
Ter consciência histórica não é informar-se das coisas de
outrora acontecidas, mas perceber o universo social como
algo submetido a um processo ininterrupto e direcionado de
formação e reorganização (MENESES, 1984, p. 34).
160
pré-colonial na região. Foi a partir dessas conjunturas que surgiu a problematização
que norteou a pesquisa.
A pesquisa
161
Quanto à análise da cultura material dos grupos inseridos no estudo
objetivamos apenas fornecer subsídios primários para caracterizá-los, sem a
pretensão de alcançar análises complexas dos processos tecnológicos de elaboração
e uso.
5 Tradição Umbu é o nome pelo qual se conhece a cultura material do primeiro grupo
de povos indígenas, caçadores-coletores, possuidores de indústria lítica que habitaram
a Região Sul do Brasil.
162
O município de Blumenau
163
A escolha pelo município de Blumenau deu-se por várias razões. A principal
motivação deve-se ao fato do município ter um considerável histórico de contato entre
índios Laklãnõ/Xokleng e Kaingang com os imigrantes europeus, tendo resultado em
grande quantidade de material etno-histórico. Outro fator é a quantidade de material
arqueológico encontrado no município, somado ao agravante da cidade não contar
com um museu de arqueologia para a salvaguarda dos objetos encontrados, então,
boa parte do material é enviada para outras cidades, estados, ou até mesmo deixa
o país6 e, o que sobra, se encontra em coleções particulares ou dentro de caixas em
depósitos de museus. Toda a história dos primeiros habitantes do território está sendo
desfragmentada e perdida rapidamente, por isso da necessidade de maiores estudos e
interpretações no campo. Outra situação é que o município se encontra em acelerada
expansão urbana, onde toda a área geográfica sofre com rápidos processos urbanos
e industriais, alterando de maneira significativa a paisagem, impossibilitando novas
pesquisas. Assim, um dos objetivos da pesquisa é contribuir para gerar visibilidade
ao patrimônio cultural na cidade, trazendo à consideração os bens materiais de um
grupo que contribuiu na formação histórica e cultural do município. Essa concepção
passa a entender os “índios como os protagonistas e não apenas vítimas da história,
demonstrando que eles dialogaram com as novas conjunturas e foram agentes no
contato com os colonizadores” (WITTMANN, 2007, p. 22).
6 Existem peças no National Museum of the American Indian em Washington, nos Estados
Unidos.
164
fundação de uma colônia (FOUQUET, 1974, KIEFER, 1997; SILVA, 1988).7
165
das zonas que tinham indígenas hostis, tanto o de Santa Catarina como o do Paraná,
destinavam verbas orçamentárias especiais para custear o serviço que prestavam os
bugreiros (RIBEIRO, 1982). Os Jê do Sul agora passam a constituir-se “problema”,
a reagir contra a invasão dos “civilizados”. As correrias indígenas tornam-se mais
constantes e em contrapartida os “brancos” reagem com as “patrulhas de pedestres” ou
com a contratação de “bugreiros” para “afastar” os índios (SANTOS, 1973).
166
um humano civilizado. Na época, sugeriram uma superioridade dos padrões europeus
sobre os chamados “selvagens”. Esses “diferentes” foram considerados inferiores
e a partir daí foram criadas várias alegações e pretextos evasivos, usados por quem
procurou de maneira ardilosa levar à conclusão os projetos de colonização do território
não somente do Vale do Itajaí, mas de todo o Brasil. Toda uma classe de adjetivos foi
usada para construir a identidade do índio em favor do europeu: selvagens, errantes,
bugres, agressivos, malandros. Além do contato dos imigrantes com os índios na
região, houve a visão do colonialismo que foi construída de maneira mais ampla, todas
as forças foram direcionadas para minimizar ou até mesmo eliminar esse “problema”.
Nesse “Novo Mundo”, os imigrantes se encontram com culturas absolutamente
diferentes da sua, nessa sua perplexidade e temor com o desconhecido “tomam-no
diferente para fazê-lo inimigo. Para vencê-lo e subjugá-lo em nome da razão de ele ser
diferente e precisar ser tornado igual, ‘civilizado’, para dominá-lo e poder obter dele os
proveitos materiais do domínio” (BRANDÃO, 1986, p. 8).
Nesse contexto, concordamos com Santos (SANTOS, 2003) que almeja que
sejam superadas as atitudes etnocentristas que se interessam pelo “outro”, querendo-o
entender somente por curiosidade, e não o sujeito cujas práticas sociais são ricas de
sentido e encontram seu lugar no conjunto complexo de uma cultura. O interesse pela
diversidade dos povos e culturas não deve se limitar à atração pelo exótico, e nem
167
deveria, pois, sua base é o relativismo cultural,10 que entende que todas as culturas, sem
exceção, são tão válidas quanto a nossa.
168
sendo formadas, construídas, sempre em relação ao outro (CANDAU, 2011; 2002;
POLLAK, 1992; SILVA, HALL, WOODWARD, 2003). Trilhando o mesmo caminho,
identidade e a memória se inter-relacionam, onde posicionamentos da memória quase
sempre buscam apresentar uma identidade, Le Goff (1990) caracteriza a memória
pela sua função social, apresentando um “comportamento narrativo”, na ausência do
objeto ou do acontecimento que gera determinada memória, ela por si só, comunica,
estabelece-se uma relação entre memória e linguagem. A memória vai recebendo
solidez e disposição, conforme Pollak (1992), a memória redunda num relato, num
discurso, pois ganha forma à medida que é narrada. A narração memorial irrompe
como consequência de alguma inquietude, em momentos de conflitos e incertezas
associados a embates de identidades.
169
à preservação de um patrimônio cultural comum, e não somente o representativo de
um grupo. Afinal, o passado construído pelos imigrantes não é o passado do todo,
não faz parte dessa história os Laklãnõ/Xokleng e Kaingang que por aqui transitaram
e até mesmo construíram espaços. É o passado de um grupo por excelência, o
do imigrante na Colônia do Dr. Blumenau. A associação entre o poder do grupo
dominante e o seu discurso, tem como resultado uma história a partir do seu interesse.
O Governo Provincial e as Companhias de Imigração, atuaram como legitimadores
de um determinado projeto de sociedade com o qual estava em conformidade, para
formar o tipo de consciência que é típico de uma identidade regional, em confronto
com o “entrave do progresso”, o “bugre”. “Mas a mesma diferença necessária ao
entendimento é a razão do conflito, ou é o que se inventa para torná-lo legítimo,
quando inevitável. Sobretudo quando do conflito entre diferentes-desiguais um
estende sobre o outro o poder de seu domínio” (BRANDÃO, 1986, p. 7). Para os dois
grupos, Jê e imigrantes, se verificou o infortúnio e o padecimento, mas o apoio do
governo ocorreu somente para os imigrantes e não levou em consideração alguma o
partido dos “selvagens”.
Não se julgou necessária a reserva de terras para a colonização
dos indígenas na Província, deixando as ocorrências bélicas
repetirem-se na esperança, quem sabe, de que os povos
indígenas fossem mesmo, aos poucos exterminados, já que
sempre são apresentados nos documentos como entraves ao
progresso da Província (PERES, 2007).
11 Não se trata de falar de ancestrais dos atuais Jê culturalmente idênticos e eles, já que uma
história tão longa como essa envolve muitos contatos, rupturas, alianças, mudanças que
repercutem inclusive na identidade étnica dos grupos.
12 O termo “Macro-Jê” foi proposto inicialmente por Mason em 1950, ao se referir a
um conjunto de línguas indígenas brasileiras, as quais relaciona com a família Jê,
conforme Rodrigues (1999).
170
as línguas Kaingang e Laklãnõ/Xokleng, entre outras. Estes dois grupos, por sua
vez, formam um subgrupo, os Jê Meridionais. Conforme Rodrigues (1999), o
tronco linguístico Macro-Jê é um dos maiores agrupamentos genéticos de línguas
da América do Sul. Compõem este tronco 12 famílias linguísticas: Boróro, Guató,
Jê, Kamakã, Karajá, Karirí, Krenák, Maxakalí, Ofayé, Purí, Rikbáktsa e Yatê. Mesmo
sendo as distintas línguas Kaingang e Laklãnõ/Xokleng pertencentes ao tronco
Macro-Jê, ainda não foi reconhecida distinção nos registros arqueológicos entre
estes dois grupos, que são semelhantes, mas entre os quais existem claras diferenças
linguísticas, sociológicas, biológicas e etnográficas (NOELLI, 1999). A língua é um
dos principais elementos de diferenciação étnica, embora não seja o único.
171
conforme Fausto (2000), que os sistemas sociais indígenas existentes às vésperas da
conquista não estavam isolados, mas articulados local e regionalmente. Ao que tudo
indica, vastas redes comerciais uniam áreas e povos distantes. Movimentos em uma
parte produziam efeitos em outra, por vezes a quilômetros de distância. O comércio, a
guerra e as migrações articulavam as populações indígenas do passado certamente de
um modo mais intenso do que observamos hoje.
172
Estudar uma determinada região significa compreender um mar de relações,
com muitas interações e interpretações possíveis, e ao tratarmos do patrimônio
arqueológico os seus artefatos nos apresentam elementos que podem ser considerados
como legados de culturas antepassadas. Heranças culturais podem complementar
determinadas narrativas bem como contribuir para desfazer equívocos na própria
história.
173
natureza não renovável destes recursos torna visível a insubstituível relevância de seus
contextos, valores que não podem ser medidos monetariamente; a preservação dos
vestígios arqueológicos é considerada como parte da própria estratégia de fomento aos
valores locais.
174
é de que algumas parcelas do território não apresentaram condições de visibilidade
suficientes para garantir que se julgue a inexistência de materiais arqueológicos pré-
coloniais.
175
Figura 3 – Ponta de projétil com aleta e pedúnculo em basalto (esquerda) e ponta de
projétil em quartzo hialiano (direita), acervo do Museu da Família Colonial, Blumenau.
14 Termo que designa uma árvore de madeira de lei preta, resistente e frondosa. O termo
original do Tupi Guarani significa: caab (árvore) e una (preta).
176
Figura 4 – Lança (Kalá) Laklãnõ/Xokleng com a ponta confeccionada em aço, acervo do
Museu da Família Colonial, Blumenau.
Ainda, não podemos afirmar com certeza sobre a origem e autoria das
pontas de projétil encontradas em grande quantidade no município de Blumenau
(Figuras 5). O desafio que se apresenta é determinar se esses artefatos líticos foram
confeccionados pela Tradição Umbu ou grupos Jê.
177
processo contínuo, foi empurrada e encurralada no território pelas populações Jê, e
de alguma forma sendo absorvidos pela sua cultura (NOELLI, 1999, CORTELETTI,
2013). É uma discussão que ainda se encontra em aberto.
Figura 5 – Pontas de projétil coletadas no município de Blumenau em locais diversos,
acervo do Museu da Família Colonial, Blumenau.
Considerações finais
Essa pesquisa é uma contribuição aos assuntos até então pouco explorados
na cidade de Blumenau referentes aos grupos Jê, sua cultura material e identidade.
Um dos objetivos foi trazer à tona a discussão, ainda muito pouco explorada, sobre
a ocupação pré-colonial desses grupos na região da pesquisa. De maneira alguma é
nossa pretensão encerrar o tema, pelo contrário, julgamos necessário novas pesquisas.
Pois pouco ainda se sabe sobre como se deu a ocupação dos grupos Jê no território que
hoje é este município. Quanto à escolha do método aplicado em campo, consideramos
que uma pesquisa com esse objetivo ainda não havia sido realizada no município, no
que diz respeito a busca de informações que levassem a caracterizar os locais que ainda
pudessem ser encontrados objetos da cultura material desses grupos e, ainda, indagar
junto aos entrevistados o que pensavam sobre esses artefatos. Mesmo a pesquisa
tendo uma abrangência reduzida, não impediu de apresentar resultados positivos
quanto à existência de objetos da cultura material de grupos pré-coloniais. O que nos
leva a presumir, que em futuras pesquisas, uma quantidade considerável de material
arqueológico ainda possa ser encontrada.
178
Dialogando com os moradores do município para perceber o que compreendem
a respeito desses objetos indígenas, qual o significado que se apresenta aos mesmos,
houve consonância, entre todos, de que esses objetos ligam a um passado distante, com
seus artesãos já extintos. São conhecidos como objetos dos “bugres”. E associam os
“bugres”, àqueles que intimidavam os seus antepassados.
179
também enfrentaram os grupos Kaingang. Nesse contexto, não é impróprio se usarmos
a palavra genocídio, pois o Governo, naquele momento, tinha conhecimento do que
estava acontecendo, e autorizou o uso da força para a solução do “problema”, onde os
assassinatos eram entendidos como prática justificável.
180
fatos, é muitas vezes fundamental para a compreensão da sociedade que construímos
e das pessoas que nos tornamos. Infelizmente, ainda, se opta por não considerar as
construções desses grupos dentro do quadro histórico da formação do Brasil.
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184
Relações familiares no ofício de benzer: narrativas dos
praticantes em São Miguel das Missões/RS
186
A transmissão é marcada, nas palavras do autor, como elemento chave
do processo familiar, do qual se compartilham e sustentam as representações
vivenciadas e modeladas pelo grupo. Muito do aprendizado não é, como bem
explica, ensinada de forma direta, sendo endossado por intermédio da convivência,
observação e significação informal entre seus membros. Assim sendo, Bordieu
(2001, p. 09) defende que a produção simbólica produzida culturalmente é sistema
de comunicação e conhecimento que estrutura as realidades numa ordem lógica
ao coletivo. Desta maneira, segundo o autor, cumpre-se ainda uma função política
por meio dos sistemas simbólicos produzidos, ao passo que os mesmos impõem
ou legitimam relações de poder e dominação de um grupo perante outro, expondo
assim interesses que definirão as posições sociais das relações estabelecidas entre os
indivíduos e coletivos.
187
suas experiências e projetam perspectivas do futuro, ajustando sua identidade no
momento em que rememoram o passado.
1 São Miguel das Missões tem origem no antigo povoado de São Miguel Arcanjo, datado
de 1687. Hoje, município do Rio Grande do Sul, conta com uma população de 7.421
habitantes, detentor do único Patrimônio Cultural da Humanidade do sul Brasil, declarado
pela UNESCO em 1983. Embora a cidade seja conhecida por esse patrimônio, com
intensa atividade turística pela região das missões, o ofício dos benzedores é praticamente
desconhecido pelos visitantes de outras cidades, estados e países que passam pela localidade
para conhecer o Parque Histórico Nacional das Missões. (SILVA, 2014a).
2 Para maiores informações sobre essas pesquisas, consultar: SILVA, 2014a; SILVA,
2014b; SILVA, COLVERO, KNACK, 2019.
188
rememorados na atualidade, a fim de vislumbrar através da oralidade marcas
produzidas assim como as influências em cada indivíduo em sua formação identitária
enquanto benzedor. Em entrevistas realizadas procurou-se a produção de uma escuta
que contemplasse as realidades vivenciadas por sujeitos advindos, em sua grande
maioria, de localidades interioranas da região missioneira e extrair dos mesmos,
memórias que representem marcas de suas vidas.
189
a acompanhar o mesmo nas atividades vindo a ser seu braço direito nas ações do espaço
de fé então criado. Relata que parou com este ofício após se casar e ter que se dedicar
ao marido e seus seis filhos. Turíbio, que segundo Rosa, dentre outras coisas, benzia
para lavoura e pragas, era solicitado por muitos na localidade. Essa referência aponta ao
ambiente vivido pela entrevistada e sua família na época, quer seja, a de uma localidade
interiorana e do trabalho na agricultura basicamente para a subsistência.
Romilda traz relatos de uma realidade onde a infância inexiste. Sua mãe falece
aos 42 anos de idade deixando três filhos pequenos para serem criados pelo pai, que
igualmente ao caso de Rosa, era rígido e violento na criação das crianças.
190
ressignificação de memórias dolorosas das quais Romilda não sente falta na atualidade.
A reconstrução memorial destes fatos é, segundo Candau (2012, p. 09), mais do que
uma tentativa de reconstrução fiel do passado, mas o enquadramento destes a fim de
alcançá-los quando necessário bem como de conviver com os mesmos na atualidade.
Assim, uma nova imagem pode ser construída, incluindo ou excluindo elementos que
modelam as identidades dos indivíduos (CANDAU, 2012, p. 16). Como bem lembra o
autor, assim como memórias auxiliam na construção de identidades, também podem
contribuir para sua desconstrução devido a cargas emocionais fortes que podem ser
entendidas como reminiscências de um passado que não cessa, pode até ser silenciado
em alguns momentos, mas transformações do presente podem fazer tais lembranças
aflorarem, ressignificadas por novas noções, novos valores que confrontam referenciais
identitários, desestabilizando narrativas de vida.
Romilda se faz benzedeira desde os seus trinta anos de idade e inicia sua
atividade após um câncer do qual teria se curado após súplicas a Deus. Apesar de
ter buscado suporte médico científico bem como realizado cirurgia para a retirada
do tumor que lhe afetava a mama, conta que seus pais eram benzedores. Ambos
praticantes do espiritismo a teriam incentivado a aprender o ofício, mas a mesma
relutante expressava aos mesmos que tudo aquilo era “amolação e que desejava
aprender a trabalhar”.5 Como ponto marcante em sua vida relata ainda que foi
praticamente forçada a casar:
Romilda: Foi meu pai que queria e naquele tempo era o pai
que mandava e não tinha de não querer.
Juliani: Com que idade foi isso?
Romilda: Com dezoito anos. Era o ritual daquilo, todos.
Tinha que sair de casa (ROMILDA DE MORAES, 2017).
191
Caibaté/RS para a localidade de Carajá, interior do município de Entre-Ijuís/RS, onde
parou de benzer. Possuía residência se localizava distante de outras, o que dificultava
o convívio e as relações interpessoais.
192
ao trabalho, recursos financeiros ou da inexistência de escolas. Desenvolve assim,
como já dito antes, um enquadramento de memórias com a qual possa conviver
atualmente, evitando, por exemplo, sofrimento. Ao mesmo tempo, contextualiza a
educação existente à época de sua infância, onde livros e manuais são utilizados como
base da educação de crianças e jovens, cenário este onde os profissionais existentes
para atuação no ensino eram praticamente inexistentes. Reflete assim, uma sociedade
de poucos letrados, onde o analfabetismo apontava altos índices no país.
193
digna”, o que na atualidade seria diferente, onde os mais novos não teriam o mesmo
respeito aos mais velhos. A violência caracteriza assim o meio pelo qual a educação
se efetivava, elemento presente também nas narrativas e memórias de outros sujeitos
(Laídes de Oliveira Leite, 2017, Aureliano José Jardim, 2018 e Alzira de Oliveira Leite,
2018). Cipriano transita com sua narrativa entre passado e presente, remontando o
tempo em busca de respostas à suas inquietações. Demonstra ao mesmo tempo uma
tentativa de superação do sofrimento, colocando as marcas que dela são resultado no
passado como autoridade e referência em sua vida no presente.
Por ter começado a trabalhar aos oito anos de idade para ajudar o seu pai a
“trazer o dinheiro para a mãe”, Cipriano não frequentou a escola, retrucando para
isso que:
Cipriano: A pessoa pra ser inteligente não precisa de
grande escolaridade, pelo menos no meu modo de pensar.
A pessoa pode não ter estudo, mas é inteligente, tu não
consegue passar a perna nele ou ser manipulado. A pessoa
não tem estudo, mas tem uma boa cabeça (CIPRIANO
DORNELES, 2017).
194
onde aspectos de sociabilidade através do trabalho aparecem como fio condutor das
relações familiares:
Laídes: No sábado nós varria tudo os terreiro e fazia
limpeza, matava porco, matava galinha, era coisa mais linda
do mundo pra mim era o sábado! Natal então a gente nem
sabia! A mãe dizia “essa semana é natal crianças! Temos
que lidar com as bolacha”. Tudo caseiro mulher, tudo, coisa
mais boa, que vida! A gente era pobre, feliz, mas não sabia!
(LAÍDES DUTRA DA SILVA, 2017).
Há também aqueles que diretamente manifestam que sua infância foi boa,
como no caso de Ordonesa Antunes Martins:10
Ordonesa: Foi boa né? (silêncio) E graças a Deus que até
agora tudo foi bom pra mim, sempre lutando, ajudando,
trabalhando numa casa ou outra (ORDONESA ANTUNES
MARTINS, 2018).
195
trabalhar em uma fazenda onde não existia escola perto, não sendo assim a educação
escolar temática em sua vida.
De uma família com doze irmãos, sua mãe que também era benzedeira,
falece aos quarenta anos de idade vítima de câncer. Ordonesa fica com o pai e os
irmãos os quais auxilia na criação. Sua vida de trabalho necessita ser mantida até a
atualidade, onde mesmo com oitenta anos de idade e aposentada, relata que quando
pode trabalha como doméstica em uma casa de família. Reproduz, portanto, a prática
que sempre necessitou realizar ao longo da sua vida: o trabalho, onde ficar parada,
segundo suas palavras, “faz mal (...) e não consigo”. A superação das dificuldades é
também manifestada quando narra que:
Ordonesa: Depois que morreu meu marido fiquei só eu
pra trabalhar e o gurizinho era pequeno e eu levava ele no
bercinho e botava ele na sombra na casa da mulher que eu
ia trabalhar. Daí eu ia lavar roupa, trabalhar, limpar a casa
pra ela. E assim nós vivemos. Mas graças a Deus nunca me
faltou nada na minha casa, sempre com o congelador sempre
cheio de tudo que era coisa de comer. Graças a Deus nós
trabalhava (ORDONESA ANTUNES MARTINS, 2018).
196
Considerações finais
Referências
197
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7.ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5,
n. 10, 1992, p. 200-212.
SANCHIS, P. Cultura brasileira e religião... Passado e atualidade... Cadernos Ceru,
série 2, v. 19, n. 2, dezembro de 2008.
SILVA, J. B. da. Benzimentos: estudo sobre a prática em São Miguel das Missões
(RS). Santo Angêlo: FuRI, 2014a.
SILVA, J. B. da. Benzimentos: estudo sobre a prática em São Miguel das Missões
(RS). Dissertação (Memória Social e Patrimônio Cultural). Pelotas: Universidade
Federal de Pelotas, 2014b.
SILVA, J. B. da; COLVERO, R. B.; KNACK, E. R. J. Percepções de vida e de morte
na prática dos benzimentos: alteridade, significados e imaginários nas relações de
cura. In: SANTOS, Amanda Basilio; BRAHM, José Paulo Siefert. (orgs.). Morte e
simbolismo na cultura ocidental. Pelotas: Basibooks, 2019.
Fontes orais
Cipriano Dornelles. Entrevista realizada em São Miguel das Missões, 27/12/2017.
Jovencilio do Nascimento. Entrevista realizada em São Miguel das Missões,
26/03/2018.
Laídes Dutra da Silva. Entrevista realizada em São Miguel das Missões, 19/06/2017.
Marlene Machado Cassiano. Entrevista realizada em São Miguel das Missões,
31/12/2017.
Ordonesa Antunes Martins. Entrevista realizada em São Miguel das Missões,
26/03/2018.
Rosa Maria Cortez. Entrevista realizada em São Miguel das Missões, 27/12/2017.
198
A feijoada de Ogum: ancestralidade, memória e patrimônio
no Ilê Axé Ogunjá
Introdução
Para Prandi (2005, p. 21) “os candomblés baianos das nações queto (ioruba)
e angola (banto) foram os que mais se propagaram pelo Brasil, podendo hoje, ser
encontrados em toda parte.” A observação de Prandi é importante para nosso
estudo, na medida em que nossa investigação foca-se na memória presente nas
relações sociais de um terreiro de origem angola e influências keto. Este terreiro
localiza-se na cidade de Gravataí, Rio Grande do Sul, tendo como autoridade maior
o Pai Paulinho de Ogum Xoroquê. Tal terreiro, pelas características mnemônicas,
rituais e doutrinárias apresentadas, não reproduz o batuque, dominante no estado,
apresentando um complexo cultural próprio. Neste complexo ritual e doutrinário o
Candomblé compõe-se com o Batuque rio-grandense, bem como com a Umbanda.
Presença importante neste complexo vem da presença da Mãe de Santo Glória de
Oxum, Ialorixá de Pai Paulinho. Mãe Glória de Oxum era natural de Belém do
Pará, emprestando ao complexo cultural e religioso de Pai Paulinho a influência do
Tambor de Mina. A mesma Mãe Glória, posteriormente, radicou-se em Salvador,
Bahia, legando a Pai Paulinho o fundamento da Nação Angola, como é praticado nos
Candomblés baianos. A isso se soma a presença simultânea de tradições na Nação
ketu, legadas pelo Babalorixá Odecy de Logun Edé, atual Babalorixá de Pai Paulinho,
o qual substituiu a Ialorixá Gloria de Oxum, a partir do seu falecimento em 1992.
200
O terreiro é visto como um lugar que busca a preservação da memória e
do reconhecimento contínuo para o não esquecimento do Candomblé enquanto
patrimônio cultural material nacional, Barros (2014, p. 13). Esses espaços são
encarados como “uma associação liturgicamente organizada, em cujo espaço se dá a
transmissão e aquisição dos conhecimentos de uma determinada tradição religiosa
[...]” e “com regras específicas baseadas no parentesco mítico, no princípio da
senioridade e na iniciação religiosa”.
Uma característica muito marcante deste sistema cultural próprio que ajuda a
distinguir o Candomblé de outras religiões de culturas míticas é o seu caráter ágrafo e
alicerçado na memória e na ancestralidade. Prandi (2005, p. 20) corrobora ao afirmar
que no Candomblé a oralidade impera, pois para ele “o tempo é circular e acredita-se
que a vida é uma eterna repetição do que já aconteceu num passado remoto narrado
pelo mito”.
201
reforça que “as noções de tempo, saber, aprendizagem e autoridade são as bases do
poder sacerdotal no Candomblé”.
202
terreiro, logo, a um sistema cultural próprio e em permanente em construção. Diante
disso, “[...] parte-se da premissa que a cultura está em constante evolução, modificando-
se, mestiçando-se, e que o resultado desse processo traria o patrimônio cultural do
futuro” (ABREU, 2003, p. 84).
203
instrumento de reconhecimento oficial da riqueza e do enorme valor do legado de ancestrais
africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade.’’
“Os bens imateriais não só são de difícil definição, mas também só têm sentido
se significarem prática regular (OLIVEN, 2003, p. 82). Portanto, criar instrumentos
que contribuam para o reconhecimento das práticas do Candomblé como Patrimônio
Cultural Nacional e que valorizam as tradições afro-brasileiras como representações
simbólicas regionais foram aspectos ancorados na produção deste estudo teórico.
Todas estas contribuições corroboram para a compreensão de que cada Candomblé
possui suas ressignificações evidenciadas na memória de seus ancestrais. Cada terreiro
apreende seus sistemas de símbolos próprios, considerando suas tradições e crenças
oralmente transmitidos. Destacando que muitas destas representações simbólicas
acabam se perdendo com a tempo, toda proposta que auxilia concentração e valorização
do “saber fazer”, mesmo que ressignificado pelo tempo, corrobora para a preservação
das raízes ancestrais que, por sua vez, contribuem para a construção da memória no
presente e no futuro.
Diante deste contexto, a festividade dedicada ao orixá Ogum no Ilê Axé Ogunjá
trata-se de uma homenagem ao sacerdote do terreiro, Pai Paulinho, e sua Ialorixá já
desencarnada Glória de Oxum. A Feijoada de Ogum foi criada por Pai Paulinho devido
à data comemorativa do orunkó do seu santo, realizado por sua Ialorixá. O ritual de
orunkó configura-se como um dos rituais mais importantes na vida de um adepto do
Candomblé que recebe a manifestação do orixá. É um ritual de nação Kêto, onde o
orixá pode ou não gritar seu nome no meio do salão em frente a todos os convidados.
204
Pai Paulinho relata que orunkó significa o nome do orixá e traz todo fundamento e
dedicação empreendida na feitura do orixá no terreiro (DIÁRIO, 2018).
205
A Fotografia 01 mostra o ritual da festividade “Feijoada a Ogum” em que
seis yabás (mulheres) do terreiro carregam, sob forma elevada, elementos que serão
servidos à mesa montada em meio ao salão ao orixá Ogum. Dentre esses elementos
destacam-se: água, vinho, feijão vermelho, farofa, louças brancas, eni (esteira).
Fotografia 02 - Ritual de preparação à mesa com yabás para servir a Feijoada de Ogum.
206
Fotografia 03 - Ritual de confirmação ao cargo de Ekédi à Dandara de Oxum e
fornecimento de faixa.
207
Fotografia 04 - Ritual de confirmação ao cargo de Ekédi e fornecimento da peneira.
208
Fotografia 05 - Ialorixá Ceny de Oxum e Babalorixá Paulinho de Ogum Xoroquê.
209
Conclusão
Referências
210
MUNANGA, K. Origens africanas do Brasil Contemporâneo. Histórias, Línguas,
Culturas e Civilizações. São Paulo: Global, 2009.
OLIVEN, Ruben George. Patrimônio Intangível: Considerações Iniciais. In: Abreu,
Regina e Mário Chagas. Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos. DP&A.
Rio de Janeiro: RJ, 2003.
PRANDI, R. Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
VOGEL, A.; NELLO, M. A. da S.; BARROS, J. F. P. de. A galinha D’angola: iniciação
e identidade na cultura afro-brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
211
Ensaio sobre o funcionamento dos discursos de vida e de morte
nas narrativas dos patrimônios: desafios da memória
Este texto é uma experiência de ensaio. Uma escrita que revela minha relação,
em primeira pessoa, com o tempo presente e com a consciência da vida precária,
sua finitude ou da fragilidade humana. Ao escrever, a vida se faz sentida, refletida,
ressignificada. Concordo com as reflexões de Jorge Larrosa (2005) quando da
conferência de encerramento do evento Michel Foucault: Perspectivas, em 2004, na
Universidade Federal de Santa Catarina, publicada no ano seguinte. Naquela ocasião
ele disse:
Que haya alguien dentro de nuestra forma de escribir, de
nuestra forma de pensar, de nuestra forma de vivir. Sea la
que sea. Que mantengamos al menos la mínima dignidad
de escribir sin mentir y sin mentirnos, de pensar sin mentir
y sin mentirnos, de vivir sin mentir y sin mentirnos. En un
presente cada vez más difícil y nunca garantizado. En una
distancia crítica cada vez más problemática y más escéptica
pero cada vez más libre. A la vez en singular y en plural.
Escribiendo. Pensando. Viviendo. Siempre en devenir.
Ensayando. De otro modo. Quizá la lección de Foucault
sea, en definitiva, una lección moral, como todas las que
valen a pena. Algo que tiene a ver con la verdad de un
constante ejercicio de sí en la escritura, en el pensamiento,
en la vida. Algo que tiene que ver con la honestidad y con la
generosidad. Algo que tiene a ver con el ensayo (LARROSA,
2005, p. 142).
214
patrimônios se questiona o que eles comunicam? Que memórias fazem durar ou
esquecer? Entendendo as narrativas de memórias como uma tessitura de lembranças
no tempo, orquestrado em um jogo político e os discursos como os sentidos e ou
significados que são mobilizados pelas narrativas. Algo que funciona nos arranjos
sociais no dizer das narrativas. Essas questões são mediadas sobretudo no diálogo
também com Asman (2016); Halbwachs (1990) e Candau (2011).
****
215
sequencial no presente de um suposto passado que nunca cessa tem que ver com
essa relação de vida e morte. Em alguns casos, as políticas de patrimônio insistem em
manter uma vida que não é mais a vida do “lugar de memória”, mas aquilo que ele se
tornou pelo trabalho da História. Quando o bem em evidência escancara a finitude
de uma funcionalidade social, não existe mais em sua função social no passado e as
memórias sobre ele não são mais comunicadas entre os sujeitos do lugar. Nesses casos,
a história fixa uma memória para o bem e explica a sua importância a nova geração que
não se relaciona mais com aquele passado. Os lugares possuem um tempo da memória
que é finita, enquanto a preservação patrimonial evoca na História a fixação de uma
narrativa técnica que justifica a preservação do bem. Nora (1993, p. 12) denuncia o
impacto da História sob os lugares franceses, ele diz que “o tempo dos lugares, é esse
momento preciso onde desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade
de uma memória, para só viver sob o olhar de uma história reconstruída”.
O tempo de vida dos lugares acompanha a memória das vidas das pessoas.
E essas memórias, como bem demostrou Maurice Halbwachs (1997), sobrevive na
consciência social e na experiência de socialização dessas memórias. A fora disso,
a História fixa um tipo de memória aos lugares quase como uma continuidade de
um passado que muitas vezes não faz mais sentido as novas gerações e na dinâmica
comunicativa da vida. A relação de morte desses patrimônios é duplamente
anunciada, na primeira vez porque o bem perdeu sua função social e na segunda vez,
por apenas fixar um sentido de passado que não cessa de anunciar sua morte porque
não dialoga com o tempo presente.
216
na forma como se mostram hoje. De outra forma, os jovens apresentaram uma relação
simbiótica com o lugar, especialmente os bens naturais, uma dependência existencial
e de sustento.
Fazer viver ou fazer morrer um patrimônio foi tema também das reflexões de
Mota (2016) ao analisar as políticas de seleção, organização e gestão de um arquivo
institucional. O termo “arquivo morto” foi ressignificado por ela quando defendeu
que organizar fontes históricas e disponibilizá-las para pesquisa com uma perspectiva
hermeneuta, ou, entendendo as práticas metodológicas dos pesquisadores que
apostam nos vestígios sutis, nos traços furtivos dos registros, traz vida para o arquivo.
As narrativas dos arquivos, assim como as dos demais patrimônios são impregnadas de
significados de morte e de finitude. Porém, ela propõe repensar os sentidos de arquivo
trazendo-o à vida, oferecendo aos pesquisadores possibilidades de pistas acerca desse
passado supostamente importante. Ela vai denunciando algumas técnicas arquivísticas
que acabam por promover uma nova morte ao documento que já não possui usos nos
seus locais de origem.
Ou seja, tanto Aviz (2013) quanto Mota (2016) denunciam à sua maneira o
patrimônio que emerge na morte da função social de um bem, mas eles anunciam
a necessidade constante de atualização das relações de pertencimento no cotidiano
das vidas das pessoas sob o risco de se tornar novamente morto. Quando Aviz
(2013) anuncia que os jovens possuem pouco conhecimento acerca dos patrimônios
culturais no Morro do Amaral e Mota (2016) se inquieta com o sentido de morte
dos arquivos, facilmente se pensa com eles a necessidade de ações de Educação
Patrimonial. É indiscutível a necessidade de atualizar os mais jovens sobre as riquezas
da experiencia e dos tesouros do passado sob pena do presente se transformar em um
puro agora sem a potência de perspectivas de futuros possíveis. Todavia, essas práticas
educativas são também reveladoras da presença de uma morte do patrimônio e o
desejo desesperado de invenção de novas vidas simbólicas e imaginadas.
217
Essa foi também a conclusão da dissertação de Lacerda (2016) e transformada
em livro em 2018. Ela mostra as políticas de patrimônio do Iphan do Mato Grosso e
deixa as reflexões de que a Educação Patrimonial; a participação das pessoas e grupos
nos espaços de memória, a inclusão participativa nos comitês de acervos e de gestão
do patrimônio são iniciativas que, em última instancia, se configuram lutas para a
construção de narrativas de vida para e no patrimônio. São movimentos de resistência
a morte do bem a partir das implicações das pessoas e suas relações de atualização
constante das memórias, sentidos e significados do Patrimônio Cultural.
Mas, diante das ações dos grupos para a manutenção da vida no Patrimônio
Cultural, como a Educação Patrimonial por exemplo, observa-se que não existe uma
receita salvadora na “pedagogização” do patrimônio. A dinâmica de cada grupo com a
memória evocada sobre o bem é imprevisível e, por vezes, pode significar também uma
segunda morte para o Patrimônio Cultural. Pessoa (2016) observa essa complexidade
nos cotidianos ao redor da Fortaleza de São José em Macapá. A edificação da fortaleza
é tombada e passou por uma revitalização do entorno em uma aposta de exploração
turística. A função de segurança territorial de tempos passados não faz mais sentido para
as pessoas do lugar, no entanto existe uma afinidade de pertencimento de grande parte
da cidade reconhecendo na Fortaleza uma importância histórica e cultural. A História
anunciada por Nora (1993) serve como suporte de memória para uma continuidade
daquele passado. Esse fato não garante a morte dupla do lugar de memória porque
funciona paralelamente com atividades das políticas culturais no tempo presente.
Os grupos folclóricos e os movimentos sociais, especialmente o movimento negro,
ocupam esse espaço de memória e o atualizam para novos usos, incluindo o uso
turístico e comemorativos. Asmann (2016) afirma a importância que os símbolos têm
para a construção de da memória cultural de um grupo. Ele diz que os monumentos,
os objetos de museu, os patrimônios de forma geral desencadeiam novas significações
de memória que não é uma memória corporificada, mas cultural. Ele diz que o “papel
dos símbolos externos se torna cada vez mais importantes, porque grupo que, é claro,
não “têm” uma memória tendem a “fazê-la” por meio de coisas que funcionam como
lembranças [...]” (ASMANN, 2016, p. 119).
Mas algo vai se tornando complexo nas relações de ocupação desse lugar de
memória. Pessoa (2016) mostra como a dança Marabaixo, tradicional na cultura do
Macapá, serve para trazer narrativas de vida nos burburinhos no entorno da Fortaleza
de São José. Seja pelos grupos tradicionais, pelo turismo, pelo movimento negro, pelas
ações educativas de patrimônio com as escolas locais e ou famílias que passeiam pelo
entorno, conhecido como “Lugar Bonito”. São ações das políticas de patrimônio que
218
tornam esse espaço vivo no tempo presente. No entanto, o investimento educativo
para ensinar os mais jovens os passos da dança Marabaixo e o batida tradicional nos
instrumentos de percussão fracassam quando a narrativa esbarra nos sentidos da
necropolítica do sistema escravista e posteriormente capitalista. Os jovens não querem
reproduzir passos de danças miúdos de ex-escravos acorrentados e nem batidas
da tristeza reinventada em alegria da escravidão. Trata-se de uma narrativa que faz
funcionar um sentido de morte, da memória escolhida pela nova geração para ser
esquecida e, portanto, de morte daquele patrimônio.
219
o mercado exige que os produtos consumidos sejam produzidos sob os cuidados e
procedimentos inscritos no padrão de qualidade sanitário. Desta feita, o fazer artesanal
de uma época em que as regras sanitárias não existiam é inviabilizado para venda e, ao
incorporarem também as exigências sanitárias atuais na produção, o fazer tradicional
se torna uma retórica de mercado. Ou seja, o fazer artesanal, quase que extinto na vida
cotidiana do presente, diante da ameaça da perda se torna um patrimônio. No entanto,
sua nova função social se faz no Turismo, no mercado e se faz refém de regras que
promovem a morte do bem em uma segunda vez.
Talvez aqui, no diálogo com Avis (2013), tenhamos uma pista. Se os bens que
já não fazem mais parte da função social no cotidiano das vidas das pessoas, portanto
enquanto patrimônio são arbitrários na memória cultural do grupo, fossem postos em
par com aqueles que ainda estão no fluxo simbiótico da existência, que são potentes de
imaginação e criação de vida, talvez seriam capazes de produzir sentidos atualizados
220
de novas vidas possíveis. Talvez a Psicanálise ofereça ao campo do Patrimônio Cultural
pistas potentes para ser pensado a partir da vida. Essas reflexões são superficiais
e ligeiras, mas talvez aqui nasceria uma nova pesquisa e novas reflexões sobre essas
conexões vitais com o patrimônio.
Todos esses são exemplos de que o Patrimônio Cultural, que nasce diante
de uma perda ou da morte social de um bem, nem sempre garante a vida em suas
políticas. E não existe uma receita infalível, seja na Educação Patrimonial ou na
participação popular. Em cada caso, em cada grupo e contexto as relações políticas,
de poder e identificações com o patrimônio vai se estabelecer sob variáveis múltiplas.
Há que se ter coragem de verdade para conviver com o real da morte, assim como na
existência humana. Há que se ter coragem para atualizar um bem fecundando nele
novas significações e vidas imaginadas.
****
No segundo movimento desse ensaio faço então uma inversão dos meus
objetos. Esse deslocamento tem a ver com o modo experimental de vida acadêmica,
citado anteriormente e que tenho me proposto nos últimos anos. A intencionalidade
de auto formação me permite pôr em evidência a experiencia da própria vida no centro
de um tipo de reflexividade constitutivo das relações de identidade e identificações. Ao
experimentar privilegiar a vida, e a morte como parte dela, no centro da questão, todas
os demais objetos se deslocam/. Todos os desafios das políticas do patrimônio ganham
outra dimensão.
221
O segundo movimento que Albuquerque (2019) pontua é o reconhecimento
da oralidade e o caráter intangível dos patrimônios reconhecidos como bens da
humanidade. Isso está explícito no programa “Obras-primas do Patrimônio Oral e
Intangível da Humanidade”, de 1997, o que reforçou os debates e tensionamentos do
campo para, enfim, a conformação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial anos após. Na esteira desses debates no contexto da Unesco, o Brasil aprovou
na Constituição Federal de 1988, no art. 216, uma definição que inclui “os modos de
criar, saber e viver” e “as formas de expressão” com campo do patrimônio. Embora, o
país não tenha adotado o Programa Tesouros Humanos Vivos, alguns estados puderam,
baseados na Constituição Federal, aprovar políticas semelhantes, como foi o caso da
Lei de Registro do Patrimônio Vivo de Pernambuco e dos Estados de Alagoas, Ceará,
Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte que institucionalizaram o reconhecimento e
valorização das expressões da cultural popular e tradicional.
Albuquerque (2019) traz essas políticas no argumento que aposta nas formas de
vida humana e suas formas de expressão como patrimônios comuns da humanidade.
Esse argumento conversa com o campo da História, desde a década de 1970, que tem
reconhecido a ampliação de fontes históricas em todos os vestígios de ações humanas
no tempo. O desafio de contar uma história em que todas as pessoas comuns ou célebres
apareçam igualmente, mulheres, homens, de todas as cores e raças, operários, crianças,
prisioneiros, imigrantes ou nativos. Trata-se da mesma defesa pela qual fez do Museu
da Pessoa, SP, um exemplo de espaço de salvaguarda do patrimônio da história a partir
das Histórias de Vida das pessoas. Szymczak (2018) problematizou esse tipo de defesa
em sua dissertação. São patrimônios que nascem na relação com a vida das pessoas, no
reconhecimento da humanidade e de sua história como potencial de reflexão.
222
A vida no centro da questão do patrimônio nos exige novas perguntas para
evocar valores patrimoniais. Não seriam os Direitos Humanos um parâmetro? A
pesquisa de Lacerda (2016; 2018) traz dados relacionados a patrimonialização de
imóveis no centro velho de Cuiabá. Uma forma de vida que acontecia na rua do
comércio, mas que não se manteve no presente. A insatisfação dos donos dos imóveis é
evidentemente relacionada à especulação imobiliária, no entanto, nos mostra também
o fracasso desse tipo de política. Ao inviabilizar qualquer uso social na vida atual, os
imóveis se degradam e efetivamente morrem sem uso e literalmente tombam ao chão.
Se os Direitos Humanos, que incluem moradia e vida digna das pessoas estiverem no
centro das discussões, como poderiam ser as narrativas para preservar esse tipo de
patrimônio? Como poderiam ser as narrativas das cidades antigas como Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, hoje recheadas de favelas e moradias insalubres?
Os desafios do patrimônio seriam outros.
223
e evidencia as narrativas dos patrimônios vivos. Aquelas pessoas que os diversos
grupos preservam como detentores de uma memória, de um saber fazer, como os
Griôs, por exemplo. Szymczak (2018) explora o Museu da Pessoa e investiga os valores
patrimoniais das narrativas de vida. Ambas me colocaram a pensar nos discursos que
as narrativas de vida nos patrimônios põem em funcionamento. Que valores evocam?
Como poderia ser salvaguardados os patrimônios da humanidade como a água, a terra
fértil, o direito ao sol, o direito de se narrar como animal de linguagem, o direito de
ser escutado, o direito de habitar, o direito à saúde, o direito existencial da consciência
histórica? Como seria o Patrimônio Cultural mais comprometido com o valor a vida e
menos com os valores de mercados e da concorrência?
224
Sob essas perspectivas, o campo se abstrai do valor humano e permite por
vezes que crimes ambientais contra a vida e os patrimônios comuns da humanidade
se tornam possíveis, como em Mariana e Brumadinho. Talvez essa afirmação seja
muito forte e leviana, mas nunca saberemos, porque a condição do talvez não nos
mostre uma prova. As decisões políticas do campo, sobre o que, como e para quem
preservar um bem, não tem a vida humana como centro. A exemplo, das decisões
acerca de tombamentos de prédios para fins comerciais e turísticos, sob a condição
da gentrificação urbana. Os prédios são decadentes e ocupados por pessoas em
condições de miséria. Suas vidas podem estar em ameaças diante de um desabamento
eminente, mas são recolhidos quando o prédio é restaurado, mas apenas para se
transformar em um bem vendável. Essas são reflexões que têm regulado, em grande
medida, as perguntas e inquietações das novas investigações e produções do grupo
de pesquisa Subjetividades e (auto)biografias.
Referências
225
NORA, P. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Tradução de Yara
Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. [cópia digital]
RIBEIRO, R. R.; VENERA, R. A. S.; SILVA, A. L. Participação em banca de Marina
Duque Coutinho de Abreu Lacerda. O IPHAN e a invenção dos lugares de memória
em Cuiabá: as demandas e políticas de preservação do patrimônio histórico (1958-
2013). 2014. Dissertação (Mestrado em Mestrado em História) - Universidade
Federal de Mato Grosso.
VENERA, R. A. S.; CARDOSO, P. J. F.; COELHO, I.; MORAES, T. M. R. Participação
em banca de Monica do Nascimento Pessoa. “Não deixe que Morra”: o marabaixo
como elo entre patrimônio, memória e educação. 2015. Dissertação (Mestrado em
Patrimônio Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
VENERA, R. A. S.; GRAEFF, L.; MORAES, T. M. R.; GUZZO, L. C. S. Participação
em banca de Maureen Bartz Szymczak. Histórias de Vida e Patrimônio Cultural:
desafios do Museu da Pessoa. 2018. Dissertação (Mestrado em Patrimônio Cultural e
Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
VENERA, R. A. S.; VAZ, P. R. G.; MORAES, T. M. R.; COELHO, I. Participação em
banca de Wesley Batista Albuquerque. Esclerose Múltipla em Rede: A Circulação de
Afetos em Narrativas de Testemunho. 2019. Dissertação (Mestrado em Patrimônio
Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
VENERA, R. A. S.; COELHO, I.; CAGNATTI, S. S. Participação em banca de Adilson
José de Aviz. O patrimônio cultural do Morro do Amaral no imaginário dos
jovens: tensões possíveis. 2012. Exame de qualificação (Mestrando em Patrimônio
Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
226
Sobre os autores e organizadoras
Organizadoras
Autores
228
Eduardo Roberto Jordão Knack - É graduado e Mestre em história pelo Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Atuou como
professor na Universidade do Estado de Mato Grosso, na Universidade de Passo
Fundo, na Universidade Federal de Pelotas e na Escola de Ensino Fundamental
St. Patrick. Possui experiência em museus, tendo atuado como estagiário e
coordenador pedagógico do Museu Histórico Regional. Doutor em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, doutorado com período sanduíche na Universidade Nova
de Lisboa. Atualmente é Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de Pelotas.
229
em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2014) e mestra em Memória Social e Patrimônio
Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (2014). Graduada em História-
Licenciatura pelo Centro Universitário Internacional (2018). Atualmente atua na
assessoria acadêmica da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Campus
Cerro Largo-RS.
230
Pierre Ouellet - É professor aposentado do Departamento de estudos literários
da Université du Québec à Montréal. É membro da Société Royale du Canada,
escritor, poeta e ensaísta com obras traduzidas em várias línguas. Autor de
numerosos ensaios entre os quais L´esprit migrateur (2005), Le sens de l´autre,
éthique et esthétique (Montreal, 2003) Hors temps; poétique de la post-histoire
(Montreal, 2008).
231
Editora Unilasalle
editora@unilasalle.edu.br
http://livrariavirtual.unilasalle.edu.br