Você está na página 1de 232

Patrimônio e Memória:

narratividade, rememoração, reminiscência


Universidade La Salle
Reitor: Paulo Fossatti
Vice-Reitor: Cledes Antonio Casagrande
Pró-Reitor de Graduação: Cledes Antonio Casagrande
Pró-Reitor de Administração: Vitor Augusto Costa Benites
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão: Cledes Antonio Casagrande

Conselho da Editora Unilasalle


Andressa de Souza, Cledes Antonio Casagrande, Cristiele Magalhães Ribeiro,
Jonas Rodrigues Saraiva, Lúcia Regina Lucas da Rosa, Patrícia Kayser Vargas Mangan,
Rute Henrique da Silva Ferreira, Tamára Cecília Karawejczyk Telles,
Zilá Bernd, Ricardo Figueiredo Neujahr

Série Memória e Patrimônio


Coordenação: Cleusa Maria Gomes Graebin e Zilá Bernd
Conselho Editorial da Série: Charles Monteiro (PUCRS), Cleusa Graebin
(UNILASALLE), Miriam de Souza Rossini (UFRGS), Nádia Maria Weber Santos
(IHGRGS), Patrick Imbert (Université d´Ottawa), Zilá Bernd (UNILASALLE),
Maria Eunice Moreira (PUCRS), José Ribamar Freire (UNIRIO), Leila Beatriz Ribeiro
(UNIRIO), Evelyn Goyannes Dill Orrico (UNIRIO) e Diana de Souza Pinto (UNIRIO)

Projeto gráfico e diagramação: Editora Unilasalle - Ricardo Neujahr


Revisão final: Zilá Bernd

Editora Unilasalle
Av. Victor Barreto, 2288 | Canoas, RS | 92.010-000
http://livrariavirtual.unilasalle.edu.br
editora@unilasalle.edu.br
+55 51 3476.8603
Editora afiliada:
SÉRIE MEMÓRIA
E PATRIMÔNIO
UNILASALLE 11

Patrimônio e Memória:
narratividade, rememoração, reminiscência

Zilá Bernd
Cleusa Maria Gomes Graebin
Raquel Alvarenga Sena Venera
Organizadoras

Editora Unilasalle

Canoas, 2019
SÉRIE MEMÓRIA
E PATRIMÔNIO
UNILASALLE 11

Patrimônio e Memória:
narratividade, rememoração, reminiscência

Editora Unilasalle

Canoas, 2019
La vida no es la que vivimos
sinó como la recordamos para contarla.
Gabriel García Marquez
Sumário

Apresentação ........................................................................................... 9
As organizadoras

I - Memória

O tempo remanescente: resistência da história e persistência da


memória .................................................................................................. 15
Pierre Ouellet

Tempo e memória: recordação, rememoração e reminiscência em


narrativas das Américas ...................................................................... 31
Zilá Bernd, Tanira Rodrigues Soares

O presente do passado .......................................................................... 51


Jeanne Marie Gagnebin

Imagens silenciadas na poética de Rosângela Rennó ........................ 65


Nadja de Carvalho Lamas

Lembrança, esquecimento e rememoração: o caso da cidade de São


João Marcos (RJ) .................................................................................... 77
Heidi Ferreira da Costa, Maria Amália Silva Alves de Oliveira

A exclusão do universo feminino nas narrativas de cozinheiros


celebridades ............................................................................................. 91
Luciano Lunkes
II Patrimônio

Patrimonio inmaterial, relatos orales y herencias sociales. Reflexiones


sobre su registro .................................................................................... 115
María Laura Gili

O Vale dos Butiazais de Giruá: bem cultural ambiental do Rio Grande


do Sul ..................................................................................................... 131
Adriana Aparecida Felini, Cleusa Maria Gomes Graebin

A negação do Patrimônio Cultural Jê em Blumenau, Santa Catarina:


entre conflitos de memória e identidade ............................................. 159
Jonathas Kistner, Dione da Rocha Bandeira

Relações familiares no ofício de benzer: narrativas dos praticantes em


São Miguel das Missões/RS .................................................................. 185
Juliani Borchardt da Silva, Ronaldo Bernardino Colvero, Eduardo Roberto
Jordão Knack

A feijoada de Ogum: ancestralidade, memória e patrimônio no Ilê Axé


Ogunjá ................................................................................................... 199
Sandro Rodrigues da Silva, Artur Cesar Isaia

Ensaio sobre o funcionamento dos discursos de vida e de morte nas


narrativas dos patrimônios: desafios da memória .............................. 213
Raquel Alvarenga Sena Venera

Sobre os autores e organizadoras ......................................................... 227


Apresentação

No âmbito de PPG Memória Social e Bens Culturais sempre pensamos


Memória e Patrimônio de forma inseparável, pois ambos se retroalimentam. Assim,
é com muito orgulho que apresentamos o volume 11 da série Memória e Patrimônio,
criada em 2009 para fortalecer o que na época era somente o Mestrado Interdisciplinar
e profissional em Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário LaSalle
– UNILASALLE. Hoje temos um Programa de Pós-graduação com Mestrado e
Doutorado (PPG-MSBC) da Universidade LaSalle, sendo que essa série constitui-se
em fonte de documentação para o desenvolvimento de dissertações e teses e trocas de
experiências entre pesquisadores da área.

Muito nos orgulha essa efetiva parceria com o PPG – Patrimônio Cultural,
da UNIVILLE, bem como com o Programa de Pós-Graduação em Memória Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO – e com o Programa de Pós-
Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de
Pelotas, cujos estudos, desenvolvidos nas áreas da Memória e do Patrimônio, dialogam
incessantemente com as pesquisas realizadas no âmbito do PPG-MSBC/UNILASALLE.

Reunir esforços para apresentar nossas pesquisas contornando essas grandes


áreas que são Memória e Patrimônio, contribui fortemente para seu fortalecimento,
visando a tornarem-se referências nacionais nesses campos de estudo.

O livro conta com doze contribuições que foram dividias nas duas grandes
áreas: apresentamos seis capítulos em torno da Memória e seis em torno do
Patrimônio. Honradas estamos com a contribuição de dois colegas do exterior:
Pierre Ouellet, da Université du Québec à Montréal e membro da Société Royale du
Canada, e Maria Laura Gili, da Universidade Nacional de Villa Maria (Argentina).
Contamos ainda com a ilustre participação da pesquisadora e professora da
Universidade Estadual Campinas Jeanne Marie Gagnebin que, por seus estudos
e traduções da obra de Walter Benjamin, tornou-se referência obrigatória para
todos os que se aventuram pelas sempre surpreendentes sendas de Mnemosine.
Contamos, além dos professores pesquisadores do PPG-MSBC do Unilasalle, com
a sempre estimulante parceria de nossos congêneres, do PPG-PC da Univille, do
PPG-MS da Unirio, assim como a de colegas do Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPel. Esse entrecruzamento de saberes
vem enriquecer as grandes áreas de Memória e Patrimônio.

9
A primeira parte é composta por ensaios que giram em torno das noções de
Tempo e Memória, ou melhor dizendo, das relações entre Temporalidades e Memória.
O primeiro capítulo, de autoria de Pierre Ouellet, intitula-se O tempo remanescente:
resistência da história e persistência da memória, salientando a importância da
utilização das temporalidades Kairós e Aïon na literatura, já que representam,
respectivamente, o tempo do Acontecimento e a perspectiva do Eterno, sendo que
Cronos, o tempo cronológico, é apresentado como o tempo devorador, aquele que
nos leva à morte, seguindo as tradições mitológicas. Esse capítulo foi elaborado em
língua francesa, especialmente para o presente volume e sua tradução foi confiada
à professora Zilá Bernd para a versão para o português. A seguir, o capítulo Tempo
e memória: rememoração e reminiscência em narrativas das Américas, de autoria de
Zilá Bernd em parceria com sua orientanda, primeira doutora do PPG - MSBC,
Tanira Rodrigues Soares, estabelece o viés comparatista entre narrativas de filiação,
colocando em perspectiva o romance Quase memória de Carlos Heitor Cony, da
Academia Brasileira de Letras, e a narrativa autoficcional de Pierre Ouellet: La vie de
mémoire, apontando para as relações literárias interamericanas. O terceiro capítulo,
de autoria da professora Jeanne Marie Gagnebin, da UNICAMP, pesquisadora do
CNPq e reconhecida estudiosa e tradutora da obra de Walter Benjamim, intitula-se
O presente do passado. O quarto capítulo intitula-se: Rosângela Rennó: memória,
arquivo e narrativa visual, de autoria de Nadja de Carvalho Lamas, professora do
PPG-Patrimônio Cultural da Univille, com doutorado em Artes visuais pela UFRGS.
Trata-se de refinada análise da obra de Rosângela Rennó, artista plástica nascida em
1962 em Belo Horizonte. Ainda nessa primeira parte, que gira em torno da Memória
Social e também de suas relações inalienáveis com o Patrimônio, apresentamos a
pesquisa de Heidi Ferreira da Costa (Parque Arqueológico e Ambiental de São João
Marcos ) e de Maria Amália Aves de Oliveira que é atualmente Coordenadora do
Programa de Pós Graduação em Memória Social (PPGMS/UNIRIO). O capítulo
intitula-se: Lembranças, esquecimento e rememoração : o caso da cidade de São
João Marcos (RJ), vilarejo histórico destruído para dar lugar a uma hidroelétrica.
Concluindo essa primeira parte, o capítulo de Luciano Lunkes, doutor pelo PPG-
MSBC/Unilasalle, versa sobre as culturas da celebridade e da performatividade,
focalizando as autoficções de três renomados chefs de cuisine.

A segunda parte – Patrimônio – inclui seis capítulos. A contribuição de Maria


Laura Gili, da Universidad Nacional de Villa Maria, na Argentina, destaca aspectos do
patrimônio imaterial, assim como depoimentos orais, em razão de seu reconhecido
trabalho de pesquisa no campo da oralidade. Adriana Aparecida Felini e Cleusa
Maria Gomes Graebin, doutoranda e orientadora do PPG-MSBC/UNILASALLE,

10
relatam pesquisa no Vale dos Butiazais de Giruá, bem cultural ambiental do Rio
Grande do Sul. Também na área do patrimônio ambiental e cultural, Jonathas Kistner
e Dione da Rocha Bandeira da UNIVILLE, discorrem sobre A negação do patrimônio
cultural JÊ em Blumenau, Santa Catarina: entre conflitos e memória e identidade.
Nossos colegas da UFPEL trazem à tona narrativas da História Oral transcritas
no texto: Relações familiares no ofício de benzer: narrativas dos praticantes em São
Miguel das Missões/RS. O capítulo a seguir reporta desafiadoras reflexões no âmbito
da memória e da religiosidade afro-brasileira, em capítulo intitulado: A feijoada
de Ogum: ancestralidade, memória e patrimônio no Ilê Axé Ogunjá. de Artur Cezar
Isaia (UNILASALLE e UFSC) e de seu doutorando do PPG-MSBC/UNIASALLE,
Sandro Rodrigues da Silva. Para finalizar com chave de outro a presente edição da
série Memória e Patrimônio, Raquel Alvarenga Sena Venera, da Univille, desenvolve
inovador Ensaio sobre o funcionamento dos discursos de vida e de morte nas narrativas
dos patrimônios: desafios da memória.

Desejamos boa leitura. As organizadoras.

11
I - Memória
14
O tempo remanescente :
resistência da história e persistência da memória1

Pierre Ouellet

Le passé suit le présent comme son ombre. Peut-il le


devancer, le dépasser, bref, le doubler?2

Jacques Chardonne, Demi Jour.

O tempo não passa: ele resiste, insiste, persiste. Ele não tem apenas uma
existência; ele é também subsistência; ele não se contenta em viver, ele sobrevive.
A memória é a forma na qual ele perdura, na qual nós o suportamos, deveria dizer,
suportando-o como uma ferida, o tempo permanecendo em sofrimento como um
negócio não solucionado, suspenso para sempre, ao qual nós não nos resolvemos,
como as Shoah e os Goulag que conhecemos ao longo da história, cuja profundidade,
para não dizer o abismo, nunca é preenchido nem inteiramente esvaziado pelo
trabalho do luto que não cessamos de experimentar por longo tempo após.

Não há um “depois” mas um “durante” sem fim, do qual só medimos a


espessura quando avaliamos o peso da memória da qual nossos ombros carregam o
peso, não somente durante uma vida mas de geração em geração, a ponto de parecer
que a lembrança parece às vezes bloquear o futuro, o memorial se substituir ao
histórico, o tempo em sofrimento, para não dizer, em pane, o que volta sem que
voltemos, toma todo o lugar do que vem ou virá.

Rompemos com o tempo como o tempo rompeu conosco. Há penas na história


como há penas de amor, das quais nós não conseguimos nos curar, voltando sempre
aos mesmos temas, revirando-os em todos os sentidos, enrolado como uma bola
nesta espécie de vazio que elas provocam em nós, onde alojamos nossos remorsos e
nossas saudades, a ponto de não mais vivermos, mas giramos em volta desse cubo,
esse núcleo oco que forma o coração ausente de tudo aquilo que foi vivido por nós.

Nietzsche escreve que “A eterna ampulheta da existência será sempre virada

1 Tradução do francês por Zilá Bernd


2 O passado segue o presente como sua sombra. Poderá ele ultrapassá-lo, ou seja, duplicá-lo?
outra vez – e tu com ela, poeira da poeira” (2009, p. 7)”. Não é apenas para dizer
que vivemos em um “tempo afivelado”, que estamos literalmente “afivelados” pelo
tempo, aprisionados em seu círculo infernal, condenados a esposar os ciclos sem
poder sair, magnetizados por um núcleo imóvel de onde partem os inumeráveis
raios da memória graças aos quais a roda da História não cessa de girar, como a
ampulheta não cessa de se revirar. É também para nos lembrar que o tempo é um
renascimento, sendo reminiscência, ressurgência, lembrança de um nascimento que
não acaba, como se fosse um apelo de uma morte na qual ele se apagará, seu fim não
sendo o de desaparecer, mas de reaparecer sob um novo dia que a lembrança de suas
próprias origens lhe confere a cada volta sobre si mesmo, que a hiper memória em
que consiste permite-lhe de fazer, nos momentos mais cruciais de sua existência, os
das grandes reviravoltas que podemos chamar de revoluções, mesmo se o sentido
desta palavra tenha sido desvirtuado há muito tempo.
A palavra “revolução”, que descreve o tempo bem melhor que o termo “evolução”
ou “progresso”, os quais não sabemos bem onde nos levam, de maneira unidirecional,
irreversível, irrevogável, para um inelutável fim ao qual ele nos condena, como aquilo
que chamamos um dia de destino, a palavra “revolução”, como afirmei, na qual se
compreendem as palavras “volta” ou “voluta” assim como o adjetivo “findo”3, que vem
do latim revolvere que significa “girar para trás” ou “voltar-se”, não por nostalgia, na
melancolia própria do luto interminável, mas para dali trazer o ocorrido, mais do que a
lembrança (souvenir em francês), a sobrevivência ou o retorno do “primeiro momento”
ou do “instante original” no qual nada está ainda resolvido ou terminado (révolu),
acabado ou realizado...os “restos” do tempo, essa poeira de que fala Nietzsche, que a
memória não cessa de escavar , voltando ao final a ampulheta da duração, ocultando
em seu seio, como as cinzas da Fênix, seu renascimento, o que se pode chamar de
temporalidade “no estado nascente”, em seu surgimento, sua revolta ou sua insurreição,
para não falar de ressurreição ou de revivescência, que descrevem ainda melhor o tipo
de “volta” ou de “revolta” à qual ela dá lugar.
Yann Moix escreve em Rompre (Romper), que fala em aparência de uma
ruptura amorosa, mas descreve em profundidade esse tipo de irrupção do nativo
no mortal cuja história diz respeito, quer ela seja coletiva ou individual, pessoal
ou universal: “O passado é superior ao futuro. O passado é o lugar onde se nasce,
o futuro, o lugar onde se morre. Preferir o futuro ao passado, é preferir o que vai
morrer ao que nasceu. Amar o futuro é amar a morte. O passado não é nem estático
nem fechado. O futuro é limitado pela morte quando o passado permanece aberto,
escancarado, móvel, renovado, evoluindo; ele se mexe; ele surpreende; ele se espanta.

3 Révolu em francês.

16
Ele palpita. Ele não cessa de trazer os recém-nascidos, de publicar inéditos. O passado
é o único mundo no qual se podem fazer descobertas” (Moix, 2019, p. 39), graças à
memória, precisamente, que age, com a mesma força da imaginação para reavivar
esse “estado nascente” do tempo que não constitui nosso passivo, a pesada herança
de dívidas, de taxas, de encargos ou dívidas em atraso que pode-se atribuir ao que
se chama “dever de memória”, mas um verdadeiro ativo, uma infindável riqueza, um
fundo abissal de recursos ou uma fonte inesgotável de ressurgências de todo gênero
que nos permite reinventar o tempo a cada minuto, em se recuperando com as águas
vivas, que guardam uma memória ativa do surgimento originário graças ao qual o
tempo nos aparece, a temporalidade sendo um “aparecer” bem mais do que um “ser”,
de natureza espectral, fantomática, a exemplo da ficção literária, bem mais do que um
sendo da natureza empírica, ontológica a qual podemos tocar como um corpo sólido.

É uma forma de epifania, que só existe no seu surgimento na memória ou


na imaginação graças às quais nós a apreendemos mesmo sem compreendê-la, pois
ela nos resiste, subsistindo como uma sombra com a qual todas as nossas luzes se
chocam, o passado se apresentando por toda parte como se ele não estivesse em lugar
algum, difícil de fixar ou de situar porque ele está sempre passando e repassando , até
as camadas de esquecimento onde procuramos recobri-lo ou apagá-lo.

O tempo só existe passando: na passagem onde o passado não cessa de ir e vir


em seus limbos, seus labirintos, seu Hades ou seus infernos, porque ele não morre,
enquanto nunca estamos certos que o futuro vá nascer ou o presente sobreviver: “O
futuro não existe ainda. O presente já não existe mais: a única coisa que existe e não
cessa de existir é o passado. Ele é profundo, se compõe de estratos, de níveis, de
andares, de anfractuosidades, de meandros, de cavernas, e relevos. Só os idiotas têm
futuro. Eu tenho passado. Só tenho isso. É somente no passado que algo poderá me
acontecer”(MOIX, 2019, p. 40).

Só vivemos e existimos na persistência memorial daquilo que foi vivido, ao qual


voltamos cada vez que queremos ir para frente, que é uma maneira de voltar, de se re-
voltar, de tudo re-volucionar, em um sobrevoo de nosso tempo ou de nossa vida graças
ao choque energético que produz o contato entre a imaginação e a memória criadoras
que transfiguram o passado e o revelado. O tempo não se estende como o espaço,
que chamamos de estendido: ele tende e se distende, entre retenção e proteção, como
refere Husserl (1996), o depois só se situando em relação a um antes e inversamente,
imantado que ele é pelos dois polos do largo espectro que ele implanta, como o espaço
próprio do planeta pode ser pelo Norte ou o Sul, salvo se não houver continuidade
entre um e outro, como na contiguidade dos oceanos e dos continentes, mas choques

17
e perturbações, sacudidas e agitações que dão lugar a esses sismos que chamamos
de Acontecimentos, rupturas históricas como a Shoah, a Kolyma, Hiroshima cuja
lembrança é um “sobrevir” ainda para a memória que dela temos, onde elas persistem
não apenas no presente mas mais além do próprio tempo, ou existem somente no seio
de um longínquo passado onde seriam propriamente findas.

Elas não cessam de girar em torno de nós, de nos revirar em todos os


sentidos, de “re-volucionar” ou de “re-voltar” nosso sentido do tempo a ponto de
nos parecerem como recidivas, do adjetivo recidivus que designa “aquilo que volta”
como um boomerang, “aquilo que nos cai em cima” como uma falta, seu étimo vindo
do verbo cadere que quer dizer “cair”, ao qual o prefixo dá um valor iterativo : é o
que acontece repetidas vezes como um crime em série, de acordo com uma certa
cadência (do verbo cadere), segundo o que chamamos de caso (casus em que uma
coisa ou um acontecimento se declina em uma língua como o latim).

É o que Alain Fleischer demonstra em seu último livro Le récidiviste 4no qual
ele não se contenta em contar o caso de um criminoso culpado de crimes de repetição,
mas ilustra no próprio ato da narração ou da rememoração ao qual ele atribui o
caráter repetitivo de toda a história, criminal ou não, que é sempre a volta de um
tempo recalcado que retorna à consciência desde as profundezas mais inconfessáveis,
sejam ligadas ao encontro amoroso – como o livro de Yann Moix era no que se refere
à ruptura amorosa – ou às mudanças que a Mittleeuropa conheceu da metade do
último século onde se desenrolam os acontecimentos que ele nos faz recordar.

Fleischer escreve desde as primeiras páginas do romance:


No relâmpago de uma intuição repentinamente convincente,
mas talvez brilhante apenas de uma sedição fácil, passageira
e ilusória, improvisei a hipótese de que certos momentos
para sempre memoráveis, eleitos entre todos naquilo que
foi a vida de um ser, não podem não mais existir, o que
aconteceu não podendo cessar de acontecer de novo e sempre
, pois nós deixaríamos atrás de nós, fechados em alguma
estação decisiva da idade e da história pessoal, esses seres
dos quais nos afastamos pouco a pouco sem saudades e sem
remorsos, com uma leveza culpada, enquanto o destino faz
de nós indivíduos outros, de sucessivos estrangeiros a nós
mesmos, esquecidos, sem memória, simulando a fidelidade
a nossa própria história, mas nos tendo feito, várias vezes,
falsa companhia durante o caminho (p. 14).

4 Em português, O Reincidente (diz-se para os criminosos que voltam a cometer delitos).

18
Escapamos da mesma maneira que o criminoso fugitivo foge de seus crimes
e de suas vítimas como de sua sombra ou de seu passado, esse fantasma em que se
transforma, esse espectro que ele arrasta atrás de si, nas lembranças mais penosas
de sua vida, ainda mais se ele foge da polícia ou da justiça, à qual ele substitui as
leis da memória, o direito do passado sobre todo o presente e todo o futuro, como
faz o escritor que retém o tempo ao contá-lo, reiterando a presença obsedante da
cadência de sua narrativa e de seu fraseado, fazendo disso um caso, um caso de
espécie que ele declina em todos os sentidos até à insensatez, como acontece com
O recidivista/reincidente onde o presente e o passado moram em um mesmo espaço,
ou seja, a cidade de Brno na Moldávia, onde o narrador já velho realiza o encontro
com sua própria pessoa na idade de 16 ou 17 anos, no pós-guerra, no coração de
um desses países do Leste onde uma outra guerra, mais surda e mais traiçoeira, que
qualificaríamos de fria, iria em seguida nos assombrar.
Falamos de persistência retiniana para designar as imagens remanescentes que
o olho conserva uma vez que o objeto percebido tenha desaparecido. O remanescente
designa “o resto, o supérfluo, o alívio de uma refeição” ou coletivamente, “aqueles
que restam, os sobreviventes, os descendentes, os herdeiros”, como diz o Dictionnaire
historique de la langue française de Alain Rey, que não deixa de acrescentar que ele
deriva do verbo manere significando “restar, parar, passar uma estadia e permanecer”,
(de onde a palavra manoir em francês), ao qual o prefixo re- acrescenta um valor
mais uma vez frequentativo, iterativo, repetitivo, evocando a recidiva (recaída), à
qual toda narrativa adere a exemplo da própria memória, se julgarmos pela expressão
“morada memorial” à qual Frances Yates recorre para falar do caráter de retenção das
artes mnemônicas.
Remanescência e permanência mnésicas são análogas à persistência retiniana
na medida em que o que foge ou desaparece com o tempo deixa traços, restos,
relevos dos quais somos os herdeiros, os descendentes; esses restos permanecem na
consciência, mesmo adormecida, onde a voz narrativa os desperta como é o caso
de Le recidiviste5, esta narrativa que vê de olhos fechados sobrevivências reiteradas,
renovadas ou duplicadas no passado mais longínquo.
A imagem da cidade de Brno na Moldávia, que constitui o espaço histórico
e geográfico onde o acontecimento remanescente ocorre, a narrativa de Alain
Fleischer é esta “morada memorial” onde o tempo fica em permanência, mesmo que
pareça terminado há muito tempo, porque toda percepção narrativa é propriamente
reticular: ela retém em sua armadilha, sua trama ou sua rede, essa membrana do fundo
do olho designado pela retina, o que aparentemente já desapareceu, mas continua a

5 O reincidente.

19
perfilar-se nesta visão de um abaixo, após ou atrás que é o ponto de vista daquele que
conta os fatos e gestos de algum duplo que ele tenta prender em sua rede, cuja vida ele
“recidiva”, a vida com se ele fosse seu herdeiro, descendente, sobrevivente.

Fleischer escreve:
Em um espaço e um tempo que resistiriam ao folhear rápido
das páginas da existência sob um dedo impaciente e distraído,
se perpetuariam para sempre, nos prometendo até o êxtase
ou nos condenando ao desespero de revivê-las sem fim,
alguns momentos particulares, para sempre memoráveis,
pedaços escolhidos do que foi vivido (FLEISCHER, Le
récidiviste, p. 14).

Como sendo a espécie de estadia ou de morada verbal que é o livro, onde se


recolhem os restos e os relevos de sua própria vida ou a de um duplo, de uma sombra,
que parece ser uma espécie de “excedente” ou de “sobrevivente” de seu passado, pode
ser a figura emblemática do tempo que “folheamos”, virando as páginas da vida,
uma vez que as tivermos vivido, mas que guardamos perpetuamente no folhear das
páginas, em seu volume agora fechado, a imagem resistente, remanescente, retiniana
dos momentos ao mesmo tempo extáticos e desesperantes que nos aparecem com
tanto mais relevo quanto a rapidez com que desapareceram. Cada livro carrega uma
memória que o ultrapassa por todos os lados como uma casa ancestral retém entre
seus muros inumeráveis lembranças que só pedem para sair voando pelas janelas... se
tivermos coragem de abri-las, como se abre um livro e o folheamos página a página,
folheando aí seu próprio passado ao qual damos uma segunda vida ou um novo futuro.

Fleischer escreve ainda: “No sono e no inconsciente, não nos encontramos


prisioneiros de sonhos e de pesadelos recorrentes que nos perseguem para nos
proporcionar sempre delícias de um mesmo paraíso ou suplícios de um mesmo inferno?
nos confrontando sem interrupção e sem piedade àquele que recusamos ver em nós
mesmos?” Trata-se ainda do reincidente que repete sem parar os mesmos fatos e gestos
graças aos quais ele se torna o que é, até a narrativa na qual ele as reitera de uma forma
tal que possam perdurar, resistir e persistir mais do que ele próprio irá durar ou existir.

O tempo é o fruto de uma expansão ou de uma dilatação do instante


que Agostinho relaciona à distentio animi e Husserl ao caráter tencionado da
“consciência íntima” da temporalidade, seja a uma “distensão” ou um “aumento
de volume ou de superfície que sofre o corpo submetido a uma forte tensão”, como
dizem os dicionários, que nossa experiência ao mesmo tempo física e psíquica da
duração (durée) nos faz experimentar nesta retenção memorial vivida como um

20
prolongamento virtualmente infinito do passado em uma presença e um futuro onde
ele perdure, uma manutenção ou uma “origem” 6 sem fim, um tempo em potência ou
uma potência de tempo que se atualiza indiferentemente em um antes ou um depois,
como se fosse o prolongamento do instante em eternidade, do Kairos em Aion, para
falar como os gregos da antiguidade, ou seja, de um momento oportuno em uma
perenidade providencial.

Alain Fleischer fala de Prolongations (prolongamentos) como se nós vivêssemos


de ora em diante sobre um tempo emprestado, um tempo roubado, um tempo
suplementar, uma vez que a partida foi jogada, o resultado permanece definitivamente
em suspenso. Antoine Volodine fala de Terminus Radieux onde o fim irradia duplamente:
enquanto irradiação ou erradicação nuclear permanente e influência luminosa que nos
esclarece sobre nossa sorte ou nosso destino, à imagem dos dias radiosos que qualquer
revolução espera. Em resumo, o Reinado antes evocado por Rosenzweig para designar
o meio mítico ou o “outro tempo” mais do que o “outro homem” poderia advir na terra,
ou ainda no tempo messiânico imaginado por Benjamin para representar de modo
mais ou menos místico a história redimida – onde nossa vida nos seria devolvida, em
uma redenção que constitui uma autêntica liberação, uma verdadeira salvação como
diz o verbo latino redimere (de re- emere, que significa “comprar-se novamente” porque
nós já fomos vendidos, traídos, postos sob o regime da escravidão, por nossa entrada
na História) – esse Reinado e esse Messias, que aparece em um momento onde nada
reina, só podem se manifestar de maneira paradoxal, em uma fábula onde o tempo se
reinventa, assumindo a partir de agora sua dimensão ficcional e não apenas factual,
dando forma e força a seu futuro criador, e não apenas a um pseudo sentido, a seu
conteúdo histórico sempre destrutor, para não dizer exterminador.7

“Dar um saldo para fora da fila dos assassinos”, dizia Kafka, “não mais escrever a
história do ponto de vista dos vencedores, mas das vítimas”, desejava Benjamin, despertar
o “reincidente” que somos no seio da História em uma narrativa que metamorfoseia
os gritos e o ranger de dentes em um recitativo, uma melopeia ou um refrão onde
o ar do que veio antes, o canto primeiro, a chave original ressoem em perpetuidade:
não mais deixar o tempo nas mãos somente de Cronos, primeiro grande assassino da
cosmogênese, segundo Hesíodo, mas confiá-lo a outras formas de temporalidade como
Aion ou Kairos os quais somente a ficção ou a poiesis, no sentido forte do termo, pode
explorar em profundidade, e todas as suas dimensões, inclusive as mais inverossímeis,

6 Avenance em francês.
7 Ver Rosenzweig, Franz. L´étoile de la rédemption. Paris : Seuil, 2003. Coll La couleur des
idées. E Benjamin, Walter. Essai sur le concept d´Histoire. Paris : Payot, 2014.

21
como as que fazem do passado mais longínquo a passagem obrigatória em direção ao
futuro ou à retenção memorial do findo ou acabado; a distensão de nosso tempo em
uma prolongação sem fim, que tem o valor de uma autêntica revelação, não mais no
sentido do Apocalipse, como previa a escatologia própria às épocas históricas, mas no
sentido do Reino imaginado por Benjamin e Rosenzweig, onde o tempo reina e irradia
todas as direções em uma re-volução ou uma re-volta de cada instante na eternidade.

Há uma fábula do Tempo na qual as figuras que o encarnam foram deuses ou


heróis, bem antes de se tornarem conceitos filosóficos ou fenômenos cosmológicos.
Cronos, Aion e Kairos, os três primeiros nomes do Tempo, são ídolos e ícones, mais
do que ideias ou simples realidades: eles participam de um drama ou de uma tragédia
nas quais vivem um autêntico enredo, na origem das grandes mitologias da Grécia
arcaica, que continuam até hoje a nos assombrar.

Tudo começa por Cronos, filho de Urano, o céu, e de Gaia, a terra, que,
juntos não cessam de copular e de engendrar múltiplos deuses – Zeus, Poseidon,
Hades, Hera, etc. – depois numerosos Titãs, do verbo Teino que quer dizer “tenro
como uma arma, uma lança, um arco ou um escudo” ou “carregar a mão”, o que
anuncia a violência inerente a um dos mais virulentos entre eles: Cronos, o Tempo,
que Hesíodo descreve como “o mais bem armado” ou “ o mais terrível dos filhos” e
que é nomeado Cronos, “o de pensamento retorcido”. “Ele é tomado de ódio por seu
genitor”, esclarece o autor da Teogonia.

Sabemos que o pai, Urano, afeiçoado às cópulas de repetição com Gaia,


detesta toda forma de geração, de engendramento, de procriação e recalca assim sua
progenitura para o próprio seio da Terra-mãe, como se enterrasse seus rejeitados
desde seus nascimentos, os retornando ao humus desde o instante em que saíam
do ventre da mãe, reenviando-os à noite, desde que viram o dia, o que provocou,
evidentemente a cólera de Gaia, que reúne seus filhos como testemunhas e os chama
à vingança: Só Cronos, o de pensamento retorcido, lhe responde. “A enorme terra se
regozija, afirma Hesíodo que conta como “ela coloca nas mãos de seu filho uma foice
de dentes agudos [...]. O grande Céu vem, o persegue, trazendo a noite: em torno
da Terra, desejando o amor, ele se espalha e se alonga inteiramente. Mas o filho, em
sua emboscada, estende a mão esquerda e, de sua direita, toma a enorme foice de
dentes agudos e corta impetuosamente as partes genitais de seu pai, lançando-as em
direção ao futuro. Mas as partes escapam de sua mão. Com efeito, todas as partes
sanguinolentas que foram lançadas ao longe, a Terra as recebeu. Com o passar dos

22
anos ela (a Terra) engendrou as poderosas Erínias (ou Fúrias) e os grandes Gigantes,
resplandecendo no brilho das armas, tendo em suas mãos longos dardos” (HESÍODO
2014, p. 55-57, versos 174-187).
Eis o crime original, do qual Cosmos e História nasceram, engendrados pela
separação definitiva do Céu e da Terra, pelo Vazio criado entre eles pela castração de
Urano e a espécie de partenogênese sem fim que conduzirá Gaia a engendrar muitos
clones de Cronos, gerações e gerações de Gigantes e de Erínias. Possuídos por uma
mesma cólera que os leva a estender os braços como se lançam os dardos, para não
dizer a foice com a qual eles castram... decapitam, como se faz hoje --- espalhando
sangrentos detritos sobre o futuro, projetando-os até nós.
Cronos, o tempo vingador, é o primeiro de uma progenitura que encadeia
crime sobre crime, assassinato sobre assassinato, estabelecendo a Lei da História tal
como Anaximandro fixou desde o nascimento da filosofia: “Onde há para os seres
geração, é isso que gera também a destruição, segundo o que deve ser; pois eles
fazem justiça e reparação, uns aos outros, de sua mútua injustiça, segundo a ordem
do Tempo, em Anaximandro”.8
Nós somos estes Gigantes e estas Erínias que descendem de Cronos, com uma
arma na mão, um grito de guerra na ponta da língua com a qual projetamos ao longe
nossa fúria, nosso veneno, como antes o Tempo crônico projetou a semente de seu
genitor em pedaços ensanguentados que nos recobrem ainda hoje.
Mas nós não descendemos somente de Cronos: viemos também de Aion e
Kairos, que são um outro par de deuses, cujo objetivo não é o de perpetuar a guerra
entre o céu e a terra, através do ressentimento, mas o de tornar o céu propício ao solo,
o de fazer da terra uma protegida do céu.
Estas duas divindades são ligadas: elas marcam a relação complexa entre
o instante e a eternidade, que escapa à ordem sintática do encadeamento lógico
das causas e dos efeitos, senão dos fatos entre eles, que deu lugar ao desencadear
de violências que a História conheceu, e diz respeito à dimensão paradigmática da
temporalidade. A palavra paradeigma, que traduzimos por “modelo” ou exemplo,
originário do verbo para-deiknumi , que vem de “mostrar lado a lado”, “colocar em
paralelo”, “expor junto”, “com-parar”, “fazer aparecer em comum”, aparentado que é
de para-dexomai, que significa “receber de uma mão para outra”. Não estamos mais
na lógica do estender a mão com uma arma, conforme a etimologia do verbo teino,

8 Anaximandro. Fragments et témoignages. Traduzido e comentado por Marcel Conche.


Paris: PuF, 1991. P. 13-21. e

23
que deu origem à palavra Titã, nem “dar golpes”, mas receber algo em herança, como
exemplo ou modelo, para que possamos comparar, colocar em paralelo, como se
passássemos a testemunha no tempo com tanta facilidade quanto passamos a palavra
no diálogo... e isso, não apenas de uma geração à outra, de uma progenitura à outra,
mas entre congêneres, no lado a lado no âmbito de uma mesma época, de um mesmo
“instante” que valha pela “eternidade”..

Aion e Kairos são ambos representados alados, figurando assim a união entre
céu e terra, a origem e o fim , a fonte e o alvo, o Tempo não estando mais ligado à foice
com a qual separam-se e cortam-se as cabeças e os sexos para que reine o vazio sem
fim entre as águas de cima e as águas de baixo, vazio que não é possível preencher
sem “os pedaços sangrentos”, mas através do voo que permite ir e vir entre o mundo
celeste e o mundo terrestre, eternidade e instantaneidade, origem e fim, o abismo que
os separa podendo ser atravessado de um só golpe de asas.9

Por oposição a Cronos, que remete ao tempo da sucessão material, àquele da


ação dos corpos, ao tempo “extenso” ou extensivo que permite às coisas de se estender
de instante a instante no que chamamos de progresso ou evolução, Aion designa um
tempo intenso, intensivo, que remete ao que santo Agostinho chama de distentio animi
do qual já falei acima. Ou seja, à expansão ou à distensão da alma e do espírito, à
dilatação e ao alargamento quase infinito da consciência íntima do tempo que nos leva
a viver de maneira ex-tática, a extrema elasticidade da duração, que experimentamos
então como uma eternidade, fora do tempo, sem começo nem fim, na aparência de todos
os instantes, passado, presente e futuro que não se alinham mais em um sintagma, mas
constituem uma espécie de paradigma perdido e reencontrado, se posso me permitir
esse mau jogo de palavras, para mostrar que o tempo não flui de fato em fato, segundo
uma única e mesma lei de encadeamento, mas se declina de caso em caso, segundo um
modelo ou um exemplo que o reengendra ou regenera a cada momento.

Lembremos o que Gilles Deleuze afirmou com relação a Aion, que ele associa
à “internidade” ou ao “internal”, caro a Charles Péguy, ou melhor, segundo ele, do que
“eternidade como tal”, afim de acentuar o caráter intensivo e imanente que diz respeito
a “instante”, o instante mágico, precisamente, que, como iremos ver, é Kairos: “toda a

9 O casus latino e a paradeigma do grego estão de acordo, cada um constituindo um modelo, um


tipo, que herdamos ou imitamos, do mesmo modo que o tempo se declina a partir de figuras
originárias das quais descende; o passado apontando o paradigma no qual o presente e o futuro
se moldam, como o narrador de Le récidiviste reincide a seu modo, colocando seus passos no
do personagem que ele persegue e prolonga ao mesmo tempo, imitando-o, mimetizando-o,
repetindo-o ou replicando-o até em sua maneira de conceber a palavra como um leitmotive.

24
linha de Aion é percorrida pelo instante, que não cessa de se deslocar sobre ela e falta
ao seu próprio lugar” (DELEUZE, 1969, p. 227), uma vez que Aion é um puro devir,
não identificável, não situável, no qual o tempo não se mede, não se representa, nunca
se objetiva: é um tempo que não “existe”, mas “insiste e subsiste” (Deleuze, 1969, p.
76). É o tempo do instante puro, dividido em um passado e um futuro ilimitados,
sem começo nem fim, uma espécie de origem ou de advento onde nenhum fato bruto
se instala em um dado de natureza empírica, mas onde o acontecimento - o eventual,
o virtual, o ficcional, sempre em potência, antes de passar ao ato ou à a atualidade - se
apresenta a todo momento em uma doação infinita, um dom permanente, como na
“passagem de mão a mão” própria ao tempo paradigmático onde é um testemunho
que se transfere entre indivíduos comparáveis, antes de ser uma lâmina ou uma foice
que apontamos em direção ao outro entre pessoas opostas.
Pensa-se aqui na Ereignis heideggeriana, traduzida por François Fédier
como Origem [l´Avenance]10 (HEIDEGGER, 2013) que é um pouco mais do que o
“acontecimento”. Já que Aion não se pensa sem Kairos, o instante propício, o instante
de graça que vem depois da “boa hora” – de onde a palavra bonheur (felicidade) – o
que é bem vindo, que advém sub-repticiamente, mas que sentimos anteriormente,
algo de amável, de acolhedor, de propício, de favorável, que constitui uma espécie
de advento: um tempo em potência, em gestação, que esperamos e para o qual nos
preparamos ao mesmo tempo - : É uma ocasião, uma oportunidade, a chance que
deve ser agarrada “no instante”, sem o que ela passa desapercebida.
O in-stante de in-stare : manter-se dentro, no tempo, nem acima nem
ao lado, mas no seio, o mais próximo de sua matriz, da noite de onde ele vem, do
nascimento que ele revive a todo momento, em um evento denotado por Aion, na
internidade própria à in-sistência, e não somente na existência, o instans do latim,
designando o premente e não o presente do presenteísmo, mas o prae-sens, que é
uma forma de pressentir [prae-esse : ser antes, adiantar-se], de sentir o que acontece
de mais importante, como o confirmam dois dos sentidos antigos da palavra prae-
sens:.o potente e o enérgico, o possível ou o eventual, de um lado, e, de outro, o
propício e o favorável, o benéfico e o que pode trazer ajuda.
O que vem a propósito, o que cai bem, o que chega a tempo, porque o tempo
pode ser propicio e benéfico contrariamente ao que deixa entender Cronos “o do
pensamento retorcido”, o Titã maléfico que Hesíodo teria colocado no começo de

10 “Avenance” : pode ser traduzido como “origem”, ou como “vindouro“ aquilo que advém;
já “Avenant” equivaleria a “advindo”; “Avènement” , corresponde a “advento”. (Consulta
realizada com o tradutor Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ).

25
nosso mundo, no nascimento de nossa humanidade, no estado de in-fans ou
d´in-stans , no momento em que entramos no tempo e a existência ( lá onde nos
colocamos: stare) como na palavra ou no pensamento (lá onde falamos e pensamos:
fari (dizer enunciar), cuja raiz grega phéno- como em fenômeno, designa a “aparição”:
“o que se mostra”, “o que aparece”.

A flutuação permanente do instante mágico incarnado por Kairos na


expansão, dilatação ou alargamento temporal de natureza extática que Aion nos faz
viver, eis o que a experiência estética nos permite experimentar, mesmo no coração
de uma temporalidade titânica na qual Cronos continua a castrar, decapitar seus
filhos como fez com Urano (o Céu), de ora em diante separado de Gaia (a Terra) por
uma caverna inatingível simbolizada pelo enorme buraco provocado pela ablação
de seus órgãos sexuais, o grande vazio no qual o genitor primeiro, sem poder, sem
energia, sem desejo, teria deixado sua descendência, abandonada para sempre à lei
da foice e da lança, do sabre e da kalachnikov.
As asas de Aion e de Kairos dão origem ao tempo voador, no momento
flutuante, ao alçar voo do instante em direção à eternidade que qualifiquei de
alargamento para sugerir que ele é libertação, liberação – como se diz quando um
prisioneiro consegue fugir. Aion e Kairos expiam, redimem, por seu bater de asas
permanente, os crimes inumeráveis que Cronos cometeu separando para sempre o
Céu da Terra com um golpe de sabre que nos deixou sem pé nem cabeça, sem futuro
e sem passado, incapazes de dar um sentido ao tempo, impotentes para dar força ao
instante, inaptos para dar valor à eternidade.
Sabe-se que no Tempo-anterior que precedeu o nascimento de Cronos, Gaia e
Urano viviam na noite perpétua onde se desenrolavam suas brincadeiras: Caos é Nyx,11
antes que Cosmos se torne Luz (Phos)...sob o golpe de foice do Tempo. Aion e Kairos são
deuses noturnos; eles enxergam melhor à noite que sob a claridade violenta inventada
por Cronos afastando o Céu da Terra, separando-os pela luz de um falso dia permanente
que nos impede de “ver os pirilampos” (HUBERMAN, 2009).12 O intenso e a instância
próprias a esse outro tempo, mais de natureza órfica do que titânica, incarnado por Aion e

11 Deusa da Noite.
12 Survivance des lucioles, de Didi-Hubermann, em português se traduz por Sobrevivência
dos pirilampos ou vaga-lumes.

26
Kairos, reconstituem o traço de união mágico entre Gaia e Urano, sob a Noite mística que
recobria sua paixão como se eles participassem de uma única e mesma carne, as águas de
cima e as debaixo se misturam como a semente ao suco do amor.

Falta reinventar o [Advindo, aquilo que virá ou acontecerá] (l´Avenant) que


Aion e Kairos nos dão a possibilidade de fabular, como o testemunha o universo de
um Fleischer, onde a Noite benéfica na qual ele nos faz entrar como bom notívago
da escritura nos permite alargar e intensificar o horizonte temporal onde vivemos,
liberar a energia ou a potência do prae-sens, esse presente que pressiona e nos empurra
para frente, pressentindo o Acontecimento ou o que chega na hora, o que chega a
tempo, o que nos completa, enfim, o que vem a nós não tanto como uma finalidade
ou uma fatalidade que a noite apocalítica encarna, onde acreditamos ir, mas como
oportunidade ou momento mágico que a Noite de Antes ressuscita, o tempo natal,
o passado persistente ou o futuro em gestação não cessa de crescer, o instante eleito
dilatado ou distendido ao infinito, de onde viemos e para onde voltamos de um mesmo
elã quando se escreve como reincidente de tudo que vivemos e sem cessar revivemos.

Aion e Kairos encontram seu lugar no seio de espaços que não existem, assim
como o tempo que eles nomeiam não é exatamente o tempo, ou melhor, trata-se de
uma forma de tempo, de tonalidade ou de tonicidade, de Stimung ou ar do tempo, o
canto do tempo, de pulsação senão de baixo contínuo, de zangão ou de ultrapassado...
Esses lugares não dizem respeito a uma simples extensão, de uma res extensa, no
sentido do empirismo ou do racionalismo cartesiano, de um substrato amorfo sobre
o qual os fatos se inscrevem ou se destacam como uma figura sobre um fundo, mas
antes de ser um desdobramento ou uma expansão sem limites que corresponde
menos ao factual e ao atual do que ao possível e ao eventual, ao virtual e ao potencial,
ao que o inglês chama de contra factual e que nós designamos pelo condicional, um
dos modos verbais próprios aos enunciados ficcionais e não apenas aos fatos brutos
denotados pelo indicativo.

Não é o espaço onde as coisas são, mas o meio, o ar ou a atmosfera nos quais
o Acontecimento acontece, como quer Kairos, a ocasião feliz ou infeliz graças à qual
alguma coisa surge de uma fonte desconhecida, de um ângulo morto, como diria
Fleischer, que perfura a espacialidade e lhe dá uma profundidade que a linearidade

27
cronológica da história não permite perceber, pois que está ligada à visão periférica
que uma “perspectiva atmosférica” ou um “sentimento oceânico” de natureza não
linear e não ortogonal permitem experimentar e pressentir.

Esses lugares míticos, que podemos qualificar de espaço intensivo e não


extensivo, de khora13 e não oikos14 e de topos (lugar), ou seja, matriz, molde ou
modelo, ou seja, paradigma, no qual as coisas do tempo se criam fluindo, e não
através de sintagmas de modo que elas somente se encadeirariam. Esses lugares
míticos são a Puszta (estepes da Hungria) e a Transilvânia (selva atravessada) para o
autor de Le récidiviste, de Angles morts, de Alma Zara e de La traversée de l´Europe
par les forêts, ou seja, os no man´s land nos quais não há homens no sentido próprio
do termo, mas fantasmas (almas de outro mundo) ou sobreviventes, sombras de
homens, do mesmo modo que os lugares de que eles falam são apenas sombras
deles mesmos; a sombra do tempo que Aion incarna enquanto espectro temporal,
sem limites nem fronteiras entre os vivos e os mortos ou o nascimento e o fim, que
costumamos chamar de Eternidade, duração ficcional e não momento factual, que
escapa a qualquer encadeamento causal e nos liberta assim dos determinismos mais
rígidos da História.

Aion reúne em uma só Via, sem ponto de partida ou de chegada, sem bordas
nem cercas, os inumeráveis caminhos do tempo que podemos pegar a qualquer
momento, mesmo os mais secretos e os mais imprevisíveis, todos compatíveis,
ou seja, as virtualidades ou as eventualidades próprias ao poder infinito de uma
temporalidade que não se reduz jamais a sua atualização, a sua presentificação ou
a sua representação como pura atualidade ou simples presente, assim como nós o
veneramos como novo Deus no “Presenteísmo”.15

É a sombra dos fatos que reina nas estepes (Puszta), ou seja, a ficção do tempo
toma a forma e a força de seu próprio elã, ao invés dos “estados de fato” inertes ou
amorfos que constituem seu conteúdo. São os sub fatos ou o seu retorno mais vivo
do que nunca, sua sobrevivência reavivada, revivificada, na floresta ou na estepe
eterna onde eles insistem, resistem, bem mais do que existem no sentido próprio, que
compõem a trama de um universo do qual sabemos que ele não repousa tanto sobre o
fio dos acontecimentos quanto sobre a primeira meada da qual os fios de nossas vidas
não foram ainda cardados ou desembaraçados. Por isso o onirismo e a anamnese, o

13 Do grego, significa “Território da polis”.


14 Do grego, significa “Família, propriedade da família e casa”.
15 Ver François Hartog, Régimes d´historicité. Expérience du temps et présentisme. Paris  :
Seuil, 2003. Collection La Librairie du XXI siècle.

28
profetismo e a reminiscência, mas também a escatologia e a melancolia são as vias
de acesso privilegiadas a essa temporalidade onde tudo permanece virtualmente
possível, prestes a surgir de baixo, dos sub fatos, dos subterrâneos da História. Em
resumo: da pós-historicidade, se quisermos entender a preposição latina post (pós)
não como “depois”, mas também como “o que está atrás” ou então “abaixo”, com o que
nós não acabaremos nunca.

A História não cessa de nos assombrar sob a figura de Aion ou de Kairos que
a enterra e canta seus cantos fúnebres, na consciência sempre viva que ela persiste
abaixo enquanto fantasma ou sub-tempo. de modo que estamos diante de uma
temporalidade do possível e do eventual, da potência pura e da virtualidade infinita,
que a ficção fleischeriana, como toda fábula autêntica incarna com energia, sem
nunca se desprender completamente das sombras da História das quais sabemos que
continuam a projetar seus ”fragmentos sanguinolentos”, desde as cavernas mais ou
menos obscuras do sonho e da memória.

A instantaneidade de Kairos na perenidade de Aion, eis a prova de que a


literatura nos faz viver e reviver, permitindo-nos fazer face ao incidente no excedente,
ao maior acidente na essência mais perene, ao instantâneo brusco do Advento
(Avènement) na intensidade persistente do Surgimento/do Vindouro/ (Avenance),
a tudo aquilo que nos traumatiza tanto no nascimento quanto na morte, que
somente a cronicidade não pode exorcizar, mas que a espécie de “retenção retiniana”
ou “o remanescente memorial” dos quais a narrativa poética é uma das mais ricas
manifestações, pode conjurar a seu modo. Lembrando-nos a todo momento que os
tempos mortos onde vivemos escondem em suas partes inferiores as ressurgências de
um mundo em potência que permanece sempre no estado nascente.

Referências

ANAXIMANDRE. Fragments et témoignages. Traduzido e comentado por Marcel


Conche. Paris: PUF, 1991.
DELEUZE, G. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.
DIDI-HUBERMANN, G. Survivance des Lucioles. Paris: Minuit, 2009.
FLEISCHER, A. Le récidiviste. Paris: Seuil, 2019.
FLEISCHER, A. Prolongations. Paris: Gallimard, 2008.

29
FLEISCHER, A. Les angles morts. Paris: Seuil, 203. Coll. Fiction & Cie.
FLEISCHER, A. Alma Zara. Paris: Grasset, 2015.
FLEISCHER, A. La traversée de l´Europe par les forêts. Paris: Leo Scheer, 2004.
HARTOG, F. Régimes d´historicité. Expérience du temps et présenteisme. Paris:
Seuil, 2003. Coll. XXI siècle.
HEIDEGGER, M. Apports à la philosophie. De l´avance. Paris: Gallimard, 2013.
Coleção Bibliothéque e philosophie.
HESIODO. Théogonie. Un chant du cosmos. Traduzido e comentado por Aude Piya
Wacziarg Engel. Prefácio de Barbara Cassin. Paris: Fayard, 2014.
HUSSERL, E. Leçons pour une phénoménologie sur la conscience intime du
temps. Paris: PUF, 1996. Coleção Épimétée.
MOIX, Y. Rompre. Paris: Grasset, 2019.
NIETZSCHE, F. Le gai savoir. Citado por Alain Fleicher em Le récidiviste. Paris:
Seuil, 2019. Coll. Fiction et Cie.
REY, A. Dictionnaire historique de la langue française. Paris: Le Robert, 2010.
Artigo « Rémanent », p. 1899.
VOLODINE, A. Terminus radieux. Paris: Seuil, 2014.
YATES, F. L´art de la mémoire. Traduzido por Daniel Arrasse. Paris: Gallimard,
1987 (1966).

30
Tempo e memória: recordação, rememoração e reminiscência
em narrativas das Américas

Zilá Bernd

Tanira Rodrigues Soares

Abordaremos, nesse capítulo, as distinções teóricas entre os conceitos de


recordação (Aleida Assmann), rememoração (Walter Benjamin) e reminiscência
(Aristóteles) no sentido de iluminar a leitura de La vie de mémoire (2002), do poeta,
romancista e ensaísta quebequense Pierre Ouellet, e de Quase Memória (1995), do
jornalista, ensaísta e escritor brasileiro Carlos Heitor Cony, os quais serão lidos
como romances de filiação, ou seja, como narrativas em que os filhos – através de
recordações, rememorações e reminiscências – avaliam o legado memorial de seus
pais. La vie de mémoire é, no dizer de seu autor, uma narrativa “[...] onde o passado
e o presente se encontram na deriva dos continentes do tempo”. Quase memória
mescla em sua constituição memória e ficção, uma vez que o narrador, a partir do
cotidiano, revisita a trajetória de vida do pai e preenche as lacunas encontradas com
elementos ficcionais, onde personagens reais e irreais se misturam no decorrer do
enredo. As duas narrativas de filiação remetem à questão fulcral da memória que
é a de permitir que acontecimentos do passado sejam ressignificados no presente,
auxiliando os filhos a melhor entenderem a si mesmos, assim como suas relações
com seus progenitores.

Pierre Ouellet (1950) é romancista, poeta, ensaísta e professor aposentado


da Université du Québec à Montréal (UQAM). Organizou numerosos coletivos
versando sobre teoria literária e a semiótica e, sobretudo, acerca de questões ligadas
à memória, ao exílio e às migrações. Sua incansável produção intelectual, que inclui
mais de 40 livros, mereceu vários prêmios como o prestigioso Prix du Gouverneur
Général du Canada, na categoria ensaios. É membro da Société Royale du Canada e
da Academia de Letras do Quebec, além de dirigir a revista Les écrits.

Por sua vez, Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, em 1926, e
desenvolveu uma carreira na área jornalística e literária brasileira iniciada nos anos
de 1950, estendendo-se até seu falecimento em 2018. No seu percurso existencial,
por meio de suas participações nos meios de comunicação, merecem destaque
suas atuações como redator, contista, ensaísta, editor, diretor, tradutor e escritor de
roteiros para telenovelas, filmes e documentários, além de romancista premiado no
Brasil e no exterior. Ocupou a cadeira número 3 da Academia Brasileira de Letras
(ABL) em 2000 e recebeu diversas premiações pelas obras publicadas. Dentre seus
romances, destaca-se Quase memória, ganhador do Prêmio Jabuti e Livro do Ano,
ambos em 1996, conferidos pela Câmara Brasileira do Livro.

Salienta-se que tanto Pierre Ouellet, quanto Carlos Heitor Cony são escritores
reconhecidos em seus países de origem, bem como no cenário literário internacional,
conferindo significativa importância às suas produções no que diz respeito aos
estudos interdisciplinares da memória, especialmente no que concerne aos aspectos
ligados à filiação que remetem diretamente à relação existente entre pai e filho, tão
bem exposta em La vie de mémoire e Quase memória.

La vie de mémoire, de Pierre Ouellet, publicado em 2002 pela editora Noroît,


de Montreal, não é um romance, mas uma reflexão, quase uma fala ou um diário
sobre sua vida, destacando sobretudo fatos que têm relação direta com o sensível e
com o simbólico em sua vida. Não obedece absolutamente a nenhuma cronologia,
podendo ser lido como um testemunho, um testamento sentimental. O subtítulo:
“cadernos, quedas e lembretes”, nos dá pistas sobre o quanto o autor se desvela e se
revela nesse pequeno livro de apenas 101 páginas, na árdua batalha de escavação da
memória em busca do lado sensível ou carinhoso do pai, encontrando tão somente
frieza e indiferença. Trata-se aqui da impossibilidade do narrador em sentir-se
herdeiro e transmissor, mesmo que a esse trabalho de rememoração dedique uma
“vida de memória”, título dessa breve obra impregnada pelo luto de recordações
sombrias de um pai ausente.

Quase memória, de Carlos Heitor Cony, é uma narrativa em primeira pessoa


que tem como caraterística relevante a utilização da memória como elemento
desencadeador do enredo, pois a partir de um embrulho recebido, o narrador acessa
o passado ligado ao universo familiar, especialmente ao pai, falecido há 10 anos. O
embrulho carrega peculiaridades em seu formato e constituição que permitem ao
narrador, ao observá-lo e aspirar seu odor, associá-lo com à presença paterna e, com
isso, criar uma atmosfera capaz de revisitar momentos compartilhados entre ambos
e, a partir disso, (re)criar, (re)inventar, (re)interpretar e ressignificar acontecimentos
pretéritos.

32
Narrativas de filiação

Antes de iniciarmos a análise dessas obras em busca dos significados e


ressignificados das rememorações e reminiscências, cabe mencionar que a narrativa de
filiação não se refere somente a um projeto singular de escrita na contemporaneidade,
mas, ao contrário, reflete uma necessidade motivada pela sociedade pós-moderna da
qual os escritores retiram subsídios e recursos para ficcionalizar o contexto ao qual
estão inseridos. Para Laurent Demanze (2008), o escritor e/ou narrador contemporâneo
investiga, inventaria, questiona, reflete e arquiva as genealogias de si mesmo, não
concedendo aos pais o emblema de figuras grandiosas ou glorificadas, e sim demonstra
as vicissitudes que permeiam os seres humanos e, consequentemente, os narradores.
Para o mesmo estudioso, a narrativa de filiação inspira o reverso da história, isto é,
concede destaque em seus enredos para personagens anônimos, marginalizados e/ou
esquecidos pela historiografia oficial, mas que estavam presentes e também fizeram
parte do contexto social e cultural nos grandes eventos registrados.

A narrativa de filiação vem para preencher um vazio deixado por uma


transmissão fragmentada ou incompleta, sem ter a pretensão de restituir o passado, ao
contrário, objetiva interrogá-lo, criticá-lo e, a partir dessas articulações, ressignificá-
lo junto com os seus ancestrais. Uma vez que os indivíduos não querem reproduzir
no presente ações que formaram e construíram o passado, e tão somente objetivam
o entendimento, a reflexão crítica do seu próprio ser e das relações estabelecidas com
os demais indivíduos, considerando os espaços que permeiam sua trajetória de (re)
construção identitária.

Essa narrativa é lacunar, conforme destacam Dominique Viart (2008), pois é


necessário construir hipóteses, imaginar versões para os acontecimentos, implantar
conjecturas e especulações, isto é, trabalhar com a incerteza. Nesse aspecto, os objetivos,
arquivos pessoais, histórias recolhidas da oralidade, pesquisas históricas são subsídios
para uma escrita que enfoca o passado, cujo objetivo é tornar visível uma memória
esquecida, mas também devolver algo para alguém, isto é, para o outro e a si mesmo.

A herança é trabalhada a partir da (re)elaboração de um passado que originou


acontecimentos que podem explicitar ou questionar o produto resultante no presente,
no caso o narrador e/ou escritor. A origem é um dos ingredientes do processo identitário
em constante transformação e é tão importante quanto a relação de afinidades
estabelecida durante o percurso de vida. Para os referidos autores, o passado não é
entendido como modelo do qual se possa extrair lições ou moralidade, ele se destina a
refazer uma ligação com aquilo que foi interrompido e/ou falho.

33
Neste fluxo narrativo, a memória, o esquecimento e a imaginação/ficção irão
compor o enredo intercalando o presente, passado e futuro sem nenhuma preocupação
em situar o leitor e apresentar detalhamentos dos contextos inerentes aos fatos
ocorridos e que estão sendo narrados. A anterioridade e a ancestralidade são fatores
preponderantes, pois é por seu intermédio que o narrador se reconhece como herdeiro
ou rompe com os laços afetivos que ligam sua existência a de seus antepassados,
renegando-os.

Recordação, rememoração e reminiscência

A palavra recordação, empregada por Aleida Assmann (2011), dialoga com


a etimologia do verbo recordar que, no entender de Jorge Luis Borges, caracteriza-
se por ser um verbo sagrado, cujo significado corresponde a passar novamente
pelo coração, isto é, ressignificar o conteúdo memorial. O autor do conto Funes, o
memorioso, ao repetir diversas vezes a palavra ‘recordo’ evidencia a importância da
prática do recordar para a ficção, além de destacar que a etimologia do verbo está
ligada ao sagrado, uma vez que “[...] corresponde a ‘passar novamente pelo coração’”
(BERND, 2017, p. 115).

A concepção indicada por Borges pode ser percebida nos estudos de Aleida
Assmann (2011), pois o processo de recordação remete à memória enquanto potência,
opositora ao processo mecânico de armazenamento. Aleida Assmann (2011) situa
os estudos da memória a partir de dois pontos: Ars, como armazenamento, ligado
à memória artificial e ao processo mecânico (mnemotécnica) desenvolvida a partir
da lenda de Simônides, e; vis como potência, processo de recordação que forma
identidades e considera a dimensão do tempo como crítica, em razão de que o ato de
lembrar não é deliberado.
A recordação procede basicamente de forma reconstrutiva:
sempre começa do presente e avança inevitavelmente para
um deslocamento, uma deformação, uma distorção, uma
revaloração e uma renovação do que foi lembrado até o
momento da sua recuperação. Assim, nesse intervalo de
latência, a lembrança não está guardada em um repositório
seguro, e sim sujeita a um processo de transformação
(ASSMANN, 2011, p. 34).

A rememoração carrega consigo o esquecimento e também o negligenciar de


informações e conhecimentos, considerando-se a seletividade da memória, esta pode
ser acessada a partir de interesses do presente. No entender de Jeanne Marie Gagnebin

34
(2009, p. 59), a rememoração “[...] no sentido benjaminiano da palavra quer dizer uma
memória ativa que transforma o presente. ‘Nós articulamos o passado, diz Benjamin,
nós não o descrevemos, como se pode tentar descrever um objeto físico, mesmo com
todas as dificuldades que essa tentativa levanta’” (GAGNEBIN, 2009, p. 40).

O ato de rememorar se insere no contexto das narrativas em estudo, uma vez que
Representa aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos,
aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com
hesitação, solavancos, incompletude, aquilo que ainda
não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A
rememoração também significa uma atenção precisa ao
presente, em particular a estas estranhas ressurgências
do passado no presente, pois não se trata somente de não
esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente.
A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa a
transformação do presente (GAGNEBIN, 2009, p. 55).

A rememoração é espontânea, segundo Martha Lourenço Vieira, e seu ato


está vinculado às “ideias de tecer, de tecido, de trama” em que o rememorar é tecer e
a rememoração é o tecido. O ato de rememorar envolve duas faces: a de lembrar e a
de esquecer. “O esquecimento é a massa sobre a qual se articula, se sustenta o ato de
rememorar. Rememorar é, pois, semantizar, dar sentido, desfazer na trama os fios do
esquecimento” (2007, p. 21).

Em Jeanne Marie Gagnebin (2009) e Martha Lourenço Vieira (2007) a


concepção de rememoração está diretamente vinculada aos estudos de Walter
Benjamin, demonstrando que a espontaneidade do ato torna possível reestabelecer
uma relação com o passado, realimentar sentimentos e emoções esquecidos e
silenciados, mas sempre tendo o presente como ponto de partida:
[...] rememorar, em Benjamin, é voltar a sentir, é reviver
a sensibilidade perdida, esquecida. É por isso que o
acontecimento lembrado é sem limites, é a chave para tudo
o que veio antes e depois e somente pode ser fruto de uma
rememoração espontânea, de um actus puru, natural, que
independe da vontade ou do esforço de quem rememora,
surge fora do cálculo da razão (VIEIRA, 2007, p. 22).

Ao rememorar, o indivíduo está lembrando de fatos, acontecimentos e pessoas


que povoam o passado e, ao mesmo tempo, está ressignificando o presente, estabelecendo
novas relações com o tempo pretérito, concebendo-o como algo que pode ser acessado
e não está fechado no tempo para novas interpretações e entendimentos.

35
Cabe mencionar que a rememoração difere da reminiscência, termo utilizado
por Aristóteles (2018), e que está relacionado à capacidade de raciocínio e de razão
com que são dotados os seres humanos. A reminiscência é uma busca consciente
por informações do passado, é constituída pela intencionalidade e pela vontade,
desencadeando um processo de pesquisa e de investigação que adota uma certa ordem,
sequência e associação.
Para Márcio Seligmann-Silva (2006, p. 33). “A reminiscência é definida
como a recuperação intencional de um conhecimento ou de uma sensação”, sendo
constituída pelos princípios de associação e ordem, isto é, o processo faz uso de uma
espécie de silogismo, em que o raciocínio lógico e a dedução são os responsáveis pelo
encadeamento das proposições e, ao final, indicarão um desfecho e/ou resultado. Nas
palavras de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2008, p. 449) silogismo é um método
de “dedução formal em que, postas duas proposições, as premissas, delas se tira uma
terceira, a conclusão”.
No entender de Aristóteles (2018), para ocorrer um ato de memória faz-se
necessária uma coincidência entre a lembrança do objeto e a do tempo da sua ocorrência,
caso alguma delas estiver ausente, será apenas uma reminiscência, e argumenta que
“[...] a memória pertence, como dissemos, a todos os animais que possuem a noção
de tempo; a reminiscência, que inclui ao mesmo tempo vontade e racionalidade, é
privilégio exclusivo do homem a quem a natureza dotou da faculdade de querer e de
raciocinar (2018, p. 02)”.1
Apropriando-nos das concepções de Aristóteles (2018) sobre memória e
reminiscência, podemos mencionar que a memória se caracteriza pela completude
da lembrança do passado, isto é, a imagem gravada na mente retorna no presente;
já a reminiscência está diretamente ligada à presença de fragmentos na busca pelo
acontecimento passado, pois é através desses pedaços, resquícios, restos ou vestígios
que se reconstrói todo o conjunto.2 Nesse sentido, o emprego da intencionalidade,
da razão, do querer e dos princípios (associação e ordem) encontram justificativa na
constituição da reminiscência.

1 “[...] la mémoire appartient, comme on l’a dit, à tous les animaux qui ont la notion du
temps; la réminiscence, où il entre à la fois volonté et raisonnement, est le privilège exclusif
de l’homme, que la nature a seul doué de la faculté de vouloir et de raisonner”
2 La mémoire a lieu quand le souvenir est entier, et qu’on se rappelle les choses dans toute
leur étendue; la réminiscence au contraire a lieu quand une partie des choses seulement
se reproduit et qu’une autre partie ne se reproduit pas. Alors, à l’aide d’un fragment, on
reconstruit l’ensemble entier.

36
É possível relacionar rememoração e reminiscência com as manifestações
das memórias involuntária e voluntária abordadas por Marcel Proust3, uma vez que
a rememoração está interligada com o espontâneo, o improviso, uma manifestação
de maneira súbita e breve, surge como um feixe de luz iluminando um passado do
qual não se tinha consciência de sua existência. Ele ressurge com uma luminosidade
que impressiona e carrega consigo sensações e emoções que estavam adormecidas,
esquecidas, guardadas em algum espaço da constituição humana e, de maneira
inesperada, emergem revelando-se em toda sua plenitude.
A memória involuntária é instável, extrassensorial. Reside
na textura de um tecido, no sabor de uma bebida, na grave
sonoridade de um contrabaixo. [...]. A sua duração é variada,
não depende da nossa vontade. Ela pode permanecer,
ser insistente e perturbadora. Ela chega sem permissão,
trazendo imagens que não nos são queridas.
[...]. A memória involuntária, chega por meios inesperados,
pode desconfortar ou também acalentar. Por ser imprevisível
pode surpreender negativamente ou positivamente.
Também pode trazer respostas, mas talvez elas venham a
servir somente para indagações futuras (PIFFER, 2016, p.
39).

Já a relação entre reminiscência e memória voluntária é estabelecida no


momento em que existe uma intenção em lembrar, uma vez que esta relação diz
respeito à capacidade de raciocínio, ao intelecto e à consciência dos seres humanos.
Existe uma busca, uma pesquisa ou investigação dos fatos, acontecimentos no decorrer
do passado, adotando-se uma postura lógica e racional. O passado é reconstruído a
partir da razão e do encadeamento das ideias. “A memória voluntária [...] é racional e
solicitada. Assim como nos chega, vai embora a uma simples troca de foco das nossas
atenções” (PIFFER, 2016, p. 39).

Recordação, rememoração e reminiscência integram os mecanismos da


memória no momento de reconstrução do passado, e caracterizam-se por termos
ambivalentes, que, de acordo com os interesses dos pesquisadores e estudiosos,
serão aplicados com maior ênfase e destaque. Desse modo, salienta-se que o termo

3 Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor francês, mais conhecido pela
sua obra À la recherche du temps perdu, publicada em sete volumes entre 1913 e 1927. Uma
das passagens mais significativas da obra de Proust se refere à sensação experimentada a
partir do paladar, pois é no momento em que um pedaço da madeleine é embebido em uma
xícara de chá, que o narrador rememora momentos de sua infância, demonstrando o quanto
a memória pode guardar emoções adormecidas, porém latentes nos indivíduos.

37
recordação é utilizado frequentemente nos estudos da Aleida Assmann (2011),
rememoração está ligado aos estudos de Walter Benjamin e aprofundados por Jeanne
Marie Gagnebin (2009; 2014) e Martha Lourenço Vieira (2007), já a reminiscência
remonta aos estudos de Aristóteles (2018), revisitados por Márcio Selligman-Silva
(2006), entre outros.

Desatando os nós de memória

Definindo seu pequeno livro como “o encontro do presente e do passado


na deriva do tempo” ou das temporalidades, Pierre Ouellet começa afirmando que
temos apenas uma origem, “mas são necessárias mil origens para afirmar tudo que
somos e que não somos” (2002, p. 9). E será através da escritura e das rememorações
com as quais alimentamos o processo escritural que se vai em busca dessa origem,
dessa necessidade de saber quem somos e de onde viemos. No ato de escritura nos
tornamos o outro que lembra o que esquecemos. Essa “vida de memória” (vie de
mémoire) corresponde a uma tentativa de recuperação memorial desde o nascimento
do escritor em 1950. Rememoração e ficção destecendo o esquecimento e preenchendo
os interstícios memoriais.

Há romances de filiação que se constituem em verdadeiras homenagens aos pais


ou avós, construindo-se como legado que urge transmitir à descendência no sentido de
perpetuar o aprendizado herdado dos ancestrais. Evidencia-se nesse tipo de narrativa
que o narrador é movido pela tentativa de recompor fragmentos memoriais de tempos
felizes vividos no ambiente familiar ou pelo orgulho de ações ou condutas exemplares
de seus pais das quais sente-se um herdeiro.

O romance de filiação, contudo, pode transmitir as desventuras de um narrador


que carrega uma memória ferida, cuja narrativa não deixa de se constituir em uma
forma de luto do tempo amargo vivido no ambiente familiar. A falta de amor paterno
ou materno deixa feridas abertas e a rememoração serve mais para exorcizar fantasmas
e relatar as perdas afetivas do que para regozijar-se da herança recebida. Esse balanço
imaginário constrói uma narrativa de perdas, de abandono e de faltas; a melancolia
transforma-se em trabalho de luto.

Na narrativa de Pierre Ouellet, a relação com o pai é descrita pela falta: as


rememorações não reconstroem uma imagem positiva do pai, mas sua constante
ausência e incapacidade de demonstrar afeto pelo filho. O narrador sente-se impelido a
inventar um passado por não ter conseguido vivê-lo em sua plenitude: “Meu passado,

38
eu o invento, por falta de tê-lo vivido” (OUELLET, 2002, p. 19)4. Embora esse relato
do autor tenha se originado de um convite da Radio Canada para que o escritor falasse
sobre sua vida, em muitas passagens podemos flagrar espaços de rememoração, ou seja,
aqueles que se originam de uma memória involuntária que emerge a partir do convite
de narrar fatos de seu passado, com ênfase para aqueles que afloram em sua volumosa
produção poética e romanesca.

Vamos nos deter na análise da figura do pai. A relação com o pai se constitui
como memória ferida: o cenário ligado à figura paterna é de um vazio afetivo total.
Assim, a escritura se constitui em jogo afetivo com o leitor e em meio de preencher
esquecimentos e decepções. Escreve para ser amado de modo incondicional por seus
leitores. Rememorar e imaginar: no âmbito da escritura “nos inventamos bem mais do
que rememoramos” (OUELLET, 2002, p. 26)5.

Nessa medida, para Pierre Ouellet, escrever sobre sua vida é dar-se como
exemplo, mesmo que negativo. A memória é como um terremoto, uma agitação que faz
com que não tenhamos certeza de nossos próprios fundamentos, já que as lembranças,
os sonhos e as perdas se misturam.

Costumamos dizer que nossos processos memoriais são sempre fragmentados:


lembramos a partir de vestígios, de restos e de pequenos rastros. Nesse livro, Pierre
Ouellet nos apresenta uma metáfora desse processo fragmentário da rememoração,
comparando-a a uma peça de roupa gasta e rasgada que precisamos remendar: “Falo
por fragmentos porque não tenho outra memória que a fragmentada (furada)”
(OUELLET, 2002, p. 33)6. Nossa memória é, portanto, constituída de fragmentos,
um verdadeiro patchwork onde lembranças de vivências de diferentes fases da vida
afloram – como remendos – para cobrir os buracos, as partes dilaceradas de nossa
tessitura memorial.

O tempo da memória não é o tempo cronológico, o que nos devora e nos leva
para a morte, mas o tempo dos acontecimentos sensíveis (Kairós). E é esse tempo
que é revisitado na rememoração que é espontânea, involuntária, trazendo consigo
emoções inesperadas, presentes na escritura de La vie de mémoire, pequeno livro
em que cenas da vida familiar são postas a nu. Para o autor, escrever ao ritmo das
rememorações, provoca a impressão de que sempre falta alguma coisa nesse conjunto
impreciso e diverso que se elabora ao fio da sensibilidade e da dor.

4 Mon passé, je me l´invente, à défaut de l´avoir vécu.


5 [...] on s´invente bien plus qu´on se remémore.
6 Je parle par fragments parce que je n´ai d´autre mémoire que trouée.

39
Se a rememoração é, no sentido benjaminiano, “uma memória ativa que
transforma o presente”, o terceiro capítulo do livro, intitulado “La langue paternelle”,
é uma tentativa de reelaborar o presente a partir das ressurgências das memórias
paternas, tentando lembrar-se da voz do pai quando esse lhe disse: “Toda a dor do
mundo tu carregarás, meu filho” (OUELLET, 2002, p. 79).7 Tal fragmento permanecerá
na memória do filho por toda a vida. Depois disso, o pai não fala mais ou a memória
obscureceu sua fala e toda a urgência do filho está no ato de quebrar – pela escritura
– essa tradição de silêncio de sua família. Escreve, portanto, na esperança de ouvir a
voz do pai na palavra escrita.

O que vem à sua lembrança são palavras obscuras que aludem ao mundo
como “um grande abismo de indiferença que nos ameaça sem explodir” (OUELLET,
2002, p. 85).8 E será somente ao relatar esses fragmentos memoriais que o narrador
consegue ouvir a voz do pai, a voz fantasmagórica do pai. Portanto, o ato de escrever
é, na verdade, um truque, uma estratégia para fazer o pai falar, para que ele ouça
novamente sua voz. Sente que, ao escrever, tornar-se a voz off do pai.

O ato de rememorar traz de volta a voz do pai como a madeleine de Proust


trouxe de volta sua infância na casa da tia-avó, Léonie. Aqui, imaginar a voz do pai
o transporta para a casa paterna onde escuta a voz que o embala durante o sono.
Somente através da escritura, as vozes ressurgem e, com elas, as lembranças da casa
paterna e do afastamento do pai.

Através das palavras escritas na narrativa, o autor coloca na boca de seu pai as
“palavras de homem” que não se calam em sua recordação e passa a sentir a mão do
pai que jamais pousou sobre seu ombro de criança. “Meu pai é a única pessoa que eu
nunca chamei por seu nome. Esse nome permanecerá em mim um nome sem voz”
(OUELLET, 2002, p. 91).9

Assim, entre rememoração, esquecimento e imaginação se dá a reconstrução,


ou melhor, a (re)invenção da figura paterna que sempre se omitiu. Sente que fabrica
o pai para depois poder se libertar dessas memórias que se constituem em verdadeiro
“nó de memória”, expressão que foi definida por Gérard Bouchard como “a vergonha
das origens, a memória vergonhosa de um passado sem honra” (2009, p. 09-38).
Que estratégia se necessita para desfazer esses nós? “[...] romper o pacto de silêncio,

7 Toute la douleur du monde tu la porteras, mon fils.


8 [...] un grand gouffre d´indiférence qui nos ménace mais n´éclate jamais.
9 Mon père est la seule personne que je n´ai jamais appelé par son nom. Ce nom restera
pour moi un mot sans voix.

40
reconhecer a impureza das origens em toda sua feiura, confessar as faltas cometidas e
assim se libertar da memória vergonhosa” (BOUCHARD, 2009, p. 23).

Esta é uma estratégia de reapropriação do passado que La vie de mémoire


pretende realizar, no sentido da reabilitação da infância e da juventude do narrador
que não pôde contar com a mão protetora do pai sobre seu ombro. Trata-se, como
refere ainda Gérard Bouchard, de “[...] jogos e nós de memória” que consistem na
“[...] faculdade de repudiar, de adotar e de escolher seus ancestrais” (2009, p. 31).

No caso do narrador de La vie de mémoire é através da escritura que ele tenta


desvendar “esse desconhecido” que é o pai que usa “uma máscara de ferro sobre o
rosto” e que “morreu de si próprio” (OUELLET, 2002, p. 93). Fabricar essas imagens
para poder se desfazer delas é o jogo de memória ao qual se propõe o autor nesse
pequeno e pungente livro sobre a ancestralidade e a impossibilidade de sentir-se
herdeiro desse desconhecido como refere o narrador. Nesse caso, essa narrativa de
filiação nos apresenta o narrador como um “herdeiro inquieto e problemático”, que
não hesita em repudiar a herança paterna.

Contudo, esse repúdio vira escritura e virando escritura, vira transmissão de


algo que chega até nós como busca. Sabendo que o livro não preencherá “O vazio
entre dois homens que não respondem mais um ao outro”10, o narrador lembra o
fato de haver mil ancestrais na figura do pai, morto ou vivo, e que devido a isso lhe
deve respeito, já que sem a memória dos ancestrais não haveria a possibilidade de
transmissão intergeracional, e a transmissão que, como nos ensina Paul Ricoeur, é
“geradora de sentido” (1985, p. 320). Mesmo o que desaparece deixa marcas indeléveis
e escrever é, como nos relata o autor, “Deixar espalhar a mancha”11. O que significa
deixar que a mancha se espalhe? Deixar que a marca dos ancestrais nos invada e se
espalhe pelo mundo, pois dela não podemos nos libertar já que a tradição ancestral
nos constitui como sujeitos. Deixar que passado e presente se conectem na deriva dos
continentes do tempo...

Embrulho e nó do barbante: evocadores da memória

Receber um embrulho contendo informações relativas a ensaios, romances,


esboços de textos a serem publicados, enfim, escritos que solicitavam uma apreciação
ou avaliação por parte do jornalista Carlos Heitor Cony era algo rotineiro, agora

10 Le vide entre deux hommes qui ne répondent plus l´un de l´autre.


11 Laisser s´étendre la tache.

41
receber um embrulho cujas especificidades remetem às peculiaridades do pai tornou
aquele dia muito especial, pois permitiu que a memória do filho revisitasse o passado
e intensificasse um vínculo fraternal, considerando-se que a morte pode fortalecer
o esquecimento. É importante destacar que o rompimento do convívio diário não
afastou as memórias do filho, mas o pacote veio fazer ressurgir, de modo vibrante e
com entusiasmo, a presença constante do pai na vida do narrador.

O embrulho, em todos os seus aspectos, remetia ao pai e às suas características


únicas e marcantes, tais como a letra, o borrão da caneta-tinteiro, o feitio do nó, os
cheiros (brilhantina, alfazema e manga), enfim, era a manifestação concreta do pai,
já falecido há 10 anos.
Pois o barbante, em si, já era um indício dele. O nó também:
exato, sólido, bem no centro do pacote. Se tudo era ele no papel,
no barbante e no nó, havia a letra. Fosse eu cego, mergulhado
na treva mais profunda da carne, bastaria passar a mão sobre
ela para saber que era a letra dele (CONY, 1995, p. 12).

Não importava o fato de se tratar de um barbante simples ou até mesmo


vagabundo, como destaca o narrador, tudo o que era executado pelo pai tinha um
ato solene e uma importância decisiva, pois ele realizava “grandes coisas”, como viver
todos os dias e conviver em família e com amigos. O barbante, ao envolver o envelope,
foi estruturado de forma a proporcionar ao narrador a simbologia de que por mais
singelas que fossem as atividades cotidianas, tais como a atividade do trabalho, a
trivialidade de um almoço, do convívio com as pessoas, tudo adquiria significação e
relevância quando feito com prazer e entusiasmo, com dedicação e esmero, ou seja,
com vontade de viver. O barbante é constituído de diversos fios que, entrelaçados,
dão sustentação à sua estrutura e, por extensão, à vida.

O conteúdo do embrulho permanece na imaginação, mas o papel


cuidadosamente dobrado e o barbante perfeitamente disposto na sua superfície,
direcionando ao nó impecável e tão característico do pai do narrador, remete à
ligação entre pai e filho, permitindo que papel e barbante se configurem em dois
elementos distintos, mas complementares para a estruturação do embrulho.

Estabelecendo uma relação entre o pacote recebido e a vida do narrador


é possível observar que pai e filho têm personalidades próprias, no entanto
sua identificação foi de grande significação, revelando uma cumplicidade e
companheirismo entre ambos. O filho, ao escrever a trajetória de vida do pai, presta
uma homenagem e, ao mesmo tempo, se reconhece como um herdeiro que, além
de seguir a profissão de jornalista, também se vê como um contador de histórias,

42
registrando-as no romance Quase memória.

É importante mencionar que o narrador, muitas vezes, lembra que está


reproduzindo uma das tantas versões que figuraram no seu universo familiar, sempre
dando preferência pelas relatadas por seu pai, em razão de estarem carregadas de
entusiasmo pela vida. Não há, por parte do narrador, nenhum julgamento ou
recriminação das ações e acontecimentos que remetem ao pai, ao contrário, ocorre
uma identificação que desencadeia uma continuidade do que está sendo narrado.

Um dos episódios que ilustra esse propósito refere-se à história da viagem


à casa de Puccini, na Itália, contada por seu pai; essa viagem nunca foi realizada,
tendo sido descrita como se tivesse acontecido, com informação pormenorizada dos
detalhes do lugar, incluindo as peculiaridades que o compunham. Foi ouvindo essa
história que o narrador realizou uma viagem à Itália e se deparou com um ambiente
novo, mas totalmente familiar aos seus sentidos.
[...] vi o lago onde Puccini caçava patos. Logo depois, a sua
casa, já transformada em museu.
A sensação era a de que eu próprio conhecia aquela casa,
suas armas de caça, seu piano, ainda aberto, as teclas de
marfim amarelecidas, uma delas quase desgrudada, daquele
piano saíra mais de metade de sua obra.
Fui ao espelho imenso que havia na sala, procurei um dos
programas de Madama Butterfly, que, eu sabia, estaria ali.
Sim, lá estava o programa [...]
Eu sabia aquilo tudo – e muito mais – por intermédio do pai,
que nunca ali estivera (CONY, 1995, p. 184 - 185).

Há, desse modo, um reconhecimento das habilidades narrativas de seu pai,


com o emprego da imaginação e de inúmeras pesquisas a determinado assunto que
o encantava e, assim, aguçava seu interesse. Portanto, Quase memória caracteriza-se
como uma narrativa de filiação cujo herdeiro reproduz episódios da vida paterna ao
refletir sobre o passado e ressignificar esse tempo por se tratar de algo importante
para o entendimento do presente e, consequentemente, para o processo de construção
identitária e de personalidade, ou seja, o filho estabelece uma continuidade da
herança transmitida e incorporada na estruturação dos acontecimentos no presente.

Ao dedicar-se exclusivamente a observar e analisar o embrulho, o narrador


suspende o tempo, produz um corte na ordem da temporalidade cronológica
(Cronos), favorecendo o surgimento do tempo que está diretamente ligado à
memória (Kairós), bem como às ações de relembrar o passado por intermédio da

43
recordação e da rememoração. “[...] Nem vontade tenho de olhar o relógio. O tempo
parou. Entretanto, nunca o tempo foi tanto tempo” (CONY, 1995, p. 171).

O tempo da memória remete à esfera da sensibilidade, pois carrega em


sua constituição as especificidades relacionadas ao indivíduo que, ao revisitar o
passado, concebe a esse retorno uma significação e representatividade carregada
de emoções que podem oscilar entres aspectos positivos ou negativos. No caso
específico de Quase memória, o tempo suspenso é pleno de emotividade positiva,
de muito amor e identificação, uma vez que o filho desenvolveu uma relação de
cumplicidade, companheirismo, respeito, afeto e, principalmente, de entendimento
com o pai durante todo o seu período de vida e, agora, após o falecimento, esses
fatos são revigorados a partir da existência da temporalidade Kairós, que o embrulho
desencadeou.

Como bem se pode verificar nas palavras do narrador,


Desde que recebi o embrulho e vi a letra do pai, tão
inconfundível, tão dele e tão recente, o tempo deixou de
funcionar. Lá fora anoiteceu, a secretária foi embora, todos
foram embora, não senti fome nem pressa, acho que o pai
me mandou esse embrulho para isso mesmo, para que eu
abrisse espaço e ficasse pensando nele – embora eu nunca
tenha deixado de nele pensar, de forma fragmentada, a
partir de pequeninas coisas da minha vida e da vida dos
outros (CONY, 1995, p. 171).

É nesse tempo intervalar cindido no Cronos que Kairós encontra ambiente


fértil para se manifestar e, com isso, proporcionar um flashback dos momentos que
marcaram a trajetória do narrador. Tais acontecimentos não obedecem a uma ordem
ou sequência dos fatos, são apresentados aos leitores a partir das percepções que irão
brotando na intimidade do narrador ao observar o embrulho recebido.

Carlos Heitor Cony ressalta que é a primeira vez que dedica um tempo único
e especial, esquecendo todos os compromissos imperativos que fazem parte do seu
cotidiano, volta-se integralmente a desfrutar da presença paterna, senti-lo em toda a
sua complexidade e expansividade, generosidade e companheirismo. O pai tinha como
características marcantes o otimismo, o perfeccionismo e o entusiasmo pela vida, pois
para ele o importante era viver intensamente todos os dias. “Viver era mais importante
para ele. E ele descobrira que as coisas boas (ou que ele considerava boas) podiam ser
conseguidas com pouco ou com nenhum dinheiro” (CONY, 1995, p. 60).

O embrulho é o gatilho desencadeador de emoções e, consequentemente, de

44
memórias ligadas ao cenário de convívio entre pai e filho, como a preparação para
ingressar no seminário; as maneiras mais inusitadas que o pai tinha de se mostrar
presente; as inúmeras invencionices que realizava no ambiente familiar e de amigos; as
histórias contadas, sempre acrescentando algo insólito e pitoresco; o envelhecimento, a
doença e a perda paterna; a ocupação do lugar do pai na sala de Imprensa da Prefeitura;
a descoberta da amante e de toda a estrutura familiar paralela. Ao (re)criar alguns dos
momentos em que a presença paterna foi singular em sua vida, é possível identificar
que recordação e reminiscência interligam-se no retorno ao passado.

A rememoração está intimamente ligada com a memória involuntária, sendo


presença marcante em todo o romance, pois o embrulho desempenha uma espécie
de Madeleine, de Proust, e proporciona que lembranças aparentemente esquecidas
aflorem de uma maneira tão intensa e a presença paterna se materialize. O recebimento
inesperado abriu, segundo o narrador, um espaço para pensar única e exclusivamente
no pai, conforme demonstra: “[...] até então, nunca pensara organizadamente na única
pessoa, no único personagem, no único tempo de um homem que, não sendo eu, era o
tempo do qual eu mais participara” (CONY, 1995, p. 94).

É possível identificar que o processo de rememoração é desencadeado a partir


da observação e análise do embrulho, pois nesses momentos, afloram os cheiros, a
forma da escrita, o borrão, o barbante e o nó que envolve o envelope em quatro partes
milimetricamente expostas. Dos cheiros (alfazema, brilhantina e manga) brotam as
histórias do pensamento do pai a respeito de olho gordo, do padre Cipriano, do velório e
dos pés de manga no cemitério; da escrita, a maneira que o pai enviava correspondências
e como descrevia os destinatários; do borrão, a empreitada de produzir a própria tinta
do tinteiro e, por sua vez, o barbante remetia às histórias de como teria aprendido a dar
o nó como um escoteiro e depois com o marinheiro holandês.

A memória é âncora e luz que guiará a narrativa; âncora, porque suspende o


tempo, e luz por iluminar o percurso. O romance Quase memória não se prende a uma
ordenação dos acontecimentos, ao contrário, os fragmentos são dispostos de maneira a
formar um grande painel onde são percebidas algumas falhas e imperfeições.

Os vestígios, intercalados com a ficção, conferem à narrativa de filiação uma


possibilidade de entendimento e identificação do passado à luz do presente. O embrulho
está situado no tempo presente e direciona automaticamente ao passado, por meio da
recordação que estabelece uma identificação com a herança paterna e, ao mesmo tempo,
remete à rememoração, desencadeada por memórias involuntárias que possibilitam ao
narrador (re)criar, (re)viver e ressignificar os acontecimentos do tempo pretérito.

45
A realidade do presente, vivenciada pelo narrador, é capaz de conferir outras
(re)interpretações do passado e, com isso, gerar novas percepções e entendimentos dos
acontecimentos, bem como permitir que uma projeção de futuro possa ser realizada.
Assim como o pai, que a cada final de noite se preparava para dormir e projetar o
próximo dia para fazer “grandes coisas”, o narrador também se projeta em direção ao
amanhã, “Amanhã... amanhã vou guardá-lo, tal como o pai o deixou. Quando digo
‘amanhã’ nesse tom (amanhã...) penso nele quando dizia, cada noite, antes de dormir:
‘Amanhã farei grandes coisas!’” (CONY, 1995, p. 209).

Simbologia dos nós: aceitação e recusa

Na narrativa de filiação, a herança é trabalhada a partir da (re)elaboração de


um passado que resultou em acontecimentos que podem explicitar ou questionar
o produto resultante no presente, no caso dos narradores de La vie de mémoire
(2002) e Quase memória (1995). Essas narrativas, cujo enredo está centrado na
memória familiar, apresentam dois aspectos relevantes: prestar uma homenagem aos
antepassados, tais como pais e avós, instituindo um “continuum familiar” ou adotar
uma postura de confronto que poderá resultar em ruptura ou reconciliação.

A partir da análise das duas obras, evidenciam-se duas posturas muito


diferentes em se tratando de seus narradores/personagens: há um sentimento
de rejeição da herança familiar presente na obra de Pierre Ouellet, em razão do
desencanto do narrador em relação à figura paterna; por outro lado, Carlos Heitor
Cony se apresenta como alguém que aceita plenamente a herança familiar, sentindo-se
feliz e gratificado em revisitar seu passado, deixando transparecer uma identificação
com a imagem paterna.

Em La vie de mémoire (2002), o nó de memória corresponde ao caminho


doloroso, marcado pelo abandono e pela vergonha dessa trajetória que remete à
ausência e à consequente falta de identificação com o pai. Cabendo a ele a tarefa de
desatar esse nó para, com isso, realizar o trabalho do luto de seu passado junto a um
pai ausente, ressignificando sua relação com a herança familiar.

Tem-se aqui um exemplo de narrativa que Dominique Viart (2008) classifica


entre as que trazem a marca do “extremo contemporâneo”, ou seja, as que têm a
característica de serem “desconcertantes” (déconcertantes): aquelas que deslocam as
expectativas dos leitores, deixando de reproduzir velhas receitas literárias e passando
a exercer uma atividade crítica que se desvia de significações pré-concebidas. Assim,

46
levam os leitores a reavaliar seus conceitos e sua consciência de estar-no-mundo.
São narrativas que “incomodam” justamente pelo fato de realizar “o inventário das
ausências” para transmiti-las através de uma escritura cáustica, gerando sentido e
restaurando memórias feridas.

Já em Quase memória (1995), o nó presente no barbante do embrulho remete


diretamente à figura paterna, externando a identificação havida entre eles e que o
acompanha no presente. Esse nó simboliza, metaforicamente, o entrelaçamento de
duas personalidades que coincidem de modo intenso e gratificante, portanto desatar
o nó não se configura em algo realizável, uma vez que o embrulho não será aberto
e permanecerá alimentando as recordações e rememorações do narrador. É um
nó carregado de positividade e afetividade, onde pai e filho compartilham vidas,
experiências, amizades, desilusões, desamparos, angústias e sinalizam a experiência
de um amor fraternal. O narrador sente-se herdeiro do pai, tendo-o como exemplo
de alguém que soube aproveitar a vida e fazer dela um lugar aprazível e confortável
para se conviver com os demais indivíduos.

Quase memória (1995) é uma narrativa de filiação cujo narrador presta


homenagem ao pai, demonstrando o quanto a personalidade paterna foi essencial
para sua formação como jornalista e escritor, transformando-se em herança
familiar de continuidade. “Se ele viveu e morreu cheio de truques, de certa forma
legou-me alguns deles. Foi uma herança, a melhor porque, entre outras coisas,
única” (CONY, 1995, p. 202).

Em La vie de mémoire, o autor/narrador admite que as memórias dolorosas


do pai resistem ao tempo, já que não se pode esquecer a dor de uma bofetada, que
deixará vestígios duradouros, marcas indeléveis. Nesse sentido, escrever servirá para
estender essas marcas ou manchas – não para apagá-las - para que elas invadam o
mundo, por que “tudo que é traz a marca do que não é mais”.12

12 Tout ce qui est porte la marque de ce qui n´est plus (OUELLET, 2002, p. 101).

47
Referências

ARISTÓTELES. Traité de la mémoire et de la réminiscence. Disponível em: <http://


remacle.org/bloodwolf/philosophes/Aristote/memoire.htm>. Acesso em: 05 out. 2018.

ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória


cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas (SP): Editora Unicamp, 2011.

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Carlos Heitor Cony. Disponível em:


<http://www.academia.org.br/academicos/carlos-heitor-cony/biografia>. Acesso
em: 10 mai. 2019.

BERND, Z. A persistência da memória. Romances da anterioridade e seus modos de


transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018.

BERND, Z. Funes, o memorioso. In: BERND, Z.; KAYSER, P. V. (Orgs.). Dicionário


de expressões da memória social, dos bens culturais e da cibercultura. 2. ed.
Editora Unilasalle, 2017. p. 115-116.

BOUCHARD, G. Jogos e nós de memória: a invenção da memória longa nas nações


do Novo Mundo. IN: LOPES, C. G. et al. (Orgs). Memória e cultura: perspectivas
interdisciplinares. Canoas: Unilasalle editora, 2009. p. 9-38. Tradução do francês por
Zilá Bernd. (Série memória e patrimônio, 1).

CONY, C. H. Quase memória. Quase-romance. Rio de Janeiro: Editora Record,


1995.

DEMANZE, L. Encres Orphelines: Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre


Michon. Paris: José Corti, 2008.

FERREIRA, A. B. de H. O dicionário da língua portuguesa. Coordenação Marina


Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. Curitiba: Ed. Positivo, 2008.

GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

GAGNEBIN, J. M. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin.


São Paulo: Editora 34, 2014.

OUELLET, P. La vie de mémoire. Montréal: Noroît, 2002.

PIFFER, B. P. A dor e o prazer das memórias involuntárias. In: BERWANGER, M. L.;


SANTOS, R. A. dos (Orgs.). Ecos da memória: práticas de memória voluntária e de
memória involuntária. Ed. Unilasalle, 2016.

48
RICOEUR, P. Temps et récits III. Paris: Seuil, 1985.
SELIGMANN-SILVA, M. A escritura da memória: mostrar palavras e narrar imagens.
In: Remate de Males, 26(1), jan.-jun. 2006. Disponível em:<https://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636053>. Acesso em: 08 jan. 2019.
SOARES, T. R. Tessituras da memória. Lembrar, narrar e ressignificar. Tese de
doutorado em MSBC defendida em 6 de agosto de 2019, na Universidade La Salle
(Canoas/RS).
VIART, D. Récits de filiation. In: La littérature française au présent: héritage,
modernité, mutations. 2. ed. Paris: Bordas, 2008.
VIEIRA, M. L. A metaforização da memória ou a Dialética da rememoração em
Walter Benjamin. In: VIEIRA, Marta Lourenço; SILVA, Izabel de Oliveira (orgs.).
Memória, subjetividade e educação. Belo Horizonte: Argumentum, 2007. p. 19-29.
WOOK. Obras de Pierre Ouellet. Disponível em: <https://www.wook.pt/autor/
pierre-ouellet/1787180>. Acesso em: 26 jun. 2019.

49
O presente do passado
Jeanne Marie Gagnebin

Na noite de 2 de setembro de 2018 queimou o Museu Nacional na Quinta da


Boa Vista, no Rio de Janeiro. Incêndio já prenunciado várias vezes pelos pesquisadores
e pelos responsáveis do Museu. Muitos deles chegaram correndo e tentaram ainda
salvar algumas peças, entrando no prédio em chamas. Depois de várias passeatas
de protesto e de luto, surgiram acusações recíprocas sobre a responsabilidade pelo
desastre. Mas, em fim de setembro, a preocupação com a catástrofe passada deu lugar
ao questionamento sobre a próxima catástrofe, a saber, as futuras eleições.

Ainda a respeito do Museu e de uma das suas destacadas pesquisadoras,


a arqueóloga Rita Scheel-Ybert que perdeu quase todo seu material de pesquisa
assim como muitos dos seus alunos de doutorado também. Na quinta feira depois
do acidente, houve uma cerimônia em comemoração aos 98 anos do Museu:
“Num depoimento emocionado ao microfone, Rita Scheel-Ybert reclamou que, na
cobertura do incêndio na imprensa, o Museu Nacional vinha sendo apresentado
como uma casa onde só se olhava para trás. ‘Sou arqueóloga e estou olhando para
frente’, afirmou. ‘Estamos construindo o futuro a partir do conhecimento do passado’
“(Revista Piauí, 2018, p.45).

Tomo de empréstimo essa bela declaração da arqueóloga para introduzir meu


texto. Tomei também emprestado o título desse texto de Susan Bock Morss. Com
efeito, gostaria de refletir com vocês sobre essa condensação de tempos que essas
duas citações afirmam. Em oposição à concepção linear de um tempo homogêneo e
vazio, como diz Walter Benjamin. nas suas teses “Sobre o conceito de história” (tese
XII), a temporalidade histórica aqui evocada, temporalidade do presente e da decisão
política, se assemelha muito mais a um adensamento súbito de várias camadas,
impregnadas de memória e, igualmente, de esperança. O gesto memorialístico não
é somente um gesto de piedade ou de erudição, mas também sinaliza o surgimento
de uma camada do passado, de cuja existência muitas vezes se tinha esquecido, que,
de repente, no momento do perigo, diz Benjamin (tese VI), se reveste de uma nova
significação. O achado, para continuar na metáfora arqueológica que Benjamin
utiliza1, transforma tanto a visão do passado como a do presente – possibilitando,

1 “Ausgraben und Erinnern”, G.S. IV-1, p. 400/401.


talvez, uma nova visão do futuro. Pois a narração rotineira sobre o passado, aquilo
que Benjamin compara ao passar pelos dedos do historiador das contas do rosário
(teses, Apêndice A) acarreta uma visão igualmente rotineira do futuro, mesmo quando
este é imaginado em termos de progresso. Somente a interrupção desse ritornelo num
presente pleno de tensões, no tempo-de-agora, “Jetztzeit”, diz Benjamin, permite narrar
de outra maneira, isto é, permite contar uma outra história.

Continuando na metáfora da arqueologia comum a Freud, Proust e Benjamin,


podemos perceber também que o solo das escavações não é nem regular nem liso. Às
vezes, o terreno apresenta uns declives bruscos, uns buracos ou, pelo contrário, uns
estranhos amontoados artificiais, como se se quisesse tapar algum rastro. Os acidentes
do terreno assinalam intervenções precárias como numa operação de conserto das ruas
da cidade após a chuva. O que se esconde aqui? O que o arqueólogo vai encontrar quando
cavar mais fundo? Encontramos, no mais das vezes, restos de cerâmica, louça quebrada,
uns túmulos, talvez um sambaqui. Isto é: encontramos restos de vida e de morte desses
vivos mortos que nos precederam, mas que não tiveram direito a monumentos oficias.
Recentemente os ossos alquebrados de milhares de escravos, que não sobreviveram à
viagem da África para o Brasil, foram achados no Cais do Valongo, na zona portuária
do Rio, que estava em obras para ser revitalizada antes das Olimpíadas: o Cemitério dos
Pretos Novos, agora escavado, contrasta com – e questiona - a brancura resplandecente
do edifício vizinho, do assim chamado Museu do Amanhã.

Se no chão do presente há tantas camadas desconhecidas do passado, é que a


memória política do passado parece não existir, em particular no Brasil. Como venho
da Suíça, isto é, de um país muito ligado, talvez demais ligado à preservação de suas
tradições, um país que teme as novidades e quer preservar sua imagem lisonjeira
de neutralidade asséptica, essas técnicas brasileiras de esquecimento em nome do
progresso e do olhar para frente só podiam me intrigar. Ao conhecer as lutas corajosas
dos filhos dos desaparecidos e dos mortos da ditadura, percebi a relevância ímpar
dessa política de desmemória , que, sob o pretexto da reconciliação nacional, revela
seu caráter abissal – e que permite, hoje, que um deputado desconhecido tenha se
transformado em figura nacional, quando dedicou seu voto em favor do Impeachment
de uma presidente, outrora presa e torturada, ao seu torturador, o coronel Brilhante
Ustra. O coronel Ustra foi diretor do DOI-Codi em São Paulo entre setembro de 1970 e
janeiro de 1974, período durante o qual houve quinhentas e duas denúncias de tortura
e quarenta e nove mortes nas dependências do DOI-Codi.

Gostaria de propor aqui, porque para isso a filosofia pode realmente ser
de auxílio, algumas distinções conceituais oriundas das reflexões de Paul Ricoeur

52
ao comentar os trabalhos da “Comissão Verdade e Reconciliação” na África do Sul.
Primeiro vou distinguir entre várias formas de esquecimento, às vezes até opostas; e,
num segundo momento, tentarei esclarecer a relação entre a narração do passado e
aquilo que, nas palavras do grande historiador Michel de Certeau, podemos chamar de
ritos de sepultamento dos mortos.
Como se sabe, no mínimo desde Freud e Proust, o esquecimento não é
somente uma não-memória, um apagar dos rastros, uma página em branco. Existe
também aquilo que Paul Ricoeur, na sua suma, La mémoire, l’histoire, l’oubli, chama
de “esquecimento de reserva”, isto é, um manancial de lembranças não-conscientes,
diria Proust, inconscientes, diria Freud2, que pode se transformar num precioso aliado
no processo da recordação quando o sujeito do lembrar desiste de tudo controlar no
campo restrito de sua consciência. Existe igualmente, como afirma toda filosofia
de Nietzsche, uma dimensão feliz do esquecimento, uma alegria e uma leveza que
permitem fazer as pazes com o passado, geralmente depois de um longo, dolorido e
generoso processo de elaboração, leveza e alegria que possibilitam não carregar mais
o passado como uma pedra nos ombros, mas reaprender a dançar e a inventar outras
figuras de vida no presente. Essas dimensões positivas do esquecimento nunca negam
ou apagam o passado, mas transformam seu estatuto vivido no presente, permitem que
se viva sem ressentimento, diz Nietzsche, sem cair na perpétua repetição, diz Freud,
permitem a instauração do novo.
Ora, a imposição do esquecimento como gesto forçado de apagar e de
ignorar, de fazer como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida
no passado, esse gesto vai justamente na direção oposta dessas funções positivas do
esquecer para a vida. Impor um esquecimento significa, paradoxalmente, impor
uma única maneira de lembrar, portanto um não lembrar, uma “memória impedida”
(“une mémoire empêchée”), diz Ricoeur (2000, p. 576). Nesse contexto, todas políticas
de anistia, promulgadas em várias circunstâncias por vários estados, servem no
máximo (e é isso o que geralmente pretendem) a tornar possível uma sobrevivência
imediata do conjunto da nação enquanto tal, mas não garantem uma coexistência
em comum duradoura. Essas políticas são antigas, não são nenhuma invenção de
militares brasileiros, argentinos ou chilenos. Ricoeur cita (2000, p. 586) a famosa
anistia promulgada em Atenas em 403 a. C., depois da vitória dos democratas sobre
a oligarquia e o governo dos Trinta Tiranos. Todos cidadãos atenienses3 tiveram a

2 Uma diferença de conceitos que estabelece toda distinção entre Freud e Proust, mas não
pretendo me demorar nessa análise aqui!
3 Um número bastante restrito de pessoas, portanto, se se calcula que havia cerca de
400 000 moradores em Atenas sob Péricles, mas que só 10% deles eram cidadãos (isto é,

53
obrigação de jurar que não lembrariam em público das infelicidades e dos males do
passado, para tentar evitar o desastre da sedição (stasis) interna e do consequente
enfraquecimento diante dos inimigos externos. Somente assim, os membros da
cidade podiam reconstruir um mínimo de paz cívica, condição da retomada da vida
em comum. O mesmo objetivo é visado pelo “Edito de Nantes”, promulgado pelo
rei francês Henrique IV, em 1598, depois das guerras fratricidas de religião, que
opuseram católicos e protestantes. Ambos os exemplos são claros: a proclamação da
anistia intenta a possibilidade de reconstrução de um mínimo de convivência entre
duas frações importantes da nação dilacerada.

Nesse contexto, aliás, podemos nos perguntar sobre o alcance da lei da Anistia
no Brasil: visava ela realmente apaziguar a memória de duas partes importantes do
povo brasileiro no seu conjunto ou se tratava, como tantas vezes no Brasil, de um
arranjo (precário) entre duas frações opostas da assim chamada “elite”? De qualquer
maneira, a anistia configura sempre uma política de sobrevivência imediata, às
vezes realmente necessária, mas não pode pretender ser uma política definitiva de
regulamento da memória histórica. Tanto é assim que se democratas e partidários da
oligarquia, católicos e protestantes não se trucidam mais, tampouco se reconciliam,
mas empreendem posteriormente outros tipos de luta.

Assim, a anistia não consegue o que sua semelhança fonética com o termo de
amnésia promete: ela não pode nem impedir nem mudar o lembrar, ela não pode ser
um obstáculo à busca da “verdade do passado”, como se diz, aliás de maneira bastante
ambígua. Ela somente pode criar condições artificiais, talvez necessárias, que tornam
possível uma retomada mínima da existência em comum no conjunto da nação. Ela
configura uma trégua, uma calmaria provisória, motivada pelo desejo de continuar a
vida, mas não é nenhuma solução, nenhuma reconciliação, ainda menos um perdão.
Num livro anterior, Ricoeur já insistia com força no caráter antitético da anistia e do
perdão. Escreve ele:
Si je m’arrête quelque peu à la question de l’amnistie, c’est
dans la mesure où, en dépit des apparences, elle ne prépare
aucunement à la juste compréhension de l’idée de pardon. Elle
en constitue à bien des égards l’antithèse. (...) A l’interdiction
de toute action en justice, donc à l’interdiction de toute
poursuite de criminels, s’ajoute l’interdiction d’évoquer les
faits eux-mêmes sous leur qualification criminelle. Il s’agit
donc d’une véritable amnésie institutionnelle invitant à
faire comme si l’événement n’avait pas eu lieu. (...) Le prix

nem mulheres, nem escravos, nem crianças, nem metecos!)

54
à payer est lourd. Tous les méfaits de l’oubli sont contenus
dans cette prétention incroyable à effacer les traces des
discordes publiques. C’est en ce sens que l’amnistie est
un contraire du pardon, lequel, comme on va y insister,
requiert la mémoire. C’est alors à l’historien (dont la tâche
est rendue singulièrement difficile par cette instauration
de l’oubli institutionnel) qu’il revient de contrecarrer par le
discours la tentative pseudo-juridique d’effacement des faits
(RICOEUR, 1995, p. 205-206).4

Essas palavras de Ricoeur, sempre tido como um autor tão comedido, são
contundentes: a anistia representa uma “incrível pretensão” de manipulação da
memória pública, é uma “tentativa pseudo-jurídica de apagamento dos fatos”.
Poderíamos também concluir: se ela constitui em certas situações um pis-aller, ela
não é nenhuma solução durável, mas só uma pausa para reconstituição posterior do
estabelecimento de uma verdadeira ordem político-jurídica. Ela tampouco significa
perdão. Tanto Jacques Derrida, que também trabalhou sobre a “Comissão de
Verdade e Reconciliação” quanto Ricoeur, concordam em lembrar que o perdão se
inscreve, como seu nome o diz em várias línguas, numa economia do dom, da dádiva,
economia incomensurável a qualquer ordem jurídica, no fundo a qualquer economia
mesma. Ele assinala a presença de uma esfera de relações humanas mais alta (que
pode ou não se fundamentar na esfera religiosa), um território sobre o qual nenhum
sistema jurídico pode pretender legiferar, justamente porque indica algo que não é da
ordem da lei, mas que só pode ser dado, nunca imposto.

Por que pode uma anistia somente ajudar a restaurar as condições mínimas
de uma retomada da vida em comum, portanto somente produzir uma ação de curta
duração, nenhum benefício a longo prazo? Porque a memória efetiva não se deixa
controlar, somente se deixa calar, às vezes também manipular, mas volta. Ela não se
deixa controlar nem pelas ordens do eu consciente, nem pelos mandos do soberano,
rei, padre ou militar. É essa independência do lembrar que sempre preocupou,

4 Se me demoro um pouco na questão da anistia, é na medida em que, apesar das aparências,


ela não prepara de jeito nenhum para a justa compreensão da ideia de perdão. Ela constitui,
em muitos aspectos, sua antítese. (...) À interdição de toda ação jurídica, portanto à interdição
de qualquer perseguição dos criminosos, junta-se a interdição de evocar os próprios fatos
sob sua qualificação criminosa. Trata-se portanto de uma verdadeira amnésia institucional
que induz a fazer como se o evento não tivesse acontecido. (...) O preço a pagar é pesado.
Todos os malefícios do esquecimento estão contidos nessa incrível pretensão de apagar os
rastros das discórdias públicas. Neste sentido, a anistia é o contrário do perdão, o qual, como
veremos, requer a memória. Cabe então ao historiador (cuja tarefa é tornada singularmente
difícil pela instauração do esquecimento institucional) refutar pelo discurso a tentativa
pseudo-jurídica do apagamento dos fatos.

55
certamente de diversas maneiras, tanto os filósofos quanto os políticos – e também os
psicanalistas. As lembranças são como bichos selvagens que voltam a nos atormentar
quando menos queremos. Por isso, dizem Freud, Nietzsche e Proust, mais tarde
Adorno e Benjamin, Ricoeur e Derrida, por isso convém muito mais tentar acolher
essas lembranças indomáveis, encontrar um lugar para elas, tentar elaborá-las, em
vez de se esgotar na vã luta contra elas, na denegação e no recalque.

A memória traz à consciência presente imagens de objetos não simplesmente


ausentes, mas de objetos desaparecidos, de objetos que não existem mais e que,
nesse sentido, são passados, caducos, mortos: vergangen, diz o alemão, révolu, diz o
francês. A esses mortos e desaparecidos, porém, a memória como que empresta uma
segunda vida, eles voltam de maneira misteriosa a habitar o presente dos vivos, sejam
eles bem-vindos ou não, como fantasmas e espectros que nos atormentam ou, pelo
contrário, nos animam e nos ajudam.

A relação que os homens entretêm com o passado é, pois, uma relação de


significação histórica e existencial que não se exaure nem na mera acumulação
nem na pretensa causalidade. Ela se nutre dessa dialética entre presença e ausência
que caracteriza tanto a linguagem (que apresenta algo ausente) como a memória
(que torna presente algo que não está mais). Significação e sentido nascem não do
dado bruto, mas dos modos humanos de entrar em relação com a ausência e com a
possibilidade de sua configuração.

Ali ganha toda sua força a dupla aceitação do adjetivo e do substantivo


passado: não é somente aquilo que passou, ficou caduco e se extinguiu, mas também
é, ao mesmo tempo, aquilo que perdura nesse seu ser findo nas dobras do presente
e para todo futuro, como o diz a citação de Jankelevitch colocada por Ricoeur na
abertura de seu livro, La mémoire, l’histoire, l’oubli5. Essa permanência do passado
(daquilo que foi, a été diz o francês, é gewesen, diz o alemão) não abole a morte dos
mortos, mas faz dos vivos de hoje seus herdeiros e interlocutores.

O passado passou, sim, mas, misteriosamente continua passando no presente.


Tentar esquecê-lo sem ter permitido a sua elaboração somente leva a repetir de
maneira cega os traumas passados. O conceito chave aqui é emprestado de Freud,

5 Citação de Vladimir Jankélévitch: “Celui qui a été ne peut plus désormais ne pas avoir été : désormais
ce fait mystérieux et profondément obscur d’avoir été est son viatique pour l’éternité”. Tradução da
edição brasileira: « Aquele que foi já não pode mais não ter sido: doravante, esse fato misterioso,
profundamente obscuro de ter sido é o seu viático para a eternidade.” (A memória, a história, o
esquecimento. Editora Unicamp, 2007. Tradução de Alain François.

56
mas designa um trabalho (Verarbeitung, Bearbeitung, Erarbeitung, Aufarbeitung6)
mais amplo que o individual, trabalho de transformação de um passado soterrado:
quando não “trabalhado” - ou, nos termos da metáfora arqueológica, quando não
se persevera nos trabalhos de escavação, triagem, reconhecimento e nomeação dos
fragmentos esparsos - esse passado encobre aquilo que poderia ser o indício de outro
devir. Outros devires do passado que não chegaram a se realizar, que foram derrotados
ou, simplesmente, ignorados. E outros devires do presente, reduzido a uma camada
rasteira e monótona, pretensa continuidade de uma história tida como necessária. O
esquecimento imposto prejudica o trabalho do historiador, em particular no Brasil, e
impede uma relação do país em seu conjunto a seu passado, passado este que deveria
ser objeto de pesquisas, de estudos, de discussões entre todos.

Não é somente o passado que continua desconhecido e, simultaneamente,


ameaçador. Também fica bloqueada uma relação de liberdade diante do presente.
Cito aqui a bela definição da escrita da história, da historiografia, como sendo um
“ritual de sepultamento”, como o definiu Michel de Certeau:
Por um lado, no sentido etnológico e quase religioso
do termo, a escrita representa o papel de um rito de
sepultamento ((un rite d’enterrement)); ela exorciza a morte
introduzindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma função
simbolizadora; permite a uma sociedade situar-se, dando-
lhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço
próprio para o presente: ‘marcar’ um passado, isso significa
também dar um lugar ao morto, mas também redistribuir o
espaço dos possíveis, determinar negativamente o que está
por fazer e, por conseguinte, utilizar a narratividade, que
enterra os mortos, como um meio de estabelecer um lugar
para os vivos.” 7

Pelo intermédio de Michel de Certeau reencontramos Walter Benjamin


de quem nunca nos afastamos. Com efeito, no último texto que ele escreveu, as
famosas teses “Sobre o conceito de história”, Benjamin coloca algumas balizas para
uma historiografia verdadeiramente “militante”; não porque militaria em favor de

6 Adorno fala também de uma « Aufarbeitung der Vergangenheit ».


7 D’une part, au sens ethnologique et quasi religieux du terme, l’écriture ((de l’historien))
joue le rôle d’un rite d’enterrement ; elle exorcise la mort, en l’introduisant dans le discours.
D’autre part, elle a une fonction symbolisatrice ; elle permet à une société de se situer en se
donnant dans le langage un passé et elle ouvre ainsi au présent un espace propre : ‘marquer’
un passé, c’est faire une place au mort, mais aussi redistribuer l’espace des possibles,
déterminer négativement ce qui est à faire, et par conséquent utiliser la narrativité qui
enterre les morts comme moyen de fixer une place aux vivants. 

57
um partido ou de uma tendência, mas porque milita por uma memória do passado
que permite não só salvar a memória dos vencidos, mas também liberar outras
possibilidades de luta e de ação no presente do historiador – no seu caso, um presente
paralisado pelo fascismo e pelos dogmatismos tanto da historiografia burguesa
quanto do marxismo ortodoxo e stalinista. Essa enunciação no presente acarreta
como consequência que história “a contrapelo” do passado (“gegen den Strich”, tese
VII) e reflexão crítica sobre o presente coincidem. Ora, a questão dos mortos e do
destino que lhes reserva a historiografia dominante é absolutamente crucial, ela é o
trunfo de uma luta no presente que a tese VI torna mais precisa:
Chaque époque devra, de nouveau s’attaquer à cette rude
tâche : libérer du conformisme une tradition en passe d’être
violée par lui. Rappelons-nous que le messie ne vient pas
seulement comme rédempteur mais comme le vainqueur de
l’Antéchrist. Seul un historien, pénétré ((de la conviction))
qu’un ennemi victorieux ne va même pas s’arrêter devant
les morts – seul cet historien-là saura attirer ((peut-être
Benjamin veut-il plutôt dire ‘attiser’)) au coeur-même des
événements révolus l’étincelle d’un espoir. En attendant, et
à l’heure qu’il est, l’ennemi n’a pas encore fini de triompher
(BENJAMIN, 1974, p. 1262).8

Citei a tradução para francês do próprio Benjamin; ela talvez não seja muito
elegante, mas ela tem o mérito de muitas vezes tornar seu pensamento mais preciso.
Assim, onde o texto alemão diz: “auch die Toten werden vor dem Feind, wenn er
siegt, nicht sicher sein” (literalmente: “os mortos, eles também, não estarão a salvo
diante do inimigo, se ele vencer”), Benjamin realça, na versão francesa, a atividade de
profanação do inimigo, “que não se deterá nem diante dos mortos”. Essa tendência à
profanação marca de maneira precisa o limite onde o poder político se converte em
mera violência, violência mítica diria Benjamin, fora do espaço de uma sociabilidade
comum. Espaço de violência, o sabemos desde os relatos dos sobreviventes, pelo
menos tais quais os analisa Giorgio Agamben, que parece surgir como o nomos
implícito do estado moderno enquanto estado de exceção instituído.9 A insistência

8 Cada época deverá novamente enfrentar essa rude tarefa: libertar do conformismo uma
tradição que está sendo por ele violada. Lembremos que o Messias não vem somente como
redentor, mas como o vencedor do Anticristo. Somente um historiador convencido que
um inimigo vitorioso não vai se deter, nem diante dos mortos – somente esse historiador
saberá insuflar no coração mesmo dos acontecimentos a centelha de uma esperança. Até
agora, e nesse momento, o inimigo ainda não cessou de vencer.
9 Ver Giorgio Agamben, Homo sacer: Il potere sovrano e la nuda vita, Einaudi 1995, trad.
brasileira: Homo sacer. O poder soberano e a vida nua, Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2004.

58
de Benjamin no perigo que correm os mortos de serem, por assim dizer, mortos
mais uma vez, lança uma luz paradoxal sobre a resistência do poder ditatorial, depois
democrático, a procurar e identificar os desaparecidos. Tratar-se-ia não só de não
querer confessar os crimes cometidos. Tratar-se-ia mais ainda de afirmar que cabe
ao poder político decidir do destino dos mortos como já dizia Creonte na Antígona
de Sófocles: as “leis não escritas” dos sobreviventes, que desejam ainda respeitar a
prática humana (e sagrada) do funeral e da inumação10, não têm força de lei.
Não gostaria de terminar essa comunicação com a imagem de túmulos
proibidos, mas, sim com outro pensamento de Benjamin, quando evoca aquela “fraca
força messiânica” que cabe à cada geração do vivos de hoje para tentar redimir a si
mesmos e, também, redimir os mortos que nos interpelam. E como se houvesse, diz
Benjamin na tese II, um “encontro secreto” marcado entre os mortos do passado e
os vivos do presente. Essa ressurgência súbita faz das lutas do presente um campo
onde ressoam muitas vozes, não só as nossas, mas também outras, vozes cheias de
coragem e de esperança, das gerações passadas. “Os mortos se apoiam nas lutas dos
vivos para continuarem suas batalhas”, afirma num recente artigo Vladimir Safatle11.
Esses “espectros do tempo”, assim o título do artigo, não aparecem somente ao
nosso lado. Também povoam o imaginário e o ideário daqueles que detêm o poder.
Mas os derrotados de ontem nos transmitem suas esperanças e suas forças, mesmo
derrotados e mortos ou, talvez, justamente porque foram derrotados e mortos.
Estranha convivência na qual um gesto passado ressurge no presente, cheio de
inventividade, de alegria e de impertinência, um gesto que não garante nada, mas
que nos empurra para continuar.
Não posso deixar de mencionar, por fim, a ação poético-política que aconteceu
em Recife dia 25 de outubro de 2018. O artista Paulo Bruscky 12 citou a ação do seu
conterrâneo, Cícero Dias que, em 1943, com o auxílio de um amigo piloto, fez chover
sobre Paris, ocupada pelos nazistas, uma chuva de papel com o poema “Liberdade”
do poeta e resistente Paul Eluard. Bruscky subiu numa escada e jogou ao vento, numa
praça central de Recife, folhas com a tradução do poema (por Carlos Drumond de
Andrade e Manuel Bandeira).
10 Essa alusão à Antígone de Sófocles me foi sugerida pelo belo artigo de Vladimir Safatle em
O que resta da ditadura, org. por Edson Teles e Vladimir Safatle, São Paulo: Boitempo,
2010. p. 252.
11 Folha de São Paulo, Caderno C, página 10, 28 de setembro de 2018.
12 Paulo Roberto Barbosa Bruscky é um artista multimídia e poeta brasileiro conhecido por
sua ampla participação no movimento da arte conceitual brasileira. Seu pai era um artista
da Bielo-Rússia que estava em turnê pelo Brasil quando conheceu sua mãe, no Teatro
Santa Isabel.Wikipédia

59
Cito esse ato ocorrido no passado, desconhecido pela maioria dos transeuntes.
O gesto do artista torna esse ato subitamente presente e potente, apesar de nosso
desânimo. Concluo, então com algumas estrofes desse longo poema (21 estrofes),
citando as estrofes 1, 2, 11, 12 , 19, 20, 21 .

Liberdade

Nos meus cadernos de escola


Nesta carteira nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome
Em toda página lida
Em toda página branca
Pedra sangue papel cinza
Escrevo teu nome
Nas imagens redouradas
Na armadura dos guerreiros
E na coroa dos reis
Escrevo teu nome
Nas jungles e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No céu da minha infância
Escrevo teu nome
Nas maravilhas das noite
No pão branco de cada dia
Nas estações enlaçadas
Escrevo teu nome
Nos meus farrapos de azul

60
No tanque sol que mofou
No lago lua vivendo
Escrevo teu nome
Nas campinas do horizonte
Nas asas dos passarinhos
E no moinho das sombras
Escrevo teu nome
Em cada sopro de aurora
Na água do mar nos navios
Na serrania demente
Escrevo teu nome
Até na espuma das nuvens
No suor das tempestades
Na chuva insípida e espessa
Escrevo teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos sinos das sete cores
E na física verdade
Escrevo teu nome
Nas veredas acordadas
E nos caminhos abertos
Nas praças que regurgitam
Escrevo teu nome
Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

61
No fruto partido em dois
de meu espelho e meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo teu nome
Em meu cão guloso e meigo
Em suas orelhas fitas
Em sua pata canhestra
Escrevo teu nome
No trampolim desta porta
Nos objetos familiares
Na língua do fogo puro
Escrevo teu nome
Em toda carne possuída
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome
Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes do meu tédio
Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte

62
Escrevo teu nome

Na saúde recobrada

No perigo dissipado

Na esperança sem memórias

Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra

Recomeço minha vida

Nasci pra te conhecer

E te chamar

Referências

ADORNO, Th. W. Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit. Eingriffe,


Gesammelte Schriften Vol. 10-2, Wissenschaftliche Buchgesellsachaft Darmstadt
1998, p. 555-572.

AGAMBEN, G. A. Homo sacer: Il potere sovrano e la nuda vita, Einaudi 1995,


trad. brasileira: Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: editora
UFMG, 2004.

BENJAMIN, W. Walter Benjamin, version française des thèses, Gesammelte


Schriften, v. I-3, p. 1262, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1974.

DE CERTEAU, M. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. p. 118. , Trad.


brasileira : A escrita da história, Forense-Universitária, Rio de Janeiro, 1982, p.107.

DERRIDA, J. Le siècle et le pardon. Foi et Savoir. Paris : Points, Seuil, 2000.

ELUARD, P. Liberdade (Liberté).   [tradução Carlos Drummond de Andrade e


Manuel Bandeira], Antologia de Poetas Franceses do Século XV ao Século XX.
[organização JR. R. Magalhães]. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1950.

MORSS, S. The gift of the past, palestra proferida no Congresso Walter Benjamin.
Porto Alegre, PUC/RS, 28 de setembro de 2018.

63
Revista Piauí, outubro de 2018, p. 45.

RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris: Seuil, (original do ano 2000) Em


porutugês: A memória, a história, o esquecimento. Campinas: editora da Unicamp,
2008.

RICOEUR, P. Le juste. Paris : Editions l´Esprit, 1995. p. 205/206.

64
Imagens silenciadas na poética de Rosângela Rennó

Nadja de Carvalho Lamas

A poética de Rosângela Rennó é marcada por uma percepção sensível e


perspicaz sobre fatos da realidade, comumente velados pela estrutura social vigente.
É uma artista que trabalha com fotografia, mas que em um dado momento opta por
não fotografar, apropria-se de negativos e fotos de arquivos anônimos particulares
e institucionais, álbuns de pessoas ganhado?? ou de feiras de antiguidades, lixeiros
de laboratórios fotográficos populares, obituários. Imagens, que guardam histórias
anônimas, memórias veladas ou apagadas socialmente, são as principais fontes
presentes em suas obras.

Do conjunto de uma produção singular e intensa foram escolhidas duas obras,


para desenvolver as ideias aqui propostas: Imemorial, uma instalação de 1994 e Espelho
diário, uma vídeoinstalação de 2001. Ambas trabalham com arquivo, a primeira com
um arquivo institucional, a segunda com um arquivo pessoal.

A memória, e com ela as questões de arquivo, é fonte de referência para


importantes artistas cuja poética pode ser identificada na perspectiva da arte
contemporânea. Guasch (2011) desenvolve amplo estudo sobre as relações entre arquivo
e arte. Na sua perspectiva a análise da arte nas vanguardas passa pela compreensão dos
grandes paradigmas1 que a norteia. O primeiro diz respeito à obra única, à ruptura
formal, cuja singularidade provoca choque e estranhamento, próprio das linguagens
dos movimentos artísticos da vanguarda. O segundo grande paradigma corresponde
à multiplicidade do objeto artístico, caso da collage, ou da fotomontagem, que provoca
uma descontinuidade temporal, a destruição dos cânones tradicionais da arte moderna,
como o Dadaísmo e em alguns casos o Surrealismo.

O terceiro paradigma, apontado pela autora, diz respeito ao arquivo.


Constitui-se em uma linha de trabalho com características específicas e coerentes.
Identifica como um dos precursores de um pensar sobre as relações existentes
entre arte contemporânea e as questões relativas ao arquivo, o historiador alemão,
Benjamin Buchloh.2 Buchloh argumenta que este é um paradigma cuja criação

1 A autora trabalha com a noção foucaultiana de paradigma.


2 Atualmente Benjamin Bucloh é professor de Arte Moderna na Universidade de Harvard.
artística se sustenta numa lógica de sequência mecânica com rigor formal e coerência
estrutural, ou seja, uma “estética de organização legal-administrativa”. Os dois primeiros
paradigmas trazem ‘‘o espírito transgressor da utopia social e artística própria das
primeiras décadas do século XX” (GUASCH, 2011, p. 10). O paradigma do arquivo, no
entanto, na “sua cronologia se sobrepõe com os outros dois, manifesta e forma parte na
aparência de um estado de conformismo burocrático” (GUASCH, 2011, p. 10).

Buchloh, desenvolve os seus estudos sobre as relações existentes entre a arte e o


arquivo, referenciado pelo teórico e artista Allan Sekula, cujo estudo de 1986, O corpo
e o arquivo, procura discutir as relações entre o arquivo e a fotografia policial. Buchloh,
embora pouco referenciado neste tema, “foi um dos primeiros historiadores a estudar
o paradigma do arquivo na arte contemporânea” (GUASCH, 2011, p. 11).3

A exposição Armazenamento Profundo: coletando, armazenando e arquivando


arte (Deep Storage, Collecting, Storing, and Archiving in Art), foi a primeira exposição
a discutir armazenamento e arquivamento como imagens, como estratégia artística.
Inicialmente foi apresentada em três cidades alemãs (Munique, Berlim e Düsseldorf),
em 1998 e no ano seguinte, 1999, em duas cidades americanas (Nova York e Seattle).
Ingrid Schaffner e os curadores Matthias Winzen, Geoffrey Batchen e Hubertus
Gassner foram responsáveis por sua organização. O catálogo da mostra conta ainda
com a participação de ensaios de quinze autores. Entre esses está o ensaio de Buchloh,
intitulado Paradigma de Warburg? O fim da colagem e fotomontagem na Europa do pós-
guerra (Warburg’s Paragon? The End of Collage and Photomontage in Postwar Europe).
Buchloh parte da concepção de Atlas Mnemosine, de Aby Warburg (1924), para analisar
obras de artistas europeus dos anos sessenta. Esta exposição, como Guasch destaca,
ocorre três anos depois que Derrida, lança Mal de Arquivo (1995).

Ruth Rosengarten (2012), no catálogo de uma exposição virtual por ela


curada, no Museu Coleção Berardo, Lisboa, analisa o que denomina de virada
arquivística na arte contemporânea, situando-a no cruzamento entre história,
memória e imaginação. Seu estudo parte do ponto em que arquivo e fotografia
se tocam. Tal como os estudos de Guasch, Rosengarten destaca como primeiras
aproximações dos estudos sobre o método arquivístico como análise cultural, Das
Passagens-Werk,4 de Walter Benjamin, iniciado em 1927, mas inacabado com a
sua morte. Outra importante referência, nesta década, é o Atlas Mnemosine, de
Aby Warburg, iniciado em 1924, um conjunto de imagens articuladas em formas

3 Tradução livre do original “[...] fue uno de los primeiros historiadores que se plateó el
estúdio del paradigma del archivo en el arte contemporâneo”
4 Em português Passagens, editora UFMG de 2006.

66
de painéis, em que trabalha com a noção de memória histórica e história como
recordação.

Algumas décadas depois, Michel Foucault (1969) publica A Arqueologia do


Saber (L’Archeologie du Savoir). Argumenta, neste ensaio, que o arquivo é um modo de
enunciado-coisa e seu funcionamento é o que possibilita a lei do que pode ser dito, do
que rege o aparecimento dos enunciados como singulares, é “sistema geral de formação
e da transformação do enunciado” (FOUCAULT, 2015, p. 158-159). Três décadas depois,
Jacques Derrida faz uma conferência intitulada O conceito de arquivo. Uma impressão
freudiana (Le Concept d’archive. Une impression freudienne), proferida no Colóquio
Internacional A memória. Questão de arquivos (Memory The Question of Archives) (1994).
Depois de um ano, esta é publicada com o título Mal de Arquivo: uma impressão freudiana
(Mal d’Archive: une impression freudienne), 1995. Derrida estabelece um paradigma do
arquivo, cujo pilar estaria em Walter Benjamin. Sua reflexão tem dois fios condutores, a
psicanálise, na perspectiva de Freud e a comunicação, se faz necessário pensar o arquivo
nos próprios “meios de comunicação”, pois na medida que estes se transformam há
impacto nas formas de arquivar. “Mal de arquivo evoca sem dúvida um sintoma, um
sofrimento, uma paixão: o arquivo do mal” (DERRIDA,1995, p. 9).

A compreensão da noção de arquivo na arte contemporânea passa também pela


compreensão de dois outros termos próximos: colecionar e armazenar. Pois se estes
trazem a ideia de atribuir um lugar para alguma coisa, o arquivo tem como princípio
agrupar. Guasch pensa o arquivo na perspectiva de Derrida, em que o arquivo,
Como tal, exige unificar, identificar, classificar, sua maneira
de proceder não é amorfa ou indeterminada, senão que
nasce com o propósito de coordenar um “corpo” dentro de
um sistema ou uma sincronia de elementos selecionados
previamente em que todos eles se articulam e relacionam
dentro de uma unidade de configuração determinada
(GUASCH, 2011, p. 10).5

As questões sobre arquivo abordadas por Benjamin, Warburg, Foucault


e Derrida foram bases determinantes e influenciaram diversos artistas, teóricos
e instituições, haja vista as exposições, seminários, congressos e publicações que
pensaram e pensam questões relativas a memória, esquecimento, rememoração,
amnésia.

5 Tradução livre do original “[...] como tal, exige unificar, identificar, classificar, su manera de
proceder nos es amorfa o indeterminada, sino que nace com el propósito de coordinar un
‹‹corpus›› dentro de un sistema o una sincronía de elementos seleccionados previamente en la
que todos ellos se articulan y relacionan dentro de una unidad de configuración predeterminada.”

67
Imemorial (1994),6 é uma instalação, de Rosangela Rennó, apresentada
pela primeira vez, em Brasília, durante a exposição Revendo Brasília (1994-1995),
realizada na Galeria Athos Bulcão, no Teatro Nacional de Brasília. Em 1995 foi
exposta no Ed. Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.

A instalação é composta de cinquenta fotografias, no gênero retrato, sendo


quarenta delas em película ortocromática pintada, deitadas sobre o assoalho
da galeria, e dez em cor sobre papel resinado sobre suporte de ferro e parafusos,
colocados na parede, frente às fotos que se encontravam ao chão. Acima das imagens,
na parede, foi colocado o título Imemorial, com letras de metal pintado. Em Brasília,
as imagens colocadas sobre o assoalho seguem uma leve curva, o que parece lembrar
o traçado do plano piloto da cidade, proposto por Lúcio Costa.7

As fotografias, que compõem esta instalação, decorrem do recorte de 50


retratos fotográficos, resgatadas do arquivo de imagens de trabalhadores da empresa
Pacheco Fernandes Dantas, responsável pela construção de Brasília.

Alfonso Rube convidou três fotógrafos da Alemanha e três brasileiros para


participar de um projeto de uma exposição sobre Brasília. Rosângela estava entre
eles. Conforme entrevista8 chegou em Brasília com um projeto de história oral, mas
ao ter contato com o Arquivo Público Federal, diz
[...] eu fiquei impressionada com os depoimentos de quem
viveu a época da construção e aí eu li aquilo tudo, era uma
coisa absurda e aí falei: “Não, eu vou trabalhar com os
retratos dos mortos” [...] que na verdade era meio uma coisa
meio dos desaparecidos [...] Parecia lidar com retrato da
Ditadura, morto e desaparecido dá no mesmo.

Rosângela debruçou-se a ler todo o material disponível para consulta pública,


embora tivesse que enfrentar resistências institucionais. Há farto material sobre a
construção da capital, de ambos os lados, a história oficial largamente propagada
em livro sobre Juscelino Kubistchek e os relatórios sobre a construção da cidade;
e a história não oficial contada por aqueles que viveram no canteiro de obras da
construção, os candangos e seus familiares, cujas entrevistas estão arquivadas. As
versões são diferentes, pois as memórias são também diferentes.

6 Imagem disponível em http://www.rosangelarenno.com.br/obras/view/19/1


7 Imagem disponível em http://doc.brazilia.jor.br/plano-piloto-Brasilia/croquis-Lucio-
Costa-01-02.shtml
8 Entrevista dada a Lucas Mendes Menezes e Luís Felipe Garrocho, disponível em:
<www.fafich.ufmg.br/historiaoral/index.php/por/content/.../Rosangela-Renno.pdf>.

68
Aleida Assmann (2011), ao abordar a memória cultural faz um sensível
aprofundamento sobre a memória, a recordação e o esquecimento. Na discussão
sobre memória funcional e memória cumulativa, enfatiza que estes são dois modos
de recordação. Sua construção teórica parte da teoria literária, mas constitui-se
interdisciplinar, pois transita nos campos da filosofia, da psicanálise, da teoria da
história, da egiptologia e da teoria da arte. Ao discutir a distinção de história e
memória traz também a perspectiva de filósofos, sociólogos e historiadores. Em
Maurice Halbwachs identifica as lembranças comuns como elemento de coesão do
grupo, o que denominou como “memória de grupo”, cuja “estabilidade da memória
coletiva está vinculada de maneira direta à composição e subsistência do grupo”
(ASSMANN, 2011, p. 144). Halbwachs fazia clara distinção entre memória coletiva
e memória histórica, pois a primeira “assegura a singularidade e a continuidade de
um grupo”, enquanto a segunda “não tem função de asseguração da identidade”
(ASSMANN, p. 144). Para esse sociólogo as memórias coletivas só existem no plural,
enquanto a memória histórica integra muitas narrativas, existindo no singular. Se a
memória histórica se especializa a memória coletiva obscurece as mudanças.

Para além das perspectivas sobre história e memória de estudiosos a esse


respeito, Assmann, propõe pensar a história e a memória na relação entre memória
habitada e inabitada como dois modos complementares de recordação. Denomina,
então, a memória habitada como memória funcional, cujas características com relação
ao grupo são: seletividade, vinculação a valores e orientação ao futuro. As memórias
de segunda ordem são as ciências históricas, por serem “memórias das memórias”, ou
seja, “que acolhe em si aquilo que perdeu a relação vital com o presente” (ASSMANN,
2011, p. 147), cuja denominação sugerida é memória cumulativa.

Na perspectiva do campo, a psicoterapia, a memória cumulativa “contém


o inutilizável, obsoleto e estranho: o saber objetivo neutro e abstrato-identitário,
mas também o repertório de possibilidades perdidas, opções alternativas e chances
desperdiçadas” (ASSMANN, 2011, p. 150). No entanto, a memória funcional cultural
“está vinculada a um sujeito que se compreende como seu portador ou depositário.
Sujeitos coletivos da ação como estados ou nações constituem-se por meio de uma
memória funcional, em que tornam disponível para si uma construção do que seria
seu passado” (ASSMANN, 2011, p. 150).

Assman (2011) destaca três formas de uso da memória funcional: legitimação,


deslegitimação e distinção. A legitimação é a forma inspiradora da memória política
ou oficial, em decorrência da “aliança entre dominação e memória”, cujo aspecto
positivo dá-se na elaboração do saber histórico, pois o “poder dominante tem

69
necessidade de explicitar sua própria origem” (ASSMANN, 2011, p. 151). Entretanto,
há uma face negativa, pois os “dominadores querem ser lembrados e, para isso, erigem
memoriais em homenagem aos seus feitos” (ASSMANN, 2011, p. 151).

No debruçar sobre o material do Arquivo Nacional do Distrito Federal,


Rosângela se dá conta de que submersa às grandes comemorações oficiais de
inauguração da nova capital federal, que resulta de um projeto visto como ousado,
voltado para um futuro idealizado, de grande visibilidade internacional, há uma
outra história. Inaugurada com o glamour requerido pelo protocolo oficial, no dia
21 de abril de 1960, pelo seu mentor, o então presidente Juscelino Kubistchek, há
o silenciamento de uma história nada glamurosa, mas de sofrimento devido as
precárias condições de milhares de trabalhadores.

A construtora responsável pela construção de Brasília, a Pacheco Fernandes


Dantas, era responsável pela contratação, salário, moradia e alimentação dos
trabalhadores. No entanto, os relatos dos trabalhadores e familiares revelam jornadas
de trabalho de 14 a 18 horas, para atender os trabalhos no canteiro de obras que
funcionava 24 horas ininterruptamente. Os galpões eram inadequados, quartos
pequenos com vários beliches e colchões de capim, nada higiênicos, muitas vezes
precisavam ser queimados, por não ser mais possível tirar parasitas. O sanitário
era em forma de latrina, primitivo, buraco no chão e lona para fechar. O refeitório
pequeno frente ao número de trabalhadores, cuja comida era de péssima qualidade,
por vezes crua ou estragada. Salários baixos e muitas vezes pagos com atraso. Esta
situação gerava revolta e brigas.

Em 2010,9 o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, lançou


uma publicação intitulada Veredas de Brasília: As expedições geográficas em busca de
um sonho, que relata o censo experimental realizado em maio de 1959, cujo objetivo
era conhecer quem eram os candangos que construíram Brasília. O censo mostrou
que naquela data havia 64 mil pessoas trabalhando no canteiro, 42 mil homens, o
que correspondia a 192 homens para cada grupo de 100 mulheres. A faixa etária era
de 20 a 40 anos, a maioria advindos de Goiás (23,8%), Minas Gerais (20,3%) e Bahia
(13,5%). Havia, em 1959, 1.216 estrangeiros em Brasília. Em 1956, quando iniciaram
os trabalhos no canteiro, eram 256 trabalhadores.

Rosângela, afirma
as pessoas sumiam. Às vezes sumiam porque sumiam,
largavam a mala ali e iam para sertão ou porque morriam

9 Matéria publicada em 21/04/2010, pelo Jornal de Brasília.

70
[...] Um país enorme voltado para o futuro, só pensa no
futuro e atropela tudo em função do futuro [...] Era meio
impressionante lidar com essa coisa de imaginar sessenta
mil funcionários, construindo... Quase setenta mil operários
construindo Brasília e os que morriam você não dava nem
conta [...] eu nunca tinha ouvido nada sobre Brasília até eu
ver, ler o depoimento [...].10

Os depoimentos aos pesquisadores revelam que no dia 08 de fevereiro de


1959, aconteceu um massacre no alojamento da construtora Pacheco Fernandes
Dantas, quando soldados da GEB – Guarda Especial de Brasília, chegaram atirando
nos operários. A versão recorrente é de que no período da tarde dois trabalhadores
reclamaram que a comida estava estragada, o que gerou uma briga e a guarda foi
acionada, mas saiu derrotada. À noite, em torno de 23h, os soldados retornaram
em grande número e armados, atirando ostensivamente, atingindo inclusive
trabalhadores que estavam dormindo. Não se sabe quantos morreram, quem eram e
nem onde foram enterrados, pois os corpos foram colocados no caminhão e levados
para local desconhecido. Sabe-se, no entanto, que em torno de 93 malas foram vistas
no alojamento e nunca veio ninguém reclamar por elas. Os números de mortos
variam de um entrevistado para outro.

Contam os entrevistados que quando um trabalhador caía de algum prédio


e ficava muito ferido, era colocado imediatamente na camionete e não se tinha mais
notícia da pessoa.

Entretanto, os relatos oficiais se vangloriam de que durante a construção


houve apenas uma morte e uns poucos feridos sem gravidade. Nenhum documento,
discurso de autoridades ou os arquitetos responsáveis falam desse massacre. Nem
mesmo Ernesto Silva, então presidente da NOVACAP, reconhece o massacre.

Conforme Assmann (2011), “os dominadores usurpam não apenas o passado,


mas também o futuro” (p.151), pois na ânsia de quererem ser lembrados pelos seus
feitos, apagam a história do outro. A construção de Brasília, parece ser um exemplo.

Todavia, a despeito da história oficial, vários estudos com uso da história


oral, têm possibilitado desvelar as várias camadas de esquecimento desta história,
como o livro de Nair Bicalho de Souza, Construtores de Brasília (1993), o livro e
o documentário com entrevistas de candangos e familiares, de Vladimir Carvalho,
Conterrâneos Velhos de Guerra (1990), o livro de Hermes Aquino Teixeira, No tempo

10 Entrevista citada.

71
da GEB (1956 – 1960) e sua dissertação Trabalho e Violência na Construção de Brasília
(1996), defendida na UNB, em 1982, Brasília: o outro lado da utopia.

Deleuze, em palestra para profissionais do cinema, intitulada O ato de criação,


num dado momento cita Foucault a partir de suas reflexões sobre a sociedade de
controle, e o papel da informação. Então questiona sobre o que tem a obra de arte com
a informação, e responde que nada, mas há, no entanto, a contrainformação. Sempre
existiu a contrainformação, em países totalitários, ditatoriais ou mesmo quando judeus
vinham do campo de concentração traziam a contrainformação, porém estas não
chegavam a perturbar, nem mesmo a Hitler. Para Deleuze a contrainformação só “se
torna eficaz quando ela é – e ela o é por natureza – ou se torna um ato de resistência. E
o ato de resistência não é nem informação nem contrainformação. A contrainformação
só é efetiva quando se torna um ato de resistência” (DELEUZE, 1997, p. 12-13).
Identifica, todavia, que o que há em comum entre a obra de arte e a comunicação, é
o ato de resistência. Cita, então, um conceito filosófico de André Malraux “uma coisa
bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte” (DELEUZE,
1987, p. 13).

Imemorial é ato de resistência, traz das entranhas do canteiro de obras que


construiu Brasília, as memórias subterrâneas,11 apagadas, silenciadas pela memória
funcional. Mas, “o ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato
de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte,
seja sob a forma de uma luta entre os homens” (DELEUZE,1987, p. 14).

Os retratos cujos rostos estão esmaecidos, pela intervenção da artista, não têm
nomes, são anônimos, mas, colocados simbolicamente como lápides, prestam-lhe justa
homenagem, finalmente, têm um lugar. Um lugar protegido, perene e simbólico, o lugar
da arte.

Espelho Diário,12 2001, tem como conceito operacional na sua poética o arquivo,
porém não o arquivo institucional, como na obra Imemorial, mas o arquivo pessoal. No
período de oito anos, 1992 a 2000, Rosângela coletou reportagens de jornais que tratassem
de temas relativas a mulheres cujos nomes eram Rosângela, com imagem ou não.

11 Sentido de Pollak, 1989.


12 Espelho Diário, 2001. Duração: 121’, em cada tela de projeção. Duração total: 242’.
Formato DVD-CAM, versão em português. Format Digital Beta, English version and
French version. Formato de exibição 2 DVDs/NTSC, para projeção em duas telas em
ângulo de 90/120 graus. Espelho Diário foi viabilizado pela Bolsas Vitae de Arte e pela
Guggenheim Fellowship. Imagem disponível em: <http://www.rosangelarenno.com.
br/obras/view/26/1>.

72
O conjunto constituído neste arquivo, teve como metodologia e princípio
arquivístico, a entrada das imagens ou reportagens no mesmo dia de sua publicação.
Posteriormente este arquivo, em forma de diário-colagem, foi encaminhado para
Alícia Duarte, escritora que transformou as matérias jornalísticas em narrativas
autobiográficas, no gênero diário. Foram criadas 133 histórias de Rosângelas.

Espelhoo Diário, constitui-se, então, em duas fases, a primeira com a


videoinstalação, exposta pela primeira vez em 2001, e a segunda o livro com as
narrativas, publicado em 2008.

Rosângela vive as 133 histórias, na gravação. Interpreta cada personagem


que tem o de nome Rosângela conforme sua personalidade, com figurino, cenário,
iluminação e entonação própria. A sequência é organizada conforme as tipologias
estabelecidas. São quatorze tipologias – as mães, as mortas, as sequestradas, as
namoradas, as presidentes de instituições, a colunável e representante da “maison”, as
profissionais militares, a acidentada e as feridas, as secretárias, a fugitiva e a menor, a
cinderela e a noiva abandonada, as funcionárias, as golpistas e a fundista.

Os vídeos foram gravados com a intenção de serem projetados de forma


espelhada, num ângulo de 90º/120º. No lado direito estão as imagens e texto relativos
aos fatos mesmo e a esquerda constam os textos que, de alguma maneira refletem
as questões ali apresentadas. Embora o primeiro vídeo sugira uma temporalidade
linear, 1º janeiro e 31 de dezembro, os dias se alternam. As imagens e as histórias
também se alternam, num jogo de formas, cores, cenários e iluminação.

O arquivo, em Espelho Diário, não é institucional, mas um arquivo pessoal


da artista que, de certa forma, decorre de um projeto que Rosângela denominou
de Arquivo Universal. Esse arquivo surge na época em que estava preparando um
trabalho para a Conferência “Rio 92”. Os principais jornais enfatizavam em suas
manchetes matérias relativas à Conferência, entretanto, os jornais mais populares
abordavam a realidade violenta cotidiana. Rosângela dedica-se a ler estes jornais
diariamente e selecionar matérias, iniciando, então, o trabalho com imagens e textos
de jornais, um projeto que foi sendo lapidado com o tempo. Para Paulo Herkenhoff
(1996) o Arquivo Universal é o “momento mais radical de inacessibilidade” (p. 26)
da negação da fotografia e a crise da imagem, pois, “Para a fotografia exacerba-se o
caráter de real ausente” (p. 26). Sobre o Arquivo Universal, Herkenhoff reflete:
No Arquivo Universal não se trata de cegueira, mas da
subtração da imagem. Exatamente onde ela parece não estar,
ali existe ainda mais forte a sua presença. Entranhada nessa

73
circunstância está a estratégia estilística dos litotes. A total
negação da imagem revela e faz resplandecer o desejo último
de fotografia (HERKENHOFF, 1996, p. 27).

A característica arquivística de Rosângela é singular, o Arquivo Universal e


as obras, dele decorrentes, abordam criticamente as problemáticas da imagem e da
fotografia, é a possibilidade infinita de produção de imagens. Para Herkenhoff, a artista
“vem reunindo um arquivo dos arquivos, como se fosse ele mesmo o Grande Arquivo
ou o próprio Arquivo Universal. Ademais, Rosângela Rennó vem construindo um
surpreendente sistema próprio de arquivos” (HERKENHOFF, 1996, p. 28).

Imemorial e Espelho Diário evidenciam o olhar crítico e irônico de Rosângela


Rennó sobre a sociedade, as suas instituições com suas instâncias de poder, a mídia,
enfim, a realidade. Com um discurso refinado e sensível revela o outro lado da
sociedade brasileira, autoritária, violenta, desrespeitosa com os seus cidadãos. Dá
visibilidade ao apagamento da verdadeira história, evidencia a perversidade de uma
memória camuflada socialmente.

Rosângela faz parte dos artistas que lidam com a fotografia e a imagem
de modo a colocá-la sempre em questionamento, em estado de tensão. Embora
fotógrafa, recusa-se a fotografar, abre mão desse ofício e apropria-se de imagens
feitas por outros, imagens anônimas feitas por fotógrafos anônimos, populares,
que deixam os rastros de seu trabalho pelas lixeiras, mas, também, encontradas em
obituários, nos jornais diários ou em álbuns. São essas imagens descartadas, cujas
histórias são desconhecidas, anônimas que passam a ter uma outra evidência, saindo
do esquecimento e tornando-se ato de resistência.

No gesto poético de Rosângela se revela uma nova escritura da história da


fotografia, ao trabalhar poeticamente com a imagem fotográfica popular e anônima,
com as imagens fotográficas silenciadas dos arquivos institucionais, com fatos e
notícias que se tornam imagens.

Imemorial e Espelho Diário são atos de resistência que evidenciam o


apagamento de histórias e de memórias.

74
Referências

ASSMANN, A. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória


cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

DELEUZE, G. O ato de criação. Disponível em: <https://lapea.furg.br/images/


stories/Oficina_de_video-0ato-de-criao-gilles-deleuze.pdf>.

DERRIDA, J. Mal de Arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume


Dumará, 2001.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2015.

GUASCH, A. M. Arte y Archivo, 1920-2010. Genealogías, Tipologías y


discontinuidadaes. Madri, Es: Akal, 2011

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor. Rosângela Rennó. São Paulo:


EDUSP, 1996. Disponível em: <www.rosangelarenno.com.br>.

POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos – Memória.


Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/
Memoria_esquecimento_silencio.pdf>.

RENNÓ, R.; PENNA, A.a D. Espelho Diário. Belo Horizonte: Editora UGMG; São
Paulo: EDUSP e Imprensa Oficial, 2008.

RENNÓ, R.; PENNA, A. D. (Entrevista Temática) 2007. Belo Horizonte – Programa


de História Oral – Centro de Estudos Mineiros – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas – Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: <https://www.
google.com/search?rlz=1C1FDUM_enBR477BR510&ei=Pe1KXZrjK-u-5OUP7Nq
XqAg&q=rosangela+renno+entrevista+lucas+mendes&oq=rosangela+renno+entre
vista&gs_l=psy-ab.1.0.35i39.8578.12817..17109...0.0..0.174.3819.0j26......0....1..gws-
wiz.......0j0i131j0i67j0i131i67j0i203j0i22i30.vF1ZiP-RZYQ>.

ROSENGARTEN, R. Entre Memória e Documento. Lisboa, PT: Museu Coleção


Berardo, 2012.

75
Lembrança, esquecimento e rememoração: o caso da cidade
de São João Marcos (RJ)

Heidi Ferreira da Costa

Maria Amália Silva Alves de Oliveira

Introdução

O esquecimento é um fenômeno intrinsecamente ligado ao ato de lembrar e


indissociável da memória, torna-se impossível cogitar a existência desta última sem
o primeiro. Tal processo tem sido fonte de inesgotáveis reflexões que já atravessam
longos períodos de tempo oscilando entre a preocupação com as perdas resultantes
deste, a ansiedade de tentar derrotá-lo através de técnicas e tecnologias, até, por fim,
a atribuição de uma “função positiva ao esquecimento” (GONDAR, 2016).

Na qualidade de parte integrante da memória, o esquecimento atinge não


somente indivíduos, mas sociedades, comunidades e outros grupos a quem se
possa atribuir memórias coletivas. Este texto busca, discorrer sobre o processo de
esquecimento da cidade de São João Marcos (RJ), demolida e inundada na década
de 1940 para ceder espaço ao volume de água da Represa de Ribeirão das Lages e
sua rememoração através da construção e funcionamento do Parque Arqueológico
e Ambiental de São João Marcos. Esta empreitada reflexiva será construída a partir
dos conceitos apresentados na obra A memória, a história e o esquecimento de Paul
Ricoeur, sendo os eixos memória e esquecimento os privilegiados no suporte teórico-
analítico que orientou a descrição dos movimentos empregados no processo que
conduziu São João Marcos ao esquecimento e a rememoração.

Em cumprimento do objetivo proposto, o presente capítulo foi estruturado


em três seções. A primeira seção foi dedicada a apresentação de um breve relato
acerca da trajetória histórica da Cidade em tela. Na segunda seção discorremos
sobre o processo de esquecimento da Cidade e na terceira seção, apresentaremos três
aspectos que no contexto da situação em análise foram fundamentais no processo de
indução de esquecimento a que a Cidade foi submetida após sua destruição. Os dados
apresentados foram coletados em dois períodos. O primeiro ocorreu entre os anos
de 2009 a 2011 por ocasião da pesquisa para a tese de doutorado da segunda autora
do presente trabalho e o segundo período, foi entre 2017 e 2019 para a dissertação de
mestrado da primeira autora. Ambas pesquisas foram constituídas por entrevistas,
pesquisas em arquivos de jornais e dos munícipios envolvidos no caso estudado, no
acervo visual e documental do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos
e revisão bibliográfica.

Entre a submersão da Cidade e a emersão das ruínas

De acordo com Oliveira (2014), São João Marcos localiza-se na serra entre
as atuais cidades de Mangaratiba e Angra dos Reis e tem como marco de fundação o
ano de 1733, com a construção de uma capela em homenagem ao santo homônimo.
A cidade de São João Marcos atingiu o auge da prosperidade econômica e social
no século XIX com a expansão da cultura cafeeira no estado do Rio de Janeiro. Na
denominada Era do Café, no período de maior destaque econômico local, as fazendas
de São João Marcos respondiam por 1% de toda a produção cafeeira do país e um
de seus habitantes mais bem-sucedidos financeiramente chegou a adquirir uma ilha,
a Marambaia, para auxílio na comercialização de escravos trazidos da África. Tal
importância econômica resultou num rico conjunto arquitetônico comparável às
cidades de Paraty (RJ) e Ouro Preto (MG) e seus moradores sustentavam com orgulho
o título de “cidadão marcossense” mesmo muito depois do declínio econômico da
cidade, que se iniciou com a decadência da economia cafeeira na região.

A crise de cunho político, social e econômico que atingiu a estrutura da


cultura cafeeira se estendeu por Vale do Rio Paraíba Sul Fluminense, levando a cidade
de São João Marcos a perda de seu poder econômico e prestígio social. Este processo
de decadência compreende um longo período no qual, paralelamente, a região
tornou-se alvo de interesse econômico decorrente do abundante recurso hídrico que
dispunha e que no momento despontava como elemento especialmente importante
para a produção de energia elétrica. Assim sendo, grandes extensões de terras que
até então eram ocupadas por fazendas de café foram gradativamente adquiridas pela
The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company, companhia canadense que
detinha a concessão de produção de energia elétrica no estado do Rio de Janeiro.

Ao acelerado processo de negociação e venda das terras da zona rural de


São João Marcos, somou-se no ano de 1938 o rebaixamento da mesma à condição
de política de distrito do atual município de Rio Claro (RJ). Prevendo o avanço da
The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company sobre o núcleo urbano da
Cidade, inicia-se entre um grupo de pessoas com maior influência política na Capital,
um movimento de preservação do casario e demais imóveis sob a alegação de que

78
estes eram representantes de um padrão arquitetônico de valor histórico. Sob este
argumento, no ano de 1939, o núcleo urbano foi tombado pelo Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – SPHAN; entretanto, em 1940 o presidente Getúlio
Vargas revogou o tombamento através do decreto-lei nº 2.269.

O decreto-lei nº 2.269 autorizou ainda a desapropriação dos imóveis, ato esse


que favoreceu a The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company na aquisição
de todos os imóveis que compunham a parte urbana da Cidade. Após aquisição dos
imóveis, de forma abrupta e extremamente rápida, os moradores eram obrigados a
se retirar e imediatamente da Cidade, pois a esse processo de evacuação conflituoso,
seguiu-se a demolição com uso de dinamites, de todo o conjunto arquitetônico.
Deste processo de demolição restou intacta apenas uma ponte, a Ponte Bela,
sendo os demais símbolos materiais de um período áureo, vestígios de um padrão
arquitetônico imponente e suportes de memórias, destruídos.

Essa decisão foi justificada pela necessidade de fornecimento de energia


elétrica e de água para a cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. Após a
demolição, toda extensão de terras da antiga Cidade foi inundada; todavia, o nível de
água da represa não foi mantido e a as ruínas do conjunto arquitetônico tornaram-se
aparentes, expostas à ação do tempo. Por quase setenta anos, o antigo município de
São João Marcos esteve na condição de local de pastagem e em decorrência de ser uma
propriedade privada, agora pertencente à Light Serviços de Eletricidade S.A.1, seus
antigos moradores não possuíam qualquer acesso aos restos da demolição e demais
vestígios dos espaços físicos que compunham suas memórias. Em 16 de fevereiro
de 1990 a Ponte Bela e as ruínas2 remanescentes da demolição foram tombadas pelo
Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro (INEPAC).
Este tombamento insere-se em um contexto cultural favorecido por políticas de
patrimônio que atribuem à memória valor conjugado a noção de identidade e o
que chama atenção neste ponto da trajetória temporal de São João Marcos é que até
esse momento, a Cidade havia sido totalmente apagada pela historiografia oficial e
esquecida pela memória local. Objetivando analisar e descrever o esquecimento que
perdurou por setenta anos, abordaremos esse processo na próxima sessão.

1 Em decorrência de vários arranjos financeiros, inclusive um período sob direção do


governo do estado do Rio de Janeiro, a The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power
Company transformou-se em Light Serviços de Eletricidade S.A. que também é a atual
empresa fornecedora de energia elétrica da cidade do Rio de Janeiro.
2 “Ruínas” é a denominação atribuída aos restos das construções que foram demolidas. Esse
é também o termo que classifica os restos que foram patrimonializados pelo INEPAC.

79
O esquecimento

A Memória, a História, o Esquecimento é uma obra na qual Paul Ricoeur expõe


toda uma reflexão acerca da natureza dos fenômenos mnemônicos. Na primeira
parte, o autor dedica-se à argumentação no sentido de apresentar a essência das
manifestações da memória e das lembranças. Tal processo, por ele denominado de
“fenomenologia da memória”, foi estruturado a partir de duas questões iniciais: “de
quem é a lembrança?” e “de quem é a memória?”. Resulta daí uma reflexão acerca
do sujeito do processo e esta se desdobra na discussão entre memória pessoal e
memória coletiva. Apoiado nos filósofos Santo Agostinho, John Locke e Edmund
Husserl, Ricoeur demonstra que há uma força quase naturalizante em considerar
que as lembranças se inserem apenas no sujeito singular. Em seguida, o autor
retoma Maurice Halbwachs no intuito de demonstrar que em contraponto, há um
esforço em alocar a memória como algo exclusivo de entidades coletivas. Tendo
demonstrado os pressupostos de cada corrente, Ricoeur (2007) busca construir
uma relação entre ambas, rejeitando assim o aparente antagonismo que percebe
neste debate.

A proposta da fenomenologia da memória desenvolvida por Ricoeur incide


assim, sobre o destaque que confere à subjetividade e à objetividade constante na
relação, sendo essas exploradas pelo autor a fim de encontrar aspectos comuns às
duas vertentes. Nessa linha de raciocínio, Ricoeur defende que há uma dimensão
intermediária onde é possível perceber as trocas entre lembranças individuais e as
lembranças dos outros. Para o autor, essa interseção se dá no espaço onde circulam
pessoas que estão a meio caminho entre o “eu” e os “outros”, denominados por
Ricoeur de “próximos”. Tais pessoas são as que compartilham do convívio e das
lembranças comuns, pois são pessoas que estão presentes nos dois ou em um dos
momentos capitais da vida de uma pessoa, isto é, seu nascimento e sua morte.

Trazendo esta reflexão de Ricoeur para o caso de São João Marcos no


intuito de argumentar acerca do esquecimento da Cidade por quase setenta anos,
destacamos que temos uma comunidade que sofre uma ruptura em sua memória
coletiva, pois não mais compartilham do mesmo espaço – que, inclusive, deixou de
existir – tampouco participarão do processo de “envelhecer juntos”, uma vez que
foram, em sua grande maioria, espalhados aleatoriamente. Trata-se de indivíduos
que subitamente tornaram-se lembrança/memória de si próprios, últimos
detentores de um passado que termina em sua linha temporal. Esta ruptura torna-
se ainda mais abrupta quando consideramos que ela também atinge as gerações
mais jovens, que nem ao menos tinham ainda sucessores em seu referencial.

80
Esta é a geração que ainda sobrevive até os dias de hoje e seus sucessores possuem
uma memória de São João Marcos baseada puramente em fotos e narrativas. Trata-
se uma memória cuja referência não tem como recorrer a uma experiência pessoal
e acaba ancorando-se ainda mais fortemente na imaginação e na afetividade.

Os detentores das lembranças e memória de São João Marcos passaram


pelo menos uma década antes que pudessem ter a oportunidade de transmitir este
acervo mnemônico a seus sucessores, período no qual a cidade já não fazia mais
parte de seu cotidiano e no qual tiveram de se adaptar a novos locais de habitação,
onde a história de suas remoções não tinha como encontrar a mesma intensidade
de indignação e tristeza, ainda que encontrassem ouvintes dispostos a escutá-la. Em
resistência ao silêncio e esquecimento aos quais estavam submetidos diariamente,
preservaram as lembranças que podiam da cidade: amigos, festas e, é claro, a que
jamais pode ser esquecida: a violenta destruição de sua comunidade.

O caráter subjetivo e pessoal destas lembranças volta a apontar para a


impossibilidade de preservação de uma memória coletiva unificada de São de
João Marcos, pois a destruição da cidade ocorreu de forma distinta para seus
moradores, tendo em vista que as fazendas foram as primeiras a ser evacuadas e no
núcleo urbano, os moradores foram sendo retirados aos poucos. Em decorrência,
as lembranças das mudanças de local diferem para todos, justamente pelo fato
de terem efetuado o procedimento em momentos distintos. Os primeiros a se
mudarem provavelmente registraram em suas lembranças que estavam deixando
uma cidade ainda habitada por amigos ou parentes, assim como construções e
objetos que faziam parte do seu cotidiano. As últimas famílias a deixarem a cidade
provavelmente registraram não somente os impactos da visão de sua comunidade
sendo aos poucos esvaziada e demolida, mas também a dos restos de construções.

No que tange ao caráter traumático, o processo de desocupação da Cidade


é sempre mencionado pelos entrevistados como um “drama”. Ao usarem o termo
“drama”, eles buscam exprimir a dor resultante de uma perda que os conduziu a
um trauma, pois com a desapropriação dos imóveis seguiu-se a demolição 141
prédios, sendo a Igreja Matriz a última construção a ser reduzida, devido à recusa
dos funcionários da empresa em fazê-lo. À dimensão retumbante e visível da perda
resultante da destruição, soma-se à informação documental produzida em meio a
relações sociais e registradas em cartórios e ofícios locais.

81
Na dimensão dos registros

No intuito de refletirmos sobre esta questão, apoiamo-nos no conceito de


memória manipulada que pode ser entendida como aquela que é construída no
atravessamento de forças constituídas pelos detentores do poder oficial e nas quais,
justamente por este motivo, percebe-se de forma mais visível os abusos da memória.
Embora a discussão sobre memória manipulada na perspectiva de Ricoeur envolva
o debate acerca de identidade, tanto coletiva como individual, na presente seção, nos
limitaremos a elencar as relações de força, aqui tratadas através do caráter autoritário, ou
seja, quando o aspecto político é evidenciado e do caráter ideológico, isto é, iluminando
a perspectiva do discurso do progresso enquanto justificativa da ação.

No que tange ao caráter autoritário, o processo de tombamento revela que a


reinvindicação deste estatuto objetivava uma tentativa de preservação do núcleo urbano
da Cidade com vistas a evitação de seu alagamento. A Ata da reunião de deliberação do
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a respeito do tombamento de São
João Marcos informa que houve por parte do governo federal um esforço em apresentar
argumentos favoráveis ao alagamento de São João Marcos, pois o “diretor do serviço de
águas e esgotos do Distrito Federal, por deferência do Senhor Ministro da Educação e
da Saúde para com o conselho, aquiesceu em prestar pessoalmente as informações [...]
sobre os diversos aspectos do projeto em execução para elevar a barragem do Salto no
Ribeirão das Lages”. Tal registro demonstra uma tentativa em participar das discussões
com a sociedade civil e “convencê-la” sobre a importância do alagamento da cidade.
Esta tentativa, no entanto, foi derrotada, de modo que ao final da reunião, mesmo após
ouvir os argumentos oficiais, o conselho votou pelo tombamento da cidade.

A derrota na tentativa de convencimento obtém como resposta o decreto-lei


nº 2.269 de 03 de junho de 1939 assinado pelo então Presidente da República, Getúlio
Vargas que impõe sua decisão revogando o tombamento anterior e autorizando a
desapropriação de terrenos, prédios e quaisquer benfeitorias para que todo o espaço
geográfico ocupado pela Cidade viesse a ser inundado. Embora a correlação de forças
seja desigual e favoreça a observação do episódio a partir do viés da passividade às
decisões governamentais, o presente trabalho enfatiza o dinamismo desta relação, pois
a memória que emerge e se apresenta é também composta por iniciativas de resistência
tanto no âmbito da política, quanto nos círculos mais internos como culturais e
familiares, passando por forte indisposição com a The Rio de Janeiro Tramway, Light
and Power Company e posteriormente a Light Serviços de Eletricidade S.A, não por
acaso a implantação do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos, setenta
anos depois.

82
O caráter autoritário que compõe uma dimensão do processo de destruição
de São João Marcos favorece um tipo de esquecimento que tomado pela perspectiva
de Ricoeur (2007) vincula-se ao que o autor define como memória manipulada, isto
é, um esquecimento possibilitado pelo ato de seleção no manejo da narrativa oficial,
afinal, “pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases,
refigurando diferentemente os protagonistas da ação, assim como os contornos dela”
(RICOEUR, 2007, p. 455).

Analisando o caso de São João Marcos, esta manipulação certamente parece


uma característica pertinente. Tendo sido destruída num período de ditadura,
através de dispositivos altamente controversos, como o destombamento da cidade, a
desapropriação de imóveis (mediante indenização que suscitam acusações de ambos
os lados) e a demolição de duas igrejas, a Cidade rapidamente se tornou um tópico
oficialmente esquecido.

O esquecimento moldado pelo caráter autoritário do processo de destruição de


São João Marcos foi fortalecido pelo caráter ideológico dos discursos que se sobrepõem
ao fato. Desta forma, o discurso pautado na defesa do progresso foi iluminado enquanto
o de reivindicação pela preservação patrimonial da cidade, foi apagado. Assim, o
destombamento não provocou indignação fora do grupo de moradores diretamente
afetados e assim, mesmo que tenham ocorrido atos de protesto, optou-se por não os
noticiar e certamente não os incluir na história oficial. Nos discursos da mídia impressa
e dos políticos de então, a narrativa construída informava que São João Marcos já havia
sido reduzida de município para distrito e sua população contava apenas com cerca de
4.500 moradores. Em tal contexto de decadência, a ênfase na crise hídrica da capital
do país, justificava a destruição e posterior alagamento, ações consideradas de menor
importância diante da ampliação de um reservatório de usina hidrelétrica que traria o
progresso para o local mais relevante do país: a capital.

Essa ênfase nos discursos interfere diretamente na qualidade da audiência


que os ex-moradores encontrariam em seus novos destinos, e, consequentemente um
possível silenciamento por parte destes. Como apontado por Pollak (1986, p. 6) “para
relatar seus sofrimentos uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta.”.
Neste caso, além de todas as dificuldades em se tentar configurar uma vida em um novo
local, eles ainda teriam a dificuldade de explicar a injustiça sofrida para um público que
já havia sido informado que tal injustiça era na verdade pequeno sacrifício necessário
pelo bem do país.

Em suas reflexões sobre a manipulação da memória, Ricoeur ainda pontua

83
o aspecto de semi-cumplicidade entre os atores deste esquecimento (aqueles
que esquecem, os esquecidos e os que fazem esquecer). Segundo ele, esse tipo de
esquecimento não seria possível se não houvesse um esquecimento de fuga, a recusa
em tentar se informar, um “querer-não-saber.” Desta forma, o autor critica a passividade
quase conivente de parte da sociedade em relação ao discurso ideológico.

Aos registros produzidos pela mídia e os inerentes à questão do tombamento


e destombamento de São João Marcos, temos uma série de outros documentos que
revelam registros do cotidiano da vida social da Cidade. Considerando a importância
e função política dos documentos, Aleida Assmann (2009) inicia a terceira parte de
seu livro Espaços de recordação com uma breve reconstituição da história dos arquivos,
relacionando-a diretamente ao registro e armazenamento de documentos de ordem
administrativa e comercial. Segundo a autora,
como os documentos não se decompunham naturalmente
após o seu uso, eles constituíam um resíduo que podia ser
especialmente coletado e preservado. Assim, a partir do
arquivo como memória da economia e da administração,
surge o arquivo como testemunho do passado (p. 367).

No caos de São João Marcos, os documentos mantidos nos cartórios e órgãos


oficiais da Cidade foram por ocasião da evacuação, enviados para a prefeitura do
município de Rio Claro, onde permaneceram sem qualquer tipo de catalogação e
a possibilidade de acesso ao público. Por décadas permanecerem completamente
esquecidos, relegados à deterioração, até que, no início da década de 2010 um projeto
da prefeitura do município anteriormente citado iniciou processo de higienização e
tentativa de organizar esse acervo. Grande parte desses documentos foram acessados
pelas autoras durante a realização de suas pesquisas. O acervo em tela é de ordem
administrativa e econômica, compondo-se em sua maioria de recibos por serviços
prestados, venda de terrenos, tributos, testamentos e até venda de escravos. Trata-
se se de um rico acervo que data do século XVIII e, se catalogado corretamente,
contribuiriam para a historiografia sobre o desenvolvimento da cidade, das famílias,
e da vida comercial desde sua fundação até seu fim, na década de 1930.

Pelo exposto, considera-se que no caso de São João Marcos o confinamento


dos arquivos incidiu sobre uma estratégia intencional voltada para a não produção
de informações sobre a Cidade, assim como o desestímulo a reivindicações futuras
quanto às indenizações sobre as terras alagadas. Assim sendo, não apenas uma
cidade inteira foi destruída, mas também todos os seus registros foram retirados de
circulação. Desde registros de nascimentos e óbitos, passando pelos de compras de

84
propriedades, até recibos por serviços prestados. Desta forma, muito além de um
mero empecilho burocrático, qualquer informação histórica, econômica ou social que
estes documentos pudessem guardar foi simplesmente esvaziada de seu valor. Neste
sentido, de acordo com Assmann (2009; p. 368) o “controle do arquivo é controle da
memória” e nessa linha de raciocínio, o tratamento conferido aos arquivos de São
João Marcos sugere a reafirmação de um grupo vitorioso após um triunfo político.

Por outro lado, a opção pela manutenção destes documentos confinados em


arquivos e não por sua pronta destruição pode ser analisado sob o viés do trauma e
da melancolia. Ricoeur aponta para a capacidade que a melancolia tem de diminuir
o valor que um indivíduo ou grupo reputa a si mesmo. Segundo o autor, é possível
que uma comunidade que sofreu um trauma ou teve uma memória ferida pode
desenvolver uma melancolia a respeito deste episódio, que compartilha das mesmas
características da melancolia individual descrita por Freud, entre estas, a diminuição
do sentimento de si que acarreta a desvalorização de si mesmo. Desenvolvendo
essa hipótese para o caso dos arquivos de São João Marcos, considerando o grupo
que constatou a destruição da materialidade de suas lembranças, vendo diante de
si o alagamento de um espaço que até então era preenchido de vida, tomados por
melancolia não atribuem valor a estes papéis, pois o trauma é superior a capacidade
de lidar com os mesmos e dar-lhes sentido naquele momento e assim, os relegam. Na
ausência de reinvindicação desses documentos, os mesmos são mantidos confinados
e a ação do tempo se encarrega da destruição dos materiais que os compõem. Neste
caso, não há má-fé ou intenção de destruição dos vestígios, pois o desleixo para com
essa documentação pode ser considerado como um sintoma da melancolia de um
grupo que teve seu valor esvaziado e ainda não sabe como processar esse trauma.

O processo de transferência das lembranças para os “próximos” somado ao


confinamento dos arquivos circunscreveu por quase setenta anos a memória de São
João Marcos a lembrança de sua destruição. Neste intervalo de tempo a memória
da e sobre a Cidade passou a confundir-se – e em alguns pontos até a resumir-se
– à memória de sua destruição. Assim sendo, apresentaremos na próxima sessão
o processo de reconhecimento desse esquecimento e discutiremos as bases do que
agora é lembrado.

A rememoração

A questão do esquecimento de São João Marcos após o período de sua


demolição e inundação chama atenção no que se refere ao trabalho da memória do

85
coletivo, justamente por sido processada a partir de ausências contraditórias no que
tange a seu passado notório. Sendo uma das principais produtoras de café do país, São
João Marcos, por setenta anos, não era citada na história do Vale do Café, inclusive,
desconhecida para muitos municípios pertencentes a essa região. No ano de 2008, a
Light Serviços de Eletricidade S.A., através do Instituto Light para o Desenvolvimento
Urbano e Social, iniciou um processo entendido no âmbito da empresa como
“decisão de reverter o processo de esquecimento, recuperando a história de São João
Marcos”. A proposta de “reverter o processo de esquecimento” e “recuperar a história
de São João Marcos” estava relacionada à noção de responsabilidade social adotada e
difundida pela empresa naquela ocasião. Tal proposta materializou-se na construção
do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos, concebido para ser a
soma dos conceitos de parque arqueológico, museu de território e reserva particular
de proteção natural, com vistas ao “atendimento das necessidades recreativas e
educacionais das populações que lhe são próximas, além daquele de promotor do
turismo no município, papeis estes facilitados pela sua proximidade às cidades do
Vale do Paraíba e à Região Metropolitana do Rio de Janeiro” (informação retirada do
material de divulgação do Parque - 2009).

Analisando a construção e o funcionamento do Parque Arqueológico e


Ambiental de São João Marcos, é possível perceber que os projetos: museológico,
museográfico, paisagístico e arquitetônico tiveram como objetivo evidenciar uma
memória e expor a materialidade da mesma, isto é, as ruínas no formato de sítio
arqueológico abrigado em um parque turístico aberto à visitação pública. “Evidenciar”
e “expor” são faces de um processo de transmissão de determinado conteúdo para
determinado público. A transmissão dessa memória é percebida pelos envolvidos
no processo de edificação do Parque como um ato de “educar patrimonialmente”,
conforme consta no projeto paisagístico: “o desenho de atividades educativas
e recreativas de caráter ambiental adequadas para a mesma. Com a finalidade de
recuperar a memória da mais importante atividade agrícola tradicional à região,
uma das encostas do morro mais próximo à área urbanizada será objeto de plantio
de um pequeno cafezal”. Ou ainda, nos termos dos arqueólogos: “... Assim, educar
patrimonialmente é levar adultos e crianças a um processo ativo de conhecimento
crítico através da apropriação consciente e consequente valorização de sua herança
cultural, fortalecendo os sentimentos de identidade e cidadania”.

Atualmente, o Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos é um


destacado espaço de visitação na região em que se encontra. Após oito anos de
funcionamento, é possível detectar através de estatísticas de visitação que grande parte

86
do público visitante não tem conhecimento do episódio da destruição até tomarem
ciência da existência do empreendimento, sendo justamente o desconhecimento
da existência da cidade de São João Marcos e sua história de opulência e declínio
que tem tornado o Parque um atrativo local. Paralelamente, as atividades do
Parque, diferentemente da proposta inicial, que se centrava em atrair visitantes
através do estímulo ao turismo cultural; voltou-se para o fortalecimento de um
Programa Educativo direcionado para alunos de escolas públicas e privadas. Nesta
proposta, destaca-se um conjunto de memórias que foram selecionadas para serem
apresentadas e divulgadas para os visitantes. Em tal seleção é possível perceber uma
mensagem que busca reconciliar a imagem da empresa promotora da “destruição”
de São João Marcos com o presente e para tal, evidencia seu papel de idealizadora e
mantenedora do Parque.

Ao ser analisada pela perspectiva do conceito “dever à memória”, a


apresentação da memória da Cidade pelo Parque Arqueológico e Ambiental de
São João Marcos não ilumina a perspectiva dos sofrimentos impostos ao grupo que
vivenciou o trauma da desapropriação e demolição. Duran e Bentivoglio (2013)
ao abordarem o conceito de “dever à memória” esclarecem que a noção traz em si
a concepção de que certos setores da sociedade e do Estado têm a obrigação em
“reconhecer o sofrimento imposto a certos grupos da população, sobretudo quando
o Estado tem responsabilidade por esse sofrimento” (2013, p. 229); entretanto,
a memória divulgada no Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos
privilegia as lembranças acerca do período anterior ao declínio econômico e político
e não a que incide sobre a destruição e o trauma resultante desta ocorrência. Desta
forma, depreende-se que embora a idealizadora e mantenedora do Parque – a Light
Serviços de Eletricidade S.A. – tenha interesse em ressignificar sua imagem, não o
faz sob a perspectiva de um “dever à memória”, postura que implica em outro tipo de
abuso contra a memória.

Refletindo sobre os abusos contra a memória, Ricoeur (2007) destaca


a distinção entre dois conceitos basilares desta sua etapa de análise, são eles: a
rememoração e a memorização. A rememoração pode ser compreendida a partir
de Ricoeur como um resgate de algo declarado com passado; já a memorização
seria a “memória-hábito” que se baseia em esquematizar maneiras para que algo
possa ser relembrado sem esforço e neste caso, tal memória não é percebida como
passado. Tendo por base esses conceitos, o referido autor chama atenção para o que
conceituou como memória impedida, memória manipulada e memória comandada
de modo abusivo.

87
Trazendo a reflexão de Ricoeur relativas ao abuso da memória para o caso de
São João Marcos, considera-se que as lembranças individuais foram afetadas por um
evento traumático e para a superação de tal conflito, seriam necessários um trabalho
de memória e um trabalho de luto no intuito de mitigar problemas resultantes de
uma situação histórica onde há memórias em disputas, sendo essas objeto de negação
de uns e de afirmação de outros. Detendo-nos no trabalho da memória (ou de
rememoração) para refletir sobre o caso da memória da cidade de São João Marcos
na atualidade, depreende-se que essa equivale a uma ressimbolização daquelas
lembranças, pois há aqui uma dificuldade em se desligar do objeto que teve lugar em
dado momento pretérito e a necessidade de uma sentença de paz entre o passado e o
presente que ainda adere a este. Nesse trabalho da memória, o Parque Arqueológico e
Ambiental de São João Marcos tem se apresentado como suporte, ou seja, como uma
rememoração ainda que de uma memória manipulada.

De acordo com Ricoeur (2007) a manipulação da memória implica em


necessidade de afirmação de uma identidade e na questão de como permanecer
por longo tempo. Insere-se em um campo de disputas justamente por envolver
detentores de poder que ao instrumentalizar a memória, tornam visíveis seu abuso.
Nesse embate, segundo o autor, as ideologias se manifestam tendo um papel de
integrar e proteger identidades construídas em torno do recurso de uma memória
fundadora comum. Não por acaso, a memória selecionada para ser a transmitida
pelo Parque é a que envolve o período de apogeu da Cidade de São João Marcos e não
o da sua destruição; contudo, ainda segundo Ricoeur (2007), as mesmas ideologias
que facultam tal possibilidade, atuam como elemento de distorção e legitimação de
uma determinada realidade, pois enfraquece questionamentos que no caso em tela
tornam-se ainda mais concretos não somente pela ausência daqueles que lembram,
mas também pela materialidade do empreendimento.

Considerando, conforme Ricoeur, que o abuso da memória é também o abuso


do esquecimento, cabe-nos refletir ainda sobre a produção narrativa apresentada no
Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos. Privilegiando a memória
do apogeu econômico, político e social da Cidade, o Parque, para além do aspecto
“turístico” que envolve suas atividades, traduz um trabalho de memória que está sendo
imposto aos que ainda lembram. Neste trabalho de memória os desdobramentos do
trauma resultante do episódio ocorrido há mais de setenta anos são rememorados,
ou seja, voltam ao presente algo ausente sucedido em um momento passado e este
processo, segundo Ricoeur, pode assumir também uma função terapêutica.

A despeito da manipulação da memória ocorrida no Parque, onde se identifica

88
o abuso da memória e o consequente abuso do esquecimento, a repetição da memória
selecionada que configura a rememoração materializada no Parque Arqueológico e
Ambiental de São João Marcos considera-se, tal como Ricoeur (2007, p.86) que “o
trabalho de luto é o custo do trabalho da lembrança; mas o trabalho da lembrança é
o benefício do trabalho de luto”, relação essa que no caso analisado implica também
com o trabalho de libertar-se da perda. Terminado o trabalho do luto operou-se a
passagem da repetição da lembrança para a recordação da mesma e nessa etapa do
processo, de acordo com o Ricoeur, os envolvidos no trauma configuram-se livres
e abertos a possibilidade de uma memória reconciliada, onde a rememoração atua
ainda como protetora de identidades.

Considerações finais

Como informado na Introdução deste capítulo, o mesmo é resultado de uma


extensa pesquisa de campo, realizado pelas autoras por ocasião de suas pesquisas
de doutorado e mestrado, onde ambas, com focos distintos estudaram a memória
construída sobre a trajetória temporal da Cidade de São João Marcos. Nos dois
momentos de pesquisa, as autoras ouviram em entrevistas realizadas no Parque
Arqueológico e Ambiental de São João Marcos, a seguinte pergunta: “Como é possível
que eu nunca tenha ouvido falar sobre esta cidade?”. Foi justamente a tentativa de
responder a essa pergunta que motivou a reflexão aqui exposta.

Considerando que a obra de A memória, a história e o esquecimento de Paul


Ricoeur é um grande contributo para o entendimento de tais questões, buscamos
no instrumental conceitual deste autor produzir uma reflexão sobre a questão que
também intriga os visitantes. Desta forma, a reflexão que aqui propusemos incidiu
sobretudo na demonstração de que o processo de rememoração de uma memória
selecionada implica diretamente na reflexão acerca do esquecimento imposto. Nesta
linha de raciocínio, o enfraquecimento de lembranças e o confinamento de arquivos
que fortaleceram a redução da memória de São João Marcos à memória da destruição,
revela o trauma presente nos desdobramentos deste processo e a rememoração trazida
à tona com a implantação do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos
uma possibilidade de reversão deste trauma através do fortalecimento de identidades
que se reconstruíram ao longo dos setenta anos em que a São João Marcos esteve sob
a égide do esquecimento.

89
Referências

ASSMANN, A. Espaços da recordação. Formas e transformações da


memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
DURAN, M. R. da C.; BENTIVOGLIO, J. Paul Ricoeur e o lugar da
memória na historiografia contemporânea. Dimensões, v. 30, p. 213-244,
2013.
GONDAR, J. Cinco proposições sobre memória social. In: DODEBEI, V.;
FARIAS, F.; GONDAR, J. (Orgs.) Por que memória social? Rio de Janeiro:
Morpheus, 2016.
OLIVEIRA, M. A. S. A. de. Folia de Reis em São João Marcos (RJ):
aspectos de uma identidade cultural em um processo de patrimonialização.
E-cadernos CES (Online), v. 21, p. 113-137, 2014.
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1986.
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora
da Unicamp, 2007.

90
A exclusão do universo feminino
nas narrativas de cozinheiros celebridades

Luciano Lunkes

O presente capítulo deriva de um trabalho realizado como tese de doutorado,


para o qual foram analisadas as autoficções (autobiografias) de três celebridades
culinárias novaiorquinas, a saber: os chefs Daniel Boulud, Marcus Samuelsson e Anthony
Bourdain. O estudo se propôs a verificar a forma como esses autores mobilizaram suas
memórias pessoais para criar seus personagens autoficionais (seus ‘eu-chef’s) alinhados
à cultura do espetáculo, da celebridade e da performatividade. Procurou-se também
entender os significados culturais dessas autoficções, bem como as subjetividades e
identidades articuladas e construídas e os significados que a memória e a transmissão
cultural assumem nessas obras. Neste capítulo, contudo, será analisada apenas a obra do
chef Daniel Boulud (nascido em 1965).

Embora destinadas ao entretenimento despolitizado, hedonista e de fácil


assimilação para as massas, partimos do pressuposto segundo o qual essas obras buscam,
primordialmente, mobilizar capital simbólico para essas personalidades midiáticas e
potencializar o consumo de suas marcas chef. Trata-se, portanto, de narrativas que, entre
si, disputam por visibilidade, por uma fatia de um mercado altamente competitivo.
Assim sendo, nos encontramos à porta das retóricas que circulam em torno do campo
da gastronomia. Nos bastidores de suas fachadas cintilantes, escondem-se camuflados
discursos de poder e disputas históricas, políticas e ideológicas, fortemente presentes
no campo de batalha da alta gastronomia desde a primeira década deste milênio,
período em que o material empírico da pesquisa foi redigido. Trata-se de questões, na
verdade, bastante antigas, que abordam temas como desigualdade de gênero, racismo
e supremacia racial, colonialismo, eurocentrismo, etnofobia, nacionalismo, gosto de
classes, diglossia cultural, mobilidade social e outros. Nos discursos desses profissionais
da cozinha, a narrativização torna-se uma importante ferramenta de performance e de
persuasão (e de prevaricação da memória), conforme veremos no presente artigo.

Dentro do filão de autobiografias de chefs celebridades, a obra de Boulud


(Letters to a young chef, 2004) figura entre as autobiografias comerciais americanas bem
recebidas pela crítica e pelo público global. Assentada sobre a condição privilegiada
que ele ocupa dentro da “cadeia alimentar” da alta gastronomia - a de chef francês -,
sua narrativa eurocêntrica e autoconfiante demonstra-se empenhada em salientar
a relevância profissional de sua privilegiada persona chef e naturalizar a centralidade
da cozinha francesa, um espaço predominantemente masculino e branco, destinado a
poucos afortunados.

No presente texto, discutiremos as questões de gênero e cozinha que sobressaíram


nas análises, mais precisamente, aquelas que tratam da apropriação masculina do saber
feminino sem o benefício de troca e a devida atribuição de valor às contribuições das
mulheres para a gastronomia do século XX e XXI. Além disso, trataremos também dos
mecanismos que levaram ao apagamento da memória culinária feminina da história da
França e o desaparecimento da mulher de posições de liderança no âmbito profissional
das cozinhas e as repercussões disso no atual cenário da alta gastronomia mundial.
Abordaremos como certas distorções de gênero dentro dessa cultura foram sendo
historicamente construídas a partir de crenças e referenciais herdadas do passado, de
estudos “sociologicamente comprováveis”, da doutrina cristã e da retórica masculina da
Haute Cuisine e da Nouvelle Cuisine.

Para embasar as reflexões propostas, busco fundamentação, de um lado, nos


estudos sobre o trabalho feminino nas cozinhas profissionais e domésticas, desenvolvidos
pelas pesquisadoras americanas Header Allison Mallory e Alexis Szmodis, pelo
sociólogo brasileiro Carlos Alberto Dória e pela jornalista inglesa Elisabeth Luard e,
de outro lado, nos estudos sobre o papel da mulher nas culturas católicas, realizados
pelo teólogo e historiador José Orlandis. Além disso, lanço também mão de autores
que discutem questões relacionadas ao campo da memória, como Michael Pollak, e à
cultura da celebridade, como Chris Rojek.

Para iniciar as discussões, proponho algumas citações da autoficção de Daniel


Boulud:
Quando olho para a atual paisagem da gastronomia, vejo
primeiro a valorização das “comidas para a alma” e depois a
recriação dessas comidas nos cardápios contemporâneos dos
Estados Unidos, e reconheço o processo que experimentei
na primeira mão com Georges Blanc. Então, lhe dou meu
conselho enfático, algo que aprendi de um chef três estrelas:
“lembre-se da comida da sua avó” (BOULUD, 2004, p. 29).
O restaurante de Vergé (meu mestre) foi, durante a metade
dos anos 1970, o mais cheio de estilo e na moda do mundo
inteiro. Era uma Meca para a geração seguinte de jovens
talentosos [como Alan Ducasse, David Bouley e outros],
pessoas que atualmente dirigem empreendimentos de alta
classe internacional. (Eles davam) murros em ponta de faca

92
para subirem na posição [...] até conseguirem, aprendendo
com um dos dez maiores chefs do mundo […] Trabalhar
num haras de campeões como aquele aperfeiçoa bastante
(BOULUD, 2004, p. 31).
Há uma exigência extra: é preciso ter juventude. Preste atenção,
pois estas cartas são cartas para um jovem chef, não para um
novo chef. Sendo bem sincero, se você tiver trinta anos de
idade, eu não estou escrevendo para você, pois as demandas e a
competição que há neste trabalho exigem que tenha começado
cedo, como eu, como você (BOULUD, 2004, p. 88).

Em Conselhos a um Jovem Chef,1 Boulud traz, aos leitores, os bastidores de um


mundo radicalmente falocêntrico, militarizado, “testosteronizado”; um ambiente onde
a lógica masculina branca e eurocêntrica parece ser a única viável ou, melhor, a única
visível. Contudo, ser homem apenas não basta ao habitante desse mundo. Para merecê-
lo, o cozinheiro deve também possuir um conjunto de talentos específicos, além de uma
“exigência extra”: juventude. Assim, nos relatos deste chef francês, encontramos rastros
cristalizados de uma cultura que ainda crê que a construção de um grande artífice culinário
se dá, - única e exclusivamente -, a partir de três ingredientes-base: masculinidade, aptidões
inatas a eles (e somente a eles, como veremos) e juvenilidade hercúlea.
Embora previsível, não deixa de ser curiosa a homenagem “honrosa” que
Boulud presta à cozinha feminina, simbolizada, em sua fala, pela figura arquetípica
da vovó, cujas qualidades culinárias, ainda que carecidas de “estrelas” e de “alta classe
internacional”, não devem ser menosprezadas ou preteridas. Afinal, como ele mesmo
infere, a cozinha delas é matéria prima valiosa para as suas recriações contemporâneas.
Sobressai, aqui, o contraste entre a palavra “contemporâneo”, que o chef associa à
figura masculina, e a concepção de tradição, implícita na imagem da vovó; Boulud
confronta, de um lado, a ideia de inovação e modernidade, tão cara ao mercado da
alta gastronomia contemporânea e, de outro, a noção de usança e estagnação, valores
indesejados pela mesma lógica de mercado. Assim, a figura feminina, doméstica e
frágil, de “alma” amorosa, pacata, defasada e pouco impelidora, contrasta veemente
com a imagem masculina triunfal, enérgica, profissional e viril dos “cavalos jovens
e campeões de corrida”, que galgam nos “haras” da alta gastronomia exortando os
demais competidores ao “aperfeiçoamento”.2
Essa contraposição proposta por Boulud, contudo, não ocorre ao acaso.
Ela reproduz e perpetua antigos mitos de gênero que existem dentro do campo. Ao

1 O nome original da obra de Boulud é Letters to a young chef (Cartas a um jovem chef).
2 Assim como Boulud, os demais chefs da pesquisa recorrem à imagem potente do cavalo para
descreverem a si mesmos e aos demais “garanhões” veteranos das cozinhas profissionais.

93
considerarmos algumas premissas de Mallory (2011), passamos a entender que esse
artifício faz parte de um discurso estratégico que tem, por objetivo, uma “purgação
higienizante” (p. 211) dentro da cultura da alta cozinha contemporânea, cujo efeito é a
desvalorização e o apagamento do trabalho feminino dentro desse ambiente profissional.
Embora a participação delas tenha sido historicamente marginalizada e pouco
reconhecida, a pesquisadora americana afirma que a desvalorização do trabalho
feminino dentro da alta gastronomia se intensificou, paradoxalmente, a partir da
revolução de maio de 1968 e do advento da Nouvelle Cuisine.3 Szmosis (2018), em seu
estudo sobre a feminilização da confeitaria e os papeis de gênero dentro da indústria
americana da alimentação, corrobora as conclusões de Mallory. Ela argumenta que,
embora os atuais discursos da mídia e dos cozinheiros masculinos afirmem que o
gênero não determina mais o sucesso dos chefs, ambos falham em reconhecer as
formas subliminares pelas quais os papeis tradicionais de gênero ainda impactam a
cultura da alta gastronomia, perpetuando antigas realidades. Para ela, a linguagem
utilizada por ambos - como ocorre nos discursos de Boulud - continua a reforçar
os papéis tradicionais de gênero, confinando a mulher a atividades culturalmente
associadas a elas, como a confeitaria, as quais, hoje, elas dominam.
Assim, a homenagem carinhosa de Boulud à cozinha feminina, como
veremos, pode ser lida como parte do mito da igualdade de gênero, que distrai e
encobre apropriações e desigualdades sistêmicas. Embora a equidade entre homens
e mulheres nunca, de fato, ocorreu da cozinha profissional, a democracia de gênero,
segundo Mallory (2011), havia sido prometida pelos jovens revolucionários que
criaram a Nouvelle Cuisine nos primórdios dos anos setenta, todos eles, homens que
atualmente se encontram na faixa etária aproximada de Boulud e acima dela. No
entanto, a menção genérica e “en passsant” de Boulud à única representante feminina
presente na totalidade das 159 páginas de sua autobiografia (com exceção à breve fala
sobre a garçonete top model),4 destoa radicalmente do mar de referências masculinas
3 A nouvelle cuisine foi um movimento que se iniciou na França do pós-maio 68 e gerou uma
grande mudança na maneira como a comida atua ainda hoje na cultura. Caracterizado como um
movimento revolucionário, estético, político e cultural, a “nouvelle cuisine” lançou sementes que
tiveram impactos profundos e duradouros, não apenas nas práticas alimentares dos franceses, mas
na cena gastronômica internacional e contemporânea como um todo. O movimento representa o
triunfo de uma “nova ideologia culinária” sobre um estilo antigo (ancienne), meticuloso e pomposo,
que havia dominado a França e o mundo por décadas e até então. Esse movimento encontra-se
presente na base de várias das discussões da alta gastronomia contemporânea e fortemente atuante
nos relatos dos chefs da pesquisa.
4 “Tenha cuidado com o lugar da moda, com a garçonete top model e uma comida assim, assim.
Procure um lugar em que sinta alma na cozinha, no pessoal e no salão” (BOULUD, 2004, p.
25). É interessante o tom de advertência de Boulud nessa fala, que estabelece uma conexão entre
“lugar de moda”, comida “assim, assim”, garçonete “top-model” e carência de “alma” em todos

94
encontradas no mesmo texto, que cita, nominalmente, uma lista considerável de
grandes mestres e gurus (todos franceses) do panteão gastronômico, cozinheiros
virtuosos que influenciaram toda uma cultura culinária e se tornaram os mentores
das gerações seguintes:
Como a pessoa mais inferior na escala, eu tinha a obrigação
de ir diariamente, nas primeiras horas da manhã, em busca
dos produtos no mercado de Lyon. E adivinhe quem mais
estava lá? Os lendários e obsessivos chefs de Lyon e dos
arredores, que eram a vanguarda da cozinha francesa: os
irmãos Troisgros, Paul Bocuse, George Blanc e Alain Chapel
(BOULUD, 2004, p. 27).

Assim, frente a um exército de nomes masculinos, encontramos duas


únicas presenças femininas nas memórias “higienizadas” de Boulud, ambas
anônimas: vovó e garçonete top model. A completa inexistência de outras
referências culinárias femininas levanta importantes questionamentos. Sabemos
que, no contexto da memória, o não dito é tão relevante quanto o dito. Mais do
que entendermos os fatos sociais enquanto coisas, afirma Pollak (1989, p. 4),
precisamos “analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem
eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade”. Assim, para melhor
entendermos os vários significados da homenagem desse chef e do papel do
feminino na cultura contemporânea dos restaurantes, olharemos para alguns
aspectos determinantes do contexto histórico recente da França, bem como para
algumas circunstâncias biográficas de Boulud, que iniciou sua carreira em Lyon,
no epicentro do movimento da chamada Nouvelle Cuisine.

Como vimos anteriormente, Mallory (2011) afirma que o complexo


relacionamento da França com seu passado católico produz grandes implicações quanto
aos valores culinários da nação, sentidas ainda hoje na cultura da alta gastronomia (p. 6).
Rojek (2001), neste sentido, afirma que a cultura da celebridade é, em parte, a resposta
da sociedade moderna ao vazio deixado pelo enfraquecimento da religião nas culturas
ocidentais, afirmando haver alguma conexão entre ambas. De nossa parte, percebemos a
alta recorrência de um vocabulário católico e religioso nos discursos da alta gastronomia,

eles. É contrastante também o tom pejorativo da expressão “lugar de moda” na fala da garçonete
comparado ao tom celebratório do “restaurante de moda” utilizado na fala em que e refere ao
chef Roger Vergé. Em seu livro, Boulud reduz a participação feminina na alta gastronomia à
duas únicas representações ambas identificadas de forma genérica e anônima: uma associada ao
âmbito familiar-doméstico-nutricional e desvinculada do mercado produtivo (e reprodutivo) e a
outra (a garçonete top-model), mulher jovem e sedutora, que disponibiliza seus atributos físicos
excepcionais (e biológicos) para vender a arte do chef.

95
levando-nos a crer que há, de fato, certo componente religioso ainda agindo na cultura
da gastronomia célebre, onde grandes restaurantes, quando aclamados, são chamados
de templos sagrados e seus chefs, de sacerdotes culinários:
Guérard, em Eugénie les Bains, era o grande sacerdote
da cozinha voltada para os ingredientes e para a leveza
(BOULUD, 2004, p. 35).
Embora entendamos que se trate, a princípio, de metáforas elogiosas ou formas
poéticas que a mídia e os pares encontram para ressaltar a importância cultural desses
estabelecimentos e de seus mentores, suspeitamos, por outro lado, que esses arroubos
de lirismo religioso poderiam acusar a existência de um fenômeno maior, ainda
atuante, que impõe valores de um catolicismo enraizado e em funcionamento, mesmo
que de forma sub-reptícia, latente ou inconsciente. Orlandis (1993), em seu livro A
Short Story of the Catholic Church, afirma que a influência da Igreja Católica é vasta
e marcante nas sociedades ocidentais e tem impacto ainda significativo nas visões
culturais estabelecidas sobre os papéis sexuais e de gênero, cabendo, à mulher, um
papel secundário, embora não menos importante, dentro de sua hierarquia.
A elas, a tradição bíblica católica (da mesma forma como Boulud o faz em seu
livro) oferece dois modelos centrais de representação do feminino, que se polarizam:
Eva (a garçonete top model)5 e Maria (vovó). Se a maternidade nutridora e a devoção
mariana recebem um status exaltado dentro da fé católica, por outro lado, Orlandis
(1993) afirma que o papel de Eva foi definitivo para o desenvolvimento da noção
ocidental da mulher enquanto sedutora, indigna e impura. Embora Maria seja o
modelo didático e positivo do feminino, a centralidade obsessiva da mãe celeste na
devoção cristã não anula sua condição secundária enquanto mulher. João Paulo II, ao
citar o discurso de Paulo VI,6 comemorativo ao dia internacional da mulher do ano
de 1975, reafirma sua crença de que mulheres e homens têm vocações específicas de
acordo com suas naturezas e que a maior contribuição das mulheres à igreja é nutrir
a fé das comunidades cristãs. Em ambas as declarações, os papas reiteram o papel
nutridor da mulher perante a ordem divina.
Apoiada nos evangelhos e alegando a escolha de Cristo por apóstolos
exclusivamente masculinos, a igreja do século XXI ainda não concede, à mulher,
o direito ao sacerdócio. Embora não admita, a recusa em ordená-las comprovaria,
segundo Orlandis (1993), a visão tradicional dessa instituição quanto à natureza

5 Por coincidência (ou não), as mulheres de Boulud poderiam ser analisadas enquanto
metáforas de representações católicas do feminino: Maria e Eva.
6 Christifidelis Laici: http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/en/apost_exhortations/
documents/hf_jp-ii_exh_30121988_christifideles-laici.html

96
espiritual e moral supostamente inferior da mulher.7 Para a Igreja, ser sacerdote é um
serviço especial que faz jus somente a um homem, porque há uma natureza sacramental
inerente a eles. Embora a atual igreja reconheça a igualdade entre homens e mulheres
perante Deus, ela afirma que os papéis de ambos são ainda distintos. Enquanto a eles,
a instituição oferece o sacerdócio, cabe, a elas, o papel de nutridoras da fé. Devemos
reconhecer, aqui, que há algo consideravelmente familiar operando na cultura secular
dos restaurantes. É inegável certa ressonância entre os preceitos da instituição católica e
a recusa, por parte da mídia e dos cozinheiros masculinos, em reconhecer as mulheres
chefs enquanto “sacerdotisas” da arte culinária, uma alcunha constantemente atribuída
aos homens como condecoração a uma excelência culinária dotada de aura supra-
humana, transcendental, “alquímica”, “espiritual”, “mágica”, xamânica:
A tarefa do chef – usar o calor para transformar os
ingredientes – é a coisa mais próxima da alquimia que já
conheci [...] um efeito de mágica (BOULUD, 2004, p. 40).

Se, por um lado, a doutrina católica ainda afirma que a ordenação é status sagrado
destinado unicamente ao homem, devido à sua natureza sacramental determinada
pela lei divina, por outro lado, encontramos mitos semelhantes em diversas culturas
alimentares, incluindo a cultura da alta gastronomia. Em vários de seus artigos sobre a
Cuisine de Femme, publicados durante a década de setenta, Gault e Millau reproduzem
antigos mitos sobre as mulheres, salientando suas fraquezas e inaptidões culinárias.
Trata-se de dois dos críticos gastronômicos mais influentes da França, fundadores
da publicação francesa (o Guia Gault e Millau, concorrente do Guia Michelin) que
revolucionou a crítica de restaurantes na década de setenta, ao mesmo tempo em que
patrocinou a Nouvelle Cuisine, inaugurando a era da gastronomia espetacular e dos chefs-
celebridades como a conhecemos hoje. Ao se defenderem das acusações de sexismo
decorrentes desses artigos, ambos insistem que “suas afirmações estavam baseadas em
fatos sociológicos verificáveis” (MALLORY, 2001, p. 124).

Curiosamente, o mito da superioridade espiritual masculina está presente em


várias culturas que ligam o cozinhar a práticas religiosas. Em Sacred Food: Cooking
for Spiritual Nourishment, a jornalista gastronômica inglesa Elisabeth Luard (LUARD,
2001) propõe uma jornada por diversas culturas, investigando os modos como elas
celebram suas festividades religiosas e seculares com comida. Segundo a pesquisadora,
a coleta de grãos e raízes era atributo feminino em várias sociedades primitivas. Por

7 “Conservem-se as mulheres caladas nos templos, porque não lhes é permitido falar, mas
estejam submissas como também a lei o determina” (Apóstolo Paulo, 1 Coríntios, capítulo
14, versículo 34). “Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem, em casa, a seu
próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja.” (Paulo, 1Co 14. 35).

97
ser uma atividade que exigia qualidades consideradas mais masculinas, como força
física, astúcia e bravura, cabia, ao homem, a provisão da carne. Segundo ela, é ainda
comum, em várias comunidades rurais, que o abate de animais domésticos de pequeno
porte seja considerado um trabalho feminino. Animais de grande porte, como gado e
porcos, são vistos como trabalho masculino; não por razões de mera força física, mas,
também, por questões ritualísticas, pelo significado sacerdotal da ação (p. 19).

Luard acrescenta que, culturalmente, certos alimentos possuem um significado


conotativo universal. O sangue, por exemplo, é considerado a metáfora que expressa
o sacrifício e permite aos homens se conectarem com o mundo espiritual através
do sacerdócio. É relevante essa reflexão da jornalista, porque a reconhecemos, em
parte, na atual cultura dos chefs. Primeiramente, porque os grandes cozinheiros,
como já vimos, se autodenominam sacerdotes culinários. Está implícita, no uso dessa
expressão, a ideia de sacralização, de ritualização. Em segundo lugar, porque, segundo
Luard (2001), a noção de comida sagrada envolve a ideia de sacrifício, de mutilação
da carne, de derramamento de sangue, seja ele real ou simbólico. Para ela, é a noção
do sacrifício que sacraliza e ritualiza a comida. O sacrifício de Cristo transformou a
carne e o sangue em pão, vinho e ritual sagrado.

Os discursos de Boulud, Bourdain, Samuelsson e de todos os grandes chefs


veiculados pela mídia estão marcados pela retórica do sacrifício: “Pede-se muitos
sacrifícios [...] não há outra escolha” (BOULUD, 2004, p. 23). No caso desses chefs,
o corpo sacrificial é o deles próprio, entregue aos derrames e às mutilações do ofício.
O suor derramado, na melhor das hipóteses, substitui o sangue, quando o próprio
sangue não é, também, entornado. Não são incomuns as performances públicas onde
os chefs expõem seus corpos marcados por cortes, calos, deformidades, arranhões,
amputações, queimaduras. Essas marcas desvendam corpos martirizados em nome
de uma arte universal, em prol da cozinha de verdade e do sacerdócio vocacional.
Em Cozinha Confidencial, Bourdain dedica um capítulo inteiro à performance
espetacularizada de seu corpo mutilado pela profissão:
Mas as cicatrizes estão aqui. Faço um balanço de minhas
extremidades [...] queimaduras velhas e novas, reparando com
uma certa tristeza nos efeitos da idade e do metal quente [...] um
calo diagonal no indicador direito de quase cinco centímetros,
castanho-amarelado [...] tenho orgulho dele. É a marca distintiva
que me destaca imediatamente como cozinheiro, como alguém
que está no ramo a muito tempo. Você sente quando aperta
minha mão, assim como eu sinto o que está nas mãos dos colegas
de profissão. É um sinal secreto, uma espécie de cumprimento
maçônico, uma forma de nós que escolhemos esta vida, nos

98
reconhecermos; a grossura e a aspereza daquele pedaço de carne,
seria um currículo, que diz aos outros a quanto tempo e quanto
tem sido duro. O mindinho da mesma mão ficou deformado,
torcido, recurvo na ponta – resultado da má postura na hora
de bater algum molho ou creme [...] há também arranhões,
perebas no dorso das mãos [...] algumas manchas brilhantes
[...] minhas unhas, restou pouco delas, têm sangue animal seco
e uma enorme equimose preta debaixo da unha do polegar [...]
tenho uma ponta de dedo chafandrada na mão esquerda [...] há
alguns sulcos de um centímetro na palma da mão esquerda [...]
as feridas nos nós dos dedos são tantas [...] outros insultos à carne
ficaram anônimos, provas de sucessão de cozinhas empilhadas
uma em cima da outra (BOURDAIN, 2016, p. 384-392).

Assim como as apologias ao sacrifício encontradas nos discursos de Boulud,


os “insultos à carne” de Bourdain são atestados irrefutáveis de sua identidade culinária
sacerdotal; o reconhecimento “maçônico”, que o integra a uma irmandade de cunho
universal, fraternal, iniciática, moral, perfeccionista e masculina. Embora Luard
(2001) não proponha uma ligação causal direta entre masculinidade e espiritualidade,
suas reflexões sugerem que havia, em determinados povos antigos, uma conexão
entre força física e vigor espiritual. Tal suposição levaria à ilusão da superioridade
espiritual masculina. Em algumas culturas asiáticas, a culinária cotidiana está
destinada às mulheres. A preparação da comida festiva é um rito que só pode ser
realizado de forma adequada pelos homens. O ato do preparo da comida festiva
nessas sociedades, envolve, segundo ela, todas as características do sacerdócio. As
comidas são preparadas de acordo com rituais específicos por cozinheiros homens
dotados de poderes especiais (chefs) e devem ser servidas em um lugar de significado
espiritual (templos gastronômicos). O mistério é parte do mito e vice-versa. Devemos
admitir que isso soa familiar. A elevação do chef ao status de xamã via ato sacrificial
está distante, segundo ela, do cotidiano de uma cozinha doméstica e feminina, que se
ocupa, unicamente, com questões práticas da nutrição.

Assim como o sacrifício, também a ideia de transformação (cara aos chefs) está
ligada à noção do sagrado. Luard (2001) afirma que, dentro do princípio bíblico, todo
o bem terreno pertence ao Criador celeste. Se a comida sacrificial é oferecida em seu
estado natural, o Pai está sendo convidado a receber o que lhe pertence, sua própria
criação. Por essa razão, oferecer a Ele as coisas em seu estado bruto, como elas são, não
é satisfatório. Elas devem, de alguma forma, ser melhoradas e transformadas em algo
diferente de seu estado natural. Como ocorre com a transformação da água em vinho,
do grão em pão, da carne morta em carne assada, a conversão da comida “camponesa”

99
da vovó em “comida de verdade” é considerada, pelos próprios chefs masculinos, um
processo alquímico, mágico, natural aos espíritos criativos, guerreiros e inventivos. As
mulheres, para muitos deles, estariam inaptas para essa tarefa, pois são consideradas
inferiores, tanto criativa quanto “espiritualmente”.8

A exemplo dos depoimentos de Gault e Millau, as declarações depreciativas


de Paul Bocuse nos fornecem inúmeros outros exemplos. Considerado uma
lenda enquanto ainda vivo, Bocuse (1926-2018) é, provavelmente, a maior estrela
gastronômica do século XX. Ele é referenciado pela mídia, pela crítica e pelos pares
como o “papa da gastronomia moderna francesa”.9 Bocuse foi nomeado, em 1989,
“o chef do século” pelo guia Gault-Millau. Foi, também, o porta-voz não oficial da
França perante o mundo para a cozinha francesa e conselheiro oficial gastronômico
do governo francês. Foi, também, um dos fundadores da Nouvelle Cuisine e mentor
espiritual do Boulud, com quem, ainda garoto, se encontrava por acaso nos mercados
de Lyon, ao término das compras:
Os irmãos Troisgros, Paul Bocuse, George Blanc e Alain Chapel.
[...] Eis os caras que estavam mudando o mundo da cozinha [...]
era uma chance para ver como os grandes chefs agem [...] Uma
vez terminadas as compras, eu me sentava junto deles num dos
bouchons locais e comia uma porção de dobradinha. Abriam
uma garrafa de Beaujolais (eu bebia só limonada). Os casos
que contavam, o linguajar era pesado, a camaradagem me fazia
sentir no topo do universo. Claro que me gozavam bastante, do
jeito como os velhos profissionais gostam de chatear um garoto.
Mas eu engolia calado, mas estava muito feliz de estar ali na sua
companhia (BOULUD, 2004, p. 28).

As famosas declarações sexistas e misóginas de Bocuse10 para os meios


de comunicação de massa são bem conhecidas entre os chefs e o público. Para
Mallory (2011, p. 125-126), elas perpetuam uma ideologia masculina ultrajante,
pois dão a impressão de que expressam valores de uma entidade da qual Bocuse
é o representante máximo. Em alguns desses depoimentos, Bocuse afirma que as
mulheres são boas apenas na execução da cozinha tradicional, pois são incapazes
de pensar criativamente, além de lhes carecer força inventiva. Ele afirma ainda que,

8 “A mulher-personagem de Escoffier (como o chef as imagina) é de insensibilidade notória


[...] além de considerá-las inaptas, lhes roubou o espírito” (DÓRIA, 2012).
9 Sobre Paul Bocuse: https://viagens.sapo.pt/saborear/noticias-saborear/artigos/morre-
papa-da-gastronomia-francesa-o-estrelado-chef-paul-bocuse
10 ‘We live too long to have just one woman”: Entrevista com Paul Bocuse para a revista
britânica Telegraph (www.telegraph.co.uk/foodanddrink/3323406/we-live-too-long-to-
have-just-one-woman.html).

100
enquanto objetos de prazer, o único lugar destinado a elas é a cama. A exemplo de
Anthony Bourdain, Bocuse não se constrange em narrar sua intimidade, expondo
suas proezas sexuais ao lado de façanhas culinárias, ligando a alta gastronomia à
esfera do sexo, ambos terrenos pertencentes ao mundo dos falocratas.11
Declarações como essas, pronunciadas por um porta-voz do porte de Bocuse,
não são raras de se encontrar no campo. Voltando um pouco no tempo, encontramos,
por exemplo, discursos semelhantes em Auguste Escoffier. Cozinheiro, restaurateur
e escritor francês, Escoffier é considerado um dos mais importantes expoentes no
desenvolvimento da cozinha francesa moderna e, também, a pessoa que retirou as
mulheres definitivamente da cozinha profissional, criando o mito de que esse espaço
de expertise – um domínio do artístico e não do doméstico - é matéria exclusiva para
os homens. Partindo de sua experiência enquanto cozinheiro do exército francês
durante a primeira guerra, Escoffier introduziu um estilo militarizado na cozinha
profissional, impondo disciplina e respeito em uma cultura tida - até então – como
desordenada, indisciplinada, formada por bêbados ineficientes e desregrados.
Considerado o Henry Ford da cozinha (DÓRIA, 2012), Escoffier criou o sistema
hierarquizado de brigadas e o processo de produção no âmbito profissional. Seu estilo
sistemático trouxe uniformidade, regramento, método científico e racionalidade à
gastronomia francesa. Segundo ele, a mulher deveria, em razão de sua natureza
doméstica, manter-se unicamente dentro do espaço da casa, distante da cozinha
profissional, que é naturalmente masculina:
Nas tarefas domésticas é muito difícil encontrarmos um
homem se igualando ou excedendo uma mulher; mas cozinhar
transcende um mero afazer doméstico, trata-se, como eu disse
antes, de uma arte superior. A razão pela qual na culinária os
louros são “apenas masculinos” não é difícil de encontrar. [...]
(ESCOFFIER, apud TRUBEK, 2000, p. 125-126).12
A partir deste ponto de sua fala, Escoffier passa a argumentar sobre a
superioridade masculina a partir da suposta diferença “natural” entre os gêneros,
polarizada entre praticidade, inata ao feminino, e senso artístico, uma qualidade
essencialmente masculina. Essas são variações das mesmas alegações encontradas
nos discursos da Igreja, de Bocuse, de Gault e Millau. Escoffier finaliza seu discurso
dizendo que, a elas, faltam disciplina, observação, imaginação, atenção aos detalhes,
foco e objetividade. Assim, a cozinha militarizada de Escoffier baniu as mulheres do

11 O toque (chapéu branco de chef) é “exclusivo para os falocratas” (BOCUSE apud


MALLORY, 2011, p. 125).
12 Trubek, Amy B. Haute Cuisine. How the French Invented the Culinary Profession.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2000, p. 125-126.      

101
ramo da hotelaria, deixando o campo limpo para o domínio masculino. Entretanto,
por se tratar da transferência de um saber tradicionalmente
feminino para um universo masculino, foi necessário, para
Escoffier, formalizar todos os gestos, criar um vocabulário
controlado e assim por diante: parecia a “invenção” da
cozinha masculina num mundo em que os homens nada
sabiam previamente sobre o cozinhar e do qual, por exigir
iniciação e treinamento, as mulheres da cozinha doméstica
ficariam apartadas (DÓRIA, 2012, p. 265).

Embora excluídas do regime respeitado e militarizado de Escoffier, as


mulheres francesas não deixaram de cozinhar profissionalmente. Com a perda de seus
empregos de cozinheiras em casas particulares da aristocracia e da burguesia, ao final
do século XIX, algumas delas começaram a abrir pequenos restaurantes. Essa versão
modernizada da cozinha burguesa, segundo Mallory (2011), passou a ser conhecida
como Cuisine de Femme e ocorreu de forma mais marcante na região de Lyon, berço
da Nouvelle Cuisine e de Daniel Boulud. Para manter a aura doméstica e nutridora
inseparável das mulheres, as cozinheiras destes pequenos estabelecimentos passaram
a ser chamadas por eles de Les Mères (as mães).

Les Mères estavam entre as primeiras chefs mulheres proprietárias bem-


sucedidas, celebradas pela excelente qualidade de suas cozinhas. Não sendo
tecnicamente treinadas no estilo grandiloquente, triunfal e nacionalista de Escoffier,
Les Mères desenvolveram seu próprio estilo de administrar e produzir comida para
uma cozinha comercial, servindo um cardápio limitado, simples, regional, restrito ao
que estava disponível no mercado. Além disso, realizavam pessoalmente suas compras
nos mercados de Lyon, visando as verduras mais frescas e da estação. Zelavam, também,
por um ambiente descontraído, mantendo uma relação pessoal direta e calorosa com o
cliente. Desprovidas de uma educação culinária formal e codificada, cozinhavam com
intuição e instinto. Eram, portanto, a antítese da abordagem apoteótica de Escoffier.

Contudo, todas essas características “femininas” que diferenciavam a cozinha


“exportação” da França da cozinha de Les Mères, “de consumo interno”, foram, a partir
da década de setenta, sendo incorporadas pelos chefs revolucionários da Nouvelle
Cuisine, que romperam radicalmente com o estilo “pesado, rançoso e nacionalista”
de Escoffier e reivindicaram essas “novidades” como masculinas. Há, no livro de
Boulud, várias passagens em que o chef descreve técnicas e procedimentos de sua
arte. É possível reconhecemos, em algumas descrições, as mesmas características da
cozinha de Les Mères, que o chef apresenta como masculinas; como um conhecimento
herdado de seus mentores homens, embora não deixe de citar a cozinha da vovó

102
(la mère de la mère), como uma curiosidade que não deve ser esquecida, oferecendo, à
vovó (e às mulheres), o papel de mero “ingrediente” de sua arte de verdade.

O estilo mais intimista da cuisine de femme, conectado com o cotidiano


e com os ciclos da terra e da natureza, contrastava radicalmente com a cozinha
grandiloquente, industrial, sistematizada, instrumentalizada e pomposa de Escoffier,
considerada a cozinha embaixadora da França e mais um símbolo dentre os vários
que comprovavam o triunfo francês nas artes. Embora enfrentando preconceitos, a
cuisine de femme era considerada, pela crítica gastronômica13 do período anterior
à Nouvelle Cuisine, como a melhor representação da cozinha francesa. Além disso,
várias Mères foram premiadas na primeira metade do século XX pelo Michelin, o
icônico guia de restaurantes que visava promover o turismo automobilístico a
partir dos restaurantes dignos de visitação, espalhados pela França. Entre as chefs
premiadas, estava Eugénie Brazier. Com exceção de Alain Ducasse, que repetiu a
mesma façanha seis décadas mais tarde, em 1998, Le Mère Brazier (assim chamada)
atingiu, em 1933, o feito que nenhum outro chef masculino havia conseguido.
Segundo Mallory (2011, p. 71), Brazier foi premiada com três estrelas Michelins para
dois de seus restaurantes e foi a única pessoa até hoje a ser promovida de uma estrela
para três em um único ano. Ironicamente, e apesar de seu status mítico, a carinhosa
alcunha Mère Brazier mantém a premiada chef colada ao estigma doméstico que
desvaloriza simbolicamente sua identidade e seu trabalho.

Mesmo com as façanhas de La Mère Brazier e de várias outras chefs de ponta, as


mulheres estão ausentes nas narrativas de Boulud. O silêncio dele retrata a dificuldade
de integração delas na memória culinária coletiva da França e da alta gastronomia
mundial. Se, para Pollak (1989, p. 8), a fronteira entre o dizível e o indizível separa as
lembranças subterrâneas de um grupo marginalizado de uma memória coletiva que
se organiza em torno de uma imagem que um grupo hegemônico quer perpetuar,
os não-ditos de Boulud dão ênfase a um imaginário14 hegemônico masculino que
deforma e apaga a importância histórica do feminino no cenário da alta cultura dos
restaurantes. Embora a exclusão feminina ocorra sem a mesma insistência xenofóbica,
o apagamento deliberado dos arquivos da memória a partir da Nouvelle Cuisine
ocorre, segundo Mallory (2011), porque a mulher seria a última ameaça à pureza
francesa. Desta forma, a própria história da culinária francesa, para ela, foi submetida

13 Mallory (2011, p. 219) cita o famoso crítico Curnonsky.


14 “O imaginário apresenta-se como um conjunto de produções, mentais ou materializadas,
relacionado à função simbólica e à configuração de sentidos”. (ÉBOLI, Luciana. Imaginário.
In: (cont.) BERND, Zilá; KAYSER, Patrícia (Org.). Dicionário de expressões da memória
social, dos bens culturais e da cibercultura. Canoas: Unilasalle Editora, 2017, p. 129).

103
à uma purificação. Como prova da “sanitização da memória oficial de Les Mères e
das mulheres”, ela cita a Larousse Gastronomique, que considera o arquivo oficial
da memória da gastronomia francesa (p. 214). Embora a edição de 1996 contenha
inúmeros verbetes biográficos dedicados a grandes chefs homens, a enciclopédia se
refere a Les Mères Lyonnaises de forma genérica, assim como Boulud faz com as vovós.
De acordo com o verbete, Les Mères Lyonnaises é um apelido carinhoso dado por
vários cozinheiros que se interessaram pela cozinha feminina de Lyon no final do
século XIX. Não há, em todo o texto, qualquer indicação da real importância dessas
mulheres para a Nouvelle Cuisine e para a cozinha do século XX:
Embora a citação do Larousse dê crédito às mães (Les Mères)
como fonte de inspiração dos pratos aperfeiçoados que eles
serviram [...] a enciclopédia, ao mesmo tempo, enfraquece o
significado delas enormemente, observando a forma pouco
profissional e sua gama limitada, e relega o status delas ao de
simples cozinheiras, locais ou regionais, em vez de garantir
que sua comida possa ser vista como uma forma de culinária
francesa (ou nacional)15 (MALLORY, 2011, p. 215).
Segundo a pesquisadora, o anonimato do apelido genérico Les Mères garantiu
que o “vírus das mulheres chefs fosse contido” (p. 215). Para Szmodis (2018), os papéis
de gênero continuam a impor ideologias16 que afetam a cultura dos restaurantes. A
retórica francesa replicada por chefs (como Boulud) desvincula, não por acaso, a
comida feminina caseira das habilidades técnicas, científicas e artísticas da cozinha
masculina de elite. Segundo Szmodis, a associação da cozinha doméstica feminina
com a haute cuisine é prejudicial aos homens porque cria uma ameaça de feminização
da cozinha masculina. Como o trabalho feminino é frequentemente desvalorizado
financeiramente pela sociedade frente ao trabalho masculino, a preocupação dos chefs
homens reside na desvalorização de suas posições caso sejam associadas à feminilidade,
como ocorre atualmente na confeitaria, uma área dominada por elas e desprestigiadas
pela cultura masculina estereotipada, que não a vê como sendo masculina. Segundo
o relatório salarial americano de 2010, a confeitaria preenche 84% de suas posições
com lideranças femininas; em comparação, apenas 10% dos cargos de chef executivo
são ocupados por mulheres. Focados na carne, signo sacerdotal masculino, os chefs
entendem que o açúcar simboliza o universo feminino:

15 A tradução é minha.
16 “A ideologia aparece como um ‘véu’ cobrindo a realidade – a dominação de uma classe
sobre as outras a partir das relações de produção e da divisão entre trabalho e capital”
(GRAEFF, Lucas. Cultura e ideologia (relação). In: BERND, Zilá; KAYSER, Patrícia
(Org.). Dicionário de expressões da memória social, dos bens culturais e da cibercultura.
Canoas: Unilasalle Editora, 2017, p. 66).

104
Guérard, em Eugenie les Bains, era o grande sacerdote da
cozinha voltada para os ingredientes e para a leveza. Seu
caminho para o estrelato tinha sido pouco usual – a confeitaria
(BOULUD, 2004, p. 35).
Por um lado, o rôtisseur precisa ter uma ligação intuitiva com
a carne e, por outro, precisão militar. É preciso ser excelente
cozinheiro para ser rôtisseur [...] Um bom rôtisseur só tem a
parte exterior para observar, e precisa ser capaz de imaginar
a transformação dos sucos [...] prever tudo o que vai se
passar dali até os pratos (BOULUD, 2004, p. 43).

Chama a atenção, na fala acima, o estranhamento de Boulud quanto à


conquista do estrelato de Michel Guérard, que ocorreu enquanto ele ocupava uma
posição na confeitaria. Em História de um pecado capital, Quellier (2010) nos dá uma
pista sobre os prováveis motivos do espanto de Boulud, afirmando que
Se o açúcar pertence ao universo feminino, seu consumo
por um homem é coisa de afeminado e, nos estereótipos
anticlericais, o gosto dos monges pelo açúcar, o chocolate
e as compotas permite associá-los ao mundo das mulheres
(QUELLIER, 2010, p. 166).

Para Dória (2012), o açúcar é um produtor de códigos, costumes e hábitos.


Ele está atravessado por questões estéticas, morais, econômicas e afetivas. Citando
um artigo do inglês James Alisson sobre o consumo de doces pelos britânicos, Dória
afirma que no sistema classificatório inglês (possivelmente herdado da retórica
francesa) os doces não são considerados “comida de verdade”. Isso talvez explique a
surpresa de Boulud com a notoriedade de Gèrard, um chef de verdade, que atingiu o
status sacerdotal vindo de uma instância inimaginável, ligada ao universo feminino.
Além disso, o status depreciativo dos doces se estende às mulheres que os preparam,
reforçando a noção de que elas não “cozinham de verdade”.

A confeitaria tem um histórico de não ser valorizada pela mídia e pelos chefs
masculinos, mesmo quando ocupada por homens. Enquanto produtor de códigos, o
açúcar está ligado a várias associações linguísticas, como meiguice, inocência, doçura,
amor, ternura, suavidade. Para Mallory (2011) e Szmodis (2018), ele está associado
à feminilidade e ao sexo, à ideia de “mulher como sobremesa”, uma metáfora que
circula na indústria profissional dos restaurantes. A evolução desta metáfora, segundo
Szmodis, conduz à percepção das mulheres enquanto doces e ao entendimento das
sobremesas enquanto campo natural do feminino, distantes da ligação máscula com
a carne. Curiosamente (talvez nem tanto), as mulheres são também bem aceitas
enquanto cozinheiras étnicas, um campo da culinária, por si só, desprestigiado pela

105
cultura dos templos gastronômicos, que, como o faz com os doces, destitui o étnico da
condição de “cozinha de verdade”, mesmo quando estas cozinhas estão sob controle
masculino, como já vimos anteriormente, no capítulo dedicado a Samuelsson.

A estratégia masculina contra a associação da cozinha feminina ao universo


deles esconde, paradoxalmente, deturpações e apropriações que retiram, delas,
o benefício de troca e a devida atribuição de valor às suas reais contribuições,
confinando-as ao “honorável” status de “fontes inspiradoras”. Esse fato é contraditório,
porque a chamada revolução da Nouvelle Cuisine, que estabeleceu os alicerces da
nova gastronomia espetacular, ocorreu a partir de um rapto da tradição de Les Mères,
embora o movimento tenha apontado um único nome para o surgimento da nova era
culinária: o de Fernand Point.

O epicentro do movimento modernizante da Nouvelle Cuisine foi a cidade


de Lyon, região onde jovens revolucionários como Paul Bocuse, Georges Blanc, Jean
e Pierre Troisgros, Alain Chapel, Michel Guèrad, Fernand Point e Daniel Boulud,
treinados no estilo de Les Méres, se basearam na tradição delas para desenvolver os
princípios da nova cozinha de uma nova França:
Eu tive muita sorte por ter começado minha carreira em
Lyon no momento em que aquela região da França estava na
vanguarda de uma revolução culinária (BOULUD, 2004, p. 18).
Para um chef, estar em Lyon naqueles dias era como para um
músico estar em Liverpool no momento em que os Beatles
lá estavam. Eis os caras que estavam mudando o mundo da
cozinha [...] era uma chance para ver como os grandes chefs agem
(BOULUD, 2004, p. 27).
Lá fui para meu próximo mestre [...] Blanc vinha de uma família
como a minha, que tinha a tradição de fazer a “comida da vovó”.
Seu interesse era refinar essa comida tradicional para fazer dela
haute cuisine. Quando digo que vínhamos de origens parecidas,
devo acrescentar que seu estilo de cozinha familiar ficou
famoso mundialmente por causa de seu restaurante, localizado
no albergue de sua mãe, La Mère Blanc, um restaurante
maravilhoso de uma estrela. Blanc transformou aquela comida
camponesa em arte (DANIEL, 2004, p. 28-29).

Embalada pelos ventos de maio de 1968, a Nouvelle Cuisine surgiu na onda


de outras vanguardas culturais “antissistema”, como a nouvelle vague, a musique
nouvelle, o nouveau roman, a nouvelle critique e o nouveau théâtre. Emergiu, também,
na mesma época em que Guy Debord lançava seu livro A Sociedade do Espetáculo
(1967), antecipando, de certa forma, os rumos que a gastronomia tomaria nas décadas

106
seguintes. Até então, os franceses estavam mais focados na preparação primorosa de seu
vasto repertório tradicional culinário e na teatralidade do serviço do que no impacto
visual minimalista-vertiginoso e na autenticidade de combinações experimentais e
incomuns da nova vanguarda. Com o surgimento dessa nova cozinha, as convenções
do espetáculo e da cultura da celebridade passaram a reger a indústria dos restaurantes.
Os novos astros da nova onda eram todos homens, jovens, criativos e rebeldes, que se
espelhavam no culto à juventude que emergia na cultura de massa. Não é ao acaso que
Boulud compara a cidade de Lyon e seus chefs vanguardistas à cidade de Liverpool e
aos Beatles. Era desta forma que os revolucionários se percebiam. Eles eram, afinal, os
Beatles das panelas.

Contudo, enquanto as demais vanguardas culturais que emergiram com o


estopim de maio de 68 eram produtos da esquerda artística, rebelde e antissistema,
Mallory (2011) afirma que a Nouvelle Cuisine foi, na verdade, um movimento avant-
garde que surgiu a partir da reação “da direita”. A famosa revolta estudantil, feminina
e da classe trabalhadora contra os valores burgueses e católicos da elite conservadora,
gerou uma contrarreação da direita e da nova classe dominante, que revidou com o
mesmo discurso revolucionário de modernização da sociedade francesa, proposto
pelos opositores. Para ela, esse fato explica o paradoxo que ocorreu a partir de então.
Se, por um lado, maio de 68 promoveu um avanço dos direitos femininos na esfera
pública, por outro, o movimento garantiu a saída delas do ambiente profissional das
cozinhas e o retorno ao ambiente culinário-doméstico. O reconhecimento da mídia a
seus talentos enquanto restauradoras, usualmente dado às Mères durante as décadas
que antecederam a Nouvelle Cuisine, também cessou. Além disso, foram necessários 40
anos para que o Guia Michelin premiasse novamente uma chef mulher. Assim, apesar
das promessas de “igualdade” e “amizade” feitas pelos criadores da Nouvelle Cuisine, o
movimento feminista acelerou o processo de desaparecimento das mulheres de posições
de liderança nas cozinhas profissionais.

Isso ocorre, também, porque as narrativas de profissionais de grande


envergadura, como as declarações de Bocuse, Escoffier e o próprio silêncio de Boulud
e de muitos outros, continuam a naturalizar antigos discursos de gênero. Embora Les
Mères, vovó e as mulheres sejam reconhecidas como dignas de lembrança ou, ainda,
portadoras de capacidades culinárias, os discursos hegemônicos de gênero continuam
a reproduzir antigos clichês.

Contudo, a reembalagem de atributos culinários femininos por parte da elite


masculina vanguardista – que encobria o assenhoreamento da tradição feminina –
não ocorreu ao mero acaso e sim, por motivos que extrapolam o âmbito da cultura

107
alimentar para recair sobre assuntos mais urgentes da nação, que demandavam
o reestabelecimento da memória apoteótica e hegemônica de uma França
enfraquecida frente aos olhos do mundo e da própria sociedade. Para Mallory
(2011), uma cozinha representativa da França, liderada por homens jovens, fortes e
militarizados, preencheria o papel simbólico da liderança masculina deixada vazia
por líderes políticos e militares. Além disso,
Não seria adequado para esses jovens definirem a Nouvelle
Cuisine como uma adoção de uma culinária feminizada e
praticada por mulheres em lares burgueses. Consequentemente,
mesmo que a preparação e a apresentação dos alimentos
tivessem, de fato, alguns atributos estereotipicamente
“femininos” (comida mais leve, porções menores, vegetais do
tamanho infantil, receitas mais simples, cardápio reduzido),
os chefs responsáveis por essas mudanças tinham que parecer
viris e capazes de liderar a França e o mundo através desta
revolução culinária e cultural (MALLORY, 2011, p. 213).17

A cozinha masculina de Escoffier já dava sinais de desgaste nas décadas que


antecederam a Nouvelle Cuisine, no período pós segunda-guerra. Apesar de seu
enorme sucesso, a inovação e a criatividade não tinham lugar no estilo engessado
de sua cozinha. O imperativo da figura, obrigatória nas práticas da haute cuisine,
amarrou os chefs dentro de fórmulas e esquemas, bloqueando a espontaneidade
de gerações futuras. Além disso, a última grande guerra impunha mudanças e
adaptações. Era necessário romper com a cozinha suntuosa de Escoffier e buscar
novos horizontes, novas referências. Frente a este contexto, deparamos com
Fernand Point. Antinacionalista, antimonarquista e anti-ocupação nazista, Point
era a antítese de Escoffier. Recusou a cerimônia, a pompa, o luxo exacerbado, o
patriotismo imperial e ufanista, propondo uma volta à simplicidade, à cozinha
regional, ao despojamento, aos prazeres simples.
Seu estilo de cozinha privilegiava o subjetivo, o visceral, o desprendimento
das normas e das regras rígidas, o intuitivo, o intimista e o sensorial, opondo-se
radicalmente aos princípios de Escoffier e aproximando-se do estilo feminino de
Les Mères e da cuisine de femme. Tornou-se um grande sucesso, abrindo o caminho
para os jovens de uma nova vanguarda (a vanguarda de Lyon, citada por Boulud).
Fernand Point é considerado, pelos chefs e pelos registros oficiais, como pai da alta
gastronomia moderna francesa, uma cultura, poder-se-ia dizer, órfã de mãe, apesar das
várias “mères”.

17 A tradução é minha.

108
A promessa de inclusão das mulheres, tanto na Nouvelle Cuisine (égalité e amitié),18
quanto na revolução da Revolução Francesa (liberteé, égalité e fraternité), de certa
maneira, fracassou. Os anos que seguiram o estopim da revolução culinária revelaram que
a promessa foi cumprida somente em parte, uma parte que, na verdade, reforçou antigos
mitos estereotipados do feminino ao invés de romper com eles. O guia Gaul e Millau,
que informava os cidadãos comensais colocando-os ao par das novidades da gastronomia,
apresentando à nação os novos talentos da nova cozinha nacional e suas criações inventivas,
passou a citá-las em suas indicações e referências, embora preferindo reverenciá-las pelos
seus atributos ornamentais (como decoração, aparência, roupas “sexies”, saltos altos,
maquiagens) e suas qualidades subjetivas (amorosas, doces, inocentes, leves, simpáticas,
charmosas) além de destacar a clientela famosa, digna de nota. Esses mesmos críticos se
abstêm de levar em conta a qualidade da comida e o trabalho/sacrifício envolvido no seu
preparo, como normalmente o fazem em suas críticas quando se referem aos chefs homens
(lembrando que Boulud faz uma única menção a uma presença feminina no âmbito
profissional que ele considerou digna de nota: a garçonete sexy). Assim, apesar da grande
promessa de uma revolução feminina que seria promovida pela Nouvelle Cuisine, o que se
cumpriu, na verdade, foi o surgimento de uma nova aparência feminina no ambiente da
cozinha (sexy e espetacularizada) que não se parecia, em nada, com a figura tradicional
das Mères e da vovó (MALLORY, 2011, p. 128).

Se o sucesso inquestionável de chefs femininas, como Marie Bourgeois,


Sophie Bise, Anne-Sophie Pic e outras, torna possível deduzirmos que a Nouvelle
Cuisine reconheceu e abriu espaço de equidade para as mulheres como antes não era
possível, Mallory rebate essa ideia com um argumento que poderia servir também para
refletirmos sobre o inusitado sucesso de Samuelsson, outro chef do estudo. Para justificar
seu ceticismo a pesquisadora recorre à “teoria do milagre” de Bourdieu (p. 124). Em
poucos termos, em sua reflexão, Bourdieu sustenta que um punhado de exceções não
prova a existência de igualdade ou democracia. Pelo contrário, determinadas histórias
de sucesso, tidas como “milagrosas”, distraem e ocultam desigualdades sistêmicas
enquanto criam ou reforçam o mito da democracia.

O interessante no “milagre” de Samuelsson– e que não ocorre com Les Mères - é


a inclusão do chef negro no clube dos sacerdotes culinários, ao final de seu processo de
“refinamento” e “depuração” étnica, ao qual ele se submeteu.19 Com o afrancesamento

18 Lemas das revoluções


19 Marcus Samuelsson entendia que o único caminho para um chef negro ser respeitado e ter
alguma visibilidade na alta gastronomia era mediante a submissão às convenções francesas de
cozinhar, entendidas, por ele, como uma forma de depuração e refinamento de sua pessoa e de
suas práticas culinárias.

109
de si e de sua cozinha, Samuelsson passou a ser mais um integrante do jogo masculino
hegemônico. Podemos especular que isso ocorreu porque, “embora” étnico, Samuelsson
é, ainda, um homem. Igual a Samuelsson, Vovó e Les Mères -, a despeito de serem
herdeiras naturais de uma cultura tida como refinada - para acenderem ao alto patamar
da culinária, precisam também ser refinadas, transformadas, depuradas. O que as torna
diferentes de Samuelsson, no entanto, é que, a elas, não é dada a mesma chance de
fazê-lo sozinhas. Os sacerdotes farão isso por elas, pois “são incapazes”. Nesse sentido,
é interessante retomar novamente as afirmações de Rojek (2001), Mallory (2011)
e Orlandis (1993), para os quais a religião (apesar da “morte de Deus”) ainda rege a
cultura contemporânea ocidental e se faz fortemente presente em uma cultura culinária
altamente propensa à ritualização e à semantização de suas práticas.

Por outro lado, é fundamental destacarmos a indiscutível relevância da Nouvelle


Cuisine e dos exímios chefs masculinos para a gastronomia do final do século XX, cujos
reflexos são fortemente sentidos até hoje. O não reconhecimento da enorme capacidade
criativa desses talentos seria, talvez, um dos grandes equívocos desta pesquisa. Diminuir
a intensidade de suas grandezas é, tampouco, a intensão dessa análise. Reconhecemos
todos os chefs citados neste estudo como artífices brilhantes, profissionais autênticos
e altamente relevantes. Além disso, reconhecemos, também, que a Nouvelle Cuisine
cumpriu, de fato, com grande parcela de suas promessas, levando a cultura gastronômica
a patamares de criatividade, expertise e espetacularização inimagináveis antes da famosa
revolução culinária da década de setenta.

No entanto, uma cultura requintada e labiríntica dessa envergadura não


se constrói a partir de poucos indivíduos e sim, através de uma rede complexa e
interconectada de saberes e experiências coletivas, transmitidas através das gerações,
ou, segundo as próprias palavras de Boulud, através da grande linhagem de artistas
culinários que remonta aos últimos duzentos e cinquenta anos da história da França.
Vimos anteriormente que todo o tecido cultural é um emaranhado de intertextos,
soterrados e sobrepostos. Nesse sentido, a intenção desta análise foi esta: evidenciar que a
cultura da gastronomia opera como um arquipélago formado por um conjunto de ilhas,
dentre as quais algumas estão submersas e, sendo assim, não aparecem nas imagens que
circulam pelos canais da cultura de massa. Apesar da invisibilidade, sabemos que elas
estão lá, sustentando, talvez, o peso de outras ilhas que foram surgindo a partir delas.

Foi nossa intenção, nestas reflexões, demonstrar que o “arquipélago” masculino


de Boulud, assim como o de Samuelsson e de tantos outros chefs celebridades da
atualidade, escondem deliberadamente a existência de ilhas submersas e que essa
invisibilidade produz distorções e reforça antigos clichês e convenções que, na verdade,

110
os beneficia, pois o não dito, neste contexto, se materializa em exclusão, em “limpar o
caminho”. Entendemos que o silêncio desses chefs20 cria a enorme parede branca que os
“enquadra”, fornecendo os contornos que salientam “uma” memória oficial da cozinha
francesa (POLLAK, 1989, p. 7). É a neutralidade dessa parede branca que faz saltar
aos olhos a vivacidade do quadro oficial, revelando que não são eles, afinal, quem as
enquadram: é essa neutralidade que emoldura suas relevâncias.

“Justificados”, talvez, por imperativos e prerrogativas da história, das “ciências


sociais” e da doutrina cristã, que lhes fornece um quadro de referências que, ao bel
prazer das interpretações, lhes “confirmam” e naturalizam a condição inferior da mulher,
os chefs masculinos (ou parte deles) ainda se mantêm coesos e irredutíveis dentro dos
territórios que ocupam (POLLAK, 1989, p. 7). Se toda a organização política ou cultural
“veicula seu próprio passado a partir da imagem que forjou de si mesma” (p. 10), as
imagens propostas por Boulud em seu livro de memórias atestam a inexistência de um
passado, bem como de um presente femininos. E a depender de suas cartas endereçadas
aos chefs do amanhã, não haveria tampouco um futuro.

Referências

BERND, Z.; MANGAN, P. K. V. (Orgs.). Dicionário de expressões da memória social,


dos bens culturais e da cibercultura. Canoas: Unilasalle Editora, 2017.
BOULUD, D. Conselhos a um jovem chef. Trad. Luiz Horta. São Paulo: Anhembi
Morumbi LTDA, 2004.
DÓRIA, C. A. Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno
sobre o trabalho culinário. Cadernos Pagu, n. 39, jul.-dez. de 2012, p. 251-271. ISSN
0104-8333.   Disponibilizado em: <http://www.scielo.br>. Último acesso em maio de
2019.

20 Bourdain, dentre os três chefs do estudo, é o único profissional que expressa “alegria” em dividir o
espaço da cozinha com mulheres. No entanto, a mulher enaltecida de Bourdain se encontra distante
do estereótipo do papel feminino: “Beth se auto-intitulava a ‘vaca da grelha’. Era fantástica na hora
de colocar os tolos e os falastrões nos seus devidos lugares [...] Cozinheiras mulheres, por mais que
sejam raras neste mundo machista onde impera a testosterona, são uma delícia de se ter por perto.
Trabalhar com uma mulher durona, boca-suja e faladeira é uma verdadeira alegria [...] tive a felicidade
de trabalhar com mulheres realmente machonas – elas não tinham nada de dondocas. Ela sempre
quis ter um comportamento igual aos dos colegas homens (BOURDAIN, 2016, p. 91).

111
JAMES, A. The Good, the Bad and the Delicious: The Role Of Confectionary in British
Society. The Sociological Review. Wiley Online Library, vol. 38, n. 4, p. 666-688,
1990. Disponibilizado em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1467-
954X.1990.tb00934.x>. Acesso em 28/05/2019.
LUARD, E. Sacred Food: Cooking for Spiritual Nourishment. Chicago: Chicago
Review Press, 2001.
LUNKES, L. Cultura da Celebridade e gastronomia: uma análise de narrativas
memoriais dos chefs Marcus Samuelsson, Daniel Boulud e Anthony Bourdain. Tese
de doutorado, orientada pela Prª. Drª Zilá Bernd. PPG de Memória Social e Bens
Culturais, Unilassalle Canoas, 2019.
MALLORY, H. A. The Nouvelle Cuisine Revolution: Expressions of National
Anxietiesand Aspirations in French Culinary Discourse 1969 – 1996, tese co-dirigida
por Michael Hardt e Linda Orr, Durham, Departamento de Estudos Românicos, Duke
University, 2011.
ORLANDIS, J. A Short History of the Catholic Church. Dublin: Four Courts Press,
1993.
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 3, p. 3-15. 1989.
QUELLIER, F. Gula, história de um pecado capital. São Paulo: SENAC, 2010.
ROJEK, C. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008 (ou 2001?).
SZMODIS, A. The Feminization of Baking and Pastry Work: Dissecting Gender
Roles in the Foodservice Industry. Providence, Johnson & Wales University,
2018. Disponibilizado em: <https://scholarsarchive.jwu.edu/cgi/viewcontent.
cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=1031&context=student_
scholarship>. Acesso em 27//05/2019.

112
I - Memória
114
Patrimonio inmaterial, relatos orales y herencias sociales.
Reflexiones sobre su registro

María Laura Gili

Introducción

El patrimonio cultural de cada comunidad y época es un documento de valor


histórico y simbólico de gran importancia al momento de reconstruir el pasado y
la identidad histórico-cultural local y nacional. Que ocurre entonces con los bienes
culturales, materiales y simbólicos y la historia en ellos condensada? Si bien es
cierto que los objetos, los bienes culturales materiales e inmateriales, cuentan con la
capacidad de evocar la memoria de los pueblos, también lo es que han sido sacralizados
por la museología positivista o los primeros relatos históricos, en el siglo XIX. El
registro del patrimonio inmaterial permite abordar esos aspectos ignorados por las
nociones del patrimonialismo clásico. Presentamos aquí un trabajo de reflexión sobre
patrimonio inmaterial, relatos orales, herencias sociales y compartimos el ejercicio
que realizáramos en el marco del Taller La vida de los otros. Una introducción a la
Historia de Vida como herramienta de investigación del patrimonio cultural intangible,
que se dictara en la Dirección Desconcentrada de Cultura La Libertad, Trujillo, Perú,
junto a la Dra. Ana Maria Rocchietti, con la colaboración del arqueólogo Luis A.
Chaparro Frías de la DDCL, en febrero de 2019. Nos interesa observar y reflexionar
sobre las formas de la herencia social y sus instrumentos de manifestación en la cultura
viva vuelta patrimonio inmaterial en la costa norte de Perú. Los sabores de la comida
peruana en la costa norte, sus ingredientes y los hábitos familiares y de vecindad
generados en relación a su realización, sirven a esta causa y quedan de manifiesto
en la selección de relatos que nos expresaran los participantes del taller. Señalamos
nuestro especial agradecimiento a cada uno de ellos por la generosidad con la que se
prestaron a narrar sus recuerdos personales en torno a la cocina familiar.1 El capítulo

1 De igual manera manifestamos un especial agradecimiento a la institución sede


del evento, la Dirección Desconcentrada de Cultura, La Libertad, Trujillo, Perú, al
Subdirector del Área Patrimonio Cultural, Industrias Culturales e Interculturalidad,
Arqueólogo Luis A. Chaparro Frías; y al Área de Comunicación e Imagen Institucional
de la DDCLL, Sr. Álvaro de la Rosa Celestino y Sr. Roger Guerrero, por el registro de
los relatos. Finalmente, al Centro de Investigaciones Precolombinas del Instituto del
Profesorado “Joaquín V. González”, CABA, Argentina.
se ordena en cinco partes: introducción; el patrimonio inmaterial, relatos orales y
herencias sociales; la historia social en la historiografía y el registro del patrimonio
cultural; los sabores de la cocina peruana en relatos orales. Un ejercicio de registro de
patrimonio inmaterial y, finalmente, la conclusión.

Patrimonio inmaterial, relatos orales y herencias sociales

Las investigaciones sobre el pasado expresan las preocupaciones actuales.


En este sentido, Rocchietti (2002) sostiene que, la investigación en el ámbito de la
cultura, tiene relación con el carácter y dirección de la macroeconomía y tendencias
sociales de la época. En el marco de la implementación de políticas neoliberales de
las últimas décadas, se observa la tendencia creciente a la patrimonialización de la
cultura (ROCCHIETTI y GILI 2002, p. 8). La cultura como patrimonio (propiedad
y derecho de propiedad) en diferentes ámbitos: municipal, provincial, nacional,
regional, mundial, etc. Todo es objeto de patrimonializacion: restos arqueológicos,
expresiones de la cultura viva, cascos de ciudades antiguas, territorios y paisajes, etc.
Todo es válido para sumas al desarrollo económico y social (ROCCHIETTI y GILI
2002, p. 9). Y en el medio el debate ético queda planteado frente a las diferencias
culturales y el dilema entre lo universal, expresado en la legislación, y lo particular,
manifiesto en la explosión de la multiculturalidad.

Las diferentes interpretaciones sociales del pasado pueden volverse motivo de


conflicto y debate (JELIN, 2005). Fechas y aniversarios operan como activadores de
la memoria; en ellos los hechos reordenan o desordenan lo establecido, las voces de
las nuevas generaciones cuestionan y replantean los relatos orales, generando nuevas
miradas sobre lo dicho y lo omitido. Por otra parte, monumentos y recordatorios se
vuelven espacios de lucha política y pública actualmente. Otras maneras de intervenir
en la memoria son las instancias de destrucción de la materialidad de la memoria
(monumentos, por ejemplo) como intentos de destrucción de la memoria misma, de
borrar las marcas del pasado.

La memoria se asocia al recuerdo y este al pasado. Los excesos de memoria,


los abusos en el uso, la manipulación política de la memoria y el recuerdo se vinculan
a los trastornos de identidad de los pueblos (RICOEUR 2004). La función crítica
de la historia aporta fuentes, su conocimiento depende de la evidencia documental;
pretende explicar en términos científicos; su escritura genera tradiciones
historiográficas. El hecho histórico se diferencia del acontecimiento real por cuanto
añade contenido y representación.

116
Ahora bien, hacia 1960 comenzó a evidenciarse el estado de discusión sobre
los paradigmas y la crisis de la historia; a partir de allí, los cambios iniciados por la
Escuela de Annales, fundada en Francia en 1929 por Marc Bloch y Lucien Febvre,
se profundizaron junto al aporte de los historiadores marxistas en la vertiente
inglesa especialmente. Estos cambios incluyeron un mayor acercamiento disciplinar,
teórico y metodológico entre las distintas ciencias sociales (antropología, sociología,
economía, política, etc.) de lo cual resulto una nueva perspectiva historiográfica: la
historia total y la historia social como superación de la tradicional historia política y
suponiendo una mirada desde debajo de los procesos sociales (CORAZA DE LOS
SANTOS, 2001, p. 33-34). La idea de una historia total suponía también abarcar
aspectos estructurales aunque, en términos espaciales, implicó la regionalización de
los estudios y la focalización en espacios pequeños, en contraposición a la historia
nacional el siglo XIX.

Entre 1968 y 1989 la revista francesa Annales se dedicara a la historia de las


mentalidades (AGUIRRE ROJAS, 2011). A partir de allí se desarrollaron los estudios
de historia cultural volcados a una historia social de las prácticas culturales, es decir
dando cuenta de la actividad social de los sectores populares, protagonistas reales del
drama social (AGUIRRE ROJAS, 2011, p. 178): obreros, campesinos, mujeres, etc.:
Al proponer el estudio de todo fenómeno histórico desde
abajo hacia arriba (to bottom up), esta historiografía socialista
británica quiere descentrar sistemáticamente a la tradicional
historia positivista (…) siempre (…) adoradora del Estado,
politicista, concentrada en héroes (…) e ignorante de esas
clases populares… (AGUIRRE ROJAS, 2011, p. 181).

Esto permitió construir un relato histórico desde el punto de vista de los


sectores populares a partir de sus vivencias, percepciones, hechos y procesos históricos
cotidianos y destacados. Permitió, a su vez, captar la economía moral de los sectores
populares, expresados por sus portavoces más genuinos, dignos de ser registrados
y analizados en términos de una historia critica. Pero además, a partir del análisis
de la historiografía del siglo XX, el historiador Aguirre Rojas señala una serie de
cambios que han ocurrido a partir de la revolución cultural de 1968 en Occidente. Y
lo presenta a modo de lecciones metodológicas. La historia cultural, señala, propone
analizar todo producto cultural como práctica, por lo tanto:
… a partir de sus condiciones materiales específicas de
producción, de su forma de existencia, y luego de su
propia difusión y circulación reales” (AGUIRRE ROJAS,
2011, p. 175).

117
Y además remarca el sentido social de la historia cultural y su interés por
observar las representaciones asumidas, un comportamiento particular de un grupo
particular, etc. Reivindica la historia social diferente que busca explicar la relación
individuo – estructuras o agentes sociales – contextos sociales, en tanto activos y
constructivos de sus entramados sociales.

Orienta a recuperar la historia de los sectores populares, generalmente


oprimidos, en tanto auténticos protagonistas del drama social e histórico (AGUIRRE
ROJAS 2011, p. 178). Pero además señala, si son estos los sectores que construyen la
historia real, es menester que elaboren sus propios discursos sobre acciones, obras,
actividades, luchas, etc. Es la idea del dar voz al oprimido, surgida en el marco de la
historia socialista británica. Utilizaron para ello la historia oral como metodología de
registro y los talleres de historia con vecinos de barrios, obreros, movimientos sociales,
campesinos, etc. con el objetivo de reconstruir las historias locales (AGUIRRE
ROJAS, 2011, p. 180). Captar la economía moral de los sectores populares, tarea que
pueden hacer sus líderes genuinos, sumado a la mirada crítica de la historia.

Otra lección metodológica de la historia cultural posterior al ´68 será la


microhistoria de la corriente historiográfica italiana. Postulaban observar la escala
micro (regional – local) para reubicarla luego en un plano macro (nacional – global),
renovarlo con mayor complejidad y análisis, recuperando la integralidad del hecho
histórico (AGUIRRE ROJAS, 2011, p. 184). Así planteada, no se trata de la historia
local anecdótica, de cosas y espacios pequeños, descriptivas, acumulativas de hechos
y acervos locales. Se trata de hacer una descripción densa (GEERTZ, 2005) de los
problemas histórico-sociales, como sostiene Bertaux:
… una descripción en profundidad del objeto social que
tiene en cuenta su configuración interna de relaciones
sociales, su relación de poder, sus tensiones, sus procesos de
reproducción permanente y su dinámica de transformación
(BERTAUX, 2005, p. 23).

Trabajar con las formas de la herencia social, entendidas como un cúmulo


de experiencias populares, de saberes y formas de hacer, representadas en la cultura
material y en la memoria social, implica dar relevancia a la memoria histórica como
forma de representación cultural y fuente de investigación y registro. Es importante
tener en consideración también los aspectos vinculados al patrimonio inmaterial
dado que trabajamos con memoria y oralidad. Todo objeto o bien material tiene
añadido significados y sentires que responden a las identidades locales y a experiencias
comunitarias vividas en función del mismo (LÓPEZ MORALES y VIDARGAS, 2011).

118
Ello implica trabajar con relatos orales que permitan captar las expresiones del sentir
común sobre los bienes culturales, arquitectónicos, artísticos o paisajísticos. Y recuperar,
así, los hechos que forman la trama oculta de la memoria colectiva.

El pasado resumido en los bienes materiales y simbólicos del patrimonio


cultural, así también como en el paisaje cultural, es constituyente de las experiencias
cotidianas de las sociedades actuales. Las representaciones que la gente se hace sobre
el pasado le dan forma también a su presente. Sabemos que el patrimonio cultural,
compuesto por los bienes materiales y simbólicos que la sociedad produce, usa, le
otorga significado y deshecha en los diferentes momentos de su devenir histórico, es
la memoria colectiva que engloba la suma de manifestaciones de la acción humana
y que constituyen la base de diferenciación de cada sociedad, su identidad, en un
marco de integración con el ambiente social y natural.

El relato oral, es testimonio de una realidad distante en tiempo y espacio; al ser


registrada adquiere valor documental, se vuelve objeto de estudio e interpretación.
Bertaux (2005) señala la distinción entre historia de vida y relato oral. Este es una
forma de entrevista narrativa en la que el investigador solicita a quien ofrece su
testimonio de vida, narrar toda o una parte de su experiencia (BERTAUX, 2005,
p. 9). Y así, los relatos de vida, pueden permitir análisis en términos de:
… relatos de prácticas en situación, en los que prevalece
la idea de que a través de los usos se pueden comenzar
a comprender los contextos sociales en cuyo seno han
nacido y a los que contribuyen a reproducir o transformar
(BERTAUX, 2005, p. 11).

La memoria colectiva es producto de un proceso social por el cual se construye


sentido respecto del pasado y el presente de cada sociedad. Es al mismo tiempo
elemento constitutivo y esencial de la identidad de una persona y de un grupo social.
El pasado resumido en los bienes materiales y simbólicos del patrimonio cultural y
natural, así también como en el paisaje cultural, es constituyente de las experiencias
cotidianas de las sociedades actuales. Las representaciones que la gente se hace sobre
el pasado le dan forma también a su presente. Sabemos que el patrimonio cultural y
natural, compuesto por los bienes materiales y simbólicos que la sociedad produce,
usa, le otorga significado y deshecha en los diferentes momentos de su devenir
histórico, es la memoria colectiva que engloba la suma de manifestaciones de la acción
humana y que constituyen la base de diferenciación de cada sociedad, su identidad,
en un marco de integración con el ambiente social y natural. Por ello, su estudio,
conservación y recuperación excede lo puramente técnico (inventario, registro,

119
restauración de edificios, etc.), para abarcar aspectos socioculturales diversos.

En un contexto socio político de profundos cambios impuestos por políticas


neoliberales de fragmentación y desestructuración de prácticas culturales que ha
comenzado a mostrar hábitos diferenciados en la vida cotidiana. Luce Giard (1999)
lo expresa de la siguiente manera:
A la desestructuración, por causas económicas, del tejido
social se ha agregado el desmoronamiento silencioso
de las redes de pertenencia y de las fortalezas (políticas,
sindicales, etcétera). La transmisión entre generaciones
se llena de lagunas. La vida ordinaria se ha modificado
profundamente, sea en la apropiación del espacio privado
o en el uso de los espacios públicos (GIARD EN DE
CERTEAU et al 1999: XIX).

El relato oral ofrece la posibilidad de observar la estrecha relación existente


entre experiencia y narración de los hechos. El relato es el registro de la experiencia que
conjuga la elaboración con la transmisión de lo vivido. La representatividad del relato
de los sujetos se vincula a la lectura que el investigador realice del mismo en función
de una temática especifica. La entrevista y el relato obtenido es también producto
de la interacción entrevistador-entrevistado. El primero, al establecer y proponer
los temas a abordar: recuerdos familiares, trabajo, orígenes familiares, escuelas,
amigos, diversión, etc. El entrevistado, por socialización, por haber compartido la
tradición de su lugar, es depositario de la tradición oral de sus antecesores. En el
relato de cada sujeto aparecen las visiones compartidas por su grupo de pertenencia,
aquellas tradiciones y lecturas de la realidad que se acumulan y sedimentan en torno
a narrativas nuevas y viejas, formas propias de verse y narrar la propia comunidad.

La historia social en la historiografía y el registro del patrimonio cultural

En siglos de desarrollo el concepto patrimonio cultural, fue variando de una


concepción particular, con eje en la propiedad privada y el goce individual, hacia
el dominio público, base de la cultura e identidad nacional (Llull Peñalba, 2005:
180). En ese camino, también se lo vio ampliar su área de implicancia. Así paso
de identificarse con monumentos y obras de arte a bienes inmateriales (memoria
histórica, tradiciones, música, etc.). Después de la 2° Guerra Mundial se aceleró el
desarrollo de la teoría y práctica de la conservación de los bienes culturales y por
diferentes motivos: urbanismo creciente, daño ambiental, hacinamiento de población

120
y construcciones, aumento del valor de los terrenos en las áreas urbanas centrales
(RIGOL y ROJAS, 2012, p. 44). La industrialización y sus efectos en las áreas urbanas
se volvió un problema para todas las grandes ciudades en el siglo XX:
…la disyuntiva de la conservación o no de lo antiguo deja
de ser estrictamente cultural para convertirse en tema
económico e higiénico-sanitario.” (Rigol y Rojas; 2012: 44).

La autora señala los hitos en legislación cultural y conceptualizaciones sobre


lo patrimonial en el siglo XX:

• 1931. Carta de Atenas o Carta del Restauro. Planteo una serie de normas
para la intervención patrimonial, orientadas a reconocer cuando una
intervención es nueva, sin confundirse con la original, respetando las obras
de todos los tiempos; el respeto a la fisonomía urbana al construir nuevos
edificios, especialmente n áreas próximas a edificios antiguos (45).
• 1933. 2° Carta de Atenas. Planteo criterios higienistas y la contradicción
entre conservacionismo y demolicionismo (47).
• 1964. Carta de Venecia. Se expreso entorno al problema de la veracidad
histórica y los contextos: el monumento esta unido a su medio.
• 1965. Se crea en Varsovia el Consejo Internacional de Monumentos y
Sitios (ICOMOS) destinado a la conservación, protección, rehabilitación
y mejora de monumentos, conjuntos arquitectónicos y sitios.
• 1972. UNESCO el documento de la “Convención sobre la protección
del patrimonio mundial, cultural y natural”, introdujo definitivamente el
concepto de bien cultural mas allá del monumento y entorno empleados
hasta entonces.

La Carta de Venecia de 1964 abrió el camino a la diversidad en el


reconocimiento y valoración del patrimonio cultural urbano o rural, monumental o
modesto. Y permitió más tarde la aceptación internacional de las manifestaciones de
las culturas periféricas hasta la actual protección del patrimonio inmaterial (Rigol y
Rojas; 2012: 63-64).

A partir de ella, los sucesivos documentos de UNESCO e ICOMOS, pasaron de


considerar los sitios urbanos o rurales a conjuntos a centros, asentamientos, ciudades,
paisajes y territorios, abarcando tanto elementos naturales como antrópicos. De
igual manera, la museología hizo lo suyo pasando de abarcar objetos a comunidades,
ciudades, territorios (RIGOL y ROJAS, 2012, p. 65).

121
Por otra parte, se asistió a la incorporación de nuevos aspectos: el ético en
la discusión sobre la gestión patrimonial teniendo en consideración los asuntos
económicos, de reconocimiento y so que el mismo implica. Y el educativo, en la línea
sociedad-patrimonio:
… la determinación de la valoración por parte de los
diferentes grupos sociales es sumamente compleja y depende,
en gran medida, tanto del nivel escolar como de la gestión
comunitaria educativa desarrollada hasta el momento en el
sitio (RIGOL y ROJAS, 2012, p. 69).

Las autoras sostienen acera del vínculo entre ética y patrimonio que se
involucran asuntos de proyección social, el concepto de lo valiosos, su ampliación, la
tradición y la autenticidad:
… compromiso con la cultura como realidad y derecho de la
sociedad… (RIGOL y ROJAS, 2012, p. 228).

En la década de 1970 se postula la sostenibilidad entre población y patrimonio,


involucrando una perspectiva ética y educativa en su análisis. En efecto, a finales
de los ´70 surgiría la noción de democracia cultural, a partir de la cual, la cultura
se volvería ámbito para el desarrollo personal y la participación social (LLULL
PEÑALBA, 2005, p. 199). En este sentido, el patrimonio cultural será presentado
en cuanto riqueza colectiva, con primacía en el valor social del bien cultural, en su
estudio y disfrute comunitario. Desde entonces, los estudios patrimoniales se abordan
en terminos de los conflictos sociales e intereses sectoriales que ellos expresan y que
los bienes culturales condensan, tanto materiales como inmateriales, herencia social.
A su vez, se sostiene en la idea de patrimonio integral (regional, nacional), integrados
en la totalidad patrimonial que conforma la base de continuidad y coherencia del
desarrollo social comunitario, en permanente reafirmacion de la identidad cultural.
El concepto de integralidad, refiere a la combinación e igualdad de oportunidades de
participación en las decisiones que sobre el uso, interpretación y/o presentación de
ese patrimonio, tienen todos los colectivos sociales que, por un motivo u otro, estén
relacionados con el mismo. A su vez, el museo como espacio cultural y proyecto
orientado a la comunidad y sus necesidades de expresión y comunicación, se
transformó en una plataforma (ROBLES 2015). El concepto académico de museo
fue superado por la idea de museo como plataforma, con más público presente en
redes sociales que personalmente en los espacios físicos. Observándose un boom de
museos de arte. Museos locales/regionales, realizados sin demanda social, proyecto
ni contexto, por antojo/voluntad política.

122
Los estudios sobre el patrimonio cultural suponen la apropiación de aquello
que es intrínseco a nuestras existencias en cuanto humanidad; nuestra herencia
cultural. En el sentido pedagógico de Paulo Freire, a su vez, asocia el compromiso
pedagógico a la responsabilidad ética, al decidir cada vez para quien se construye
saber. Dado que se trabaja en el reconocimiento de formas de la herencia social de
las comunidades, sus experiencias humanas, tengan ellas reconocimiento público o
no lo tengan (TAMANINI, 2013, p. 8). La corresponsabilidad social supone elaborar
narrativas en dialogo y disputa con los textos de la historia oficial. Esto permitiría
pasar de la idea de una sociedad que recibe un patrimonio heredado a comunidades
que se asumen herederas de un patrimonio cultural.

Los sabores de la cocina peruana en relatos orales. Un ejercicio de registro de


patrimonio inmaterial

En el marco de la realización del Taller La vida de los otros. Una introducción a la


Historia de Vida como herramienta de investigación del patrimonio cultural intangible,
que se dictara en la Dirección Desconcentrada de Cultura La Libertad, Trujillo, Perú,
junto a la Dra. Ana Maria Rocchietti, con la colaboración del arqueólogo Luis A.
Chaparro Frías de la DDCL, en febrero de 2019, registramos relatos orales sobre los
sabores de la concina peruana. Nos interesa observar y reflexionar sobre las formas
de la herencia social y sus instrumentos de manifestación en la cultura viva vuelta
patrimonio inmaterial en la costa norte de Perú. Los sabores de la comida peruana
en la costa norte, sus ingredientes y los hábitos familiares y de vecindad generados en
relación a su realización, sirven a esta causa y quedan de manifiesto en la selección
de relatos que nos expresaran los participantes del taller. Señalamos nuestro especial
agradecimiento a cada uno de ellos por la generosidad con la que se prestaron a
narrar sus recuerdos personales en torno a la cocina familiar.2

Entendemos la historia oral como herramienta de registro del patrimonio


inmaterial supone recordar su marco historiográfico en vinculación a los conceptos
de la historia total y la historia social, como superación de la tradicional historia

2 De igual manera manifestamos un especial agradecimiento a la institución sede del


evento, la Dirección Desconcentrada de Cultura, La Libertad, Trujillo, Perú, al Subdirector
del Área Patrimonio Cultural, Industrias Culturales e Interculturalidad, Arqueólogo Luis
A. Chaparro Frías; y al Área de Comunicación e Imagen Institucional de la DDCLL, Sr.
Álvaro de la Rosa Celestino y Sr. Roger Guerrero, por el registro de los relatos. Finalmente,
al Centro de Investigaciones Precolombinas del Instituto del Profesorado “Joaquín V.
González”, CABA, Argentina.

123
política y suponiendo una mirada desde debajo de los procesos sociales. Y que el
registro de la memoria oral supone indagar en la memoria colectiva.

Entre los principales ejes que los asistentes, trabajadores del sistema educativo
y muesos de la de la Región de La Libertad, Perú, plantearon en las jornadas de trabajo
se pudieron observar los siguientes:

• Autenticidad
• Veracidad
• Modificaciones de prácticas
• Confianza en el vínculo entrevistador-entrevistado
• Vinculo pasado-presente
• Malestar del entrevistado por tergiversación de lo relatado
• Critica histórica que ponga en duda el relato en búsqueda de la verdad
• Relatos fundacionales transmitidos de generación en generación, dando
cuenta de experiencias ancestrales
• Modificaciones y continuidades
• Memorias colectivas
• Memorias sobre vínculos familiares
• Saberes culinarios transmitidos de madres a hijas en ambientes de cocina
y familiaridad
• Secretos de familia en formas de cocción e ingredientes especiales
(sabores propios, familiares y regionales) (cebiche mixto)
• Sabores étnicos de afrodescendientes. Sabores-etnia-clase-
discriminación-pobreza-trabajo rural (chafainita, shambar)

Los mismos resultaron de la actividad planteada. Se desarrolló una jornada


de trabajo en taller con exposición conceptual-teórica, registro fotográfico en campo
de sabores trujillanos (gastronomía tradicional), presentación oral y argumentación
del registro y diseño de la presentación museal de cada relato. Asistieron treinta
(30) inscriptos procedentes de la ciudad de Trujillo y de áreas cercanas de la costa
norte peruana. Aquí transcribimos una selección de las narraciones que se pudieron
escuchar en la jornada de trabajo sobre sabores y saberes de la cocina peruana:

124
• Ajiaco de Cui. Testimonio de Gloria Jara sobre su preparación:
“El plato que yo he escogido es el Cui con Ajiaco o Ajiaco de cui. Ajiaco de
cui también le dicen. Es un plato típico de la sierra liberteña. Mi madre era natural
de un caserio cercano a Otuzco que se llama Casmiche. Pero cuando se caso se fue
a Chimbote y con ello llevo sus costumbres y herecnia gastronómica. Recuerdo… ya
mucho no recuerdo porque ella fallecio, eh… criaba sus cuies, sus animales, llevaba
esa costumbre y… y preparaba este cui, asi como sus familiares, para épocas festivas,
cumpleaños, bautizos, etc. Particularmente como anécdota yo les cuento, que este plato
me acompaño a mi y a mi familia en épocas de bonanza como también en épocas en
que no había dinero. Cuando no había dinero, mi madre… la veíamos que… nosotros
teníamos la cocina a gas, pero la veíamos a ella que se iba al corral y preparaba su
fogón. Y nosotros ya sabíamos: hoy comemos cui (rie). Ponía su olla de agua a hervir
y nos decía: vengan niños, ayúdennos a coger el cui. Se cogían tres cuies, éramos dos
hermanas, se cogía dos cuies, los mataba y nos daba para pelarlos. Y ahí nos contaba
sus anécdotas de como ella los había comido en su tierra eh… bueno y asi, entre risas
y anécdotas eh… lo terminábamos de pelar y nos enseñaba a prepararlos. En realidad
no era muy, este… muy difícil.

El secreto era, este… para mi, el secreto es estar alegre para que no se te pase de
sal ni se queme el cui. Después… pelarlos y macerarlos con un poco de ajo, de pimienta
y la sal al gusto, lo… ponía la sartén y lo freía. Pero a la par también estaba cocinando
sus papas, luego los pelaban, pelaban la papa y preparaba un aderezo solamente con aji
panca y aji amarillo. No necesitaba de mucho condimento. Particularmente el secreto
para tener un buen ajiaco de cui es este… es elegir un buen cui, no muy tierno ni
muy viejo. Porque si es muy tierno, se va a deshacer y si es muy viejo, va a estar duro
y entonces sería un poco difícil, pero no es imposible también de preparar si ya era
viejo. Porque le daba un hervor para que cocine un poco, y después lo freia. Como les
dije, era para épocas festivas, por ejemplo cuando había un bautizo eh… la compadres
preparaban su Ajiaco de cui, pero de manera particular freían dos cuies enteros y los
escuchaba cuchicheando a las tías con mi mama: y como se ha portado el compadre? Le
regalo algo? (rie) si el compadre le regalo algo, entonces se merecía darle un cui entero,
su fuente con sus papas, se lo llevaba… bueno esa es mi historia de vida.”

• Chafainita. Testimonio de Renato Espejo sobre su preparación:


“No es un plato frecuente en Trujillo. Me tomo un tiempo encontrar un
comedor que lo prepare. Es un plato de Chimbote. Este es el plato que comen los

125
chimbotanos, que más los identifican. Y resume la historia de mi familia. Lo que
más recuerdo de mi casa es este plato. Se hacía en momentos de alegría. A los 11, 12
años descubrí que era afrodescendiente. Mi abuelo, por parte de madre, era negro.
Sobre 1915 llego a la hacienda Tambo real, en Chimbote. Allí conoció a mi abuela y
formo una familia. Como costumbre heredo la elaboración del plato del bisabuelo.
Después, con el paso del tiempo, lo tomo mi madre. Ahora, nosotros, somos cinco
hermanos, todos lo preparamos: bofe, res, ajíes amarillo, colorado (básicos de la
comida peruana), yerba buena (que le incrementa el sabor). El plato resume una
parte de la historia de la familia con la que se siente identificado. La chafainita es una
de los platos más difíciles de encontrar en la ciudad. Es afrodescendiente.”

• Sopa Teóloga. Testimonio de Carmen de la Rosa Celestino sobre su preparación,


reconocido como patrimonio cultural del pueblo de Moche:

“El plato se hace para Semana Santa. Es el plato típico de Moche, reconocido
como patrimonio cultural del pueblo. Sus ingredientes son específicos, si cambian
se modifica la tonalidad y el sabor del plato: cabrito, pavo, cebolla de cola de rabo,
huevos, garbanzos, perejil, tomatillo, ají de sopa, leche a base de arroz, de color
naranja por el azafrán. El azafrán se siembra, cosecha y guarda en el pueblo para
fechas festivas. Si no hay, se reemplaza con el achiote, en algunos casos, o con sibarita
(aunque le cambia el sabor), sopa de pan (de color verde) es la base del plato, con el
pan del día. El tipo de pan utilizado, lo modifica.

El cabrito también se prepara aparte, con cebolla de rabo, aji, escabeche.

Es un plato especial por cómo se prepara se decora. Al finalizar se decora con


la tradicional rosca de manteca.

Se enseña de generación en generación, yo lo aprendí de mi madre, mi madre


de mi abuela ya sí. Es el mayor legado que tengo de mis ancestros.”

• Cebiche Mixto. Testimonio de Mayieli Marleni Pillcoquispe sobre su


preparación:

“Tengan ustedes muy buenas tardes. Mi nombre es Marleni Pillcoquispe y


he elegido este plato… que es este… cebiche mixto, porque lo he probado en tres
lugares diferentes. En el último lugar donde lo he probado es aquí en Trujillo. El

126
primero lo probé en mi tierra natal que Cusco. Después lo probé por trabajo en el
altiplano, en Puno. Y… ya pues también en Trujillo. Este… los sabores varían sin
embargo son deliciosos en los tres lugares, la preparación es sencilla, es como…
se parece en algo a la preparación del cebiche común, es solo que, como esta
acompañado de mariscos, vamos a tener que sancocharlo aparte, a los calamares,
los langostinos y también este… debemos dejar bien limpio las conchas de abanico.
Dejar limpias, libres de arena… todo. Y después, el pescado ya limpio y cortado en
cuadritos, vamos a mezclar con las demás… con los demás ingredientes, siempre
revisando el sabor… siempre revisando si está bien de sal, vamos a ir echando los
demás ingredientes que son el ají, el ajo, este… la cebolla como vemos, y esto se va
a ir mezclando. Después, eh… vamos a probar también el sazón, que tal esta, y ya
por ultimo vamos a echar el… el limón. Les decía, la historia de este cebiche mixto
es porque.. en Cusco, tenía una amiga que trabajaba en el Frigorífico, así se llama el
lugar, donde puedes encontrar un buen cebiche. Este… otra zona donde uno podía
encontrar un cebiche, por lo menos en aquella época de estudiante… era frente a la
Universidad Nacional del… la San Antonio, en Cusco… hay un sitio que también
me trae recuerdos de una ruta de aca que es El Cortijo, entonces, eh… ahí, frente
a la san Antonio, había una cebicheria para estudiantes, que se llamaba El Cortijo,
se sigue llamando me parece, entonces, a fin de semestre… obligado, teníamos
que ir al Cortijo y degustar un buen Cebiche Mixto. Y en Puno, me recuerda
bastante porque, este…., tuve una amiga que trabajaba en una cebicheria y a veces
para presentar iba con papas, no con ensalada, pero era delicioso igual. Y aquí en
Trujillo, ya! Fue la explosión… risas… porque? Porque ehhh, bueno.. en el sur se
usaba muy poco el rocoto, bueno al menos yo usaba muy poco el rocoto. Aquí en
el norte, aparte de picar, te ponen rocotitos alrededor, entonces ya… es por eso que
he elegido el cebiche mixto que es muy, muy agradable. Gracias.”

• Shambar. Testimonio de Julio Reyes Ponce de León sobre su preparación:.

“He escogido el plato Shambar, es un plato típico acá en Trujillo, que se sirve
conocidamente los días lunes. Lo he escogido porque este plato formo una tradición
en mi casa cuando vivíamos papa, mama y mis hermanos. Mi padre me contaba que
su abuelo, su papa de su papa, tenía una hacienda por Santiago de Chuco y el vivo
por esa zona y era la costumbre de todos los días lunes: servir este espesado que es
una sopa de trigo con menestras, jamón,… bueno la verdad yo no sé cómo se prepara
porque nunca lo he preparado, nunca lo he aprendido y.. pero si, era una costumbre,
era una tradición en mi casa cuando nosotros éramos pequeños. Todos los días

127
lunes, no era en el almuerzo, era en el desayuno… era el plato de Shambar. Y mi
papa era el único dia de la semana donde nos hacía participar a toda la familia en la
elaboración de este plato. Cada uno teníamos una parte específica en la elaboración.
En mi caso, yo me encargaba de limpiar el trigo, de ponerlo a remojar y como era del
dia domingo para el lunes, los días lunes nos levantábamos temprano a preparar el
Shambar, bueno.. mi padre lo preparaba y nosotros cada uno aportaba su parte, era
el desayuno este plato espesado… no. Mi padre falleció hace dieciocho año y ahí se
rompió la tradición. Porque falleció y mi mama cambio el Shambar por la lentejita
serrana, que es hasta ahora lo que generalmente consumimos los días lunes. y en la
actualidad cada ve que tengo la oportunidad de consumir el Shambar me acuerdo de
mi padre, como nos hacía participar a todos en la elaboración de este plato y como
nos contaba parte de su historia, como lo comían en la sierra, donde lo conocían
con otro nombre allá, y en la actualidad pues también se consume en Chiclayo, en
Cajamarca… pero es tradición aquí en Trujillo. Gracias.”

Conclusión

En las últimas décadas del siglo XX, junto a la mayor complejización del
conocimiento, las ciencias sociales se han caracterizado por presentar numerosos
interrogantes a sus problemas de investigación. Los diferentes campos disciplinarios
debieron volver a reflexionar sus temas centrales procurando responder a nuevos
cuestionamientos. El patrimonio cultural es uno de éstos temas que se presenta en
la actualidad en el cruce de distintas disciplinas, utilizando en su estudio métodos,
técnicas y conceptos antropológicos, sociológicos, históricos, éticos y documentando
antiguos paisajes culturales y tecnológicos, tradiciones genuinas e inventadas,
objetos públicos en la sociedad del capitalismo tardio. También se corresponde a la
actual lectura del tema, asumir la perspectiva ética que permita elucidar el problema
y así aportar criterios de reflexión sobre la relación de conflicto planteada entre
los diferentes sectores sociales que convergen en el estudio de los bienes culturales
materiales y simbólicos en contexto latinoamericano. El empleo de los relatos orales
en el registro de la memoria y en la identificación de las distintas formas de identidad
que constituyen el patrimonio cultural debiera estar atento a estas problemáticas.

La experiencia de registro de relatos orales sobre sabores de la comida


peruana en el taller que realizáramos, sirvió de ejemplo sobre las posibilidades y
potencialidades de la cultura inmaterial para incrementar el registro y conocimiento
de la cultura local. En los relatos sobre memorias de vínculos familiares; sobre saberes

128
culinarios transmitidos de madres a hijas en ambientes de cocina y familiaridad; o
bien acerca de secretos de familia en formas de cocción e ingredientes especiales
(familiares y regionales) se expresan contextos sociales que dieron origen o
reprodujeron formas y prácticas específicas, más allá del relato sobre la experiencia
individual que le hace de soporte.

El área de Patrimonio Cultural, Industrias Culturales e Interculturalidad


de la DDC La Libertad, podría implementar como herramienta de trabajo, talleres
que favorezcan el registro de manifestaciones de la cultura inmaterial de la región
de La Libertad con producción de documentos que contribuyan a incrementar el
inventario y acervo de la cultura regional. Y sirvan, además, de insumos museales.

Bibliografía

AGUIRRE R. C. La historiografía en el siglo XX. Historia e historiadores entre


1848 y ¿2025?. Ediciones ICAIC. Cuba, 2011.
BADENES, D. Actores sociales y apropiación del patrimonio en una escala local. La
universidad platense en la pugna por una memoria de lo urbano. En La dimensión
social del patrimonio. Buenos Aires: Cicop, 2006. p. 43-52.
BERTAUX, D. Los relatos de vida. Perspectiva etnosociologica. Barcelona: Bellaterra,
2005.
CORAZ de los S. E. La historia cultural aplicada en el cono sur americano: fiesta y
religiosidad popular. IN: Martin Acosta, E. y otros (comp.) Metodologías y nuevas
líneas de investigación de la historia de América. Burgos: Ed. Universidad de
Burgos, 2001, p. 33-48.
GEERTZ, C. La interpretación de las culturas. Barcelona: Gedisa, 2005.
GIARD, L. Momentos y Lugares. In: De Certeau, M.; Giard, L.; Mayol, P. La invención
de lo cotidiano. 2 Habitar, cocinar. Ed. Universidad Iberoamericana. Departamento
de Historia Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente. Mexico, 1999.
http://www.conabip.gov.ar/Contenidos/Documentos/04Textodeprofundizacion.pdf
JELIN, E. Exclusión, memoria y luchas políticas. En Mato, D. (Comp.) Cultura,
política y sociedad. Perspectivas latinoamericanas. Editorial CLACSO. Buenos
Aires: 2005, p. 219-240.

129
LLULL P. J. 2005. Evolución del concepto y de la significación social de patrimonio
cultural. Revista Arte, Individuo y Sociedad. v. 17, p. 175-204, 2005.
LOPES MORALES, F.; VIDARGAS. F. Itinerarios Culturales: Planes de Manejo y
Turismo Sustentable. Instituto Nacional de Antropología e Historia. Mexico, 2011.
MARTINS FARIANS, S. Modernidad e patrimonio cultural, ruptura e preservacao.
IN: Soares dos Reis, A.; GONÇALVES Figueiredo. Patrimônio Imaterial em
perspectiva. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
RICOEUR, P. La memoria, la historia, el olvido. Fondo de Cultura Económica,
Buenos Aires, 2004.
ROCCHIETTI, A. M. La cuestión social desde el enfoque de las perspectivas.
Memoria Latinoamericana, 1997. Año 1, Nº 1: 15-25.
RIGOL, I.; ROJAS, Á. Conservación patrimonial: teoría y crítica. Editorial UH. La
Habana, 2012.
ROCCHIETTI, A. M.; GILI, M. L. El Nuevo Lugar de la Cultura. El patrimonio
cultural desde la perspectiva antropológica. CD-R. Facultad de Ciencias Humanas.
Universidad Nacional de Río Cuarto, 2002.
SCHOLZ de A. K. M. A Lapa e o Tropeirismo. Instituto do Patrimonio Historico e
Artistico Nacional. Curitiba, editora Total, 2006..
TAMANINI, E. Seminario Patrimonio Cultural y comunidad. Universidad
Nacional de Villa Maria. Comunicación personal. Inédito, 2013.

130
O Vale dos Butiazais de Giruá:
bem cultural ambiental do Rio Grande do Sul1

Adriana Aparecida Felini

Cleusa Maria Gomes Graebin

Sangue guarani
Emprestou a cor vermelha ao teu chão
Terra dos dourados cachos de butiá
Ao sol de janeiro perfumando o ar
(MAICÁ, 2011)2

Na cidade de Giruá, no estado do Rio Grande do Sul, encontra-se


remanescente de butiazal que, segundo moradores, proprietário e pesquisadores,
possui butiazeiros com 250 a 300 anos. No ano de 2016, possuía em torno de 300
butiazeiros e em outros tempos, este espaço contava com mais de mil pés, conforme
COPETTI, TOLOMINI e SILVA (2008). O município (mapa na Figura 1) encontra-
se situado historicamente, em espaço ocupado por antigas tradições3 indígenas —
como a Humaitá4 —, relacionando-se ao conjunto de reduções jesuíticas criadas a
partir de 1626 pela Companhia de Jesus, com contingentes de populações Guarani
e com forte presença em sua colonização no final do século XIX, de contingentes de
imigrantes europeus.

1 Festa do Butiá em Giruá: memórias e trajetória (2003-2016).


2 MAICÁ, Cecília. In: Artesanato Giruá. Disponpível em http://artesanatogirua.blogspot.
com/2011/07/artesanato-giruaense-da-terra-dos.html Acesso em maio, 3, 2016.
3 Registros arqueológicos de diversas populações que formam conjuntos distintos entre si.
4 Populações de caçadores e coletores com vestígios de indústria lítica, cujos sítios de
assentamentos mais antigos datam de 6.000 a.C. Suas origens estariam vinculadas ao
Complexo Alto-paranaense da região de Missiones, Argentina. Ocuparam o espaço
brasileiro, a partir do vale do alto rio Uruguai, alcançando o Rio Grande do Sul, entrando
em contato com populações Guarani que ocuparam o alto rio Uruguai e o vale do rio
Jacuí a partir da Era Cristã (DIAS; HOELTZ, 2016).
Figura 1 – Mapa do Rio Grande do Sul com localização de Giruá.

Fonte: Ilustração de Mauro Vila Real (2016).

O Vale dos Butiazais (Figura 2), como é denominado:


[...] compreende uma área de 5 hectares com cerca de
150 butiazeiros  nativos da espécie Yatay. Localiza-se na
propriedade da família Fernandes a 6 km da cidade de Giruá,
RS 15, antiga estrada de chão que dava acesso a Santo Ângelo,
próximo às margens do rio que deu origem ao primeiro nome
de Giruá, Passo da Pedra (INVENTÁRIO, 2015).

Figura 2 - Vale dos Butiazais em Giruá.

Fonte: Acervo de Adriana Felini (2016).

132
Há mais de um século, pertence à família Fernandes, herança que perpassa
duas gerações. De acordo com Marizete Fernandes, uma das herdeiras, o Vale foi
comprado por seu avô José e quando de seu falecimento, foi herdado por sua avó
Domingas e passado para seus filhos. “Na verdade, é uma grande herança, uma riqueza
bem grande, pelo valor cultural, pelo valor natural” (MARIZETE, Depoimento oral,
2016). A família Fernandes usufrui economicamente da comercialização da fruta e
atribui valor científico ao Vale, permitindo o trabalho de pesquisadores, escolares e
outros e, também, compreendendo a sua relevância cultural e ambiental.
Rosa Lia Barbieri, pesquisadora da EMBRAPA, no documentário “Amamos
Butiá” (2015), salienta a ameaça sobre os butiazais, em virtude da expansão de áreas
agrícolas e urbanas, o que implica no fato dessas paisagens tornarem-se raras no Rio
Grande do Sul. O butiá é recurso cultural e econômico, devido ser matéria-prima
para artesãos e culinaristas..
Buscando a preservação do Vale dos Butiazais de Giruá, seu proprietário,
Walzumiro Fernandes, faz seu manejo, providenciando, inclusive, a sua certificação
como Floresta Plantada com Espécie Nativa (Certificado 001/2010), pelo
Departamento de Florestas e Áreas protegidas, órgão da Secretaria do Meio Ambiente
do Estado do RS. Em entrevista declarou:
Eu resolvi plantar porque estava no fim. Os butiazeiros
estão ficando muito velhos e daí eu resolvi então a plantar.
E daí tinha que legalizar e tudo. Fui para Porto Alegre e
está legalizado. O pouquinho que eu plantei — quarenta
pés, os primero quarenta pés — estão todos legalizadinho
e depois estou plantando, cada ano planto um pouco. Já
tem mais de uns cento e poucos plantados (VALZULMIRO
FERNANDES, 2015).

Valzulmiro planta mudas de butiá para preservar o Vale, porém, nem todas as
mudas são nativas, da espécie yatai, característica do espaço giruaense e de algumas
localidades uruguaias, de acordo com Rivas e Barbieri (2014). O Vale já teve mais de
1000 pés de butiá; contando em 2016 com menos de 300. No município de Giruá,
a Lei nº 089/2000 proíbe o corte de butiazeiros, tendo como pena para o infrator, o
plantio de 15 novas mudas.
Moradores de Giruá relatam que o Vale dos Butiazais (Fig. 3) tem sido
preservado porque os butiazeiros estão relacionados a antigas tradições indígenas
como a Guarani, como também, por as terras que ocupam não se adequarem à
agricultura da soja e trigo, por exemplo. Valzumiro, ainda criança,
[...] cortava folha do butiá para fazer colchão. Depois
terminou a fábrica de fazer colchão de crina e aí deixaram

133
só para comer fruta e vender na beira da estrada. E foi
conservado porque a maioria dos butiazais foi arrancada pra
plantação de linhaça e trigo, depois virou em soja também [...]
foi arrendado pra uns linhaceiros que vieram outro lugar e foi
arrendado e foi arrancado todos butiazeiros. Só sobrou aquele
reduto ali porque não era próprio pra terra, não era terra de
campo alto, assim né, sobrou aquele porque era mais baixo
e ficou, ficou até hoje (VALZULMIRO FERNANDES, 2015).

Figura 3 - Vale dos Butiazais em Giruá.

Fonte: Acervo de Marizete Fernandes (2012).

A partir de 2016, o Vale passou a fazer parte da Rota Internacional dos Butiazais5
que integra três países, a saber: Brasil, Uruguai (principalmente no Departamento
de Rocha) e Argentina, onde desde 1960 existe o Parque Nacional El Palmar, em
Entre Rios (ver mapa na Figura 4). Pesquisadores da Embrapa Clima Temperado, de
Pelotas, trabalham no sentido da conservação e reconstrução da memória cultural do
butiá, a partir de seminários que versam sobre o tema em diversos municípios do Rio
Grande do Sul, Brasil e também no exterior (EMBRAPA, 2016).

5 Rota dos Butiazais: rota turística criada em novembro de 2015, envolvendo a valorização
dos butiazais do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina. Tem como objetivo a preservação
da biodiversidade associada aos butiazais e butiás. A Rota compreende Pescaria Brava,
em Santa Catarina; Torres, Vacaria e Pinhal da Serra, na divisa dos Estados de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul; Passo Fundo, Giruá, Quaraí, Barra do Ribeiro, Barão do
Triunfo, Tapes, Pelotas, Santa Vitória do Palmar, no Rio Grande do Sul; Castillos, Rocha,
San Luís, no Uruguai; e Entre Ríos, na Argentina.

134
Figura 4 – Mapa com a Rota dos Butiazais (2016).

Fonte: Disponível em https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/14097801/rota-dos-


butiazais-faz-seminario-tecnico--para-valorizacao-cultural-e-ambiental . Acesso em: 06 mar. 2017.

O Vale dos Butiazais de Giruá é um exemplo de espaço simultâneo de natureza


e cultura, uma paisagem cultural que demanda esforços e desafios de preservação
patrimonial. Assim, este estudo traz reflexões que pretendem colaborar para indicá-
lo como paisagem cultural.

Sobre butiás e butiazeiros

O butiá (ver ficha técnica na Figura 6) é um tipo de palmeira (família Arecaceae)


de ocorrência na América do Sul. Há em torno de vinte espécies distribuídas entre
Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai (BARBIERI; RIVAS, 2014). A espécie butia
odorata, nativa do Bioma Pampa, intercorre apenas no Rio Grande do Sul (Brasil)
e leste do Uruguai. Os agrupamentos dessas palmeiras na natureza são conhecidos
como butiazais ou palmares, com variação de poucas dezenas até centenas de plantas
por hectare (EMBRAPA, 2016). Há rica flora e fauna associada aos butiazais que
também abrigam diversidade de espécies herbáceas. Segundo Barbieri e Rivas, o “[...]
ecossistema dos butiazais é reconhecido por seu valor paisagístico, de biodiversidade
e histórico-cultural” (2014, p. 14).

135
Esta palmera actóctona llega a vivir más de 200 años. Tiene
flores amarilla sen conjuntos densos y frutos anaranjados
y dulces. Junto a la yatay crecen arbustos como la chilca
y hierbas de floración notable como diversas margaritas
y verbenas (PANFLETO DO PARQUE NACIONAL EL
PALMAR, 2015).

O butiazeiro é decorativo devido ao seu porte majestoso e apresenta resistência


a baixas temperaturas. O estipe serve como uma espécie de hospedeiro para outras
plantas ornamentais, como bromélias, orquídeas e samambaias (EMBRAPA, 2016).
Além da questão ornamental, os butieiros servem como fonte de alimentos para
diversos representantes da fauna nativa: mão-pelada, graxaim, gambá, ouriço,
caturritas, tucanuçu, ema, veado, algumas espécies de lagarto e também há os que
atuam dispersando as sementes de butiá (BARBIERI; RIVAS, 2014).
Dessa forma: “A preservação dos butiazais implica não apenas conservar os
butiazeiros, mas também a fauna e a flora que vive associada a esse ecossistema”
(RIVAS; BARBIERI, 2014, p. 15). A produção dos frutos de butiá inicia-se de 6 a 15
anos após o plantio e germinação. Todos os anos, as plantas continuam a produzir; as
produções variam de acordo com o número de cachos, condições climáticas e idade
da planta. Cabe salientar que até mesmo plantas centenárias produzem frutos e estes
são importantes fontes de vitaminas:
A polpa dos frutos é rica em vitamina C e carotenoides, que
são substâncias com atividades antioxidantes, ou seja, atuam
na manutenção da saúde. Além disso, também apresentam
altas concentrações de potássio, o qual é importante para
regular o funcionamento do organismo (RIVAS; BARBIERI,
2014, p. 21).

Assim, os palmares, além da importância econômica em função de


gastronomia e artesanato, são fontes de proteínas e vitaminas para aqueles que
os consomem; além de servirem como de alimento para várias espécies. Essas ao
dispersarem os coquinhos, ampliam as áreas de butiazais e renovam as populações
(EMBRAPA, 2016).
Dessa forma: “A preservação dos butiazais implica não apenas conservar os
butiazeiros, mas também a fauna e a flora que vive associada a esse ecossistema”
(BARBIERI; RIVAS, 2014, p. 15).

136
Figura 5 - Quadro “Ficha técnica do butiá”
Família Arecaceae
Nome Científico butia odorata
Nome Comum Butiá
Porte arbóreo, crescimento lento e contínuo, podendo
Características da planta
atingir até 12 metros de altura e idade superior a 200 anos.
Áreas de ocorrência Pampa brasileiro e uruguaio
Consumo in natura, geleias, sucos, licores, sorvetes, bolos,
Uso dos frutos
doces, bombons, molhos, artesanato.
Uso das folhas Artesanato
Uso da Planta Ornamental
Período de floração Setembro a janeiro
Cores das flores Amarelas, rosadas ou púrpuras
Período de frutificação Fevereiro a abril
Diferentes tonalidades de amarelo, alaranjado, avermelhado,
Cores dos frutos maduros
púrpura ou esverdeado.
Número de cachos por planta Pode produzir até 7 cachos por planta.
Número de frutos por cacho Pode produzir até 1.300 frutos por cacho.
Peso do cacho Pode atingir15kg.
Peso do fruto inteiro De 7g a14g.
Porcentagem de polpa por fruto Cerca de 70%
Sementes por fruto De 1 a 3 (as sementes ficam dentro do coquinho).
Fonte: Rosa Lia Barbieri; Mercedes Rivas (2014)

Segundo Barbieri e Rivas (2014), os índios Guarani que habitavam o Pampa


faziam uso de butiás para alimentação (comiam a amêndoa que ficava dentro do
coquinho). Eles produziam, inclusive, instrumento de pedra polida para quebrá-los,
conhecido no Brasil como “quebra-coquinhos” e como “rompecocos” no Uruguai.
As suas cabanas eram cobertas com as folhas da planta e estas serviam também
para fazer cestas, armadilhas para caça e pesca, chapéus e redes. Os currais de
butiazeiros, datados do período colonial, criados para conter o gado, que existiam
no Brasil e Uruguai, são outro exemplo de uso dos butiazais. Na primeira metade do
século XX, as folhas eram usadas para produzir uma crina vegetal, utilizada como
enchimento de colchões e móveis estofados. Dessa fibra também eram feitos solados
de alpargatas, tapetes e diversos utensílios domésticos. A produção de crina vegetal
foi uma atividade muito lucrativa até cerca de 1960, quando deixou de ser importante
devido à substituição por fibras sintéticas.
Conforme relatado por Valzulmiro Fernandes, proprietário do Vale dos

137
Butiazais de Giruá, este foi grande produtor de crina vegetal e a distribuía em toda a
região missioneira, nas décadas de 1960 e 1970. Inclusive, dispunha de uma máquina
artesanal que cortava e afinava as folhas.
As comunidades que vivem em lugares de ocorrência dessas palmeiras,
historicamente utilizam os frutos para diferentes fins. Segundo Noronha, Barbieri e
Sosinski Junior (2015) utiliza-se o butiá na alimentação, com frutos in natura, pratos
e bebidas típicas – sagu de butiá e os licores -, no artesanato – as folhas e caroços.
Atualmente, a utilização do fruto foi potencializada em diversas frentes de consumo:
Os frutos são consumidos frescos ou usados para produzir
vários tipos de alimentos (geléias, sorvetes, bombons e
mousses, bebidas: sucos, licores e cachaça com butiá) e
artesanatos. As amêndoas também são consumidas e usadas
em diversos produtos alimentícios, principalmente no
Uruguai, como biscoitos, tortas, bombons e o tradicional
“café de coco” (RIVAS; BARBIERI 2014, p. 26).

Além da gastronomia e artesanato, o butiá também é utilizado nas expressões


culturais, devido ao vínculo afetivo desenvolvido pelos habitantes do Bioma Pampa
com os palmares; essa afetividade é expressa na literatura e em símbolos municipais
e oficiais. Segundo Rivas e Barbieri (2014), a cidade de Rocha, no Uruguai, tem em
seu hino e no escudo essas palmeiras como tema. Também em Castillos, Uruguai,
festeja-se o butiá com o festival “Festival de Canto y Butiá”.
O escritor sul-rio-grandense, João Simões de Lopes Neto, no conto
‘Contrabandista’, da obra Contos Gauchescos, cita um produto do butiá, muito
apreciado: “Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos,
autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos
de licor de butiá” (LOPES NETO, 1976, s/p). No conto ‘Deve um Queijo’, o autor
traz o seguinte:
Duma feita no Passo do Centurião, numa venda grande que
ali havia, estava uma ponta de andantes, tropeiros, gauchada
teatina, peonada, e tal, quando descia um cerro alto e depois
entrava na estrada, ladeada de butiazeiros, que se estendem
para os dois lados, sombreando o verde macio dos pastos,
quando troteava de escoteiro, o velho Lessa (Idem).

Ao pesquisar sobre o Vale dos Butiazais de Giruá, percebeu-se que é necessário,


para além das medidas e ações traçadas de manejo sustentável e proteção tomada por seu
proprietário, uma proposta de salvaguarda para esse bem cultural ambiental. Isto não
implica em tombamento, mas sim, em pacto de gestão entre proprietário, moradores do
entorno e poderes públicos no sentido de sua preservação e manejo sustentável.

138
Ao refletir sobre essas informações, partimos da concepção de ser o Vale, um
espaço de memória, isto é, vivido e percebido como suporte de memórias individuais
e de grupos; um espaço de recordação, segundo Assmann (2011), em se tratando
de afetos e envolvimentos emocionais que ampliam a sua conservação. Nora (1993)
afirma que a memória se enraíza no concreto e cita, como exemplos desse “concreto”,
o espaço, o objeto, a imagem etc. É possível afirmar, portanto que as lembranças
de Marizete e de Valzumiro Fernandes, por exemplo, encontram-se localizadas no
tempo e no espaço do butiazal.
Também, o aproximamos do que o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional-IPHAN conceitua como paisagem cultural, ou seja, “[...] porção
peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem
com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou
atribuíram valores” (IPHAN, Lei 127 de 30/04/09, Artigo 1º).
Nesse sentido, iniciamos investigação para elaborar uma espécie de Ficha
Técnica para compor descrição de butiazais, com informações que venham a justificar
a indicação não só do Vale dos Butiazais, mas de outros butiazais do Rio Grande do
Sul, para serem chancelados como paisagem cultural.
De acordo com o IPHAN:
Quando julgar do seu interesse, qualquer cidadão brasileiro
pode solicitar ao Iphan o reconhecimento de determinada
porção do território nacional como Paisagem Cultural
Brasileira. Feito o pedido, será aberto um processo
administrativo, que será analisado e emitido um parecer.
Aceita a proposta, ela será julgada pelo Conselho Consultivo
do Patrimônio Cultural, para que seja tomada a decisão final
(PAISAGEM, 2009, p. 31).
A seguir, apresentamos um breve levantamento sobre estudos a respeito de
paisagem cultural.

Paisagem cultural – forma diferenciada do patrimônio cultural

Existem, segundo Ribeiro (2007), diversas interpretações para a categoria


paisagem cultural, mas há consenso de que esta é produto da intervenção do homem,
em diferentes escalas, no espaço que habita. Podem ser feitas diferentes leituras
e olhares sobre a paisagem, mas o que se discute é a atribuição de valor6 e o seu

6 De acordo com o IPHAN, trata-se de “significação atribuída, pelos diversos grupos


formadores da sociedade brasileira, aos bens culturais tomados individualmente
ou em conjunto, e que são representativos de suas práticas sociais, memórias e

139
reconhecimento em termos de preservação do patrimônio cultural.
Desde o final do século XIX e ao longo do século XX, disciplinas como a
geografia, têm dado atenção para a discussão sobre a ideia de paisagem cultural
relacionando bens culturais e naturais, nas suas dimensões materiais e imateriais.
No Brasil, desde a criação do IPHAN em 1937, já havia a preocupação com os bens
arqueológicos, etnográficos e paisagísticos, embora que ainda não se usasse a ideia de
paisagem cultural. Segundo a Constituição de 1988, no seu Artigo 216, “constituem
o patrimônio cultural brasileiro, [...] os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Ribeiro (2007) informa que a compreensão dessa categoria do patrimônio
tem avançado no país, com reflexões teóricas e metodológicas que dão suporte
aos processos de inventário, identificação, diagnóstico e preservação. Os estudos
realizados fora do Brasil também trazem aportes relevantes para possibilidades de
ações e estratégias que se adequem às nossas realidades e legislação.
Em 1992, pela Convenção da UNESCO, dá-se a definição da
categoria paisagem cultural e critérios para sua inclusão na Lista de
Patrimônio Mundial. No Brasil, a categoria foi incorporada pela Portaria
no. 127 de 2009, do IPHAN, instituindo, também um instrumento
jurídico para sua proteção — a chancela, que significa “porção peculiar
do território nacional, representativa do processo de interação do homem
com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas
ou atribuíram valores” (IPHAN, 2009).
Segundo Scifoni, o que define paisagem cultural:
[...] é a sua escala de abrangência: a paisagem cultural
diz respeito à determinada porção espacial ou recorte
territorial. A paisagem cultural é entendida, assim, sempre
como conjunto espacial composto de elementos materiais
construídos associados a determinadas morfologias
e dinâmicas naturais, formas estas que se vinculam a
conteúdos e significados dados socialmente. O recorte
espacial é estabelecido a partir de uma condição peculiar e
representativa de determinadas relações estabelecidas entre
os grupos sociais com a natureza. Ou seja, do ponto de vista
da preservação, o que identifica as paisagens culturais a serem
protegidas é o caráter peculiar dessa relação tecida ao longo
do tempo e que se revela a partir das formas específicas de
uso e apropriação da natureza pelo trabalho humano. Essas
relações podem tanto materializar-se na sua morfologia,

identidades” Portaria Nº 375, de 19 de setembro de 2018.

140
como podem ser explicitadas por meio de valores que lhe
são atribuídos socialmente (2016, s/p).

A seguir, apresentamos na Fig. 6, quadro com levantamento de instrumentos


para sua salvaguarda no âmbito da UNESCO.

Figura 6 - Quadro “Instrumentos de salvaguarda para paisagem cultural”.


Processo sobre a ideia
Instrumento
de paisagem cultural
Convenção de Washington, 1940. Indica elementos sobre paisagem natural e o belo.
Recomendação de Paris, Preservação ambiental, salvaguarda da beleza e caráter de
UNESCO, 1962. paisagens e sítios.
Amplia a noção de monumento histórico para um sítio
Carta de Veneza, ICOMOS, 1964. urbano ou rural e traz a noção de entorno e visibilidade
da paisagem ao redor de monumentos.
Normas de Quito, Organização
Paisagem como portadora de marcas e expressões do
dos Estados Americanos (OEA),
passado.
1967.
Definição de classes de sítios naturais ou culturais que
Convenção sobre a proteção do podem ser inscritos na Lista do Patrimônio Mundial.
patrimônio mundial cultural e Criação de Fundo do Patrimônio Mundial para assistência
natural. UNESCO, 1972. na identificação e preservação dos sítios do Patrimônio
Mundial.
Recomendação de Nairobi, Amplia a noção de entorno para ambiência dos conjuntos
UNESCO, 1976. históricos (natural, construído, rural e urbano).
Trata de jardins históricos que, por seus valores históricos
Carta de Florença, ICOMOS, 1981.
e artísticos, devem ser considerados monumentos.
Carta de Washington, ICOMOS, A paisagem dando sentido a um bem mais importante
1986. (como pano de fundo, hierarquia).
Adoção da categoria paisagem paisagem como bem cultural (relacionando o cultural e o
cultural pela UNESCO, 1992. natural).
Recomendação R(95)9, Comitê de
Ministros do Conselho da Europa Conservação integrada de áreas de paisagens culturais.
1995.
Convenção Europeia da Paisagem, Conjunto de regras para proteção, gestão e planejamento
2000. de paisagens.
Portaria IPHAN nº 127 de
Regulamenta a chancela de paisagem cultural brasileira
30/04/2009.
Fonte: Autoria própria, com base em: UNESCO (2004); Ribeiro (2007); CARTAS PATRIMONIAIS (2016).

141
A partir da Figura 6, pode-se visualizar o processo de institucionalização da
salvaguarda de paisagens culturais. Para a UNESCO, o conceito de paisagem cultural
integra as relações entre os humanos e seu ambiente, entre o cultural e o natural,
as noções de sentido, significado, pertencimento, valor atribuído ao lugar e sua
singularidade.
Costa e Serres (2016) discutem a expansão do conceito de patrimônio e dos
instrumentos de preservação, a partir da categoria paisagem cultural. A relação
natureza-cultura, material-imaterial (em esfera integrada), inseriu diferentes tipos
de bens e referências culturais de grupos até então ignorados ou invisibilizados. A
noção de Paisagem Cultural parece indicar um novo posicionamento no contexto
patrimonial, com a inclusão de construções de memórias e pertencimentos no que
tange ao discurso sobre patrimônio cultural.
Nesse sentido, Castriota (2017) informa que a introdução da categoria
paisagem cultural traz três deslocamentos no campo de estudos do patrimônio
cultural. O primeiro rompe com a separação entre natureza e cultura ao reconhecer
que a atividade humana deixa seus reflexos no território. O segundo deslocamento
importa na relação estreita entre a paisagem cultural com saberes e fazeres
tradicionais no manejo da natureza, o que remete ao patrimônio material e imaterial
e aos lugares de aprendizagem sobre a relação entre povo, natureza e ecossistemas.
O terceiro deslocamento remete à ideia de patrimônio genético, pois ao salvaguardar
as paisagens culturais, preserva-se a diversidade genética da Terra. Nesse sentido,
elementos culturais e naturais precisam ser pensados e trabalhados em conjunto.
Para a Unesco a delimitação da paisagem cultural tem de levar em conta a sua
extensão e limite, a fim de garantir a sua inteligibilidade e funcionalidade, podendo
ser um recorte ilustrativo e representativo das qualidades e caráter da totalidade. Dos
dez critérios para a inscrição de bens culturais ambientais na Lista de Patrimônio
Cultural, destacamos:
[...] II. Mostrar um intercâmbio importante de valores
humanos, durante um determinado tempo ou em uma área
cultural do mundo, no desenvolvimento da arquitetura ou
tecnologia, das artes monumentais, do planeamento urbano
ou do desenho de paisagem; III. Mostrar um testemunho
único, ou ao menos excepcional, de uma tradição
cultural ou de uma civilização que está viva ou que tenha
desaparecido; ou IV. Ser um exemplo de um tipo de edifício
ou conjunto arquitectónico, tecnológico ou de paisagem,
que ilustre significativos estágios da história humana; ou V.
Ser um exemplo destacado de um estabelecimento humano
tradicional ou do uso da terra, que seja representativo de

142
uma cultura (ou várias), especialmente quando se torna(m)
vulnerável(veis) sob o impacto de uma mudança irreversível;
ou [...] VII. Conter fenômenos naturais excepcionais
ou áreas de beleza natural e estética de excepcional
importância; ou VIII. Ser um exemplo excepcional
representativo de diferentes estágios da história da Terra,
incluindo o registo da vida e dos processos geológicos no
desenvolvimento das formas terrestres ou de elementos
geomórficos ou fisiográficos importantes; ou IX. Ser um
exemplo excepcional que represente processos ecológicos e
biológicos significativos da evolução e do desenvolvimento
de ecossistemas terrestres, costeiros, marítimos ou aquáticos
e comunidades de plantas ou animais; ou X. Conter os
mais importantes e significativos habitats naturais para a
conservação in situ da diversidade biológica, incluindo
aqueles que contenham espécies ameaçadas que possuem
um valor universal excepcional do ponto de vista da ciência
ou da conservação (UNESCO, 2009).

Ainda, na Convenção do Patrimônio Mundial foram instituídas três categorias


de paisagens culturais:
I. Paisagem Claramente Definida. Intencionalmente
concebida e criada pelo homem, e que engloba as paisagens
de jardins e parques criadas por razões estéticas que estão
muitas vezes (mas não sempre) associadas a construções ou
conjuntos religiosos; II. Paisagem Essencialmente Evolutiva,
que resulta de uma exigência de origem social, econômica,
administrativa e/ou religiosa e atingiu a sua forma actual por
associação e em resposta ao seu ambiente natural. Reflete
o processo evolutivo na sua forma e na sua composição.
Subdivide-se em duas categorias: Paisagem Relíquia
(ou Fóssil) que é uma paisagem que sofreu um processo
evolutivo que foi interrompido, brutalmente ou por algum
tempo, num dado momento do passado. Porém, as suas
características essenciais mantêm-se materialmente visíveis;
e Paisagem Viva, que é uma paisagem que conserva um papel
social activo na sociedade contemporânea, intimamente
associado ao modo de vida tradicional e na qual o processo
evolutivo continua. Ao mesmo tempo, mostra provas
manifestas da sua evolução ao longo do tempo; III. Paisagem
Cultural Associativa, cuja justificativa de sua inscrição na
Lista do Património Mundial se dá pela força da associação
a fenómenos religiosos, artísticos ou culturais do elemento

143
natural, mais do que por sinais culturais materiais, que
podem ser insignificantes ou mesmo inexistentes (IPHAN,
2008, p. 21).

No Brasil, pode-se visualizar a criação de um corpus legal de proteção à


paisagem cultural no quadro da Figura 8 a seguir.
Figura 7 - Quadro “Instrumentos de salvaguarda para paisagem cultural no Brasil”.
Instrumento Processo sobre a ideia de paisagem cultural
Gozar de proteção e cuidados especiais “[...] os
monumentos históricos, artísticos e naturais, assim
Constituição de 1937, art. 134.
como as paisagens ou os locais particularmente
dotados pela natureza”.

Seriam passíveis de proteção por instrumento de


Decreto-Lei 25, de 1937, artigo 1º,
tombamento, “paisagens de feição notável, dotadas
Parágrafo 2º
pela natureza ou agenciadas pela indústria humana”.

Ratifica a Convenção para a Proteção do


Decreto-Lei nº 80.978/1977. Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, adotada
pela Unesco em 1972 .
Criação secretaria especial dentro
da secretaria executiva da Fundação Era sediada no Jardim Botânico do RJ.
Nacional Pró-Memória (FNpM).
Esta Coordenadoria passou a operar entre 1985-
Coordenadoria do Patrimônio Natural.
1990.
Constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória
Constituição Federal de 1988, artigo
dos diferentes grupos formadores da sociedade
216º.
brasileira, nos quais se incluem: [...] V -  os
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico. [...]
Institui o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC), com os objetivos de proteger
Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, art.
as características relevantes de natureza geológica,
4º, inciso VII.
geomorfológica, espeleológica, arqueológica,
paleontológica e cultural.

144
Seu objetivo era a “defesa das paisagens culturais
em geral e, mais especificamente, do território
dos Pampas e das paisagens culturais de fronteira”.
a Carta de Bagé ou Carta da Paisagem Ali estão listadas as características gerais que
Cultural (IPHAN; agosto de 2007). configurariam uma Paisagem Cultural Brasileira,
a preservação, intervenção diferentes sítios
que poderiam ser contemplados e o modo de
funcionamento dessa certificação, no âmbito nacional.
objetivo de definir novos mecanismos para o
Carta da Bodoquena ou Carta das
reconhecimento, a defesa, a preservação e a valorização
Paisagens Culturais e Geoparques
da Serra da Bodoquena, bem como de outras paisagens
(IPHAN; setembro de 2007).
análogas existentes em território nacional.
Estabelece a chancela da Paisagem Cultural
Brasileira, definida como uma “porção peculiar do
território nacional, representativa do processo de
Portaria IPHAN, nº 11, de 30/04/2009.
interação do homem com o meio natural, à qual
a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou
atribuíram valores”.
Institui Grupo de Trabalho para atualização da
política da paisagem cultural brasileira, a retomada
Portaria nº 104, de 23 de março de 2017 do instrumento da chancela e a reformulação
das estratégias institucionais para sua efetiva
implementação.
Institui a Política de Patrimônio Cultural Material
do Iphan.7 No Título V traz glossário no qual
se define Chancela, Diagnóstico, Dossiê de
Candidatura, Estudos Temáticos e Técnicos, Gestão
compartilhada, inventário de Conhecimento,
Portaria nº 375, de 19 de setembro de Mesorregião, Microrregião, Paisagem Cultural,
2018 Plano de Conservação, Planos de Gestão,
Preservação, Referências Culturais, Valor,
Valoração, aplicáveis ao processo de chancelamento
de paisagem cultural. No Art. 107, parágrafo V,
estabelece prazo para a publicação de revisão da
Portaria IPHAN nº 127, de 30 de abril de 2009.
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Scifoni (2016); Costa (2018); IPHAN (2009, 2017; 2018).
7 IPHAN. Portaria nº 375, de 19 de setembro de 2018. Disponível em http://www.in.gov.br/web/
dou/-/portaria-n-375-de-19-de-setembro-de-2018-41601031 Acesso em 5 ago. 2019.

145
A partir do quadro da Figura 8, é possível acompanhar o processo de construção
da categoria paisagem cultural. Como bem aponta Costa (2018), nos deparamos
com informações fragmentadas que estão disseminadas em Boletins, Verbetes,
Cartas Patrimoniais, Portarias, Decretos, dissertações, teses, artigos científicos etc.,
o que dificulta compreender o processo de implementação da chancela de Paisagem
Cultural Brasileira. De qualquer maneira, é relevante registrar que:
[...] a categoria de paisagem cultural, tal como foi instituída
pelo órgão federal, no Brasil, traz outros pontos de vista
e tratamento da questão, que não devem ser confundidos
com estas experiências anteriores do tombamento do sítio
paisagístico. [...] A adoção desta nova categoria no Brasil
deu-se sob a influência das práticas internacionais [...]
(SCIFONI, 2016, s/p.).

Também, paisagem cultural, como parcela do território brasileiro, tem a


necessidade de contar com rede de proteção que envolva diversos agentes, incluindo
aí o poder público, e concepção diferenciada para sua chancela e registro, no que
tange a inventário, diagnóstico e registro. De acordo com o IPHAN:
A paisagem chancelada pode usufruir do título desde que
mantenha as características que a fizeram merecer esta
classificação, sendo, por isso necessário desenvolver um
Plano de Gestão. A chancela é, portanto, regida por um pacto
que envolve o poder público, a sociedade civil e a iniciativa
privada, resultando em uma gestão compartilhada de
determinada porção do território nacional. É este pacto que
dá origem ao Plano de Gestão, onde devem estar planejadas
todas as ações voltadas à preservação dos valores que levaram
determinado lugar a ser reconhecido como uma Paisagem
Cultural Brasileira. Caso os integrantes não cumpram com
as determinações, e se as características da paisagem forem
degradadas ou perdidas, o órgão responsável, no caso o Iphan,
tem a função de cancelar a chancela (IPHAN, 2009, p. 18 ).

No momento em que escrevemos os resultados de nossa pesquisa, ocorre


Consulta Pública pelo IPHAN (de 07/07 a 30/09/2019) chamando contribuições para
a atualização da Portaria 127/2009. Foi emitido um Parecer Técnico e um Quadro
comparativo entre a Portaria existente e a proposta formulada pelo grupo de trabalho
que lidera a atualização da Portaria citada (ver IPHAN. Consulta Pública, disponível
em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1956>).
Entre as propostas, está a diferenciação entre o objeto — Paisagem Cultural
Brasileira — e o seu instrumento — a chancela —, inclusão de referências culturais

146
dos grupos sociais relacionados à paisagem cultural; a participação e mobilização
social, modificação no conceito, enfatizando o território como associado às práticas
culturais dos grupos sociais.
A partir dessas reflexões, discutimos na sequência, possibilidade do Vale dos
Butiazais de Giruá, ser proposto como candidato à chancela de Paisagem Cultural
Brasileira.

O Vale dos Butiazais como paisagem cultural

Os Butiazais, tendo como exemplo o Vale dos Butiazais de Giruá, podem ser
compreendidos como testemunhos excepcionais de uma tradição cultural, como
exemplo de ecossistema que ilustra períodos significativos da história do Rio Grande
do Sul e do Brasil. Neste sentido, é representativo de culturas indígenas, de imigração
europeia e de interação de humanos com o ambiente e está associado a ideias, crenças,
obras artesanais, culinária, obras literárias e à construção de memórias. Também
representa área de beleza natural e, como exemplo de ecossistema, é habitat de espécies
que têm valor na salvaguarda de outros ecossistemas. Dos dez critérios indicados
pela UNESCO, em um primeiro levantamento empírico, sem maior profundidade, os
Butiazais do Rio Grande do Sul, preenchem, no mínimo, cinco dos exigidos.
Os Butiazais também podem ser definidos como paisagem cultural, de acordo
com as definições do IPHAN, considerando-se que da imbricada relação do homem
com a natureza surge, segundo o IPHAN, uma característica fundamental de paisagem
cultural: “[...] a ocorrência, em determinada fração territorial, do convívio entre a
natureza, os espaços construídos e ocupados, os modos de produção e as atividades
culturais e sociais, numa relação complementar capaz de estabelecer uma identidade
que não possa ser conferida por qualquer um desses elementos isoladamente (IPHAN,
2009).8 A particularidade observada nesse conceito remete vividamente ao trabalho
junto aos butiazais, à relação de uso sustentável e à identidade conferida aos artesãos e
culinaristas do butiá.
Os Butiazais se coadunam com o que diz a Carta de Bagé, ou seja, paisagem
cultural é “[...] o meio natural ao qual o ser humano imprimiu as marcas de suas ações
e a paisagem formas de expressão, resultando em uma soma de todos os testemunhos
resultantes da interação do homem com a natureza, e, reciprocamente, da natureza com
o homem”. As características de patrimônio imaterial e paisagem cultural adéquam-
se de forma a salientar a interação cultural e identitária. Mesmo que esses conceitos
sejam de âmbito nacional, pode-se empregá-los à história local de forma a sobrelevar

8 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/899/>. Acesso em: 07 ago. 2016.

147
a paisagem como espaço “[...] mediador para a vida, e constitui-se em espaço de
referências múltiplas [...] um recurso comum e partilhado” (GASTAL; COSTA, 2010).

Há necessidade de maiores pesquisas em torno de Paisagem Cultural e


Patrimônio Imaterial, bem como o levantamento dos diversos elementos para a
chancela de paisagem cultural. Igualmente, é relevante considerar que a preservação
desse tipo de sítio é um processo contínuo e, sendo assim, pode-se inferir que somente
a interação entre diferentes agentes pode desenvolver processos de classificação de
paisagem e patrimônios de médios e pequenos municípios, como é o caso do Rio
Grande do Sul.

Corroborando tais reflexões, têm-se trabalho com afinidades com o nosso,


realizado por equipe coordenada por Alexandre José Diehl Krob e Patrícia Vianna
Bohrer (2010) que construíram um dossiê com proposta para registro do modo de
fazer artesanato com palha de butiá em Torres.

É importante destacar que esse patrimônio reveste-se de significado a partir do


momento em que se torna capaz de inserir o município no contexto cultural do estado
e do país a partir de suas belezas naturais; no caso do Vale dos Butiazais, de Giruá, este
tem como se tornar um importante atrativo cultural para o município a partir de sua
vinculação com memórias e acontecimentos históricos ocorridos em Giruá.

Para preservar o Vale, a comunidade precisa conhecer e reconhecer seu valor


histórico e afetivo, além da ligação e interação deste com a comunidade. Dessa forma,
as culturas locais geram seus sistemas de valores e determinam seu próprio patrimônio,
de modo que “[...] o povo reconhece-se a si mesmo em sua identidade cultural, em sua
memória coletiva formada pela sua história e nos traços sociais manifestados na vida
cotidiana” (LEITE; CAPONERO; PEREZ, 2010, p. 72). Para além do caráter material,
tem-se também o aspecto imaterial que o reveste.

De acordo com informações obtidas em página digital da UNESCO, o patrimônio


imaterial “[...] compreende as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos
e indivíduos em todas as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus
conhecimentos a seus descendentes” (UNESCO, [s.d.]).9 As técnicas utilizadas pelos
primeiros habitantes locais, assim como antepassados dos colonizadores de Giruá,
como utilizar folhas da palmeira para confecção de cestos, beneficiar as castanhas dos
coquinhos, inserem-se no conceito pontuado pela UNESCO, quanto ao patrimônio
imaterial, de tradição recebida de ancestrais e passada adiante aos descendentes.

9 UNESCO. Disponível em: <www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/


intangibleheritage/>. Acesso em: 06 jul. 2016.

148
Por conseguinte, outro conceito “[...] el conjunto de creaciones que emanan
de una comunidad cultural fundadas en la tradición, expresadas por un grupo o por
individuos y que responden a las expectativas de la comunidad en cuanto expresión de
su identidad cultural y social”,10 alude aos trabalhos feitos em torno das tradições do
Vale, incluindo saídas a campo para pesquisas nas áreas culturais e ambientais.
Pelegrini (2006) ressalta que “[...] os movimentos em defesa do meio ambiente
também foram importantes para a ampliação da noção de patrimônio, para que
incluísse não apenas a cultura, mas também a natureza” (p. 28). Desenvolvendo
junto aos visitantes salvaguardas de patrimônio e reconstrução da memória local,
rememorando os primeiros habitantes dessa terra. Acrescenta-se, portanto:
Quando pensamos no que recebemos de nossos antepassados,
lembramo-nos não apenas dos bens materiais, mas também
da infinidade de ensinamentos e lições de vida que eles nos
deixaram. [...] os ditados e provérbios que sabemos de cor e
que nos guiam por toda a vida são exemplos de um patrimônio
imaterial inestimável. (PELEGRINI, 2006, p. 08).

Não há modo de passear pelo Vale dos Butiazais de Giruá, sentir o cheiro
de butiá e não ser conduzido à infância, aos doces e compotas produzidos
pelos familiares. Até mesmo vídeos produzidos tendo o escopo desta pesquisa,
reproduzem imagens que remetem ao convívio e aos hábitos alimentares
que se perpetuam até a maioridade. Essas recordações são importantes
para a compreensão do patrimônio comunicado de geração em geração e o
reconhecimento de sua história, ancorada em lembranças.

O processo de solicitação de chancela de Paisagem Cultural Brasileira

De acordo com a legislação vigente, qualquer pessoa física ou jurídica


poderá solicitar a instauração de processo administrativo visando à chancela de
Paisagem Cultural Brasileira para algum conjunto espacial que entenda ser porção do
território nacional que integre significado sociocultural e ambiental. Após realizada
a solicitação, será aberto o processo administrativo que a analisará e será emitido
um parecer. Uma vez aceita a proposta, esta será julgada por órgão competente do
IPHAN para que seja dada a decisão final.

Para tanto, o requerente deve acessar Portal de Serviços do


Governo do Brasil, denominado Obter Chancela da Paisagem Cultural,

10 Disponível em: <http://portal.unesco.org/es/ev.phpURL_ID=13141&URL_


DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>. Acesso em: 06 jul. 2016.

149
disponível em <https://www.gov.br/pt-br/servicos/obter-chancela-da-paisagem-
cultural?campaign=orgao>.

A Portaria IPHAN Nº 127, de 30 de abril de 2009 não discrimina as informações


que o solicitante precisa fornecer ao solicitar a chancela de Paisagem Cultural
Brasileira para algum conjunto espacial, porém, a proposta da sua atualização citada
no quadro da Figura 8, já aponta alguns itens que o requerente deverá apresentar
quando da solicitação de chancela. Segundo a coordenadoria de Paisagem Cultural
do IPHAN, “Nem a Portaria Iphan 187/2009 instituiu mecanismos, estratégias ou
definições detalhadas sobre a aplicação da chancela, como um passo a passo ou
uma receita a seguir, nem se está trabalhando aleatoriamente, sem fundamentos e
reflexões mais profundas [...]” (IPHAN, 2011).11

As informações requeridas para o solicitante são:


(1) identificação do(s) requisitante(s) da chancela;
(2) manifestação de concordância de grupos sociais
motivadores/ produtores da paisagem cultural e de ao
menos uma entidade ou coletivo representativo de povos e
comunidades tradicionais, caso exista no território;
(3) descrição do nível de articulação local existente para o
estabelecimento do pacto;
(4) caracterização/ descrição o mais pormenorizada possível
da paisagem cultural que se deseja chancelar, com ênfase
para os valores e atributos que se queira preservar;
(5) justificativa da proposta, ou razões pelas quais
determinado território deveria ser reconhecido como
Paisagem Cultural Brasileira;
(6) proposta (mesmo que preliminar) de delimitação
geográfica;
(7) descrição dos riscos/desafios para a preservação da
paisagem cultural;
(8) documentação fotográfica, mapas, entre outras formas
possíveis de representação (IPHAN, s/d).12

A partir das informações coletadas, elaboramos um instrumento que


denominamos de Ficha Técnica que envolve: Estudos temáticos ou técnicos;

11 IPHAN. Reflexões sobre a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Brasília:IPHAN,


2011. Disponível em https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_
noticia/19930_20110518_093241.pdf Acesso em 5 ago 2019.
12 IPHAN. Relatório Técnico. Disponível em portal.iphan.gov.br › arquivos › RELATORIO_
TECNICO_Paisagem . Acesso em 5 ago 2019.

150
Inventário de conhecimento; Mesorregião; Microrregião; Planos de Gestão;
Referências Culturais; Valor.
A Ficha Técnica13 para descrição do Vale do Butiazal de Giruá, ora apresentada,
configura-se como uma forma de contribuição para a salvaguarda desse ecossistema.

Proposta de Ficha Técnica para realização de descrição do Vale dos Butiazais


(Giruá/RS) como paisagem cultural

Campo 1
Informações gerais sobre a Região, Estado da Federação, Microrregião, onde está situado o
conjunto espacial candidato à chancela de Paisagem Cultural Brasileira.
Campo 2
Informações gerais sobre o Município onde se encontra o conjunto espacial.

Campo 3
Informações gerais sobre o Distrito/Povoado (se for o caso).
Campo 4
Histórico: Informações históricas do Município/Distrito.
Registrar dados históricos sobre o município/distrito/povoado quanto à sua origem, forma
de ocupação, trajetória política, administrativa, econômica. Informar sobre aspectos sociais,
fazendo referência à presença de povos originários, imigrantes, migrações, movimentos sociais/
religiosos, entre outros.
Campo 5
Aspectos Naturais: Registro de informações ambientais sobre a Microrregião/Município/Distrito
e de elementos da paisagem natural (matas, rios, arroios, reservas biológicas, outros).
Campo 6
Manifestações culturais: Registro de manifestações culturais, citando datas/períodos de
ocorrência, locais, particularidades, entre outros que tenham referência com o conjunto espacial
objeto do inventário.
Campo 7
Designação: Registro da denominação do conjunto espacial.
Campo 8
Informações gerais sobre o conjunto espacial: registrar informações sobre a denominação/
localização e coordenadas geográficas; superfície do sítio; delimitação do espaço; mapa; carta
topográfica; imagens fotográficas, outros.

13 Esta Ficha Técnica é um dos produtos da dissertação Festa do Butiá em Giruá: memórias
e trajetória (2003-2016). Visa a salvaguarda do Vale dos Butiazais de Giruá, RS, Brasil.

151
Campo 9
Subcategoria: Informações sobre a categoria do espaço: agenciado, não agenciado pelo homem;
paisagem contemplativa, paisagem integrada em área rural ou urbana.
Campo 10
Acesso: Informações referentes à forma de acesso ao sítio (pontos de referência, estradas,
condições de acesso.
Campo 11
Responsável: Registrar dados sobre o responsável pelo conjunto espacial.

Campo 12
Propriedade/situação da propriedade: Registro sobre a propriedade do conjunto espacial.

Campo 13
Análise do entorno: Registro de dados que informem sobre o conjunto espacial no contexto
natural e cultural, os espaços adjacentes, proximidade com marcos referenciais do município,
informações sobre aspectos geomorfológicos, solo, vegetação, entre outros.
Campo 14
Justificativa: Registro de dados, levando em consideração elementos de paisagem associativa,
representada pela intervenção humana.
Campo 15
Proteção legal: Registro de informações sobre o tipo de regulação, a instância (Federal, Estadual,
Municipal); situação da regulação (existente, proposta); tipo de proteção.
Campo 16
Grau de integridade/autenticidade: Avaliação do grau de integridade/autenticidade do conjunto
espacial no momento do inventário.
Campo 17
Análise da integridade: Resultado da análise do grau de integridade, indicando riscos potenciais
e fatores de degradação.
Campo 18
Intervenções/atividades desenvolvidas: informações referentes às intervenções realizadas no sítio
até o momento do inventário; medidas de conservação; usos do sítio e seus entornos; medidas
mitigadoras visando à conservação da integridade do conjunto espacial.

Campo 19
Uso: Informações se ocorrem visitações públicas com restrições ou sem restrições; se ocorrem
atividades privadas, turismo, agropecuária, agricultura, área não utilizada.
Campo 20
Declaração de valor universal: Registro de fontes documentais históricas que comprovem o valor
universal do conjunto espacial.

152
Campo 21
Critérios adotados (de acordo com a Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial pela
UNESCO até 2005). Ver critérios em RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio.
Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007, p. 36-37.
Campo 22
Pacto de Gestão: Registro de convênios/parcerias que envolvam poder público e sociedade civil/
iniciativa privada. RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro:
IPHAN/COPEDOC, 2007, p. 36-37.
Campo 23
Plano de Gestão: a partir do Pacto de Gestão, proposição de plano de manejo para o bem cultural.
O Plano envolveria:
Decreto Municipal de adesão à chancela
Relatório de levantamento das espécies
Conservação e promoção do conjunto espacial
Políticas e programas relacionados
Projeto educativo da candidatura
Programa de aceleração do crescimento
Nível de proteção
Gestão
Treinamento e capacitação
Infraestrutura turística
Campo 24
Referências bibliográficas: registro das fontes bibliográficas pesquisadas.

Campo 25
Referências documentais: registro das fontes documentais: registros escritos, imagéticos. Fontes
orais: entrevistas. Outros documentos.
Campo 26
Informações complementares: informações não especificadas na Ficha de inventário.

Campo 27
Documentação fotográfica: informações sobre fotografias produzidas durante o inventário para
fins de arquivamento.
Fotógrafo:
Tipo de imagem:
Data:
Local:

153
Campo 28
Documentação oral: Entrevistas com proprietários do Vale dos Butiazais, visitantes, usuários,
moradores do entorno do Vale, produzidas durante o Inventário para fins de arquivamento.
Entrevistador(a):
Tipo de entrevista:
Local:
Data:
Campo 29
Equipe envolvida na descrição:
Levantamento:
Data:
Revisão:
Data:
Fontes: Elaborada por Adriana Aparecida Felini e Cleusa Maria Gomes Graebin (2016/2019), a
partir de RIBEIRO, 2007. SCOFANO, 2012. KROB, e BOHRER, 2010.; IPHAN (2009, 2017; 2018).

Considerações finais

A chancela é um instrumento recente, passível de muitas considerações


e adaptações. Foi estabelecida em nosso país em 2009 e passa por reformulações
necessárias a fim de esclarecer diversos pontos que são obscuros em termos de sua
compreensão e aplicação.

Investir na descrição do Vale dos Butiazais, considerando-o como possível


paisagem cultural envolve, realmente, uma investigação profunda, no sentido de
compreender e comunicar o quanto esta porção do território nacional é significativa
para os giruaenses e representativa de um bioma - o Pampa - que envolve três países,
o Brasil, o Uruguai e a Argentina.

154
Referências

ASSMANN, A. Espaços da recordação : formas e transformações da memória


cultural. Tradução: Paulo Soethe.. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2011.

BARBIERI, R. L. et all. Amamos Butia. Videocamp. Pelotas: Embrapa Clima


Temperado, Universidade Federal de Pelotas, CEAMA e Flora Pelotensis, 2015.

CASTRIOTA, L. B. Paisagem cultural e patrimônio: desafios e perspectivas. In:


CASTRIOTA, L. B.; MONGELLI, M. de M. (Coords.). Anais do 1º Colóquio Ibero-
americano Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto. Brasília, DF: IPHAN; Belo
Horizonte, MG: IEDS, 2017, p. 20-30. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/
uploads/publicacao/anaispaisagemculturalweb_2.pdf>. Acesso em 15 jun. 2019.

COPETTI, C. R. W.; TOLOMINI, E. D.; SILVA, F. A. T.; COSTA, L. de C. N. Paisagem


Cultural: desafios na construção e gestão de uma nova categoria de bem patrimonial.
Tese (Doutorado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
Patrimônio Cultural, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de
Pelotas., 2018.

COPETTI, C. R. W.; TOLOMINI, E. D.; SILVA, F. A. T. (Orgs.) GIRUÁ história,


trabalho e desenvolvimento. 50 anos de emancipação político-administrativa 2005
2008. Giruá: Gráfica Giruaense, 2008.

COSTA, L. de C. N.; SERRES, J. C. P. Memória, identidade e paisagem cultural:


interfaces na constituição do patrimônio brasileiro. Patrimônio & Memória, São
Paulo, Unesp, v. 12, n.1, p. 158-178, janeiro-junho, 2016.

DIAS, A. S.; HOELTZ, S. E. Indústrias líticas em contexto: o problema Humaitá na


arqueologia sul-brasileira. Revista de Arqueologia, v. 23, n. 2, Dezembro de 2010.
Disponível em: <https://leiaufsc.files.wordpress.com/2013/08/diashoeltz-problema-
humaitc3a1.pdf>. Acesso em 04 mar. 2016.

EMBRAPA CLIMA TEMPERADO. Disponível em: <https://www.embrapa.br/


clima-temperado>. Acesso em: 05 mar. 2016.

FERNANDES, M. In: Marizete Fernandes: depoimento [mar. 2016]. Entrevistadora:


Adriana Felini. Entrevista concedida para a Dissertação Festa do Butiá em Giruá
(2003-2016): Memórias e Trajetória (UNILASALLE).

155
FERNANDES, V. In: Valzumiro Fernandes: depoimento [mar. 2016]. Entrevistadora:
Adriana Felini. Entrevista concedida para a Dissertação Festa do Butiá em Giruá
(2003-2016): Memórias e Trajetória (UNILASALLE).

INVENTÁRIO Turístico de Giruá. 2015. Disponível em: <http://www.portaldasmissoes.


com.br/site/view/id/875/vale-dos-butiazais.html>. Acesso em 7 abr 2016.

IPHAN. Cartas Patrimoniais. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/


detalhes/226>. Acesso em 16 mai 2016.

IPHAN. Consulta Pública. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/


detalhes/1956>. Acesso em 5 ago 2019.

IPHAN. Paisagem Cultural. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/


ckfinder/arquivos/Livreto_paisagem_cultural.pdf>. Acesso em 20 maio 2018.

IPHAN. Patrimônio mundial: fundamentos para seu reconhecimento - a convenção


sobre proteção do patrimônio mundial, cultural e natural de 1972, para saber o essencial.
Brasília, DF: Iphan, 2008. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/
arquivos/Cartilha_do_patrimonio_mundial.pdf>. Acesso em 4 ago. 2019.

IPHAN. Portaria nº 375, de 19 de setembro de 2018. Disponível em: <http://


www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-375-de-19-de-setembro-de-2018-41601031>.
Acesso em 5 ago. 2019.

IPHAN. Reflexões sobre a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Brasília:


IPHAN, 2011. Disponível em: <https://documentacao.socioambiental.org/noticias/
anexo_noticia/19930_20110518_093241.pdf>. Acesso em 5 ago 2019.

IPHAN. Relatório Técnico. Disponível em: <portal.iphan.gov.br/arquivos/


RELATORIO_TECNICO_Paisagem>. Acesso em 5 ago 2019.

IPHAN. Portaria IPHAN nº 127 de 30/04/2009. Disponível em: <https://www.


normasbrasil.com.br/norma/portaria-127-2009_214271.html>. Acesso em 17 ago. 2016.

KROB, A. J. D.; BOHRER, P. V. Proposta técnica de registro do Modo de Fazer


Artesanato com Palha de Butiá na Região de Torres, RS, como patrimônio cultural
imaterial do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Instituto Curicaca, 2010. Disponível
em: <http://pwweb2.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/curicaca/usu_doc/proposta
_de_registro_2 mar 2016.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2016.

LEITE, E.; CAPONERO, M. C.; PEREZ, S. Patrimônio cultural imaterial da América latina:
as festas populares. Extraprensa, Edição Especial, 2010, p. 72. Disponível em: <https://www.
revistas.usp.br/extraprensa/article/download>. Acesso em 5 ago 2019.

156
LOPES NETO, S. Contos Gauchescos. 9. ed. Porto Alegre: Globo, 1976.
Disponível em: <https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action
=download&id=36972>. Acesso em 19 jun. 2019.

MAICÁ, C. Artesanato Giruá. Disponpível em: <http://artesanatogirua.blogspot.


com/2011/07/artesanato-giruaense-da-terra-dos.html>. Acesso em maio, 3, 2016.

NORONHA, A. P.; BARBIERI, R. L.; SOSINSKI JUNIOR, E. E. Festa do butiá:


valorização e conservação de butiá yatay no Rio Grande do Sul, Brasil. In: 10º
SIRGEALC, Bento Gonçalves, 2015. Disponível em: <www.10sirgealc.com.br/
anaissirgealc.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2016.

PARQUE NACIONAL EL PALMAR. Guía de Flora. El Palmar, 2011.

PELEGRINI, Sandra C. A.. Cultura e natureza: os desafios das práticas


preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. Rev. Bras. Hist.
[online]. v. 26, n. 51, p. 115-140 [cited 2019-09-02], 2006. Disponível em http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000100007&lng=
en&nrm=iso Acesso em 4 ago 2019.

RIBEIRO, R. W. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/


COPEDOC, 2007. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/
SerPesDoc1_PaisagemCultural_m.pdf

RIVAS, M.; BARBIERI, R. L. Boas práticas de manejo para o extrativismo


sustentável do butiá. Brasília: Embrapa, 2014.

SCIFONI, S. Paisagem cultural. In: GRIECO, B.; TEIXEIRA, L.; THOMPSON, A.


(Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro,
Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). Disponpível em http://portal.iphan.
gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/82/paisagem-cultural Acesso em 12
abril 2018.

SCOFANO, G. B. A elaboração de planos de gestão da paisagem cultural


brasileira como subsídio à proteção do patrimônio arqueológico: o caso da
“Ilha de Laguna” - SC. Dissertação apresentada ao curso de Mestrado Profissional
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: IPHAN,
2012. Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/
Disserta%2B%C2%BA%2B%C3%BAo%20Guilherme%20B

157
A negação do Patrimônio Cultural Jê em Blumenau, Santa
Catarina: entre conflitos de memória e identidade1

Jonathas Kistner

Dione da Rocha Bandeira

Introdução
Ter consciência histórica não é informar-se das coisas de
outrora acontecidas, mas perceber o universo social como
algo submetido a um processo ininterrupto e direcionado de
formação e reorganização (MENESES, 1984, p. 34).

O Brasil, à época da “descoberta”, era habitado por grupos indígenas diversos.


De modo geral, no litoral, predominavam os Tupi-Guarani,2 denominados de
Carijós e Patos. Em Santa Catarina, no interior das florestas e no planalto viviam os
Laklãnõ/Xokleng e Kaingang, povos de língua da família Jê. O uso da nomenclatura
Xokleng/Laklãnõ na pesquisa, no lugar de Xokleng (mais comumente usada na
literatura) se justifica por ser o termo que atualmente marca o processo de afirmação
cultural pelo qual os indígenas dessa etnia estão passando. Segundo estes, Laklãnõ
é de autodenominação, e em sua língua, significa “Povo do Sol”. Do ponto de vista
linguístico, sugere-se que a tradução literal mais apropriada seja próxima de “os que
são descendentes do Sol” ou em uma forma fonética similar ao idioma indígena: “os
do clã do Sol”. O termo Laklãnõ vem ganhando espaço político interno e externo,
através do movimento de recuperação do idioma (PATTÉ, 2015; GAKRAN, 2015).
Esta pesquisa trata desses dois grupos, Laklãnõ/Xokleng e Kaingang, em sua
vertente meridional.

1 Estas discussões fizeram parte de uma pesquisa vinculada ao Programa de Mestrado


em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville (Univille),
defendida em 2016, em Joinville, Santa Catarina.
2 A família linguística Tupi-Guarani é constituída de aproximadamente 40 línguas fortemente
relacionadas, com uma distribuição geográfica bastante ampla na América do Sul. Conforme
Antônio Augusto Souza Mello (2000), seus extremos atuais são o litoral do Brasil (leste), as margens
do Amazonas na fronteira Brasil-Peru (oeste), sul da Guiana Francesa (norte) e sul do Brasil,
Paraguai e norte da Argentina (sul). A família linguística Tupi-Guarani é um dos desdobramentos
do tronco Tupi, que é composto de mais nove subdivisões, famílias com um número pequeno de
línguas (Arikém, Juruna, Mondé, Mundurukú, Tupari e Ramarama), famílias que hoje consistem
de só uma língua, como Aweti, Mawé (Sateré) e Puruborá (RODRIGUES, 1999).
Havia uma intensa movimentação de sociedades humanas que aqui já
habitavam antes do assentamento dos imigrantes europeus, que eram trazidos por
companhias de colonização da Alemanha. Grupos humanos que deixaram vestígios de
sua cultura material e, conforme relatos da etnografia, travaram intensos conflitos com
os primeiros imigrantes. São comunidades que nesse território viveram e deixaram
marcas de sua identidade. Os indígenas identificados como Laklãnõ/Xokleng e
Kaingang, dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e
uma pequena parte do território da província argentina de Missiones, são conhecidos
pelos especialistas sob a designação de “Jê Meridional”. Os arqueólogos reconstituem
a história dessa população datando e estudando de maneira minuciosa seus antigos
assentamentos, objetos/ferramentas arqueológicos e etnográficos de seu uso cotidiano,
cemitérios e supostos locais de atividades.
Os documentos que envolvem a narrativa de contato com os imigrantes
europeus no Vale do Itajaí3 com os indígenas são numerosos, mas em sua totalidade se
voltam à história do imigrante, das suas dificuldades e situações adversas que encontrou
no território. Sempre colocando o índio como o personagem secundário, descrito pelo
olhar etnocentrista do europeu “que tendiam a retratar os índios recalcitrantes como
verdadeiros selvagens, que hostilizavam os brancos em função de sua natureza bruta.
O reverso dessa imagem residia no índio que colaborava com os projetos coloniais”
(MONTEIRO, 2001, p. 75). É a história contada pelos imigrantes que se entremeia de
relatos parciais, com uma moral superior alicerçada em princípios de sobrevivência
do “civilizado” frente ao “selvagem”. É esse aspecto que se faz oportuno reformular
com dados mais congruentes, a história dos que de fato estavam no território antes
da chegada dos europeus, os que tiveram a sua identidade gradativamente reprimida
frente aos antagonismos dos imigrantes.
A constatação é a ausência ou irrelevância dada até agora a esse tema pelas
narrativas e história produzidas para a cidade de Blumenau, em Santa Catarina.
Há uma lacuna na historiografia local sobre os povos indígenas, se concentrando
todas as informações e registros somente no período de contato com os primeiros
imigrantes europeus. Confirmamos a precariedade de informações sobre o período
de ocupação de Blumenau anteriormente à chegada oficial do primeiro grupo de
imigrantes em 1850. E, mesmo diante da incidência de artefatos arqueológicos
encontrados, não há conhecimento sistematizado sobre o processo de ocupação

3 A bacia hidrográfica do Rio Itajaí-Açu, também denominada Vale do Itajaí, é situada


entre os paralelos 65º21´50 e 27º52´15 sul e os meridianos 48º37´20´´ e 50º21´50´´
oeste de Greenwich, e abrange uma área territorial 11.246,9 km2, reunindo 39
municípios.

160
pré-colonial na região. Foi a partir dessas conjunturas que surgiu a problematização
que norteou a pesquisa.

A pesquisa

Quanto à metodologia, além do levantamento bibliográfico e acompanhamento


na revisão de literatura de pesquisas arqueológicas efetuadas em localidades com
relevância à pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, qualitativas,
com objetivo de encontrar os locais com relevância para uma investigação superficial,
exploratória, sem intervenção ainda, de obter informações relevantes quanto à
presença dos ancestrais dos grupos Jê atuais em Blumenau. Foram priorizados
moradores da cidade que possuíam informações referente a cultura material de
índios Laklãnõ/Xokleng e Kaingang; moradores mais antigos de pontos diferentes
da cidade, com o objetivo de atender boa parte do espaço geográfico do município;
entrevista com descendentes de imigrantes que possuíam informações relevantes de
contatos, mesmo que de gerações antecedentes, mas com histórias de contato ainda
vivas em suas memórias; entrevistas com moradores da etnia Kaingang e Laklãnõ4
que residem no município de Blumenau; e, moradores da reserva indígena TI Laklãnõ
(Terra Indígena Laklãnõ), em Santa Catarina, localizada a aproximados 100km da
cidade. A utilização do gravador foi incorporada em todas as entrevistas, quando os
informantes consentiam.

A escolha do método aplicado em campo, referente ao levantamento inicial


de informações com alguns residentes mais antigos de pontos estratégicos da cidade
(áreas rurais) levou em consideração duas questões. A primeira, foi a constatação de
que uma pesquisa com esse objetivo ainda não havia sido realizada no município,
no que diz respeito a busca de informações que levassem a caracterizar os locais da
cidade onde foram encontrados e nos que ainda pudessem ser encontrados objetos
arqueológicos da cultura material desses grupos. A segunda questão era entender o
que esses moradores pensavam a respeito desses objetos, qual o seu significado a eles.
Aproveitando a ocasião lhes era explicado que essas “pontas de flecha”, conforme
Funari (2005), não necessariamente precisariam permanecer como uma curiosidade,
mas passam a ter a relevância de uma fonte histórica.

4 Os moradores de Blumenau da etnia Laklãnõ e Kaingang e os da mesma etnia residentes


na Terra Indígena Laklãnõ, fizeram parte de um trabalho de extensão da ONG Instituto
Manoa de Blumenau. Essas entrevistas foram aplicadas e coordenadas pelo próprio autor,
que é membro integrante do referido instituto.

161
Quanto à análise da cultura material dos grupos inseridos no estudo
objetivamos apenas fornecer subsídios primários para caracterizá-los, sem a
pretensão de alcançar análises complexas dos processos tecnológicos de elaboração
e uso.

Descrever as características de determinada população ou fenômeno em


uma região, envolve o uso de técnicas padronizadas de coleta de dados, entre elas
observações sistemáticas e levantamento de material já publicado, constituído
principalmente de livros e artigos de periódicos. Além do material bibliográfico, foram
combinadas diversas fontes das mais variadas procedências para dar sustentação à
narrativa de aspectos dessas sociedades, são: registros de viajantes e exploradores,
periódicos e relatórios, fontes iconográficas como mapas e fotografia, vestígios
arqueológicos, documentações administrativas, textos de missionários e recortes de
jornais. Sobre estes últimos, destacam-se: as notas avulsas do Jornal A Novidade de
Itajaí, do ano de 1907, os artigos do início do século XX, como o de Alberto Fric,
representante do Museu Etnográfico de Berlin e defensor dos índios catarinenses, os
jornais do século XIX Kolonie-Zeitung e Blumenauer Zeitung, presentes no Arquivo
Histórico José Ferreira da Silva, no município de Blumenau. Também do início do
XX, os documentos e cartas particulares de José Deeke, na época e durante duas
décadas, Diretor da Colônia Hansa-Hammônia (atual Ibirama, em Santa Catarina),
colônia que recebeu os Laklãnõ/Xokleng praticamente em toda a sua totalidade.

Tivemos acesso às fotografias de grupos Laklãnõ/Xokleng e Kaingang à época


de contato com os imigrantes, e foram aproveitados artigos da Revista Blumenau
em Cadernos, publicada desde 1957, revista que contempla a historiografia regional
do Vale do Itajaí, e entre outras coisas, traz muitas traduções de textos originais da
língua alemã dos primeiros imigrantes que se estabeleceram na colônia. Os mapas
utilizados, em sua maioria, foram consultados no Arquivo Digital da Biblioteca
da Fundação Universitária da Região de Blumenau (FURB). No Museu Casa
do Imigrante, de Blumenau, em sua reserva técnica, tivemos acesso a objetos
arqueológicos líticos da cultura material de ancestrais dos grupos Laklãnõ/Xokleng
e da Tradição Arqueológica Umbu.5 Além disso, depoimentos e análise de objetos
materiais da cultura Laklãnõ/Xokleng na Reserva Indígena Ibirama.

5 Tradição Umbu é o nome pelo qual se conhece a cultura material do primeiro grupo
de povos indígenas, caçadores-coletores, possuidores de indústria lítica que habitaram
a Região Sul do Brasil.

162
O município de Blumenau

Este trabalho se concentra na cidade de Blumenau, um dos principais


municípios de Santa Catarina, com a maior população do Vale do Itajaí, aproximados
334 mil habitantes, e o terceiro maior do estado (Figura 1). Conforme relatos da etno-
história, foi uma região com considerável presença de índios pertencentes aos grupos
Jê e da Tradição Arqueológica Umbu, onde são esporadicamente são encontradas
pontas de flechas, machados, polidores, mãos de pilão, cerâmica, entre outros objetos
líticos e cerâmicos destes grupos. E é essa história pré-colonial e seus vestígios materiais
que não encontram espaço no município. Há poucos e esparsos fragmentos da cultura
material não organizados em locais adequados e muitos ainda se encontram a céu
aberto, sujeitos a intempéries, roubo, expansão da agricultura, construção civil e outras
infraestruturas. Ainda há aqueles que se encontram em posse de coleções particulares,
correndo o risco de não serem conhecidos ou perdidos de vez.
Figura 1 – Mapa político de Blumenau.

Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Blumenau.

163
A escolha pelo município de Blumenau deu-se por várias razões. A principal
motivação deve-se ao fato do município ter um considerável histórico de contato entre
índios Laklãnõ/Xokleng e Kaingang com os imigrantes europeus, tendo resultado em
grande quantidade de material etno-histórico. Outro fator é a quantidade de material
arqueológico encontrado no município, somado ao agravante da cidade não contar
com um museu de arqueologia para a salvaguarda dos objetos encontrados, então,
boa parte do material é enviada para outras cidades, estados, ou até mesmo deixa
o país6 e, o que sobra, se encontra em coleções particulares ou dentro de caixas em
depósitos de museus. Toda a história dos primeiros habitantes do território está sendo
desfragmentada e perdida rapidamente, por isso da necessidade de maiores estudos e
interpretações no campo. Outra situação é que o município se encontra em acelerada
expansão urbana, onde toda a área geográfica sofre com rápidos processos urbanos
e industriais, alterando de maneira significativa a paisagem, impossibilitando novas
pesquisas. Assim, um dos objetivos da pesquisa é contribuir para gerar visibilidade
ao patrimônio cultural na cidade, trazendo à consideração os bens materiais de um
grupo que contribuiu na formação histórica e cultural do município. Essa concepção
passa a entender os “índios como os protagonistas e não apenas vítimas da história,
demonstrando que eles dialogaram com as novas conjunturas e foram agentes no
contato com os colonizadores” (WITTMANN, 2007, p. 22).

A vinda dos imigrantes ao território: conflito de identidades, espaços em disputa

A primeira colônia próspera no Vale do Itajaí é idealizada pelo alemão


Hermann Bruno Otto Blumenau, nascido em 26 de dezembro de 1819, na
pequena cidade de Hasselfelde, Alemanha, no então Ducado de Brunsvique. Este
iniciou sua carreira como farmacêutico e em 1846 obteve o seu título de Doutor
em Química. Na Europa, conheceu alguns cientistas da época e pessoas ligadas
com as atividades de imigração onde amadureceu seus ideais de empreendedor.
Foi em Londres, aonde veio a conhecer João Jacob Sturtz, cônsul geral do Brasil
na Prússia, que se achava na Inglaterra. Sturtz, além de diplomata, tinha muitos
interesses pelo Brasil, conhecia os seus problemas e era um entusiasta das suas
possibilidades e do seu futuro, soube transmitir ao Dr. Blumenau a sua admiração
pelo Império de que era representante. No Brasil, possivelmente vendo nestas
terras a possibilidade de enriquecer, deu início às suas viagens e planos para a

6 Existem peças no National Museum of the American Indian em Washington, nos Estados
Unidos.

164
fundação de uma colônia (FOUQUET, 1974, KIEFER, 1997; SILVA, 1988).7

Na Alemanha, agentes de imigração juntamente com o Dr. Blumenau iniciam


uma campanha de imigração para o Vale do Itajaí. O prometido, a princípio, aos
imigrantes era a possibilidade de se tornarem proprietários de grandes lotes de terra,
essa era uma das motivações que envolvia o discurso das companhias de migração.
Para conquistar a vontade das pessoas, o Dr. Blumenau espalhou a propaganda de que
a vida na América poderia ser muito mais fácil que as condições na Europa naquele
momento. Conforme Santos (SANTOS, 1973) havia preocupação em se convencer
o europeu que este ou aquele lugar era mais conveniente para se escolher, criando-
se imagens propícias à decisão. Surgem assim folhetins de propaganda, artigos em
jornais e livros elaborados por agentes interessados, de um modo ou de outro, na
colonização.

O período estável e bem-sucedido no Vale do Itajaí teve início em 1850,


com a fundação da colônia Blumenau, seguida em 1851 pela fundação da colônia
Dona Francisca (atual Joinville) mais ao norte, seguida pela fundação da colônia
Brusque, em 1860, às margens do rio Itajaí-Mirim, esta última por iniciativa não
de particulares, como as duas anteriores, mas por obra do governo da Província de
Santa Catarina (SANTOS, 1963). Neste cenário e de acordo com Santos (1973), os
índios foram envolvidos pelas frentes de colonização no Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná, ameaçando sua sobrevivência. Em Santa Catarina, pelas entradas
nos campos de Lages, no século XVIII, a presença dos Laklãnõ/Xokleng e Kaingang
foi confirmada pelos ataques aos tropeiros. No mesmo período, com o povoamento
de Itajaí, outras notícias surgiram de ataques dos Xokleng. Mas é em Blumenau que
eles entram para a história.

E foi povoando a mata de bugreiros,8 que a colonização prosseguiu pelo Vale


do Itajaí. Com o avanço da colonização estreitava-se cada vez mais o cerco das matas
onde se refugiavam os índios e davam-se os conflitos. Nos primeiros anos deste século,
em plena vigência do regime republicano, todos os governos estaduais e municipais

7 Porto Alegre: Federação dos Centros Culturais “25 de julho”, 1974.


8 Indivíduos especializados em atacar e exterminar grupos indígenas. Agiam sem realizar
qualquer tentativa de pacificação dos índios. Na verdade, esses “batedores do mato” tratavam
de dizimar todos os indígenas que encontravam. Já palavra “bugre”, comumente difundida
no Brasil, usava-se para designar os grupos que impunham maior resistência aos projetos de
ocupação do território. Referia-se à índole dos nativos (incivilizado, preguiçoso, selvagem),
e aos que eram contrários ao contato e catequização, em uma tentativa de justificar a
perseguição aos mesmos. Segundo Santos op. cit., as denominações dadas ao povo foram as
mais variadas: “Bugres”, “Botocudos”, “Aweikoma”, “Xokleng”, “Xokrén”, “Kaingang”.

165
das zonas que tinham indígenas hostis, tanto o de Santa Catarina como o do Paraná,
destinavam verbas orçamentárias especiais para custear o serviço que prestavam os
bugreiros (RIBEIRO, 1982). Os Jê do Sul agora passam a constituir-se “problema”,
a reagir contra a invasão dos “civilizados”. As correrias indígenas tornam-se mais
constantes e em contrapartida os “brancos” reagem com as “patrulhas de pedestres” ou
com a contratação de “bugreiros” para “afastar” os índios (SANTOS, 1973).

As comunidades Jê que no Sul do Brasil, até então, usufruíam do território sem


demarcações políticas ou barreiras, após a promulgação da Lei de Terras,9 tiveram que
assistir ser tomado esse espaço e incorporado ao imigrante, foram sendo afastados
à força de seu território, com a justificativa de que andavam dispersos e não eram
civilizados. Lembrando que, para os nativos, não havia as divisões políticas, eram
limitados, em alguns casos por barreiras geográficas, físicas, mas não conheciam as
demarcações políticas por estado. Transitavam pelos territórios conforme a eficiência
de exploração de recursos em um espaço. Com os grupos Kaingang a experiência de
contato não se diferenciou muito dos Laklãnõ/Xokleng. Estes tiverem que se adequar
às circunstâncias do novo momento em que estavam. Conforme Tommasino (1998),
a experiência de contato exigiu que os Kaingang se adaptassem às novas condições
históricas, imprimindo alterações múltiplas no seu padrão de vida.

A construção do tempo e do espaço atuais implicou a incorporação e


ressignificação de elementos novos, assim como a preservação de elementos tradicionais,
no novo contexto, ganhou novos significados. Em Santa Catarina, conforme Santos
(1973), os índios reagiram ao contato com os “civilizados” ao verem seu território, dia
a dia, fugir-lhes das mãos. Os colonos, por sua vez, reclamavam e odiavam o índio pelo
constante estado de insegurança, oriundo dos frequentes assaltos. Cada parte sentiu a
necessidade de garantir a superioridade de sua identidade para assegurar os recursos
materiais em disputa, a hegemonia do território estava em jogo e, a exposição dessas
diferenças traduziram o desejo desses diferentes grupos sociais de proteger o acesso
privilegiado aos bens, “a identidade e a diferença mostrando a sua estreita conexão com
relações de poder” (SILVA, HALL, WOODWARD, 2003, p. 8).

Quando as frentes de imigração começaram a criar os seus espaços no Brasil,


desde a primeira incursão, sabiam da existência de índios no território. Em nenhum
momento consideraram a terra como sendo pertencente a esses povos, de seu uso e
de seu direito. Para justificar esse episódio, optaram por não considerar o índio como

9 Essa foi a primeira iniciativa no sentido de organizar a propriedade privada no Brasil.


Sancionada por D. Pedro II, estabelecia a compra como única forma de obtenção de terras
públicas.

166
um humano civilizado. Na época, sugeriram uma superioridade dos padrões europeus
sobre os chamados “selvagens”. Esses “diferentes” foram considerados inferiores
e a partir daí foram criadas várias alegações e pretextos evasivos, usados por quem
procurou de maneira ardilosa levar à conclusão os projetos de colonização do território
não somente do Vale do Itajaí, mas de todo o Brasil. Toda uma classe de adjetivos foi
usada para construir a identidade do índio em favor do europeu: selvagens, errantes,
bugres, agressivos, malandros. Além do contato dos imigrantes com os índios na
região, houve a visão do colonialismo que foi construída de maneira mais ampla, todas
as forças foram direcionadas para minimizar ou até mesmo eliminar esse “problema”.
Nesse “Novo Mundo”, os imigrantes se encontram com culturas absolutamente
diferentes da sua, nessa sua perplexidade e temor com o desconhecido “tomam-no
diferente para fazê-lo inimigo. Para vencê-lo e subjugá-lo em nome da razão de ele ser
diferente e precisar ser tornado igual, ‘civilizado’, para dominá-lo e poder obter dele os
proveitos materiais do domínio” (BRANDÃO, 1986, p. 8).

É notável que as referências às populações indígenas ficam estagnadas nas


narrativas dos encontros, dos contatos, com a história sempre priorizando a visão
romântica dos imigrantes do além-mar. “Não raro o passado remoto é distorcido
ou ocultado para impedir que raízes históricas sejam encontradas, explanando-
se apenas as origens das instituições coloniais” (LIMA, 2007, p. 17). Deu-se conta
que os usos do passado são um dos terrenos simbólicos mais engenhosos para a
construção e legitimação de identidades, e tudo nos leva a crer que essas omissões
continuam sendo perpetuadas. A nossa compreensão é a de que o silêncio da nossa
história, em se tratando dessas populações indígenas e demais grupos excluídos de
igual importância, precisa ser superado, pois do contrário, continua-se a promover
os interesses das ideologias (identidades) dominantes. Assim nos afastamos de “uma
memória histórica que sempre cultuou os elementos referentes ao poder político-
institucional ligados aos setores dominantes da sociedade brasileira” (FERNANDES,
1993, p. 275). Prosperando a falta de conhecimento (ignorância) que tem provocado
preconceitos, exclusões, desrespeito e equívocos, “na medida em que valores étnicos
não podem se sobrepor a princípios éticos” (LIMA, 2007, p. 23).

Nesse contexto, concordamos com Santos (SANTOS, 2003) que almeja que
sejam superadas as atitudes etnocentristas que se interessam pelo “outro”, querendo-o
entender somente por curiosidade, e não o sujeito cujas práticas sociais são ricas de
sentido e encontram seu lugar no conjunto complexo de uma cultura. O interesse pela
diversidade dos povos e culturas não deve se limitar à atração pelo exótico, e nem

167
deveria, pois, sua base é o relativismo cultural,10 que entende que todas as culturas, sem
exceção, são tão válidas quanto a nossa.

Memória e Identidade: o histórico construído

No entanto, vivemos e presenciamos o desafio dialético entre a memória


e o esquecimento (LE GOFF, 1990). São as memórias que se querem esquecer,
negligenciar, a “história oficial” que não só omite como renuncia à história desses
povos. Afinal, a memória que guardamos dessas comunidades que aqui estiveram
não é a de que “tivemos que combater esses bugres” para prosperar? Já não foram
todos eliminados durante a colonização? Como tratar da presença de sujeitos
historicamente fixos ao passado? São essas tendências de se situar essas comunidades
indígenas, principalmente as Laklãnõ/Xokleng e Kaingang, sempre no passado, que
fortalece a permanência de uma visão figurada.

O fato que aconteceu em Blumenau, como em todo o Brasil, em relação aos


povos indígenas, foi uma dominação combinada com a rejeição ao outro, um conflito
de identidades. Um processo que elegeu uma identidade como a “normal” em
comparação à outra. Conforme Silva, Hall e Woodward (2003), normalizar significa
determinar uma identidade como parâmetro para as demais. Um comportamento
irrefletido, onde um é eleito, e o outro fica à margem do que é aceito como normal.
Desta forma, as opções usadas foram reduzir a cultura do diferente à sua própria.
Não tendo êxito esta iniciativa com as comunidades Jê, utilizaram de outros métodos,
mantêm-se as diferenças: faz-se dela um conveniente pretexto para justificar a
opressão. Como resultado temos uma força que legitima a dominação e a exploração.
Já que os índios não vêm sendo considerados como sujeitos na história, segundo
alguns, merecem essa regra de inferioridade e discriminação. Segundo Monteiro
(2001), essa atitude colonial de classificar os povos que aqui estavam como facilmente
subordináveis em categorias naturalizadas e estanques era condição fundamental
como plano da dominação colonial.

Os indivíduos são constantemente postos em relação ao outro. As identidades

10 O relativismo cultural percebe a cultura como configuração saudável para os indivíduos


que a praticam, não concordando com a ideia de normas e valores absolutos, já que
as avaliações são relativas à própria cultura onde surgem. Ou seja, uma cultura deve
ser compreendida e avaliada dentro dos seus próprios moldes e padrões, mesmo que
estes pareçam estranhos e exóticos. O que vem muitas vezes contrariar os interesses
da cultura dominante que, quase sempre, nas situações de contato, não leva em
consideração alguns princípios humanitários (MARCONI, PRESOTTO, 2010).

168
sendo formadas, construídas, sempre em relação ao outro (CANDAU, 2011; 2002;
POLLAK, 1992; SILVA, HALL, WOODWARD, 2003). Trilhando o mesmo caminho,
identidade e a memória se inter-relacionam, onde posicionamentos da memória quase
sempre buscam apresentar uma identidade, Le Goff (1990) caracteriza a memória
pela sua função social, apresentando um “comportamento narrativo”, na ausência do
objeto ou do acontecimento que gera determinada memória, ela por si só, comunica,
estabelece-se uma relação entre memória e linguagem. A memória vai recebendo
solidez e disposição, conforme Pollak (1992), a memória redunda num relato, num
discurso, pois ganha forma à medida que é narrada. A narração memorial irrompe
como consequência de alguma inquietude, em momentos de conflitos e incertezas
associados a embates de identidades.

A partir dessa conjuntura temos o contexto que se formou no município de


Blumenau. Não pretendemos definir origens étnicas, colocar um grupo em vantagem
ao outro, mas dar espaço a “outras memórias” que podem colaborar para proteger
um patrimônio arqueológico; assim como culturas, diversificadas, múltiplas, e não
singulares. Essa dimensão em análise, na contemporaneidade, privilegia a forma
que a constituição de um passado histórico foi construída, onde recortes de situações
que aconteceram foram narrados de uma maneira parcial, atribuindo valores
positivos aos colonos, e como os pequenos fragmentos da luta dos que já estavam
no território foram apagados ou moldados a favor de uma explicação do vencedor.
De forma sutil e sugestionada foi escrita uma narrativa do dominante sobre “o que
precisa ser dominado”. E os poucos fragmentos de histórias que privilegiam a defesa
do Kaingang e Laklãnõ/Xokleng encontraram o véu da censura dessas narrativas que
são expostas e aceitas pela maioria. Os exemplos são espelhados no imigrante, nos
Governos da Província, que tiveram que atacar, subjugar, para não correr o risco de
falhar em seus objetivos.

Essa característica da memória que a permite ser induzida, também é


constatada por Meneses (1984), não só induzida como também forjada. O passado
social formalizado e instituído como modelo de valores, normalmente representa
o polo oposto da História. O momento inicial, os mitos de fundação de uma
população, geralmente não são referências originais numa trajetória de mudanças,
e isso é justamente abolir o tempo, abolir a história. “Ter consciência histórica não
é informar-se das coisas de outrora acontecidas, mas perceber o universo social
como algo submetido a um processo ininterrupto e direcionado de formação e
reorganização” (MENESES, 1984, p. 34).

Aqui, o desafio se mostra em associar o reconhecimento de identidades plurais

169
à preservação de um patrimônio cultural comum, e não somente o representativo de
um grupo. Afinal, o passado construído pelos imigrantes não é o passado do todo,
não faz parte dessa história os Laklãnõ/Xokleng e Kaingang que por aqui transitaram
e até mesmo construíram espaços. É o passado de um grupo por excelência, o
do imigrante na Colônia do Dr. Blumenau. A associação entre o poder do grupo
dominante e o seu discurso, tem como resultado uma história a partir do seu interesse.
O Governo Provincial e as Companhias de Imigração, atuaram como legitimadores
de um determinado projeto de sociedade com o qual estava em conformidade, para
formar o tipo de consciência que é típico de uma identidade regional, em confronto
com o “entrave do progresso”, o “bugre”. “Mas a mesma diferença necessária ao
entendimento é a razão do conflito, ou é o que se inventa para torná-lo legítimo,
quando inevitável. Sobretudo quando do conflito entre diferentes-desiguais um
estende sobre o outro o poder de seu domínio” (BRANDÃO, 1986, p. 7). Para os dois
grupos, Jê e imigrantes, se verificou o infortúnio e o padecimento, mas o apoio do
governo ocorreu somente para os imigrantes e não levou em consideração alguma o
partido dos “selvagens”.
Não se julgou necessária a reserva de terras para a colonização
dos indígenas na Província, deixando as ocorrências bélicas
repetirem-se na esperança, quem sabe, de que os povos
indígenas fossem mesmo, aos poucos exterminados, já que
sempre são apresentados nos documentos como entraves ao
progresso da Província (PERES, 2007).

Os Jê meridionais: Laklãnõ/Xokleng e Kaingang

Acredita-se que a origem11 e o começo da expansão de ancestrais longínquos


dos atuais Kaingang e Laklãnõ/Xokleng aconteceram a partir de 3.000 anos atrás,
aproximadamente. Populações proto-Jê teriam se deslocado de alguma parte do
Brasil Central, uma área ainda não exatamente definida, para o planalto meridional
(URBAN, 1992; SCHMITZ, ROGGE, 2011; 2013).

A família Jê é apenas uma variante do tronco Macro-Jê,12 da qual derivam

11 Não se trata de falar de ancestrais dos atuais Jê culturalmente idênticos e eles, já que uma
história tão longa como essa envolve muitos contatos, rupturas, alianças, mudanças que
repercutem inclusive na identidade étnica dos grupos.
12 O termo “Macro-Jê” foi proposto inicialmente por Mason em 1950, ao se referir a
um conjunto de línguas indígenas brasileiras, as quais relaciona com a família Jê,
conforme Rodrigues (1999).

170
as línguas Kaingang e Laklãnõ/Xokleng, entre outras. Estes dois grupos, por sua
vez, formam um subgrupo, os Jê Meridionais. Conforme Rodrigues (1999), o
tronco linguístico Macro-Jê é um dos maiores agrupamentos genéticos de línguas
da América do Sul. Compõem este tronco 12 famílias linguísticas: Boróro, Guató,
Jê, Kamakã, Karajá, Karirí, Krenák, Maxakalí, Ofayé, Purí, Rikbáktsa e Yatê. Mesmo
sendo as distintas línguas Kaingang e Laklãnõ/Xokleng pertencentes ao tronco
Macro-Jê, ainda não foi reconhecida distinção nos registros arqueológicos entre
estes dois grupos, que são semelhantes, mas entre os quais existem claras diferenças
linguísticas, sociológicas, biológicas e etnográficas (NOELLI, 1999). A língua é um
dos principais elementos de diferenciação étnica, embora não seja o único.

Sobre o território histórico ocupado pelos Jê meridionais, a discussão ainda não


chegou a um patamar de consenso, acreditamos, por ser mais coerente, a afirmação
de Reis (2002) de que a mobilidade dessas comunidades é justificada pelas estratégias
econômicas em relação aos tipos de recursos e à distribuição espacial deles. Quando à
mobilidade de assentamentos pode estar diretamente ligada à eficiência de exploração
econômica de um espaço. E no caso das comunidades Jê, são distintos os ambientes:
as paisagens de campos, as encostas com florestas, os vales, e o litoral atlântico. Os
Jê Meridionais, segundo Corteletti (2013) a partir da análise de dados provenientes
da arqueobotânica, pelo menos um século antes da chegada dos imigrantes ao Sul do
Brasil, “já dispunham de uma economia mista que os fixava mais ao território e não
exigia movimentos migratórios constantes”, pois ao que tudo indica já dominavam o
cultivo de alguns grãos, cereais e tubérculos.

Hoje, conforme comprovações arqueológicas, podemos afirmar com segurança


que a sociedade Jê meridional habitava desde o planalto de São Paulo até os planaltos
sulinos no Rio Grande do Sul, passando por Paraná e Santa Catarina, ainda agregando
áreas adjacentes, como por exemplo, a região das Missiones na Argentina, ao que se
pode entender, uma grande nação que se subdividia em grupos locais, que guardavam
parâmetros culturais e sociais muito semelhantes (SANTOS, 2003) . Quanto a isso,
concordamos com Silva (2001) referente à existência de um amplo horizonte cultural
Jê do Sul, englobando os planaltos, as encostas e o litoral, um sistema reconhecido
arqueologicamente. Desta forma, é seguro afirmar que houve uma sucessão de povos
pré-históricos ocupando e disputando parcelas do território que hoje é o estado de Santa
Catarina. A riqueza da fauna litorânea, associada à ocorrência, no planalto, de vastos
pinheirais, cujo fruto chamava uma variada quantidade de animais, fazia dessa região
uma área com fartura de recursos que, evidentemente, atraia e provocava disputas entre
as populações que pretendiam usufruí-la (SANTOS, 2004). O que nos leva a entender,

171
conforme Fausto (2000), que os sistemas sociais indígenas existentes às vésperas da
conquista não estavam isolados, mas articulados local e regionalmente. Ao que tudo
indica, vastas redes comerciais uniam áreas e povos distantes. Movimentos em uma
parte produziam efeitos em outra, por vezes a quilômetros de distância. O comércio, a
guerra e as migrações articulavam as populações indígenas do passado certamente de
um modo mais intenso do que observamos hoje.

Os Laklãnõ/Xokleng que se estabeleceram (foram aldeados) no Posto Indígena


Duque de Caxias em 1926 (situada ao longo dos rios Hercílio, antigo Itajaí do Norte
e Plate, que moldam um dos vales formadores da bacia do rio Itajaí-açu a 100 km a
oeste de Blumenau), são os últimos sobreviventes desse grupo no Brasil. Resistiram
a um processo brutal de colonização, iniciado a mais de um século que por pouco
não extinguiu por completo a sua cultura. O último censo (IBGE, 2019) feito em 2010
aponta um total aproximado de 2.400 pessoas vivendo na Terra Indígena Laklãnõ,
além de cerca de 20 famílias Xokleng/Laklãnõ morando nas periferias de Blumenau,
Joinville e Itajaí, em Santa Catarina. Os Kaingang atualmente vivem em mais de 30
Terras Indígenas. A situação das comunidades apresenta as mais variadas condições.
São aproximadamente 33.064 indivíduos (IBGE, 2010). “Os quais se espalham em
territórios localizados desde as Bacias hidrográficas do rio Tietê até os territórios das
Bacias hidrográficas do Atlântico Sul, localizadas nos estados do Paraná, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul” (LAROQUE, 2007).

Cultura Material: arqueologia, patrimônio cultural e outros valores

Um dos pontos positivos em se buscar elucidações em vestígios arqueológicos,


quando temos pouco suporte de registros escritos, é conseguir fazer as relações
necessárias para a contribuição de narrativas a uma história local. Que é o caso
específico na cidade de Blumenau. Em se tratando da cultura material, muito se
pode contar de um grupo, como por exemplo, a maneira pela qual empregavam as
suas atividades do cotidiano e sua relação com o meio ambiente através do uso que
faziam dos objetos materiais. A cultura material permeia os mais diversos segmentos
de uma sociedade ou indivíduo, é possível que revele a organização social, tecnologias
adotadas, hábitos, escolhas e padrões de comportamento. As sociedades indígenas com
os seus ornamentos e pinturas corporais para identificação e diferenciação de grupos
ou hierarquias, utensílios, armas de caça, ferramentas e diversos instrumentos, são
todos aparatos identificados como cultura material, todo o suporte físico para a sua
sobrevivência e comunicação.

172
Estudar uma determinada região significa compreender um mar de relações,
com muitas interações e interpretações possíveis, e ao tratarmos do patrimônio
arqueológico os seus artefatos nos apresentam elementos que podem ser considerados
como legados de culturas antepassadas. Heranças culturais podem complementar
determinadas narrativas bem como contribuir para desfazer equívocos na própria
história.

Cultura, conforme a Unesco (2003), é definida como o conjunto de características


espirituais e materiais, intelectuais e emocionais que distinguem um grupo social,
integram modos de vida, e os direitos fundamentais da pessoa, sistemas de valores,
tradições e crenças. Nesse contexto, são esses processos culturais acima identificados,
que irão produzir os bens culturais. Desta forma, o patrimônio arqueológico existe por
meio de objetos da cultura material,13 que de acordo com Azevedo Netto (2008), são
considerados fonte de informação do comportamento de grupos que os utilizaram,
e, por meio destes materiais, é possível entender os comportamentos humanos no
passado, “o conjunto de objetos recuperados pelo arqueólogo, parte da cultura material,
é um segmento significativo de um sistema cultural mais amplo”.

Explorando aspectos da territorialidade e fragmentos da cultura material desses


grupos e usando de ferramentas como estudos da cultura material, articula-se uma
proposição para gerar uma narrativa em torno da arqueologia pré-histórica e etnologia
indígena. Assim, a compreensão de vestígios de sociedades do passado por meio de
análises da cultura material, utilização de informações etnográficas e históricas, justifica-
se por formar uma compreensão diversificada do patrimônio cultural na cidade. Desta
forma, justificar a preservação do patrimônio arqueológico torna-se frequentemente
legítimo por diversas razões já apresentadas, que vão desde razões científicas às políticas.
Segundo Meneses (1984), os objetos da cultura material, independentemente de sua
expressão ou interesse estético, são essenciais para o conhecimento científico. Além
disso, os estudos do patrimônio arqueológico propiciam um melhor entendimento
de como os homens se organizam em sociedade, e como essas sociedades mudam
e se articulam durante o tempo. Há também a importância do valor simbólico dos
recursos arqueológicos, conforme Funari e Robrahn-González (2008), o fato de que a

13 O campo de estudos da cultura material não examina apenas o objeto material


tomado em si mesmo, mas sim os seus usos, as suas apropriações sociais, as técnicas
envolvidas na sua manipulação, a sua importância econômica e a sua necessidade
social e cultural, uma análise do material e do imaterial. Afinal, a noção de “cultura”
também não deixa de atravessar este campo. O estudo atento dos objetos da cultura
material faz com que esta especificidade da história esteja intimamente associada à
Arqueologia (BARROS, 2004, p. 4-5).

173
natureza não renovável destes recursos torna visível a insubstituível relevância de seus
contextos, valores que não podem ser medidos monetariamente; a preservação dos
vestígios arqueológicos é considerada como parte da própria estratégia de fomento aos
valores locais.

Em Blumenau, as pesquisas arqueológicas desenvolvidas são pontuais. Tratam


de obras de empreendimento público, acompanhadas pela Arqueologia de Contrato,
a partir da exigência dos órgãos ambientais, para diversos níveis de licenciamento,
quando da implantação de empreendimentos causadores de impacto ao meio
ambiente. Em consulta ao Sistema de Gerenciamento do Patrimônio Arqueológico
(SGPA) e ao Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), não foram encontrados
cadastros de sítios arqueológicos registrados para o município. Em visita ao Iphan
em Florianópolis, foram constatadas um total de seis pesquisas de Arqueologia de
Contrato no município entre os anos de 2010 a 2014.

No ano de 2010 foi realizada a Prospecção Arqueológica/Área de


Intervenção da Ligação Viária entre a Rua Bahia e a BR-470, Blumenau (Processo
n. 01510.000389/2010-86); em 2011 o Levantamento Arqueológico e Prospectivo
do Prolongamento da Via Urbana entre as Ruas Humberto de Campos e General
Osório, bairro Velha (Processo n. 01510.000283/2011-63); em 2012 o Diagnóstico
do Patrimônio Arqueológico para Implantação de Jazida de Extração de Gnaisse
e Saibro no Vale do Selke, Blumenau (Processo n. 01510.001188/2012-68) e o
Projeto de Pesquisa referente ao levantamento prospectivo, resgate, monitoramento
arqueológico e programa de educação patrimonial na área de influência do Ramal
de Seccionamento da LT 230 KV – Blumenau – Biguaçú/Subestação Gaspar –
Município de Gaspar-SC (Processo n. 01510.001555/2012-23); em 2014 a Prospecção
Arqueológica na Área de Implantação da Rodovia SC-412 Municípios de Blumenau e
Gaspar-SC (Processo n. 015.10.001107/2014-91). Em um caso, referente à Prospecção
Arqueológica na Área de Implantação da Rodovia SC-412 Municípios de Blumenau
e Gaspar-SC (Processo n. 015.10.001107/2014-91), houve o parecer contrário à
aprovação do projeto e à autorização da pesquisa nos termos em que foi proposto.

Todos os resultados apontaram para a ausência de vestígios que podem ser


associados a ocupações humanas pretéritas nas áreas diretamente afetadas pelas
obras de engenharia correspondentes aos empreendimentos. As conclusões que
se chegam são de que as obras civis projetadas incidem sobre locais já bastante
modificados e alterados em função da ocupação urbana. Pois muitos terrenos já foram
significativamente alterados por escavações e/ou sucessivos aterros. Outra conclusão,

174
é de que algumas parcelas do território não apresentaram condições de visibilidade
suficientes para garantir que se julgue a inexistência de materiais arqueológicos pré-
coloniais.

Referente à cultura material dos grupos Laklãnõ/Xokleng e Kaingang, de


modo geral, concluímos que os artefatos são encontrados ocasionalmente, quase
sempre por coincidência, em áreas rurais e em ocasião de trabalho de preparação
do solo para a agricultura. Alguns são doados aos museus da cidade, outros são
guardados ou presenteados. Não há a compreensão desses objetos como uma
relevante fonte histórica, permanecem no campo da curiosidade e da inércia. Os
objetos mais encontrados, arqueológicos e etnográficos, são os vestígios líticos,
representados por pontas de flecha ou lanças, lâminas, lascas, facas bifaciais,
raspadores médios ou pequenos, furadores, percutores, talhadores, grandes bifaces,
suportes de percussão, lâminas polidas de machado e polidores. Além dos materiais
líticos, temos remanescentes de cerâmica, cestarias, madeira e ferro. Como matéria-
prima para estes objetos, usavam de diversos materiais, como a madeira, fibras
vegetais, os ossos também eram aproveitados em instrumentos para caça e pesca.
Mas, obviamente, por resistir ao tempo, os que são encontrados com mais facilidade
hoje, são os que foram confeccionados com rochas (Figura 2 e 3).

Figura 2 – Lâmina polida em basalto (esquerda) e lâmina lascada bifacial em basalto


(direita), acervo do Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes/Valda de Oliveira Fagundes,
Blumenau. Fotografia do autor, 2016.

Fonte: Fotografia do autor, 2016.

175
Figura 3 – Ponta de projétil com aleta e pedúnculo em basalto (esquerda) e ponta de
projétil em quartzo hialiano (direita), acervo do Museu da Família Colonial, Blumenau.

Fonte: Fotografia do autor, 2016.

Em seguida as pontas de flecha, que são encontradas em grande quantidade,


há os exemplares de instrumentos bélicos dos Laklãnõ/Xokleng, que se compõem
principalmente do arco (vôio) confeccionado com a madeira rija e ao mesmo tempo
elástica da cabiúna.14 As flechas são de três espécies: as de guerra, com lâmina de aço
(Figura 4); as de caça, com ponta de madeira farpada unilateralmente; os virotes,
para a caça exclusiva de pássaros, ocasionando a morte pelo impacto, e não por
perfuração. Além destas armas, utilizavam a imponente lança, com uma lâmina de
aço que mede até doze centímetros de largura por trinta a quarenta de comprimento,
tendo a mesma forma da ponta da flecha de guerra (PAULA, 1924). Praticamente
todas eram decoradas com elaborados trançados. “Para confeccionar a lâmina de
metal dessa arma, era usado um simples pedaço de ferro trabalhado, aquecido por
dias, martelado com pedras e então limado com uma navalha afiada” (HENRY,
1941). Complementa Henry (1941), que curiosamente essa era uma das armas menos
utilizadas por eles. Pelo contrário, poderia se imaginar que era a arma ideal para o
combate, mas, ao que parece, sempre a deixavam em casa quando saíam.

14 Termo que designa uma árvore de madeira de lei preta, resistente e frondosa. O termo
original do Tupi Guarani significa: caab (árvore) e una (preta).

176
Figura 4 – Lança (Kalá) Laklãnõ/Xokleng com a ponta confeccionada em aço, acervo do
Museu da Família Colonial, Blumenau.

Fonte: Fotografia do autor, 2016.

Ainda, não podemos afirmar com certeza sobre a origem e autoria das
pontas de projétil encontradas em grande quantidade no município de Blumenau
(Figuras 5). O desafio que se apresenta é determinar se esses artefatos líticos foram
confeccionados pela Tradição Umbu ou grupos Jê.

Diferentes pesquisadores apresentam os grupos Jê Meridionais como


descendentes da Tradição Umbu (SCHMITZ et al, 2009; SCHMITZ, BEBER, 2011;
FARIAS, 2005; CLAUDINO, 2011) e questionam a possibilidade de “os numerosos
sítios com pontas de projétil de pedra da tradição Umbu, datados entre os séculos X
e XIII não poderiam ser dos antepassados desses Xokleng” (SCHMITZ et al, 2010,
p. 9). Outro argumento, segundo Farias (2005) é que muitos sítios que são definidos
como sendo da Tradição Umbu, se encontram em áreas onde temos relatos da etno-
história confirmando grande presença de grupos Laklãnõ/Xokleng em conflito com
os imigrantes no século XIX. Se referindo à Tradição Arqueológica Umbu, essa “se
estende por cima de todo o Brasil Meridional, transbordando para o Sudeste e o
Oeste” (SCHMITZ et al, 2009, p. 247). Ainda sobre a Tradição Umbu, “se tomarmos
o mapa dos conflitos dos Xokleng com os colonizadores nos séculos XIX e XX e o
sobrepusermos ao dos sítios com pontas de projétil da Floresta Ombrófila Densa desse
Estado (são mais de 250 sítios), teremos uma considerável coincidência” (SCHMITZ
et al, 2009, p. 250). De Masi (2005), propõe que grupos como os Jê Meridionais
mesmo sendo horticultores e ceramistas, não deixariam de efetuar atividades como a
caça e a coleta de alimentos, motivo pelo qual continuariam a produzir as pontas de
projétil para estes fins.

Outra proposta é a de os grupos pertencentes a Tradição Umbu, em um

177
processo contínuo, foi empurrada e encurralada no território pelas populações Jê, e
de alguma forma sendo absorvidos pela sua cultura (NOELLI, 1999, CORTELETTI,
2013). É uma discussão que ainda se encontra em aberto.
Figura 5 – Pontas de projétil coletadas no município de Blumenau em locais diversos,
acervo do Museu da Família Colonial, Blumenau.

Fonte: Fotografia do autor, 2016.

Considerações finais

Essa pesquisa é uma contribuição aos assuntos até então pouco explorados
na cidade de Blumenau referentes aos grupos Jê, sua cultura material e identidade.
Um dos objetivos foi trazer à tona a discussão, ainda muito pouco explorada, sobre
a ocupação pré-colonial desses grupos na região da pesquisa. De maneira alguma é
nossa pretensão encerrar o tema, pelo contrário, julgamos necessário novas pesquisas.
Pois pouco ainda se sabe sobre como se deu a ocupação dos grupos Jê no território que
hoje é este município. Quanto à escolha do método aplicado em campo, consideramos
que uma pesquisa com esse objetivo ainda não havia sido realizada no município, no
que diz respeito a busca de informações que levassem a caracterizar os locais que ainda
pudessem ser encontrados objetos da cultura material desses grupos e, ainda, indagar
junto aos entrevistados o que pensavam sobre esses artefatos. Mesmo a pesquisa
tendo uma abrangência reduzida, não impediu de apresentar resultados positivos
quanto à existência de objetos da cultura material de grupos pré-coloniais. O que nos
leva a presumir, que em futuras pesquisas, uma quantidade considerável de material
arqueológico ainda possa ser encontrada.

178
Dialogando com os moradores do município para perceber o que compreendem
a respeito desses objetos indígenas, qual o significado que se apresenta aos mesmos,
houve consonância, entre todos, de que esses objetos ligam a um passado distante, com
seus artesãos já extintos. São conhecidos como objetos dos “bugres”. E associam os
“bugres”, àqueles que intimidavam os seus antepassados.

Concordamos com os autores mencionados na pesquisa de que os limites e


os problemas que essas sociedades passaram a enfrentar, foi provavelmente, de início,
devido às diversas frentes de expansão do comércio e povoamento dos três estados do
Sul. A abertura de novos caminhos entre as cidades, para a expansão da agricultura e
do comércio, resultou cada vez mais em um estreitamento do território dos grupos Jê,
que se viram obrigados a seguir o fluxo para locais mais afastados. São esses alguns
dos motivos que podem nos ajudar a compreender a razão das incursões das tribos
Jê pela região do Vale do Itajaí, todo o movimento convergente, que limitou o seu
espaço original de livre circulação. E a partir desse momento mais uma situação se
impõe, dentro desse novo local, ao que as situações mais diversas já os encaminharam,
passa a ser um território em disputa, agravando-se ainda mais o cenário, que além das
adaptações climáticas, geográficas, ambientais, e no modo que buscavam seus recursos
e alimentos, passam por uma brutal situação de conflito com uma sociedade de cultura
completamente diferente da sua.

Todas as fontes etno-históricas e materiais permitem uma visão de um


panorama parcial da passagem ou ocupação humana nessa região. Como também
comprovam que o território era ocupado anteriormente à chegada dos imigrantes, ao
contrário do que o Governo Imperial alegava e o que muitos moradores da cidade
pensam. No caso dos Jê Meridionais, é evidente que a considerável mudança na cultura
material desses grupos, foi resultado do contato com os imigrantes no século XIX, além
disso, com parcelas consideráveis de seu território sendo tomado, tiverem que adaptar
os seus objetos utilitários e consequentemente, práticas cotidianas e rituais para outras
realidades. Vários objetos foram perdendo sua função, deixaram de ser produzidos ou
foram substituídos, o mesmo valendo para as diferentes práticas de rituais. A cultura
material foi alterando-se à medida que novas imposições e necessidades foram se
apresentando.

Fato que agravou esse processo de modificação da cultura Laklãnõ/Xokleng


foi o início do seu aldeamento em 1914 no Alto Vale do Itajaí, a partir desse momento,
deixam de praticar o ritual de perfuração dos lábios, as danças, entre outros costumes, e
são violentamente acometidos por diversas doenças desconhecidas por esses grupos até
então, reduzindo consideravelmente a sua população. Processos não muito diferentes

179
também enfrentaram os grupos Kaingang. Nesse contexto, não é impróprio se usarmos
a palavra genocídio, pois o Governo, naquele momento, tinha conhecimento do que
estava acontecendo, e autorizou o uso da força para a solução do “problema”, onde os
assassinatos eram entendidos como prática justificável.

Acreditamos que os Laklãnõ/Xokleng assim como os Kaingang, nunca


deixaram de ter a sua própria ordenação histórica desses acontecimentos, sempre
tiveram o seu entendimento das circunstâncias pelas quais passaram, no que em muito
pode não coincidir com a “história oficial”. Como foi colocado sobre os conflitos de
identidade, entendemos que o índio não foi apenas vítima do extermínio, da “limpeza
do território”, um coadjuvante em uma história alheia. Muito pelo contrário, apresentou
a sua resposta às situações impostas, teve as suas próprias experiências de reformulação
de sua identidade. São todos processos muito complexos e exigem diferentes análises e
abordagens para uma real compreensão dos fatos.

Os temas memória, identidade e cultura material estabeleceram relações entre


si, produziram significados e construíram fatos relevantes, mas essa dimensão em
análise, na contemporaneidade, privilegia a forma que a constituição de um passado
histórico foi construída, onde recortes de situações que aconteceram foram narrados de
uma maneira parcial, atribuindo valores positivos aos colonos, quanto a trajetória dos
outros grupos, foram apagados ou moldados a favor de uma explicação do vencedor.
De forma sutil e sugestionada foi escrita uma narrativa do dominante sobre “o que
precisa ser dominado”. E os poucos fragmentos de histórias que privilegiam a defesa
do Kaingang e Laklãnõ/Xokleng encontraram o véu da censura dessas narrativas que
são expostas e aceitas pela maioria. Entendemos que é necessário dar passagem a essas
“outras histórias”, permitindo um entendimento mais amplo dos fatos. Que se abra
caminho para uma abordagem que busque os significados das ações dos mesmos como
sujeitos históricos e sociais, plenamente conscientes de suas lutas e transformações. De
uma parcela da sociedade até então excluída como participante nesse processo.

Os Laklãnõ/Xokleng, que em sua maioria vivem hoje em José Boiteux, são os


descendentes de grupos que já estavam nessa região concomitante aos imigrantes, não
houve uma lacuna temporal, não foram “todos exterminados”, pelo contrário, continuam
presentes. Existem, tem uma cultura viva e atuante, fazem parte da história de formação
do município com todas as suas contribuições. Trata-se de povos que reiteram suas
identidades em um processo de luta constante, com a sua própria ordenação histórica.
Permanece um grande desafio entender a história de uma perspectiva a partir da qual
as populações indígenas têm um papel tão importante quanto. Partir para a busca de
novas informações, através de pesquisas comprometidas com a imparcialidade dos

180
fatos, é muitas vezes fundamental para a compreensão da sociedade que construímos
e das pessoas que nos tornamos. Infelizmente, ainda, se opta por não considerar as
construções desses grupos dentro do quadro histórico da formação do Brasil.

Referências

AZEVEDO NETTO, C. X. de. Preservação do patrimônio arqueológico: reflexões


através do registro e transferência da informação. Ciência da Informação, Brasília,
v. 37, n. 3, p. 7-17, set-dez. 2008.
BARROS, J. D’A. História da Cultura Material: Notas sobre um campo histórico em
suas relações intradisciplinares e interdisciplinares. In: BARROS, José D’Assunção.
Campo da História: Especialidades e Abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 1-17.
BRANDÃO, C. R. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
BRASIL. Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Censo demográfico 2010: o Brasil
indígena. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.
php/indios-no-brasil/o-brasil-indigena-ibge. Acesso em: 27 ago. 2015b.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico
2010: características gerais dos indígenas: resultado do universo. Rio de Janeiro:
IBGE, 2010. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/terrasindigenas/.
Acesso em: 27 ago. 2015a.
CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
CANDAU, J. Antropología de la memória. Buenos Aires: Nueva Visión, 2002.
CLAUDINO, D. da C. Arqueologia na encosta catarinense: em busca dos vestígios
materiais Xokleng. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Vale
do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2011.
CORTELETTI, R. Projeto arqueológico Alto Canoas – Paraca: um estudo da
presença Jê no planalto Catarinense. 2013. Tese (Doutorado em Arqueologia) –
Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
DE MASI, M. A. Projeto de Salvamento Arqueológico Usina Hidroelétrica de
Campos Novos – Curso Inferior do Vale do Rio Canoas. In: MILDER, Saul Eduardo
Seiguer (Org.). Anais do 1º Colóquio sobre sítios construídos. Santa Maria, LEPA
UFSM. 2005, p. 57-84.

181
FARIAS, D. S. E. de. Distribuição e padrão de assentamento – Propostas para
sítios da Tradição Umbu na Encosta de Santa Catarina. 2005. Tese (Doutorado em
Arqueologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2005.
FAUSTO, C. Os índios antes do Brasil. Rio De Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FERNANDES, J. R. O. Educação Patrimonial e Cidadania: uma proposta alternativa
para o ensino de história. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25-26,
p. 265-276, set-ago. 1993.
FOUQUET, C. O Imigrante alemão e seus descendentes no Brasil: 1808 - 1824
- 1974. São Paulo: Instituto Hans Staden; Porto Alegre: Federação dos Centros
Culturais “25 de julho”, 1974.
FUNARI, P. P. A.; ROBRAHN-GONZÁLEZ, E. Ética, Capitalismo e Arqueologia
Pública no Brasil. História, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 13-30, 2008.
FUNARI, P. P. A. Os Historiadores e a Cultura Material. In: PINSKY, Carla Bassanezi.
Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto, 2005. p. 81- 110.
GAKRAN, C. L. C. VÃJẼKY ÓG GOJ TÁ KAPÓ JÓ – Os Vãjẽky Saíram da Água:
Apresentação, Tradução e Comentário. 2015. Monografia (Licenciatura Intercultural
Indígena do Sul da Mata Atlântica) – Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2015.
HENRY, J. Jungle People: a Kaingáng Tribe of The Highlands of Brazil. Nova Iorque:
J. Augustin Publisher, 1941.
KIEFER, S. Blumenau: um lugar, uma idéia, uma pessoa. Blumenau em Cadernos,
Blumenau, Tomo XXXVIII, n. 6, jun. 1997.
LAROQUE, L. F. da S. Fronteiras Geográfica, Étnicas e Culturais Envolvendo
os Kaingang e suas Lideranças no Sul do Brasil (1889-1930). Antropologia, São
Leopoldo, Unisinos, n. 64, p. 3-343, 2007.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1990.
LIMA, T. A. A arqueologia na construção da identidade nacional: uma disciplina no
fio da navalha. Canindé, Xingó, n. 10, p. 11-26, dez. 2007.
MARCONI, M. de A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: Uma introdução. São
Paulo: Atlas, 2010.
MENESES, U. B. de. Identidade Cultural e Arqueologia. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 20, p. 33-36, 1984.

182
MELLO, A. A. S. Estudo Histórico da Família Linguística Tupi-Guarani: Aspectos
fonológicos e lexicais. 2000. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.
MONTEIRO, J. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e do
Indigenismo. 2001. Tese (Livre-Docência em Etnologia) – Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2001.
NOELLI, F. S. Repensando os Rótulos e a História dos Jê no Sul do Brasil a partir de
uma interpretação interdisciplinar. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, v. 3, p. 285-302, 1999.
PAULA, J. M. de. Memória sobre os botocudos do Paraná e Santa Catharina organisada
pelo serviço de protecção aos selvicolas sob a inspecção do Dr. José Maria de Paula.
Annaes do XX Congresso Internacional de Americanistas (Rio de Janeiro, de 20 a
30 de agosto de 1922), v. I, p. 116-137. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1924.
PATTÉ, A. N. Histórias Cotidianas Laklãnõ. 2015. Monografia (Licenciatura
Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2015.
PERES, J. A. A lei de Terras e os Xokleng: Santa Catarina (1850- 1890). XXIV
Simpósio Nacional de História, 2007. pp. 1-9 Disponível em: http://snh2007.anpuh.
org/resources/content/anais/Jackson%20Alexsandro%20Peres.pdf. Acesso em: 27
ago. 2015.
POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5,
n. 10, p. 200-212, 1992.
REIS, J. A. dos. Arqueologia dos Buracos de Bugre: uma pré-história do Planalto
Meridional. Caxias do Sul: EDUCS, 2002.
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no
Brasil moderno. Petropolis: Vozes, 1982.
RODRIGUES, A. D. Macro-Jê. In: R. M. W. Dixon; A. Y. Aikhenvald (Orgs.). The
Amazonian Languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 164-206.
SANTOS, S. C. dos. Índios e brancos no sul do Brasil: a dramática experiência dos
Xokleng. Florianópolis: EDEME, 1973.
SANTOS, S. C. dos. Os grupos Jê em Santa Catarina. São Paulo: UFSC, 1963.
SANTOS, S. C. dos. Encontros de estranhos além do “mar oceano”. Etnográfica,
Lisboa, v. 7, n. 2, p. 431-448, 2003.
SANTOS, S. C. dos. Nova história de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 2004.

183
SCHMITZ, P. I.; et al. Taió, no Vale do Rio Itajaí, SC. O encontro de antigos caçadores
com as casas subterrâneas. Antropologia, São Leopoldo, n. 67, p. 185-320, 2009.
SCHMITZ, P. I.; et al. Casas Subterrâneas no Planalto de Santa Catarina: São José do
Cerrito. Antropologia, São Leopoldo, n. 68, p. 7-78, 2010.
SCHMITZ, P. I.; ROGGE, J. H. 107 “casas subterrâneas” no início do povoamento
Jê Meridional em Santa Catarina: Rincão dos Albinos. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 21, p. 185-204, 2011.
SCHMITZ, P. I..; ROGGE, J. H.. Pesquisando a trajetória do Jê meridional.
Antropologia, São Leopoldo, n. 70, p. 7-33, 2013.
SCHMITZ, P. I.; BEBER, M. V. Em busca dos antepassados dos índios Kaingang.
In: CARBONERA, M.; SCHMITZ, P. I. (Orgs.). Antes do Oeste Catarinense.
Arqueologia dos Povos Indígenas. Chapecó: ARGOS, 2011. p. 243-268.
SILVA, S. B. da. Etnoarqueologia dos Grafismos ‘Kaingang’: um modelo para a
compreensão das sociedades Proto-Jê meridionais. 2001. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
SILVA, J. F. História de Blumenau. Blumenau: Fundação Casa Dr. Blumenau, 1988.
SILVA, T. T. da; HALL, S.; WOODWARD, K. Identidade e diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2003.
TOMMASINO, K. Os Kaingang e sua relação com o meio ambiente. Revista de
Divulgação Cultural, Blumenau, v. 64, p. 25-31, 1998.
UNESCO. Políticas culturais para o desenvolvimento: uma base de dados para a
cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003.
URBAN, G. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA,
Manoela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992. p. 87-102.
WITTMANN, L. T. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no
Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.

184
Relações familiares no ofício de benzer: narrativas dos
praticantes em São Miguel das Missões/RS

Juliani Borchardt da Silva

Ronaldo Bernardino Colvero

Eduardo Roberto Jordão Knack

Considerações iniciais - memórias, narrativas e identidades

Ao que se percebe, a trajetória de cada indivíduo parece ser determinante


na constituição das representações memoriais e de reconhecimento construídas
estrategicamente como marcadores das referências identitárias, bem como das relações
a serem formadas junto aos outros e ao ambiente circunscrito, o qual envolve elementos
naturais e edificados socialmente, expressões humanas que caracterizam possibilidades
de processos culturais e escolhas tomadas no interior dos grupos, influenciando e
orientando suas características e atuações.

A família, como primeiro grupo social de referência, é ambiente construído,


onde se compartilham conhecimentos e se estabelecem as noções iniciais que permeiam
a vida em coletividade e orientam as rememorações dos sujeitos, expressas em suas
narrativas. Pesa assim, a definição de valores e práticas a serem constituídos, tais como,
a própria noção de família, trabalho, amor, violência, morte, sexo, significações que
podem ser diferentes para cada indivíduo (SANCHIS, 2008, p. 74). Assim, a cultura
para o autor, não é uma construção isolada, mas uma criação coletiva, transmitida
via educação e tradição, parecendo aos membros que a produzem e compartilham
um universo “natural”. Considera-se ainda que, longe de ser um ambiente de simples
reprodução, os grupos que se relacionam entre si, descobrem no outro os contrastes
existentes em seus próprios valores, o que provoca, dentre outros aspectos, o
reconhecimento de suas próprias lógicas.

Conforme Halbwachs (2004; 2006) indica, de cada época de nossas vidas


guardamos recordações que não cessam de se reproduzir, e através das quais se perpetua
o sentimento de nossa identidade - essas recordações são conduzidas por “sistemas
de noções” diferentes que mudam ao longo do tempo, dependendo da proximidade,
manutenção ou distanciamento dos diferentes grupos sociais dos quais participamos e
interagimos. A família é o primeiro grupo social com o qual interagimos, constituindo
um marco significativo para memória dos sujeitos e de suas narrativas ao longo de toda
sua vida. Durante a infância, a família praticamente define o sistema de noções com os
quais as crianças interpretam o mundo. Na medida que a interação com outros grupos
(escola, associação profissional, igreja, círculos de amigos, etc.) aumenta, o sistema
de noções se amplia, se ressignifica, mas a família continua constituindo um marco
importante para analisar experiências do presente, seja para confirmar ou contrapor
novas noções, novos significados atribuídos aos valores.
Desta forma, é a partir da família que o sujeito se identifica, e, sendo este o
primeiro grupo a seu alcance, nele se esboçam trocas emocionais e de experiências que
além de influenciarem na formação das identidades, possibilitam o desenvolvimento
do sentido de pertencimento. Para Connerton (1999, p. 40-41) é na pertença a um
grupo, como a família, que os sujeitos são capazes de “adquirir, localizar e evocar suas
memórias”. Não existe reconhecimento algum que não seja o início da localização de
uma lembrança. No entanto, é a localização que explica a lembrança. A localização
implica determinar a que conjunto de noções do passado inserimos a lembrança,
contribuindo para organizações narrativas da vida dos indivíduos. O papel dos grupos
sociais no reconhecimento e localização é o de orientar o esforço da rememoração,
de “colorir as lembranças” de acordo com os valores e noções adotados pela família,
amigos, etc. O trabalho de localização consiste em um esforço crescente de expansão
pelo qual a memória completamente presente estende suas recordações em uma
superfície cada vez mais ampla, até que a recordação encontre sue lugar, assentando e
organizando os acontecimentos da vida de um indivíduo, estabilizando e atuando para
organizar sua identidade (HALBWACHS, 2004; 2006).
As identidades então construídas caracterizariam um ponto de partida
do qual os indivíduos constituiriam o conceito de si mesmos, experimentando a
multiplicidade de identidades e papéis sociais que adotarão ao longo de suas vidas
nos distintos espaços e grupos dos quais fizerem parte. Nesta mesma perspectiva,
Camargo (1991, p. 62) reforça que:
Ao mesmo tempo na família ocorre a transmissão de
valores materiais, culturais, morais, religiosos e outros nem
tanto pelo ensino, mas muito mais pela vivência; e assim
intensifica-se o processo da educação para a liberdade e
a responsabilidade, criando condições para escolhas dos
melhores meios para a realização da própria pessoa, e,
finalmente, o indivíduo tem uma retaguarda mais firme para
introduzir-se nos vários setores da sociedade como escola,
trabalho, lazer, religião, etc.

186
A transmissão é marcada, nas palavras do autor, como elemento chave
do processo familiar, do qual se compartilham e sustentam as representações
vivenciadas e modeladas pelo grupo. Muito do aprendizado não é, como bem
explica, ensinada de forma direta, sendo endossado por intermédio da convivência,
observação e significação informal entre seus membros. Assim sendo, Bordieu
(2001, p. 09) defende que a produção simbólica produzida culturalmente é sistema
de comunicação e conhecimento que estrutura as realidades numa ordem lógica
ao coletivo. Desta maneira, segundo o autor, cumpre-se ainda uma função política
por meio dos sistemas simbólicos produzidos, ao passo que os mesmos impõem
ou legitimam relações de poder e dominação de um grupo perante outro, expondo
assim interesses que definirão as posições sociais das relações estabelecidas entre os
indivíduos e coletivos.

Como bem defende Sanchis (2008, p. 78), novos acontecimentos e situações


ocorrem o tempo todo no interior dos grupos, fazendo-os reagir criativamente,
desenvolvendo como consequência “novas situações” que promovem adaptação,
mudança e inovação. Pollak (1992, p. 204) referencia ainda que ninguém é capaz
de produzir uma autoimagem isenta de mudança, de negociações e transformações
diante dos outros. Pode-se aduzir que neste processo a cultura se transforme e se
reforce cada vez mais em pequenos grupos, como a família, por exemplo.

Importante ainda considerar a relação conflituosa existente entre memória


e identidade, ao passo que disputas se tornam árduas no reconhecimento e nos
investimentos a serem produzidos coletivamente no trabalho de definição colocado
como referência ao grupo. Sá (2007, p. 08) compactua com esta ideia ao afirmar que
a determinação sócio-cultural da memória não envolve a consideração apenas de
processos de construção sócio-cognitiva da realidade, mas também da modelação
dos interesses que variam também por questões afetivas. Nesta direção, Pollak (1992,
p. 204) ressalta ainda os processos de negociações que envolvem memória e identidade,
os quais não devem ser vislumbrados como essências de uma pessoa ou grupo.

Tal perspectiva de identidade vai ao encontro das considerações de Hall


(2002), que rompe com essencialismos identitários, indicando que as identidades
no mundo contemporâneo estão em estado constante de construção. “O sujeito,
previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando
fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2002, p. 12). As identidades são construídas
historicamente, sujeitas a constantes mutações de acordo com experiências que
se desenrolam no presente. É a partir do presente que os sujeitos (re)organizam

187
suas experiências e projetam perspectivas do futuro, ajustando sua identidade no
momento em que rememoram o passado.

Memórias, identidades e narrativas dos benzedores de São Miguel/RS

Como prática cultural tradicional na localidade de São Miguel das Missões,


no Rio Grande do Sul,1 o ofício de benzer se coloca como elemento marcante da
identidade e da cultura local. Dessa forma, é importante discutir aspectos relacionados
à narrativa exposta por alguns de seus praticantes no tocante às suas relações familiares
para compreender como suas experiências contribuíram para que se dedicassem a
essa prática. A pesquisa junto aos praticantes dos benzimentos na localidade de São
Miguel se denota recente2 e, ainda carente de muitas abordagens, é campo fértil para
análises no que diz respeito às representações simbólicas e religiosas da região. Por
ser prática cultural, sua constante observação pode manifestar os jogos, adequações,
alterações e negociações que o ofício produz no seio da sociedade.

Os benzimentos, realizados por homens e mulheres, consistem em uma


prática de cura onde seus praticantes (os benzedores e seu público) acreditam curar
diversos males, tanto do corpo quanto do espírito, constituindo uma atividade que
faz parte do imaginário e da memória da comunidade. Além de ser uma prática
destinada a curar males e a proteger as pessoas, os benzimentos expressam uma
forma de vida, de relações pessoais, familiares e com a comunidade em que esses
sujeitos estão inseridos, envolvendo crenças, superstições e a religiosidade dos
praticantes. Essa prática está ligada a história da Região das Missões, se entrelaçando
com influências indígenas e africanas, constituindo um ofício sincrético e híbrido.
(SILVA, 2014a; 2014b). O presente trabalho busca entender o papel da memória na
construção de narrativas de vida dos benzedores Miguelinos.

É imprescindível, portanto, compreender as relações estabelecidas entre


os benzedores da localidade Miguelina no que se refere aos vínculos familiares

1 São Miguel das Missões tem origem no antigo povoado de São Miguel Arcanjo, datado
de 1687. Hoje, município do Rio Grande do Sul, conta com uma população de 7.421
habitantes, detentor do único Patrimônio Cultural da Humanidade do sul Brasil, declarado
pela UNESCO em 1983. Embora a cidade seja conhecida por esse patrimônio, com
intensa atividade turística pela região das missões, o ofício dos benzedores é praticamente
desconhecido pelos visitantes de outras cidades, estados e países que passam pela localidade
para conhecer o Parque Histórico Nacional das Missões. (SILVA, 2014a).
2 Para maiores informações sobre essas pesquisas, consultar: SILVA, 2014a; SILVA,
2014b; SILVA, COLVERO, KNACK, 2019.

188
rememorados na atualidade, a fim de vislumbrar através da oralidade marcas
produzidas assim como as influências em cada indivíduo em sua formação identitária
enquanto benzedor. Em entrevistas realizadas procurou-se a produção de uma escuta
que contemplasse as realidades vivenciadas por sujeitos advindos, em sua grande
maioria, de localidades interioranas da região missioneira e extrair dos mesmos,
memórias que representem marcas de suas vidas.

É o que expressa, por exemplo, a benzedeira Rosa Maria Cortez do


Nascimento:3
Rosa: O pai era uma pessoa que só trabalhava na lavoura.
Era uma pessoa bruta. Meu pai era uma pessoa muito bruta
com a gente, muito enérgico e hoje eu vejo que não precisava
existir aquilo. Mas existia. E eu acho que Deus fez aquilo pra
dobrar ele porque ele era uma pessoa ignorante, bruta e que
não acreditava em nada. Então a minha mãe sempre dizia
“credo Turíbio porque fazer isso”. Era bruto, era bravo.
(...)
Ele passou dias e dias, semanas e semanas, que ele não
comeu, que quase não dormiu, que passou encerrado
fazendo orações de joelho pedindo e aquilo dali transformou
ele assim do nada. Ele começou a enxergar mais as pessoas
e ajudar mais as pessoas (ROSA MARIA CORTEZ DO
NASCIMENTO, 2018).

Rosa, ao longo da entrevista manifesta em sua narrativa as mudanças que


seu pai teria passado, sendo ela participante e testemunha destes momentos, o qual
destaca o desejo repentino do mesmo em começar a ajudar as pessoas. Para isso,
Turíbio teria realizado uma espécie de purificação para que merecesse bênçãos e o
dom da cura. Após este episódio, Turíbio Cortez, seu pai, instaura um centro espírita
e de umbanda na localidade onde residiam, São Lourenço, interior do município de
São Luiz Gonzaga. Neste quadro, seu pai teria deixado de ser um homem bruto, se
tornando num “anjo” e “tronco” destas práticas na região. Para Rosa, esta mudança
foi ocasionada pela provação da qual ele necessitava passar para evoluir como ser
humano e homem.

Lembranças como esta, fazem com que a entrevistada exalte a imagem do


pai como homem que passa a atender e cuidar das pessoas, se tornando referência
na região através de seu centro e das visões espíritas que possuía. Assim, Rosa passa

3 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Rosa, São Miguel


das Missões/RS.

189
a acompanhar o mesmo nas atividades vindo a ser seu braço direito nas ações do espaço
de fé então criado. Relata que parou com este ofício após se casar e ter que se dedicar
ao marido e seus seis filhos. Turíbio, que segundo Rosa, dentre outras coisas, benzia
para lavoura e pragas, era solicitado por muitos na localidade. Essa referência aponta ao
ambiente vivido pela entrevistada e sua família na época, quer seja, a de uma localidade
interiorana e do trabalho na agricultura basicamente para a subsistência.

Identifica-se, desta maneira, a necessidade de uma prática espiritual no


contexto apresentado pela entrevistada. A fé que passa a ser desempenhada pelo seu
pai se torna influência para a superação dos momentos difíceis, os quais se destacam
em sua infância e juventude. A recorrente palavra “bruto” manifestada em sua fala
contrapõe ao surgimento de uma pessoa com atitudes diferentes desta. Caracteriza,
portanto, a iniciação de seu pai nas práticas espirituais como um ritual de passagem
necessário e que, de alguma forma, o legitima como tal. Apesar disso, as ações
deste no seio da família são marcas apresentadas por Rosa, fato que rememora na
atualidade em um discurso mais “bonito” para a figura de Turíbio.

Esta realidade aparece também na fala de Romilda de Moraes4 quando


indagada sobre sua vida na infância:
Romilda: Era boa! Era boa, eles não era ruim pra gente não.
Só se agente desobedecia daí o relho pegava senão era uma
maravilha (silêncio).
(...)
Barbaridade, Deus me livre. Tinha que ir pra roça trabalhar
desde os oito anos. E se não fosse a vara pegava. Eu pegava
até no arado do boi, boi xucro, tenho o sinal aqui oh (mostra
uma cicatriz na perna). (silêncio).Tu conhece um arado de
boi filha? Agora eu fico olhando, os novo não estão mais
igual a gente não (ROMILDA DE MORAES, 2017).

Romilda traz relatos de uma realidade onde a infância inexiste. Sua mãe falece
aos 42 anos de idade deixando três filhos pequenos para serem criados pelo pai, que
igualmente ao caso de Rosa, era rígido e violento na criação das crianças.

Os contextos do trabalho e da necessidade permeiam este período narrado pela


entrevistada, da qual as marcas não apenas foram gravadas na memória, mas também
no corpo, como a cicatriz produzida quando de acidente com arado de boi na lavoura.
Silêncios e pausas durante a entrevista quando da abordagem deste tema, caracterizam

4 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moraes,


São Miguel das Missões/RS.

190
ressignificação de memórias dolorosas das quais Romilda não sente falta na atualidade.
A reconstrução memorial destes fatos é, segundo Candau (2012, p. 09), mais do que
uma tentativa de reconstrução fiel do passado, mas o enquadramento destes a fim de
alcançá-los quando necessário bem como de conviver com os mesmos na atualidade.
Assim, uma nova imagem pode ser construída, incluindo ou excluindo elementos que
modelam as identidades dos indivíduos (CANDAU, 2012, p. 16). Como bem lembra o
autor, assim como memórias auxiliam na construção de identidades, também podem
contribuir para sua desconstrução devido a cargas emocionais fortes que podem ser
entendidas como reminiscências de um passado que não cessa, pode até ser silenciado
em alguns momentos, mas transformações do presente podem fazer tais lembranças
aflorarem, ressignificadas por novas noções, novos valores que confrontam referenciais
identitários, desestabilizando narrativas de vida.
Romilda se faz benzedeira desde os seus trinta anos de idade e inicia sua
atividade após um câncer do qual teria se curado após súplicas a Deus. Apesar de
ter buscado suporte médico científico bem como realizado cirurgia para a retirada
do tumor que lhe afetava a mama, conta que seus pais eram benzedores. Ambos
praticantes do espiritismo a teriam incentivado a aprender o ofício, mas a mesma
relutante expressava aos mesmos que tudo aquilo era “amolação e que desejava
aprender a trabalhar”.5 Como ponto marcante em sua vida relata ainda que foi
praticamente forçada a casar:
Romilda: Foi meu pai que queria e naquele tempo era o pai
que mandava e não tinha de não querer.
Juliani: Com que idade foi isso?
Romilda: Com dezoito anos. Era o ritual daquilo, todos.
Tinha que sair de casa (ROMILDA DE MORAES, 2017).

Expõe-se, desta forma, um contexto em que a vida da mulher era determinada


pela figura masculina do pai, onde a entrevistada necessitou casar para sair de casa,
provavelmente por aspectos financeiros, viabilizando seu sustento e estabilidade para
um futuro. Traz este aspecto como um ritual necessário a ser realizado, ao mesmo
tempo em que indica que está também era a realidade de outras jovens à época as
quais saiam do controle do pai para a obediência ao marido, quer seja, de outra figura
masculina, valor atribuído, construído por um sistema de noção mergulhado na
família. O casamento gera três filhos, entretanto, a relação não dura, pois segundo
a entrevistada conta, “por não aguentar e ser ruim”.6 Com a separação se muda de
5 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moares,
São Miguel das Missões/RS.
6 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moraes,

191
Caibaté/RS para a localidade de Carajá, interior do município de Entre-Ijuís/RS, onde
parou de benzer. Possuía residência se localizava distante de outras, o que dificultava
o convívio e as relações interpessoais.

Uma vez separada e residindo a cerca de dez quilômetros de distância de


outras residências, permanece em torno de dez anos trabalhando em uma fazenda
como cozinheira para peões, deixando de exercer diretamente seus benzimentos.
Manifesta, porém, que não sofreu diante desta situação, provavelmente por estar,
apesar das dificuldades, numa situação melhor daquela vivida anteriormente.

Outra situação semelhante também é apresentada por Jovencilio do


Nascimento7 quando questionado sobre sua infância:
Jovencilio: Ah foi sofrida!
Juliani: Sofrida como?
Jovencilio: Agente só trabalhava, não tinha muito tempo
de passear, era bem diferente do que é hoje. Naquele tempo
crescia um pouco e já trabalhava, não tinha de jogar bola,
futebol nem existia naquela época. Brinquedo essas coisas
não existia (JOVENCILO DO NASCIMENTO, 2018).

Deste modo, apresenta uma realidade onde as dificuldades permeiam suas


vivências. Aspectos relacionados à necessidade do trabalho se fazem presente
refletindo em suas principais experiências quando criança junto com seus outros três
irmãos. Isso acarreta, dentre outras coisas, a falta de estudo resultante do período.
Questionado sobre o assunto, justifica que:
Jovencilio: Eu estudei até o terceiro ano sabe porque? Porque
naquela época não tinha um ano pra estudar uma matéria
então tu tinha o livro pra estudar, tu lia aquele livro e aí tava
pronto o livro e passava pro segundo, passava pro terceiro,
pro quarto e se quisesse fazer num ano tudo podia. Hoje não,
se tu tá no primeiro ano tu passa um ano no primeiro ano,
depois outro ano no segundo ano e assim por diante. Aquele
tempo não, era diferente, agente começava a estudar então
tinha o livro, estudou aquele livro passava pro segundo e
assim era (JOVENCILO DO NASCIMENTO, 2018).

Jovencilio desenvolve uma narrativa para justificar a falta de estudo, não


relacionando diretamente a falta de acesso à educação, mas por motivos relacionados

São Miguel das Missões/RS.


7 Entrevista realizada em 26 de março de 2018 na residência de Jovencilio do
Nascimento, interior de São Miguel das Missões/RS.

192
ao trabalho, recursos financeiros ou da inexistência de escolas. Desenvolve assim,
como já dito antes, um enquadramento de memórias com a qual possa conviver
atualmente, evitando, por exemplo, sofrimento. Ao mesmo tempo, contextualiza a
educação existente à época de sua infância, onde livros e manuais são utilizados como
base da educação de crianças e jovens, cenário este onde os profissionais existentes
para atuação no ensino eram praticamente inexistentes. Reflete assim, uma sociedade
de poucos letrados, onde o analfabetismo apontava altos índices no país.

A benzedeira Marlene Machado Cassiano relata também aspectos


relacionados à sua infância:
Marlene: Era difícil, mas era boa. Todo mundo trabalhava.
O meu pai era serrador e tinha uma serraria então a gente
tinha que puxar água pra colocar na caixa pra tocar a serra.
Nós era tudo pequeno, uns cinco ano e já ajudava tudo. A
gente meio ajudava e trabalhava (MARLENE MACHADO
CASSIANO, 2017).

A dicotomia apresentada na narrativa, onde sua infância teria sido


“difícil, mas boa” expõe uma compreensão de que a avaliação representada deste
período busca ativar uma memória que amenize as dificuldades vividas. Permite
como consequência, conforme defende Candau (2012, p. 141) que os indivíduos
reelaborem e narrem suas próprias histórias, o que pode ainda confrontar com
a de outros membros do grupo familiar. Assim sendo, faz com que os indivíduos
produzam uma autoimagem assim como do grupo familiar da qual faz parte.
Como ainda destaca Candau (2012, p. 143), a prosopopeia memorial, por exemplo,
mascara defeitos e enaltece qualidades. Característica assim é também vislumbrada
na fala de Cipriano Dornelles:8
Cipriano: Na época o pai era muito cruel no ensinamento.
Não tinha estudo, mas tu apanhava pra aprender a respeitar
os outros, ser uma pessoa digna. Não podia aparecer
quando tinha bastante gente e num olhar tu sabia e não
podia interferir nas conversas dos mais velhos. Levantava a
cadeira pros mais velhos e era assim o ensinamento. Agora
em dia tá tudo diferente não respeitam mais (CIPRIANO
DORNELES, 2017).

A rigidez na criação é manifestada de forma positiva, sendo para Cipriano


necessário ao seu aprendizado. Através do “apanhar” se transformou em uma “pessoa

8 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na Residência de Cipriano Dornelles,


São Miguel das Missões/RS.

193
digna”, o que na atualidade seria diferente, onde os mais novos não teriam o mesmo
respeito aos mais velhos. A violência caracteriza assim o meio pelo qual a educação
se efetivava, elemento presente também nas narrativas e memórias de outros sujeitos
(Laídes de Oliveira Leite, 2017, Aureliano José Jardim, 2018 e Alzira de Oliveira Leite,
2018). Cipriano transita com sua narrativa entre passado e presente, remontando o
tempo em busca de respostas à suas inquietações. Demonstra ao mesmo tempo uma
tentativa de superação do sofrimento, colocando as marcas que dela são resultado no
passado como autoridade e referência em sua vida no presente.

Por ter começado a trabalhar aos oito anos de idade para ajudar o seu pai a
“trazer o dinheiro para a mãe”, Cipriano não frequentou a escola, retrucando para
isso que:
Cipriano: A pessoa pra ser inteligente não precisa de
grande escolaridade, pelo menos no meu modo de pensar.
A pessoa pode não ter estudo, mas é inteligente, tu não
consegue passar a perna nele ou ser manipulado. A pessoa
não tem estudo, mas tem uma boa cabeça (CIPRIANO
DORNELES, 2017).

Manipula desta feita sua própria realidade, fazendo da necessidade um fator


positivo para sua vida onde apesar de não ter estudado, se construiu como pessoa
inteligente graças à sua “cabeça”, característica resultante da criação que recebeu dos
pais. Assim não poderia ser enganado e manipulado, sendo esta habilidade elemento
necessário à vida de uma pessoa, em especial no contexto onde viveu Cipriano.

É ainda nesta linha de experiências que a benzedeira Laídes Dutra da Silva9


apresenta:
Laídes: Eu sempre to falando pra essa juventude, nós era
dez filhos e minha mãe não se incomodava, meu pai não se
incomodava, era mesmo que não ter. Era serviço e serviço e
só! Rezava pra chegar o sábado (silêncio) (LAÍDES DUTRA
DA SILVA, 2017).

Apresenta as características rememoradas de sua infância onde apesar de ter


mais nove irmãos, os pais mantinham o controle sobre todos, que eram obedientes
e trabalhadores. Laídes, assim como Cipriano, tenta trazer essa vivência à atualidade
quando busca reproduzir em seu discurso que a educação do passado é melhor que
a do presente. Relembra ainda episódios referente às ações vividas aos sábados,

9 Entrevista realizada em 19 de junho de 2017 na residência de Laídes Dutra da Silva,


São Miguel das Missões/RS.

194
onde aspectos de sociabilidade através do trabalho aparecem como fio condutor das
relações familiares:
Laídes: No sábado nós varria tudo os terreiro e fazia
limpeza, matava porco, matava galinha, era coisa mais linda
do mundo pra mim era o sábado! Natal então a gente nem
sabia! A mãe dizia “essa semana é natal crianças! Temos
que lidar com as bolacha”. Tudo caseiro mulher, tudo, coisa
mais boa, que vida! A gente era pobre, feliz, mas não sabia!
(LAÍDES DUTRA DA SILVA, 2017).

O silêncio de Laídes seleciona elementos memoriais classificados e


devidamente organizados, passo este em que possui a capacidade de representar
de forma alegre e nostálgica o cotidiano de pobreza e do trabalho. Mobiliza desta
forma a trama narrativa de maneira significativa em sua vida, onde passado
apresenta sentidos de pertencimento e de legado os quais são necessários lembrar
no presente. Connerton (1999, p. 41) reflete neste sentido que toda recordação, por
mais pessoal que possa ser se relaciona com um conjunto de ideias, pessoas, lugares,
datas, palavras das quais o sujeito faz parte, ou seja, com toda a vida material e moral
que a influência. Pollak (1992) também indica, no mesmo sentido de Connerton
(1999), que a memória é constituída por acontecimentos, personagens e lugares,
elementos que estão relacionados com os grupos sociais dos quais fazemos parte e
com os quais interagimos.

Há também aqueles que diretamente manifestam que sua infância foi boa,
como no caso de Ordonesa Antunes Martins:10
Ordonesa: Foi boa né? (silêncio) E graças a Deus que até
agora tudo foi bom pra mim, sempre lutando, ajudando,
trabalhando numa casa ou outra (ORDONESA ANTUNES
MARTINS, 2018).

Denota-se na fala de Ordonesa, uma posição enfática quando do


questionamento sobre sua infância, apesar de efetuar silêncios e desviar o foco de
seu olhar no momento em que responde à pergunta e participa da entrevista. É direta
e rápida na explicação e busca logo mudar de assunto, deixando claro em sua ação
que não se sente confortável em abordar a temática. Isto porque, ao afirmar que sua
infância foi boa, apesar do trabalho e da luta, garante que o entrevistador não seguirá
questionando o assunto. Conta ainda que estudou apenas um ano pois seu pai foi

10 Entrevista realizada em 23 de março 2018 na residência de Ordonesa Antunes


Martins, São Miguel das Missões/RS.

195
trabalhar em uma fazenda onde não existia escola perto, não sendo assim a educação
escolar temática em sua vida.

De uma família com doze irmãos, sua mãe que também era benzedeira,
falece aos quarenta anos de idade vítima de câncer. Ordonesa fica com o pai e os
irmãos os quais auxilia na criação. Sua vida de trabalho necessita ser mantida até a
atualidade, onde mesmo com oitenta anos de idade e aposentada, relata que quando
pode trabalha como doméstica em uma casa de família. Reproduz, portanto, a prática
que sempre necessitou realizar ao longo da sua vida: o trabalho, onde ficar parada,
segundo suas palavras, “faz mal (...) e não consigo”. A superação das dificuldades é
também manifestada quando narra que:
Ordonesa: Depois que morreu meu marido fiquei só eu
pra trabalhar e o gurizinho era pequeno e eu levava ele no
bercinho e botava ele na sombra na casa da mulher que eu
ia trabalhar. Daí eu ia lavar roupa, trabalhar, limpar a casa
pra ela. E assim nós vivemos. Mas graças a Deus nunca me
faltou nada na minha casa, sempre com o congelador sempre
cheio de tudo que era coisa de comer. Graças a Deus nós
trabalhava (ORDONESA ANTUNES MARTINS, 2018).

O menino de que a entrevistada se refere é seu neto, filho de sua filha


de criação. Após a morte do marido precisa trabalhar para sustentar ambos,
referenciando que desta forma nunca teria faltado nada em sua casa. O trabalho
é assim, também definição da posição social ocupada, conduzindo desta maneira
conflitos, práticas sociais e produções simbólicas, as quais segundo Bordieu (2001,
p. 14) faz crer, confirmar ou transformar as visões de mundo construídas entre os
sujeitos, seja através da força ou do reconhecimento. Portanto, conforme reforça o
autor, se estrutura um poder de construção da realidade, o que legitima e domina
uma classe sobre a outra. Relações de trabalho e de educação igualmente são expressas
pelo benzedor Ouriques Garcia de Jesus:11 “ Desde os seis anos, carpindo, plantando
milho, envergando terra com arado de boi, amansando boi, tropiei, tudo isso eu fiz
pra sobreviver. Tinha que fazer, a vida era essa” (OURIQUES GARCIA DE JESUS,
2017).

11 Entrevista realizada em 31 de dezembro 2017 na sede da Secretaria Municipal de


Turismo de São Miguel durante a realização do Encontro de Benzedores. São Miguel
das Missões/RS.

196
Considerações finais

O reconhecimento dos fatos expostos pelos interlocutores desta pesquisa,


ou seja, parte dos benzedores que atuam nos dias atuais na localidade Miguelina
caracterizam vivências das quais refletem e formulam a história de vida de cada um.
A família, como espaço produtor e reprodutor de práticas sociais, igualmente auxilia
na constituição das identidades a serem vividas por cada indivíduo ao longo de sua
vida. Assim, denota-se nas expressões compartilhadas que o período de infância e
juventude destes sujeitos, em sua grande maioria, foi marcado pelo trabalho e pela
rigidez da educação.

A falta da educação formal, ou seja, a da escola, é elemento marcador na


realidade de praticamente todos, sendo isso, provavelmente, determinante para as
posições sociais ocupadas na atualidade por estes sujeitos. Todos estes fatores, os quais
parecem pouco, determinam, direta e indiretamente, o lugar que cada um ocupará
no mundo, bem como a forma que se relacionarão com os outros, a sociedade e sua
família. Assim sendo, pode-se indicar que o vivido pelos interlocutores, manifestado
através de suas narrativas, auxiliam na construção da imagem que os mesmos
desempenham enquanto benzedores na localidade Miguelina.

Referências

BORDIEU, P. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz (português de


Portugal). 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
CAMARGO, M. Valores e Experiência humana: ideais e desafios da vida e da morte.
Petrópolis: Vozes, 1991.
CANDAU, J. Memória e Identidade. 1 Ed. São Paulo: Contexto, 2012.
SÁ, C. P. de. Sobre o campo de estudo da memória social: uma perspectiva
psicossocial. Psicologia: Reflexão & Critica, 2007.
CONNERTON, P. Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora, 1999.
HALBWACHS, M. Los marcos sociales de la memoria. Rubí (Barcelona): Anthropos
Editorial; Concepción: Universidad de la Concepción: Caracas: Universidad Central
de Venezuela, 2004.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

197
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7.ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5,
n. 10, 1992, p. 200-212.
SANCHIS, P. Cultura brasileira e religião... Passado e atualidade... Cadernos Ceru,
série 2, v. 19, n. 2, dezembro de 2008.
SILVA, J. B. da. Benzimentos: estudo sobre a prática em São Miguel das Missões
(RS). Santo Angêlo: FuRI, 2014a.
SILVA, J. B. da. Benzimentos: estudo sobre a prática em São Miguel das Missões
(RS). Dissertação (Memória Social e Patrimônio Cultural). Pelotas: Universidade
Federal de Pelotas, 2014b.
SILVA, J. B. da; COLVERO, R. B.; KNACK, E. R. J. Percepções de vida e de morte
na prática dos benzimentos: alteridade, significados e imaginários nas relações de
cura. In: SANTOS, Amanda Basilio; BRAHM, José Paulo Siefert. (orgs.). Morte e
simbolismo na cultura ocidental. Pelotas: Basibooks, 2019.

Fontes orais
Cipriano Dornelles. Entrevista realizada em São Miguel das Missões, 27/12/2017.
Jovencilio do Nascimento. Entrevista realizada em São Miguel das Missões,
26/03/2018.
Laídes Dutra da Silva. Entrevista realizada em São Miguel das Missões, 19/06/2017.
Marlene Machado Cassiano. Entrevista realizada em São Miguel das Missões,
31/12/2017.
Ordonesa Antunes Martins. Entrevista realizada em São Miguel das Missões,
26/03/2018.
Rosa Maria Cortez. Entrevista realizada em São Miguel das Missões, 27/12/2017.

198
A feijoada de Ogum: ancestralidade, memória e patrimônio
no Ilê Axé Ogunjá

Sandro Rodrigues da Silva

Artur Cesar Isaia

Introdução

No recorte da diáspora africana, o Brasil recebeu vários povos durante o


período escravista, mais intenso a partir do século XVI (BARROS; NAPOLEÃO,
2011). À imprecisa classificação de sudaneses e bantos, soma-se a imprecisão da
classificação desses africanos, os quais muitas vezes eram identificados pelos portos
de embarque e não pelas suas regiões de origem (MATTOS, 2009). Contudo, foi
no final do século XVIII e início do século XIX que o Brasil recebeu, com intensa
entrada pela Bahia, uma implantação e uma reformulação dos elementos de um
sistema cultural africano que perdura até os dias atuais. Para Munanga (2009), os
escravos africanos vindos para o Brasil são provenientes de três grandes regiões: 1)
a área ocidental africana, denominada de “costa dos escravos” (culturas iorubá ou
nagô, jêje, fons, ewê e fanti-ashanti); 2) área do Sudão ocidental ou área sudanesa
muçulmana (malês, incluindo peul ou fula, mandiga, haussa, tapa e gurunsi); 3) área
dos povos de língua banto (etnias que cobrem o sudoeste africano).

A aglutinação de diversos povos advindos da África, condicionados


exacerbadamente para o território brasileiro, deu origem ao Candomblé, “resultado
da reelaboração de diversas culturas africanas, produtos de várias afiliações, existindo,
portando, vários candomblés” (BARROS, 2014, p. 11).

Inicialmente, a amplitude do Candomblé se limitou ao estado da Bahia por


conta de ser a maior entrada portuária do país na época, sendo, posteriormente
disseminada às demais região do país. Por conta desta expansão, Prandi (2005)
denota que o Candomblé da Bahia possui equivalência ao Xangô de Pernambuco,
ao Batuque do Rio Grande do Sul e ao Tambor-de-Mina no Maranhão, por exemplo,
todas variantes do povo Ioruba.

Já os grupos que se organizaram e conseguiram perpetuar seus aspectos


culturais receberam o nome de suas cidades ou regiões iorubanas de origem como
“queto (keto), ijexá, efã”. Cabe destacar outras variantes que caracterizaram os nomes
dados às nações de Candomblé, pois além da iorubana, podemos encontrar as de
origem banta (angola e congo) e a de origem fom (jeje-mahim e jeje-daomeano)
(PRANDI, 2005).

Para Prandi (2005, p. 21) “os candomblés baianos das nações queto (ioruba)
e angola (banto) foram os que mais se propagaram pelo Brasil, podendo hoje, ser
encontrados em toda parte.” A observação de Prandi é importante para nosso
estudo, na medida em que nossa investigação foca-se na memória presente nas
relações sociais de um terreiro de origem angola e influências keto. Este terreiro
localiza-se na cidade de Gravataí, Rio Grande do Sul, tendo como autoridade maior
o Pai Paulinho de Ogum Xoroquê. Tal terreiro, pelas características mnemônicas,
rituais e doutrinárias apresentadas, não reproduz o batuque, dominante no estado,
apresentando um complexo cultural próprio. Neste complexo ritual e doutrinário o
Candomblé compõe-se com o Batuque rio-grandense, bem como com a Umbanda.
Presença importante neste complexo vem da presença da Mãe de Santo Glória de
Oxum, Ialorixá de Pai Paulinho. Mãe Glória de Oxum era natural de Belém do
Pará, emprestando ao complexo cultural e religioso de Pai Paulinho a influência do
Tambor de Mina. A mesma Mãe Glória, posteriormente, radicou-se em Salvador,
Bahia, legando a Pai Paulinho o fundamento da Nação Angola, como é praticado nos
Candomblés baianos. A isso se soma a presença simultânea de tradições na Nação
ketu, legadas pelo Babalorixá Odecy de Logun Edé, atual Babalorixá de Pai Paulinho,
o qual substituiu a Ialorixá Gloria de Oxum, a partir do seu falecimento em 1992.

Candomblé, memória e ancestralidade

Os terreiros de Candomblé, locais de rememoração e adoração aos orixás


(entidades extranaturais) e eguns (ancestrais), demonstram-se transversalmente
como um “lugar da memória, das origens e das tradições, onde, além de se preservar
um conhecimento naturalístico e uma língua ancestral, na qual são entoados cantos e
louvações”, também ajudam a criar um sentimento de pertencimento ligado a regras
específicas de convivência da vida social (BARROS, 2014, p. 13).

Ao falar que o Candomblé é uma religião brasileira, não podemos deixar de


considerar que esse complexo religioso é resultado da junção de cultos praticados por
diversos grupos distintos da África e implica na união de diversos elementos de várias
etnias. A ancestralidade africana compôs-se com os santos católicos, configurando um
complexo religioso que não reproduz na integralidade a herança mnemônica africana.

200
O terreiro é visto como um lugar que busca a preservação da memória e
do reconhecimento contínuo para o não esquecimento do Candomblé enquanto
patrimônio cultural material nacional, Barros (2014, p. 13). Esses espaços são
encarados como “uma associação liturgicamente organizada, em cujo espaço se dá a
transmissão e aquisição dos conhecimentos de uma determinada tradição religiosa
[...]” e “com regras específicas baseadas no parentesco mítico, no princípio da
senioridade e na iniciação religiosa”.

O parentesco mítico citado é uma das heranças ressignificadas da cultura


africana que perdura nos terreiros de hoje e popularmente chamado de família-
de-santo. Nesse entendimento de família-de-santo, rememorado e transmitido dos
mais velhos para os mais novos, consideramos que “essa memória dos dramas que
pontuam, animam, ilustram e condensam o universo do parentesco mítico, provoca
uma inflexão cognitiva nas representações que orientam o intercurso social numa
casa de Candomblé” (VOGEL; MELLO; BARROS, 2012, p. 33).

Uma característica muito marcante deste sistema cultural próprio que ajuda a
distinguir o Candomblé de outras religiões de culturas míticas é o seu caráter ágrafo e
alicerçado na memória e na ancestralidade. Prandi (2005, p. 20) corrobora ao afirmar
que no Candomblé a oralidade impera, pois para ele “o tempo é circular e acredita-se
que a vida é uma eterna repetição do que já aconteceu num passado remoto narrado
pelo mito”.

Candomblé: a força da palavra

Ao se apossar da oralidade sob forma de narração do mito, o Candomblé se


utiliza de seus sistemas de símbolos para criar padrões culturais próprios que funcionem
de modelos para estabelecer parâmetros de comportamento que formulam e explicam
a ordem geral das coisas, mostrando a dependência dos adeptos aos símbolos e sistemas
simbólicos próprios de (re) significados míticos (GEERTZ, 2008).

Outra característica muito presente na religião dos orixás estudada, o


Candomblé, é sua organização em termos de autoridade religiosa e hierarquia
sacerdotal, pois seus conceitos básicos ampliam o conhecimento sobre valores e modos
de agir quando se fundamentam na origem africana, oposta aos conceitos ocidentais
(PRANDI, 2005). Tais valores são observáveis entre seus seguidores e possuem
influência direta na noção de vida e experiências vivenciadas, mesmo que através da
memória não vivida, mas ressignificada através da oralidade. Prandi (2005, p. 20) ainda

201
reforça que “as noções de tempo, saber, aprendizagem e autoridade são as bases do
poder sacerdotal no Candomblé”.

Para Barros (2014, p. 41), “a palavra cantada ou falada assume um papel


relevante: ela é portadora e desencadeadora de axé”. Tal afirmação vai ao encontro,
novamente, da saliente característica da oralidade, utilizada como ferramenta na
manutenção mnemônica e aprendida com aqueles que são reconhecidos como
detentores do conhecimento e que compartilham o conhecimento por um discurso
autorizado e ressignificado.

O Ilê Axé Ogunjá: patrimônio e ressignificação da memória ancestral africana

A peculiaridade do terreiro de Candomblé que estudamos reside na coexistência


ritual da nação Angola, permeada por rituais e ensinamentos da nação Kêto. Desta
forma, a casa apresenta a coexistência entre o Candomblé baiano, além de influências
trazidas do Tambor de Mina, de Belém do Pará. A essas influências somam-se
influências desenvolvidas no Rio Grande do Sul, como as da Umbanda e do Batuque.

Esse conjunto de influências e de ressignificações torna o Candomblé um


cenário peculiar, com características próprias que efetivam a constante construção de um
sistema cultural próprio, resultante de sua reverência ancestral e efetiva oralidade. Desta
forma, também, constrói uma memória coletiva na comunidade do terreiro, ancorada
nas memórias individuais de cada um dos seus adeptos presentes ou desencarnados.

Apresentar essa coexistência como algo peculiar fornece-nos, enquanto


pesquisadores, um farto material etnográfico, tanto no que consiste à materialidade
da memória (roupas, comidas, utensílios litúrgicos, rezas, instrumentos sonoros, entre
outros), quanto no universo mitológico. Portanto, esta riqueza simbólica é que será
enfocada neste estudo.

A apresentação deste estudo traz como questão fundamental e intrinsicamente


ligada à memória e à identidade, rastros de uma comunidade que luta para demarcar
sua existência cultivando tradições e considerando uma reformulação dos elementos
de um sistema cultural próprio herdado e construído sobre a memória narrada pelos
ancestrais das nações candomblecistas de Angola e de Keto. Desta forma, percebe-
se que as narrativas da memória no Candomblé guardam relação estreita com os
interesses da comunidade ao qual se vincula, bem como leva em consideração a
necessária socialização dos conhecimentos adquiridos, com um público mais amplo,
direcionando-o ao reconhecimento das práticas ritualísticas peculiares pertencentes ao

202
terreiro, logo, a um sistema cultural próprio e em permanente em construção. Diante
disso, “[...] parte-se da premissa que a cultura está em constante evolução, modificando-
se, mestiçando-se, e que o resultado desse processo traria o patrimônio cultural do
futuro” (ABREU, 2003, p. 84).

Apontando para o reconhecimento do saber-fazer das tradições afro-


brasileiras de raízes africanas, mais especificamente, do Candomblé, reconhecê-lo,
por meio de suas práticas ressignificadas como patrimônio cultural imaterial, faz
parte deste processo. “Quando falamos em patrimônio cultural, estamos nos referindo
direta ou indiretamente ao passado, o qual [...] é sempre construído a partir do
presente” (ABREU, 2003, p. 84). Ainda, indo ao encontro da reverência ancestral e do
conhecimento adquirido oralmente no contexto do Candomblé, “o termo “patrimônio”
em inglês, heritage – refere-se a algo que herdamos e que, por conseguinte, deve ser
protegido (OLIVEN, 2003, p. 77).

Colaborando com o embasamento dos aspectos emergidos neste estudo como


a oralidade, a ancestralidade, os processos de ressignificação, entre outros; Regina
Abreu (2003) explana sobre o conceito de Patrimônio Imaterial conforme definição da
UNESCO:
[...] o conjunto das manifestações populares, tradicionais
e populares, ou seja, as criações coletivas, emanadas de
uma comunidade, fundadas sobre uma tradição. Elas são
transmitidas oral e gestualmente, e são modificadas através do
tempo por um processo de recriação coletiva. Integram essa
modalidade de patrimônio as línguas, as tradições orais, os
costumes, a música, as danças, os ritos, os festivais, a medicina
tradicional, as artes da mesa e o “saber fazer” dos artesanatos e
das arquiteturas tradicionais (ABREU, 2003, p. 83).

Ainda sobre as influências das nações de Candomblé Angola e Keto como


representações simbólicas de identidade étnica, regional e cultural, o Ilê Axé Ogunjá
ressignifica aquilo que antes apresentava-se segregado. Os terreiros de Candomblé
destacavam seus rituais únicos e separados. Ou seja, a tradição Angola se mostrava em um
terreiro de herança Angola, já a tradição ritualística da nação Keto se mostra em terreiros
que herdavam a tradição Kêto. Desta forma, no Ilê Axé Ogunjá, através de suas práticas
ritualísticas, expressões, rezas, gestos, danças, preparos de pratos típicos, por exemplo,
foram difundidos fundamentos das duas nações na identidade e na rotina da comunidade
do terreiro, absorvidos e incorporados por meio da oralidade e fundamentados na
ancestralidade, sendo estes os pontos-chave para o reconhecimento dessas práticas como
patrimônio cultural imaterial que, segundo o Iphan (2004), “[...] trata-se também de um

203
instrumento de reconhecimento oficial da riqueza e do enorme valor do legado de ancestrais
africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade.’’

“Os bens imateriais não só são de difícil definição, mas também só têm sentido
se significarem prática regular (OLIVEN, 2003, p. 82). Portanto, criar instrumentos
que contribuam para o reconhecimento das práticas do Candomblé como Patrimônio
Cultural Nacional e que valorizam as tradições afro-brasileiras como representações
simbólicas regionais foram aspectos ancorados na produção deste estudo teórico.
Todas estas contribuições corroboram para a compreensão de que cada Candomblé
possui suas ressignificações evidenciadas na memória de seus ancestrais. Cada terreiro
apreende seus sistemas de símbolos próprios, considerando suas tradições e crenças
oralmente transmitidos. Destacando que muitas destas representações simbólicas
acabam se perdendo com a tempo, toda proposta que auxilia concentração e valorização
do “saber fazer”, mesmo que ressignificado pelo tempo, corrobora para a preservação
das raízes ancestrais que, por sua vez, contribuem para a construção da memória no
presente e no futuro.

Entende-se que o registro das práticas do Candomblé integrados a este


estudo caminha ao encontro, seja por meio de políticas públicas e/ou privadas, do
reconhecimento destes terreiros como instrumentos de preservação de um patrimônio
cultural nacional, que necessita ser valorizado e protegido, também, pelo que representa
a uma comunidade que atua pela transmissão permanente do saber-fazer. Compreende-
se que o saber-fazer é compartilhado entre gerações por meio das narrativas orais,
trazer os rituais ancestrais como um patrimônio imaterial é ratificar a importância da
hierarquia e da ancestralidade dentro de um terreiro de Candomblé (PRANDI, 2005).
“O patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto dos saberes, fazeres,
expressões, práticas e seus produtos, que remetem à história, à memória e à identidade
desse povo” (IPHAN, 2012, p. 12).

O orunkó de Ogum: rememoração e reforço identitário

Diante deste contexto, a festividade dedicada ao orixá Ogum no Ilê Axé Ogunjá
trata-se de uma homenagem ao sacerdote do terreiro, Pai Paulinho, e sua Ialorixá já
desencarnada Glória de Oxum. A Feijoada de Ogum foi criada por Pai Paulinho devido
à data comemorativa do orunkó do seu santo, realizado por sua Ialorixá. O ritual de
orunkó configura-se como um dos rituais mais importantes na vida de um adepto do
Candomblé que recebe a manifestação do orixá. É um ritual de nação Kêto, onde o
orixá pode ou não gritar seu nome no meio do salão em frente a todos os convidados.

204
Pai Paulinho relata que orunkó significa o nome do orixá e traz todo fundamento e
dedicação empreendida na feitura do orixá no terreiro (DIÁRIO, 2018).

Ajagunã1 colabora alertando que “depois de alguns rituais secretos serem


desempenhados em frente ao “quarto de santo” (local onde são guardados os
assentamentos dos orixás) o(a) orixá é conduzido por um padrinho ou madrinha até o
salão do terreiro onde é questionado três vezes se o iaô sabe seu orunkó, sendo que nas
duas primeiras vezes o santo não deve responder, chegando na terceira pergunta, o orixá,
aprovando o ritual, grita seu nome na língua Iorubá e todos batem paó reverenciando o
sucesso do ritual. Contudo, pode ocorrer de o orixá não aceitar a forma que o ritual foi
feito, se apegando em detalhes, e na terceira pergunta permanecer calado, fazendo com
que seja recolhido novamente à frente do quarto de santo ” (DIARIO, 2018).

No contexto do orixá Ogum, o santo aceitou o ritual e gritou seu nome no


salão do terreiro, demarcando esta data como sendo a festividade da Feijoada de Ogum,
incluindo-a no ano litúrgico do Ilê Axé Ogunjá Agadá. A Feijoada de Ogum já era
desenvolvida por Glória de Oxum, contudo, sem a apresentação do orunkó da forma
descrita, pois trata-se de um ritual de nação Kêto e não desenvolvido no Candomblé de
Angola, até então elencado no Ilê Axé.
Fotografia 01 - Ritual de apresentação à mesa de Ogum.

Fonte: Vera Hugo, acervo Jornal Hora Grande (2017/2018).

1 Refere-se ao nome em orubá do Pai Pequeno da casa.

205
A Fotografia 01 mostra o ritual da festividade “Feijoada a Ogum” em que
seis yabás (mulheres) do terreiro carregam, sob forma elevada, elementos que serão
servidos à mesa montada em meio ao salão ao orixá Ogum. Dentre esses elementos
destacam-se: água, vinho, feijão vermelho, farofa, louças brancas, eni (esteira).
Fotografia 02 - Ritual de preparação à mesa com yabás para servir a Feijoada de Ogum.

Fonte: Vera Hugo, acervo Jornal Hora Grande (2017/2018).

Em continuidade ao ritual da mesa da Feijoada de Ogum, as seis yabas


sentam-se em volta da mesa (ala estendido em meios ao salão, no chão), juntamente
com um filho de Ogum que posicionar-se à ponta da mesa aguardando determinada
reza ser cantada e seu orixá manifestar-se para o ápice do ritual. A feijoada é servida,
simbolicamente pelas orixás manifestadas nas integrantes yabás. A primeira dilongá
(prato) servida é reservada ao “quarto de santo” em oferenda aos orixás. Contudo, o
ajeum (comida) pronto, está aguardando a autorização no ilê ajeum (cozinha) para
ser servido a todas as pessoas presentes na festa.

206
Fotografia 03 - Ritual de confirmação ao cargo de Ekédi à Dandara de Oxum e
fornecimento de faixa.

Fonte: Vera Hugo, acervo Jornal Hora Grande (2017/2018).

Na Feijoada de Ogum em que as fotografias e observações foram


desenvolvidas, os presentes foram contemplados com um ritual de confirmação
ao cargo de ekédi. Diante disso, além da cadeira, já mencionada como objeto de
representação simbólica no terreiro de Candomblé Ilê Axé Ogunjá, há outros dois
objetos que possuem uma ressignificação representativa a cada ritual desenvolvido:
a faixa e a peneira. Em destaque na Fotografia 26, Pai Paulinho segura a faixa que
será entregue Ekedi Dandara de Oxum em ritual de confirmação de cargo. Essa faixa
é mais um objeto simbólico reconhecido de concessão de autoridade e status no
terreiro de Candomblé.

207
Fotografia 04 - Ritual de confirmação ao cargo de Ekédi e fornecimento da peneira.

Fonte: Vera Hugo, acervo Jornal Hora Grande (2017/2018).

Dando continuidade ao ritual de confirmação, a peneira carrega uma


espécie de conjunto de autorizações, permissões concedidas pelo reconhecimento
de autoridade. Para cada cargo o conteúdo da peneira varia, no contexto da foto, a
peneira integra um adjá, um rangebre de cargo, pulseira, argolas de ferra, entre outros.
Para outros rituais de outros cargos, o conteúdo varia de acordo com às concessões
do sacerdote, por exemplo, uma peneira com jogo de búzios que concede ao (à) filho
(a) a liberdade de usar esta ferramenta de comunicação aos (às) orixás.

208
Fotografia 05 - Ialorixá Ceny de Oxum e Babalorixá Paulinho de Ogum Xoroquê.

Fonte: Vera Hugo, acervo Jornal Hora Grande (2017/2018).

A última foto aqui estudada é indiciária da forma como a festividade de Ogum


cumpre, não apenas com funções de natureza ritual, como a necessária veneração
do Orixá, com as prescrições próprias, mas também com a atualização identitária e
mnemônica do Ilê. A foto mostra Pai Paulinho do Obum Xoroquê homenageando
Yalorixá Ceny de Oxum, reconhecida como a primeira mulher batizada (raspada)
no candomblé da nação Jêje. Mãe Ceny frequenta o Axé Ogunjá a mais de 10 anos e
possui vínculos fraternos com o terreiro. Possuindo mais de 50 anos de Candomblé,
é considerada uma das pessoas mais memoráveis do Candomblé no estado do Rio
Grande do Sul. Prestando esta homenagem à Mãe Ceny, Pai Paulinho claramente
explicita o que fundamenta o Candomblé enquanto complexo religioso: o respeito à
ancestralidade e a redes de conhecimentos e experiência que esta traz.

209
Conclusão

O acompanhamento da vida de um terreiro como o Ilê Axé Ogunjá traz para o


pesquisador a oportunidade de conhecer o processo mais amplo da ressignificação da
memória ancestral e um complexo cultural idiossincrático. Trata-se de uma realidade
sociocultural não redutível à “pureza” de uma tradição, à linearidade ancestral
tomada de forma não histórica. A casa em estudo, sendo o resultado de experiências
e vivências plurais, compôs-se, tanto com a ancestralidade candomblecista, quanto
com a vivência batuqueira e umbandista no Rio Grande do Sul. Desta forma o
orunkê de Ogum, afirma-se como momento especialíssimo no qual se reafirmam os
fundamentos mitológicos que regem a casa (como a presença do Orixá Ogum e sua
relação com o dirigente); a autoridade do chefe religioso e a hierarquia religiosa que
sustenta verticalmente esta autoridade.

Referências

ABREU, R.; CHAGAS, M. Memória e patrimônio – ensaios contemporâneos. Rio de


Janeiro: UNI-RIO: FAPERJ: DP&A Editora, 2003.
BARROS, J. F. P. de. A floresta sagrada de Ossaim: o segredo das folhas. Rio de
Janeiro: Pallas, 2014.
BARROS, J. F. P. de; NAPOLEÃO, Eduardo. Ewé òrìsà: uso litúrgico e terapêutico
dos vegetais nas casas de candomblé jêje-nagô. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 5. ed.
2011.
BRASIL. Ministério da Cultura (MinC). Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN). Dossiê IPHAN 6 – Ofício das baianas de acarajé. Brasília; 2004.
Brasil. Ministério da Cultura (MinC). Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan). Patrimônio Cultural Imaterial: para saber mais / Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ; texto e revisão de, Natália Guerra
Brayner. -- 3. ed. -- Brasília, DF : Iphan, 2012.
DIÁRIO DE CAMPO. Observação no Ilê Axé Agunjá, Gravataí, RS, 15 jun. 2018
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MATTOS, R. A. de. De cassange, mina, benguela a gentio da Guiné: grupos étnicos
e formação de identidades africanas na cidade de São Paulo (1800-1850). São Paulo:
Universidade de São Paulo. Tese de doutoramento em História Social, 2009.

210
MUNANGA, K. Origens africanas do Brasil Contemporâneo. Histórias, Línguas,
Culturas e Civilizações. São Paulo: Global, 2009.
OLIVEN, Ruben George. Patrimônio Intangível: Considerações Iniciais. In: Abreu,
Regina e Mário Chagas. Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos. DP&A.
Rio de Janeiro: RJ, 2003.
PRANDI, R. Segredos Guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
VOGEL, A.; NELLO, M. A. da S.; BARROS, J. F. P. de. A galinha D’angola: iniciação
e identidade na cultura afro-brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

211
Ensaio sobre o funcionamento dos discursos de vida e de morte
nas narrativas dos patrimônios: desafios da memória

Raquel Alvarenga Sena Venera

[...] el ensayista piensa y escribe sabiéndose mortal, sabiendo


que tanto sus palabras como sus ideas son mortales y que,
quizá por ello, están vivas (LARROSA, 2005, p. 131).

Este texto é uma experiência de ensaio. Uma escrita que revela minha relação,
em primeira pessoa, com o tempo presente e com a consciência da vida precária,
sua finitude ou da fragilidade humana. Ao escrever, a vida se faz sentida, refletida,
ressignificada. Concordo com as reflexões de Jorge Larrosa (2005) quando da
conferência de encerramento do evento Michel Foucault: Perspectivas, em 2004, na
Universidade Federal de Santa Catarina, publicada no ano seguinte. Naquela ocasião
ele disse:
Que haya alguien dentro de nuestra forma de escribir, de
nuestra forma de pensar, de nuestra forma de vivir. Sea la
que sea. Que mantengamos al menos la mínima dignidad
de escribir sin mentir y sin mentirnos, de pensar sin mentir
y sin mentirnos, de vivir sin mentir y sin mentirnos. En un
presente cada vez más difícil y nunca garantizado. En una
distancia crítica cada vez más problemática y más escéptica
pero cada vez más libre. A la vez en singular y en plural.
Escribiendo. Pensando. Viviendo. Siempre en devenir.
Ensayando. De otro modo. Quizá la lección de Foucault
sea, en definitiva, una lección moral, como todas las que
valen a pena. Algo que tiene a ver con la verdad de un
constante ejercicio de sí en la escritura, en el pensamiento,
en la vida. Algo que tiene que ver con la honestidad y con la
generosidad. Algo que tiene a ver con el ensayo (LARROSA,
2005, p. 142).

As reflexões no Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto)biografias da


Univille tem se debruçado nas aulas de Foucault de 1982 e 1984 e parece haver
diálogo com os desejos de Larrosa (2005). O primeiro, busca na noção de parrhesía,
do dizer verdadeiro, as práticas de si, enquanto o segundo, após estudar o primeiro,
conclui que quiçá nossos exercícios de escrita falem algo sobre nós verdadeiramente.
Foucault (2004) explica porque toma o diálogo de Alcibíades na obra de Platão,
uma vez que tradicionalmente esta não seria uma escrita central na produção do
filósofo. Sua resposta tem a ver com um dizer verdadeiro sobre si mesmo. O diálogo
de Alcibíades é o princípio da filosofia “[...] o começo, o princípio da filosofia; [...]
como o é também, precisamente, o conhecimento de nós mesmos” (FOUCAULT,
2004, p. 211). É nesta direção que este ensaio é um retorno a experiência de sentir as
limitações e fragilidades da vida, refletir sobre a vida e a morte e nessa consciência
existencial no tempo, ver e se desdobrar naquilo que deve ser o pensamento filosófico.

Como um modo experimental de pensamento, pensar os patrimônios e as


narrativas de memórias que eles preservam na perspectiva dos sentidos de vida e
morte que eles fazem funcionar, me diz sobre um modo experimental de vida
acadêmica que não renuncia a intencionalidade da formação na pesquisa (auto)
biográfica: a reflexividade sobre si mesmo; a experiência de assumir a junção da
escritura e da vida e; por fim, a uma atitude existencial sobre a qual, me percebo e
sou percebida no jogo das identidades e identificações.

É uma operação de pensamento sobre o funcionamento dos discursos de


morte e vida nas narrativas dos patrimônios que revela um trabalho consciente e
desafiador do ensaio e de ensaiar-me. Como pesquisadora nos campos do patrimônio
cultural e da pesquisa (auto)biográfica, neste ensaio diálogo com diferentes
dissertações que tive a oportunidade de orientar e ou avaliar em situações de bancas
(AVIZ, 2013; CARDOSO, 2013; PESSOA, 2015; LACERDA, 2016; 2018; MOTA,
2016; SZYMCZAK, 2018; ALBUQUERQUE, 2019). Vale dizer que o diálogo que
estabeleço com esses jovens mestres são propostos no movimento do ensaio, o que me
pus a pensar a partir do que li sobre o que me mostraram, mas não necessariamente
a partir do que efetivamente foi a intencionalidades deles.

Neste diálogo, proponho dois exercícios de pensamento. No primeiro, vou


considerar o Patrimônio Cultural no centro da questão e pensar como têm funcionado
os discursos de memória nas narrativas evocadas a partir deles. O que fazem
funcionar esses discursos na perspectiva da vida e ou da morte. Um movimento de
pensar o campo do Patrimônio Cultural na sua relação com a vida e a finitude. No
segundo exercício de pensamento vou inverter a questão e colocar a vida e ou a morte
no centro e pensar como poderiam funcionar os discursos de memória evocados
pelas narrativas dos patrimônios cujo valor maior fosse a própria vida. Dizendo
de outra forma, esses dois movimentos de pensamento colocarão em suspense, ou
sob rasura, as escolhas dos valores patrimoniais. Na perspectiva das narrativas dos

214
patrimônios se questiona o que eles comunicam? Que memórias fazem durar ou
esquecer? Entendendo as narrativas de memórias como uma tessitura de lembranças
no tempo, orquestrado em um jogo político e os discursos como os sentidos e ou
significados que são mobilizados pelas narrativas. Algo que funciona nos arranjos
sociais no dizer das narrativas. Essas questões são mediadas sobretudo no diálogo
também com Asman (2016); Halbwachs (1990) e Candau (2011).

Novamente enfatizo que essas reflexões foram desenvolvidas no contexto das


pesquisas do Grupo de Pesquisa Subjetividades e (auto)biografias onde me pus a
refletir nas trajetórias de vida as razões pelas quais, estudo memória, Histórias de
Vidas, narrativas, tempos e Patrimônios. Como penso esses conceitos e ou categorias
está intimamente relacionado com os próprios sentidos de vida acolhidos nas
subjetividades do grupo o que reforça o lugar do ensaio que hora se apresenta.

****

Neste primeiro movimento dou início com o sentido consolidado dos


patrimônios como fenômenos da perda comumente citado a partir do trabalho
de Choay (2001). Não é nenhuma novidade, mas nunca é demais lembrar que ela
mostra como a partir da Revolução Francesa, os monumentos que representavam
o poder absolutista ficaram ameaçados diante da nova configuração política que se
consolidava com a República. Portanto, a invenção de estratégias de preservação
tornou-se uma política que fala sobre um bem que morreu no sentido de utilidade
social, naquele caso os monumentos e memórias da Monarquia. O ocidente inaugurou
nesse contexto a relação entre os patrimônios e a ideia da perda e das demandas de
passados restauradores ou reconciliados que ganham contornos políticos para a sua
proteção ou salvaguarda. Aqui, repousa o primeiro sentido que gostaria de destacar
nos patrimônios culturais, ou seja, um sentido paradoxal entre a morte de um bem
que socialmente não possui mais uso e o desejo de fazê-lo viver de outra forma, no
caso francês a memória de um Estado soberano. Dar a um bem cultural já ‘morto’
uma nova vida no sentido figurado que se torna uma nova realidade, uma nova
função social, de memória, de sacralização de um tempo.

Nessa perspectiva, o desafio das políticas de memória e patrimônio é trazer à


vida exatamente o bem que existe na sua finitude. Trata-se de construir em ato uma
narrativa de morte da própria morte. Uma tentativa de reconciliar um passado nos
interesses vivos do presente. A crítica levantada por Nora (1993) quando questiona
a “problemática dos lugares”, ou os patrimônios que se mostram como um efeito

215
sequencial no presente de um suposto passado que nunca cessa tem que ver com
essa relação de vida e morte. Em alguns casos, as políticas de patrimônio insistem em
manter uma vida que não é mais a vida do “lugar de memória”, mas aquilo que ele se
tornou pelo trabalho da História. Quando o bem em evidência escancara a finitude
de uma funcionalidade social, não existe mais em sua função social no passado e as
memórias sobre ele não são mais comunicadas entre os sujeitos do lugar. Nesses casos,
a história fixa uma memória para o bem e explica a sua importância a nova geração que
não se relaciona mais com aquele passado. Os lugares possuem um tempo da memória
que é finita, enquanto a preservação patrimonial evoca na História a fixação de uma
narrativa técnica que justifica a preservação do bem. Nora (1993, p. 12) denuncia o
impacto da História sob os lugares franceses, ele diz que “o tempo dos lugares, é esse
momento preciso onde desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade
de uma memória, para só viver sob o olhar de uma história reconstruída”.

O tempo de vida dos lugares acompanha a memória das vidas das pessoas.
E essas memórias, como bem demostrou Maurice Halbwachs (1997), sobrevive na
consciência social e na experiência de socialização dessas memórias. A fora disso,
a História fixa um tipo de memória aos lugares quase como uma continuidade de
um passado que muitas vezes não faz mais sentido as novas gerações e na dinâmica
comunicativa da vida. A relação de morte desses patrimônios é duplamente
anunciada, na primeira vez porque o bem perdeu sua função social e na segunda vez,
por apenas fixar um sentido de passado que não cessa de anunciar sua morte porque
não dialoga com o tempo presente.

Aviz (2013) mostrou como isso se dá entre os jovens de uma comunidade


tradicional na cidade de Joinville, no sul do Brasil. Na interface com a Psicanálise e o
Patrimônio ele investigou como as relações dos jovens com os lugares patrimonializados
se passam muito mais na perspectiva de um simbólico e imaginário da própria vida
dos jovens e muito menos em razão de um suposto real daquele bem. Os jovens
demostraram um pertencimento parco sobre os bens reconhecidos como Patrimônios
Culturais materiais da comunidade, no entanto, sem nomear como patrimônio,
mostraram um valor existencial conferido ao mar. A perenidade com o suposto real
que inferiu uma importância aos lugares, ou com a justificativa técnica para a atribuição
do valor e consequentemente o tombamento do bem, é marcadamente trabalhado
pelo autor como uma ausência de identidade perpassada pelo patrimônio como um
outro no jogo da alteridade. Dizendo de outra forma, a identidade dos jovens daquele
lugar não se relaciona com os outros, ancestrais do mesmo lugar. As experiências dos
ancestrais da comunidade com a igreja, com o cemitério, não faziam nenhum sentido

216
na forma como se mostram hoje. De outra forma, os jovens apresentaram uma relação
simbiótica com o lugar, especialmente os bens naturais, uma dependência existencial
e de sustento.

Naquele caso específico do Morro do Amaral, os patrimônios culturais


salvaguardados ou na lista de interesse para tombamento, são anunciados pelo Estado.
Não fazem mais parte da vida cotidiana das pessoas no tempo presente, portanto trata-
se de uma morte do sentido social do bem a ponto dos mais jovens não os reconhecerem
enquanto conexão de pertencimento de lugar. Nem tão pouco são trabalhadas as novas
possibilidades de vidas desse bem. As narrativas que justificam os tombamentos são
técnicas e acabam por anunciar uma segunda morte ao bem. De outra forma, a conexão
que os jovens demostraram com o mar anuncia uma forma de vida a ponto de não ser
sequer nominado como patrimônio, é a própria vida em fluxo.

Fazer viver ou fazer morrer um patrimônio foi tema também das reflexões de
Mota (2016) ao analisar as políticas de seleção, organização e gestão de um arquivo
institucional. O termo “arquivo morto” foi ressignificado por ela quando defendeu
que organizar fontes históricas e disponibilizá-las para pesquisa com uma perspectiva
hermeneuta, ou, entendendo as práticas metodológicas dos pesquisadores que
apostam nos vestígios sutis, nos traços furtivos dos registros, traz vida para o arquivo.
As narrativas dos arquivos, assim como as dos demais patrimônios são impregnadas de
significados de morte e de finitude. Porém, ela propõe repensar os sentidos de arquivo
trazendo-o à vida, oferecendo aos pesquisadores possibilidades de pistas acerca desse
passado supostamente importante. Ela vai denunciando algumas técnicas arquivísticas
que acabam por promover uma nova morte ao documento que já não possui usos nos
seus locais de origem.

Ou seja, tanto Aviz (2013) quanto Mota (2016) denunciam à sua maneira o
patrimônio que emerge na morte da função social de um bem, mas eles anunciam
a necessidade constante de atualização das relações de pertencimento no cotidiano
das vidas das pessoas sob o risco de se tornar novamente morto. Quando Aviz
(2013) anuncia que os jovens possuem pouco conhecimento acerca dos patrimônios
culturais no Morro do Amaral e Mota (2016) se inquieta com o sentido de morte
dos arquivos, facilmente se pensa com eles a necessidade de ações de Educação
Patrimonial. É indiscutível a necessidade de atualizar os mais jovens sobre as riquezas
da experiencia e dos tesouros do passado sob pena do presente se transformar em um
puro agora sem a potência de perspectivas de futuros possíveis. Todavia, essas práticas
educativas são também reveladoras da presença de uma morte do patrimônio e o
desejo desesperado de invenção de novas vidas simbólicas e imaginadas.

217
Essa foi também a conclusão da dissertação de Lacerda (2016) e transformada
em livro em 2018. Ela mostra as políticas de patrimônio do Iphan do Mato Grosso e
deixa as reflexões de que a Educação Patrimonial; a participação das pessoas e grupos
nos espaços de memória, a inclusão participativa nos comitês de acervos e de gestão
do patrimônio são iniciativas que, em última instancia, se configuram lutas para a
construção de narrativas de vida para e no patrimônio. São movimentos de resistência
a morte do bem a partir das implicações das pessoas e suas relações de atualização
constante das memórias, sentidos e significados do Patrimônio Cultural.

Mas, diante das ações dos grupos para a manutenção da vida no Patrimônio
Cultural, como a Educação Patrimonial por exemplo, observa-se que não existe uma
receita salvadora na “pedagogização” do patrimônio. A dinâmica de cada grupo com a
memória evocada sobre o bem é imprevisível e, por vezes, pode significar também uma
segunda morte para o Patrimônio Cultural. Pessoa (2016) observa essa complexidade
nos cotidianos ao redor da Fortaleza de São José em Macapá. A edificação da fortaleza
é tombada e passou por uma revitalização do entorno em uma aposta de exploração
turística. A função de segurança territorial de tempos passados não faz mais sentido para
as pessoas do lugar, no entanto existe uma afinidade de pertencimento de grande parte
da cidade reconhecendo na Fortaleza uma importância histórica e cultural. A História
anunciada por Nora (1993) serve como suporte de memória para uma continuidade
daquele passado. Esse fato não garante a morte dupla do lugar de memória porque
funciona paralelamente com atividades das políticas culturais no tempo presente.
Os grupos folclóricos e os movimentos sociais, especialmente o movimento negro,
ocupam esse espaço de memória e o atualizam para novos usos, incluindo o uso
turístico e comemorativos. Asmann (2016) afirma a importância que os símbolos têm
para a construção de da memória cultural de um grupo. Ele diz que os monumentos,
os objetos de museu, os patrimônios de forma geral desencadeiam novas significações
de memória que não é uma memória corporificada, mas cultural. Ele diz que o “papel
dos símbolos externos se torna cada vez mais importantes, porque grupo que, é claro,
não “têm” uma memória tendem a “fazê-la” por meio de coisas que funcionam como
lembranças [...]” (ASMANN, 2016, p. 119).

Mas algo vai se tornando complexo nas relações de ocupação desse lugar de
memória. Pessoa (2016) mostra como a dança Marabaixo, tradicional na cultura do
Macapá, serve para trazer narrativas de vida nos burburinhos no entorno da Fortaleza
de São José. Seja pelos grupos tradicionais, pelo turismo, pelo movimento negro, pelas
ações educativas de patrimônio com as escolas locais e ou famílias que passeiam pelo
entorno, conhecido como “Lugar Bonito”. São ações das políticas de patrimônio que

218
tornam esse espaço vivo no tempo presente. No entanto, o investimento educativo
para ensinar os mais jovens os passos da dança Marabaixo e o batida tradicional nos
instrumentos de percussão fracassam quando a narrativa esbarra nos sentidos da
necropolítica do sistema escravista e posteriormente capitalista. Os jovens não querem
reproduzir passos de danças miúdos de ex-escravos acorrentados e nem batidas
da tristeza reinventada em alegria da escravidão. Trata-se de uma narrativa que faz
funcionar um sentido de morte, da memória escolhida pela nova geração para ser
esquecida e, portanto, de morte daquele patrimônio.

Novamente trazendo Maurice Halbwachs (1997) para o argumento de que uma


Memória Coletiva dura um tempo curto entre poucas gerações enquanto ela ainda faz
sentido e parte na dinâmica social das pessoas. Asmann (2016, p. 119) propõem incluir
ao conceito Memória Coletiva também a Memória Comunicativa dizendo que “ela vive
na interação e na comunicação cotidiana e, por essa única razão, tem uma profundidade
de tempo limitada, que normalmente alcança retrospectivamente não mais que 80 anos,
o período de três gerações que interagem”. Fora isso, trata-se de uma insistência fixada
pela história, o que Asmann nomeia como “Memória Cultural”. Mas no caso específico
do Marabaixo, existe uma resistência promovida pela negação de continuidade dessa
Identidade Cultural que se funde com a identidade social, dos papéis sociais desses
sujeitos negros e do seu self interno. Talvez seja o Marabaixo o produto turístico mais
vendável no entorno da Fortaleza de São José de Macapá, pelas cores das vestimentas,
o ritmo e beleza da dança, mas como patrimônio cultural em seu sentido lato, ou seja,
um bem que representa a memória e identidade individual e de um grupo, se torna
questionável. Quanta coragem humana precisa haver em uma situação de morte de
um bem, decretada pela nova geração de um grupo? Como lidamos com essa morte?
Insistimos desesperadamente para manter essa vida, correndo o risco de uma morte
dupla, ou ousamos ter a coragem dessa verdade, registramos o bem e enterramos sua
existência com o fim do tempo de vida dos folcloristas que o mantem?

Os sentidos de morte e vida são imbricados em todo o tempo nos patrimônios,


assim como o são pelo menos na existência humana moderna. As buscas desesperadas
pela vida nem sempre são sucesso. O fracasso das políticas de patrimônio é evidente
quando as narrativas que justificam a existência de um patrimônio, ou seja, o que
deveria dar nova vida a ele, é exatamente aquele que decreta a sua segunda morte,
quando não conseguem fazer circular de forma dinâmica uma Memória Cultural, como
diz Asmann (2019). Cardoso (2015) problematiza a patrimonialização da cachaça na
cidade de Morretes, PR, e mostra como ao promover o saber fazer tradicional da
cachaça na cidade, seus produtores o fazem como um investimento no turismo. Porém,

219
o mercado exige que os produtos consumidos sejam produzidos sob os cuidados e
procedimentos inscritos no padrão de qualidade sanitário. Desta feita, o fazer artesanal
de uma época em que as regras sanitárias não existiam é inviabilizado para venda e, ao
incorporarem também as exigências sanitárias atuais na produção, o fazer tradicional
se torna uma retórica de mercado. Ou seja, o fazer artesanal, quase que extinto na vida
cotidiana do presente, diante da ameaça da perda se torna um patrimônio. No entanto,
sua nova função social se faz no Turismo, no mercado e se faz refém de regras que
promovem a morte do bem em uma segunda vez.

A dissertação de Avis (2013) traz um dado bastante provocativo no diálogo


com a Psicanálise, para essa reflexão. Ele identifica um pertencimento de lugar nos
jovens nativos do Morro do Amaral e uma valorização do ambiente natural da Baia da
Babitonga de forma geral e com o mar em particular. No entanto em nenhum momento
esses jovens reconheceram o mar, a vegetação, como seus patrimônio, apenas como
parte fundamental da vida. A partir dos conceitos de simbiose e do complexo de Édipo
na Psicanálise ele vai trabalhando os sentidos de patrimônio como simbolicamente
funciona a “lei do pai”, ou o que vem arbitrário como herança da geração anterior e, por
outra perspectiva, aquilo que tem o sentido da própria vida ou manutenção dela como
a simbiose materna. Essa segunda perspectiva evidencia que os bens patrimoniais que
são conectados ao valor da vida são preservados efetivamente e automaticamente.
Dizendo de outra forma, simbioticamente no fluxo da vida.

De outra forma, na Psicanálise, é preciso haver com a “lei do pai”, para se


estabelecer um corte na simbiose materna e fazer acontecer uma identidade (self) que
se relaciona com a diferença do outro em um arranjo de alteridade. Essa relação triádica
da Psicanálise explica a emergência de uma identidade social, ou a forma como um
“eu” se mostra ao grupo, com seus papéis sociais e representações dos e sobre os outros.
O arbitrário da lei, esse grande Outro que impõe o limite de um corte é que garante a
linguagem, o simbólico, a possibilidade de dar forma ao real que nunca será resgatado.
Esse passado finito, que não vai mais se repetir, se torna patrimônio em uma evocação
a lei paterna. É arbitrário em grande medida. Mas é na relação com esse limite que será
possível criar simbólicos possíveis, totens representativos de um passado e orientadores
imaginários de um futuro possível.

Talvez aqui, no diálogo com Avis (2013), tenhamos uma pista. Se os bens que
já não fazem mais parte da função social no cotidiano das vidas das pessoas, portanto
enquanto patrimônio são arbitrários na memória cultural do grupo, fossem postos em
par com aqueles que ainda estão no fluxo simbiótico da existência, que são potentes de
imaginação e criação de vida, talvez seriam capazes de produzir sentidos atualizados

220
de novas vidas possíveis. Talvez a Psicanálise ofereça ao campo do Patrimônio Cultural
pistas potentes para ser pensado a partir da vida. Essas reflexões são superficiais
e ligeiras, mas talvez aqui nasceria uma nova pesquisa e novas reflexões sobre essas
conexões vitais com o patrimônio.

Todos esses são exemplos de que o Patrimônio Cultural, que nasce diante
de uma perda ou da morte social de um bem, nem sempre garante a vida em suas
políticas. E não existe uma receita infalível, seja na Educação Patrimonial ou na
participação popular. Em cada caso, em cada grupo e contexto as relações políticas,
de poder e identificações com o patrimônio vai se estabelecer sob variáveis múltiplas.
Há que se ter coragem de verdade para conviver com o real da morte, assim como na
existência humana. Há que se ter coragem para atualizar um bem fecundando nele
novas significações e vidas imaginadas.

****

No segundo movimento desse ensaio faço então uma inversão dos meus
objetos. Esse deslocamento tem a ver com o modo experimental de vida acadêmica,
citado anteriormente e que tenho me proposto nos últimos anos. A intencionalidade
de auto formação me permite pôr em evidência a experiencia da própria vida no centro
de um tipo de reflexividade constitutivo das relações de identidade e identificações. Ao
experimentar privilegiar a vida, e a morte como parte dela, no centro da questão, todas
os demais objetos se deslocam/. Todos os desafios das políticas do patrimônio ganham
outra dimensão.

Na dissertação de Albuquerque (2019) ele traz alguns exemplos de quando


a vida foi o centro de políticas patrimoniais. Ele pontua dois movimentos férteis
para essa valorização da vida no campo do Patrimônio Cultural. O primeiro foi
uma recomendação da Unesco, de 1989, que reconhecia a fragilidade das culturas
tradicionais e populares, especialmente aquelas fundamentadas na tradição oral.
Ainda que essa recomendação tenha sido feita em uma perspectiva dos Patrimônios
Materiais, há que se reconhecer a positividade para a mobilização de países do chamado
“Bloco Sul”, América do Sul, África e Ásia, que relacionam com as práticas tradicionais
de forma diferenciada em relação a Europa, por exemplo. Uma importante política
que foi evidenciada a partir dessa Recomendação da Unesco de 1989, foi os “Tesouros
Humanos Vivos”, de 1993. Inspirado no que já acontecia na política japonesa desde a
década de 1950, as pessoas detentoras de técnicas especiais foram convocadas a ocupar
o lugar nobre de patrimônio imaterial vivo.

221
O segundo movimento que Albuquerque (2019) pontua é o reconhecimento
da oralidade e o caráter intangível dos patrimônios reconhecidos como bens da
humanidade. Isso está explícito no programa “Obras-primas do Patrimônio Oral e
Intangível da Humanidade”, de 1997, o que reforçou os debates e tensionamentos do
campo para, enfim, a conformação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial anos após. Na esteira desses debates no contexto da Unesco, o Brasil aprovou
na Constituição Federal de 1988, no art. 216, uma definição que inclui “os modos de
criar, saber e viver” e “as formas de expressão” com campo do patrimônio. Embora, o
país não tenha adotado o Programa Tesouros Humanos Vivos, alguns estados puderam,
baseados na Constituição Federal, aprovar políticas semelhantes, como foi o caso da
Lei de Registro do Patrimônio Vivo de Pernambuco e dos Estados de Alagoas, Ceará,
Bahia, Paraíba e Rio Grande do Norte que institucionalizaram o reconhecimento e
valorização das expressões da cultural popular e tradicional.

Albuquerque (2019) traz essas políticas no argumento que aposta nas formas de
vida humana e suas formas de expressão como patrimônios comuns da humanidade.
Esse argumento conversa com o campo da História, desde a década de 1970, que tem
reconhecido a ampliação de fontes históricas em todos os vestígios de ações humanas
no tempo. O desafio de contar uma história em que todas as pessoas comuns ou célebres
apareçam igualmente, mulheres, homens, de todas as cores e raças, operários, crianças,
prisioneiros, imigrantes ou nativos. Trata-se da mesma defesa pela qual fez do Museu
da Pessoa, SP, um exemplo de espaço de salvaguarda do patrimônio da história a partir
das Histórias de Vida das pessoas. Szymczak (2018) problematizou esse tipo de defesa
em sua dissertação. São patrimônios que nascem na relação com a vida das pessoas, no
reconhecimento da humanidade e de sua história como potencial de reflexão.

O deslocamento da vida para o centro da questão exige, portanto, a revisão


dos valores e políticas patrimoniais. Szymczak (2018) vai problematizar os usos e os
sentidos do conceito de cultura e mostra como as políticas de patrimônio se fundam
sobre estruturas culturais concorrenciais, que promovem a definição da erudição, do
melhor e mais digno de ser preservado, do que se configura excepcional na civilização.
Ela então questiona o que seria o valor de uma vida ou das formas de expressão das
vidas. Ao reconhecer as Histórias de Vidas como patrimônios culturais, o que o Museu
da Pessoa coloca em evidência? Seria possível julgar o valor das vidas e suas formas
de expressão a partir da mesma lógica da excepcionalidade? Se a narração e a escuta
sobre uma vida será um bem digno de destaque no campo, sob quais valores serão
justificados? Os valores patrimoniais alicerçados na diferença cultural excepcional
podem ser questionados diante do valor do comum.

222
A vida no centro da questão do patrimônio nos exige novas perguntas para
evocar valores patrimoniais. Não seriam os Direitos Humanos um parâmetro? A
pesquisa de Lacerda (2016; 2018) traz dados relacionados a patrimonialização de
imóveis no centro velho de Cuiabá. Uma forma de vida que acontecia na rua do
comércio, mas que não se manteve no presente. A insatisfação dos donos dos imóveis é
evidentemente relacionada à especulação imobiliária, no entanto, nos mostra também
o fracasso desse tipo de política. Ao inviabilizar qualquer uso social na vida atual, os
imóveis se degradam e efetivamente morrem sem uso e literalmente tombam ao chão.
Se os Direitos Humanos, que incluem moradia e vida digna das pessoas estiverem no
centro das discussões, como poderiam ser as narrativas para preservar esse tipo de
patrimônio? Como poderiam ser as narrativas das cidades antigas como Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, hoje recheadas de favelas e moradias insalubres?
Os desafios do patrimônio seriam outros.

Luiz Eduardo Soares (2019) está trabalhando o tema da Segurança Pública e


Justiça e faz um questionamento que me faz mais inquieta com a questão dos Direitos
Humanos no campo do Patrimônio Cultural, especialmente de moradias dignas nas
grandes cidades. A criminalização da pobreza vem sendo acelerada no contexto atual
brasileiro e os espaços vazios dos casarões abandonados não estão desconectados
deste cenário. Assim como não estão centros revitalizados e gentrificados das cidades
velhas tombadas pelo patrimônio. Soares (2019, p. 2015) diz “[...] de que adiantam
as declarações internacionais e as cartas de intenção, se os direitos humanos são
violados?” E eu escuto do campo do Patrimônio Cultural que de nada adiantam todas as
políticas patrimoniais se elas não conversarem interdisciplinarmente com a Segurança
Pública e os Direitos Humanos e agir somando forças. Concordo com o Soares (2019,
p. 215) quando ele diz que hoje “dispomos de um marco constitucional compatível
com os direitos humanos, quando explicitamente comprometido com sua afirmação”.
Muito embora vivemos em tempos em que o Estado é o principal violador dessas
prerrogativas, mas estar ao lado da Lei, como ele afirma “facilita a difusão na sociedade,
no sistema educacional e na cultura popular de princípios afinados com os direitos
humanos e fortalece, politicamente, os atores sociais que defendem os postulados
humanistas”. Não resta dúvidas que no campo do Patrimônio Cultural a questão dos
Direitos Humanos vem crescido vertiginosamente nas últimas décadas. Mas gostaria
de em minhas reflexões, talvez utópicas, verticalizar e radicalizar a questão.

Como reflexão final destaco as últimas dissertações que orientei, de Albuquerque


(2019) e Szymczak (2018) que problematizaram questões como essas. Albuquerque
(2019) persegue a forma como a vida vem sendo destacada no campo do Patrimônio

223
e evidencia as narrativas dos patrimônios vivos. Aquelas pessoas que os diversos
grupos preservam como detentores de uma memória, de um saber fazer, como os
Griôs, por exemplo. Szymczak (2018) explora o Museu da Pessoa e investiga os valores
patrimoniais das narrativas de vida. Ambas me colocaram a pensar nos discursos que
as narrativas de vida nos patrimônios põem em funcionamento. Que valores evocam?
Como poderia ser salvaguardados os patrimônios da humanidade como a água, a terra
fértil, o direito ao sol, o direito de se narrar como animal de linguagem, o direito de
ser escutado, o direito de habitar, o direito à saúde, o direito existencial da consciência
histórica? Como seria o Patrimônio Cultural mais comprometido com o valor a vida e
menos com os valores de mercados e da concorrência?

Como seria o trabalho da memória se a vida fosse em si mesma o maior bem a


ser preservado? A memória de um modo de vida que existe em função da conexão com
a natureza parece estar perdida, especialmente no modo de vida urbano. Seria este um
momento para evocar o patrimônio ambiental a partir de uma narrativa de conexão
existencial dos seres humanos com a natureza?

Para Szymczak (2018), as categorias debatidas no campo do patrimônio no


contexto da Unesco como patrimônio da humanidade, para além do patrimônio
mundial ganham novas perspectivas. Ao constatar o fato de que a morte faz parte da
vida, e essa se faz no movimento incoerente e desordenado por vezes, torna-se o sentido
de finitude menos agressivo. Esse fato é diferente de aceitar que os bens culturais sejam
negligenciados, mas pensar neles a partir de outras perspectivas. E se ao deixar morrer
um patrimônio não se gesta um novo sentido de vida digna?

Considero inquietantes e provocadoras as perguntas que tenho feito ao campo


do Patrimônio a partir das minhas experiencias com a pesquisa (auto)biográfica.
Não tenho respostas para nenhuma delas, apenas me desloco cotidianamente em
uma ânsia de um lugar confortável no campo, que parece nunca ser possível. E isso
é bom e fértil. Contudo, diante delas, tenho posto sob rasura os sentidos de cultura
que me lançam á lógica excepcional e da diferença e, ao contrário, me implico com as
análises mais cuidadosas de inciativas mais generosas e comuns. Coloco-me a pensar
sistematicamente no valor do “comum”. Comum em um duplo sentido da palavra,
tanto o sentido de destaque do ordinário da vida, quanto o sentido da igualdade de
direitos e participação nos critérios e valores dos patrimônios como Direitos Humanos.
Ou dito de outra forma, considerando os avanços nos reconhecimentos da diversidade
cultural, sustento e escolho o sentido de cultural alternativo, ou quem sabe contra
cultural. Talvez os valores concorrências da cultura contemporânea, do consumo fugaz,
do valor vendável, seja um dos motivos das grandes tensões no campo do patrimônio.

224
Sob essas perspectivas, o campo se abstrai do valor humano e permite por
vezes que crimes ambientais contra a vida e os patrimônios comuns da humanidade
se tornam possíveis, como em Mariana e Brumadinho. Talvez essa afirmação seja
muito forte e leviana, mas nunca saberemos, porque a condição do talvez não nos
mostre uma prova. As decisões políticas do campo, sobre o que, como e para quem
preservar um bem, não tem a vida humana como centro. A exemplo, das decisões
acerca de tombamentos de prédios para fins comerciais e turísticos, sob a condição
da gentrificação urbana. Os prédios são decadentes e ocupados por pessoas em
condições de miséria. Suas vidas podem estar em ameaças diante de um desabamento
eminente, mas são recolhidos quando o prédio é restaurado, mas apenas para se
transformar em um bem vendável. Essas são reflexões que têm regulado, em grande
medida, as perguntas e inquietações das novas investigações e produções do grupo
de pesquisa Subjetividades e (auto)biografias.

Referências

ASSMANN, J. Memória Comunicativa e Memória Cultural. Revista História Oral,


v. 19, n. 1, p. 115-127, jan-jun, 2016.
CANDAU, J. Memória e identidade: do indivíduo às retóricas Holistas. In: CANDAU,
J. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade; UNESP, 2001.
COELHO, I.;  VENERA, R. A. S.; CAMARGO, S. P. L.; MINASSE, M. H. S. G. G.
Participação em banca de Etienne Desiree Meira Cardoso. A história de um
patrimônio cultural: a cachaça morretiana. 2013. Dissertação (Mestrado em
Patrimônio Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
GUZZO, L. C. S; COELHO, I.; VENERA, R. A. S.; MORAES, T. M. R. Participação
em banca de Katia Olari da Mota. Desafios do arquivista pelas tramas da memória
e esquecimento: o caso do arquivo da Univille. 2016. Dissertação (Mestrado em
Patrimônio Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. SP: Vértice, 1990.
LARROSA. J. La operación ensayo: sobre el ensayar y el ensayarse en el pensamiento,
en la escritura y en la vida. In: FALCÃO, L. F.; SOUZA, P. (Org.). Michel Foucault:
Perspectivas. Florianópolis, 2005.

225
NORA, P. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Tradução de Yara
Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. [cópia digital]
RIBEIRO, R. R.; VENERA, R. A. S.; SILVA, A. L. Participação em banca de Marina
Duque Coutinho de Abreu Lacerda. O IPHAN e a invenção dos lugares de memória
em Cuiabá: as demandas e políticas de preservação do patrimônio histórico (1958-
2013). 2014. Dissertação (Mestrado em Mestrado em História) - Universidade
Federal de Mato Grosso.
VENERA, R. A. S.; CARDOSO, P. J. F.; COELHO, I.; MORAES, T. M. R. Participação
em banca de Monica do Nascimento Pessoa. “Não deixe que Morra”: o marabaixo
como elo entre patrimônio, memória e educação. 2015. Dissertação (Mestrado em
Patrimônio Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
VENERA, R. A. S.; GRAEFF, L.; MORAES, T. M. R.; GUZZO, L. C. S. Participação
em banca de Maureen Bartz Szymczak. Histórias de Vida e Patrimônio Cultural:
desafios do Museu da Pessoa. 2018. Dissertação (Mestrado em Patrimônio Cultural e
Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
VENERA, R. A. S.; VAZ, P. R. G.; MORAES, T. M. R.; COELHO, I. Participação em
banca de Wesley Batista Albuquerque. Esclerose Múltipla em Rede: A Circulação de
Afetos em Narrativas de Testemunho. 2019. Dissertação (Mestrado em Patrimônio
Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.
VENERA, R. A. S.; COELHO, I.; CAGNATTI, S. S. Participação em banca de Adilson
José de Aviz. O patrimônio cultural do Morro do Amaral no imaginário dos
jovens: tensões possíveis. 2012. Exame de qualificação (Mestrando em Patrimônio
Cultural e Sociedade) - Universidade da Região de Joinville.

226
Sobre os autores e organizadoras

Organizadoras

Cleusa Maria Graebin - É Doutora em História pela UNISINOS, professora


e Coordenadora do PPG em Memória Social e Bens Culturais. Diretora do
MALHS (Museu e Arquivo Histórico La Salle) e Editora da Revista Mouseion
(Unilasalle). Organizadora dos números 5 (Memória Social: questões teóricas e
metodológicas) e 6 (Patrimônio Cultural e Políticas Públicas) da série Memória e
Patrimônio. Pesquisa sobre história local, patrimônio cultural, festas e celebrações
e ensino de história. Publica em periódicos científicos nacionais e internacionais
e é autora de diversos livros e capítulos de livros.

Zilá Bernd - Tem Pós-doutorado na Université de Montréal (Canadá);


Doutorado em Letras (USP); Mestrado em Letras (UFRGS). Aposentada como
titular da UFRGS é professora do PPG em Memória Social e Bens Culturais,
é coordenadora do Núcleo de Estudos Canadenses a Universidade LaSalle
(UNILASALLE-Canoas). É membro do GT Anpoll - Relações Literárias
Interamericanas. É Officère de l’Ordre National du Québec e Officière des Palmes
Académiques (governo francês). Recebeu, em maio de 2009, o Prix International
du Gouverneur Général en Etudes canadiennes, promovido pelo Conseil
International d´Etudes Canadiennes (ICCS-CIEC), em Ottawa. Foi presidente
da ABECAN (1999-2001) e do ICCS-CIEC (2003-2005). Foi profa. visitante nas
seguintes universidades: Univ. de Limoges, Univ. Nacional de Rosario, Univ.Paul
Valéry, Univ. du Québec à Montréal - UQAM, Univ. de Rennes 2 e Lille3, entre
outras. É bolsista produtividade em pesquisa CNPq (1B) desde 1995, renovada
para o período 2015-2020. Integrou o comitê assessor do Cnpq na área de Letras
e Linguística (de 2016-2019).

Raquel Alvarenga Sena Venera - Doutorado em Educação pela Universidade


Estadual de Campinas, UNICAMP, em 2009. É bacharel e licenciada em História
pela universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI, em 2000 e possui mestrado em
História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, 2003. É
professora do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade,
da Universidade da Região de Joinville, Univille, onde também é líder do Grupo de
Pesquisa Subjetividades e (auto) biografias. Suas pesquisas em andamento possuem
foco nos desafios do trabalho de escritas de vidas, e no entendimento de que o
registro (auto) biográfico se configura uma produção heurística. Os debates acerca
dos rizomas construídos com as (auto) biografias nas redes sociais; a democratização
das narrativas; os discursos implicados na arquitetura de si; tecnologia do eu ou do
si mesmo; os processos de subjetivação contemporânea são presentes e perpassam as
investigações sobre práticas discursivas no campo político da Memória.

Autores

Adriana Aparecida Felini - Licenciada em História - Universidade La Salle


(2014); Bacharel em História - Universidade La Salle (2015); Mestre em História
Social e Bens Culturais - Universidade La Salle - (2017); Graduanda em Letras/
Espanhol (6º semestre) - Universidade La Salle. Mobilidade Acadêmica (06
meses) - Toledo, Universidad Castilla de la Mancha - Espanha. Bolsa cedida pela
Universidade La Salle. Doutoranda em Memória Social e Bens Culturais - PPG
Memória Social e Bens Culturais da Universidade La Salle.

Artur Cesar Isaia - Professor da Universidade La Salle (UNILASALLE),


Canoas,,RS, desenvolvendo atividades de docência e pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais, bem como no Curso de
Graduação em História. Professor Titular da Universidade Federal de Santa
Catarina, na qual, atualmente, é Professor Colaborador do Programa de Pós-
Graduação em História. Pesquisador do CNPq 1C. Tem experiência na área de
História, com ênfase em História do Brasil República, Teoria e Filosofia da História,
História das Religiões e História das Ciências, pesquisando principalmente os
seguintes temas: discurso religioso, catolicismo, espiritismo, umbanda, discurso
médico-psiquiátrico. Integra o Conselho Editorial e Consultivo de vários
periódicos especializados.. Membro do Comitê responsável pelo Pacto Nacional
Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade e da Cultura de Paz e
Direitos Humanos na Universidade La Salle.

Dione da Rocha Bandeira - Graduada em Ciências Biológicas e mestra em


Antropologia pela UFSC e  doutora em História pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). É  professora da Univille nos departamentos de História,
Ciências Biológicas e Psicologia e do Programa em Patrimônio Cultural e Sociedade,
além de membro dos grupos Geipac e ArqueoCult dessa universidade. Também
é arqueóloga do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (Masj). Atua na
pesquisa interdisciplinar do patrimônio cultural com ênfase na cultura material
e patrimônio arqueológico; na gestão pública do patrimônio arqueológico; em
estudos com sítios e acervos arqueológicos e suas relações com museus. 

228
Eduardo Roberto Jordão Knack - É graduado e Mestre em história pelo Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Atuou como
professor na Universidade do Estado de Mato Grosso, na Universidade de Passo
Fundo, na Universidade Federal de Pelotas e na Escola de Ensino Fundamental
St. Patrick. Possui experiência em museus, tendo atuado como estagiário e
coordenador pedagógico do Museu Histórico Regional. Doutor em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, doutorado com período sanduíche na Universidade Nova
de Lisboa. Atualmente é Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de Pelotas.

Heidi Ferreira da Costa - Mestre em Memória Social pela Universidade


Federal do estado do Rio de Janeiro. Possui graduação em Ciências Sociais com
ênfase em Políticas e Produção pela Universidade Cândido Mendes (2013).
Atualmente faz parte do Comitê Consultivo do Sistema Estadual de Museus, é
gerente operacional do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos
e presta serviços técnicos como produtora cultural do Instituto Cultural Cidade
Viva. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Produção Cultural,
atuando principalmente nos seguintes temas: meio ambiente, memória, cultura,
arqueologia e fotografia.

Jeanne Marie Gagnebin - É professora titular de Filosofia na Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo (PU-SP) e Livre-docente em teoria Literária
na UNICAMP. Coordena a edição crítica de textos de Walter Benjamin na editora
34 de São Paulo. É pesquisadora 1 do CNPq. É estudiosa e tradutora da obra de
Walter Benjamin do original em alemão para o português.

Jonathas Kistner - É Mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade


da Região de Joinville - UNIVILLE. Especialista em Gestão e Educação Ambiental
pela Faculdade de Ciências e Tecnologia do Vale. Graduação em História
(Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Regional de Blumenau. Professor
de História da Rede de Ensino de Blumenau. Diretor e Pesquisador do Instituto
MANOA. Colaborador no Espaço Terra - Blumenau/SC. Integrante do grupo de
pesquisa: Estudos Interdisciplinares de Patrimônio Cultural, da Universidade da
Região de Joinville/SC.

Juliani Borchardt da Silva - É doutoranda em Memória Social e Patrimônio


Cultural pela Universidade Federal de Pelotas. Possui graduação em
Administração- Projetos e Empreendimentos Turísticos pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (2009) onde também cursou
especialização em História, Cultura, Memória e Patrimônio (2012). É Especialista

229
em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2014) e mestra em Memória Social e Patrimônio
Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (2014). Graduada em História-
Licenciatura pelo Centro Universitário Internacional (2018). Atualmente atua na
assessoria acadêmica da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Campus
Cerro Largo-RS.

Luciano Lunkes - Formado em Regência Coral pela UFRGS, com especialização


pelo conservatório franz Lizst de Budapeste. Graduação em Gastronomia pelo The
French Culinary Institute of New York. É Mestre e Doutor pelo PPG- Memória
Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle/Brasil. No campo profissional,
atua nas áreas de Gastronomia e Música.

Maria Amália Silva Alves de Oliveira - Doutora em Antropologia. Graduada


em Turismo e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Professora do Departamento de Turismo e Patrimônio da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Memória Social (PPGMS/UNIRIO). Docente colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Ecoturismo e Conservação (PPGEC/UNIRIO).
Desenvolve pesquisas sobre os temas Turismo, Patrimônio, Memória e Cultura.
Coordena e participa de projetos de pesquisa financiados pela FAPERJ (Fundação
Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro) e CNPQ (Conselho
Nacional de Pesquisa).

María Laura Gili - És docente-investigadora en la Universidad Nacional de


Villa María, en el espacio curricular Historia Social, Política y Económica
Latinoamericana y es Docente Responsable del Modulo de Historia del Nucleo
de Formación Común. Ademas, es directora de la Usina Cultural en la misma
universidad. Doctora en Ciencias Naturales (Antropologia) por la Facultad de
Ciencias Naturales y Museo de la Universidad Nacional de La Plata, Argentina
(2011). Magíster en Ética Aplicada por el Departamento de Filosofía, de la Facultad
de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de Río Cuarto, Córdoba (2005). Y
Profesora en Historia por la Facultad de Ciencias Humanas, Departamento de
Historia, Universidad Nacional de Río Cuarto, Córdoba, Argentina (1995). Es
Delegada Regional/Villa María del Centro de Investigaciones Precolombinas
del Instituto del Profesorado Dr. Joaquín V. González, Ciudad Autónoma de
Buenos Aires. Dirige el proyecto de investigación Herencias Sociales y memoria
histórica en el Departamento San Martin de la Provincia de Córdoba (Argentina).
Historia y Cultura.

230
Pierre Ouellet - É professor aposentado do Departamento de estudos literários
da Université du Québec à Montréal. É membro da Société Royale du Canada,
escritor, poeta e ensaísta com obras traduzidas em várias línguas. Autor de
numerosos ensaios entre os quais L´esprit migrateur (2005), Le sens de l´autre,
éthique et esthétique (Montreal, 2003) Hors temps; poétique de la post-histoire
(Montreal, 2008).

Ronaldo Bernardino Colvero - Graduado em Estudos Sociais pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998), graduação em História
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999), mestrado
em História pela Universidade de Passo Fundo (2003) e doutorado em História
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2009). É professor
adjunto na Universidade Federal do Pampa, atuando no curso de Ciências Sociais
- Ciência Política e Licenciatura em Ciências Humanas, atualmente professor do
Pós-Graduação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Pampa e do Pós-
Graduação em Memória Social e Patrimônio da Universidade Federal de Pelotas.

Sandro Rodrigues da Silva - Doutorando e mestre em Memória Social e Bens


Culturais pela Universidade La Salle - Canoas/RS, linha de pesquisa memória,
cultura e identidade. Possui bacharelado em Administração com habilitação
em Administração Hospitalar pelo Centro Universitário Metodista IPA (2012).
Formando em Letras (2019) - Formação Pedagógica - FAEL. Especialista em
Administração de Pessoas pelo Instituto Educacional do Rio Grande do Sul -
IERGS (2016). Integra o quadro de colaboradores do Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial - SENAC Comunidade, ministrando aulas para turmas
de Aprendizagem Comercial, orientando o desenvolvimento de projetos culturais
e educacionais. Interesse de atuação nas áreas de pesquisa em identidade, gênero,
religiões afro-brasileiras, fenômenos culturais, cultura organizacional, gestão da
diversidade nas organizações, gestão da mudança e gestão da inovação.

Tanira Rodrigues Soares - É Doutora em Memória Social e Bens Culturais da


Unilasalle/Canoas (RS) e Servidora Técnica Administrativa da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Graduada em História pela Pontifícia
Universidade Católica – PUC/RS – Uruguaiana. Mestre Profissional em Memória
Social e Bens Culturais pelo Unilasalle/Canoas (RS), Especialista em Literatura
Brasileira pela UFRGS e em Metodologia do Ensino em História e Geografia pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI).

231
Editora Unilasalle
editora@unilasalle.edu.br
http://livrariavirtual.unilasalle.edu.br

Você também pode gostar