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ANDRÉ BUENO · DULCELI T.

ESTACHESKI · EVERTON CREMA

ESTUDOS EM HISTÓRIA E
CULTURA DO PRÓXIMO ORIENTE
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro

Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
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Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
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Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
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Washington Santos Nascimento [UERJ]

Rede:
www.revistasobreontes.site

Coordenador
André Bueno

Rede
www.orientalismo.site

Ficha Catalográfica

Bueno, André; Crema, Everton; Estacheski, Dulceli T. (org.)


Estudos em História e Cultura do Próximo Oriente. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Sobre
Ontens/UERJ, 2020. ISBN: 978-65-00-10671-8; 154pp.

História da Ásia; Diálogos Interculturais; Próximo Oriente

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Sumário
O FAZER DA GUERRA: A VISÃO DE TÁCITO SOBRE A PRIMEIRA GUERRA
ROMANO-JUDAICA por Ana Beatriz Siqueira Bittencourt ....................................................... 5
QUADRINHOS NO ENSINO DE HISTÓRIA: O IRÃ, A REVOLUÇÃO IRANIANA E
OUTRAS QUESTÕES A PARTIR DO QUADRINHO PERSÉPOLIS por Ananda Lays Costa
Rodrigues e Francisco Lucas Gonçalves dos Reis ...................................................................... 12
UMA REPRESENTAÇÃO DA GUERRA DO LÍBANO NO FILME “VALSA COM
BASHIR” por Augusto Agostini Tonelli e Letícia da Silva Leite .............................................. 19
UM NEGRO ENTRE OS “PAIS DO DESERTO”: REFLEXÕES SOBRE RAÇA NA
PRIMEIRA IDADE MÉDIA A PARTIR DE ABBA MOISÉS, O ETÍOPE por Bruno Uchoa
Borgongino .................................................................................................................................. 24
BANIDO EM ISRAEL: ROMANCE, CENSURA E RELAÇÕES PALESTINO-
ISRAELENSES por Carolline Cardoso de Mello ....................................................................... 32
RELIGIÃO, IDEOLOGIA, TECNOLOGIA E MILITARISMO: AS BASES PARA A
CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO ASSÍRIO por Elton Cesar Cavalcante e José Raimundo Neto 39
FEMINISMO ISLÂMICO VERSUS FEMINISMO SECULAR: A RESSIGNIFICAÇÃO DO
ISLÃ E A ACADEMIA por Fabiane Assaf e Anna Tereza Scartezini ....................................... 45
TEOCRASIA NO ANTIGO EGITO: OS SINCRETISMOS EM OSIR-HAP E SERÁPIS NA
RELIGIÃO FARAÔNICA por Felipe D. Ruzene....................................................................... 52
A QUESTÃO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA: BREVE ANÁLISE DO MUQADDIMAH (1377)
DE IBN KHALDUN (1332-1406) por Giovanna Ily Farias Ramalho........................................ 57
AS INICIATIVAS E AS REFLEXÕES SOBRE GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO DA
LUTA PELA CONCRETIZAÇÃO DE ROJAVA por Isabella dos Santos Daiub ..................... 62
BALDUÍNO IV: O REI LEPROSO DE JERUSALÉM por Jeferson Dalfior Costalonga ......... 69
O INTERESSE EUROPEU EM FINS DA IDADE MÉDIA EM RELAÇÃO AO ORIENTE: O
CASO DE ODORICO DE PORDENONE E RUY GONZÁLEZ DE CLAVIJO por Jorge Luiz
Voloski e Sofia Alves Cândido da Silva ..................................................................................... 76
A INFLUÊNCIA DE AVICENA NA FILOSOFIA OCIDENTAL por Junior Benedito Pleis e
Talita Seniuk ............................................................................................................................... 83
FOUCAULT E O IRÃ: O DESENHO DE UM JORNALISTA por Leandro Mendanha e Silva
..................................................................................................................................................... 88
AS MARCAS DO GENOCÍDIO ARMÊNIO NA HISTÓRIA E NA LITERATURA por
Leonardo Paiva Monte e Lilian Bento ........................................................................................ 94
REPRESENTAÇÕES COSMOGÔNICAS NO ANTIGO EGITO por Leonardo Candido Batista
................................................................................................................................................... 100
Referências ................................................................................................................................ 111
LITERATURA, LEITORES E ESCRITORES NA ANTIGA MESOPOTÂMIA por Maria Clara
M. Hagen ................................................................................................................................... 113

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FRAGMENTOS DO NACIONALISMO: A RELAÇÃO ENTRE OS SELOS E A POLÍTICA
OTOMANA DOS JOVENS TURCOS (1908-1918) por Matheus Henrique da Silva Alcântara e
José Otávio Aguiar .................................................................................................................... 119
PARA QUE O TEMPO NÃO APAGUE: AUTOBIOGRAFIAS NO EGITO ANTIGO por
Maura Regina Petruski .............................................................................................................. 130
ENTRE OS SÁBIOS, A BELEZA ‫ ألحسن‬,‫ مع ألحكماء‬por Rafael Maynart .................................. 135
A CERVEJA, A PROSTITUTA E A DEUSA: ENCONTROS NA TABERNA DA ANTIGA
MESOPOTÂMIA por Simone Aparecida Dupla ...................................................................... 140
A INFLUÊNCIA DA ARÁBIA SAUDITA NO PREÇO DO PETRÓLEO: 1973 E HOJE por
Carolina Brandt Carvalho e Vinicius Soares Gallier................................................................. 147

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O FAZER DA GUERRA: A VISÃO DE TÁCITO SOBRE A
PRIMEIRA GUERRA ROMANO-JUDAICA
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt
O presente artigo tem como objetivo apresentar um resumo dos principais
acontecimentos que marcaram a região da Judeia entre os anos de 66 e 73 d.C., ao
mesmo tempo em que trabalhara a narrativa elaborada por Tácito sobre o conflito.
Marco da insatisfação dos judeus, a Primeira Guerra Romano-Judaica foi composta por
diversas rebeliões ao longo do território desta província imperial. De certo, várias
foram as motivações que levaram ao estopim da revolta contra a dominação romana. As
tensões religiosas acumuladas ao longo do tempo e o pagamento excessivo de tributos
mobilizaram os grupos mais radicais em uma resistência manifesta e, por fim, em
rebeliões que levaram o conflito a se arrastar por consideráveis anos.

A narrativa elaborada por Tácito sobre a Guerra Romano-Judaica do primeiro século,


encontrada nos treze primeiros capítulos do Livro V das Histórias, apresenta como
característica uma clara priorização pelo tema militar, em particular os marcos da
movimentação das tropas romanas durantes os anos de sítio e confronto até a total
subjugação dos judeus na década de 70 d.C.

De fato, Roma permanece sempre como central no que tange o foco narrativo, o cerne
da obra que se propõe a descrever os conflitos do período, busca relatar o quadro
provincial tendo como referência as suas reverberações no contexto geral do Império.
De maneira mais específica, ao descrever a Guerra Romano-Judaica procura focar no
centro da resistência, situada na cidade de Jerusalém. Não obstante, ele mesmo afirma
ainda no início de sua explanação, que se deteria a “descrever os últimos dias desta
famosa cidade” [Histórias, V, 2]. Neste sentido, faz-se importante observar que da obra
proposta e escrita por Tácito, nos resta apenas uma parte que se encerra ainda no ano de
70 d.C., antes mesmo da conclusão da narrativa da própria destruição de Jerusalém.

Os anos próximos ao conflito, principalmente os anos de 68 e 69 d.C., marcaram um


período conturbado na história de Roma; o período da guerra civil que eclodiu ao longo
do Império, as diversas movimentações nas províncias, instabilidade, e em um espaço
curto de tempo a ascensão e queda de três imperadores e a ascensão final de Vespasiano
– conhecido como o ano dos quatro imperadores, o ano de 69 d.C. foi marcado pela
queda de Galba, que havia assumido após o suicídio de Nero, em meados do ano 68
d.C., ascensão e queda de Oto e Vitélio, e enfim a proclamação de Vespasiano como
Imperador.

Com o romper da revolta em 66 d.C., Tácito expõe que “a paciência dos judeus durou
até o mandato de Géssio Floro, sob o qual se instaurou a guerra” [Histórias, V, 10]. A
partir deste momento dá-se início às campanhas de combate à rebelião, a fim de
reestabelecer o controle romano. Mas as coisas não começam bem e com a derrota de
Céstio Galo, governador da província da Síria, e suas legiões, Nero designa Vespasiano
para assumir a frente de batalha. Obtendo sucesso em todas as batalhas na Galileia (com
destaque para o cerco de Jotapata), restava porém o centro do conflito em Jerusalém.

Mas, como narra Tácito, imerso nas guerras civis, o ano seguinte (68 d.C.) se passou

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sem que se entrasse em campanha de forma ofensiva contra os judeus. Depois de
reinstaurada a paz na Itália, os olhares voltam-se novamente para as questões pendentes
no exterior. “E o que aumentava suas iras era que só os judeus haviam recusado
submeter-se” [Histórias, V, 10]. O povo recusava se submeter, a guerra se estendia, e os
romanos se colocavam em maior gana pela resolução do problema.

Passado esse tempo, Tito é eleito por seu pai Vespasiano para terminar de submeter a
Judeia, passando então a sitiar a cidade de Jerusalém. Segundo Tácito, Tito que já era
famoso na batalha, se mostrava cada vez mais preparado; sua importância crescia,
conservando sua posição de chefe. Cabe refletir nesse momento, a própria imagem
construída de Tito ao longo da obra, tendo em vista que ele, nomeado chefe do exército
nas investidas contra a Judeia, e filho mais velho de Vespasiano, se tornaria mais tarde o
imperador (79-81 d.C.). “A construção da imagem de Tito parece ainda mais positiva,
nos poucos trechos das Histórias em que ele já aparece” [MARQUES, 2013, p. 144].
De certo, apresenta a visão do autor sobre o período. E talvez seja essa narrativa
também parte de uma comum propaganda dos feitos romanos.

No livro Roma: A história de um Império, Greg Woolf entende que o exército romano
em certa medida lograva êxito no conter as revoltas provinciais em pouco tempo.
Considera assim a revolta judaica um ponto fora da curva, na medida em que observa as
características físicas do espaço como empecilho ao avanço das tropas romanas de
maneira mais rápida e eficaz, o que a estende a um período mais longo de duração.

“O sistema romano, naturalmente, tinha também suas fraquezas. Uma das


consequências de depender de um exército de infantaria baseado na orla do império era
que ele respondia com lentidão aos desastres no interior. As tropas romanas foram em
geral bem-sucedidas contra rebeliões provinciais durante os primeiros dois séculos
depois de Cristo porque a maioria das rebeliões ocorreu relativamente perto das
fronteiras e os rebeldes costumavam manter uma posição estacionária e não tinham
fortificações. Em geral, a ordem era restaurada em questão de meses. A guerra judaica
durou tanto tempo porque os judeus possuíam fortalezas” [WOOLF, 2017, p. 274].

Tais fortalezas referenciadas no trecho de Woolf, foram caracterizadas por Tácito em


sua obra ao se colocar a descrever espacialmente a região e a formação das cidades.
Destaca: “A cidade se encontra dentro da primeira muralha; na segunda está o palácio
real, e na mais interior se encontra o Templo” [Histórias, V, 8]. Em suma, a cidade
possuía três muralhas e externamente um vale, estando a cidade em um lugar elevado de
difícil acesso.

No comando dos judeus estavam três chefes, que seriam responsáveis cada um deles por
uma parte do território de Jerusalém. Com divisões entre si, se lançavam em luta um
contra os outros, traições que levaram inclusive ao comprometimento das estruturas do
movimento. A cidade estava dividida em bandos, conflituosos entre si.Vale por sua vez
entender que os judeus desde a revolta dos Macabeus – ou seja, durante a dominação
helenística – vinham também divididos em grupos religiosos, que constantemente
estavam em conflito devido as diferentes abordagens quanto aos acontecimentos.

Ao final do trecho conservado, a narrativa passa a comentar a formação do exército de

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Tito diante dos muros de Jerusalém, bem como a forma de defesa naquele momento
estabelecida pelos judeus. Apresentadas as legiões em formação de batalha, os judeus se
posicionaram à frente das mesmas muralhas; com o lançar ao assalto da cavalaria com o
apoio das coortes ligeiras, há o confronto com resultados indecisos, mas que ao fim por
conta de inúmeras perdas, fazem com que os judeus recuem para dentro do recinto
amuralhado. Ao todo, a narrativa fala em mais de 600 mil sitiados, entre eles homens e
mulheres de todas as idades; assim, todos quantos podiam, com a mesma obstinação
pegavam em armas, pois “se eles fossem forçados a abandonar sua terra natal, era maior
o medo pela vida do que pela morte” [Histórias, V, 13].

Indo além do que é apresentado no texto de Tácito, que para nós só se preserva até a
construção das máquinas de assédio à Jerusalém. No ano de 70 d.C., com o fim do
enfrentamento em Jerusalém, a cidade fica em ruínas, e o Templo, símbolo da religião,
fora destruído. Sendo esses fatos importantes para pensar as mudanças que a partir deste
momento são geradas na religião e na cultura judaica. “A reação de Roma foi,
naturalmente, duríssima, e podemos dizer que talvez tenha sido apenas o povo judeu a
arriscar verdadeiramente o genocídio por parte de Roma” [BRIZZI, 2003, p. 142]. Mas
a guerra ainda não estava totalmente finda, pois ainda restava um último importante
ponto da resistência a ser subjugado, situado em Massada, à sudoeste do Mar Morto.
“Três anos depois da destruição de Jerusalém ainda resistia, última extremidade
independente de território judaico em cujo interior sobrevivia a perigosa chama do
sonho messiânico” [BRIZZI, 2003, p. 140].

Este é enfim um episódio controverso, já que levou a um suicídio em massa dos sicários
e famílias judias que ali residiam. Ademais, o ocorrido posterior em Massada é a
demonstração mais clara – e no caso, a final, já que com a vitória em Massada no ano de
73 d.C. a Primeira Guerra Romano-Judaica é finalizada –, do que Tácito afirma ter
irritado os romanos, a insubmissão que persistia, e persistiu no sonho de liberdade.

O fazer da guerra
Analisando de maneira mais ampla, a guerra enquanto acontecimento tem estado
presente em todos os períodos ao longo da história em menor ou maior incidência, é
anterior ainda ao que entendemos hoje como Estado. O historiador britânico John
Keegan, em seu livro Uma história da Guerra afirma que “a guerra é quase tão antiga
quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano, lugares
em que o ego dissolve os propósitos racionais, onde reina o orgulho, onde a emoção é
suprema, onde o instinto é rei” [KEEGAN, 1996, p. 19].

Vale aqui refletir sobre a tese defendida por Keegan, ao percebê-la intrinsecamente
ligada à cultura, em contraponto com a teoria criada por Clausewitz na obra Da Guerra,
onde a guerra seria uma espécie de continuação da política por outros meios. Vindo do
latim, o termo cultura está ligado às ideias de cultivar, culto, cuidar. Produzida pelo
homem, é o “conhecimento adquirido no ambiente não-formal do aprendiz, por
imitação, condicionamento inconsciente por reinterpretação pessoal de um dado
anterior” [ANDRADE et al., 1999]. Dessa forma, se faz impossível a dissociação dos
traços da cultura da personalidade de cada um a ela ligado.

A partir disto, é importante ter em mente que para os romanos não existe propriamente

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uma separação entre o mundo civil e o militar. Ambas as esferas aparecem muito bem
fundidas nesta percepção. É por isso, que parte importante para entender o pensamento
romano, e o próprio fazer da guerra, é o entendimento do conceito da fides. “Nesse
âmbito, de fato, eles eram contidos pelo respeito a um ethos ancestral, e bastante tenaz”
[BRIZZI, 2003, p. 30]. Presente no conjunto maior da chamada mos maiorum, são os
valores do homem ligados à construção de uma ética; as virtudes romanas, por
excelência, buscadas. “O romano das origens parece ter construído ao redor da fides
toda sua concepção de relacionamento entre os povos; e também a guerra, que
representa uma fase desse relacionamento” [BRIZZI, 2003, p. 31].

É a personificação da palavra empregada, garantia de credibilidade e confiabilidade.


Está ligada à ideia de compromisso, e é por isso que é ponto crucial na constituição do
próprio direito romano. Dentro do exército, esse entendimento não se faz diferente, a
fides é essencial entre as relações de comando onde se precisa haver dedicação e
fidelidade à Roma, seus feitos e seus cidadãos, bem como confiabilidade na palavra de
comando gerada.

Ou seja, a fides do exército romano está relacionada com a virtude e o favor divino que
marcam sempre a grandeza de Roma quando há também o empenho coletivo para o bem
de todos (opera vestra). Nas Histórias, por causa do próprio clima de guerra civil, a
fides exercituum é um dos pontos fundamentais do texto de Tácito, pois é por meio dela
que vemos as respostas das legiões ao comando dos generais e ao sucesso ou fracasso
de cada um dos imperadores [MARQUES, 2013, p. 179].

O estudo sobre a guerra e seus desdobramentos, principalmente a partir da percepção da


guerra como manifestação da cultura, nos remonta a uma perspectiva mais complexa do
fazer e entender a guerra, imbricado na própria visão de mundo do romano,
indissociável e repleta de valores que em certa medida moldavam o seu caráter. Por via
de regra , “a história romana está cheia dessa mistura de domínio violento e ductilidade,
de sentido profundo e inflexível de imperium e de talento para descobrir soluções
maleáveis” [GIARDINA, 1992, p. 17].

O historiador italiano Giovanni Brizzi, em seu livro O guerreiro, o soldado e o


legionário: os exércitos no mundo clássico, considera que a forma de luta judaica se deu
de maneira bastante particular, tendo conseguido através da resistência armada contra
Roma, ousar e realizar o que ele chama de um formidável, e perigosíssimo para Roma,
salto de qualidade. Longe de ser entendida enquanto uma simples guerrilha, a Guerra
Romano-Judaica mesmo tendo sido findada, e as estruturas formais rendidas,
permaneceu viva nos indivíduos remanescentes [BRIZZI, 2003, p. 141]. Tanto é que
anos depois, em mais duas diferentes tentativas, eclodem novas rebeliões.

No que tange o processo de conquista da Judeia, por conta de suas especificidades, se dá


de maneira diferente da forma como ocorria na parte ocidental do Império. O historiador
Jorwan Gama em muitos de seus estudos defende que foi o alto nível de complexidade
social daquela região que contribuiu como geradora da diferença quanto às estratégias
adotadas pelo Império, bem como foi também o que ao mesmo tempo gerou o
turbulento período da dominação romana. “Portanto, os romanos tiveram que
estabelecer estratégias de dominação diferentes daquelas que tiveram para o domínio no

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Ocidente” [GAMA, 2011, p.75]. Ele destaca também que a incidência de revoltas
armadas no Ocidente teve menor ocorrência do que na Judeia

É preciso destacar que assim como em todo e qualquer processo de estabelecimento de


relações entre diferentes povos há as diferenças culturais, e também na relação entre
dominador e dominado há o diálogo de culturas, a absorção de costumes, a percepção de
similaridades e ainda mais o destaque das peculiaridades de cada uma.

Não há porém como se negligenciar o fato de que a dominação romana, e anteriormente


helena, até certo ponto influenciaram também a cultura daquele povo. Woolf defende
que no processo de formação de um império ambos os lados são transformados,
havendo um diálogo entre a cultura do conquistador e do conquistado. No caso da
Judeia há que se destacar a especial autonomia da comunidade em relação aos assuntos
locais; no princípio, com Herodes, essa relação se estabeleceu com alguém ligado à
comunidade, que mantinha boas relações com Roma. Prestavam contas à Roma,
pagavam os impostos requeridos, mas se estabeleciam com bastante liberdade na
resolução dos assuntos internos, bem como no praticar da religião.

Assim, pensar a Primeira Guerra Romano-Judaica é pensar em uma resistência que se


favoreceu e fortaleceu pela forma de dominação de bastante autonomia às comunidades
nos assuntos locais. Enquanto na parte Ocidental do Império o processo de conquista se
dava estruturalmente na implementação dos modelos de cidades, na difusão do modo de
ser romano e nos ideais latinos; na parte Oriental, e no caso mais distinto da Judeia, os
objetivos não perpassavam mais essas necessidades, ao passo que no período muitas
cidades da região já eram bem desenvolvidas e organizadas, assim as estratégias
versavam muito mais em uma afirmação de valores, e negociação colonial.

Fato marcante é a anterior dominação helena na região. Apesar de Tácito considerar em


sua obra que a introdução dos costumes gregos não foi suficiente para acabar com o que
ele chama de “superstição judaica”, é claro como aquele povo sofreu influências que
vão desde sua forma de organização até traços na cultura da época. O judaísmo do
primeiro século em seu contexto histórico-sociocultural, apresenta a complexidade da
religião e da sociedade judaica em uma influência helenístico romana.

A priori, é importante entender o Mediterrâneo antigo como o primeiro sistema-


mundo, imerso em um processo de mundialização e integração ao redor do mar.
Civilizações sobrepostas e comunidades que viviam em uma rede de conexões, não
existindo isoladamente, mas no interior de uma grande teia de relações com
necessidades em fluxo contínuo. Redes de contato por onde circulavam bens, pessoas,
divindades, ideias, técnicas, práticas.

Nessa conjuntura, falar sobre o Mediterrâneo e seus caminhos, nos leva a entender a
Jerusalém desse período enquanto centro cultural e religioso, para onde e de onde
confluíam o pertencer judaico. O Templo, por exemplo, era o marco da religião. Apesar
das comunidades da diáspora terem as sinagogas como espaço de vida social e religiosa,
em última instância o Templo de Jerusalém era o único espaço onde a religiosidade
judaica encontrava sua religiosidade definitiva com as práticas sacerdotais e sacrificiais.
“Aliás, a singularidade desta comunidade estava intimamente vinculada ao fato de que,

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ao contrário das grandes civilizações do Oriente, ela era basicamente identificada por
uma questão religiosa: o monoteísmo” [LOBIANCO, 1999, p. 57].

Outro ponto importante de destaque é o aprofundamento do conceito de negociação


cultural. Mais do que meramente uma ideia simplista de dominação baseada apenas na
coerção física, esse processo tem por bases a construção de um ambiente de domínio
mais estratégico de relações da elite romana com a elite provincial. Vê-se então o papel
ativo das comunidades locais no destrinchar de todos acontecimentos, quer sejam eles
de submissão, ou da elaboração de táticas de resistência e confronto.

Em suma, nas palavras de Jorwan Gama, concluímos:

“Portanto, apesar de fazerem parte de um mesmo contexto imperial, Roma e Judeia


apresentam histórias diferentes com ritmos de desenvolvimento próprios, mas que
precisam ser estudadas em conjunto para a compreensão das relações de dominação da
primeira com a segunda. Preocupamo-nos, desse modo, em estudar o passado judeu
antes do domínio romano, as interações com as culturas helenísticas, a sociedade
judaica, as facções envolvidas na luta pelo poder judaico, as diferenças entre as facções
e a fragmentação da elite judaica. Todos estes tópicos são de fundamental importância
para a compreensão do desenvolvimento domínio imperial romano na Judeia” [GAMA,
2011, p. 80].

Referências
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt é mestranda em História Social com ênfase em
História Antiga pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense (PPGH-UFF), sendo graduada em História pela mesma universidade.
Contato: bia.sbittencourt@gmail.com.

Fonte: TÁCITO, Cornelio. Libros de Las Historias. Edição bilíngue. Tradução de


Joaquín Soler Franco. 2ª ed. Zaragoza: Institución Fernando el Católico (CSIC), 2015.
[tradução nossa]
ANDRADE, Julieta de; SOARES, Luiz Fernando de Andrade; HUCK, Roberto.
Conceito etimológico de cultura. In: ANDRADE, Julieta de; SOARES, Luiz Fernando
de Andrade; HUCK, Roberto. Identidade Cultural no Brasil. São Paulo: A9 Editora e
Empreendimentos, 1999.
BRIZZI, Giovanni. O guerreiro, o soldado e o legionário: Os exércitos no mundo
clássico. São Paulo: Madras, 2003.
GAMA, Jorwan. A aplicação do conceito de resistência ideológica nas moedas judaicas
da primeira revolta dos judeus contra os romanos. Revista Jesus Histórico e sua
Recepção. Ano IV, Vol. 6, 2011, p. 68-80.
______. O imperialismo romano e as especificidades da Judeia: Um quadro
teóricoconceitual. Revista Eletrônica Antiguidade Clássica 7, nº 1, 2011, p. 73-86.
GIARDINA, Andrea (org.). O homem romano. Lisboa: Editorial Presença, 1992.
KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo-Rio de Janeiro: Companhia das
LetrasBibliex, 1996.
LOBIANCO, Luís Eduardo. O Outono da Judéia (séculos I a.C. – I d.C.): resistência e
guerras judaicas sob o domínio romano – Flávio Josefo e sua narrativa. Dissertação de
mestrado – Faculdade de História, Programa de Pós-Graduação em História da

10
Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói, 1999.
MARQUES, Juliana Bastos. Tradição e renovações da identidade romana em Tito Lívio
e Tácito. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013.
WOOLF, Greg. Roma: A história de um Império. São Paulo: Cultrix, 2017.

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QUADRINHOS NO ENSINO DE HISTÓRIA: O IRÃ, A
REVOLUÇÃO IRANIANA E OUTRAS QUESTÕES A PARTIR DO
QUADRINHO PERSÉPOLIS
Ananda Lays Costa Rodrigues e Francisco Lucas Gonçalves dos Reis
Introdução
Considerando o grande avanço tecnológico e a ampliação de recursos didáticos na sala
de aula, as metodologias de ensino vêm se remodelando com o decorrer das gerações,
logo, diante dessa novidade foi incluído no campo da História, diversos recursos
didáticos que auxiliam no envolvimento do aluno com o assunto repassado, como: a
música, aparatos tecnológicos (slide, celular, computador) a literatura, as histórias em
quadrinhos (ou, HQ’s), dentre outros meios. O objeto de pesquisa a ser analisado no
presente artigo trata-se das HQ’s no Ensino de História, trazendo a partir do discurso de
Persépolis, duas características fundamentais para o ensino básico: uma desconstrução
das ideias preestabelecidas sobre o Irã, e as cargas de informações socioculturais que
apresenta.

Utilizamos aqui a denominação “história em quadrinhos”, mas vale ressaltar que


Persépolis enquadra-se como uma graphic novel (na tradução ‘romance gráfico’), por
ser um quadrinho mais longo do que as HQs convencionais geralmente, e por explorar
uma trama mais elaborada e personagens mais complexos. O termo graphic novel está
associado à Wil Eisner, que utilizou o termo para batizar um de seus quadrinhos, esta
expressão ficou conhecida nos Estados Unidos nos anos 80 quando foram produzidas
muitas HQ’s autorais no país (FRANCO apud VILELA, 2012, p.54). Eisner publicou
um dos primeiros quadrinhos neste estilo, chamado “Um contrato com Deus”.

Histórias em quadrinhos: do surgimento no campo da História à recurso didático


A Utilização das HQ’s no campo da História é algo extremamente recente, pois os
historiadores e profissionais da educação tinham uma visão minimizada e desprezavam
seus fins, tanto como fonte histórica de pesquisa como para propósitos educativos.
Desse modo, somente na segunda metade do século XX que houve um processo de
repensar esse recurso, na medida que perceberam que não se tratava de um objeto
prejudicial para aprendizagem, pois, com a apropriação das HQ’s em pesquisas e
consequentemente a sua aplicação na sala de aula, isso, nos EUA, não demorou muito
para essa ideia ser implementada no Brasil. (SILVA e SOUZA, 2018).
As HQ’s, assim como qualquer recurso literário, é uma produção cultural, que por sua
vez, possuem historicidade, pois são frutos de seu tempo. Dessa forma, é um objeto
histórico, que é tido como um artefato cultural, podendo ser útil para diversos fins,
conforme afirma Vilela:

“Poderíamos analisá-la tanto por suas características como objeto (o tipo de papel em
que foi impresso, o estado de preservação, a técnica de impressão que foi utilizada, se as
páginas estão grampeadas ou coladas, com a lombada quadrada etc.) quanto poderíamos
analisá-la pelo seu conteúdo. Faríamos em relação ao seu conteúdo, as mesmas
perguntas básicas que faríamos em relação a qualquer outro documento ou fonte
histórica. Quem o produziu? Quando? Onde? Como? Com qual finalidade? A quem se
destinava?” (VILELA, 2012, p. 90)

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Logo, levando em consideração informações como estas, principalmente analisar o
período histórico trabalhado e a abordagem do conteúdo, o seu uso passou a ser
oficializado entre historiadores, como objeto de pesquisas, recurso metodológico no
ensino e por fim, recentemente ocorreu a sua inserção nos livros didáticos.

As HQ’s foram introduzidas no ambiente escolar brasileiro no final da década de 1970,


na medida que foram percebidas como uma fonte rica de transmissão de conteúdo. Em
1980 ganhou mais notoriedade, com quadrinhos didáticos de Mauricio de Souza, Zélia
Lopes e Marcos Aurélio Pereira. Em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), elenca a possibilidade e a necessidade de novos meios educacionais no
ensino fundamental, porém, somente os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS), no
ano de 1997, incorporou o uso das histórias em quadrinhos no seio escolar. Um
benefício que se refletiu no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que desde
então passou a comprar essas obras e disseminar nas escolas de ensino fundamental e
médio. Vale ressaltar que somente em 2006 as HQ’s, em formato de tirinhas, passaram
a ser implementados no livro didático (LIMA, 2017).

As HQ’s enquanto recurso didático, possuem características que estão para além da rede
de informações, é um meio de melhorar a interação entre aluno e o assunto repassado,
pois trata-se de trazer algo presente em seu cotidiano, para relacionar com assuntos que
aconteceram no passado ou presente, seus elementos de comunicação, sua abordagem
simples e cativante, também são pontos relevantes que estimulam a aprendizagem.
Conforme menciona Vergueiro:

“Essa forma de linguagem tem elementos únicos como balões e onomatopeias,


além da interação com o leitor nas passagens dos quadros, chamada de conclusão
ou elipse, na qual o leitor tem que concluir os acontecimentos entre os
quadrinhos, como na que o leitor deve imaginar o que ocorreu [...] a interligação
entre texto e imagem, as diversas informações de diversas áreas do conhecimento,
contidas nos quadrinhos, a familiaridade dos jovens com essa linguagem, a
acessibilidade a outras formas de comunicação, o estímulo ao hábito de leitura, o
enriquecimento vocabular, dado ao fácil entendimento a sua leitura, o caráter
elíptico dos quadrinhos que obrigam os alunos a pensar, além da possibilidade de
uso em qualquer faixa etária são apenas alguns usos dessa linguagem no ensino”.
(VERGUEIRO, 2009, p. 35-40 apud SILVA e SOUZA 2018, p. 03).

É a partir de lógicas simples como, ler, observar, pensar e imaginar que as HQ’s se
tornam um objeto contendo infinitas faces para seu uso em sala de aula, sobretudo, no
ensino de História. Apesar de ter se firmado recentemente no campo historiográfico,
trazendo novas formas de fontes e de abordagens, ao reportar no meio educacional,
condiciona o aprendizado de eventos históricos de modo didático. É pertinente observar
que dentro do próprio campo historiográfico, mesmo após transitar para etapa do
ensino, é necessário ter cautela, pois assim como qualquer outra fonte, esta precisa ser
analisada e problematizada, visto que deve ser feita a seleção correta de materiais, a
análise da história, sua abordagem e seus proveitos no geral, para que se possa evitar o
repasse errado de informação e até mesmo o pior pecado que um historiador pode
cometer, o anacronismo, da qual seria retratada como uma falha dupla, haja vista que
estaria expondo informações inválidas. (LIMA, 2017).

13
Lima ainda prossegue elencando que as HQ’s são elementos que através da linguagem e
dos desenhos, constroem realidades, a partir da imaginação, mas abarcando em seu
enredo assuntos socioculturais por exemplo, ora como sendo uma exposição real do
passado ou do presente, transformando-se em uma reconstrução de um fato histórico,
descrição que se aplica diretamente ao estilo de quadrinho mais longo como Persépolis,
entre outros neste estilo. (LIMA, 2017, p. 158)

Persépolis na sala de aula


O quadrinho Persépolis é uma autobiografia de Marjane Satrapi, a primeira iraniana a
publicar uma história em quadrinhos, inicialmente publicada em volumes diferentes,
sendo que a edição aqui utilizada é aquela lançada pela Companhia das Letras em 2007,
e que contém a história em volume único. Com o quadrinho a autora pretendia ilustrar a
realidade de seu país e de sua cultura às pessoas com as quais convivia na Europa. O
título da obra faz referência à antiga capital da Pérsia, que fica ao nordeste do que hoje
conhecemos como Irã.

Marjane Satrapi nasceu numa família moderna e politizada, e em 1979 assistiu o início
da revolução que colocou o Irã sob o regime xiita. De forma que aos dez anos se viu
obrigada a usar o véu islâmico numa sala de aula só de meninas. Por ser de família bem
instruída, desde pequena teve acesso a informações coerentes e críticas e muitos livros,
o que lhe permitiu crescer com um senso de justiça bem apurado e assim desenvolver
uma consciência de classe, ponto crucial para sua formação intelectual e a forma que
enxerga o mundo. No quadrinho, a autora conta sua história a partir de um relato em
primeira pessoa, e narra todas as suas experiências e conflitos ocorridos em seu país, de
forma que passamos pela infância, adolescência e vida adulta da autora, todas as fases
de sua vida repletas de fatos históricos importantes e acontecimentos marcantes,
narrados de maneira leve, direta, clara e com um certo toque de humor sempre que
possível.

O quadrinho Persépolis, se apresenta como uma excelente obra para ser lida e
trabalhada nas aulas de História no Ensino médio, por ser repleta de possibilidades
didáticas que podem ser aplicadas em sala de aula. Uma dessas possibilidades é a
realização de debates sobre o contexto social e cultural acerca da sociedade iraniana,
uma vez que a obra contempla temas que vão desde a guerra Irã-Iraque, as mulheres e o
Islã, a Revolução Iraniana, e até mesmo fundamentalismo religioso e questões de gênero
que perpassam a história real da autora. A linguagem da história em quadrinhos (verbal
e visual), contando com a forma leve que a autora usa para tratar de temas complexos
ajuda a envolver os alunos no contexto, levando-se em conta que este gênero já é
conhecido pela maioria dos jovens, onde a maioria já teve contato ou experiência de
leitura de algum quadrinho. A aproximação deste quadrinho em específico com os
alunos do ensino médio, ainda pode ocorrer devido ao fato da autora também relatar o
momento da sua adolescência e início de vida adulta, tratando de assuntos que podem
fazer com que todos se identifiquem.

Há ainda a possibilidade de uma atividade interdisciplinar entre disciplinas como


história, literatura, sociologia, filosofia e artes, uma vez que ao longo da história surgem
diálogos citando alguns teóricos, revolucionários, debates que podem ir para o ramo da

14
sociologia, filosofia entre outros. É importante que o professor ressalte que todos os
fatos, tragédias e acontecimentos fizeram parte da história real da autora, uma vez que o
quadrinho é uma autobiografia. É possível assim que a leitura e o debate causem uma
sensação diferente nos alunos, que comumente leem quadrinhos sobre super-heróis,
situados no universo da ficção, onde os personagens sempre resolvem seus conflitos
utilizando-se de superpoderes, o que acaba por ser diferente em Persépolis.

O uso da presente obra mostra-se essencial por apresentar aos alunos uma das
sociedades cujo contexto envolve uma religião geralmente conhecida pelo
fundamentalismo religioso e da relação das mulheres na mesma, sempre vistas como
submissas, no entanto, podemos perceber ao longo do quadrinho que Satrapi traz uma
visão que contempla outros aspectos não comumente tratados, como o exemplo da
personagem questionar algum comportamento obrigatório ás mulheres mesmo em pleno
início da Revolução Iraniana, de forma que este e vários outros exemplos ao longo do
quadrinho nos mostra que Satrapi desconstrói os estereótipos apresentados pelo senso
comum, que vão desde caras barbudos, fundamentalistas, mulheres completamente
cobertas e submissas, guerras e mais guerras, entre outros pontos que se encaixam
naquilo que Edward Said (2007) chamou de orientalismo, em que o ponto de vista
ocidental define o Oriente como um outro, quase sempre dominado e subalterno.

Satrapi contribui assim ao trazer uma nova perspectiva sobre temas muitas vezes
incompreendidos no Ocidente, desde a situação política do Irã, a identidade iraniana e
também acerca do islamismo. Sobre este último ponto, Regiani e Medeiros ressaltam:

“A ideia de um atraso das nações e povos islâmicos convergem para uma hierarquização
do imaginário social norte-americano na produção de estereótipos sobre a cultura
islâmica. Bem como, esta compreensão ilustra também como é apreendida o islamismo
no Brasil. Diversos livros didáticos brasileiros incorrem no mesmo erro ao estigmatizar
a dita ‘civilização árabe-muçulmana’ negando uma ‘contemporaneidade’ no passado e
no presente”. (REGIANI e MEDEIROS, 2019, p.28).

Dentre os temas trabalhados em Persépolis temos a Revolução Iraniana, de 1979,


também chamada de Revolução Islâmica, momento em que o Aiatolá Khomeini derruba
o Xá Reza Pahlevi, e é instaurada no país a República Islâmica (momento que faz com
que Marjane saia do país, e ao longo da história a personagem vai transitar entre Oriente
e Ocidente, ponto que pode ser utilizado para se discutir sobre identidade e sentimento
de pertencimento). É um acontecimento crucial na história do Irã, e pode-se discutir
com os alunos as formas de governo, a questão das liberdades individuais e o controle
que o Estado consegue exercer sobre os indivíduos, uma vez que política e religião se
confundem, e as leis se confundem com os preceitos da religião, levando a discussão
para uma direção do que seria o fundamentalismo religioso. Neste ponto, é importante
que o Professor ressalte que em todas as religiões possuem diferenças e há também os
radicais ou fundamentalistas, e que isso não acontece só no Islã, o que ajuda a passar
uma visão diferente para os alunos, aquela da compreensão de uma crença diferente da
sua.

Outro ponto que pode ser abordado a partir da obra é a questão dos refugiados, fato que
comumente é mostrado na tv. Marjane ao voltar da Áustria, passa por um momento

15
complicado, uma vez que adquiriu “hábitos ocidentais” e que em seu país de origem a
fez se sentir diferente dos demais, da mesma forma quando seus pais a enviaram para
Áustria, as diferenças culturais a fizeram vivenciar experiências marcantes em sua vida,
alguns marcados pelo preconceito pelo fato da mesma ser iraniana (em certo ponto
Marjane chega a negar ser iraniana, e se diz francesa). É importante que seja discutido
este aspecto, pois os refugiados além dos preconceitos que sofrem por fugirem de
realidades ou contextos que muitas vezes estão associados ao terrorismo ou algo visto
como ruim ou perigoso, ainda passam pela dificuldade de adaptação, em relação ao
idioma que precisam aprender, onde até mesmo seus comportamentos já não podem ser
os mesmos, uma vez que por estão em ambientes completamente diferentes, onde a
ideologia assim como toda a cultura da nova realidade parecem muito distantes.

O quadrinho ainda abre possibilidades para discussão á respeitos de outros pontos, tais
como: o papel do Irã na geopolítica atual, as mulheres na sociedade iraniana, as
questões de gênero e as mulheres no Islã, os aspectos culturais, a questão das liberdades
individuais, a situação dos refugiados e a questão da identidade, a Revolução Islâmica,
entre outros. Considerando a quantidade de aulas por semana, e levando-se em conta
que o quadrinho é longo, o Professor pode sugerir que todos leiam a obra em casa, e
enquanto não concluem a leitura do mesmo, pode-se trabalhar com tais assuntos a partir
do que aparece no livro didático, acompanhado de textos complementares. Terminada a
leitura, o Professor pode dividir o debate por grupos, cada um responsável por uma das
temáticas citadas anteriormente.

Em relação ao Islã e o comportamento das mulheres, assim como a vestimenta, é algo


que se faz presente desde o início do quadrinho, quando Marjane, assim como as outras
crianças não entendem o porquê do uso do véu, de forma que ao longo da história a
personagem chega a questionar o porquê de alguns comportamentos e vestimentas das
mulheres, sendo suas atitudes vistas como feministas se olharmos à luz das discussões
atuais. Isto abre a possibilidade para uma discussão a respeito da obrigatoriedade ou não
do uso do véu em diferentes países, o que levará os alunos ao conhecimento das
diferenças dentro da religião, e que por estarem cobertas, não significa necessariamente
submissão. É importante que o Professor destaque por exemplo a existência de
movimentos feministas islâmicos.

Outra característica deste quadrinho é que está todo em preto e branco, o que ajuda nos
momentos pesados da história, quando da morte de alguém ou algum momento triste,
pois o clima apenas em preto e branco ajuda a manter um ritmo de leitura ao longo da
história, e a atenção do leitor não fica presa neste ou naquele detalhe por estar colorido
ou devido á determinado efeito, o preto e branco faz com que a escrita e as imagens
recebam a mesma atenção. Além disso, dentro do quadrinho não aparece somente a fala
dos personagens, há também os espaços em que a autora conversa com o leitor na
medida em que tudo acontece, colocando as memórias que tem daqueles
acontecimentos, o que nos faz perceber que ao longo da história ficamos cada vez mais
próximos da autora e também do Irã.

Conclusão
Reconhecemos que a metodologia aqui posposta, que utiliza do quadrinho nas aulas de
História, e utilizando em especial o quadrinho Persépolis não abarca o Oriente como um

16
todo, mas ajuda a discutir, debater e refletir sobre questões da sociedade iraniana, e que
apresenta um quadro semelhante em outras regiões, principalmente quando se trata da
religião e as mulheres, das guerras, ou do fundamentalismo religioso, e objetivam
educar o olhar dos alunos para que ao se depararem com os constantes conflitos
mostrados na tv, entendam o contexto, as diferenças, e não reproduzam preconceitos.

Sem exagero algum, uma obra como Persépolis, é extremamente importante e urgente
que seja trabalhada em sala de aula, ao considerarmos o aumento das tensões entre EUA
e Irã causada pelo assassinato do general Qassim Soleimani morto em ataque aéreo dos
EUA em Bagdá no início deste ano. Infelizmente tal acontecimento só fez com que
todos os olhares se voltassem para a região, buscando fazer análises do contexto, e os
julgamentos precitados surgiram aos montes sempre desconsiderando a história do Irã.
Daí a importância de levar a obra para a sala de aula, com o objetivo de fazer com que
os alunos entendam as questões envolvidas e possam entender muitos aspectos do Irã de
hoje, sua participação na geopolítica atual, sua religião, as diferenças internas, entre
outros pontos.

Com a leitura deste quadrinho, e com as dicas dadas neste texto, objetivamos que o
Professor consiga mostrar aos alunos outra forma de fazer e de compreender a história,
que falam e contemplam outros sujeitos, história que vai além do homem ocidental,
branco, dito “civilizado”, e cristão. Persépolis além de abordar fatos históricos a
respeito da sociedade iraniana, trata de temas que, se bem trabalhados em sala de aula,
podem contribuir para a diminuição dos preconceitos, a partir do conhecimento e da
compreensão de uma realidade diferente da sua, ajudando assim na compreensão,
respeito e aceitação das alteridades.

Referências
Ananda Lays Costa Rodrigues é Graduanda do Curso de História – Licenciatura, da
Universidade Estadual do Maranhão, campus Caxias (CESC-UEMA).
Email: nandalays10@gmail.com.
Francisco Lucas Gonçalves dos Reis é Graduando do Curso de História – Licenciatura,
da Universidade Estadual do Maranhão, campus Caxias (CESC-UEMA).
Email: franciscolucas075@gmail.com.

LIMA, Douglas Mota Xavier de. História em quadrinhos e ensino de História.


Revista História Hoje, v. 6, nº 11, p. 147-171, 2017. Disponível em: <
https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/332>. Acesso em: 21.08.2020
REGIANI, Álvaro Ribeiro; MEDEIROS, Kenia Erica Gusmão. O uso de quadrinhos
no ensino de História: discussão sobre as representações da tradição e da modernidade
na cultura islâmica a partir do graphic novel Habibi. In: BUENO, André;
ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO, José Maria de Sousa [orgs.] Oriente
Médio Conectado. Rio de Janeiro: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. p. (23-34).
ISBN: 978-85-65996-75-4. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1xQWLHL7N0-y6-HsWIG7WS4eMLLJyT2Ks/view>.
Acesso em: 14.08.2020.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura
Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

17
SATRAPI, Marjane. Persépolis. Trad. Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
SILVA, André Luiz Sousa da; SOUSA, Mateus Sampaio de. Era uma vez... HQ:
História em quadrinhos construindo conhecimento histórico no ensino
fundamental. Disponível em:
<http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/5asjornadas/q_educacao/mateus_andre.pdf>
Acesso em: 15.08.2020.
VILELA, Marcos Túlio R. A utilização dos quadrinhos no ensino de História:
avanços, desafios e limites. 322f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2012. Disponível em:
<http://tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/971/1/Marco%20Tulio%20pag%201_100.
pdf>. Acesso em: 15.08.2020.

18
UMA REPRESENTAÇÃO DA GUERRA DO LÍBANO NO FILME
“VALSA COM BASHIR”
Augusto Agostini Tonelli e Letícia da Silva Leite
A Guerra do Líbano (1975-1990), atualmente conhecida como Primeira Guerra do
Líbano, esteve ligada a desentendimentos entre diferentes grupos nacionais no Líbano,
tais como cristãos e muçulmanos. O desentendimento se fortalece com a criação de
acampamentos palestinos no Sul do país, já que os cristãos, que representavam maioria
política no país, se manifestaram contra a presença de palestinos em território libanês,
apoiando a causa de Israel no Oriente Médio, enquanto os muçulmanos apoiavam a
presença de palestinos, sendo, automaticamente, contrários à causa israelense. A
situação se expandiu até que as manifestações muçulmanas sofreram repressão do
exército libanês, fazendo-se uso de artilharia contra suas cidades.

Neste contexto, buscando obter o apoio israelense, a milícia maronita Falange, uma
milícia cristã de extrema direita que lutava contra os muçulmanos nacionalistas e os
militantes palestinos libaneses, comete atentados às comunidades palestinas e
muçulmanas, buscando, com isso, atrair a Organização para a Libertação da Palestina
(OLP) para o conflito. A estratégia, ao envolver a OLP na Guerra Civil, era levantar a
possibilidade de que ela se transformasse em uma das lideranças pós-conflito, o que
seria inadmissível a Israel. O objetivo foi alcançado e a OLP se juntou aos combatentes
do Movimento Nacional e Israel se aliou às Falanges Libanesas. Vale ressaltar que:

“O Líbano estava claramente dividido em quatro territórios: o leste e o norte estavam


sob o controle da Síria; o centro-leste (as Montanhas do Líbano) era controlado pelos
‘cristãos’; o sul era dominado pela OLP cada vez mais contestada pela milícia ‘xiita’,
Amal, e pelas FINUL, a força de paz da ONU; e o extremo-sul que passou ao controle
de Israel e de sua milícia ELL” (MAALOUF, 2011, p. 259).

Com Israel envolvido no conflito, os EUA pressionam por um cessar-fogo entre o país e
a OLP, que é tacitamente aplicado em 24 de junho de 1981. Todavia, Israel continuava a
planejar sua investida sobre o Líbano. Em três de junho de 1982, um terrorista palestino
tenta assassinar o embaixador israelense Shlomo Argov em Londres, de forma que,
Israel encontra o pretexto que procurava para iniciar a invasão. Israel deu início à
“Operação Paz para a Galiléia” invadindo o Líbano um dia após o acontecido. Maalouf
(2011, p. 268) aponta, embasado por André Gattaz (2003), que a intenção de Israel com
essa operação era ceifar a infraestrutura militar da OLP no sul do Líbano, expulsando os
mesmos do território, fortalecer os representantes cristãos para a reconstrução do
governo central libanês e evitar a iniciação de uma nova guerra pela Síria. As forças
armadas israelenses invadiram o Líbano para conter os ataques dos palestinos da
Organização para a Libertação da Palestina (OLP) no sul. No entanto, as coisas se
alastram, e, uma invasão que ocupava apenas o sul do país, chegou até a sua capital,
Beirute.

Diversos desdobramentos políticos libaneses foram dando espaço para a invasão


israelense e para a guerra civil de 1982. O Massacre de Safra em 1980 foi fundamental
para que Bashir Gemayel, uma figura muito importante para a Falange, se consolidasse
como um grande líder e passasse a ser considerado o homem forte da comunidade

19
cristã, dado que conseguiu unificar as milícias da direita cristã. Compreende-se que: “O
objetivo de Gemayel era claro: unir o Líbano e expulsar os sírios e os palestinos. Com
este intuito, encetou relações cada vez mais profundas com Israel, especialmente com o
ministro da Defesa general Ariel Sharon.” (MAALOUF, 2011, p. 264). Bashir almejava
se tornar presidente e cogitava que Israel fizesse o “trabalho sujo” de expulsar os sírios
e palestinos do Líbano, e após isso, que saíssem do país. Na tentativa de expulsar a OLP
do Líbano, Israel bombardeou Beirute em 10 de agosto de 1982 e conseguiu retirar as
tropas da OLP do país em 21 de agosto do mesmo ano, removendo-as para a Tunísia.
Bashir consegue se eleger presidente dois dias após a expulsão da OLP com apoio,
inclusive, de sunitas e xiitas, pois acreditava-se que ele seria competente e o responsável
por concretizar a união nacional.

Ele acabou sendo assassinado em 14 de setembro de 1982, pouco antes de assumir a


presidência. A culpa recaiu sobre palestinos terroristas que hipoteticamente estavam
escondidos em Beirute, entretanto, não haviam tropas sírias em Beirute desde a saída da
OLP em 21 de agosto, havia apenas soldados israelenses controlando as fronteiras que
recém cercavam Beirute. Como retaliação, o exército de Israel com o apoio de milícias
cristãs invadiu o oeste de Beirute, mais precisamente Sabra e Chatila, dois
acampamentos palestinos, e assassinaram mais de 3 mil civis palestinos e libaneses, o
que ficou conhecido como o Massacre de Sabra e Chatila, e do qual Ari Folman,
protagonista de “Valsa com Bashir”, participou. O objetivo dessa carnificina era
amedrontar palestinos para que fugissem do Líbano. Se utilizando das obras de
Kapeliouk (1983) e de Schiff e Ya“ari (1986), Maalouf conclui que: “o massacre não foi
um ato de vingança, mas sim algo já há muito premeditado” (Maalouf, 2011 p. 274),
porém, não cabe a este texto esta discussão.

Intencionamos aqui apresentar como o conflito supracitado foi representado no filme


“Valsa com Bashir”, um longa-metragem de produção Israelense, estreado em 2008 e
dirigido por Ari Folman, que, segundo Arrais (2012), ganhou repercussão ao abrir a
mostra competitiva do festival de Cannes de 2008, ser indicado ao Oscar na mesma
categoria e ano, além de ganhar o Globo de Ouro na categoria de melhor filme de língua
estrangeira em 2009. O longa foi produzido em formato de documentário animado e
pode ser considerado uma obra autobiográfica já que o diretor é o protagonista da trama
e narra suas memórias de quando fora soldado e a reconstrução delas a partir de
diálogos com colegas que também integraram o exército israelense na Guerra do
Líbano.

Sobre o estudo de filmes enquanto fonte de pesquisa, Morettin compreende, a partir da


análise de obras de Marc Ferro, que:

“A avaliação acerca da pertinência histórica do documento fílmico é dada pelo saber


que já se deteve sobre as fontes escritas e que pode assim aquilatar a qualidade de sua
informação. Nesse sentido, subjaz uma ideia de complementaridade entre os diversos
tipos de fontes que, não necessariamente excludentes, amalgamam-se, tendo em vista
que o fato histórico permanece como o referencial de análise.” (Morettin, 2003, p. 34).

Desta forma, com a leitura prévia de bibliografias sobre a guerra do Líbano, analisamos
o filme buscando as formas como a guerra foi apresentada ao longo do enredo. Como já

20
dito, o filme expõe a busca do cineasta Ari Folman para reconstruir suas memórias
sobre os fatos que vivenciou como soldado israelense no massacre a Beirute, posto que
sua memória suprimiu inconscientemente parte de suas lembranças desse momento de
sua vida. Destarte ele vai em busca do relato de outras pessoas que também vivenciaram
o conflito, como antigos companheiros de combate, seu comandante durante o
massacre, um jornalista que cobriu a guerra e cem soldados selecionados pela produção,
para efetivar sua recordação. Por ter sido o momento mais marcante para o protagonista,
o filme destaca na guerra do Líbano o massacre a Sabra e Chatila, em Beirute.

O título “Valsa com Bashir” é decorrente da relação que o massacre teve com a morte
de Bashir Gemayel, um dos principais comandantes das Falanges. Seu assassinato
desencadeou, supostamente por vingança, o massacre de Sabra e Chatila, fazendo com
que as milícias invadissem estes dois campos de refugiados e massacrassem a
população civil, com o apoio de Israel, que fez vista grossa para a situação. A cena
icônica do soldado partindo pra linha de fogo e desviando das balas inimigas como se
estivesse numa dança enquanto atirava para vingar a memória de Bashir justifica o
nome do filme, e somada a fala de um dos soldados ao longo do enredo, “Bashir era
como um rei pra eles (Cristãos libaneses) e nós o coroaríamos”, representa no filme a
importância da figura de Bashir para as falanges maronitas.

Ari Folman se sentiu motivado a resgatar suas memórias sobre a guerra após ser
procurado por seu amigo Boaz que sonhava frequentemente com imagens de 26
cachorros ferozes invadindo as ruas da cidade, e ao ser questionado por Folman, ele se
lembra disso, pois esse foi o número de cães os quais havia matado na guerra do
Líbano, dado que sua função era não permitir que eles latissem e alertassem os
moradores das aldeias. A partir daí Folman se sente instigado do porquê não recordar
dos acontecimentos durante a guerra e parte em busca de reconstruir suas lembranças.
Uma das poucas imagens em sua memória é de um momento onde sai de dentro da água
com dois parceiros ao lado e vê Beirute devastada.

A maior parte do filme gira em torno da busca pela recuperação da memória sobre os
acontecimentos vividos. Não à toa, o mote do filme é justamente o esquecimento de
Folman e a tentativa de conciliar sua experiência rememorada, os testemunhos de
conhecidos e desconhecidos que participaram do Massacre de Sabra e Chatila, que por
vezes não entravam em concordância sobre os acontecimentos, e a construção de uma
narrativa sobre a guerra. Esse embaraço é tratado no filme no momento em que Folman
visita Ori, um amigo psicólogo, e ele diz: “A memória é dinâmica, tem vida própria. Se
faltam detalhes e existem alguns pontos obscuros, a memória preenche esses espaços até
que se transformem em ‘recordação’, mesmo que ela nunca tenha acontecido”. A partir
disso utiliza-se a narrativa de uma possível história inventada, visto que o cérebro
poderia gerar imagens involuntariamente e recriar memórias que pudessem nunca terem
existido, e talvez esse tenha sido o motivo da dificuldade na busca pela rememoração,
juntamente ao fato do esquecimento devido aos traumas que a participação em uma
guerra pode causar.

O filme destaca a violência com que os ataques aconteceram, podemos perceber isso por
meio das diversas formas de como as personagens bloqueiam suas lembranças sobre o
massacre por serem traumáticas a ponto de não poderem lidar com elas. Os relatos

21
mostram todo o caos e a morte que se instala nessas situações, e como pessoas
inocentes, bem distantes dos pormenores políticos que geram a violência, são as que
mais perdem. De acordo com as personagens, civis, crianças e até animais foram
assassinados, ninguém foi poupado, a guerra levava consigo um rastro de sangue para
onde quer que fosse. Podemos ressaltar nesse sentido, que o filme busca demonstrar
uma visão humanista apontando os soldados como indivíduos, e não como partes de um
coletivo violento e assassino, nos relatos somos capazes de observar que muitos deles
estavam completamente despreparados, e embarcaram no conflito sem saber o que os
esperava. O próprio diretor, Folman, era só um garoto quando teve que tomar parte na
guerra, com 19 anos, não tinha ideia do que o esperava. A ideia do filme ser narrado a
partir de relatos cria um ambiente de empatia do espectador para com as personagens.

Outro ponto importante a ser destacado é que o longa ter sido construído em formato de
animação possibilitou uma liberdade maior ao diretor para apresentar e juntar uma gama
de informações. Os traços fortes de HQ (história em quadrinhos) presentes na obra de
Folman, atípicos em animações convencionais, ajudam a criar proximidade e
identificação por meio de um desenho leve, sensível, muitas vezes quase palpável, e
assim, a animação dá o tom de pesar e tragédia que talvez nem filmagens reais dessem.
Toda a soma de elementos utilizados pelo autor como a subjetividade da narrativa a
partir do olhar das personagens, a forma como foram desenvolvidas as imagens bem
como as músicas utilizadas como trilha sonora acarreta um caráter emotivo e não apenas
informativo ao filme. Como afirma Kassabian (2001), elementos emocionais, ajudam a
estabelecer, em diferentes níveis, pontos de vista a respeito do assunto, atuando com o
propósito de estabelecer identificação, humores ou comentários.

Deste modo, podemos concluir que a Guerra do Líbano é apresentada no filme “Valsa
com Bashir” de forma humanizada e sentimentalista, dando destaque a violência e ao
sofrimento que gira em torno do conflito. Vale pontuarmos ainda, que embora o filme
seja uma produção israelense, não possui uma posição isenta sobre a culpa de Israel no
mal causado pela guerra. O longa é muito crítico das atitudes de seu país de origem, e
não se esquiva de mostrar todo o mal que ele causou no Líbano, incluindo com ênfase
sua participação no massacre, responsável pelo ataque e as respectivas mortes de
diversos civis refugiados. Por usar a autobiografia para narrar os fatos, o filme passa
pela subjetividade do olhar das personagens, posto que o autor busca na memória
coletiva relatos para confirmar suas memórias. Na última parte do longa, Folman busca
entrevistar pessoas desconhecidas por ele, com as quais ele não tinha ligação
sentimental, desta forma a obra passa a ter um caráter mais informativo, tendo uma
maior aproximação de seu caráter documental. Portanto, ao mesmo tempo que entretém
o espectador consegue abordar fatos reais de forma séria e pragmática, o filme é uma
fonte rica para pesquisa historiográfica.

Referências
ARRAIS, César Henrique R. Valsa com Bashir: subjetividade, memória e geopolítica
no documentário contemporâneo. 2012. 144 f., il. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) -Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
KASSABIAN, Anahid. Hearing film: tracking identifications in contemporary
Hollywood film music. New York/London: Routledge, 2001.

22
SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das C. F. Cinema e historiografia: trajetória de um
objeto historiográfico (1970- 2010). História da historiografia, Ouro Preto, n. 8, p. 151-
173, 2012.
MORETTIN, E. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História,
Questões e Debates, Curitiba, n. 20/38, p. 11-42, jan./jun. 2003.
MAALOUF, Ramez. GEOESTRATÉGICAS EM CONFRONTO NO LÍBANO EM
GUERRA (1975-90). São Paulo. 2011.
GATTAZ, André. A guerra da Palestina: da criação de Israel à nova Intifada. 2ª ed. São
Paulo: Usina do Livro, 2003.

23
UM NEGRO ENTRE OS “PAIS DO DESERTO”: REFLEXÕES
SOBRE RAÇA NA PRIMEIRA IDADE MÉDIA A PARTIR DE
ABBA MOISÉS, O ETÍOPE
Bruno Uchoa Borgongino
Poucos anos atrás, adveio-me uma súbita inquietação sobre o recorte espaço-temporal
em que me especializei, o Mediterrâneo na Primeira Idade Média: haveria, na
documentação escrita no período e atualmente disponível, referências a pessoas negras?
Soava-me improvável que os cristãos não estivessem cientes de que existiam negros,
pois, ao contrário do que é muitas vezes pressuposto, já havia circulação de pessoas e
notícias ao longo de extensas rotas que conectavam toda a Afro-eurásia. Será que os
eventuais encontros não foram relatados? Será que se produziu saberes a respeito da
diversidade fisionômica humana e, mais especificamente, sobre alguns terem pele
negra? E a pergunta que mais me desconcertaria: haveria referências a negros no meu
próprio corpus de investigação que passaram despercebidas?

Estamos habituados a imaginar a Idade Média como branca. Segundo Whitaker, os


estudos medievais negaram ao negro o direito de partilhar o passado, encorajando
estudantes a perguntarem: “onde estavam os negros na Idade Média?” num tom que
sugere incerteza sobre a própria existência de negros no período. O autor, ele próprio
negro, relatou nesse artigo uma experiência pessoal: quando era ainda graduando, um
outro estudante o teria questionado sobre ser um medievalista, insinuando que estudar a
Idade Média significaria dar as costas para a cultura afro-americana para dar atenção
exclusivamente a homens brancos [WHITAKER, 2015, p. 3; 6].

Mais que mera curiosidade intelectual e acadêmica por encontrar o negro na


documentação medieval, a questão me soava politicamente importante. Num artigo de
2016, Sierra Lomuto argumentava que, ao não se levantar questões de raça na Idade
Média, permitimos que a Idade Média seja vista como um espaço pré-racial onde a
branquitude pode alocar sua herança étnica, validando as reivindicações dos grupos
supremacistas brancos [LOMUTO, 2016]. Vivemos em tempos de ascensão global de
grupos de extrema-direita que reivindicam para si o vínculo com um passado medieval
de branquitude viril, inclusive no Brasil [PACHÁ, 2020]. Como denunciar a falsidade
da relação entre tais pleitos políticos perniciosos e uma mítica da Idade Média branca
sem aproximar os estudos medievais dos estudos raciais?

Por outro lado, sentia-me desconfortável por ser um intelectual brasileiro branco que
reconhecia o racismo estrutural e a dívida histórica como tópicos urgentes, mas que
poderia tranquilamente me furtar desses debates no percurso acadêmico. Estava numa
área da qual tradicionalmente não se esperaria debates sobre raça, portanto, soaria
natural que eu estudasse (supostos) brancos que escreveram para outros (supostos)
brancos sem qualquer consideração a negros. Poderia relevar ou mesmo passar adiante
de dados documentais sobre negros e negritude nos escritos medievais sem maiores
contestações historiográficas ou ideológicas.

No Brasil, predomina o silêncio sobre o lugar que o branco ocupa nas relações sociais e
seu papel ante as desigualdades. Bento demonstrou que há um pacto narcísico de
preservar, isentar e proteger os interesses do grupo branco, que resulta na resistência dos

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brancos em perceberem os vínculos entre discriminação racial e desigualdade social.
Mesmo entre os progressistas, a autora notou postura semelhante, só que mais difusa.
Ainda segundo Bento, ao não ser questionado sobre cor em situações públicas ou
privadas, não há sentido para o branco se identificar racialmente, propiciando com que
se relativize o próprio poder branco [BENTO, 2002, p. 156-167]. A estranheza da ideia
de se estudar negritude na Idade Média torna a área segura para que brancos brasileiros,
mesmo os progressistas, possam angariar prestígio político-acadêmico mesmo se
esquivando à problematização racial e à sua responsabilidade pela perpetuação da
branquitude.

Recusando-me a permitir que área de História Antiga e Medieval permanecesse como


refúgio para brancos que desejam escapar à revisão de suas próprias posições sobre
questões raciais, decidi tornar minhas inquietações particulares em questões de
investigação. Comecei então a estudar a retórica político-racial [BYRON, 2002] na
literatura ascética cristã mediterrânica entre os séculos III e VII, ou seja, o recurso a
tropos raciais para propósitos políticos no âmbito da própria comunidade. Neste
trabalho, apresento algumas reflexões sobre raça na Primeira Idade Média a partir da
figura do abba Moisés, “Pai do Deserto” caracterizado como negro e etíope em dois
documentos “orientais”: os Apotegmas dos Pais e a História Lausíaca de Paládio.

Por muito tempo, as pesquisas sobre os monaquismos adotaram uma perspectiva linear
e etapista sobre o fenômeno: tendo origem nos desertos do “Oriente”, o movimento se
expandiria e alcançaria eventualmente o “Ocidente”. Mesmo em manuais mais recentes,
como o de Marilyn DUNN [2003], nota-se essa abordagem. Recentemente, a
historiografia está reconsiderando essa narrativa, destacando tanto a heterogeneidade e o
caráter permanentemente disputado do que significaria ser monge, quanto a
impropriedade da tese do “big bang” monástico ocorrido no Oriente [GOEHRING,
1999, p. 5]. Alinhando-me às perspectivas renovadoras no campo, viso contribuir ao
debate demonstrando que tropos raciais eram empregados nos discursos produzidos nas
controvérsias sobre as questões monacais. Desse modo, defendo que o processo de
constituição do que viria a ser entendido como “monge” foi acompanhado do recurso a
concepções raciais correntes que, embora não se destinasse aos sujeitos externos à
comunidade, contribuiu historicamente também para a cristalização de interpretações
discriminatórias sobre a outridade.

Abba Moisés e a controvérsia sobre raça na pré-modernidade


Neste trabalho, não é de meu interesse refletir sobre relações raciais. Tampouco, avaliar
a existência ou não de racismo. Até o presente momento das investigações, não
disponho de elementos que permitam averiguar se as ideias sobre os etíopes tiveram
consequências concretas nas interações com indivíduos negros ou com sociedades
majoritariamente compostas por negros. Entretanto, emprego o conceito de raça para a
análise em curso. Não sou o primeiro a fazê-lo: em 2001, o Journal of Medieval and
Early Modern Studies publicou o dossiê Race and Ethnicity in the Middle Ages,
contando com a contribuição de sete pesquisadores. Os artigos nesse periódico,
principalmente o escrito por Thomas Hahn, desencadearam a abertura dos estudos
medievais às questões de raça.

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Sobre a possibilidade de emprego de raça para uma análise como a que proponho,
cabem ressalvas para se evitar anacronismos. Primeiramente, deve-se ter consciência de
que a palavra em si é posterior à Idade Média. Durante o período em questão, utilizava-
se termos como genos e ethnos, em grego, e gentes e populus, em latim, em referência a
sociedades diferentes; não havia um correspondente à palavra moderna raça
[BARTLETT, 2001; GEARY, 2005]. Em segundo lugar, compete observar que o
pensamento racial medieval operava distintamente do moderno [HAHN, 2001;
WHITAKER, 2015]. Ainda assim, defendo, seu manejo seria mais proveitoso do que o
conceito de etnia, mais aceito academicamente para o período, principalmente pelos
debates sobre etnogênese. A ideia de etnia é mais abrangente, podendo contemplar
também aspectos raciais, mas não apenas; sendo inespecífica, pouco contribuiria às
reflexões aqui propostas.

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães afirma que as raças são efeitos de discursos sobre
origens e a essência de um grupo e de transmissão de traços fisionômicos, intelectuais e
morais entre gerações [GUIMARÃES, 2003]. Achille Mbembe argumenta que a raça
seria uma ficção útil que constitui o outro não como semelhante a si, mas como objeto
propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer ou simplesmente
destruir [MBEMBE, 2018, p. 27-28]. Ainda que sem a rigidez do posterior racismo
científico, já se imaginava os grupos humanos a partir da suposição de herança moral e
física comum, delegando a alguns destes um estatuto ontológico de inferioridade e
perniciosidade.

Os saberes clássicos foram fundamentais para o estabelecimento da perspectiva racial


da Primeira Idade Média. Prevalecia um determinismo geográfico, que atrelava fatores
climáticos e ambientais a características de populações transmitidas por gerações. Os
elementos do meio em que se vive afetaria não apenas as qualidades físicas, mas
também as mentais: o ambiente moldaria também o caráter. Dessa maneira, supunha-se
inferioridade e fraqueza como constitutivas de todos os procedentes de determinadas
regiões, sendo estas expressas na fisionomia comum da raça [ISAAC, 2004]. Como a
Etiópia estaria situada numa área quente e próxima do sol, seus habitantes seriam negros
[SNOWDEN, 1970]; sendo a cor preta dotada de aspectos negativos [PASTOUREAU,
2008, p. 20-35], a negritude atestaria a imoralidade do etíope, principalmente quanto à
sexualidade [BRAKKE, 2001, p. 511-513].

A figura de Moisés é particularmente importante para a discussão sobre raça no período


em questão, por ser o único negro entre os “Pais do Deserto”, como ficaram
tradicionalmente conhecidos os primeiros monges egípcios. Para Snowden, autores
cristãos aludiam ao etíope, o mais remoto e negro dos homens, como motivo para
ilustrar a universalidade do cristianismo sem qualquer conotação pejorativa. A oposição
simbólica entre branco e negro, comum na exegese patrística, concerniria apenas ao
âmbito espiritual. O abade Moisés, caracterizado como branco por dentro e negro por
fora, ilustraria o caráter inclusivo desse cristianismo [SNOWDEN, p. 209-211]. Já para
Philipp Mayerson, a documentação continha episódios em que Moisés era inferiorizado
pela cor de sua pele, indicando a existência de um “sentimento anti-negro”
[MAYERSON, 1978]. As interpretações contrastantes entre Snowden e Mayerson
derivam de suas posições num debate maior: afinal, naquela época, as diferenças

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percebidas entre brancos e negros importavam? Para Snowden, não; para Mayerson,
sim.

Noel reconheceu que há razões para que o caso de Moisés seja analisado para as
atitudes frente ao negro no Mediterrâneo. Todavia, alerta o autor, seria
metodologicamente perigoso extrapolar dessa história para como os negros viam a si
mesmos naquela sociedade. Seria mais proveitoso, nesse caso, o estudo da negritude
como construção literária [NOEL, 2004]. É nesse sentido que compreendo que a
caracterização de Moisés como negro etíope constituiria um tropo numa retórica
político-racial, para adaptar um conceito proposto por BYRON [2002]. Tal menção à
procedência geográfica e à cor da pele do personagem destinava-se à promoção dos
interesses políticos dos autores junto à sua própria comunidade.

No corpus dos séculos IV e V, Moisés é mencionado em quatro documentos: nos


Apotegmas dos Pais, na História Lausíaca de Paládio, nas Instituições e Conferências
de João Cassiano e na História Eclesiástica de Sozomeno [AUBERT, 2002]. Dentre
esses textos, apenas os dois primeiros mencionaram o personagem como negro etíope.
Pela ausência dessa caracterização nos dois últimos textos, restrinjo minha análise aos
Apotegmas dos Pais e à História Lausíaca.

Moisés nos Apotegmas dos Pais


Os Apophthegmata Patrum, ou Apotegmas dos Pais em português, consistem em
dizeres e histórias dispersas e fragmentárias, escritas por diversos autores e reunidas em
coletâneas sistemáticas ou alfabéticas e disponíveis em vários idiomas. Nessas coleções,
relata-se experiências e ensinamentos dos primeiros monges egípcios, os “Pais do
Deserto”, particularmente da Nítria e da Cétia. Por essas histórias terem sido
transmitidas oralmente e só depois de muito tempo, escritas e editadas, torna-se difícil
datar ou localizar geograficamente sua produção. Gould argumentou que os Apotegmas
foram compilados por indivíduos ou comunidades que queriam preservar uma
determinada visão sobre o monaquismo egípcio e sobre a tradição de vida monacal que
mantinham [GOULD, 1993, p. 1-25]. Para essa análise, considero apenas a série
sistemática em grego, datada do século VI, conforme foi criticamente editada por Jean-
Claude Guy e publicada na coleção Sources Chrétiennes.

No decorrer dessa coletânea, o personagem de Moisés, o Etíope é mencionado em


dezoito dizeres. Desse total, três põe em questão sua negritude ou sua procedência
etíope: VIII, 13; XV, 43; e XVI, 9. Cabe considerar a organização desse material,
compreendendo o contexto textual em que cada história foi inserida. Em cada livro da
coleção sistemática, foram agrupados dizeres que remeteriam a temas afins. O oitavo
livro aludiria à ostentação, o décimo quinto, à humildade e o décimo sexto, à resistência
ao mal.

Na primeira narrativa destacada, um governador viaja para a Cétia a fim de conhecer o


abba Moisés. Quando o encontra, sem o reconhecer, pergunta ao etíope pela localização
da sua clausura, ouvindo, como resposta, a acusação de que Moisés seria simples de
espírito e herético. O governador se dirige então para a igreja, onde conta aos clérigos o
que ocorreu. Os homens, então, esclarecem a situação: “um idoso grande e negro,

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vestindo roupas velhas (...) é o próprio abba Moisés; foi porque ele não queria te
conhecer que disse aquilo contra ele mesmo” [Apotegma dos Pais, VIII, 13].

Na outra história, um arcebispo diz a Moisés que ele havia se tornado branco. O abba
então indaga: “Exteriormente, senhor e pai, ou também interiormente?” [Apotegma dos
Pais, XV, 43]. No intuito de testá-lo, o epíscopo orienta os clérigos para que, assim que
o monge entre no santuário, afugentem-no para depois segui-lo. “O ancião entrou lá e
eles o injuriaram e o afugentaram dizendo-lhe: ‘vá embora, Etíope’” [Apotegma dos
Pais, XV, 43]. Ao sair, Moisés diz a si mesmo: “Bem feito para você, de pele toda negra
como cinza; não sendo um homem, por que permitiriam você entre homens?”
[Apotegma dos Pais,XV, 43].

Na última passagem a ser considerada, Moisés se encontra com outros pais, que
decidem testá-lo, dizendo: “por que esse etíope também vem entre nós?” [Apotegma
dos Pais, XVI, 9]. Apesar de escutar, o protagonista permanece em silêncio. Os pais
perguntam-no: “abba, não ficou incomodado agora?” [Apotegma dos Pais, XVI, 9], ao
que Moisés responde: “eu fiquei incomodado, mas eu não falei” [Apotegma dos Pais,
XVI, 9].

Como reivindicaram Wimbush e Byron, a abordagem da negritude de Moisés nessas


passagens deve ser interpretada como uma estratégia, não como atitudes reais diante da
diferença racial. Wimbush sublinhou como a alusão à negritude simbolizaria as formas
de vida mais baixas e imperfeitas que se oporiam diametralmente à vida ideal – a
ascética [WIMBUSH, 1992]. Byron, por sua vez, destacou como cada um desses três
episódios se vincularia à promoção de uma virtude monástica (autocontrole, indiferença
e impassibilidade), constituindo a outridade negra num artifício retórico empregado em
favor de um determinado modelo ascético [BYRON, 2002, p. 115-121]

Moisés na História Lausíaca


A História Lausíaca foi escrita por volta do ano de 420 por Paládio de Helenópolis, a
pedido de Lauso, um eunuco que ocupava uma prestigiada posição na corte imperial de
Teodósio II. O texto foi composto por quarenta e sete biografias de proeminentes
monges egípcios, com os QUAIS Paládio teria se encontrado na época em que esteve na
região. De acordo com Claudia Rapp, a requisição de tal trabalho por Lauso decorria de
uma tentativa de conciliação com grupos monásticos de tradição egípcia, os quais
sofriam oposição por parte dos monges de Constantinopla [RAPP, 2001].

Paládio dedicou à vida de Moisés o décimo nono livro da sua História Lausíaca. Além
desse asceta, há apenas uma outra personagem referida como etíope, no capítulo XXIII:
um demônio que surge para Pacon na forma de uma donzela etíope para excitá-lo
[PALÁDIO, XXIII]. De todo modo, as menções à negritude e à origem etíope de
Moisés são pontuais: constam no início e no fim da narrativa.

Neste documento, a ênfase recai na trajetória do personagem. Segundo o autor, Moisés


começa a vida como escravo que é rejeitado pelo seu senhor, tamanha sua imoralidade,
e se entrega à ladroagem. Paládio comenta que possivelmente o abba etíope teria
cometido até assassinatos. Eventualmente arrependido, Moisés se converte ao
monaquismo e inicia sua penitência. A partir de então, os demônios, no intento de

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desviá-lo desse caminho, incitam-no aos seus antigos vícios de porneia. O relato
enfatiza o empenho de Moisés no combate aos assaltos licenciosos promovidos pelas
forças maléficas, por meio do rigor ascético e da busca por conselhos junto ao abba
Isidoro. A vitória definitiva sobre os demônios ocorre após seis anos de intensa luta
[PALÁDIO, XIX].

David Brakke demonstrou que a aparição de demônios em forma de etíope na literatura


ascética evocava o antigo estereótipo da hiper-sexualidade e da carnalidade excessiva
dos negros, servindo para afirmar o monge como apto a resistir aos seus próprios
desejos eróticos. O caso do Moisés apresentado por Paládio, em que o monge foi
marcado como alguém que nasceu etíope e negro, traria consigo uma ambivalência:
incorpora tanto aquilo a que renuncia, o demoníaco e os excessos carnais, e aquilo que
almeja se tornar, um monge. Assim, segundo Brakke, a procedência etíope e a negritude
de Moisés, demarcariam o potencial transformador que a disciplina monástica seria
capaz de operar [BRAKKE, 2001, p. 527-533].

Claudia Rapp sublinhou a importância dos temas da renúncia sexual e da arrogância na


História Lausíaca, tendo em vista seu destinatário ser o eunuco Lauso. As tentações
sexuais seriam, segundo a autora, enviadas por Deus como uma lembrança da fraqueza
humana. Ante tais limitações, seriam importantes o pai espiritual, a comunidade com
companheiros ascéticos e a participação frequente na eucaristia para prevenir a
excessiva autoconfiança [RAPP, 2001, p. 286-287]. Portanto, a inclusão da vida de um
monge negro, cuja procedência evocaria o tropo racial da carnalidade etíope,
desempenhava um papel no propósito de Paládio junto ao destinatário de seu texto.

Considerações finais
O que apresentei decorreu de uma repentina curiosidade, ocorrida recentemente: haveria
negros no corpus documental cristão? Enquanto levantava questões a esse respeito,
adveio-me duas constatações: por um lado, testemunhamos a ascensão de uma extrema-
direita que pretende se associar a um passado medieval branco e, por outro,
naturalizamos o distanciamento entre estudos medievais e debates raciais. Mais do que
academicamente pertinente, pareceu-me que a investigação da negritude no medievo era
politicamente urgente.

Ao longo deste trabalho, expus reflexões sobre questões raciais para o estudo da
Primeira Idade Média. O conceito de raça, desde que ressalvados a inexistência de um
termo equivalente em latim ou grego e as suas especificidades medievais em relação à
modernidade, apresenta potencialidades em pesquisas concernentes ao período em
questão. O caso do abba Moisés foi levantado por sua peculiaridade, que o torna
relevante à discussão proposta: foi o único “Pai do Deserto” caracterizado como negro
etíope. Para alguns historiadores, Moisés foi analisado para atestar se os cristãos da
época discriminavam ou não os negros. Em pesquisas mais recentes, os relatos sobre
esse asceta etíope buscaram avaliar o elemento racial como artifício retórico e literário.
Alinhando-me às tendências em voga, verifiquei que os dois documentos que
caracterizavam Moisés como negro etíope – os Apotegmas dos Pais e a História
Lausíaca – empregavam estereótipos raciais que então circulavam para promover os
interesses de seus autores.

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Referências
Bruno Uchoa Borgongino é doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em
História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor de História
Medieval na Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do LEOM –
Laboratório de Estudos de Outros Medievos.

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BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas
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FROST, Peter. “Attitudes towards blacks in the Early Christian Era” in: The Second
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GEARY, Patrick J. O mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad,
2005.
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1993.
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HAHN, Thomas. “The difference the Middle Ages makes: color and race before the
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ISAAC, Benjamin. The invention of racism in classical Antiquity. Princeton: Princeton
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Les Apopthegmes des Pères. Collection systématique. Paris: Cerf, 1993-2005, 3v.
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MAYERSON, Philip. “Anti-black sentiment in the Vitae Patrum” in: Harvard
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NOEL, Brian. “Race in Late-Antique Egypt: Moses the Black and authentic historical
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Standard, 2019. Disponível em: https://psmag.com/ideas/why-the-brazilian-far-right-is-
obsessed-with-the-crusades Acessado em 10 de setembro de 2020.
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PASTOUREAU, Michel. Black. The history of a color. Princeton: Princeton University,
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30
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WHITAKER, Cord J. “Race-ing the dragon: the Middle Ages, race and trippin´into the
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WIMBUSH, Vincent L. “Ascetic behavior and color-ful language: stories about
Ethiopian Moses” in: Semeia, n. 58, p. 81-92, 1992.

31
BANIDO EM ISRAEL: ROMANCE, CENSURA E RELAÇÕES
PALESTINO-ISRAELENSES
Carolline Cardoso de Mello
O presente texto intenciona examinar de que formas os livros se apresentam e possuem
significações para além do seu próprio texto, com o intuito de compreender a fundo o
papel desempenhado por tal objeto ao ser inserido no contexto histórico, político e
sócio-cultural de sua origem. Será aqui analisado o best-seller da escritora israelense
Dorit Rabinyan Gader Chaya, publicado originalmente pela editora Am Oved em 2014,
e sua versão posterior traduzida e publicada como All The Rivers pela Serpent’s Tail no
Reino Unido, em 2017. O romance ganha notoriedade internacional após ser censurado
pelo Ministério da Educação de Israel, levantado questões sobre como o governo
israelense lida com as diferenças étnico-culturais.

O estudo que será desenvolvido aqui será responsável por propiciar uma análise inicial
do contexto no qual a obra se apresenta, considerando que a sua escrita e o modo de
leitura e recepção são eficazes para promover a compreensão da sociedade na qual esse
foi produzido, e de como tal objeto possui influências tangíveis na realidade. Dessa
forma, somente a partir da análise de uma totalidade de fatores pode-se de fato entender
uma obra e suas significações.

Da autora
Dorit Rabinyan nasceu em 1972, em Kfar Saba, Israel, em uma família de judeus
iranianos de origem persa. Vencedora de prêmios como o ACUM Award, Itzhak Vinner
Prize, The Prime Minister's Prize e o Jewish Quarterly Wingate Award, Rabinyan dá
início a sua carreira como romancista aos 22 anos, com a publicação de Persian Brides
em 1995, e sendo prosseguido por Our Weddings, que publica quatro anos depois. Em
2014, publica seu terceiro título, originalmente Gader Chaya em Israel, e traduzido
posteriormente como All The Rivers, inspirada por uma forte amizade que desenvolveu
com o artista palestino Hassan Hourani, e que será o foco da presente análise.

A escrita de Rabinyan, ao ser composta por ficções baseadas em sua própria realidade,
mostra a ascensão de uma consciência étnica particular que a permite retornar à um
lugar individual e pessoal, definido por seu grupo de origem, ao abordar sua
israelicidade somada às suas raízes persas iranianas. Adaptando muitas das histórias
contadas por sua mãe e avós persas, a ficção de Rabinyan mostra como as superstições
que formaram uma parte da história oral das mulheres judias iranianas fornecem às
gerações futuras histórias que são capazes de enriquecer a criatividade literária
[GOLDIN, 2009: 96].

All The Rivers é uma obra ficcional dedicado à memória do artista palestino Hassan
Hourani, o qual Rabinyan conhece durante um curto período de tempo em que ambos
residiam na cidade de Nova York, em 2002. O romance retrata um encontro casual que
aproxima dois jovens: Liat, uma tradutora judia israelense de origem persa-iraniana que
reside em Tel Aviv, e Hilmi, um artista palestino nascido em Hebron numa família de
refugiados de guerra. Se acomodando em Nova York, no início dos anos 2000, a obra
situa o leitor sobre os acontecimentos e conjunturas históricas em ambos ocidente e
oriente: nos EUA, as tensões posteriores à ocorrência do 11 de Setembro marcam o

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plano de fundo de uma cidade marcada pelo sentimento xenófobo de insegurança e
denúncias, e em Israel estourava a segunda Intifada, marcando o início do processo de
construção do Muro da Cisjordânia em decorrência do levante contrário a ocupação
israelense

O romance entre Liat e Hilmi tem prazo de duração apresentada pela impossibilidade da
continuidade do relacionamento quando voltam à realidade em que vivem em Israel e na
Palestina ocupada pelas forças militares israelenses. O romance tem como plano de
fundo o abismo étnico-cultural entre ambos e a realidade política de um conflito
existente desde à muito, e que se faz sempre presente ao longo da obra, escrita de
maneira vívida e memorável, retratando uma história de amor íntima, precisa, e, por
fim, trágica.

O romance
Embora possua como base os acontecimentos reais do relacionamento entre Rabinyan e
Hourani, são adicionados elementos que possibilitaram a autora o alcance do seu
objetivos: entregar um romance particular dotado de significados pessoais, políticos e
étnico-culturais. Analisando a edição publicada pela editora Serpent’s Tail no Reino
Unido, em 2017, e traduzida por Jessica Cohen como All The Rivers, serão aqui
dissecadas passagens que constroem o texto, a fim de desnaturalizá-lo ao posicionar os
acontecimentos e o processo de escrita no contexto histórico do qual fazem parte.

O romance tem seu início em Nova York, e é estrelado por Liat Benyamini, tradutora
judia israelense com visto à trabalho e Hilmi Nasser, artista palestino que residia na
cidade por já quase quatro anos. O casal se conhece por intermédio de um amigo
comum em um café, se tornando inseparáveis desde o primeiro momento.

O nome dos personagens por si só possuem significados que permite um paralelo


quanto às próprias personalidades e posicionamentos políticos, que serão a trama central
e plano de fundo que perpassa todo o relacionamento. Liat significa “você é minha”,
representando a origem e, na verdade, a essência do conflito entre judeus e palestinos
[FORNER; LANGER; KRENGE, 2015:10], e argumento de reivindicação de ambos os
povos em relação ao território da Palestina/Israel. Ainda faz referência ao conflito
individual no qual Liat enfrenta durante todo o decorrer da relação: a escolha entre a
fidelidade à seus pais, seu Estado e sua identidade judaica e o amor que sente pelo
jovem palestino, que a deixa sem respostas e soluções de conciliação.

Hilmi, por sua vez, significa esperança, e da mesma forma como se apresenta o seu
nome, em sua arte o pintor palestino retrata sempre um jovem sonhador que flutua e
vagueia numa paleta de cores em tons de azul e verde, cores calmas que tornam o
cenário sereno. O jovem comum à suas pinturas pode ser entendido como ele mesmo,
como numa espécie de auto-retrato que o faz existir para além do conflito, se desligando
da realidade que tanto aflige Liat e indo além dos desentendimentos que desde há muito
intermedia a relação entre ambos os povos.

A relação entre Liat e Hilmi construída por Rabinyan é intensa desde os primeiros
momentos, e com a percepção do que pode ser um romance histórico, a escrita não-
romantizada do conflito e a intimidade na qual o relacionamento se funda é responsável

33
por possibilitar ao leitor diálogos que são responsáveis por fazer com que o romance
permaneça íntimo, como um caso particular, não se tornando somente uma metáfora ou
um cliché de um relacionamento com um futuro imprevisível, ou sem qualquer futuro
algum.

“Há três coisas que não sei como fazer. [...] Três coisas que um homem deveria saber.
[...] Um homem deveria saber dirigir, e eu não sei. Eu nunca dirigi. [...] Eu não sei
disparar uma arma. [...] E nadar. Eu não sei nadar” [RABINYAN, 2017: 53]. Das mais
significantes conversas que compõem o livro, os diálogos sobre o mar, e o fato de que
Hilmi não sabe como nadar, se apresentam como um das mais reais características na
descrição e construção do personagem palestino que nasce, e cresce, sob a realidade da
ocupação israelense no seu território de origem. Nascido em Hebron e crescendo em
Ramallah, Hilmi descreve que só esteve no mar três vezes em toda sua vida, “mas e o
mar em Gaza?”, questiona Liat intrigada com a revelação.

Ocupada desde 1967 pelas Forças de Defesa de Israel (FDI), a entrada e saída de
palestinos da Faixa de Gaza é dificultada desde a data devido às diversas barreiras e
empecilhos criados pelo governo israelense. Hilmi, como qualquer outro palestino que
reside fora do território e que tenta o acessar possui seus pedidos de acesso negados
“desde criança”, como responde ao ser questionado por Liat, em referência ao período
de tempo em que ele aguarda para adentrar na Faixa de Gaza. Liat, por sua vez, possui
uma realidade completamente distinta de Hilmi: vive perto do mar e pode o ver pelas
janelas de sua casa. Evocando o seu “eu” sonhador, Hilmi a consola, sugerindo que “um
dia o mar será de todos” [RABINYAN, 2017: 54], quando a envergonhada Liat percebe
que estava alheia à realidade com a qual o jovem palestino se encontrava de volta à
Israel.

Entre alguns dos argumentos de cunho político entre ambos se encontra a questão das
FDI e do serviço militar israelense. Ao descobrir que Liat fez parte das Forças de
Defesa por dois anos – o que, na realidade, não foi uma surpresa, considerando o fato de
que o serviço é obrigatório – são trazidas de volta memórias do período em que ele
esteve preso e que, coincidentemente, acontece no mesmo período de tempo em que
Liat cumpria suas obrigações militares para com o Estado de Israel. No decorrer do
diálogo, o palestino é questionado sobre o motivo de sua prisão, “apenas grafite”, diz
Hilmi, ao esclarecer que na época eram proibidos quaisquer tipos de pinturas com as
cores verde, vermelho e branco, responsáveis por evocar a bandeira da Palestina e
fomentar o nacionalismo palestino, o que era – e ainda é – considerado uma ameaça à
existência do Estado de Israel e da identidade judaica israelense.

Mesmo desenvolvendo um amor e afeto profundo por Hilmi, para Liat fica claro, desde
o início, que o romance é temporário e deve chegar ao fim com seu retorno à Israel
assim que for finalizado seu período à trabalho em Nova York, sendo indicado ao longo
da obra por suas ações e modos de tratar o relacionamento, mantendo-o como um
segredo que precisa esconder a todo o custo de seus pais. Já Hilmi, sempre mais sereno
e moderado, não acredita que a relação amorosa entre uma israelense e um palestino
seja impossível, apresentando-a à sua família e amigos desde o início. Os modos de
encarar o relacionamento são similares às suas posições políticas quanto ao futuro do
conflito: Hilmi é conciliador. Liat apoia a criação de dois estados para dois povos que

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viverão lado a lado, cada um em seu lugar, enquanto Hilmi pensa que não há alternativa
senão a solução de um estado binacional, e que tanto árabes palestinos como judeus
serão obrigados a se misturar e se acomodar com o que lhes for oferecido [FORNER;
LANGER; KRENGE, 2015:10].

Liat retorna à Israel como previsto desde o início e o que não estava previsto, no
entanto, era que Hilmi voltaria pouco tempo depois para o território da Palestina
ocupada. De volta à ambas cidades de origem com fronteiras tão próximas, Liat e Hilmi
continuam distantes, não mais separados por um oceano, como estiveram depois do
retorno da israelense, mas pela realidade de separação que é própria da sociedade
israelense, tornando tangível a impossibilidade de um encontro devido à todos os
bloqueios e barreiras construídas por Israel.

Assim, de mesmo modo como são construídas barreiras físicas que impedem a
continuidade do relacionamento entre Liat e Hilmi – com os tantos bloqueios,
checkpoints e o Muro da Cisjordânia, que perpassa e limita a circulação de palestinos
pelo território palestino ocupado – também é construída, por Liat, uma barreira pessoal,
desenvolvida e influenciada por sua relação com sua família, com seu Estado e com sua
nacionalidade e cidadania judaico-israelense, fazendo com que no contexto histórico de
construção do Muro, Liat acaba também construindo um muro entre eles.

Com Hilmi de volta à Palestina ocupada, a realidade é mais forte do que qualquer sonho
ou sonhador, e o mar que Hilmi tanto gostava de pintar, que sonhava em morar
próximo, o engoliu [FORNER; LANGER; KRENGE, 2015 :11]. Ao final da obra,
Hilmi morre afogado no mar que tanto desejou visitar – o que estava próximo à Liat, e
sobre o qual tanto foi descrito por ela – e as barreiras o ultrapassam, como numa forma
análoga à realidade, em que o sonho de um Estado binacional onde árabes e judeus
viverão juntos se vai com ele. A barreira vive ainda dentro de Liat, que é incapaz de
atravessá-la, transpondo os tabus da sociedade e da cultura em que crescera e na qual
resta a separação de dois povos entre os quais a vida criou, em um mesmo território,
uma barreira de medo e ódio [FORNER; LANGER; KRENGE, 2015 :12].

A censura
A crença comum em Israel, desenvolvida pelo pensamento hegemônico sionista, é de
que as questões de segurança de Israel, da sua população e da identidade judaica estão
no centro de sua própria existência, e quaisquer atos que forem considerados como
ameaças à esses devem ser limitados e punidos. Assim, ao colocar a segurança antes de
tudo, têm-se o resultado de que o governo tem o poder, e principalmente a função, de
controlar as informação e censurar o que é considerado um risco para o Estado.

Sob as leis de censura, o Censor Militar Israelense, unidade de inteligência das FDI atua
como órgão mediador de publicações, ou seja, jornalistas e escritores submetem
determinados textos para análise antes da publicação, podendo ser posteriormente
censuradas e aplicados processos criminais. Logo, os poderes do Censor Militar vão
além dos meios de comunicação ao serem observados casos de revisão e censura de
livros. Nos últimos dados de 2018, os editores israelenses enviaram 83 livros para o
censor do exército israelense, dos quais apenas 34 foram aprovados sem qualquer

35
intervenção. Em 2017, 84 livros foram submetidos ao Censor Militar do IDF, dos quais
53 foram redigidos e 31 aprovados [MATTAR, 2018].

Originalmente publicado em 2014, a obra de Dorit Rabinyan não é reeditada ou sofre


censura assim que é publicada, mas é apenas ao final de 2015, ao ser inserida no
currículo escolar do ensino médio como leitura indicada, que a censura ocorre e o
escândalo tem seu início. Já antes premiado e consagrado pelos círculos literários e
mercado editorial em Israel, o Ministério da Educação exclui a obra “por que poderia
ser perigoso para a identidade judaica dos jovens leitores, já que seriam encorajados a se
envolverem romanticamente com os residentes não-judeus do país. […] O que acabaria
por levar à um impacto de assimilação” [PAULL, 2017], disse Rabinyan, parafraseando
a declaração oficial.

Como documentado pelo Haaretz, fonte de referência e periódico de maior circulação


em Israel, a supervisora nacional de estudos de pátria e cidadania à serviço do
Ministério da Educação Dalia Fenig escreve sobre o grande público israelense que
considera o livro uma ameaça. “Relações íntimas entre judeus e não-judeus e
certamente a opção aberta de institucionalizá-las através do casamento e estabelecer
uma família – mesmo que isso não ocorra na história de Rabinyan – são compreendidas
por grandes segmentos da sociedade como uma ameaça às identidades” [LYNFIELD,
2015], descreve ela, sugerindo que jovens israelenses seriam influenciados a se
relacionar com árabes palestinos pelo livro, ignorando a suposta necessidade de
preservação da identidade da nação.

Fica, portanto, a questão: por que a relação entre judeus e palestinos se fundamenta
como uma ameaça para o Estado de Israel? Mesmo a mais remota ideia de assimilação e
relacionamento entre árabes palestinos e judeus ainda se apresenta como ameaça ao
projeto de um Estado-Nação exclusivamente judeu como planejado pelos líderes
sionistas que demarcaram os objetivos, métodos e práticas do movimento ainda no
século XIX, e que ainda hoje é adotado por setores do governo. Para Tamar Zandberg,
parlamentar do partido de oposição Meretz, a decisão reflete no objetivo da sociedade
israelense que “aparentemente é de criar uma geração racista e obtusa que não vê os
árabes como seres humanos, ou não os vê de jeito nenhum” [LYNFIELD, 2015].

A censura funciona, de modo que o livro não faz parte do currículo escolar nos
institutos israelenses, mas pode-se afirmar que ela gera resultados contrários ao
primeiramente esperado, ao servir como uma espécie de propaganda que dissemina o
livro ainda mais dentro de Israel, na Palestina ocupada e em outros países, possuindo 17
versões com linguagens diferentes e sendo bem recebido e consagrado
internacionalmente.

Como aborda Chartier, ao entender o livro como um objeto possuidor de sentidos, pode-
se atribuir às formas com as quais os indivíduos recepcionam e se apropriam do objeto
como uma ação transformadora desse. Assim como a leitura reinventa o livro, a censura
empreendida pelo governo israelense à obra de Rabinyan também possui ações
transformadoras, que irão influenciar os leitores mesmo antes da prática de leitura.
Logo, de forma mais acentuada que ocorrer antes da censura, são atribuídos e

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construídos novos significados plurais e móveis ao texto, que por si só já se apresenta
como imbuído de significados próprios.

Considerações finais
Os livros não existem isolados de um contexto político-social, e não são somente
escritos. Na obra de Dorit Rabinyan, onde as barreiras que atravessam o
relacionamento de Liat e Hilmi são o elemento central da história a partir de sua
existência física, concreta e imaginada, o romance entre o palestino e a israelense é
marcado por uma variedade de culturas, formas artísticas, lugares, linguagens e
estações, e cujo peso simbólico dentro da atual realidade política é ainda de extrema
relevância.

O governo israelense ao utilizar de meios coercitivos para promover censuras dentro do


território trava uma batalha com Rabinyan, que ousa examinar o conflito político central
da questão entre Israel e Palestina através das lentes de uma história de amor,
fundamentando uma ameaça à identidade judaica israelense preservada em Israel – a
tentativa de prevenir a assimilação entre judeus e palestinos é, aqui, um exemplo de
políticas governamentais que aderem a idéia racista, e ainda patriarcal, de que as
mulheres judias devem ser protegidas dos selvagens árabes.

Assim, foram aqui abordadas diferentes questões e elementos que juntos são
responsáveis por apresentar o livro para além do seu próprio texto, como resultado da
interferência de diferentes profissionais e meios de publicação, com interesses e
objetivos particulares. Na obra em análise, o romance é dividido entre seu aspecto
pessoal e político e encarado como um objeto subversivo, dotado de significados
particulares e passível de interpretações e ressignificações.

Referências
Carolline Cardoso de Mello é graduanda em História pela Universidade Federal
Fluminense. E-mail: carollinemello@id.uff.br

CHARTIER, R. O que é um Autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos:


EdUFSCar, 2012.
FORNER, N. S. ; LANGER, E. ; KRENGEL, S. . Dorit Rabinyan: Comentários e
Reflexões - Encontros de Literatura Hebraica (Grupo de Leitura). Cadernos de Língua e
Literatura Hebraica , v. 13, p. 1-16, 2015.
GOLDIN, Farideh Dayanim. The Ghosts of Our Mothers: From Oral Tradition to
Written Words—A History and Critique of Jewish Women Writers of Iranian Heritage.
Nashim: A Journal of Jewish Women's Studies & Gender Issues , No. 18 (2009). p. 87-
124. Disponível em: <www.jstor.org/stable/10.2979/nas.2009.-.18.87>. Acesso em: 14
jun. 2019.
LYNFIELD, Ben. Israel bans novel from schools that features Israeli-Palestinian love
affair. The Independent. 31. dez. 2015. Disponível em:
<www.independent.co.uk/news/world/middle-east/israel-bans-novel-from-schools-that-
features-israeli-palestinian-love-affair-a6792441.html>. Acesso em: 12. jul. 2019.
MATAR, Hagai. A spike in censorship: Israel censored on average one news piece a
day in 2018. +972 Magazine. 15 march 2018. (tradução nossa) Disponível em:

37
<www.972mag.com/idf-censor-press-freedom-israel-2018/140594/>. Acesso em 13 jul.
2019.
PAULL, Laura. Author of banned book says she’s still optimistic about Israeli
democracy. The Jewish News of Northern California. 10 nov. 2017. Disponível em:
<www.jweekly.com/2017/11/10/author-book-banned-israel-says-shes-still-optimistic-
democracy/>. Acesso em: 13 jul. 2019.
RABINYAN, Dorit. All The Rivers. Tradução de Jessica Cohen. United Kingdom,
Serpent’s Tail, 2017.
SELA, Maya. “Our Longing for Peace Is Matched by Our Fear of Peace”. 12 jun. 2014.
Haaretz. Disponível em: <https://www.haaretz.com/life/books/our-longing-for-peace-is-
matched-by-our-fear-of-peace-1.5251644>. Acesso em: 27 jun. 2020.

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RELIGIÃO, IDEOLOGIA, TECNOLOGIA E MILITARISMO: AS
BASES PARA A CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO ASSÍRIO
Elton Cesar Cavalcante e José Raimundo Neto
Durante a antiguidade algumas sociedades acabaram se tornando grandes impérios,
como os acadianos sob a liderança de Sargão I e Naram-Sin, os amoritas sob o governo
de Hamurábi, os assírios sob o governo de Salmanasar III, Sargão II, Senaqueribe e
Assurbanípal, e os neobabilônicos sob a liderança de Nabopolasar e Nabucodonosor II.

Apesar das grandes sociedades desenvolvidas por esses povos, deve ser ressaltado o
caso particular dos assírios, os quais eram um grupo de agricultores no norte da
mesopotâmia e se tornaram um grande império militarizado. Sendo que os aspectos que
influenciaram essa transformação abrangem diversos fatores, como a influência
religiosa, as questões relacionadas a construção de uma ideologia militarista, o
desenvolvimento de novos equipamentos bélicos e uma grande inovação nas táticas e
estratégias militares.

Aspectos Religiosos
Como em todos os povos antigos, a religião possuía forte presença no cotidiano das
pessoas, mas na sociedade assíria, ela também tinha um caráter militar e belicista. Nesse
sentido, como mostra POZZER [2002], o rei assírio era visto como um representante
direto da sua divindade Assur, o qual dava ao soberano os poderes de governar o seu
povo, estabelecer o equilíbrio cósmico e utilizar a prática da guerra como modo de
proteger o império dos povos vizinhos, os quais eram considerados ameaças externas a
sociedade.

Assim, sob a permissão e proteção da sua divindade, os exércitos assírios


implementaram uma grande política expansionista, levando para o campo de batalha
várias insígnias do seu deus, pois eles acreditavam que sua divindade iria ajudá-los nos
combates. Sendo que essa situação fornecia aos soldados assírios um sentimento de
confiança e coragem, gerando uma sensação de invencibilidade:

“[...] tratava-se de uma pequena figura do deus Assur, acoplada ao carro de batalha. Tais
imagens eram feitas de metal e levadas para as batalhas. Este ato significava que os
deuses estavam do lado dos guerreiros assírios”. [SERRES, et al., 2008, pág. 176].

Dessa maneira, torna-se perceptível como a religião foi um fator importante para a
manutenção belicista da sociedade assíria, pois era uma fonte de ânimo, e garantia de
vitória em todos os conflitos que eles entrassem. Porém, deve ser ressaltado que outros
aspectos foram cruciais para a construção do império, como o desenvolvimento de uma
ideologia militarista dentro da sociedade.

Aspectos Ideológicos
Muitos fatores contribuíram para que a sociedade assíria desenvolvesse um pensamento
militarista e expansionista, pois esse período histórico se encontra na transição da Idade
do Bronze para a Idade do Ferro, a qual foi marcada por muitas migrações e conflitos.
Como ressalta Silva [2012], a capacidade guerreira assíria, marcada pela extrema

39
brutalidade e pelo militarismo social, possui suas raízes nas novas conjecturas políticas
que surgiram na mesopotâmia do fim do período do bronze.

Nessa época de transição ocorreram muitas migrações no território assírio, na medida


que esses novos povos buscavam melhores terras e condições climáticas para a sua
sobrevivência. Sendo que essa facilidade de ocupação das terras assírias ocorriam
principalmente por causa da sua localização e das condições geográficas do solo:

“O militarismo pelo qual a Assíria é famosa proveio de sua localização, que era
extremamente perigosa, o que fazia da autodefesa o primeiro princípio necessário da
sobrevivência nacional [...]. Não tendo uma proteção natural, a área era sempre
estrategicamente vulnerável, por se assentar sobre as principais rotas de invasão e
comércio do norte e do leste, que contornavam as montanhas para cruzar a Síria até o
Mediterrâneo”. [KRIWACZEK, 2010, pág. 277].

Assim, essas migrações ocorreram de duas formas, sendo uma mais tranquila, com a
entrada de grandes multidões pacíficas, buscando terras para sobreviver. Mas ocorreram
também migrações mais violentas, baseadas em saques, ocupação e destruição do
território assírio, fazendo surgir na sociedade um sentimento de repulsa pelos povos
estrangeiros:

“Uma crônica assíria escrita não muito depois diz-nos que no trigésimo ano do rei
Tukulti-apil-Esarra [1082 a.C.], [...] Clãs de arameus saquearam a terra, ocuparam as
estradas e conquistaram e tomaram muitas cidades fortificadas da Assíria. Cidadãos da
Assíria fugiram para as montanhas… para salvar suas vidas. Os arameus levaram seu
ouro, sua prata e suas propriedades”. [KRIWACZEK, 2010, pág. 302].

Também deve ser ressaltado que essas migrações afetavam o aspecto econômico, pois
muitos desses povos estrangeiros acabaram controlando rotas e entrepostos comerciais,
os quais geravam muitas riquezas para os assírios. Segundo KRIWACZEK [2010],
diversos territórios assírios foram ocupados e divididos pelos povos invasores,
acarretando em um grande prejuízo econômico para essa sociedade, principalmente por
causa da perda de terras férteis e do controle das rotas de comércio.

Dessa maneira, torna-se fácil compreender a formação de um pensamento belicista na


sociedade, na medida que sua existência e independência eram constantemente
ameaçadas por várias levas de invasões. Desse modo, os governantes,pensando em
como proteger o estado e garantir o seu contínuo desenvolvimento, conceberam uma
ideologia pautada em duas bases: uma constante expansão territorial e o uso da
violência contra os inimigos e povos revoltosos, como instrumento dissuasor de futuros
ataques e rebeliões.

Os assírios sabiam da importância de uma expansão contínua e como esse processo


gerava proteção para o território nacional de agressões estrangeiras [por meio do
domínio de territórios e de Estados tampões], bem como, da riqueza produzida por essas
conquistas:

40
“[...] Assim, desde o início do século X a.C., a Assíria lançou-se no projeto de
recuperar seus territórios anteriores, devorando os reinos arameus circundantes e
ampliando paulatinamente seus domínios até as fronteiras de suas posses anteriores. E
no projeto de em seguida ultrapassá-los para abarcar uma área maior que a de qualquer
império conhecido até então “. [KRIWACZEK, 2010, pág. 304].

Além disso, a Assíria utilizava-se de métodos extremamente brutais, como mutilações,


extermínios em massa, destruição de cidades inteiras e diversas maneiras de torturas
contra seus inimigos externos e em casos de rebelião interna. Porém, de acordo com
SERRES [2008], essa prática de brutalidade não era feita de maneira impensável e nem
espontânea, pois ela possuía forte interesse ideológico para o governo assírio.

Com essas atitudes, a Assíria conseguiu coibir muitas revoltas internas, além de guerras
exteriores, pois todos que tentassem lutar contra o império, se perdessem, teriam que
enfrentar um destino aterrador e horripilante, o qual não poupava a distinção de classes
sociais, nem mulheres, crianças e idosos. Porque todos eram tidos como inimigos e
responsáveis por desafiar o Estado assírio.

Mas para a construção e manutenção de um império forte e extenso, a sociedade assíria


sabia que precisava de mais do que apenas motivos religiosos e uma ideologia pautada
na militarização da população e terror psicológico dos inimigos. Seria necessário o
desenvolvimento de novos equipamentos bélicos, os quais seus inimigos ainda não
conheciam.

Aspectos Tecnológicos
Um grande facilitador na construção do Império Assírio se encontra na sua ampla
utilização de armas confeccionadas de ferro, sendo que essa sociedade foi a primeira
nação a utilizar esse minério para fins bélicos. Vale ressaltar que eles também
assimilaram muitas armas de outros povos, por meio de trocas culturais com diversos
Estados vizinhos.

Segundo KRIWACZEK [2010], o contato com os hititas proporcionou aos assírios o


conhecimento sobre a fundição do ferro e como molda-lo para produzir armamentos. Já
com os hurritas eles aprenderam sobre criação de cavalos e a produzir carruagens de
guerra com rodas de aros mais eficientes do que os modelos tradicionais. A partir
desses contatos, o Império Assírio conseguiu evoluir os carros de combate,
transformando-os em veículos praticamente blindados e protegidos de ataques dos
inimigos:

“[...] Feitos de madeira e recobertos com uma grossa camada de couro. No seu interior
havia uma espécie de depósito com pipas de água que jorravam para fora do carro, em
tubos para combater possíveis focos de incêndio, pois, uma prática muito comum era o
arremesso de tochas e flechas incendiárias”. [SERRES, et al., 2008, pág. 175].

Desse modo, as carruagens possuíam uma maior resistência no campo de batalha,


conseguindo sobrepujar os veículos dos seus adversários. Além disso, elas vinham
equipadas nas suas laterais com chapas de ferro, como um tipo simplificado de aríete,
para que em caso de choque com as carruagens inimigas não sofressem avarias, e

41
causassem muitos estragos nos veículos inimigos, tirando eles do combate. Ainda, os
assírios contavam com espadas feitas de ferro, acarretando em uma maior resistência e
durabilidade do que as espadas de bronze dos egípcios e babilônicos. Todavia, seu
modelo de arco era o que mais impressionava:

“[...] os arqueiros estavam munidos de uma nova arma, o arco compósito, outra
inovação assíria, construído pela colagem de materiais diferentes: madeira, chifres e
tendões. Embora se ressentissem mais da umidade que os arcos tradicionais, feitos de
um único pedaço de madeira, e exigissem uma força muito maior para ser distendidos -
de acordo com alguns pesquisadores, ultrapassando a capacidade esportiva moderna -,
além de necessitarem de dois homens para prender a corda, esses arcos podiam ser
muito mais fortes e, portanto, mais mortíferos que a arma anterior feita só de madeira”.
[KRIWACZEK, 2010, pág. 307].

A partir desse novo modelo de arco, os arqueiros conseguiam disparar flechas de longas
distâncias, as quais não poderiam ser alcançadas pelos arcos tradicionais dos seus
adversários, protegendo os arqueiros das setas inimigas. Já a infantaria, segundo
SERRES [2008], possuía um novo modelo de couraça, o qual era considerado muito
revolucionário para a região, na medida que utilizava chapas metálicas no lugar das
tradicionais camadas de couro, as quais não forneciam uma grande proteção de
impactos diretos de flechas e nem de golpes de espadas e lanças.

Todavia, uma de suas principais inovações se encontra no desenvolvimento de um


calçado que serviria para a proteção das pernas e resistente o suficiente para os
combates em qualquer terreno. Assim, os assírios projetaram a primeira bota militar,
que possuía um alto nível de eficiência nos campos de batalha, além de diminuir o
cansaço das marchas, por causa do seu modelo:

“[...] Em vez de sandálias, agora usavam a invenção militar assíria que poderia ser
considerada uma das mais influentes e duradouras de todas: a bota de exército. Nesse
caso, as botas eram calçados de couro que chegavam à altura do joelho, com solado
grosso, tachões e chapas de ferro inseridas para proteger as canelas, o que possibilitava,
pela primeira vez, lutar em qualquer tipo de terreno, irregular ou úmido, montanhoso ou
pantanoso, e em qualquer estação, verão ou inverno. Era o primeiro exército para todos
os climas e para o ano inteiro”. [KRIWACZEK, 2010, pág. 306].

Apesar de todo esse novo conjunto de equipamentos, eles eram pouco eficientes se
utilizados pelos mesmos métodos de combate tradicionais. Sendo assim, os líderes
militares assírios desenvolveram inovadoras táticas de ataque, as quais seriam
consideradas verdadeiras revoluções na arte da guerra.

Novas táticas e estratégias militares


Com a utilização de armas de ferro os assírios se encontravam em vantagem sobre os
Estados vizinhos. Mas, além disso, a Assíria conseguiu desenvolver diversas inovações
táticas e estratégicas, que acabaram facilitando as suas vitórias:

“Se os métodos tradicionais de combate não conseguiam nem sequer deter um enxame
de pastores de ovelhas, montados em camelos, os governantes de Assur se

42
concentrariam em projetar a construir um novo tipo de máquina de guerra, uma máquina
a quem ninguém pudesse resistir”. [KRIWACZEK, 2010, pág. 304].

Todos os setores do exército assírio [infantaria, arqueiros, carruagens de guerra e


cavalaria] foram equipados e treinados por novas formas de combate, com muitos deles
trabalhando em conjunto, acarretando em ataques rápidos, fortes e precisos. No caso das
carruagens, elas possuíam uma elevada função de mobilidade do exército, na medida em
que conseguiam deslocar um maior número de soldados para as principais áreas de
combate:

“Cada carro era puxado por até quatro animais, e conduzido por um homem, que, à
medida que progrediram as habilidades eqüestres, às vezes montava um dos cavalos e
controlava os outros com um sistema de tirantes, deixando espaço na plataforma para
que o arqueiro e dois escudeiros lutassem com mais liberdade. Esses homens também
eram armados com lanças, espadas e machados, para que, depois do ataque inicial,
pudessem descer da quadriga e combater como infantaria pesada”. [KRIWACZEK,
2010, pág. 307]

Desse modo, os exércitos assírios conseguiram desenvolver no passado um tipo arcaico


de guerra relâmpago, que foi utilizada pelos exércitos alemães durante a Segunda
Guerra Mundial [1939-1945]. Sendo assim, do mesmo modo que ocorreu com os
alemães, os assírios obtiveram êxitos surpreendentes nos campos de batalha e
sobrepujaram seus adversários de forma rápida e eficiente. Somado a isso, havia um
amplo uso de rampas, trincheiras e túneis, sobre os quais a Assíria sitiava as cidades
inimigas e destruíam seus muros, abrindo passagem para o exército e sua consequente
conquista.

Todavia, além de equipamentos e táticas avançadas, segundo SERRES [2008], existia


uma administração estatal militarizada espalhada por todas as províncias do império, a
qual fornecia os meios burocráticos para facilitar as comunicações, o recrutamento, a
arrecadação de recursos, a organização dos níveis de hierarquia e o abastecimento do
aparato militar expansionista.

Desse modo, torna-se possível compreender os aspectos da sociedade assíria que os


levaram a construir um dos mais poderosos e eficientes exércitos do mundo antigo. O
qual possibilitou a consolidação de um império vasto, que no seu auge se estendia do
Egito e o Mediterrâneo Oriental, no oeste, até o Golfo Pérsico e os Montes Zagros, no
leste, e das montanhas do Cáucaso e Antitauro, no norte, até o deserto da Arábia, no sul.
Sendo que a Mesopotâmia era o centro político e administrativo do império.

Assim, diversos fatores auxiliaram na construção do Império Assírio, sendo que cada
um deles tiveram suas próprias particularidades, acarretando na transformação de uma
sociedade agrícola em um Estado fortemente militarizado. Sendo que seu legado na área
militar serviria de modelo para as futuras civilizações:

“Aquela altura, várias gerações de imperadores haviam reformado as forças armadas


assírias, transformando-as na primeira máquina de guerra verdadeiramente moderna, um

43
modelo para todos os futuros exércitos até a introdução das armas de fogo e da
mecanização”. [KRIWACZEK, 2010, pág. 305]

Desse modo, torna-se possível compreender como os assírios construíram uma das
maiores e mais importantes civilizações do mundo antigo, fundamentada nas diversas e
complexas relações entre os vários fatores que compunham a sociedade, como as
questões ligadas a religião, geografia, militarismo, economia, política e cultura.

Referências
Elton Cezar Cavalcante Graduando em Licenciatura em História pela Universidade
Federal Rural de Pernambuco - UFRPE.
José Raimundo Neto Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal
Rural de Pernambuco - UFRPE.

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44
FEMINISMO ISLÂMICO VERSUS FEMINISMO SECULAR: A
RESSIGNIFICAÇÃO DO ISLÃ E A ACADEMIA
Fabiane Assaf e Anna Tereza Scartezini
O objetivo do presente artigo é o de apresentar o lugar do feminismo islâmico dentro
dos estudos feministas e dos estudos na área de Relações Internacionais. Inicialmente
será trazido um breve panorama do feminismo secular. Em seguida, o feminismo
islâmico será colocado em pauta, com ênfase especial à ressignificação e debate de
esteriótipos comumente associados às mulheres muçulmanas. Por fim, um breve
panorama dessas discussões será proposto para reflexão.

Um primeiro apontamento teórico-metodológico em relação a esse trabalho diz respeito


ao recorte dele dentro dos estudos pós-coloniais. Como apontado por Franco [2016,
p.86], os estudos coloniais, embora amplos em abordagens/temáticas, podem ser
definidos como aqueles desenvolvidos na “segunda metade do século XX, com caráter
de resistência política, ideológica, cultural, econômica e social face às dominações
colonialistas e suas estruturas residuais”. O estudos feministas e de gênero enquadram-
se nessa perspectiva, na medida em que propõem uma reflexão sobre categorias de
análise sócio-históricas e de dominação colonial, imperialista e patriarcal anteriormente
estabelecidas.

Neste sentido, a politização dos direitos das mulheres ao nível das relações
internacionais não é um fenômeno recente, tampouco exclusivo do contexto árabe e
muçulmano [SILVA, 2008]. Como aborda Silva [2008], a denúncia da associação entre
o colonialismo e direitos das mulheres e do patriarcado com o imperialismo foi
inicialmente trazida pela área dos estudos subalternos ou pós-coloniais [Spivack, 1985;
Carby, 1982; Mohanty, 1984], estimulando racialização da história do colonialismo
[Donaldson, 1993; McClintock, 1995; Mohanty, 2003].

Para iniciar uma breve apresentação do feminismo secular face ao feminismo islâmico,
cabe lembrar da fala do antropólogo pós-colonialista Talal Asad [1986; 1996] de que há
um equívoco na visão de estudiosos ocidentais, que têm referenciais ocidentais para o
julgamento de um universo que possui outros significados simbólicos [FRANCO,
2016]. Assim sendo, deve-se começar esse debate pela percepção de que para os
ocidentais seculares, o islamismo e seu código de valores desrespeitam lutas históricas
ligadas à emancipação das mulheres e direitos humanos conquistados e, nesse sentido, o
feminismo islâmico encontra-se em “uma fronteira de difícil negociação em relação a
outros grupos feministas e também a outros movimentos sociais” [FRANCO, 2016,
p.88].

Assim sendo, deve-se levar em conta o fato de que o feminismo islâmico enfrenta um
isolamento político face ao movimento feminista secular, por situar-se “nas fronteiras
entre as perceptivas seculares e as perspectivas religiosas islâmicas” [FRANCO, 2016,
p.88], fronteiras que se caracterizam como porosas, conflitivas e heterogêneas. O
feminismo islâmico, nesse sentido, encontra-se associado, no ocidente, ao Islã e ao
Oriente, carregando, consequentemente, os esteriótipos frequentemente negativos
associados a estes, como a associação a práticas misóginas, machistas e que reforçam as

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desigualdades de condição. Nesse sentido, o feminismo islâmico se situa como
movimento de “resistência ao ideal ocidental de secularização” [FRANCO, 2016, p.88].

O feminismo secular e as Relações Internacionais: apontamentos gerais


Colocadas essas ressalvas, cabe pensarmos brevemente como se estruturou a área de
women studies enquanto área científica acadêmica, e, em particular, como essa
estruturação se deu na área das Relações Internacionais. Como abordado por Silva
[2008, p.6], a área dos women studies se formou tendo uma base essencialmente
estruturalista, através da demanda de oposições universais homólogas como
público/doméstico, oficial/ oficioso, natureza/cultura. Essas abordagens, inicialmente,
tinham por objetivo apontar o espaço doméstico como um espaço político, tendo este
sido tradicionalmente ocupado pelas mulheres e por muito tempo o único espaço
ocupado por elas. Contudo, Silva [2008] acusa o fato de que a mera revalorização do
privado e do doméstico acabou por perpetuar a marginalização feminina.

Ainda no campo científico-acadêmico, como apresentado por Franco [2016], correntes


mais recentes do movimento feminista secular trouxeram críticas ao entendimento
dicotômico originário da área, como a a autora filósofa estadunidense pós-estruturalista
Judith Butler, mas essas visões corroboraram para ampliar as diferenças entre o
feminismo secular e o islâmico. Em suas abordagens, Butler desconstrói a ideia de
identidade de gênero, apresentando os sujeitos do gênero, o binarismo sexo/gênero e a
própria ideia de gênero como construções sociais, porém esses debates acabam por
operar de modo distante da realidade de agenda do feminismo islâmico, que, em
princípio, ainda precisa se ocupar do lugar histórico e social das mulheres [FRANCO,
2016, p.89].

Pensando o desenvolvimento do movimento feminista em perspectiva cronológica,


deve-se frisar o fato de que o feminismo não é um movimento homogêneo. Trata-se de
uma manifestação embebida de visões e perspectivas plurais, cujas reinvindicações se
convergem em um ponto comum: pôr fim às desvantagens sociais entre homens e
mulheres. A história do feminismo divide-se cronologicamente em três momentos: a
primeira onda feminista, na passagem do século XIX ao XX; a segunda onda, nas
décadas de 1960 e 1970 e a terceira onda, que se estende da década de 1990 aos dias
atuais. Cada onda apresenta uma pauta específica e reflete o contexto sociopolítico no
qual está inserida.

O protagonismo da primeira onda foi assumido por feministas brancas, que buscavam,
no contexto de uma Europa liberal e industrial, maior participação na esfera pública. Já
a segunda onda teve caráter construtivista e diferencialista e discutiu temas ignorados
pela primeira onda, como a sexualidade e o papel subordinado da mulher no ambiente
doméstico. A terceira onda, por sua vez, dá início a discussões feministas pela ótica pós-
estruturalista, passando a enxergar mulheres não como um grupo uniforme, senão como
grupos de mulheres.

Ao questionar as versões precedentes do feminismo, a terceira onda busca oferecer um


movimento diverso, levando em conta a voz de mulheres outrora silenciadas –
notadamente, mulheres não-brancas e não-ocidentais. Nesse sentido, o conceito de
interseccionalidade torna-se ponto fulcral da discussão. A interseccionalidade nasce do

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movimento feminista negro e parte do pressuposto de que a opressão é melhor
compreendida como um sistema múltiplo de opressões convergentes e não como um
processo singular [VIEIRA, 2018, p. 22]. Esse conceito é importante, uma vez que
mulheres diferentes vivem realidades diferentes e, consequentemente, formas de
desigualdade diferentes.

Por fim, colocados o contexto teórico e histórico do feminismo secular, cabe breve
análise sobre as questões de gênero nas Relações Internacionais. Apesar de ter havido
incremento no número de pesquisas, é inegável que o reconhecimento da importância da
área e suas implicações nas dinâmicas da política internacional é muito recente [SILVA;
LINHARES; MELO, 2019]. Pode-se apontar as décadas de 1980 e 1990 como aquelas
em que os estudos feministas tiveram impacto mais considerável na disciplina das RI.
Um marco aponta por Watson [2008] [SILVA; LINHARES; MELO, 2019, p.59] foi a
criação de uma edição especial sobre gênero do periódico Millennium: Journal of
International Studies no ano de 1988, que continha a denúncia de Fred Halliday [1988]
de que, “diferentemente de outras áreas das ciências sociais, a disciplina de RI havia
negligenciado o papel do gênero na constituição do sistema internacional”.

Para além das dificuldades no âmbito geral, as particularidades latino-americanas e do


caso brasileiro em relação ao desenvolvimento dos estudos de gênero, em especial nas
Relações Internacionais, revelam que há pouquíssimas pesquisas na área de RI no Brasil
que se debruçam sobre o feminismo islâmico [SILVA; LINHARES; MELO, 2019,
p.62]. Isso se deve à resistência das teorias clássicas em Relações Internacionais em
abordarem uma ampla gama de reivindicações de natureza epistemológica e ontológica,
como é o caso dos estudos de gênero, resultando na sua marginalização e sileciamento
na Academia.

Para citar um exemplo lembrado pelas autoras [SILVA; LINHARES; MELO, 2019], J.
A. Tickner [1997] argumenta que uma das principais razões para as barreiras entre os
estudos feministas e os de Relações Internacionais reside nas diferenças ontológicas e
epistemológicas instransponíveis entre estes. Conforme explicita True (2005), os
estudos feministas em RI surgiram na década de 1990 com a proposta de rejeição à
suposta neutralidade de gênero da política internacional, passando a introduzir “gênero
como uma categoria empírica e como um instrumento analítico relevante para o
entendimento das relações de poder em âmbito global” [SILVA; LINHARES; MELO,
2019, p.65]. Apesar disso, o desenvolvimento dos estudos de gênero das Relações
Internacionais ainda enfrenta dificuldades e barreiras originárias.

O Feminismo Islâmico: esteriotipização e representação


O feminismo islâmico é um movimento recente e pouco explorado pelas correntes
mainstream dos estudos feministas e dos estudos internacionais. Para Lima [2014], o
feminismo islâmico é um resultado do encontro entre o feminismo secular e os
movimentos de mulheres pela reislamização que, na atualidade, já se encontra presente
na maior parte das sociedades muçulmanas, inclusive aquelas nas diásporas,
principalmente, nas dos EUA e Europa [LIMA, 2014, p.676 apud SILVA; LINHARES;
MELO, 2019, p.61].

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Sendo assim, procura-se oferecer cabedal conceitual para a compreensão holística de tal
movimento, a fim de preencher esta lacuna e superar os estereótipos comumente
associados à sociedade muçulmana. Como abordado por Silva [2008], desde o
surgimento dos primeiros textos sobre mulheres islâmicas na literatura feminista
ocidental, é enfatizada uma discrepância latente entre o nível dos valores institucionais e
o da prática real, nomeadamente ao nível da sexualidade, o que reflete os esteriótipos
associados à religião Islâmica.

Os estereótipos normalmente nascem do olhar ocidental ao Oriente Médio, que enxerga


a mulher muçulmana como uma mulher sem agência, necessitada de “salvação”, e, em
contrapartida, a feminista ocidental como sua salvadora. Cabe salientar que o objetivo
do feminismo islâmico não é que o Ocidente fale por ele, mas sim repensar as
interpretações do Islã que levam a práticas patriarcais, associando, assim, religião e a
busca por direitos.

No contexto anteriormente apresentado dos estudos feministas, o feminismo no Oriente


Médio se bifurca em duas vertentes: o feminismo secular e o feminismo islâmico. Não
nos delongaremos sobre o feminismo secular, mas cabe sublinhar que trata-se de um
movimento surgido ao final do século XIX com uma narrativa progressiva de gênero e
de nação [VIEIRA, 2018, p. 24]. É graças à sua consolidação, tanto em países de
maioria muçulmana quanto em países de comunidades minoritárias, que o feminismo
islâmico encontrou solo fértil para crescer na década de 1990.

Em termos conceituais, feminismo islâmico é: “o discurso e prática articulados dentro


do paradigma islâmico” [BADRAN, 2009, p. 242], isto é, a conciliação da busca por
igualdade, direitos e justiça e a prática religiosa do Islã. Consoante o retorno às
identidades culturais e, neste caso, à identidade religiosa do pós-colonialismo, o
feminismo islâmico vai de encontro ao eurocentrismo do feminismo ocidental, que
prega a adoção universal de suas reivindicações como as únicas possíveis [LIMA, 2017,
p. 71].

Alguns breves apontamentos que corroboram com os esteriótipos citados devem ser
abordados: primeiro, o Islã não é um universo homogêneo de significados, na medida
em que traz em si tradições bastante diversificadas, que inclui grupos (sunitas, xiitas,
carijitas) com particularidades em suas crenças [FRANCO, 2016, p. 85]. Além disso, o
próprio feminismo islâmico tampouco é homogêneo, já que poderia ser caracterizado
em seu estágio atual como uma série de mulheres islâmicas de nacionalidades distintas,
clamando por transformações nas interpretações do Corão no que diz respeito ao papel
das mulheres nas sociedades, assumindo uma separação entre religião e cultura
[FRANCO, 2016, p. 85].

Outro ponto já mencionado mas que deve ser frisado é o fato de que o feminismo
islâmico enfrenta o isolamento político dentro do feminismo secular, já que grande parte
deste vê a religião como a principal fonte de opressão contra a mulher e supressão de
direitos humanos básicos, como a liberdade sexual. Deve-se reconhecer que a literatura
sobre gênero associa as questões de autonomia e emancipação feminina a premissas
seculares e universais [SILVA; LINHARES; MELO, 2019] deixando de lado de

48
reflexões que abordem as relações específicas sobre mulher, religião e autonomia e,
nesse sentido, marginalizando o feminismo islâmico, que aborda esses últimos temas.

Conceito que deve ser lembrado em se tratando dos esteriótipos da mulher muçulmana é
a associação do Islã a Oriente e, dessa forma, a lugares bárbaros, exóticos e que causam
estranhamento, na percepção do conceito de Orientalismo que Edward Said apresentou
em sua obra clássica Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente [2007]
[FRANCO, 2016, p. 85].

É sabido que nas comunidades muçulmanas o espaço público e social é


predominantemente masculino. Ao contrário do que o feminismo ocidental prega, o
patriarcalismo muçulmano não está preconizado nas escrituras sagradas islâmicas, mas
é, na verdade, fruto da sua interpretação distorcida. Segundo Muñoz: “as sociedades
ocidentais tornam-se tendenciosas quando não entendem que o problema das mulheres
no Islã não é religioso, mas sim de uma religião usada por uma sociedade patriarcal”
[VIEIRA, 2018, p. 13]. Sendo assim, o feminismo islâmico propõe a articulação entre a
busca por direitos sociais e a vivência religiosa, indispensável quando pensamos em
culturas muçulmanas. Além disso, deve-se lembrar que dentro do feminismo islâmico
há correntes que questionam os fundamentos da religião a partir de perspectivas
internas, enfatizando que os papéis sociais dos homens e mulheres na família e na
sociedade e as desigualdades de gênero não vêm do Corão, mas sim da dinâmica social
aprendida culturalmente [FRANCO, 2007, p.87].

O movimento se apoia no princípio corânico de igualdade entre homens e mulheres,


princípio esse destorcido e impedido por costumes patriarcais [BADRAN, 2009, p.
247]. A igualdade é clamada no Corão desde a narração da criação da humanidade, na
Sura 4:1, que conta que Adão e Eva foram criados por uma mesma essência, a nafs
wahida, o que os tornou incondicionalmente iguais. Na sura 9:71, a igualdade é
novamente exaltada na medida em que afirma que homens e mulheres crentes são
aliados uns dos outros. Homem e mulher, então, são atores complementares na
construção binária da criação da humanidade.

Apesar disso, a interpretação prática dos escritos sagrados apresenta um padrão


masculino, levando à condição de subjugação da mulher. Pode-se percebê-lo na Sura
4:34, em que diz que: “os homens têm autoridade sobre as mulheres, porque Alá fez um
superior à outra”. Essa Sura é usada para justificar a autoridade e a superioridade do
homem, quando, na verdade, revela a diferença biológica entre os sexos, responsável
pela perpetuação da espécie [BADRAN, 2009, p. 248].

A partir disso, o feminismo islâmico procura transcender a interpretação masculinizada


do Corão estabelecendo uma nova hermenêutica essencialmente feminista. Nessa
lógica, Badran [2009, p. 248] elenca os objetivos da nova hermenêutica como sendo:
revisar os versos sagrados para corrigir narrativas distorcidas que justifiquem a
superioridade masculina; citar os versos que enunciam a igualdade de gênero e
desconstruir os versos que elucidam a diferença entre homens e mulheres, comumente
usados para justificar a dominação dos homens. Nesse sentido, como corrobora Franco
[2016, p. 87], o argumento do feminismo islâmico é que a religião islâmica não seria

49
um modelo que incita a subjugar as mulheres, mas sim os modos de interpretar e
vivenciar as fontes religiosas é que promovem a desigualdade e a submissão.

O feminismo islâmico se apoia na metodologia clássica de interpretação do Corão,


itjihad e tafsir, associada às ciências sociais, como história, antropologia, sociologia e
literatura, para construir sua hermenêutica [BADRAN, 2009, p. 247]. Criar uma
interpretação feminista dos escritos sagrados é a maneira encontrada para valorizar as
questões femininas e superar a estrutura patriarcal.

A má interpretação ocidental das escrituras corânicas leva à distorção do Islã,


considerado muitas vezes como opressor em relação às mulheres. É importante ressaltar
que fé religiosa e prática são distintas e responsabilizar a religião per se pelas
desigualdades de gênero é uma atitude reducionista. O feminismo colonial secular vê as
mulheres muçulmanas como vítimas da religião, que, portanto, necessitam ser salvas. O
ato de encobrir os cabelos é frequentemente associado à opressão das mulheres e à
inferioridade das sociedades islâmicas [AHMED, 1992, p. 152]. Porém, vincular a
prática religiosa à opressão e indicar o modo de vida ocidental como “correto” e
“libertador” é ignorar a importância da religião para uma porção sociedades,
desprezando, assim, o relativismo cultural antropológico.

Da mesma maneira que sociedade secular não implica necessariamente na igualdade


entre mulheres e homens [VIEIRA, 2018, p. 12], a religião não deve ser vista como
supressora de direitos. A estigmatização da mulher muçulmana como sujeito sem
agência é, como já mencionado, resultado da interpretação distorcida dos escritos
sagrados islâmicos. A violência doméstica, por exemplo, é essencialmente anti-islâmica,
mas muito comum. Assim, a revisão das Suras, bem como a desconstrução dos
paradigmas patriarcais são alguns dos mecanismos do feminismo islâmico para superar
o patriarcalismo.

Ademais, o feminismo islâmico tenta também combater a retórica reducionista ocidental


de tentar “salvar” as mulheres muçulmanas. A antropóloga Abu-Laghod [2012, p. 465]
afirma que: “projetos de salvar outras mulheres dependem de, e reforçam, um senso de
superioridade por parte dos ocidentais”. Ao salvar alguém, salva-o de algo e para algo.
Ao assumir o papel de salvador, assume-se também a superioridade daquilo para o que
está salvando [ABU-LAGHOD, 2012, p. 465].

Considerações finais
Para compreender o feminismo islâmico com um olhar ocidental é preciso aceitar a
diferença cultural como primeiro pressuposto. O feminismo islâmico prega a igualdade
total entre homens e mulheres, tanto na esfera pública quanto na privada; preza pela
capacidade feminina de assumir altos cargos políticos, religiosos, jurídicos, entre outros,
e é a favor do empoderamento feminino dentro do cenário religioso. O feminismo
islâmico atende a variados gêneros, cores e religiões. Como posto por Badran [2009, p.
250]: “o feminismo islâmico é para todos”.

Além disso, precisa-se considerar o isolacionismo político do feminismo islâmico em


relação ao movimento feminista secular, pelo fato de que aquele dialoga com questões
já superadas por este, como o debate sobre a autonomia feminina. Outro fator

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importante abordado neste trabalho diz respeito aos esteriótipos associados ao
feminismo islâmico no ocidente, que o colocam num lugar de resistência ao ideal
ocidental de secularização. Por fim, devemos lembrar ainda as dificuldades e percalços
da área dos estudos de gênero dentro da área de Relações Internacionais. Apesar de
algum avanço, há muito a ser debatido e produzido, em especial se pensarmos o
feminismo islâmico e o debate sobre o secularismo na Academia.

Referências bibliográficas
Fabiane Assaf é historiadora (UFF), graduanda em Relações Internacionais
(UFF/UNIP), mestranda em Estudos Estratégicos (PPGEST/UFF) e pesquisadora do
Centro de Estudos Asiáticos da UFF (CEA-UFF). Coordenada o Grupo de Trabalho em
Oriente Médio do CEA.
Anna Tereza Scartezini é graduanda em Relações Internacionais pela Universidade
Federal Fluminense e membro do Grupo de Trabalho em Oriente Médio do Centro de
Estudos Asiáticos – UFF.
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51
TEOCRASIA NO ANTIGO EGITO: OS SINCRETISMOS EM OSIR-
HAP E SERÁPIS NA RELIGIÃO FARAÔNICA
Felipe D. Ruzene
Este artigo tem por finalidade apresentar algumas figuras sincréticas da religião
faraônica, bem como elucidar sobre os aspectos da teocrasia, da fusão de caracteres
divinos que resultaram na sua composição e etiologia de seus cultos. Deste modo,
analisamos não apenas as novas deidades que surgem no panteão faraônico, mas
também a inerente propriedade sincrética como faculdade presente na concepção da
religião no Egito antigo.

Introdução
Mesmo na atualidade, as divindades da antiga religião faraônica provocam grandioso
entusiasmo e levantam muita curiosidade. O panteão egípcio penetrou tão
profundamente no imaginário ocidental que faz parte, até mesmo, de nossa cultura
popular, integrando diversos segmentos midiáticos. Há muito tempo, historiadores,
egiptólogos e arqueólogos, dedicam-se em datar e compreender o reinado dos faraós,
buscando conhecer um pouco mais sobre a história e a cultura do antigo Egito. No que
diz respeito à antiga religião faraônica, deparamo-nos com um extenso conjunto de
deidades responsáveis pelos mais variados aspectos da vida humana e mesmo além dela,
no pós-morte. Em meio a este vasto panteão, observamos o constante diálogo entre as
liturgias e entre as próprias figuras dos deuses que predicamentavam estas crenças [Cf.
BIELESCH, 2010]. Diversos autores apresentam a associação, ou mesmo uma fusão
entre divindades egípcias, uma união de caracteres de dois ou mais deuses de modo a
formular uma nova deidade, conjugando os elementos de ambos os sujeitos formadores.
Assim, o Egito antigo se constituiu num espaço concitador e proveitoso para as fusões
religiosas e encontros étnico-culturais [SALES, 2007, p. 309]. A partir do culto aos
deuses originários, quase sempre já bem representados e difundidos no Egito,
assegurou-se o sucesso dessas novas personalidades sincréticas que adentravam ao
panteão faraônico. Os deuses eram fundidos por propósitos práticos, muitas vezes essa
unidade se dava apenas para os devotos, ainda que essa identificação não se desse a
nível conceitual [BIELESCH, 2010, p. 385]. Tal sincretismo entre divindades é
denominada, segundo a enciclopédia Treccani, como Teocrasia:

“Fusão de divindades, fenômeno frequente nas religiões politeístas: duas ou mais


figuras divinas, originalmente distintas, por motivos diversos e baseadas em alguma
afinidade de caráter ou posição, acabam sendo consideradas idênticas, de modo que a
cada uma delas também é atribuído as características peculiares dos outros. A religião
do antigo Egito fornece exemplos característicos de teocrasia: com o surgimento do
culto de Osíris, esse deus absorve muitas outras divindades; o deus supremo de
Memphis, Ptah, já fundido com o deus Sokar, com a hegemonia de Osíris no culto
fúnebre torna-se Ptah-Sokar-Osíris, concebido como uma única figura” (tradução do
autor) [TRECCANI, 2020].

A própria enciclopédia italiana, ao fazer menção ao termo “teocrasia”, utiliza como


exemplo figuras da religião egípcia, deixando evidente que a orientação sincrética desta
crença possibilitou a formação de novos deuses através de modelos já conhecidos, como
no caso de Ptah-Sokar-Osíris, Osir-Hap e, posteriormente, durante a dinastia

52
Ptolomaica, Serápis. Em vista disso, este artigo tem por finalidade apresentar dois casos
destas divindades formadas a partir do diálogo cultural: o de Osir-Hap e Serápis, assim
identificando a orientação sincrética presente na conceituação da religião faraônica.

O caso de Osir-Hap
O touro Ápis, Hap em egípcio, era uma deidade importantíssima na antiguidade, a
representação da potência viril do próprio faraó e do “ba”, o poder divino, de Ptah, a
principal deidade da antiga capital Mênfis [SOUSA, 2015, p. 137]. A vida deste animal
era sacralizada em todos os aspectos, vivia dentro de um complexo em seu próprio
templo, possuía um harém de vacas, recebia visitas e oferendas de peregrinos, só
deixava o ambiente sacro quando ocorriam festivais e cerimônias ou no caso da
coroação de um novo faraó, na qual era convidado de honra. Os autores apontam para o
fato de que tais aparições podiam ocorrer, apenas, uma ou duas vezes durante toda a
existência do animal [SALES, 2013, p. 70]. A importância do culto a Ápis,
provavelmente fruto das culturas religiosas zoomórficas da Pré-História segundo alguns
historiadores, se estendeu até o período romano e era, certamente, uma das mais
célebres divindades de todo o Egito [ibidem, p. 63].

De acordo com Cláudio Eliano, em De Natura Animalium [ELIANO, XI, 10 apud


SALES, 2013, p. 66], para que um touro fosse identificado como Ápis era necessário
que os sacerdotes distinguissem vinte e nove sinais, extremamente específicos, em todo
seu corpo. Após a morte do touro sagrado os sacerdotes raspavam suas cabeças,
iniciavam um rigoroso jejum e então procuravam pelo touro optimus, a nova encarnação
de Ápis [SOUSA, 2013, p. 137]. É neste momento, com a morte do touro Ápis, que
encontramos sua teocrasia com Osíris. Após a morte do touro era decretado luto oficial
de setenta dias, ao longo deste período o animal passava por um específico e cuidadoso
processo de mumificação. Durante sua preparação funerária, Ápis se identificava com
Osíris, o deus dos mortos, tornando-se assim outra divindade, Osir-Hap ou “o Ápis
defunto”:

“Os antigos Egípcios acreditavam que a alma de Osíris penetrava no corpo do touro
Ápis. nesta sua versão sincrética com Osíris, Osíris-Ápis, era o deus funerário e senhor
de toda a necrópole menfita e esta vinculação exerceria enorme apelo sobre as
populações. Para além das fronteiras do Serapeum de Sakara, Ápís adquiriu importância
no contexto funerário integrando designadamente o repertório iconográfico de urnas
funerárias e sepulturas privadas e de um templo no distante oásis de Kharga, no deserto
líbico. A ligação a Osíris e ao mundo funerário justificou também o epíteto de Touro de
Imenti (o mundo inferior) atribuído a Ápis” [SALES, 2013, p. 65].

Isto posto, percebemos a associação sincrética da figura de Osir-Hap. O culto menfita


ao touro póstumo permaneceu mesmo após ao período ptolomaico e foi tema recorrente
na iconografia egípcia. Esta teocrasia gera uma nova divindade com caracteres ctônicos,
de deus do submundo e do pós-morte, como uma relação à figura de Osíris, ao mesmo
tempo possui representação de deus fértil, deidade da terra e agricultura, em relação
com a figura de Ápis. Assim, aspectos de ambos os deuses congregados geraram o culto
ao touro defunto [SOUSA, 2013, p. 137]. Tal deidade ainda se beneficiava vastamente
com a difusão da devoção ao deus dos mortos. A fama de Osíris se devia, em parte, ao
fato de trazer consigo uma noção salvífica no plano pós-morte. Era por ele que os

53
devotos podiam colher os frutos de uma vida ética, afinal, o deus Osíris poderia
conceder a eternidade àqueles que passassem em seu tribunal [Cf. RIBEIRO, 2014].
Logo, a divindade permitia uma noção teológica de ascensão à imortalidade, certamente
algo que chamava a atenção de fiéis por toda parte. Assim enchiam seus templos e
deferiam diversas libações dedicadas a Osíris. Ainda, na necrópole menfita de Sakara,
Osíris foi congregado a outras duas divindades dando origem a Ptah-Sokar-Osíris
[SOUSA, 2015, p. 140]. Em sua dissertação, Simone Bielesch [2010, p. 385] apresenta
que este sincretismo tipicamente egípcio pode ser compreendido a partir de uma ideia
de habitação. Os deuses faraônicos possuíam o dom de habitar temporariamente
outrem, quer seja uma estátua ou representação religiosa, ou mesmo uma outra
divindade. Expõe ainda a possibilidade dessa habitação sem desfeita, retornando as
divindades aos seus modelos independentes. Comumente um deus universal poderia
habitar uma deidade local e assim estabelecer um sincretismo entre suas figuras e
habilidades, gerando uma teocrasia singularmente egípcia. Tal é a ideia que apresentam
alguns egiptólogos sobre Osir-Hap, uma assimilação que surge a partir da habitação de
Osíris no corpo do touro Ápis [SALES, 2013, p. 64-65].

O caso de Serápis
Passando ao período ptolomaico observamos outra divindade sincrética amplamente
expressiva ao Egito. O deus Serápis que, segundo Plutarco [2001, p. 28], seria um deus
do Oriente, da região do Mar Negro, teria se revelado a Ptolomeu I Sóter num sonho. A
partir daí, o soberano teria trazido a estátua deste deus da colônia grega de Sinope e
feito dele o patrono de Alexandria. De acordo com Luís Lobianco [2006, p. 237] é na
própria divindade de Osir-Hap que se assentam as origens de Serápis, assim defende
que os soberanos Lágidas utilizaram a figura já sincrética e bem difundida para
constituir uma nova divindade que congregasse elementos egípcios e helênicos.
Justificativa a isso é o fato do templo dedicado ao deus Serápis ser o Serapeum de
Sakara, mesmo santuário em que os touros Ápis embalsamados eram velados, desde o
reinado do faraó Ramsés II (1279-1213 AEC) da XIX dinastia [SALES, 2013, p. 69].
Outrossim, Serápis não apenas utiliza a união de Ápis e Osíris, mas integra outros
deuses do panteão grego, tais como Hades, Zeus, Asclépio e Dioniso. Torna-se, pois,
uma divindade sincrética e culturalmente híbrida:

“A fundação do culto de Serápis assentava num diálogo intercultural responsável por


um complexo jogo de identidades divinas. É um facto que o estatuto universal do deus
manifestou-se, desde logo, na sua capacidade para estabelecer identificações sincréticas
com outros deuses, quer estes fossem gregos, como era o caso de Hades, Zeus ou
Dionísio, ou egípcios, como Osíris ou Ápis.” [SOUSA; SILVA, 2013, p. 10]

Deste modo, a teocrasia de Serápis apresenta duas particularidades em relação à


anterior. Primeiro, este deus elenca em sua formação não apenas divindades da religião
egípcia, mas também da helênica, de modo que era uma figura tanto autóctone quanto
alóctone, variando de acordo com as fontes e autores [SOUSA, 2015, p. 133]. Segundo,
apesar da possibilidade apresentada por Bielesch [2010, p. 385] da teocrasia se dar
apenas aos devotos e não conceitualmente, no que diz respeito à formação de Serápis
diversos autores apresentam um processo inverso, no qual seu culto teria sido gerado
pela administração ptolomaica e só depois teria se difundido na sociedade e passado a
integrar o rol dos deuses, tanto para egípcios quanto gregos [NEIVA, 2017, p. 56].

54
Poliane Santos [SANTOS, 2003, p. 73-74], em sua dissertação, ratifica essa
interpretação, de que Serápis teria sido produto de um concílio político-religioso
pensado para atender à necessidade alexandrina por um deus patrono que congregasse
gregos e egípcios. Um deus que representasse aquela sociedade que se baseava no
pluriculturalismo helênico-egípcio, uma vez que os próprios governantes Lágidas
possuíam origem macedônica [Cf. GRALHA, 2018, p. 79-82].

Também, Serápis teria ampliado sua influência na sociedade egípcia ao sobrepor o deus
Osíris como cônjuge de Ísis, a deusa da fertilidade e maternidade. Logo, o tradicional
casamento de Ísis e Osíris, deu lugar à união de Ísis com Serápis [SOUSA, 2015, p.
141]. Tal união modificou também a figura de Hórus, filho do clássico casal, que passou
a ser representado como Harpócrates, forma grega que deriva da nomenclatura egípcia
Horpakhered, que significa literalmente: o Hórus criança [SALES, 2007, p. 317]. Em
vista disso, Santos expõe que:

“Serápis exprimia para os gregos não somente a união de Zeus com Osíris
(correspondente grego de Plutão e Dionísio), mas também a união com Hades e
Asclépio, dando origem a Serápis como governante de todo Universo. Embora não
tenha tido muito êxito entre os egípcios, Serápis uniu-se a Ísis e Hórus, que para os
gregos representava Afrodite e Harpócrates, o Menino, formando uma nova tríade
divina. A partir desse momento, Serápis torna-se a designação grega para Osíris,
agregando todos os aspectos de sua personalidade divina, juntamente com as
características dos deuses gregos.” [SANTOS, 2003, p. 74]

Dessa forma, Serápis se tornou um deus cada vez mais presente na antiga religião,
dialogando com diversas deidades e granjeando elementos sincréticos tanto helênicos,
quanto egípcios. Sua força foi tamanha que acabou se espalhando por toda a Bacia do
Mediterrâneo e boa parte da Península Ibérica [NEIVA, 2017, p. 63].

Considerações Finais
Os casos aqui elucidados, de Osir-Hap e Serápis, são apenas alguns exemplos da
teocrasia presente na religião egípcia. Este artigo é unicamente uma introdução à
temática do sincretismo religioso e do hibridismo cultural entre os modelos religiosos
da antiguidade. Longe de buscar o esgotamento do assunto, visamos apresentar ao leitor
um dos inúmeros temas que circundam os estudos da egiptologia na atualidade.
Contemplamos, pois, que as divindades da religião faraônica possuíam particulares
aptidões, as de se materializar na iconografia e habitar, ou serem habitados por outros
deuses. Esta habitação, proposta pelo egiptólogo alemão Hans Bonnet [BIELESCH,
2010, p. 385], apresenta o motor que formulou os movimentos sincréticos tais como os
descritos neste texto. Por meio deste sincretismo a religião faraônica apresentou
divindades diversas e culturalmente plurais, tais quais as próprias realidades sociais que
congregavam no antigo Egito. Seus deuses articularam amplamente entre si chegando,
até mesmo, aos outros panteões da antiguidade, como no caso de Serápis. Assim, novas
divindades se construíram, fruto da justaposição sincrética ou da alteração dos
caracteres de deuses já venerados.

Evidentemente, tais metamorfoses podem ser interpretadas a partir dos anseios


políticos, ou mesmo econômico-sociais, dos clérigos responsáveis por tais deuses.

55
Ainda, os movimentos sincrético-religiosos poderiam ir ao encontro das aspirações das
administrações locais, que constantemente careciam afirmar sua legitimidade ante à
população. Afinal, a influência dos deuses, dos sacerdotes e do próprio governo
poderiam ser substancialmente ampliadas a partir destas atividades conciliadoras. Não
obstante, a habitação e a teocrasia aparecem como arquétipos da antiga religião egípcia
que pode ser vista como uma fé de manifestação essencialmente sincrética. Isso porque,
os deuses, tais como os indivíduos humanos, não se mostram apáticos aos cursos da
História. São remodelados uns pelos outros, dialogam entre si, com os homens e com
suas culturas, além de acompanharem as transformações das sociedades humanas.

Referências
Felipe Daniel Ruzene é graduando em História (Licenciatura) pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPAN e em Filosofia (Bacharelado) pelo Centro
Universitário Claretiano. Possui Ensino médio pelo Colégio Técnico Industrial de
Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
CTIG/UNESP. Correio eletrônico: felipe.ruzene@yahoo.com.br

BIELESCH, Simone Maria. Ptah-Sokar-Osíris: um Deus sincrético do Renascimento,


2010. Disponível em: http://neauerj.com/Anais/coloquio/simonemaria.pdf.
LOBIANCO, Luís E. A Romanização no Egito: Direito e Religião (séculos I à III d.C.),
2006. Disponível em:
https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2006_LOBIANCO_Luis_Eduardo-S.pdf.
GRALHA, Julio. “Poder no Egito Ptolomaico: Uma abordagem mágico-religiosa da
legitimidade” in Heródoto, v. 3, n. 1, 2018. p. 79-99.
NEIVA, Caroline Oliva. O poder legitimador de Serápis em disputa na época Antonina
(96-192): Um estudo comparado entre a iconografia monetária alexandrina e os Acta
Alexandrinorum, 2017. Disponível em: http://docplayer.com.br/86708310-O-poder-
legitimador-de-serapis-em-disputa-na-epoca-antonina-96-192.html.
PLUTARCO. Ísis e Osíris. Fim de Século: Lisboa, 2001.
RIBEIRO, Thiago Henrique Pereira. Cosmologia e Morte no Egito Antigo: o Tribunal
de Osíris, 2014. Disponível em:
https://www.academia.edu/7635576/Cosmologia_e_Morte_no_Egito_Antigo_o_Tribun
al_de_Os%C3%ADris
SALES, José das Candeias. “O culto a Serápis e a coexistência helénico-egípcia na
Alexandria ptolomaica” in Revista lusófona de Ciência das Religiões, ano VI, n. 12,
2007. p. 309-322.
SALES, José das Candeias. “Em busca do touro Ápis pelos caminhos da mitologia do
antigo Egipto” in Revista lusófona de Ciência das Religiões, ano X, n. 18, 2013. p. 61-
81.
SANTOS, Poliane Vasconi dos. Religião e sociedade no Egito antigo: do mito de Ísis e
Osíris na obra de Plutarco (I d.C.), 2003. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93452.
SOUSA, Rogério. “O mito da origem de Serápis revisitado” in Revista Estética e
Semiótica, vol. 5, n. 2, Jul-Dez, 2015, p. 133-148.
SOUSA, Rogério; SILVA, João Ribeiro da (coord.). Serápis nos confins do império: o
complexo sagrado de Panóias. Vila Real: Museu de Vila Velha, 2013.
TRECCANI Enciclopedia italiana online: teocrasia, 2020. Disponível em:
http://www.treccani.it/enciclopedia/teocrasia/.

56
A QUESTÃO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA: BREVE ANÁLISE DO
MUQADDIMAH (1377) DE IBN KHALDUN (1332-1406)
Giovanna Ily Farias Ramalho
Ibn Khaldun foi um polímata muçulmano nascido na região da atual Túnisia, no ano de
1332 E.C/ 732 D.H. Apesar de afastado do ocidente intelectual hegemônico a relevância
de sua obra foi debatida durante os séculos posteriores por ser apresentado nas
universidades como arauto de pensadores totêmicos como Maquiavel, Hobbes,
Montesquieu, Vico, Marx, Weber e Durkheim, uma consciência ou impulso
inconsciente de ocidentalizar o seu pensamento, na interpretação do orientalista inglês
Robert Irwin [Irwin,2018].

O livro de maior relevância na obra do magrebino medieval foi intitulado Muqaddimah,


a priori, escritos com a intenção de servir como prolegômenos a sua obra, dividido em
três tomos na versão em português. De modo geral, pode-se caracterizar o Muqaddimah
como uma obra dedicada aos estudos da organização social árabe e seus resultados;
estudo da história dos árabes, das suas raças e dinastias; e estudo da história berbere e
de seus parentes Zanatas. Além de chamar atenção pelos capítulos divididos a exposição
de fatos uns e a considerações gerais, outros, sem deixar de lado as artes e os
conhecimentos dos povos árabes e berberes da região magrebina.

Na versão ocidental, o Muqaddimah, é chamado de Prolegômenos, palavras de origens


diferentes, mas que possuem sentidos semelhantes -por razões de apreço prefiro referir-
me a obra como Muqaddimah. Sobretudo, apesar deste livro chamar atenção por contar
a História Universal do mundo árabe-magrebino, o intelectual e político magrebino
dedica algumas páginas desse livro a debater métodos de escrita da história no mundo
em que vivia, a qual possuía muitas críticas, apresentando-se, despropositadamente,
enquanto intelectual crítico, conselheiro político e historiador. Seguindo, desta maneira,
os mesmos passos trilhados por seus antepassados e que lhe deram determinadas
vantagens entre as elites políticas e intelectuais árabes-magrebinas e andaluzas.

Nesta publicação, tenho por objetivo principal explorar o conceito Khalduniano de


tradição histórica levando em consideração que este era o caminho apontado pelo autor
para escrever uma obra histórica que atendesse os requisitos necessários para que esta
fosse, então, ciência e que acima de tudo trouxesse ao leitor, quem quer que fosse,
confiança e o mais próximo possível da verdade. Para tal, dedicar-me-ei à análise dos
prolegômenos da Muqaddimah, tendo como base o prefácio e a introdução à obra
escritos pelo próprio Ibn Khaldun e traduzidos para português por José Khoury e
Angelina Bierrenbach Khoury, contando com algumas referências à autobiografia do
autor anexada ao fim do primeiro tomo.

Ibn Khaldun e o Muqaddimah


A família de ‘Abd Al-Rahman ibn Khaldun partira do sul da Arábia para a região de
Sevilha depois da conquista da segunda pela primeira. Em meados do século VII da
Hégira (Século XIII da Era Comum) com a tomada de Sevilha pelas tropas de Fernando
III, filho de Afonso IX soberano dos reinos de Leão e Castela, transportaram-se para a
região de Ifríquia. Uma mudança comum entre famílias árabes de tradição no serviço
público do local. O bisavô de Ibn Khaldun desempenhara alguns papeis políticos na

57
Corte de Túnis, mas caíra em desgraça e fora assassinado. O avô seguira os mesmos
passos, já o pai de Khaldun abandonara a política e o serviço público para dedicar-se a
vida de erudito. O intelectual islâmico celebra a educação que recebeu durante a sua
infância e juventude, a qual, indubitavelmente ajudara-o a conquistar os cargos de
confiança que tivera nos países onde passou, como por exemplo, os cargos de Katib Al-
sirr, encarregado dos Mazalim, Hajib, chefe Qadi, Quadi chefe Miliki, chefe Khanga e
Professor. Com isso, durante sua vida Ibn Khaldun viveu além da região de Ifríquia
onde nasceu, na região de Andaluzia, Marrocos, Argélia e Egito, sendo cobiçado entre
os governantes para atuar, principalmente, no diálogo entre povos árabes nômades e
autoridades locais.

O primeiro rascunho do Muqaddimah ficou pronto em novembro de 1377 E.C, quando


Ibn Khaldun estava exilado em Qal'at Banu Salama, atual Argélia, por cair em desgraça
com as tribos Riyah na região do atual Marrocos. Em 1378 E.C, após retornar à Ifriquía
e reconciliar-se com Hasif Abu al-Abbas a primeira versão do Muqaddimah é dedicada
ao governante. Segundo khaldun muitas das questões políticas a qual ele se dedicou no
Muqaddimah eram enfrentadas em Ifríquia.

É importante, sobretudo, salientar que o Muqaddimah foi pensado por Ibn Khaldun
como introdução ou primeiro livro da obra Kitab al-'Ibar wa-Diwan al-Mubtada' wa-l-
Khabar (O Livro de Advertência e Coleção de informações históricas e iniciais). Essa
obra completa tem um total de sete livros. Nesta concepção, o livro apresentá-lo-ia
enquanto político e intelectual, além de contar a história universal árabe-magrebina,
incluindo as sociedades desde antes da chegada do Islã nesta região, até as estratégias
utilizadas pelos califados para se manter no poder, além de arte, cultura e religião. Mas
Ibn Khaldun viu, ainda em vida, o Muqaddimah se tornar uma obra a parte.

A Tradição Histórica
Quando escreveu o Muqaddimah Ibn Khaldun construiu um debate sobre como se deve
formular a narrativa histórica, estes escritos se encontram em uma parte inicial que
deveria ser os prolegômenos do livro. Para isso, o autor formula uma crítica a tradição
histórica que vinha sendo seguida entre seus coevos levando em consideração dois eixos
dialéticos: a excelência da ciência histórica e os erros cometidos por historiadores a
miúdo.

Sobre isso Ibn Khaldun afirma:

“A história é uma ciência que se distingue pela nobreza de seu objetivo, pela sua grande
utilidade e importância de seus resultados. É ela que nos faz reconhecer os hábitos, a
maneira de viver dos povos antigos, as ações e atividades dos profetas e a administração
dos reis. Também, os que procuram instruir-se em contato com os assuntos espirituais e
temporais do passado encontram, na história, lições de conduta. Para chegar-se a tanto,
deve-se usar de recursos da mais diversa natureza e conhecimento dos mais variados e
gerais. Não é, senão através de uma aplicação profunda que podemos chegar à verdade e
prevenir-nos contra os erros e equívocos.” [Khaldun, p.18]

Quando fala sobre os erros cometidos por historiadores ao escrever a história Khaldun
aponta Ibn Rachik e a obra Mizan al-Amal, e comenta que escritores como ele

58
“reproduzem com exatidão os contos que correm na boca do povo, seguindo nisto o
exemplo de outros escritores que os precederam, deixando em completo olvido a
questão das origens e das causas”.[Khaldun, p.10-11]

Levando em consideração que a história, para o autor, é um tesouro do conhecimento


que se passa de geração em geração: “ouvida com avidez por aqueles que nela acham
deleite e passatempo.” [Khaldun, p.3-4]. O autor declara que identificou nas leituras que
fizera das obras de outros intelectuais árabes duas formas de apresentação da história:
Externa e Interna.

Na Forma Externa, a história tem como característica o registro de acontecimentos que


marcaram o curso dos séculos como, por exemplo, a sucessão de dinastias ou grandes
fatos que testemunharam as gerações passadas. Outras características que devem ser
esperadas ao se deparar com esta forma da história é o embelezamento das orações e
curiosidades que são apresentadas como “bônus” aquela narrativa. Sobre isto, Khaldun
afirma:

“(Ao descrever acontecimentos de tanto vulgo e magnitude), a pena dos historiadores se


agiganta e o verbo dos mestres se enfeitam de figuras e provérbios. (Tão alta no
conceito, tão aprazível na forma), a história é o encanto das assembleias literárias onde
as multidões de seus amantes se acotovelam embevecidos. (Mestra incomparável), para
tudo dizer, a história nos revela os segredos das revoluções e das transformações por
que passam os seres em toda a Criação.”

Quanto à Forma Interna da história, a qual o autor vai se referir como ciência pela
primeira vez, proclama: “exame e verificação dos fatos, investigação cuidadosa das
causas que os precederam, o conhecimento profundo da maneira como os
acontecimentos se sucederam, e como começaram.” [Khaldun, p.4] Para Ibn Khaldun,
esse é o motivo pelo qual a história é considerada ciência e deveria ser tratada com a
devida seriedade.

De posse desta informação, o autor elucida alguns intelectuais célebres que fizeram, em
sua percepção, a verdadeira ciência histórica ancorada em boas tradições históricas e
métodos de composições. Alguns desses se restringiram a trabalhar com a história local,
outros se dedicaram à toda a história Universal. Entre esses autores célebres Ibn
Khaldun destaca Ibn Ishac, Tabari, Ibn Al-Kalbi, Muhammad Ibn Omar Al-Uáqidi, Saif
Ibn Omsr Al-çadi e Al-Maçudi. Apesar das críticas feitas por Khaldun a alguns desses
intelectuais nos capítulos seguintes, para ele, essas críticas só são possíveis pelos
métodos que seguem esses intelectuais nos livros sobre história que escreveram.

Observo, então, que maior crítica de Ibn Khaldun neste sentido é sobre a não utilização
dos métodos de composição deixando de seguir as boas tradições históricas como
observamos a seguir:

“Transmitindo-nos os fatos tais como lhe chegaram aos ouvidos, estes historiadores não
se emprenharam sequer em indagar a possibilidade e a natureza dos fatos, aprofundando
as causas ou levando em consideração as circunstancias que os rodearam. Já mais vimos
narrativa, por mais fabulosa que pareça, merecer da parte deles contestação ou repulsa;

59
tornou-se tão raro o talento de verificar, como fraco, em geral, o senso do
discernimento, ao passo que o erro e o equívoco são, para o investigador, companheiros
inseparáveis, como o espírito de rotina e de imitação é inato no homem e inerente a sua
natureza!” [Khaldun, p.5]

Para Ibn Khaldun o mais importante ao se escrever a história são os questionamentos


feitos pelo historiador sobre as causas dos fatos, não a grandeza do fato em si. É a partir
do movimento contínuo de causa e consequência da história, que tem interferência da
liberdade de escolha humana que a história terá legitimidade para instruir aqueles que a
leem. O autor reconhece que tais questionamentos não são feitos por acaso e que para
tal é necessária muita erudição -Este provavelmente é um dos ensinamento da tradição
árabe ensinado por seu pai-.

Por isso, chamo atenção para o senso do discernimento, citado por Ibn Khaldun para
exemplificar uma de suas críticas acerca das inverdades ou exageros já esperados por
leitores das mais diversas áreas do conhecimento que se dedicam a fontes históricas que
contém somas de dinheiro ou forças de um exército.

Sobre isto, Ibn Khaldun cita Maçudi e aduz que o árabe, assim como muitos outros,
afirmam que o exército Israelita de Moisés contava com mais seiscentos mil guerreiros
e que algumas questões-chave seriam necessárias para chegar a um número mais real de
soldados. O magrebino salienta ainda, que segundo as mesmas fontes o exército Persa
superava em muitos números o exército Israelita-: “As terras do Egito e Síria reunidas
seriam bastante vasta para fornecerem um número tão elevado de homens em idade
militar?”, “Essas terras teriam capacidade financeira de manter um número tão elevado
de soldados?”, “O campo de batalha é suficientemente grande para comportar um
número tão elevado de inimigos num combate corpo a corpo?” e por fim, “levando em
consideração as multidões que já vi em minha vida, até onde minha vista alcançaria ver
um campo de batalha com dois exércitos dessa magnitude?” [Khaldun, p.19-25]

Segundo Khaldun estes foram alguns dos motivos pelos quais ele dedicou-se a escrever
o Muqaddimah no momento de solidão que passara durante o exílio em Qal'at Banu
Salama pretendia, a partir desses escritos, discutir questões que pudessem ajudar a
política Magrebina e despertar o senso crítico de outros intelectuais em potencial da
época.

A proposta historiográfica do Muqaddimah reunia aquilo que era considerado mais


importante para o autor:

“Encarei e discuti com grande cuidado as questões condizentes com a matéria deste
livro de maneira a pôr meu trabalho ao alcance tanto dos eruditos como dos homens do
mundo. Na sua confecção e na distribuição das matérias, adotei um plano original,
elaborei um método novo de escrever a História, escolhendo um caminho que
certamente surpreenderá o leitor, e seguindo uma marcha e um sistema inteiramente
próprios. Ao tratar do que se relaciona com a formação da Sociedade Humana oferece
como circunstancia características. Apontei as causas dos acontecimentos e mostrei por
que caminhos os fundadores dos Impérios entraram.”

60
Considerações finais
Diante do que foi exposto compreendo que para Ibn Khaldun a tradição histórica diz
respeito ao conjunto de métodos utilizados pelos historiadores para escreverem a
história.
Alguns impõe aos seus escritos um limite geográfico ou temporal, outros tentam debater
toda a história de que tem conhecimento, mas de qualquer forma o erro que deveria ser
evitado pelos historiadores seria o de não questionar a história que lhe chega aos
ouvidos no momento de registra-la.

Assim, levando em consideração que a tradição histórica Khalduniana manda colocar a


história sob uma questão e a partir daí desenvolver um exame de verificação dos fatos
com críticas inteligentes, seus escritos deixam um amplo leque de debates que ainda
podem ser feitos levando em consideração, não só o Muqaddimah, mas todos os livros
escritos pelo Ibn Khaldun e pelo historiadores em seus contextos e tempos únicos.
Levando em consideração que este é o caminho que leva a história à sua cientificidade.

Referências:
Giovanna Ily Farias Ramalho é graduanda no curso de História da UFPE-Universidade
Federal de Pernambuco e faz parte do LEOM-Laboratório de Estudo de Outros
Medievos.

KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os Prolegômenos. tradução integral e direta da


língua árabe para a portuguesa por J. Khoury e A. B. Khoury. São Paulo: Instituto
Brasileiro de Filosofia,1958, (Tomo 1 Pág.1-84; 475-556)
IRWIN, Robert. Ibn Khaldun, an intellectual biography. Princeton, New Jersey:
Princeton University Press, 2018.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. 5. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006. p. 1-274. Tradução: Marcos Santarrita.
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica
através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Civilização Brasileira,2012.
SENKO, Elaine Cristina. Aspectos sobre o poder e a civilidade na narrativa
histórica da Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406) Politeia: História e
Sociedade, Vitória da Conquista, v.13, n.1, p.207-222,2013.
SALAMA, Mohammad R. Islam, Orientalism and Intellectual History: modernity
and the politics of exclusion since ibn khaldun. New York: I.B. Tauris & Co Ltd, 2011.

61
AS INICIATIVAS E AS REFLEXÕES SOBRE GÊNERO NO
DESENVOLVIMENTO DA LUTA PELA CONCRETIZAÇÃO DE
ROJAVA
Isabella dos Santos Daiub
O meu interesse no momento é de propor em refletir sobre o domínio da linguagem
masculina, do conhecimento e do que é entendido como progresso do saber, percebendo
como a dominação dos discursos hegemônicos subjugam os indivíduos às hierarquias de
gênero que geram violências que transcendem a história, fronteiras e os continentes.
Vou apresentar a jineolojî, o contexto histórico e da experiência das mulheres do
curdistão, ambiente em que construiu a ciência da mulher. Mas para um verdadeiro
entendimento sobre as perspectivas da experiência dessas mulheres é necessário tomar
que em toda sociedade construída pela disputa de poder a estrutura patriarcal permitirá a
penetração e a imposição das normas sociais delimitadoras do humano. Admitindo a
força dessa subjugação sobre os corpos femininos também é necessário para uma
melhor compreensão das camadas da estrutura opressora buscar identificar os outros
mecanismos de controle do poder para além da questão de gênero, onde entre elas a
mulher oriental transporta consigo a generalização e os reducionismos das
representações do imaginário orientalista baseado na unidade, tendo a sua
individualidade esvaziada para a manutenção do discurso do poder hegemônico
responsável pela construção da narrativa histórica.

Os estudos pós-coloniais evidenciam as formas que o Ocidente legitima a própria


construção de civilização como superior à de um outro, como criou e designou o que é a
cultura Oriental, descrita com um leque de características criadas pelo conhecimento
orientalista, definindo como um lugar e uma cultura distante, por vezes sensual, ou
exótica, atrasada e, cada vez mais vista como uma constante ameaça à ordem
civilizatória e ao progresso da sociedade.

Essa perspectiva orientalista recai sobre a representação da mulher oriental, onde o


reducionismo e a generalização das práticas sociais, culturais e religiosas anulam a
realidade perante a representação criada. Mesmo entre as discussões de gênero a sombra
dessa interpretação feita pelas relações de poder e pelo orientalismo está presente
contribuindo para a manutenção da hegemonia ocidental e para a construção de
categorias. Entre as escritoras que percebem essa influência do orientalismo, Leila
Ahmed professora e pesquisadora egípcia expõe um “feminismo colonial” legitimando
as práticas políticas em relação ao Oriente Médio e Lila Abu-Lughod questiona o papel
da antropologia nas disputas de poder, propõe discutir sobre o “feminismo
transnacional” para aceitar a possibilidade da diferença, dispensando as categorias de
representação impostas e recusando o relativismo cultural. (CHAISE, 2016)

Analisando as experiências históricas ocultadas das mulheres ao redor do mundo, é


possível contestar o imaginário imposto a cada uma delas. Nos últimos anos a
repercussão internacional da atividade do exército de mulheres do curdistão, o YPJ
(Unidade de Proteção das Mulheres) expôs uma dessas experiências de feminismo, onde
se desenvolve junto às discussões sobre a solução para a questão curda, que tem origens
históricas após a primeira guerra mundial nas discussões sobre a partilha do Império

62
Otomano, que assim como outros processos de divisão de territórios na história
desconsiderou as configurações locais.

E para compreender as raízes do movimento revolucionário das mulheres curdas é


necessário, como Abu-Lughod argumenta, atenção ao que se discute entre as autoras
feministas para evitar mais uma conquista das hegemonias dominantes. Partindo desses
cuidados e da consciência do jogo de disputas de poder no cenário geopolítico e
histórico, a resistência curda tem traçado estratégias efetivas desde a criação do PKK
(Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Relembrando e celebrando a figura de Sakine
Cansiz, encontramos em sua participação como co-fundadora do PKK (Partido dos
Trabalhadores do Curdistão) a agitação para discussões sobre a necessidade de um
movimento autônomo de mulheres e sobre a libertação da mulher desde a criação do
partido em 1978. O partido se forma defendendo a criação de um Estado curdo e sofre a
intensa perseguição do governo turco que perdura há décadas. No contexto das
circulações de ideias pós-guerra fria o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão)
distancia-se do marxismo clássico com as perspectivas de classe e da defesa pela
criação de um Estado curdo, por meio de reflexões internas que concluíram que a
existência de um o sistema opressivo é intrínseca ao Estado que serve ao poder
dominante.

Ao se afastar da ideia da criação de um Estado, o movimento curdo ao mesmo tempo


que resiste aos ataques do exército da Turquia – e de outros agentes políticos ao longo
dessas décadas de resistência, também garante grandes avanços na esfera intelectual ao
dar a educação política e social um importante lugar dentro da revolução. O fundador do
partido e líder curdo Abdullah Öcalan, preso desde 1999 possui uma grande produção
textual e encontrou uma possível solução para a questão curda elaborando o
confederalismo democrático, alternativa ao sistema capitalista cujos os princípios
sustentam-se na libertação humana no que se refere às relações com a natureza, contra a
degradação ambiental e na luta contra todas as formas de escravização, considerando a
mulher o primeiro ser colonizado e por isso, a emancipação da mulher, assim como a
superação das normas de masculinidade são as condições para a revolução social e para
o autogoverno se tornar possível.(ÖCALAN, 2016)

Mas não partem apenas de Ocalan as reflexões acerca da questão da libertação da


mulher, na história do movimento curdo e nos anos da criação do PKK (Partido dos
Trabalhadores do Curdistão) a presença de vozes femininas é afirmada por elas próprias
- como na biografia de Sakine Canzis publicada em 2018, “Sara: my whole life was a
struggle” e o entendimento de que uma organização autônoma de mulheres era coerente
crescia. Pode-se pensar em duas experiências encontradas em relatos dos anos em que
os combates armados foram intensificados e as estratégias da revolução tiveram de ser
reformuladas. Primeiro considerando as experiências das guerrilhas mistas e o
descrédito dado a figura feminina em combate, é exposto durante as pautas do partido o
ambiente hostil em que as guerrilheiras eram colocadas e em 1993, a primeira guerrilha
de mulheres é formada. Durante os anos de intensa perseguição saem das prisões os
depoimentos, sobretudo e os de mulheres que contam a consolidação dos laços de
resistência que caracterizam a potência dessa alternativa encontrada no movimento de
Rojava (COMITÉ DE JINEOLOJÎ EM EUROPA, 2020).

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Reforçado por essas duas experiências de organização o debate sobre a emancipação
mental, espiritual e econômica da mulher despertou na revolução e essas reflexões
encaminhadas especialmente na década de 1990 foram concretizadas na revolução pelo
Confederalismo Democrático. Durante o encarceramento, em suas publicações expõe a
necessidade de superação do “macho dominante”, o que internaliza no indivíduo as
normas de ordem social impossibilitando a vontade pelo bem-estar da sociedade livre.
Discute-se nessa linha de raciocínio a “teoria da separação” quando se descobre as
dimensões das limitações que a influência do “macho dominante” impõe seja ao
homem, a mulher ou a criança, nesse sentido a superação das mentalidades autoritárias é
essencial para a mudança nos modos de viver almejada e a educação voltada para essa
necessidade passa a exercer um papel prioritário para a revolução. Para preservar o
campo das ideias e consolidar a “sociedade saudável” é incentivada a responsabilidade
pela comunidade com a defesa da liberdade individual e de existência.

Com a intensificação dos combates e a prevalência do exército turco, a posição do


Partido dos Trabalhadores do Curdistão é de rever suas estratégias e a pensar em
mecanismos de defesa, com o golpe de 1980 na Turquia começa a época dos exílios,
depois o recuo do combate e o partido se estabelece no território Sírio sob os embargos
do governo Assad. É fundamental destacar que o século XX no Oriente Médio com o
crescente nacionalismo foi profundamente marcado pelos processos de assimilação
forçada e arabização em uma intenção de dissolver a variedade cultural e os costumes
das minorias étnicas em favorecimento de grupos, não necessariamente majoritários
apoiadores do governo – assim como na atualidade, potências globais e locais estavam
envolvidas estrategicamente nos assuntos relacionados a ocupação do território.

Todo esse contexto incentiva os envolvidos com o Confederalismo Democrático e com


a resistência da luta curda a buscar formas de viabilizar a proposta do modo de vida
alternativo ao sistema patriarcal capitalista e nessa intenção a educação ideológica passa
e ser parte crucial na formação nas guerrilhas e nos vilarejos - e nesse ponto acho
conveniente explicar um pouco de como se dá o municipalismo implantado. Em 2012
durante o Congresso Nacional foi declarada oficialmente a autonomia de Rojava ao
norte da Síria – não confundir com o Curdistão iraquiano que possui seu próprio
governo e diferenças com os curdos revolucionários. A região é dividida em três
cantões, Jazira, Kobanî e Afrin onde uma democracia radical é buscada por meio dos
Conselhos Locais – a exemplo do Conselho do Curdistão, dos Conselhos de Cidade,
Conselhos de Vila, de acordo com a necessidade e quantidade de habitantes de cada
região. Os conselhos também têm como uma das prioridades garantir uma justa
representação étnica, religiosa e de gênero em cada nível da estrutura democrática e
podem designar Comitês para executar o que fora decidido em assembleia baseado no
consenso, havendo a cada grupo/comunidade decidir deliberar ou não às conclusões
discutidas nas assembleias.

Durante os anos 2000 é percebido o estabelecimento das redes transnacionais, outro


mecanismo de defesa eficaz, e a pulverização da propaganda da autoadministração.
Todas as ideias formuladas pelas pessoas participantes da revolução ultrapassaram
fronteiras e são discutidas globalmente em centros de pesquisa e nos Comitês
Internacionalistas. Os debates teóricos deram forma a jineolojî, a ciência da
mulher/vida, que foi pensada para ser uma alternativa ao sistema de conhecimento da

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ciência positivista buscando explorar as experiências ocultadas na história, remetendo
muitas vezes aos conhecimentos ancestrais e a tradição oral e envolvendo diferentes
saberes desde a medicina, sociologia, antropologia à mitologia contestando a autoridade
intelectual moderna.(TÊKOSÎN,2017) Com esse propósito Comitês, locais e
internacionais são designados a fim de garantir meios de capacitação técnica e
intelectual aos vilarejos auto administrados junto a busca pela superação das sequelas
causadas pela guerra.

Pesquisadoras em diferentes centros escrevem sobre as potências da revolução. O


municipalismo libertário, o confederalismo democrático, a história e memória das
minorias étnicas e a jineolojî também é desenvolvida na Universidade de Rojava, como
na Europa e na América Latina, não é difícil encontrar os canais de comunicação de
cada Comitê com textos e publicações sobre a guerra e revolução, apesar do acesso para
a América Latina, especialmente para o português ainda deixar um pouco a desejar, se
considerar a velocidade da circulação de fontes nos últimos anos. No Brasil a
internacionalista Maria Florencia Guarche Ribeiro desenvolveu a sua pesquisa para
compreender as perspectivas epistemológicas colocadas em questão pelas mulheres de
Rojava abrindo um caminho para outras pesquisadoras explorarem o tema, assim como
os esforços de coletivos, grupos de estudos e comitês para traduzir os textos, notícias,
publicações sobre a revolução são compensados pelo sucesso dessa rede de
compartilhamento. Maria Florencia, com as devidas ressalvas e noção das diferenças,
percebe como podemos alocar a questão do “lugar social” e do “privilégio epistêmico”
abordado por escritoras negras norte-americanas, no caso Bell Hooks e Patricia Hill
Collins para fundamentar a crítica a produção de saber feitas pelas mulheres curdas,

“Assim como Bell Hooks e Patricia Hill Collins, que destacam a importância de uma
práxis crítica centrada na experiência das mulheres, propomos pensar a Jineologî,
enquanto proposta de ruptura epistêmica, em diálogo com as construções teórico-
metodológicas das autoras negras. Reconhecemos que se tratam de contextos políticos e
sociais radicalmente diferentes e que as autoras negras centram seus esforços em
comprovar a matriz de dominação (Collins 2019) racista que informa as hierarquias
sociais no contexto norte-americano, algo que não ocorre no Curdistão. Ainda que as
políticas repressivas no Curdistão tenham como parâmetro os marcadores sociais de
caráter étnico, é importante estarmos atentas as especificidades de cada contexto. Ainda
assim, acreditamos que a valorização das experiências apresentadas pela teoria do ponto
de vista e o reconhecimento da potência criativa das margens presentes nessas
abordagens favorecem a compreensão das narrativas e resistências advindas desde o
Curdistão. Dessa forma, para que compreender o lugar ocupado pelas mulheres dentro
do Movimento de Libertação Nacional torna-se relevante considerar sua trajetória de
organização” (RIBEIRO, 2019).

A importância da tradução e da difusão do conhecimento é outra característica da


revolução que cada vez mais demonstra o seu caráter transfronteiriço, é por esse sentido
que se dá a busca pelas alternativas para a superação da linguagem masculina,
incentivadas por mulheres que valorizaram o ato de escrever e traduzir uma geração de
pesquisadoras feministas estão compreendendo a variedade das perspectivas sociais
buscando fazer circular o saber anulado na disputa das narrativas pelo discurso
hegemônico para tornar possível um conhecimento horizontal.

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Atualmente o projeto de Rojava demonstra-se a cada passo que é possível pensar em
uma revolução social e uma alternativa sistêmica. Na última década além do exército da
Turquia e dos embargos do governo Sírio, os curdos e as minorias étnicas que também
sofreram com o processo de assimilação cultural forçada foram ameaçadas pelo Daesh e
os exércitos dos combatentes curdos foram capazes de libertar regiões que antes
estavam sob o domínio dos grupos fundamentalistas, a retirada do apoio norte-
americano no final de 2019 também não abalou definitivamente com a defesa da região.
O fator do embargo econômico e de infraestrutura histórico, assim como o uso dessa
estratégia das potências globais e locais nos territórios não só no Oriente Médio para
impedir qualquer forma de autonomia ou viabilidade de crescimento merece atenção
para compreender a agressividade dos agentes capitalistas em todos caminhos da
existência humana. A segunda edição publicada no Brasil em 2017 com artigos de
autoria de diversas pessoas e/ou grupos o quinto capítulo do livro “A Revolução
Ignorada: Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no Oriente
Médio” traz em um dos capítulos a relação dos curdos com o governo Assad da Síria
mostrando as ações recorridas para manter o empobrecimento das minorias vulneráveis,

“Além desses confiscos de terra, o regime impôs uma série de leis, a última delas
aprovada em 2008, que fazia com que a vida dos curdos na região fosse péssima,
obrigando-os a imigrar para as cidades ou outras regiões. Foi determinado basicamente
que Rojava só poderia produzir trigo e petróleo, e que estaria impedida de desenvolver
qualquer outra atividade. Isso foi levado adiante proibindo-se a implantação de
indústrias ou de qualquer atividade econômica que não fosse a agricultura de trigo.

Rojava se converteu no celeiro da Síria, produzindo 70% das necessidades de trigo do


país. Apesar disso, o governo não permitiu que nenhum moinho fosse construído para
moer o trigo ou processá-lo. Isto é, era feito o impossível para manter a atividade
econômica tão somente no âmbito da agricultura, devendo as demais etapas do processo
serem concluídas em outras partes do país. Além do trigo, em Rojava também se extraía
petróleo, já que é onde se concentra as principais reservas do país, mas novamente as
refinarias se situam fora do território curdo. Inclusive chegou-se a promulgar uma lei
que proibia a construção de qualquer edifício de grandes dimensões. O resultado de tudo
isso é que antes da revolução não havia nenhum tipo de infraestrutura industrial”
(EDITORA DESCONTROL, 2017)

Passado o horror quando um exército curdo recupera alguma região, é garantido às


pessoas libertadas meios de superação dos traumas e a acolhimento em um ambiente
onde os valores hierárquicos não são mais o ponto em que a sociedade se baseia, nos
vilarejos espalhados pelos cantões a assistência e infraestrutura é garantida pelo
Conselho do Curdistão a qualquer indivíduo independente de sua origem familiar ou
religiosa. O atravessamento de fronteiras que a luta de Rojava, o sucesso do
municipalismo, a autossuficiência dos vilarejos e cidades, a construção coletiva de
significados, a resistência mesmo sob os ataques imperialistas e às falsas acusações –
seja de terrorismo ou de traição a luta anti-imperialistas, todos esses fatores e outros
demonstram a potência dessa revolução e desse movimento de luta histórico onde o
modo de vida capitalista não é a única orientação.

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Todos os canais de comunicação dos Comitês e das organizações possuem um vasto
material de informações e de produção textual. Artigos, ensaios, entrevistas, publicações
sobre os congressos sobre a jineolojî podem ser encontrados no website,
https://jineoloji.org/, todos livros publicados por Ocalan em http://freeocalan.org/ e em
outras plataformas também possuem textos acessíveis. Em congressos acadêmicos a
jineolojî é feita a crítica a mentalidade colonizadora, é esse espaço teórico que pode
possibilitar questionamentos em dimensões variadas, para citar um exemplo, a presença
constante da “mulher” como uma categoria, possibilitando uma exclusão é confrontada
nesses campos de pesquisa sem ignorar as implicações locais Quando penso sobre essas
conexões possibilitadas pela jineolojî também me recordo quando Bell Hooks propõe
pensar a teoria cura e como prática libertadora incentivando as referências à mulheres e
às histórias marginalizadas (HOOKS, 2013).

Tudo – ou pelo menos o que é de interesse em contar, sobre a revolução está sendo
devidamente documentado e divulgado, as escolas, centros de saúde, o projeto
ecológico, o desenvolvimento sustentável e o funcionamento do autogoverno. De
Rojava pelos meios de comunicação impulsionados de dentro da revolução as vozes das
pessoas envolvidas pela “sociedade saudável” ecoam globalmente espalhando a sua
própria versão de sua história. Penso também que diante a uma crise sanitária global e
de degradação ambiental a revolução de Rojava parece estar cada vez mais
demonstrando o seu potencial prático e a solução curda pode não parecer mais mera
utopia. As provas de eficiência do modelo curdo incomodam aos agentes imperialistas e
as tentativas de aniquilação vão se tornar mais agressivas também no que se refere a
disputa de poder pelo discurso, porém o potencial da resistência deve ser preservado
junto a tudo que foi construído e posto em prática ao longo de mais de cinco décadas.
Entre outras razões é também pela busca pela autossuficiência de sua narrativa e saber
que proponho uma atenção a esse movimento curdo, a suas origens, o seu
desenvolvimento que como busquei expor, é repleto de fontes e perspectivas,
especialmente no que nos sugere sobre a liberdade da humanidade e a autossuficiência
das comunidades, que possam nos encaminhar para espaços e circunstâncias para uma
mudança social.

Referências
Isabella Daiub é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social
PPGHIS/UFRJ

CHAICE, Mariana Falcão. Feminismo Transnacional: uma lente para o Anti-


Orientalismo. Florianópolis: Estudos Feministas, 2016.
Jineolojî, Azadê Plataforma de Solidaritat amb el Poble Kurd (canal no youtube), S/L.
COMITÉ DE JINEOLOJÎ EM EUROPA: 2020. 1 vídeo (1h04m54s)
EDITORA DESCONTROL, “Breve História de Rojava” em “A Revolução Ignorada:
feminismo, democracia direta e pluralismo radical no Oriente Médio”, Vários Autores.
São Paulo: Autonomia Libertária, 2017.
HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir - A Educação Como Prática da Liberdade. São
Paulo, Martins Fontes, 2013
ÖCALAN, Abdullah. Confederalismo Democratico. S/L: International Initiative
Edition, 2013.

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___________. Libertando a vida: revolução das mulheres. São Paulo: Fundação Lauro
Campos, 2016.
RIBEIRO, Maria Florencia Guarche. A Jineologî como uma contribuição à
epistemologia feminista: um debate desde a perspectiva das mulheres curdas. Peru:
XXXII Congresso Internacional Alas, 2019.
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007
TÊKOSÎN, Avjîn. Reflexiones sobre el hombre y la masculinidad en el patriarcado,
[S/L]: jineolojî.org, 2017 [disponível em http://jineoloji.org/es/reflexiones-sobre-el-
hombre-y-la-masculinidad-en-el-patriarcado/#sdfootnote22sym acesso em 04/09/2020]

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BALDUÍNO IV: O REI LEPROSO DE JERUSALÉM
Jeferson Dalfior Costalonga
O presente texto visa discorrer, de forma breve, acerca da biografia de um peculiar
personagem do Oriente Próximo no século XII: Balduíno IV, o Rei Leproso de
Jerusalém. O jovem monarca personificou a sacralidade muitas vezes ligada à figura de
um rei medieval, com o estigma conferido ao portador da lepra naquele mesmo período.

A lepra
A lepra é mencionada em diversas ocasiões na bíblia, quase sempre relacionada a
intervenção divina sobre o indivíduo. Em várias passagens aparece como forma de
punição contra alguém que cometeu atos considerados impróprios, como no Livro de
Números 12:10. Há trechos em que a doença surge como forma de provação, para que a
pessoa reconheça sua inferioridade perante Deus, como ocorre em Êxodo 4:6. Por fazer
parte de uma sociedade baseada em preceitos bíblicos, tais menções conferiram ao
sujeito medieval, quando infectado, toda sorte de estigmatizações.

É possível que a lepra tenha chegado ao Ocidente por volta do século I a.C., de acordo
com Carvalho [2004, p. 17], levada pelas tropas romanas que regressavam do Egito;
todavia, há a hipótese de que a moléstia chegou na Grécia em 326 a.C., através dos
soldados de Alexandre, o Grande, quando estes retornavam de suas incursões na Ásia.
A doença se espalhou pelo Velho Continente de tal forma que, segundo Foucault [1978,
p. 7], por volta do século XIII haviam cerca de dezenove mil leprosários nos territórios
cristãos.

Voltaire [1827, p. 13] diz que o grande número de infectados e, consequentemente, a


alta demanda por atendimento ocorria por causa das cruzadas. O filósofo francês
considerava que os cruzados levaram a enfermidade para a Europa quando regressavam
de suas jornadas no Oriente, o que acarretou na disseminação da doença. Bériac [1985,
p. 129] elenca outros fatores para a ampliação da rede de casas que acolhiam pessoas
infectadas. Para este historiador medievalista, o aumento do número de leprosos e
leprosários se deve ao crescimento demográfico dos centros urbanos, o que tornava
mais evidente a presença de pessoas infectadas, além de um natural desenvolvimento
hospitalar concomitante ao alastramento da doença

No Oriente, um leprosário ganhou destaque por causa de sua singularidade, trata-se da


Casa de São Lázaro de Jerusalém. Esta instituição acolhia vários cavaleiros leprosos,
inclusive da Ordem do Templo, e, gradativamente adquiriu características de uma
ordem militar. No século XII, menciona Demurger [2002, p. 37], a Ordem de São
Lázaro recebeu escravos do rei Amalrico, pai de Balduíno IV, como forma de
recompensa pela participação em campanhas militares. Riley-Smith [2019, p.156]
ressalta que algumas instituições, como o Hospital de São João de Jerusalém, acolhia e
cuidava de pobres acometidos por qualquer doença, exceto a lepra.

A criação do Reino Latino de Jerusalém


Em 15 de julho de 1099, os cruzados venceram a resistência dos defensores fatímidas e
invadiram Jerusalém. Em seguida ocorreu uma grande carnificina. Sem distinção de
sexo ou idade, os habitantes locais, judeus e muçulmanos, foram massacrados. Consta

69
que nesse dia as ruas ficaram cobertas de sangue e corpos dilacerados. Em 22 de julho,
os príncipes cruzados fizeram uma assembleia para deliberar algumas demandas
urgentes, como organizar as defesas da recém conquistada cidade e, principalmente,
escolher um rei para governar Jerusalém.

Alguns nobres, como Roberto da Normandia e Roberto de Flandres, que foram


apontados como candidatos naturais, não demonstraram interesse no escrutínio, pois
pretendiam retornar à Europa com seus respectivos séquitos. Logo, restaram dois
candidatos: o duque Godofredo de Bouillon e o conde Raimundo de Toulouse. Os
nomes dos eleitores não foram preservados nas crônicas, mas Runciman [2003, p. 261]
supõe que o juri fora formado por membros do alto clero e também pelos cavaleiros
mais renomados. Raimundo de Toulouse venceu o pleito, contudo rejeitou o posto.

Com a recusa feita pelo conde Raimundo, a coroa foi ofertada a Godofredo de Bouillon,
que aceitou a incumbência de governar a Cidade Santa. O Duque, no entanto, rejeitou
ser chamado de rei; preferiu ostentar o título de Defensor do Santo Sepulcro. Surgiu,
dessa forma, o Reino Latino de Jerusalém, o terceiro dos Estados cruzados fundados no
Oriente. Ao que parece, o nome do novo governante foi bem recebido pelos cruzados;
ademais, durante o trajeto à Palestina circulavam entre os peregrinos histórias que
deram grande reputação a Godofredo.

Em 1100 o governante lançou ofensivas e incorporou as cidades de Hebrom e Jafa a seu


Estado. Outras cidades como Cesareia e Arsuf, segundo Riley-Smith [2019, p. 128] se
tornaram tributárias. Contudo, em 18 de julho deste mesmo ano o lotaríngio faleceu.
Sobre a causa de sua morte, há divergências entre os cronistas da época. O muçulmano
Ibn al-Qalanissi [1952 apud Maalouf, 1989, p. 65], relata que o Duque morreu após ser
atingido por uma flecha; já o cristão Mateus de Edessa [1858 apud Runciman, 2003, p.
278], diz que Godofredo fora envenenado após comer frutas enviadas por um emir. O
mais provável, no entanto, é que tenha sido acometido por alguma doença infecciosa.

Os reis cruzados de Jerusalém


Godofredo de Bouillon foi sucedido por seu irmão mais jovem, Balduíno, então conde
de Edessa; este, diferentemente de seu antecessor, assumiu o título de rei. Foi coroado
no natal de 1100, na Igreja da Natividade, em Belém, o que agregou imenso simbolismo
ao cargo. Maalouf [1988, p. 69] diz que o novo rei tinha sob comando apenas algumas
centenas de cavaleiros à disposição, no entanto novas levas de peregrinos que chegavam
à Terra Santa se juntavam ao exército por determinados períodos, o que possibilitou ao
rei colocar em prática seus planos de expansão.

Ao longo de seu reinado anexou diversos territórios sob seu domínio, dentre as quais,
diz Kostick [2010, p. 182] estavam importantes cidades costeiras, como Acre e Beirute.
Tais ações devem ter impressionado os muçulmanos, pois o cronista Ibn al-Athir [1979
apud Maalouf, 1988, p. 69] atribuiu a Balduíno o papel de idealizador de todo o
movimento cruzadista. Em 1118, enquanto se dirigia para uma expedição no Egito, o rei
Balduíno ficou doente e faleceu. Seu exército trasladou o corpo de volta para Jerusalém,
onde em 7 de abril fora sepultado ao lado de seu irmão Godofredo na Igreja do Santo
Sepulcro.

70
O governante não deixou herdeiros, tampouco havia preparado a sucessão. Um conselho
foi formado para decidir quem ocuparia o trono. O designado foi Balduíno de Bourcq,
primo do falecido rei. Em 14 de abril de 1118, um domingo de páscoa, assumiu a coroa
como Balduíno II. Sob a autorização e apoio deste rei surgiu em 1119 a Ordem dos
Pobres Cavaleiros de Jesus Cristo e do Templo de Salomão, conhecidos como
Templários, uma das instituições mais emblemáticas do período das cruzadas.

Balduíno II foi casado com uma princesa armênia chamada Morphia; o casal não teve
filhos homens, em compensação conceberam quatro meninas. Melisende, a primogênita,
foi a escolhida para suceder o pai. Balduíno II considerava necessário a filha ter a seu ao
lado um marido para auxiliá-la nas questões governamentais e cumprir os deveres
bélicos, além, é claro, garantir a continuidade da dinastia. Vários nomes foram
propostos, mas a sugestão de Luís VI foi a que mais agradou; o rei francês recomendou
Fulque V, conde de Anjou.

O Conselho dos Barões, um grupo de proeminentes nobres que deliberava questões


relevantes do Reino, não criou objeções diante de um homem de tão alta estirpe, que,
segundo Runciman [2003, p. 158], contava até com o apoio do Papa da época, Honório
II. Fulque, conforme diz Mayer [2001, p. 121], recebeu garantias de que compartilharia
o poder com Melisende, ao invés de ser apenas um rei consorte, e, dessa forma, aceitou
a incumbência. Viúvo à época, entregou suas propriedades para seu filho e foi para
Jerusalém disposto a permanecer na Terra Santa até o fim da vida. O casamento ocorreu
no final de 1129.

Em 1131 Balduíno II, já bastante debilitado, recebeu boa parte da nobreza local. Na
presença destes, transferiu os poderes para Melisende, Fulque e o filho do casal, um
menino de dois anos, também chamado Balduíno. Foi o último ato público do rei, que
morreu em 21 de agosto daquele mesmo ano. Assim como seus antecessores, foi
enterrado na Igreja do Santo Sepulcro. Em 14 de setembro, nesta mesma igreja, Fulque
e Melisende foram coroados. Os primeiros anos de união foram marcados por algumas
desavenças que foram superadas; os anos finais foram harmoniosos. Guilherme de Tiro
[1844 apud Pernoud, 1983, p. 84] menciona que todas as reuniões administrativas
contavam com a presença de Melisende; Fulque, acrescenta o cronista ierosomilitano,
tomava suas decisões apenas depois de ouvir os conselhos de sua rainha.

Em novembro de 1143, durante uma estadia da família real na cidade de Acre, o rei
morreu após cair do cavalo enquanto caçava lebres. Em dezembro desse mesmo ano, na
Igreja do Santo Sepulcro, o filho mais velho do casal foi coroado como Balduíno III,
aos treze anos de idade. A mãe, contudo, continuou a governar como regente do jovem
rei.

Ao chegar à fase adulta, Balduíno III reivindicou governar sozinho, mas Melisende se
negava a abdicar. Segundo Runciman [2003, p. 289], a rainha contava com apoio de
membros da nobreza, mas, ao que parece, o filho tinha maior aceitação por parte da
opinião pública, que julgava necessário um rei guerreiro à frente dos negócios do
Estado, sobretudo com a ascensão de Nur ed-Din, um dos principais artífices da
unificação islâmica contra os cruzados. Em 1152, para simbolizar sua independência da
mãe, Balduíno III foi coroado novamente.

71
Balduíno III aventurou-se em muitas campanhas militares; liderou uma expedição que
conquistou a cidade de Ascalon, feito que seus antecessores não conseguiram. No final
de 1162, durante uma estadia em Trípoli, o rei adoeceu e como não apresentava sinais
de melhora, pediu que o levassem para Beirute, a fim de que morresse dentro do seu
próprio reino. Em fevereiro de 1163 pereceu. Segundo Mayer [2001, p. 160], até mesmo
os islâmicos choraram durante a passagem do cortejo fúnebre que levou o corpo para
Jerusalém, onde fora sepultado.

Balduíno III não teve filhos, o herdeiro foi seu único irmão, Amalrico. O Conselho dos
Barões, contudo, impôs uma condição para que Amalrico assumisse: deveria se separar
da esposa, Agnes. O motivo alegado era a consanguinidade, pois eram primos em
terceiro grau. Amauri, menciona Runciman [2003, p. 313], não hesitou em pedir a
anulação do matrimônio, porém garantiu os direitos dos filhos do casal em eventuais
sucessões.

Em vida, o projeto de Amauri foi invadir o Egito. Não conseguiu, contudo, conforme
diz Tyerman [2010, p. 405], campanhas militares e alianças estabelecidas com os
egípcios renderam consideráveis recursos financeiros para seu reino. O rei morreu em
julho de 1174. Nesse mesmo ano houve o desaparecimento de Nur ed-Din, o que abriu
caminho para o protagonismo de um dos mais ilustres personagens do Oriente medieval,
o sultão Saladino.

Balduíno IV: o rei leproso


Balduíno nasceu em 1161. Teve duas irmãs, Sibila e Isabela, esta última fruto do
segundo casamento de Amalrico. Por ser o único filho do sexo masculino, o garoto
desde cedo começou a ser preparado para assumir o lugar do pai. Ao completar nove
anos, Amalrico delegou a educação do jovem herdeiro a Guilherme, então arcediago da
cidade de Tiro, que deu ao príncipe instruções em literatura e artes liberais. Fora
Guilherme, inclusive, a notar que algo anormal ocorria com o menino.

Guilherme de Tiro [apud Montefiori, 2013, p.311] menciona que ao observar o príncipe
brincar com outras crianças, percebeu que apenas o herdeiro não demonstrava sinais de
dor ao receber golpes no braço. A princípio, Guilherme imaginou que seu pupilo fosse
mais resistente que as demais crianças; ao interpelar Balduíno sobre o porquê de não
manifestar nenhum tipo de sofrimento, este alegou que não sentia dor, mas apenas
dormência nos braços. A explicação deixou o tutor intrigado, todavia logo deduziu que
poderia se tratar de alguma enfermidade. Guilherme de Tiro relatou o ocorrido para
Amauri; o rei consultou, então, médicos locais para saber do que se tratava. Chegou-se a
conclusão que, de fato, se tratava da lepra.

Com a morte de Amalrico, o nome de Balduíno não enfrentou qualquer tipo de objeção
por parte do Conselho dos Barões, pois era o único príncipe da família real; ademais,
Sibila, um ano mais velha, estava solteira à época. Em 15 de julho de 1174, aos 13 anos
de idade, foi coroado como Balduíno IV. Devido a sua pouca idade, Raimundo, conde
de Trípoli se tornou regente do reino, cargo que ocupou até 1177, quando o rei, aos 16
anos, atingiu a maioridade.

72
No começo do reinado a lepra avançou consideravelmente sobre Balduíno, de tal forma
que já supunha-se que o rei não viveria por muito tempo e tampouco poderia ter filhos.
Buscou-se na Europa um marido para a irmã mais velha do monarca. Tyerman [2010, p.
418] diz que é possível que Balduíno pensasse em abdicar em favor do cunhado,
Guilherme Espada-Longa; no entanto, poucos meses depois do casamento, Guilherme
caiu enfermo e faleceu. Em 1180 Sibila casou-se novamente, desta vez com um
cavaleiro recém chegado na Palestina, chamado Guy de Lousignan.

A condição de rei não o livrou das estigmatizações. A lepra de Balduíno foi associada a
uma punição divina pelo fato de seus pais terem se casado mesmo cientes dos laços de
parentesco que possuíam. Tais julgamentos não circulavam apenas entre os cristãos,
entre os muçulmanos também dizia-se que a lepra do rei era uma forma de castigo. O
cronista muçulmano Ibn Jubayr [2007, p. 473] esteve no Oriente à época do reinado de
Balduíno IV e cita que a lepra foi um sinal da ira de deus que recaiu sobre o rei. Diz,
além disso, que o pior ainda estava para acontecer, pois após a morte o castigo que o
aguardava seria mais cruel e duradouro.

Yubayr [2007, p. 472] menciona que o rei, por causa da doença, sempre evitou aparecer
publicamente. Provavelmente o cronista se refira a aparições por motivos diplomáticos
ou diante da corte, pois sabe-se que Balduíno IV participava de campanhas militares.
Em 1177 esteve à frente de tropas cruzadas que enfrentaram e venceram o exército de
Saladino na Batalha de Montgisard. Em 1183 enviou um exército cruzado para socorrer
a Fortaleza de Kerak, então sitiada por Saladino. Nesta ocasião, o rei se fez presente
entre as tropas, contudo, já cego e impossibilitado de andar, fora conduzido em uma
liteira.

A criação e existência de um reino cristão em Jerusalém devia-se, de certa forma, a


fragmentação política entre os reinos islâmicos. No reinado de Balduíno IV a situação
se inverteu. Os muçulmanos começaram a se unir politicamente sob a figura de um
único líder, ao passo que entre os cristãos se intensificou uma disputa entre dois grupos
pela hegemonia política. Um dos grupos era encabeçado por Raimundo de Trípoli e
formado por nobres nativos do Oriente, já inseridos na cultura local, que pregava o
convívio sem maiores conflitos contra seus antagonistas islâmicos. O outro era formado,
em boa parte, por cristãos europeus recém estabelecidos em Jerusalém, muitos destes
em busca de aventuras.

Com o agravamento da doença, o rei confiou ao cunhado a regência do reino, no


entanto, a insatisfação dos nobres com o fato de Guy se mostrar ineficaz no comando do
exército fez com Balduíno o destituísse do cargo. No início 1185, ciente de que seu fim
se aproximava, Balduíno escolheu como herdeiro e sucessor seu sobrinho, uma criança
também chamada Balduíno, filho de Sibila com seu primeiro marido; nomeou
Raimundo de Trípoli como regente, função que deveria ocupar pelos dez anos seguintes,
de forma que pudesse colaborar com o governo posterior.

Estabelecida a sucessão, Balduíno IV morreu em março de 1185, aos 24 anos de idade.


Foi enterrado na Igreja do Santo Sepulcro. Não obstante sua condição física, governou
por onze anos. Entre os conflitos internos e a ascensão de um dos maiores líderes da
história do Oriente, conseguiu manter de pé o Estado criado no final do século XI. Seu

73
sobrinho, o rei Balduíno V morreu em 1186, aos oito anos de idade, o que abriu
caminho para que Sibila e Guy de Lousignan fossem coroados. Tais fatos foram
decisivos para que Saladino, enfim, recuperasse Jerusalém para os islâmicos.

Conclusão
Sabemos que a lepra foi uma das doenças mais temidas da Idade Média. Desta forma,
há questionamentos sobre o respaldo obtido por Balduíno IV para assumir o trono e o
apoio recebido durante seu reinado, no qual, mesmo diante de toda estigmatização que o
portador da enfermidade levava consigo, nunca teve sua autoridade questionada. É
possível, de acordo com Mayer [2001, p. 174], que a doença se tornou notória apenas
depois que o rei atingiu a maioridade e os agravamentos decorrentes da lepra se
tornarem perceptíveis. Supõe-se, portanto, que à época da coroação apenas um círculo
mais íntimo tinha conhecimento sobre o quadro de saúde do então príncipe.

Há que se considerar, pois, o aspecto da dualidade conferido aos reis medievais. Após o
rito da unção, que geralmente fazia parte das cerimônias de coroação, o rei era elevado a
uma condição superior às dos demais indivíduos. O humano e o divino se tornava
indissociável. Tal era a percepção da superioridade régia perante a comunidade, que em
determinado período acreditou-se que os reis tinham poderes curandeiros, sobretudo os
monarcas franceses e ingleses [BLOCH, 2006, p. 141].

A incontestabilidade de Balduíno IV pode ser compreendida através da obra de Ernst


Kantorowicz, na qual este autor alemão explica acerca do caráter geminado de um rei,
como se fosse possuidor de dois corpos: um natural, outro político. O corpo natural do
rei, diz Kantorowicz [2012, p. 42], era suscetível a todo tipo de alteração, seja em
virtude de doenças, idade ou outras fraquezas inerentes ao ser humano. O corpo político,
todavia, representava o próprio governo; era intangível e incorruptível. Os atos
praticados com o corpo político de um rei, com efeito, não poderiam ser questionados
ou descumpridos por causa de qualquer tipo de inaptidão do corpo natural.

Referências
Jeferson Dalfior Costalonga é graduado em História pela Faculdade Saberes, Vitória-
ES. Bacharelando em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Espírito Santo.
Atualmente é professor da Rede Pública de Ensino do município de Serra-ES. Contato:
j.costalonga@hotmail.com

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74
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São Paulo: Perspectiva, 1987.
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Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Rosari, 2010.
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YUBAYR, Ibn. A través del Oriente (Rihla). Traduzido em espanhol por Felipe Maíllo
Salgado. Madrid: Alianza Editorial, 2007.

75
O INTERESSE EUROPEU EM FINS DA IDADE MÉDIA EM
RELAÇÃO AO ORIENTE: O CASO DE ODORICO DE
PORDENONE E RUY GONZÁLEZ DE CLAVIJO
Jorge Luiz Voloski e Sofia Alves Cândido da Silva

Introdução
Os deslocamentos são parte do cotidiano da humanidade, uma vez que, como aponta
Jaime Pisnky [2013], a completa disseminação do homem moderno, conhecido como
Homo sapiens sapiens, no planeta, se inicia aproximadamente há 1 milhão de anos
atrás. Isto ocorre a partir da movimentação dos Homo erectus, pois estes saem da África
centro-oriental e viajam em direção a Ásia e Europa. O autor apresenta alguns pontos
que colaboraram para o início dessa “grande aventura humana”, como por exemplo,
“uma organização social que garantia uma estabilidade econômica e um domínio
tecnológico que o deixava seguro de suas possibilidades” [PINSKY, 2013, p. 22]. Em
contra partida, podemos observar uma problemática no momento em que adentramos
nas questões que envolvem as motivações que levaram esses hominídeos a rumarem à
terras tão longínquas.

Em contraste com os estudos dos deslocamentos desses primeiros hominídeos, as


viagens realizadas ao longo do medievo possuem as suas razões mais conhecidas, já que
muitos viajantes deixaram escritos sobre seus deslocamentos. Ao analisarmos essas
fontes, de acordo com Maria Serena Mazzi [2018], podemos olhar uma outra Idade
Média, diferente daquela “estática”, pois existiam as pessoas que atravessavam os
limites naturais e políticos, circulando por diferentes caminhos. Com isso, os objetivos
eram igualmente diversos, por exemplo, comercializar, diplomacia, evangelizar, estudar,
batalhar. Por essa razão, o grupo de itinerantes é variado, sendo composto por monges,
estudantes, professores, reis, nobres, cavaleiros e mercadores [MAZZI, 2018].

Destacamos que o homem medieval não viajava por ócio, com a finalidade do prazer.
Há sempre uma meta concreta, impulsionado por uma ânsia espiritual, por uma
necessidade económica, ou exigências próprias do trabalho [MAZZI, 2018, p. 13-19]. Já
Paulo Lopes discute que as viagens ao longo da Idade Média transcendiam a simples
motivação das preocupações e necessidades profanas, embora isto apareça em todos os
viajantes. Dessa forma, ocorre uma mescla nos objetivos e, por fim, uma subordinação
aos objetivos de ordem espiritual e religiosa, “fazendo com que o caminhante encarasse
os itinerários como uma demanda do sagrado e a possibilidade de assim se ver
perdoados os seus pecados e de salvar a alma” [LOPES, 2006, p. 49]. Isso vai ao
encontro dos dizeres de Jean Chevalier, que defende a existência de um “riquíssimo
simbolismo da viagem”, que seria, em suma, a busca da paz, da verdade e da
imortalidade, no descobrimento de um centro espiritual [CHEVALIER, 1986, p. 1066].

Independente se majoritariamente de ordem profana ou religiosa, fato é que os


deslocamentos ao Oriente, como apontado por Pablo Castro Hernandez [2013], não são
delimitados unicamente às peregrinações ou às cruzadas, em especial no período
posterior ao século XIII. Uma vez que, é nesse momento que se inicia um aumento no
interesse por aquelas terras, tanto no sentido diplomático, como comercial e político
[HERNANDEZ, 2013].

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Entretanto, é importante destacar, assim como coloca J. R. S. Phillips [1994], a
existência de dois Oriente para o europeu medieval: de um lado, o Oriente Próximo,
transformado em destino familiar de muitos viajantes, como os peregrinos,
comerciantes e militares aventureiros, sobretudo antes de acabado o século XI; já por
outro lado há o Extremo Oriente, pouco conhecido, local de mistério e lendas, com um
aumento de interesse a partir do século XIII, devido a expansão mongol [PHILLIPS,
1994].

Nesta direção, a partir da discussão anterior, podemos observar que a viagem medieval
se configura, principalmente, em uma ambiguidade conceitual. Isto ocorre porque, na
medida em que oscila entre o caráter espiritual, há também o movimento de maneira
existencial até uma ordem eterna. Além disso, existe a particularidade temporal, seja
com os objetivos políticos, diplomáticos, econômicos, religiosos, os quais permitem
estabelecer contatos e relações diversas entres diferentes lugares [HERNANDEZ,
2013].

Sendo assim, a partir da ideia de homo viator, defendida por José Ángel García de
Cortazar [1994], percebemos o homem medieval como aquele que segue um caminho,
podendo ser tanto físico, de um lugar a outro, quanto simbólico, na busca da perfeição,
ou até mesmo imaginária [GARCÍA DE CORTÁZAR, 1994]. Juntamente com a análise
das relações ocidentais e orientais, temos a pretensão de observar algumas motivações
que levaram os indivíduos a empreenderem viagens ao Oriente. Para tal observação,
partiremos dos livros produzidos por Odorico de Pordenone, intitulado Relatório, e Ruy
González de Clavijo, denominado Embaixada a Tamerlão.

Para atingirmos nosso objetivo, no primeiro momento analisaremos a relação entre o


Ocidente e o Oriente, visto que tal fator influi diretamente nas motivações e nos
objetivos dos deslocamentos. Posteriormente, utilizaremos como pedra de toque duas
obras, produzidas em períodos diferentes e que tinham como destino localidades
distintas.

A relação entre o Oriente e o Ocidente no século XIV e no início do século XV


Segundo Phillips [1994], a Europa Ocidental no período clássico teve contato com o
Oriente. Para exemplificar, o autor nos demostra o caso dos romanos, os quais vendiam
mercadorias no sudeste asiático e na China. Entretanto, com o fim do Império Romano
do Ocidente, no século V, e o aumento na insegurança nos deslocamentos, as viagens
vão se tornando mais escassas, o comércio, por exemplo, passa por uma mudança, o que
faz com que ele seja realizado, sobretudo, entre locais próximos.

Nesta direção, de acordo com Joaquín M. Córdoba Zoilo, entre os séculos VIII e XI o
contato promovido entre o Ocidente e o Oriente Próximo seria realizado somente por
peregrinos, de diferentes confissões; alguns comerciantes; aos que se seguem os
guerreiros; e os missionários [ZOILO, 2007, p. 79-84].

Contudo, a partir do século XII ocorre uma expansão nas viagens, no sentido de que há
um aumento em sua quantidade e distâncias, resultado do fortalecimento das estruturas
políticas, religiosas e comerciais. Segundo Hernandez [2013], não podemos perder de

77
vista que com o fim das grandes invasões no século X e a existência de uma ordem
política mais estável, o mercado europeu cresce, fato que estimula o contato com o
Oriente Próximo.

O homem medieval passa a sentir uma maior atração pelo Oriente, sem embargo, isso
não quer dizer que no século XII já se conhecia por completo as terras orientais. Ao
contrário, como discutido por Angeles Cardona de Gilbert, o mundo conhecido pelos
europeus no século XIII não era maior do que o conhecido pelos gregos no século I.
Assim, para a autora nem mesmo as cruzadas resultaram em um aumento significativo
do conhecimento geográfico [CARDONA DE GIBERT, 1971, p. 14-15]. Exemplo
disso é o fato de que somente após o século XIII a Europa passa a ter informações
exatas sobre o Extremo Oriente, com o surgimento de noticias dos ataques Tártaros,
entre 1235 e 1259, nas crônicas de Mateus de Paris [GONÇALVES, 2011, p. 79-82].

Os primeiros contatos oficiais entre esses Tártaros - também chamados de Mongóis - e


os europeus foram realizados, em especial, por missionários. Claude Kappler os divide
em duas gerações diferentes: a primeira, composta por João du Plan del Carpini [1245],
Nicolás Ascelín [1246], Simón de santi-Quentin [1247], Guilherme de Rubruc [1253].
Já a segunda, é formada por João de Montecorvino [1289], Odorico de Pordenone
[1314], Jordão de Séverac [1320], Pascal de Victoria [1338] e, Giovanni di Marignoli
[1342] [KAPPLER, 1986, p. 51-52].

Para Marcia Regina Busanello [2012], o movimento missionário pode ser relacionado à
informação de que os mongóis, ao conquistarem territórios, não submetiam os
diferentes povos à sua religião. Por este motivo, acreditava-se que “evangelizá-los”
poderia ser uma alternativa, caso não fosse possível vencê-los. Dessa forma, em um
primeiro momento há a tentativa de converter os líderes mongóis e de estabelecer
alianças políticas e militares, em especial, para combater um inimigo em comum, os
muçulmanos.

Conforme já comentado, havia também as viagens promovidas por mercadores, sendo


possível inferir, de acordo com Jean-Pierre Drége [200], a não objeção dos mongóis
para com os comerciantes, fato exemplificado no deslocamento de Marco Polo. Além
disso, Drége pontua que toda a agitação ocorrida desde meados do século XIII por
mercadores e missionários, que havia aproximado a Europa e a Ásia nas rotas das
caravanas, começa a cessar um século mais tarde por diversos motivos, entre eles o
autor destaca a peste, que assolou a Europa em 1348 e o enfraquecimento do poder
mongol na Pérsia, bem como em toda a China [DRÉGE, 2000].

Sobre a desagregação do Império Mongol observa-se principalmente dois fatores: a


divisão do território imperial entre os herdeiros de Gengis Khan e a morte de seu neto,
Kublai Khan. Os resultados imediatos conectam-se com a reorganização e com a volta
dos povos turcos no domínio de diversas regiões, antes ocupadas pelos mongóis. Já na
Cristandade, as consequências circundam, em especial, na volta das ameaças em suas
fronteiras orientais, como ocorre, por exemplo, na derrota do rei Sigismundo da Hungria
em 1396, liderada por Bajazeto I, imperador dos otomanos [JACKSON, 2005, p. 237].

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Em paralelo aos acontecimentos relacionados aos turcos, ocorre a ascensão de Tamerlão
à liderança mongol e, com isso, este líder realiza diversas conquistas territoriais e une os
povos mongóis entorno de sua autoridade. A partir das informações recebidas do
Oriente, a respeito desses dois Imperadores, a cristandade observa em Tamerlão uma
possibilidade de aliança contra os Turcos. Dessa forma, novamente há a tentativa de
estabelecer certa relação com os mongóis.

Desse modo, de acordo com o que foi exposto anteriormente, a relação entre o Ocidente
e o Oriente no século XIV e no começo do século XV relaciona-se em maior
intensidade com as viagens de cunho missionário, político, diplomático e comercial.
Destacamos que os embates militares entre ocidentais e orientais, bem como as
peregrinações não deixaram de existir. Contudo, nas décadas finais da Idade Média,
percebemos uma maior movimentação ocasionada pelos motivos citados anteriormente.

A partir desse panorama geral podemos iniciar a análise de duas fontes, Relatório e
Embaixada a Tamerlão, no intuito de compreendermos as razões que permeavam o
interesse europeu “pelo” Oriente.

As viagens de Odorico de Pordenone e Ruy González de Clavijo


O primeiro personagem que pretendemos observar as motivações de viajar em direção
ao Oriente é Odorico de Pordenone, sobre o qual existem basicamente apenas duas
fontes diretas, as quais referenciam acerca de sua vida. A primeira, que terá o nosso
enfoque, de nome Relatório, foi escrita por Frei Guilherme de Solagna e ditada pelo
franciscano em 1330; a segunda é a obra Vita fratis Odorico de Utino, escrita por
Bernardo de Bessa, após a morte do viajante.

Devido a escassez de fontes, são poucos os elementos conhecidos sobre a vida de


Odorico, entretanto, Susani Silveira Lemos França as resume, ao colocar que foi um
missionário franciscano que rumou à Ásia, onde permaneceu até 1330. Em terras
orientais, viveu a maior parte do período na capital do Império Tártaro, localizado em
Khanbaliq, atual Pequim [FRANÇA, 2015, p. 206].

Sobre a viagem de Odorico a Ásia, Eugenia Popeanga defende que o franciscano teve a
permanência de 12 anos, sendo que o ano de sua partida de Pádua foi 1318. Os
objetivos da viagem, para a autora, poderiam ser tanto missionários, quanto com o
propósito de inspeção e reconhecimento das missões que os frades menores possuíam
no Catai [POPEANGA, 1992, p. 49].

Já segundo Vladimir Acosta, por não conhecermos as razões nem os motivos que
levaram o franciscano ao Oriente, podemos supor, devido o constante fluxo de frades ao
Oriente, que o franciscano possuía a pretensão de contribuir na atividade missionária
que estava sendo desenvolvida desde século anterior por João de Montecornivo
[ACOSTA, 1992].

O objetivo de evangelizar não é de concordância unânime entre os pesquisadores, visto


que, no começo de sua obra Odorico justifica sua viagem da seguinte maneira:

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“Embora se narrem muitas e variadas coisas sobre os costumes e as condições deste
mundo, deve-se contudo saber que eu, Frei Odorico de Friuli, querendo fazer uma
viagem e ir até as regiões dos infiéis para lucrar alguns frutos de almas, ouvi e vi muitas
coisas grandes e maravilhosas que verdadeiramente posso narrar” [ODORICO, 2005, p.
283].

O anseio de “Lucrar alguns frutos de almas” foi o que fez o frade viajar até a região dos
infiéis. Entretanto, há outra peculiaridade na obra de Odorico, que se relaciona com a
transferência dos ossos de alguns frades que foram tornados mártires para outra região:

“Então, sabendo de seu glorioso martírio, eu, Frei Odorico, fui para lá e recebi os seus
corpos que já haviam sido sepultados, porque Deus opera muitos e grandes milagres por
meio de seus santos, e quis operá-los sobretudo por estes” [ODORICO, 2005, p. 297].

O franciscano, em seguida, narra alguns milagres ocorridos com ele, por meio dos
ossos. O caráter religioso da viagem é reforçado em outros momentos, como por
exemplo, na facilidade da expulsão de demônios por parte dos frades menores na grande
Tartária e a descrição da reverência que o Grão Cã faz ao sinal da cruz [ODORICO,
2005, p. 333-336].

Com um caráter menos religioso, há a viagem realizada por Ruy González de Clavijo,
na qual podemos observar, a partir do contexto e das páginas iniciais da obra do autor,
denominada Embaixada a Tamerlão, que o empreendimento tem como disparador o
interesse de Enrique III [1390-1406], rei de Castela e Leão, em estabelecer uma
conexão diplomática com Tamerlão [1386-1405], imperador mongol. No intuito de
atingir este objetivo, o soberano castelhano envia duas embaixadas em direção ao líder
mongol.

De acordo com Ruy González de Clavijo [2003], a primeira embaixada era composta
por Payo Gomez de Sotomayor e Hernan Sanches de Palazuelos, e deveria obter
informações a respeito dos acontecimentos no Oriente. Com isso, os dois cavaleiros
presenciam a Batalha de Ankara em 1402, entre Bajazeto e Tamerlão, da qual o líder
mongol sai vitorioso. Após a vitória, os enviados castelhanos se aproximam e
estabelecem um diálogo com Tamerlão, no qual o convidam para regressar à Castela
com eles. Contudo, segundo Martin Stančík [2017], Tamerlão recusa a oferta, pois
deveria retornar aos seus domínios para descansar e reorganizar as suas tropas.

Seguindo os costumes medievais, Tamerlão [1386-1405] ordena que sejam enviados


presentes, uma carta e um embaixador, denominado Mohamad Alcagi, para regressarem
com os cavaleiros a Castela. No momento em que esses três homens chegam aos
domínios de Enrique III, informam ao soberano a respeito da batalha que haviam
presenciado e sobre a maneira que o líder mongol os tratou.

Com isso, Enrique III [1390-1406] organiza uma segunda embaixada, formada por Ruy
González de Clavijo, Frade Alonso Páez de Santa María e Goméz de Salazar, no intuito
de contatar Tamerlão [1336-1405], para que eles pudessem organizar uma aliança
diplomática, contra os Turcos, pois conforme comentado anteriormente, este grupo
ameaçava constantemente as parcelas territoriais cristãs à Oriente.

80
A partir dessa segunda viagem, iniciada em 1403 e finalizada em 1406, foi produzido o
livro Embaixada a Tamerlão [1406], de autoria de Ruy González de Clavijo. Tal obra
descreve o percurso da segunda embaixada organizada por Enrique III e possui a
intenção de informar o soberano castelhano a respeito dos acontecimentos à Oriente,
além de registrar o percurso e os percalços pelos quais os representantes castelhanos
passaram.

Dessa forma, a partir da obra, podemos observar que o interesse de Enrique III em
estabelecer uma via de contato com Tamerlão [1386-1405] está no campo da diplomacia
e da política. Tal fato se deve, a já mencionada, ameaça turca ao Ocidente. Uma vez
que, durante o período de expansão turca, conforme explorado por Peter Jackson
[2005], este povo mulçumano, enfrentou e venceu diversos exércitos que representavam
a cristandade. Sendo assim, diversos territórios e cidades, que antes eram cristãos, foram
dominados pelos turcos.

O medo do Ocidente em relação aos turcos existe porque caso eles conseguissem vencer
os reinos cristãos orientais, eles poderiam invadir os reinos cristãos ocidentais. Uma vez
que, os reinos orientais eram uma espécie de “barreira” entre o Oriente e o Ocidente.
Portanto, Enrique III observava em Tamerlão uma possibilidade de um aliado forte, pois
ele já havia vencido o exército turco em Ankara, em 1402.

Contudo, após a morte de Tamerlão em 1405 e a consequente desestruturação de seu


Império, Maomé II, líder turco-otomano, conseguiu conquistar Constantinopla em 1453,
data que, para alguns historiadores, marca o fim do medievo europeu.

“O Império do Oriente, a princípio auxiliado, posteriormente conquistado e por fim


abandonado, deixou por completo de ser um estado cristão. Os lugares santos
protegidos pelos cristãos ocidentais durante algum tempo, passaram irrevogavelmente
para a órbita do Islão” [MATTHEW, 1996, p. 19].

Sendo assim, ao analisarmos as duas fontes medievais, de Odorico de Pordenone e Ruy


González de Clavijo, percebemos que na Idade Média ocorrem, simultaneamente,
viagens ao Oriente que são motivadas por diferentes interesses e finalidades.
Destacamos que mesmo com a oscilação na frequência dos deslocamentos, o homem
medieval não parou de movimentar-se e as terras orientais permaneceram no medievo
como um destino cobiçado e interessante, tanto aos que viajavam, quanto para os que
liam os relatos desses viajantes.

Referências
Jorge Luiz Voloski é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História na
Universidade Estadual de Maringá [UEM] e membro do Laboratório de Estudos
Medievais [LEM]
Sofia Alves Cândido da Silva é graduanda do quarto ano do curso de História na
Universidade Estadual de Maringá [UEM] e membro do Laboratório de Estudos
Medievais [LEM].

81
ACOSTA, V. Viajeros y maravillas. Tomo III. Caracas: Monte Avila LatinoAmericana,
1992.
BUSANELLO, M. R. O Maravilhoso no Relato de Marco Polo. Dissertação [Mestrado
em Letras] – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
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CARDONA DE GIBERT, A. Historiadores de Indias: antillas y tierra firme.Barcelona:
Editorial Bruguera, 1971
CHEVALIER, J. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986.
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82
A INFLUÊNCIA DE AVICENA NA FILOSOFIA OCIDENTAL
Junior Benedito Pleis e Talita Seniuk
Este trabalho busca demonstrar de modo sintético, em especial no campo da Filosofia, a
influência de um polímata persa na civilização ocidental medieval, que teve seu
pensamento e suas obras adaptadas conforme as necessidades e limites religiosos
impostos num cenário de domínio da Igreja Católica. Estrutura-se em cinco breves
tópicos, Contexto europeu no Medievo, Filosofia, Metafísica Medieval, Biografia de
Avicena e Influências no Ocidente respectivamente. Como referências bibliográficas
utilizam-se as obras de Chauí (2000), Marcondes (2007) e Kant (1980) que se
consolidam como essenciais no campo filosófico; Fontes (2019) e Leme (2019) que
articulam os temas aqui relacionados entre Ocidente e Oriente e Silva e Silva (2009) que
transitam com maestria entre conceitos históricos necessários ao entendimento do
contexto. Vale ressaltar que a extensão e o alcance da presença das obras e do
pensamento de Avicena não se encerram nessa discussão proposta, extrapolando os
limites aqui impostos devido a impossibilidade de mensurar com precisão sua influência
e a carência de fontes do período por se tratar de um árabe em domínio cristão.

Contexto europeu no Medievo


Antes mesmo dos europeus expandirem seus domínios para além de suas fronteiras e se
preocuparem com os povos do Oriente, a partir do século X e XI já se ocupavam com os
mouros na Península Ibérica, que resultou em conflitos denominados de Reconquista,
num local que era povoado por cristãos, cristãos convertidos ao islamismo e judeus
(MARCONDES, 2007). Nesse período já é possível estabelecer as trocas culturais entre
os dois extremos do planeta e a influência de um sobre o outro.

Durante o século XII houve grandes transformações no cenário europeu, como o


nascimento da escolástica, principalmente na liderança de Carlos Magno que ensejava
uma sociedade mais letrada, que agora podia frequentar os mosteiros para receber
instrução, local este antes restrito apenas aos monges. Vale lembrar que o conhecimento
mediado e discutido nesses ambientes era vigiado e censurado pela Igreja, além de por
vezes ser adaptado para atender aos anseios cristãos. Os assuntos compreendiam as
belas artes oriundas da Antiguidade (Trivium composto por Gramática, Retórica e
Dialética e Quadrivium composto por Aritmética, Geometria, Astronomia e Música) e
claro, a religião, moldados aos limites e imposições desta, baseando-se num saber
teológico.

Já entre os séculos XIII e XIV, a Europa viveu algumas convulsões. A abertura


comercial consequente dos movimentos das Cruzadas, guerras, expansão cultural,
aumento da população no campo até a pandemia de peste bubônica e crescimento das
cidades são alguns exemplos (LEME, 2019). Antes dos europeus sinalizarem os
ameríndios do Novo Mundo como “os outros”, ou seja, os estranhos em relação aos
seus referenciais são os povos orientais que ocupavam esse lugar. Esse estranhamento
vai perdendo um pouco do seu espaço gradativamente, ao se reconhecer os
ensinamentos dessas culturas, como por exemplo, ocorre no século XIII com a
introdução da Filosofia Oriental no Ocidente, com seu pensamento aristotélico e
neoplatônico, deixado de lado pelos europeus até então; entretanto, o Oriente continuará
durante muitos séculos a ter o estereótipo de lugar de hereges (SILVA; SILVA, 2009).

83
Vale ressaltar que durante muitos anos a relação entre o mundo islâmico e o cristão
ocorreu de modo pacífico, principalmente na Espanha Islâmica que possuía suas regras
para todos os povos de diferentes crenças que habitavam seu espaço desde que não
atacassem ao Islã, num cenário de tolerância que nem de longe se aproximou das
perseguições e caça as bruxas que os cristãos europeus desempenharam, principalmente
no momento de maior choque dessas culturas, nas Cruzadas (SILVA; SILVA, 2009)
que consolidou uma visão de povos fieis que combatiam os infiéis.

Filosofia
A Grécia é o berço da Filosofia Ocidental ao inaugurar pela primeira vez essa área de
conhecimento de forma sistematizada, sendo o limite geográfico entre Ocidente e
Oriente, e denominada de Antiga quando se refere ao período anterior à dominação
romana e posteriormente cristã. Seus períodos filosóficos compreendem dos pensadores
originários que se ocupavam com a natureza; os sofistas que se centravam no homem; o
clássico que sistematizou o conhecimento e se interessou pelo espírito; o helenístico que
focou no indivíduo e Antiguidade tardia com seu platonismo e início do Cristianismo.

Filosofia (philos sophia) significa “amor a sabedoria” e o primeiro uso dessa palavra
remonta a Pitágoras no século VI a. C.. Platão e Aristóteles diziam que a primeira
virtude do filósofo era admirar-se, ser capaz de indagar e se surpreender até mesmo com
o óbvio, ou seja, problematizar absolutamente tudo. Kant (1980), em seu livro Crítica
da razão pura já afirmava que não era possível aprender qualquer Filosofia, só seria
possível aprender a filosofar. Nesse sentido, a Filosofia mostra-se como uma constante
experiência do pensar que surgiu da necessidade de confrontar a realidade,
principalmente as crenças.

Metafísica Medieval
O nascimento da Metafísica remonta muito antes da Idade Média, geralmente sua
descoberta é atribuída a Parmênides, num de seus poemas em que registra a distinção
entre o que é (o ser) e o que não é (o não ser, ou o nada). Trata-se da ciência teórica que
estuda o puro ser; suas indagações giram em torno de conceitos como ser e parecer,
realidade e aparência num conhecimento racional apriorístico (baseado nas puras
concepções formuladas pelo pensamento ou intelecto e não em experiências sensoriais
vivenciadas) e sistemático (CHAUÍ, 2000).

“Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são, assim, os


temas principais da metafísica, que investiga os fundamentos, as causas e o ser íntimo
de todas as coisas, indagando por que existem e por que são o que são” (CHAUÍ, 2000,
p. 263).

A Filosofia Medieval referenciava-se numa mentalidade teocêntrica, com preocupações


religiosas muito fortes (SILVA; SILVA, 2009) que levaram a adaptações e contornos de
ideias que não atendiam exatamente aos limites impostos a priori. Nem todos os
conceitos apresentados a essa sociedade eram mediados e ganhavam uma nova
roupagem mais modelada ao Cristianismo, alguns eram refutados e deixados de lado,
sendo seus criadores acusados de heresia.

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A Metafísica mostra-se então como [...] aquilo que é condição e fundamento de tudo o
que existe e de tudo o que puder ser conhecido (CHAUÍ, 2000). E nesse sentido, a
concepção apresentada por Avicena é parecida com a de Aristóteles, pois para ambos o
indivíduo é o objeto primeiro do intelecto e o conhecimento do real é o segundo, afinal,
sem indivíduo não há o conhecimento do secundário. O palco é dividido entre dois
expoentes nesse momento, o intelecto e o sobrenatural.

Biografia de Avicena
Abu Ali Huceine ibne Abdala ibne Sina ou Ibn Sina ou ainda, Avicena, seu nome
latinizado, viveu entre os anos de 980 a 1037. Nasceu na Pérsia, em Afsana e morreu
em Hamadan; sua atuação e suas obras são tantas quanto o tamanho da grafia de seu
nome original. A variedade de temas com os quais tinha interesse e tratava era enorme,
entre eles Filosofia, Medicina, Teologia Islâmica, Lógica, Matemática, Astronomia,
Física, Psicologia, Alquimia, Geografia e até Poesia. Há relatos que apesar de transitar
com maestria em todas essas temáticas, mostrava-se arrogante algumas vezes,
desmerecendo aos outros.

Apesar de ter vivido pouco, morreu com cinquenta e oito anos, sua vida foi bastante
agitada. Ocupava cargos públicos, o que lhe consumia bastantes horas durante os dias,
além disso, aventuras e romances também fizeram parte do repertório vivenciado; fatos
que podem ter contribuído com sua vida breve.

Suas capacidades intelectuais cresceram exponencialmente, aos dezesseis anos já


exercia a Medicina. Escreveu aproximadamente duzentos e quarenta tratados, entre os
quais cento e cinquenta versam a respeito da Filosofia e quarenta em relação à
Medicina; alguns sobre jurisprudência e exegese do Corão.

Graças ao trabalho dele é que a partir do século XII o Ocidente terá acesso aos saberes
de Aristóteles, o criador do pensamento lógico e que dividiu a Filosofia em três:
teorética (a Metafísica se encaixava aqui), prática e poética. Avicena leu
aproximadamente quarenta vezes as obras desse autor grego, chegando, a saber, de cor
cada trecho, pois sentia demasiada dificuldade em compreendê-la; só conseguindo isso
ao conhecer a obra de Alfarabi que versava sobre a Metafísica que lhe rendeu um êxtase
tremendo que saiu distribuindo esmolas aos pedintes como forma de agradecer a Deus
pelo entendimento.

Influências no Ocidente
Avicena é conhecido como o sistematizador da Filosofia Muçulmana Oriental. Passa a
ser reconhecido no Ocidente a partir do século XII quando tem suas obras traduzidas
para o latim, influenciando os pensadores medievais europeus, que passaram a aprender
a língua árabe também (LEME, 2019). A única edição recente dele para essa língua
remonta o ano de 1508 com a obra Opera philosophica.

Durante o Medievo, até terem acesso às traduções de Avicena, os filósofos


referenciavam-se nas ideias de Platão, oriundas apenas de Plotino que fez uma definição
de Deus aceita pelo Cristianismo (século VI d. C.) e Aristóteles vai ser introduzido pelo
persa depois disso (CHAUÍ, 2000). Entretanto, o pensamento aristotélico é visto como
problemático e herético ao confrontar com as verdades absolutas dogmáticas da Igreja,

85
sem contar que só é conhecido no Ocidente através dos árabes, o que torna duplamente
condenável seu conhecimento (MARCONDES, 2007). O Cristianismo, principalmente
através de Tomás de Aquino reorganiza a metafísica grega adaptando-a as necessidades
da religião cristã (CHAUÍ, 2000) e funda o aristotelismo cristão. Esse feito pode ser
equiparado, segundo Marcondes (2007) ao platonismo cristão dos primeiros séculos.

Frente a inegável contribuição de Avicena no que tange o Medievo conhecer


Aristóteles, o interesse nele extrapola os campos da Metafísica e abrange questões
filosóficas, os tratados de Lógica, Física, Biologia e Astronomia. Além disso, Tomás de
Aquino, Roger Bacon, Boaventura e Duns Escoto também são alguns exemplos de
pensadores que foram influenciados por Avicena. Logicamente que esse conhecimento
sob os olhos árabes sofreu interpretações submissas ao Cristianismo, mas pôde
aproximar mais, por exemplo, um Aristóteles não cristão, com seu realismo físico e
científico do que necessariamente religioso (FONTES, 2019).

Entre suas obras primas O livro de cura é uma enciclopédia composta por dezoito
volumes que tratam de diversos assuntos. Compêndio de Metafísica, título recebido no
Ocidente, pois o original chamava-se A salvação também merece destaque. Seus
escritos no campo da Medicina serviram de referência durante muito tempo na Europa
Medieval.

O saber proveniente do Oriente, nesse caso da Grécia - ou antiga Pérsia - não só na


figura de Avicena como de outros inaugura o Ocidente como herdeiro de uma filosofia
que superava e muito qualquer outra oriunda do Medievo, influenciando o pensamento
no Velho Mundo entre os séculos XII ao XIV e até pode-se dizer que foram os
responsáveis pelo salto intelectual que ocorreu principalmente na Universidade de Paris
(FONTES, 2009).

Ao se introduzir literatura de autores estrangeiros, gradativamente as ciências foram


libertadas dos grilhões da teologia (FONTES, 2009) consequência esta que acarretou
num aumento das especulações e experimentações, tão necessárias na construção do
conhecimento científico. Mas faz-se necessário comentar que a ignorância em relação
aos seus costumes e a própria história desses outros povos não europeus (SILVA;
SILVA, 2009) contribuiu para que não houvesse um maior interesse sobre seus saberes,
que iam muito além.

Depois desse período de trocas culturais e comerciais, de relatividade pacífica e


tolerante, com a tomada de Constantinopla em 1453 pode-se dizer que o Islamismo foi
resguardado focando apenas na religiosidade e deixando de lado as reflexões filosóficas
e culturais, abolindo a continuidade dos estudos sobre a razão (LEME, 2019) que
resultou no avanço dessas áreas no Ocidente, inclusive motivada com a criação da
imprensa que contribuiu na difusão do conhecimento.

Apesar do foco da discussão ser no campo da Filosofia, durante o Renascimento no que


tangem as artes diversos elementos do período clássico e helenístico são retomados
também, como a questão das proporções e regularidades matemáticas nas imagens e
esculturas, a descoberta do corpo como um lugar a ser descoberto, a busca pelas formas
anatômicas como ideais, exploração de cadáveres. Vale ressaltar que esses referenciais

86
gregos fundaram a civilização Ocidental, mas no panorama medieval precisam ser
vistos como elementos novos e estranhos, uma vez que houve uma ruptura com essa
vertente quando o Cristianismo, através da Igreja selecionou o que podia ou não fazer
parte do repertório Europeu e vão ser retomados, mas como novidade devida a essa
influência oriental.

Considerações
Avicena não foi o único “estrangeiro” que teve suas obras adaptadas na civilização
ocidental, antes dele praticamente apresentar Aristóteles aos europeus, Platão, já tinha
sido introduzido por Plotino que adaptou a literatura conforme os limites cristãos.
Houve um diálogo entre Filosofia Oriental e Ocidental durante o Medievo que se não
ocorreu de maneira tão satisfatória e grandiosa quanto poderia ter sido, devido ao
cerceamento por parte da Igreja, também não pode ser renegado, pois apesar de
teológico produziu consequências filosóficas. Embora as influências sejam postas como
nuances, que não podem ser mensuradas exatamente, faz-se necessário reconhecer que o
Ocidente em diferentes áreas do saber possui ascendência Oriental, tendo Avicena como
um de seus responsáveis.

Referências
Junior Benedito Pleis é Licenciado em Matemática pelo Centro Universitário de
Maringá/UniCesumar; Licenciado em Física pela Universidade Metropolitana de Santos
– UNIMES e Especialista em Metodologia do Ensino em Matemática pela Faculdade
Eficaz. Atualmente é pós-graduando em Metodologia do Ensino de Física pela
Faculdade Eficaz e Professor de Matemática e Física da Secretaria de Estado de
Educação de Mato Grosso/SEDUC MT.

Talita Seniuk é Licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta


Grossa/UEPG; Especialista em Metodologia do Ensino de História pelo Centro
Universitário de Maringá/UniCesumar; Licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade Metodista de São Paulo/UMESP; Especialista em Ensino de Sociologia
pela Universidade Cândido Mendes/UCAM. Atualmente é acadêmica de Licenciatura
em Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos/UNIMES e Professora de
História, Sociologia e Filosofia da Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso/SEDUC MT.

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Curitiba: InterSaberes, 2019. [Livro eletrônico]
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980. [Livro]
LEME, Elaine Cristina Senko. História e historiografia medieval oriental. Curitiba,
InterSaberes, 2019. [Livro eletrônico]
MARCONDES, Danilo. Iniciação a História da Filosofia. Rio de Janeiro: ZAHAR,
2007. [Livro]
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos
históricos. São Paulo: Contexto, 2009. [Livro]

87
FOUCAULT E O IRÃ: O DESENHO DE UM JORNALISTA
Leandro Mendanha e Silva
Foucault, a partir de agosto de 1978, pretendeu pensar o seu presente se arriscando
como jornalista. Em 1977 o jornal italiano Correire della sera perguntou se ele não
aceitaria escrever crônicas culturais ou filosóficas para o periódico, proposta que
Foucault aceitou modificando os termos: não redação de crônicas, mas um programa de
reportagens de ideias. A contraproposta foi aceita pelo jornal e Foucault foi levado pelos
acontecimentos a principiar o projeto estudando os eventos que se desenrolavam no Irã.
Segundo ele, embarcou nesse tipo de trabalho para entender melhor como funcionava o
mundo contemporâneo, este presente que fervilhava “de ideias que nascem, se agitam,
desaparecem ou reaparecem, abalando as pessoas e as coisas" [Foucault, 2012, p. 125].
E o jornalista – função que assumiu Foucault – era aquele que se punha a escuta dessas
ideias e era aquele que falava sobre elas. A esse respeito, disse:

“Há mais ideias sobre a terra do que com frequência imaginam os intelectuais. E essas
ideias são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonadas do que o que
deles podem pensar os políticos. É preciso assistir ao nascimento das ideias e à explosão
de sua força: e isso não nos livros que as enunciam, mas nos acontecimentos nos quais
elas manifestam sua força, nas lutas que travam pelas ideias, contra ou a favor delas.
Não são ideias que levam o mundo. Mas é justamente pelo fato de o mundo ter ideias (e
por produzi-las continuamente) que ele não é conduzido passivamente segundo aqueles
que o dirigem ou que gostariam de ensiná-lo a pensar de uma vez por todas” [Foucault,
2012, p. 125].

Têm-se aqui a possibilidade do seguinte desenho: Foucault como jornalista. Em uma


entrevista concedida a E. Lossowsky para o L' imprévu em 28 de janeiro de 1975,
Foucault explicou sua leitura de jornais: "[...] creio que minha leitura é muito banal.
Minha leitura começa pelo corriqueiro, pelo mais cotidiano. Olho a crise prestes a
eclodir e depois, pouco a pouco, giro em torno dos grandes núcleos, das páginas
principais um pouco eternizadas, um pouco teóricas sem dia nem data [...]" [Foucault,
2005, p. 296]. Em 1973 Foucault já se reconhecia como jornalista e reivindicava a
linhagem de Nietzsche: "Eu me considero um jornalista, uma vez que meu interesse é a
atualidade, o que acontece à nossa volta, o que somos e o que se passa no mundo"
[Foucault, 2011, p. 308]. De leitor Foucault passava a escritor dessas matérias
jornalísticas que pretendiam manejar ideias com dia e hora.

Foucault foi até Teerã como jornalista logo após o massacre da praça de Jaleh. No dia 8
de setembro o exército iraniano atirou em uma multidão que protestava contra certos
aspectos do regime do Xá. O saldo foi de quatro mil mortos e o evento ficou conhecido
como "Sexta-feira negra". Lá, dos dias 16 a 23 de setembro, ele visitou alguns dos
lugares de conflito e encontrou representantes das diversas tendências políticas,
religiosos, estudantes, pessoas comuns, a quem perguntou: o que querem os iranianos?
Ao voltar da sua estadia, ele se colocou na função de jornalística e redigiu seis artigos,
nos quais relatou o que observou e compreendeu da sua experiência iraniana e daquelas
que ainda se desenrolavam por lá. No terceiro artigo desta empreitada, disse: "Durante
toda minha estada no Irã, não ouvi uma única vez pronunciarem a palavra 'revolução'.
Mas, umas quatro ou cinco vezes, responderam-me: “'o governo islâmico'" [Foucault,

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2010, p. 232]. No dia 9 de novembro, voltou ao Irã para conversar novamente com
aqueles interlocutores e se preocupou em entender como se constituíam as referências
políticas e as práticas dos insurrectos, as quais percebeu andarem longe das paragens
marxistas. Desta segunda estadia, que foi até o dia 15 de novembro, resultaram mais três
artigos. Neste conjunto de artigos, Foucault ainda tratava dos homens obscuros e
anônimos que o haviam interpelado desde a História da Loucura, mas neles as suas
experiências eram vistas pela ótica da insurreição e não pela da transgressão, como
havia sido naquela obra. Em um texto que serviu como retomada dos oito artigos
iranianos e que data de 11-12 de maio de 1979, ele, agora reivindicando a função do
intelectual, declarou:

“As insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento
com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: "Não obedeço
mais", e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida – esse
movimento me parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo
absolutamente impossível [...]. E porque o homem que se rebela é em definitivo sem
explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas
cadeias de razões, para que um homem possa, "realmente", preferir o risco da morte à
certeza de ter de obedecer. Todas as formas de liberdade adquiridas ou reivindicadas,
todos os direitos que se fazem valer, mesmo quando se trata das coisas aparentemente
menos importantes, têm ali sem dúvida um ponto de sustentação, mais sólido e mais
próximo que os "direitos naturais". Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os
poderes não são "absolutamente absolutos", é porque, por trás de todas as aceitações e
coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse
momento em que nada mais se permuta na vida, em que os poderes nada mais podem e
no qual, na presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens insurgem” [Foucault,
2004, p. 77].

O artigo foi uma reportagem publicada no Le Monde, em que Foucault respondeu às


pessoas que viram nas suas reportagens a respeito do que se condensou após os
acontecimentos sob o nome de Revolução Iraniana como sendo uma defesa do
acontecido. Essas reportagens tiveram em vista os eventos que se sucederam após a
chegada do aiatolá Khomeini ao poder – os grupos paramilitares executaram os
oponentes do novo regime, que promoveu prisões e novas execuções. Todavia, se
formos mais precisos na contextualização destas críticas, veremos que algumas delas
ocorreram no momento mesmo das publicações daqueles artigos, como consta das
repercussões de um deles – "Com que sonham os iranianos?". Nele o jornalista Foucault
falava de uma espiritualidade política iraniana, uma expressão que foi bastante criticada
por pessoas que viam com receio a insurreição, mesmo porque temiam o possível
fanatismo de um eventual governo islâmico. Com essa expressão – governo islâmico –
Foucault se referia ao problema do Islã como força política. De fato, quanto ao
fanatismo, o governo de Khomeini manteve o Estado autoritário, instaurou clérigos no
poder, utilizou-se de métodos da polícia secreta do Xá, impôs restrições às mulheres.
Após os atos sangrentos de repressão do novo governo islâmico, os ataques a Foucault
foram, às vezes, virulentos. Em suma, supunha-se que ele deveria ter previsto de
antemão as consequências da Revolução, como se ela já estive inscrita na ordem das
coisas.

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Não nos interessa neste artigo saber o quanto o envolvimento de Foucault com esses
acontecimentos ou o quanto seu desconhecimento da história persa ou islâmica podiam
fazê-lo perder a perspectiva da análise do evento, nem as justezas daquelas. O que nos
interessa é entendê-los como artigos escritos lá onde a terra tremia e esperamos retirar
deles exatamente estes abalos surdos que movem um pensamento para os seus limites.

Neste sentido, a junção dessas duas palavras – espiritualidade política – nos interessa, já
que é lá – neste movimento da insurreição iraniana – que o jornalista de ideias formulou
a imagem de uma "[...] vontade política [que] é de não dar ocasião à política" [Foucault,
2010, p. 243]. Ele falou de um estado de greve da população iraniana em relação à
política nos seguintes sentidos: recusa do prolongamento do sistema estabelecido, de
seu funcionamento; desejo de introduzir na vida política uma dimensão espiritual; e
recusa, igualmente, de dar aos outros que não fossem os próprios insurrectos ocasião de
estabelecer previamente o que seria a constituição, as escolhas sociais, a política
externa, pois só um governo islâmico o faria. Tratava-se de um problema que Foucault
pensava nestes anos: a questão da governamentalidade e, do ponto de vista dos por ela
governados, a atitude de não aceitar um tipo específico de governo, de não aceitar, ali
ou acolá, um tipo de dominação.

Portanto, a ideia de espiritualidade política passou pela tentativa de, a partir do


problema político que é a verdade – em outros temos, da divisão do verdadeiro e do
falso –, pensar sua ligação com o governo de si (transformação de si, elaboração de si) e
dos outros. Foucault se endereçou à vontade que percebeu, nas insurreições e revoltas
do seu tempo, de fundar essa ligação em algo novo: "descobrir uma divisão
completamente diferente através de uma outra maneira de se governar, e se governar de
modo inteiramente diferente a partir de uma outra divisão" [Foucault, 2003, p. 346]. No
registro das reportagens iranianas, Foucault achou que a vontade pensada como
estratégia para conceber um outro governo esclarecia melhor os antagonismos de um
enfrentamento e foi neste sentido que esta vontade política suscitou nele uma
interrogação:

“[...] a questão é a de saber que forma tomará essa vontade nua e maciça que, há muito
tempo, disse não a seu soberano, que acabou por desarmá-lo. A questão é a de saber
quando e como a vontade de todos vai ceder lugar à política, a questão é a de saber se
ele o quer e se deve fazê-lo. É o problema prático de todas as revoluções, é o problema
teórico de todas as filosofias políticas” [Foucault, 2010, p. 244].

Estes artigos também revelam algo que Eribon viu bem ao alertar para o fato de que a
repercussão destas matérias não foram aquelas reservadas a um “mero” jornalista
[Eribon, 1990, p. 269]. Os artigos já estavam informados pelo nome e pela função do
autor e na recepção de sua voz de jornalista ressoava a voz do intelectual público, e não
só de uma maneira incidental, mas de forma que tomasse o primado do jornalista – e
isso independente das preferências de Foucault por atingir uma voz outra. Não se
engana também quem faz o caminho inverso e fica atento a forma como a voz do
jornalista reflui sobre a voz do intelectual.

“O que me parece interessante no jornalismo e no papel do jornalista, no que concerne à


política, não é desempenhar um papel político na política, não é fazer como se os

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jornalistas fossem homens políticos. O problema é, ao contrário, decodificar a política
com o filtro de outra coisa: da história, da moral, da sociologia, da economia ou mesmo
da estética. Parece-me que o papel de um jornal é o de aplicar esses filtros não políticos
no domínio da política” [Foucault, 2012, p. 161].

Pelo menos foi essa a atribuição que o pensador considerou ser a do jornalista. De fato,
essa definição do pensador é próxima das três regras básicas que o jornalismo se arroga
seguir: “fiscalizar o poder, buscar a verdade e fomentar o espírito crítico” [KUSHNIR,
2001, p. 226]. Assim, ele se preocupou em procurar outras grades de leitura para a
decodificação da sua atualidade, uma vez que acreditava que o trabalho do jornalista
consistia em preocupar-se com o que se passava. Durante seu percurso, Foucault em
vários momentos conferiu certas imagens ao trabalho do intelectual e não foi diferente
quando experimentou esse devir jornalista, que o reposicionou quanto ao que fazia:

“Se me perguntassem como concebo o que faço, responderia, se o estrategista for o


homem que diz: "Que importa tal morte, tal grito, tal insurreição em relação à grande
necessidade do conjunto, e que me importa, em contrapartida, tal princípio geral na
situação particular em que estamos", pois bem, para mim, é indiferente que o
estrategista seja um político, um historiador, um revolucionário, um partidário do xá ou
do aiatolá; minha moral teórica é inversa. Ela é "antiestratégica": ser respeitoso quando
uma singularidade se insurge, intransigente quando o poder infringe o universal [que
nunca deve ser entendido para Foucault como fundamento, mas aquilo que faz parte da
nossa positividade, do que aceitamos e do que não na nossa atualidade]. Escolha
simples, obra penosa: pois é preciso ao mesmo tempo espreitar, por baixo da história, o
que a rompe e a agita, e vigiar um pouco por trás da política o que deve
incondicionalmente limitá-la. Afinal, é meu trabalho; não sou o primeiro nem o último a
fazê-lo. Mas o escolhi” [Foucault, 2004, p. 81].

Um projeto intelectual e político de respeitar as vozes anônimas que se insurgiam e não


queriam ser caladas mesmo no risco de morte. Um percurso que, contra o pensamento
normativo, a insuficiência da teoria, e se opondo ao saber instituído que filtra o grito
diminuindo o seu som ou nos deixando surdos ou indiferentes a ele, multiplicou os
sujeitos. Essas vidas iranianas que se insurgiam contra "a fome, as humilhações, o ódio
pelo regime e a vontade de mudá-lo" eram vidas que se inscreviam "nos confins do céu
e da terra, em uma história sonhada que era tão religiosa quanto política" [Foucault,
2004, p. 78].

Um fenômeno que, segundo o pensador, causou mal-estar e espanto para a mentalidade


política ocidental, pois não se inscreveu facilmente nas duas dinâmicas pensadas para
uma revolução: a das contradições da sociedade – enfrentamentos sociais – e da
dinâmica política – vanguarda política que traz consigo as aspirações sociais [Foucault,
2010, p. 259]. Foucault entendeu que se a posição da religião na Revolução Iraniana
obscureceu a compreensão do evento, isto não significava que se deveria – nem ao
menos ajudava para sua compreensão – entendê-la como ideologia, ou seja, como um
corpus de representações e normas de conduta da sociedade e da política, como saber e
como condição da ação que se coloca no lugar da própria realidade e de sua verdade e a
legitima, ou ainda, como corpo explicativo e prático que prescreve e regula como se
deve pensar, agir, querer e sentir. Ela seria melhor entendida como o vocabulário e o

91
cerimonial que opõe o povo ao soberano [Foucault, 2010, p. 261]. O problema para o
pensador foi "[...] saber como as vontades individuais, na revolução e na luta,
articulavam-se com os outros níveis de vontade [...]" [Foucault, 2010, p. 206-207]. A
articulação entre o individual e o grupo, que ele chamou de vontade política,
articularam-se com outras vontades que, no Irã, ecoaram uma vontade coletiva:

“A vontade coletiva é um mito político com o qual os juristas ou filósofos tentam


analisar, ou justificar, instituições etc., é um instrumento teórico: jamais se viu a
"vontade coletiva", e, pessoalmente eu pensava que a vontade coletiva era como Deus,
como a alma, que não se encontrava jamais. [...] encontramos, em Teerã, e em todo o
Irã, a vontade coletiva de um povo. Isso é de se saudar, não acontece todos os dias.
Além do mais [...], deu-se a essa vontade um objeto, um alvo e um único, a saber, a
partida do xá. Essa vontade coletiva, que nas nossas teorias, é sempre geral, fixou-se, no
Irã, um objetivo absolutamente claro e determinado, assim ela irrompeu na história”
[Foucault, 2010, p. 261-262].

Nestas frases sentimos o furor que esses acontecimentos causaram no nosso personagem
e sentimos, além disso, os deslocamentos do seu próprio pensamento: a resistência
pensada como insurreição, contrapoder, ultrapassando seu pensamento como fagulha ou
contrafeito do poder; a insurreição pensada como vontade política ultrapassando seu
pensamento como uso político e ou oposição à política; e, como último desdobramento,
a vontade política pensada como necessidade de mudar radicalmente a existência,
negando certas práticas por meio de outras práticas afirmativas. Pode-se captar que a
própria noção de resistência é trabalhada pela noção de insurreição, o que permitia que
Foucault falasse em 1978 que o seu trabalho ao expor os mecanismos de poder
mostrava que "[...] aqueles que estão inseridos nessas relações de poder, que nelas estão
implicadas podem, em suas ações, em sua resistência e rebeldia, escapar delas,
transformá-las, em suma, não lhe serem submissos” [Foucault, 2010, p. 344].

Para Foucault, a alma dos levantes iranianos foi essa afirmação que sua experiência dos
acontecimentos captou como a voz do insurrecto: "[...] precisamos mudar, certamente,
de regime e livrar-nos desse homem, precisamos mudar esse pessoal corrompido,
precisamos mudar tudo no país, a organização política, o sistema econômico, a política
estrangeira. Mas, sobretudo, precisamos mudar a nós mesmos" [Foucault, 2010, p. 264].
A experiência religiosa iraniana representou, nesta leitura, exatamente uma forma de
mudar a subjetividade de quem se insurgia fora da política ocidental e das categorias
ocidentais suas contemporâneas.

Obviamente que essas vontades que aspiram transformações comportam perigos, ainda
mais porque essa vontade coletiva e essa vontade de mudança, essa dupla afirmação, "só
pode[m] se apoiar sobre tradições, instituições que carregam uma parte de chauvinismo,
de nacionalismo, de exclusão, e que têm uma força de arrebatamento muito grande para
os indivíduos" [Foucault, 2010, p. 270]. Em suma, Foucault constatava que uma
insurreição não tem inscrita em si a emergência de uma nova subjetividade política,
mas, quem sabe, dela uma nova subjetivação podia emergir. Foucault ampliou seu
olhar: ele continuou atento para aquelas relações divisórias da nossa sociedade – entre o
internamento e os loucos; os médicos e os pacientes; a prisão e os prisioneiros; a justiça

92
e o réu; o divã e o psicanalisado –, mas começou a lutar também por algo que
denominou os direitos dos governados.

É assumindo essa direção que na "Carta aberta a Mehdi Bazargan", Foucault se dirigiu a
favor dos direitos de ampla defesa para os réus do regime iraniano. O intelectual se
explicou: "Os processos políticos são, sempre, pedras de toque. Não porque os
incriminados não sejam jamais criminosos, mas porque o poder público aí se manifesta
sem máscara, e se oferece ao julgamento, julgando seus inimigos" [Foucault, 2010, p.
277]. Para quem governa garantir os direitos, submeter a julgamento é, continuou ele,
uma obrigação, pois "governar não se autojustifica, não mais do que condenar, do que
matar. Seria bom que um homem, não importa quem, estivesse ele do outro lado do
mundo, pudesse se levantar, porque não suporta que um outro seja supliciado ou
condenado" [Foucault, 2010, p. 277]. Desenha-se aí uma ética comum ao jornalista e ao
intelectual.

Referências
Leandro Mendanha e Silva é doutor em História pela UnB e pós-doutor em Sociologia
pela Universidade do Porto. Seu trabalho, entre outras, percorre tanto a área de Teoria e
Metodologia de História quanto a História da recepção e da apropriação, intersecção na
qual investiga o pensamento de Foucault.

ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.
Trad. Elisa Monteiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. (Ditos e
escritos; II).
________. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Ditos e escritos; III).
________. Estratégia, poder, saber. Trad. Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003. (Ditos e Escritos; IV).
________. Ética, sexualidade, política. Trad. Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. (Ditos e Escritos; V).
________. Repensar a política. Trad. Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro;
Forense Universitária, 2010. (Ditos e escritos; VI).
________. Segurança, penalidade, prisão. Trad. Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de
Janeiro; Forense Universitária, 2012. (Ditos e escritos; VIII)
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de
1988. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2001.

93
AS MARCAS DO GENOCÍDIO ARMÊNIO NA HISTÓRIA E NA
LITERATURA
Leonardo Paiva Monte e Lilian Bento
“No entanto, os armênios têm um talento especial para a dor.”
Lionel Shriver

Neste ensaio procuramos tratar de como a violência cria cicatrizes físicas e simbólicas
na vida de suas vítimas [Seligmann-Silva, 2016]. Para observar isso, articulamos a
literatura e a história [Chartier, 1999]. Por parte da literatura, empregamos o livro da
escritora estadunidense Lionel Shriver, Precisamos falar sobre Kevin [no original, We
need to talk about Kevin, lançado em 2003] e na historiografia buscamos os
acontecimentos relacionados ao genocídio armênio ocorrido no início do século XX
pelo império Otomano. Na narrativa de Shriver, a identidade armênia dos personagens
aparece como uma articulação entre a violência sofrida por esse povo e contexto da
violência que ronda os acontecimentos do livro.

A epígrafe deste texto é a conclusão à qual chega Eva Khatchadourian, personagem


fictícia de ascendência armênia, ao ver a reação tranquila de sua mãe, quando comenta
sobre homicídios cometidos pelo próprio filho adolescente. Mas o que leva um povo ter
a dor associada às suas experiências? Que dor é essa que não passa e se torna marca
distintiva de uma identidade?

Na dramática história, Eva perde a filha caçula e o marido - assassinados pelo filho mais
velho, Kevin, que além dos familiares, comete um massacre na escola em que estuda,
vitimando outros jovens. Apesar da narrativa chocante, nosso intento não é tratar dos
acontecimentos em torno dos crimes, mas perceber como o “sentir-se armênio” acaba
moldando muitas das questões identitárias dos personagens encontrados naquela
narrativa de ficção. Que dor é essa que os armênios entenderiam? Ou melhor, teriam
“um talento especial”? Trata-se de perceber que o passado atravessa as experiências
presentes das pessoas, afetando aspectos que ultrapassam os limites do grupo e se
tornam um elemento reconhecível mesmo entre aqueles sem relações diretas com a
comunidade armênia, refletindo na ficção literária.

A convergência da violência na literatura e na história: o genocídio armênio


A dor dos armênios pode ser compreendida ao se conhecer a história desse povo, e
principalmente nos eventos em torno do genocídio ao qual foram submetidos pelo
Império Otomano no início do século XX [Almeida, 2012]. É necessário um breve
desvio na busca de uma delimitação do que seja um genocídio. Essa, como outras tantas
palavras, muitas vezes é utilizada de forma indiscriminada e perde a intensidade do que
quer expressar. O termo genocídio foi pensado primeiramente na Polônia, pelo jurista
judeu Raphael Lemkin, sendo um híbrido da palavra grega genos (povo, tribo, raça) e da
latina cide (matar ou matança) [Irvin-Erickson, 2017]. Não se trata de querer converter e
mudar o outro, mas de erradicá-lo, é agir com a finalidade de silenciar sua voz e
eliminar sinais de sua existência por meio de violência, de assassinato e do extermínio.
Não é somente a história que abarca esses eventos, pois a literatura não se exime de
retratar esses acontecimentos e suas consequências na vida das pessoas direta ou
indiretamente envolvidas [Florêncio & Pinheiro-Mariz, 2019].

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Os armênios, possuidores de um idioma, religião e costumes próprios, foram vítimas de
sucessivas manifestações de violência do Império Otomano, cujo ápice se insere entre
os anos de 1915 e 1923. Foi uma sequência de manifestações de brutalidade com a
finalidade de tirar de seu meio aquele grupo de pessoas diferentes de si [Summa, 2007].
Este foi o genocídio mais longo da história, pois teria se desencadeado em 1878, com o
princípio da questão armênia, passando pelo massacre ocorrido em 1895 e estendendo-
se pela traição dos Jovens Turcos [grupo reformista], entre 1905-1907. Seu momento
mais sanguinário foi em 1915, com uma diáspora forçada e os massacres executados
pelos Jovens Turcos, e apenas terminou entre 1921-1923, quando povos armênios e
povos gregos foram vítimas dos turcos que tentavam dizimar essas populações
[Fernandes, s.d; Martins, 2007].

Somente para exemplificar como o genocídio é sentido de maneiras diferentes por


grupos sociais distintos, vejamos uma discussão entre dois personagens do livro
Precisamos falar sobre Kevin, Eva Khatchadourian, de ascendência armênia, e seu
marido, Franklin Plaskett, norte-americano sem quaisquer vínculos com a Armênia. A
discussão gira em torno dos sobrenomes para os filhos, enquanto Eva quer manter viva
a memória de uma identidade armênia resultado da violência e de uma diáspora, seu
marido encara a questão como um fato do passado, que não justificaria ser lembrada
diante da prosperidade e bem-estar vividos na sociedade norte-americana.

“[Eva] Cruzei os braços e convoquei a artilharia pesada: ‘Meu pai nasceu no campo de
concentração de Dier-ez-Zor. Os campos eram infestados de doenças e os armênios mal
tinham o que comer, nem mesmo água para beber - foi um espanto ele ter sobrevivido,
porque seus três irmãos não aguentaram. O pai do meu pai, Selim, foi fuzilado. Dois
terços da família da minha mãe, os Serafians, foram obliterados tão completamente que
não sobrou nem mesmo a história deles. Você me desculpe por estar comparando nossas
famílias, mas os anglo-saxões não são bem uma espécie em risco de extinção. Meus
antepassados foram sistematicamente exterminados e ninguém nunca fala sobre isso,
Franklin!’
- Um milhão e meio de pessoas!, você entoou, gesticulando feito um louco.
- Você sabia que foi o que os Jovens Turcos fizeram com os armênios, em 1915, que
deu a Hitler a ideia para o Holocausto? Fuzilei você com os olhos.
[Franklin] - Eva, seu irmão tem dois filhos. Só aqui nos Estados Unidos há pelo menos
um milhão de armênios. Ninguém está prestes a desaparecer” [Shriver, 2007, p. 157].

Um mesmo assunto é sentido de modo particular entre os personagens, enquanto no


discurso de Eva percebemos a necessidade de uma constante rememoração do passado,
uma recusa deliberada a esquecer; o marido justifica um apagamento do passado tendo
em vista a situação próspera e tranquila em que viveriam na América do Norte. Teria a
prosperidade econômica força suficiente para apagar o passado, os traumas e as marcas
da violência? Milhares de armênios se estabeleceram nos Estados Unidos, entre o final
do século XIX e início do século XX. E muitos desses grupos, não apenas nos EUA,
mantêm vivas as lembranças dos crimes cometidos pelos turcos na sua terra natal.
Como diz Eva Khatchadourian para seu companheiro: “Olha só, desde que me conheço
por gente que me martelam na cabeça que um milhão e meio de armênios foram
trucidados pelos turcos” [Shriver, 2007, p. 278]. Nesse exercício de constante

95
rememoração, o indivíduo cresce e partilha de muitos dos sentimentos do grupo à qual
pertence.

Identidades atravessadas por marcas da violência


As identidades compõem o indivíduo enquanto ele/ela se reconhece e estabelece sentido
de pertencimento com um grupo [Capitão e Heloani, 2007]. Mas esses grupos habitam
em lugares diferentes, em temporalidades e locais diferentes, não são fixos. A violência
por qual os armênios tiveram que passar no final do século XIX e início do XX, mais do
que relatos de sobrevivência e persistência de um povo, passa a ser um elemento que
alicerça a identidade. Durante a dominação otomana, o “sentir-se armênio” pode estar
associado ao sentimento de religiosidade, não somente por se tratar de cristãos entre um
grupo majoritariamente muçulmano, mas também por se tratar de um cristianismo
específico: o cristianismo armênio [Porto, 2015].

Em um contexto pós-diáspora, a identidade armênia parece se constituir a partir de


fragmentos da cultura que os sobreviventes do genocídio carregaram consigo para
diferentes partes do mundo. O que é valorizado não é apenas o que remete ao país
Armênia, mas uma constante lembrança da violência sofrida por esse povo. Talvez
possa parecer exagero, mas a experiência traumática sofrida pelos armênios proporciona
àqueles que não negam sua ascendência, uma percepção diferente das outras pessoas,
como se o passado ainda estivesse presente para eles, não permitindo que seja esquecido
ou seu trauma seja, de certa forma, atenuado [Paverchi, 2015]. Eis o que afirma Eva
sobre esse sentimento de sentir o passado no presente atual:

“Mas, tendo chegado tão perto do extermínio, num passado bem recente (sei que você já
cansou de me ouvir falar nesse assunto), poucos armênio-americanos partilham da
presunçosa sensação de segurança dos conterrâneos” [Shriver, 2007, p. 66].

Após perder casas e bens, ver o assassinato de filhos e pais, presenciar famílias
destroçadas e abandonar tudo que tinham para um novo começo, os armênios são
retratados sem uma ilusão de segurança, como se a qualquer momento, quando menos
se espera, a violência poderia chegar, seja no seio da família ou na tranquilidade da
comunidade. Pode ser interessante fazer uma analogia entre a vida de Eva
Khatchadourian e a vida do povo armênio, ambos sofrem dentro da segurança de seus
lares, a violência os transforma, deixa marcas profundas em sua vida e obriga-os a
seguir como sobreviventes. Eva perde a filha e o marido. Quantos filhos e cônjuges
foram massacrados pelos turcos? O genocídio atingiu mais de um milhão de armênios
que viviam no Império Otomano, de uma população total de quase dois milhões. Apesar
dos expressivos números, os acontecimentos são até hoje negados pelo governo da
Turquia, que os tratam como conflitos de guerra [Santos & Guimarães, 2015].

Os acontecimentos relacionados ao genocídio e a diáspora armênia podem revelar muito


da peculiaridade dos armênios, que evocam para si caraterísticas como de resistentes,
sobreviventes, dotados de uma natureza trágica e como vítimas. São essas as marcas que
conduzem as histórias e relatos dos armênios, tornando-se elementos formadores de
identidades, tanto se referindo ao genocídio como para narrar a história da própria
nação: a concepção de vítima traz à tona as injustiças que teriam sido cometidas e a

96
imagem de um grupo de resistentes ressalta que, apesar da violência sofrida, os
armênios não teriam desistido e se mantiveram firmes diante do inimigo [Porto, 2011].

A negação da história marca profundamente a vida dos sobreviventes do genocídio e de


seus descendentes. Não é um desejo desenfreado por vingança, mas por
reconhecimento, para que então sejam feitas as devidas reparações ao povo armênio. A
negação turca tira quaisquer formas de visibilidade das vítimas, tornando-as simples
números em uma longa lista de mortos. O negacionismo é instrumentalizado como
mecanismo de politização de uma narrativa com relação a um tempo passado. Ao não
assumir os crimes cometidos, o governo genocida mantém abertas as feridas das
vítimas, em uma constante repetição simbólica da violência real perpetrada contra
aquelas pessoas. O negacionismo é apenas um caso particularmente extremo de uma
prática que acompanha o gesto genocida. Esse sempre visa o extermínio do grupo
considerado inimigo para impedir a difusão de testemunhos do terror cometido, na
tentativa de apagar os rastros da violência praticada e quaisquer tentativas de retaliação
futura [Moraes, 2011].

Eva Khatchadourian ao buscar convencer o filho, Kevin, acerca de sua ascendência


armênia e uma esperada identidade, se vê contrariada ao perceber que o jovem não se
reconhece enquanto descendente de um povo estrangeiro, mas adota para si a identidade
do grupo em que vive:

[Eva] “Você também é armênio, você sabe.”


Kevin, no entanto, discordou. ‘Eu sou americano’, afirmou, usando o tom zombeteiro de
quem declara o óbvio, como por exemplo: ‘Eu sou uma pessoa’ e não um porco
selvagem” [Shriver, 2007, p. 281].

Fazer parte de um grupo social pode indicar o modo como um dado grupo compreende
o mundo, o que por sua vez delineará seu modo de viver e encarar as outras pessoas. Os
acontecimentos do passado passam a ser entendidos de forma distinta de acordo com as
identidades assumidas ou negadas, pois essas permitirão que se considere elementos,
narrativas e experiências. As atitudes, no que se refere ao outro, são dependentes das
representações que possuímos deste outro. Essas representações interferem nas
interpretações da realidade, nas decisões e reações do cotidiano. Como as identidades
não são fixas, orbitam entre a completa negação e ignorância quanto ao passado e a
rememoração constante e a militância pelo reconhecimento dos crimes cometidos.

Podemos nos questionar sobre como as identidades dos diferentes grupos armênios
espalhados na diáspora foram mescladas às identidades nacionais dos países em que
vivem. Como os descentes dos armênios sobreviventes do genocídio encaram o passado
de seu povo? Até onde permitem que suas identidades sejam atravessadas a partir de um
autorreconhecimento como armênio. Talvez ajam como Kevin Khatchadourian, que
apesar de conhecer o violento passado dos armênios, simplesmente renega essa história
e se reconhece enquanto possuidor de uma identidade diferente daquelas de seus
antepassados. Seja como for, o genocídio armênio ainda deixa marcas. E a negação
desse acontecimento não permite que haja uma cicatrização das feridas abertas e
expostas.

97
Conclusão
O uso da literatura comercial, como é o caso de Precisamos falar sobre Kevin, funciona
como um instrumento para observarmos as articulações entre a ficcionalidade e a
passado. Preferimos fazer intencionalmente o uso de uma obra de ficção que
manipulasse essas questões. Encaramos a ficção não apenas como invenção literária,
mas como portadora de nuances do “mundo real”. Na obra, a dor perpassa por todos os
personagens, nenhum está imune a ela. E a história armênia aparece como um lembrete
de uma dor constante que pode assolar os indivíduos e da necessidade de sobrepujá-la.
A identidade armênia de Eva Khatchadourian parece ser utilizada como uma preparação
aos futuros atos homicidas de seu filho. O sofrer, o sentir-se vítima e resistir à violência
tornam-se elementos que constituem o sujeito tanto na ficção literária como no mundo
aparentemente real em que vivemos.

Referências Bibliográficas
Leonardo Paiva do Monte é licenciado em História (UEPB) e mestre em história social
(USP).
Lilian Bento é professora da rede municipal da cidade de João Pessoa/PB e doutora em
Ciências da Educação (UNIDA).

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Vértices. n.12, 2012.
CAPITÃO, Claudio & HELOANI, José Roberto. A identidade como grupo, o grupo
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CHARTIER, Roger. Literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 1999. pp. 197-
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l’indicible. Leitura, n. 63, jul./dez. 2019. pp. 275-291.
IRVIN-ERICKSON, Douglas. Raphaël Lemkin and the concept of genocide.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2017.
MORAES, Luís. O Negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o
Passado. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, 2011.
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PORTO, Pedro. Construções e reconstruções da identidade armênia no Brasil (R.J. e


S.P.). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense. 2011.

98
PORTO, Pedro. Os primeiros cristãos do mundo: pertencimento religioso e identidade
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SUMMA, Renata. Vozes armênias: Memórias de um genocídio. Revista Ética e
Filosofia Política. Vol.10, nº 1, 2007.

99
REPRESENTAÇÕES COSMOGÔNICAS NO ANTIGO EGITO
Leonardo Candido Batista
Um dos grandes problemas que permeiam os estudos sobre a religião do Antigo Egito é
a imensidão de deidades, algumas aparentemente conectadas devido ao sincretismo que
esse panteão sofreu ao longo de sua história, com fusões, mudanças e uma justaposição
de deuses, que poderiam ou não estar ligados a figura do rei (mais tarde conhecida como
faraó) em determinado período. Basta olharmos para os templos, mastabas e as
pirâmides, que podemos entender como o cotidiano religioso era importante nessa
sociedade. Essa imagética por muito tempo fomentou diversas interpretações fantásticas
e exageradas sobre a religiosidade nilótica.

A religião egípcia era confusa até mesmo para seus sacerdotes e doutos, o que explica
essa diversidade de interpretações. Uma gama de deidades e cosmogonias, que mesmo
partindo de um denominador comum, possuíam estruturas divergentes conforme a
temporalidade e a localidade. Renata Tatomir (2017, p. 7-8) bem explica que o termo
léxico “religião” está mais para um conjunto de paradigmas de uma visão grega
superficial do mundo egípcio, sendo esse conceito inexistente nessa sociedade. Dessa
forma, eles expressavam o que era percebido, mas inexplicável para fenômenos naturais
e metafísicos no cotidiano.

Observamos esses exemplos nas tumbas, onde não parece ter uma separação estrita
entre o natural e o supernatural, com as representações dos trabalhos diários que eram
feitos: caça, pesca, preparar o solo. Jaroslav Černý (1953, p. 39) comenta que é
impossível traçar padrões de crenças que sejam uniformes e lógicas em todos os
detalhes, sendo essa válida para todo o Egito, como uma corrente de pensamento única
que nunca existiu. A religião egípcia não foi criação de um só pensador, mas sim uma
consequência de divergências políticas e culturais locais que nunca foram fortes o
suficiente para eliminar todas os credos, ou uni-los em um sistema teológico geral, que
conectasse todas as pessoas e lugares CERNÝ (1953, p. 39).

Devemos estar cientes para essas interpretações nas concepções cosmogônicas e


cosmológicas, pois é muito comum que haja confusão em tais aspectos. Leonard H.
Lesko (2002, p. 110) explica que de modo geral, os antigos egípcios estavam cientes
dessas diferenças, sendo que é possível que tenham tido suas preferências pessoais entre
elas, mas não existindo ideias especificas exigidas de maneira dogmática, já que a
frequência de descrições conflitantes aparece concomitantemente.

Fontes
As fontes referentes ao Egito Antigo são mais frequentes que as de outras sociedades da
antiguidade, muito por conta da areia do deserto ter preservado os papiros com tais
informações (embora devemos lembrar que as condições climáticas são diferentes no
norte e no sul, sendo que o clima seco e árido do Alto Egito, garantiu que esses sítios
tivessem uma melhor preservação do que na região do delta), fora a cultura material
remanescente nas esculturas e nos túmulos, que nos informam muito do cotidiano e dos
aspectos religiosos existentes, ou que estavam mais em voga na época. De todo modo,
existe uma dificuldade devido a natureza dessas fontes, que em sua grande parte é
fragmentária e desigual, e no caso da religião o problema é muito mais evidente, já que

100
existiam diversas interpretações, até mesmo entre os sacerdotes encarregados dessas
compilações.

Rosalie David (2011, p.40) comenta que o legado deixado pelos antigos egípcios
abrange uma variedade de monumentos bem preservados, artefatos, restos humanos,
uma extensa literatura religiosa e secular. Todas essas fontes nos possibilitam
compreender e interpretar as ideias e os conceitos, que em alguns casos se originaram
há cinco mil anos. Contudo existem poucos fatos contestados no estudo da cultura
egípcia: na melhor das hipóteses, podemos conseguir apenas uma visão parcial e
separada do mundo moderno por uma grande extensão de tempo, e em vários casos,
podemos chegar a apenas conclusões imprecisas (DAVID, 2011, p. 40).

As fontes relacionadas ao mundo egípcio, circunscreviam todo o aparato estatal, real,


social e religioso. Como muito bem lembra Claude Traunecker (1995, p. 13-14) essas
fontes ligadas a religiosidade podem dividir-se em duas categorias: profanas e
religiosas. A primeira compreende os objetos, monumentos, ou documentos cuja
finalidade não é cultual, mas os deuses estão presentes. Já as profanas, os documentos
literários ocupam lugar à parte, destacando textos qualificados como “contos”, que
tiram sua inspiração no mundo divino, e glosam mutações políticas, culturais e
religiosas. Por fim os ensinamentos, que eram uma prática muito antiga, esboçam
geralmente um personagem em um conjunto moral que transmite ao outro seus
preceitos. Esses contos erigem o painel de uma sociedade cujos ideais se fundam nas
relações entre os deuses e os homens. As fontes mais especificamente religiosas
comportam os objetos e monumentos em relação direta com o culto oficial, um culto
privado, ou qualquer manipulação que se refira ao imaginário dos egípcios
(TRAUNECKER, 1995, p. 14).

Os remanescentes dos monumentos e de outros aspectos da cultura material, podem ser


observadas nos sítios arqueológicos e em outros objetos bem preservados, sendo os
templos, estelas, tumbas, e as pirâmides, exemplos que por muito tempo inspiraram
interpretações fantasiosas na mente dos viajantes e dos primeiros estudiosos imbuídos
de vieses eurocêntricos e orientalistas. Roselie David (2011, p. 46) comenta que o
conteúdo da tumba fornece uma riqueza de informação a respeito das crenças e dos
costumes funerários, assim como a vida diária. Embora as práticas religiosas cotidianas,
eram bem menos representadas por artefatos, mesmo sendo descobertos altares,
bancadas de oferendas e outros utensílios de culto em ambiente doméstico.

As fontes literárias são fundamentais para interpretarmos as variações cosmológicas e


cosmogônicas, sendo que em muitas delas podemos encontrar como os antigos egípcios
a entendiam nas múltiplas faces de sua longa história, contendo diversas mudanças e
características de um texto para outro. As principais fontes na qual podemos encontrar
informações sobre essa mitologia da criação são: Os Textos das Pirâmides, os Textos
dos Sarcófagos, o mais conhecido pelo senso comum como Livro dos Mortos, e a Pedra
de Shabaka.

Claude Traunecker (1995, p. 14-15) descreve concisamente as principais características


dessas três primeiras compilações, sendo que os Textos das Pirâmides ornam as paredes
dos aposentos funerários dos reis e rainhas do fim das dinastias V e VI, formando um

101
conjunto de 759 capítulos de extensão muito variável. Mais tarde (aproximadamente no
Reino Médio), esses textos não estão mais no bojo da salvação real, mas podemos
encontrá-los em tumbas particulares, esses são os chamados Textos dos Sarcófagos,
pintados nos esquifes dos altos funcionários do Estado, pegando empréstimos dos
Textos das Pirâmides.

Essa compilação conta com 1.185 capítulos muito reutilizados a partir do Novo Império
no Livro da Saída ao Dia, composto de 192 capítulos e mais conhecido sob o nome de
Livro dos Mortos (TRAUNECKER, 1995, p. 15). A Pedra de Shabaka é uma
compilação da cosmogonia de Mênfis que data da XXV dinastia (por volta de 700 a.C.).
O nome deriva de um faraó que teria encontrado um pergaminho com o mito sendo
devorado pelos vermes, assim ordenando uma cópia para a substituição. Considera-se
que o texto dessa passagem date de pelo menos da XIX dinastia, mas não podemos
estipular com precisão, devido a fluidez e a as mudanças que essas mitologias sofreram
ao longo do tempo.

Cosmologias e Cosmogonias
No sentindo humanístico, cosmologias e cosmogonias estão inclinadas para a
explicação de mitos relacionados a criação do universo. Basicamente a palavra
cosmologia seria como o estudo da natureza dos cosmos, e cosmogonia sobre a criação
divina, sendo que esse conceito e o da colina sagrada parecem estar presentes em todos
os relatos cosmogônicos que analisaremos. No Antigo Egito vemos essa explicação com
um demiurgo criando a partir das águas primordiais. Ian Shaw e Paul Nicholson (2002,
p. 73) explicam que a ação do período faraônico em relação ao pensamento da criação e
religioso era simplesmente embutida na iconografia, linguagem e ritual, sendo apenas
nos períodos ptolomaico e romano, que esse processo de cosmogonia começou a ser
regularizada e descrito como uma narrativa explicita. Todavia, essa compilação em um
período muito posterior de sua base teórico, teve sua corporeidade modificada ao longo
da duradoura história egípcia.

Leonard Lesko (2002, p. 110-111) exemplifica bem essas modificações, mas


conceitualizando que quase a totalidade mitológica pode ser encontrada no momento de
união do Alto e do Baixo Egito por Namer (por volta de 2950 a.C. ou 3110 a.C.), sendo
que a mitologia existente foi sendo remodelada e reempregada de maneira a explicá-los,
assim como uma nova sendo feita com o mesmo propósito. Gradualmente, ou talvez
rapidamente, os mitos locais de todas as partes foram combinados em um sistema, e as
divindades locais de diferentes regiões, organizadas em uma hierarquia (LESKO 2002,
p. 111).

No entanto para Henri Frankfort (2012, p. 19) a discussão sobre a multiplicidade de


abordagens para uma única divindade cósmica necessita de um complemento; devemos
considerar a situação na qual um único problema e a relação de vários fenômenos
naturais, na qual podemos chamar “multiplicidade de respostas”. Como por exemplo, o
problema criacionista da origem da existência, sendo que isso no Egito não era um
problema intelectual em primeiro plano. Pelo contrário, era intimamente relacionado
para a existência do homem (FRANKFORT, 2012, p. 20).

102
Roselie David (2011, p. 118) explica que antes da criação houve um estado de não
existência, caracterizado pela escuridão total e águas infinitas. A partir daí, emergiu um
criador que estabeleceu o universo; contudo, o ato de criação não obliterou o estado de
não presença o qual permaneceu fora dos limites do mundo criado, mas o penetrou sob
a forma do sono e da morte, que representavam um retorno temporário às profundezas
do cosmos.

Mesmo existindo um vasto panteão local de divindades, essa questão mais cósmica
estava presente em todos os lugares para essa sociedade, como argumenta Jaroslav
Černý (1953, p. 41) a maneira como os egípcios viam essas forças (acima da Terra, céu
e ar, das cheias do Nilo, do sol e da lua), eram mais conceitos personificados na forma
humana, que deram origem a um número de deidades cósmicas de tais importância que
não estavam ligadas a nenhuma localidade definida, estando presente em todos os
lugares, sem a necessidade de uma organização cultual ou templo. O ato da criação para
Claude Traunecker (1995, p. 97) faz parte de um desígnio, de uma intenção deliberada
do demiurgo, a consequência nesse espaço material foi o princípio da Vida-ankh, sendo
o mesmo saído do criador.

Cosmogonia de Heliópolis
Talvez o mais conhecido mito da criação seja o heliopolitano, que geralmente vemos
exposto quando existe alguma discussão sobre religião egípcia, e referências sobre essa
cosmogonia podem ser encontradas nos Textos das Pirâmides. O nome Heliópolis é
derivado do grego em referência ao culto solar existente nessa região, mas em egípcio a
cidade era conhecida como Iwnw.

Nesse mito podemos observar uma enéade (grupo de nove divindades), a presença de
um demiurgo denominado Atum (que pode algumas vezes aparecer como sendo Rá),
iniciando o processo da criação com base no inanimado das águas primordiais, que está
relacionada a um tipo de estado caótico e abstrato, onde começa a moldar a ordem
dando vida a outras. Leonard Lesko (2002, p. 113) comenta que diversas versões da
história heliopolitana podem ser reconstruídas a partir das alusões encontradas nos
textos de diferentes períodos.

Todos eles começam com Atum (“o todo” ou “o completo”) ejaculando de dentro de si
mesmo Shu (“ar” - masculino) e Tefnut (“umidade” - feminino). Shu e Tefnut, por sua
vez, geram Geb (“Terra”- masculino) e Nut (“Céu” - feminino). Na Geração seguinte.
Geb e Nut dão origem a dois filhos e duas filhas, e o número crescente de irmãos
inevitavelmente conduz ao conflito (LESKO, 2002, p. 113). Existem outras versões
dessa narrativa mitológica, onde Atum da vida a Shu cuspindo-o, e à Tefnut vomitando-
a. Renata Tatomir (2017, p. 11) deixa claro que todo o mito da criação egípcio começa
com a crença básica que antes do início das coisas, existia esse abismo líquido
primordial (em todo lugar, interminável, sem limites ou direções).

103
Figura 1 – Enéade Esquematizada

Fonte: http://www.globalegyptianmuseum.org/glossary.aspx?id=147

Roselie David (2011, p. 122) ainda explica que em Heliópolis, Rá assumiu o culto e
adquiriu as características de Atum, um deus anterior que tinha iniciado toda a criação.
Sendo assim, Rá-Atum tem o papel criador emergindo do grande oceano primordial
(Nun), trazendo a luz para o estado das trevas e não existência. Ele assumiu a forma de
uma garça conhecida pelos egípcios como Bennu, que voou da escuridão pousando em
uma rocha, onde abrindo o seu bico solta um grito que rompe o silêncio da não
existência. Esse bradado seria o processo criativo que determinou o que deveria ou não
ser, Rá-Atum também criou um poleiro, que segundo os sacerdotes heliopolitanos,
tornou-se o local de seu templo. Nessa localidade um amuleto conhecido como pedra
Benben era considerada a verdadeira alcândora rochosa, assumindo a forma de um pilar
terminando com um piramidion (pedra em forma de pirâmide), que provavelmente era
coberto de ouro e refletia a luz do sol ao amanhecer (DAVID, 2011, p.122).

Muito já foi ponderado sobre a magnitude e o esplendor das pirâmides, vemos


explicações desde alinhamentos estrelares a feitos sobre-humanos, mas o mais provável
é que a construção desses monumentos seriam uma recriação imagética do monte
Benben, onde Atum começa a arquitetar mundo com base no caótico. Antes da criação
da barragem de Assuã, as pirâmides podiam ser vistas com uma certa protuberância,
como se estivessem emergindo das águas, sendo que essas representações do mitológico
incorporadas à realidade eram muito bem elaboradas pela sociedade egípcia. Ian Shaw e
Paul Nicholson (2002, p. 52) comentam que esse monte primordial talvez possa
representar o sêmen de Rá-Atum, servindo como primeiro protótipo do obelisco e até
das pirâmides.

Baseando-se nessas conexões, a pedra angular localizada no topo da pirâmide ou


obelisco era conhecida como benbenet. Acredita-se que a rocha original de Heliópolis,
era onde raios do sol nascente primeiramente caiam, e o culto parece ser tão antigo
quanto a primeira dinastia. A ave representante dessa cosmogonia tem uma certa
semelhança com outro pássaro mitológico, que de certa forma também representava o
sol. O nome benben deriva do verbo egípcio meben (surgir), e foi um protótipo da fênix
grega. Pode haver uma conexão etimológica entre as duas aves, e certamente existem
similaridades distintas na ligação desses animais com o sol e o renascimento, embora
outros aspectos da lenda de fênix sejam bastante divergentes (SHAW, NICHOLSON,
2002, p.53).

104
Figura 2 – Representação da ave Bennu

Fonte: https://www.historymuseum.ca/cmc/exhibitions/civil/egypt/egcr09e.html

Aparentemente essa enéade baseava-se em uma representação dos elementos essenciais


para a sociedade do Antigo Egito. Podemos observar elementos abstratos e deuses cuja
representação pode estar relacionada a naturalidade das coisas (Ar, umidade, terra e
céu). Renata Tatomir (2017, 13) relata que as cinco primeiras divindades (Atum, Shu,
Tefnut, Geb e Nut) eram forças divinas animadas que representavam as forças vitais dos
elementos da natureza, enquanto os outros quatro (Osíris, Ísis, Seth e Nephtys)
correspondiam por elementos políticos. Para os antigos egípcios, a ordem natural e
política surgiram ao mesmo tempo, e eram meramente facetas distinguidas da mesma
ordenação cósmica. O processo da criação continuou até tudo estar completo no mundo,
e todos os deuses e deusas correspondentes a esse fenômeno viessem a existir
(TATOMIR, 2017, p. 13).

É no mito de Heliópolis que encontramos o episódio do conflito entre Osíris e Seth, na


qual o primeiro é desmembrado pelo irmão. Ísis no papel de esposa e irmã dedicada, sai
em busca das partes do marido que estavam espalhadas por localizações geográficas
conhecidas pelos egípcios, relacionadas as Duas Terras e algumas regiões do Oriente
Próximo. A perseverante Ísis consegue reunir os pedaços do corpo de seu amado a
tempo de gerar Hórus, que tem um papel de vingador tentando restabelecer o trono de
sua linhagem. Existem várias versões da luta de Hórus e Seth, algumas inclusive com
certo tom humorístico e sarcástico, mas em suma essa batalha é sempre destacada com a
perda do olho do deus falcão e o triunfo sobre o seu ambicioso tio.

Essa luta entre os dois irmãos, pode representar como argumenta Leonard Lesko (2002,
p. 13) o conflito da natureza entre o fértil vale do Nilo (Kemet, a terra negra) e o deserto
estéril (Deshret, a terra vermelha), ou entre a constante e benéfica inundação (Osíris), e
a imprevisível e geralmente indesejável tempestade (Seth).

Cosmogonia hermopolitana
Outra cosmogonia muito conhecida e difundida é de Hermópolis (Hmnw), apesar de
possuir elementos similares, essa baseia-se em uma ogdóade (grupo de oito divindades).
Esse grupo era dividido em quatro contrapartes masculinas e femininas. Roselie David
(2011, p. 127) comenta que esse mito não ficou restrito a um deus supremo, tendo em

105
sua originalidade oito deidades que eram: Nun e Naunet (águas primevas), Huh e
Hauhet (eternidade), Kuk e Kaubet (escuridão) e Amon e Amaunet, também associados
com os nomes de Qerh e Qerhet (ar). Seguindo por uma perspectiva mais abstrata,
Renata Tatomir (2017, p. 15) explica que talvez essa dicotomia entre masculino e
feminino esteja relacionada com as metades da experiência humana, e quatro para cobrir
os pontos cardiais. O primeiro par relacionado as águas, está conectado a falta de algo
sólido. O segundo ao tempo sem fim (infinito). E os dois últimos pares ligados à falta de
luz e direção.

Na parte da representação, esses deuses possuíam cabeças de serpentes (femininos) e


anfíbios (masculinos), sendo que pós a criação, essas divindades reinaram no mundo
dos vivos até a morte, onde continuaram a ter sua influência. Devemos lembrar que para
a sociedade do Antigo Egito, o mundo dos mortos não era um lugar melancólico, mas
sim uma extensão da vida onde os deuses continuavam a ter sua influência.

Figura 3 – Ogdóade em seus respectivos pares

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Ogdoad_(Egyptian)

Existe uma outra versão bastante conhecida do mito hermopolitano, essa que expressa
nitidamente a figura do deus Thoth. Segundo essa versão por Roselie David (2011, p.
127) a vida emergira de um ovo cósmico que fora lançado na ilha da criação por uma
gansa, ou por um íbis. Em outro relato, a ogdóade criou uma lótus no lago sagrado em
Hermópolis, que abriu suas pétalas para revelar Rá (sob a forma de uma criança, ou
escaravelho que se transformou em um menino), dando segmento à criação do mundo e
da humanidade (DAVID, 2011, p. 127). Já para Leonard Lesko (2002, p. 116) dessas
oito divindades surgiu um ovo contendo o deus responsável pela criação de todos os
outros, incluindo humanos, animais, plantas, sendo que Thoth pode ter sido esse deus
criador.

Aparentemente nos textos referentes a essa cosmogonia, Atum era facilmente colocado
em seu lugar. O encantamento número 76 dos Textos do Ataúde é incomum, por
considerar Shu como o criador da ogdóade, de forma que tem Atum prioridade no
tempo tanto quanto no ato da criação. O encantamento contemporâneo 335 (versão
anterior do capítulo 17 do Livro dos Mortos) mostra de maneira mais clara a

106
propriedade do Nun, que é visto na maior parte dos textos posteriores (LESKO, 2002, p,
117).

Figura 4- Parte da representação da ogdóade no relevo do templo de Hathor em Dendera

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Ogdoad_(Egyptian)

Thoth é geralmente apresentado como deus da sabedoria e da escrita, em suas


representações o encontramos na forma de um babuíno ou de um íbis. Ian Shaw e Paul
Nicholson (2002, p 288) explicam que em sua forma de babuíno, Thoth era bastante
associado com o deus Hedj- wer (O grande branco) do começo do período dinástico
(3100- 2686 a.C.). No final do Antigo Reinado (2686-2181 a.C.), ele começou a ser
retratado com cabeça de íbis e corpo humanoide, geralmente segurando uma paleta de
escriba.

Siegfried Morenz (1973, p.175) salienta que vale ressaltar três pontos nessa
cosmogonia, destacando como esse arquétipo cosmogônico assemelha-se de certa forma
com a ciência física moderna. A primeira característica é o problema relacionado com a
matéria cósmica, não com a vida orgânica; a segunda é que esse elemento está ligado a
figuras míticas; e por último, é que a pressão colocada nas qualidades físicas da
substância primordial, atesta para a existência de um espirito cientifico. Certamente isso
sublinha a contínua ligação entre ciência e religião no Egito, sem limite rígido e rápido,
foi desenhada entre o elemento primevo e o criador, ou o que ele criou. No ponto onde a
existência se tornou evolução, o fenômeno do caos adquiriu um aspecto duplo:
aparecendo simultaneamente como substância, energia instalando uma massa inerte em
movimento (MORENZ, 1973, p. 176).

Mesmo que o conceito cientifico não se aplique para uma sociedade tão antiga como o
Egito, é notável o esforço para a elaboração de tal mito. Mostrando o grau de
sofisticação que aderiu diversos pensamentos de altíssima complexibilidade em busca
de uma compreensão para o mundo que eles imaginavam existir.

O mito menfita
A cosmogonia menfita difere um pouco das citadas acima, pelo fato de ser muito mais
abstrata que as demais. Enquanto as outras tentavam explicar a origem do mundo de

107
uma forma teogônica, com uma geração de deuses seguidos por outros, ou até de uma
maneira pseudocientífica, na qual podemos encontrar modelos similares aos físicos, o
mito de Mênfis é mais estático, dando ênfase no poder das ideias e das palavras. Para
melhor entendermos esse modelo, devemos pautar a figura do deus Ptah, que de certa
forma nunca foi uma divindade de destaque dinástico.

Ptah é geralmente representado mumificado e com a cabeça raspada, trajando na mesma


uma espécie de ornamenta. Suas mãos estão soltas das ataduras segurando um cetro, que
em sua ponta sustenta três símbolos superpostos: Na parte de baixo o pilar djed, que
significa estabilidade; na parte central a cruz ankh que é a vida; na parte superior temos
o cetro was, símbolo de poder. Ptah está em cima de uma plataforma que pode muito
bem presentar a colina primordial (benben).

Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p. 230) analisam que do Médio Reino (2055-1650
a.C.) em diante, o deus menfita começou a aparecer usando uma barba reta, sendo que a
sua base iconográfica continuou imutável ao longo do período faraônico. É comum ele
ser relacionado no período helenístico com o deus Hefesto, por ambos estarem ligados
com a metalurgia. O próprio Ptah fazia parte de uma tríade em Mênfis, ao lado de sua
consorte (a deusa leoa Sekhmet) e o deus lótus Nefertem, na qual a relação dos dois é
incerta. Imhotep, o deificado arquiteto da pirâmide de degraus, chegou a ser
considerado como filho de Ptah, embora esse não fizesse parte da tríade.

O sumo sacerdote do deus artesão de Mênfis tinha o título de (supremo líder dos
artífices). A conexão com a produção de artefatos certamente contribuiu para a elevação
do seu culto a um patamar de deidade da criação universal. Pensava-se que ele trouxera
a existência ao mundo pelos pensamentos emanados de seu coração, e as palavras de
sua língua (SHAW, NICHOLSON, 2002, p. 230). O verbo divino era pensado pelo
coração de Ptah, e assim materializado em suas palavras. Para os antigos egípcios era
função do coração o ato do pensamento.

Roselie David (2011, p. 124) argumenta que a palavra falada possui dois princípios
divinos: da percepção e da criatividade. Essas são forças naturais na qual a criação pode
ser atingida, sendo que o deus criador percebe o mundo como um conceito e depois cria
por intermédio da sua primeira expressão verbal. Para tal feito é utilizado a magia, uma
força que se creditava a transformação de um comando falado em realidade. É notável
que a cosmogonia menfita diverge de seus fundamentos criacionistas das anteriores,
focando na importância da fala, que na sociedade egípcia significava muito mais do que
um mero gesto de expressão, mas sim uma convicção que transmitia poder afetando a
vida e o cotidiano das pessoas.

Como vimos, o deus Ptah cria com uma característica bem distinta, pelo uso do verbo
divino. A passagem da pedra de Shabaka que descreve a criação, assemelha-se muito
com o primeiro capítulo do livro de Gênesis, onde o deus bíblico também cria através
da palavra. Para Richard H Wilkinson (2003, p. 18) a característica da fala alude ao
planejamento consciente da criação e sua execução através do pensamento racional do
discurso, nisso foi atribuído a Ptah pelos sacerdotes de Mênfis o primeiro exemplo do
que podemos chamar de “logos”, doutrina na qual o mundo é criado através da fala de
um deus. Ela também assimila as condições existentes na enéade, colando Ptah como

108
um demiurgo, ou até uma ideia que precedia a Atum. Renata Tatomir (2011, p. 31)
aponta que o menfita surgiu antes do grupo das nove deidades, sendo que ele pode ser
identificado como o primeiro montículo de terra seca que emergiu das águas abismais,
na qual Atum se ergueu. Sendo que o monte benben, e portanto Ptah, tiveram um papel
essencial na construção do próprio ser de Atum.
]
Figura 5 – Pedra de Shabaka exposta no Museu Britânico

Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA498

Ptah também era visto mesclando elementos masculinos e femininos dentro de si. Isso
pode ser observado nos primeiros textos do período final da história egípcia, no qual o
nome desse deus era escrito acrofonicamente como pet-ta-heh ou p(et) + t(a) + h(eh),
como se ele segurasse o céu (pet) sobre a Terra (tá), mas também combinando o
elemento feminino do céu e o masculino da terra de uma forma andrógena da dualidade
primordial masculina-feminina Ptah-Naunet (WILKINSON, 2003, p. 18).

A criação em Esna e Khonsu


Outras duas cosmogonias menos conhecidas são as de Esna e de a Khonsu, que embora
não tão difundidas, merecem mais que uma mera menção. O primeiro mito pode ser
encontrado nas paredes do templo de Khnum em Esna e data do período romano.
Renata Tatomir (2017, p. 34) explica que Neith é o primeiro ser a emergir do Nun,
transformando-se em uma vaca e então em um peixe. Essas são as imagens que derivam
de seu culto, sendo adorada nessas duas formas. Alexandra Von Lieven (2014, p. 20)
apresenta Neith como uma divindade andrógena, também sendo conhecida como “o pai
dos pais”, “a mãe das mães”, “o deus que se tornou dois deuses”. Também é atribuída a
essa deidade a criação de Rá.

Porém essa cosmogonia é muito controversa, pois existe um outro deus criador nesse
mito que pode muito bem confundir o leitor. Françoise Dunand e Christiane Zivie-
Coche (2004, p. 45) apontam que os teólogos têm de enfrentar o delicado problema das
divindades de Esna estarem ligadas com a criação; Khnum, o oleiro, e Neith, a
venerável deusa do delta. Khnum tinha como centro de culto a cidade de Elefantina, e
era representado com uma cabeça de carneiro. Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p.

109
151) comentam que esse deus já era adorado desde os primeiros períodos dinásticos por
volta de 3100-2686 a.C. como parte de uma tríade com as deusas Satet e Akunet.

Em sua forma primitiva, essa deidade aparece estar ligada a criação, até pela
simbolismo e combinação criativa de moldar a cerâmica com a fertilidade do carneiro, e
também pelo fato da palavra egípcia para esse animal ser Ba, que tinha o significado de
“essência espiritual” (embora essa fosse escrita com o hieróglifo de uma cegonha).
Talvez parcialmente, porque existisse essa conexão com o conceito Ba, que Khnum era
relacionado com o deus solar Rá, que algumas vezes aparece ilustrado com uma cabeça
de carneiro, quando atravessava o mundo inferior com sua barca (SHAW,
NICHOLSON, 2002, p. 151).

Como já assinalamos, Khnum também pode ser visto como uma divindade criadora, e
em sua função como oleiro, o mesmo cria a vida através do barro na sua roda, na qual
podemos observar um outro paralelo com o livro de Gênesis, onde Deus cria o homem
com certas similaridades. Essa é uma das poucas passagens cosmogônicas na qual
vemos a criação da humanidade, aparentemente os egípcios não estavam interessados
em colocar a vida humana como uma criação independente. Françoise Dunand e
Christiane Zivie-Coche (2004, p. 56) destacam que por um bom tempo esse deus oleiro
foi visto nas representações modelando a imagem de algo que seria a “criança real”
concebida por Amon, junto com o Ka em sua roda de oleiro. Porém em textos mais
tardios, especialmente os relacionados à Esna, vemos sua atividade criativa estendida
para dar vida aos deuses e a humanidade.

O que podemos chamar de cosmogonia de Khonsu, aparentemente é uma tentativa


tebana de explicar a criação. Leonard Lesko (2002, p. 128) comenta que esse mito é
encontrado em um texto ptolomaico que tenta elucidar a ligação de Tebas com a
ogdóade hermopolitana e Ptah, por meio de descrições novas e imaginativas e com um
bom senso de humor. Para Eugene Cruz-Uribe (1994, p. 188-189) as cenas do templo de
Khonsu servem como síntese de uma linha mítica que foi desenvolvida no Novo Reino,
e continuou sendo formulada no Terceiro Período Intermediário e na época Saíta.
Assim, a importância do deus Amon-Rá mingou principalmente devido a natureza
política da ascensão do seu culto.

Por falta de uma origem teológica, uma alternativa foi criada para enfatizar a
combinação dos mitos de Amon e Osíris. Assim o filho Khonsu é apresentado como o
criador, que segue como um vigoroso jovem líder, como também uma esperança para o
futuro. Ele é relacionado com o papel que herdou de Osíris (morte e renascimento),
assim também fazendo a função de Amon-Rá nos festivais do monte Djeme, horando os
ancestrais e assim sendo rejuvenescido.

Esse ato está muito próximo do círculo de criação, morte e recriação. Khonsu, o luar,
faz um paralelo com ele mesmo falcão, o sol e a lua, aspectos do dia e da noite,
promovendo todas as formas da natureza. No final, a Maat é preservada, e temos a
figura do rei apresentando-a de volta para os deuses (CRUZ-URIBE, 1994, p. 189). No
entanto para Leonard Lesko (2002, p. 130) Amon-Rá continua sendo descrito como o
pai dos pais nessa ogdóade, o que deveria ser contraditório, uma vez que tanto Khonsu
como Ptah são considerados emanações de Amon, esse deus pode viajar (hns) para

110
Hermópolis para produzir o ovo da qual nascerá essas oito divindades e também abrir
(pth) Hathor para criá-los.

A cosmogonia de Khonsu, na verdade, retrata a ligação desses oito com Tebas como
dupla, já que Amon-Rá veio de lá para gerá-los em Hermópolis, sendo que a ogdóade,
em algum momento, supostamente voltou para o sul para ser sepultada em Djeme, na
necrópole tebana (LESKO, 2002, p. 130). Por fim, Eugene Cruz-Uribe (1994, p. 189)
relata que essas foram transformações da leitura que esse mito sofreu ao longo de dez
séculos de interpretação e reinterpretação, fora a síntese de várias outras tradições.

O intento do artigo foi de angariar informações e debates sobre o complexo pensamento


religioso egípcio, para que com isso possamos desvincular aqueles termos padronizados
das deidades. A religião no Antigo Egito tem que quer vista por via de regra nessa
perspectiva confusa e sincrética, pois assim ela era pensada nessa sociedade. Todas
essas confusões e mudanças no seu corpo cosmogônico, mostram que mesmo as Duas
Terras não sofrendo tantas mudanças políticas e culturais como no caso da
Mesopotâmia, a capacidade de reconstruir seu imaginário criacionista era altamente
sofisticada. Dessa maneira, os egípcios entendiam o seu mundo com os deuses
possuindo várias formas, e coexistindo com diversas características. Assim Como
Khepri, Rá e Atum representavam o sol no limiar do dia; amanhecer, meio-dia e
entardecer respectivamente.

Referências
Leonardo Candido Batista Mestre em História Social pela UEL

ČERNỲ, Jaroslav. Ancient Egyptian Religion. London: The Mayflower Press, 1953.
CRUZ-URIBE, Eugene. The Khonsu Cosmogony. Journal of American Research
Center in Egypt. Vol. 31. p. 169-189, 1994.
DUNAND, Françoise; ZIVIE-COCHE, Christiane. Gods and Men in Egypt 3000 BCE
to 395 CE. Ithaca: Cornell University Press, 2004.
FRANKFORT, HENRI. Egyptian Religion: An Interpretation. Mineola Dover
Publications, INC, 2012.
LESKO, H, Leonard. Cosmogonias e Cosmologias do Egito Antigo. In SHAFER
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Nova Alexandria, 2002.
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111
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112
LITERATURA, LEITORES E ESCRITORES NA ANTIGA
MESOPOTÂMIA
Maria Clara M. Hagen
Quando se fala do assunto literatura no contexto da Mesopotâmia durante a
Antiguidade, é possível formular o seguinte questionamento: existiria, realmente, algo
que pudesse ser descrito como “literatura” nesta época e local? Ao se deparar com a
tradução de textos milenares, como a Epopeia de Gilgamesh, o leitor moderno pode
encontrar elementos aos quais não está acostumado. As múltiplas lacunas e os termos
antigos de tradução desconhecida dificultam a leitura. A falta de métrica reconhecível e
descrições simples, banais à primeira vista, afastam os poemas de tradições como a
helênica, mais familiar.

Os escritos greco-romanos e hebraicos, apesar de sua antiguidade, não parecem causar


tanto estranhamento. Isto provavelmente deve-se mais a uma concepção de que estas
duas tradições teriam originado a “civilização ocidental”, e logo, seriam superiores, do
que a uma pobreza real da literatura mesopotâmica (BOTTERÓ, 1992).

A resposta para o questionamento inicial, é que os povos do Antigo Oriente Próximo


contavam, sim, com uma rica tradição literária. Seus textos artísticos eram claramente
diferenciados daqueles administrativos ou comerciais por marcas de escrita formal
(FOSTER, 2005, p. 13), e contavam com diversas características em comum com o que
hoje reconhecemos como nossa própria literatura. A escrita aparentemente estéril, se
examinada com cuidado, se revela mais complexa. Os autores sabiam enriquecer seus
textos com outros recursos sutis, como jogos de palavras e de sonoridade. Em uma
sociedade majoritariamente iletrada, onde a escrita era principalmente um aparato
administrativo, o desenvolvimento de uma literatura para fins religiosos e educacionais,
pode ser considerado como extraordinário (BLACK et al, 2014, p. 42). As bases para
aquilo que reconhecemos como literatura mesopotâmica se iniciaram com o povo
sumério que, no IV milênio AEC, começou a inscrever pictogramas em argila para fins
administrativos (BOTTERÓ, 1992).

Inicialmente, o cuneiforme foi usado para a escrita apenas da língua suméria. O sumério
é um idioma isolado, ou seja, que não possui parentesco conhecido com nenhum outro,
e aglutinativo, com formas verbais sendo formadas a partir da junção de múltiplas
sílabas fixas (POZZER, 1998).

Posteriormente, outros povos começaram a adotar o cuneiforme para escrever em seus


próprios idiomas, dentro e fora da Mesopotâmia. O acádio era o idioma que
compartilhou o espaço geográfico do sumério, e acabou por substituí-lo. Um idioma
semita, é relacionado ao árabe e hebraico modernos, e se dividia nos dialetos babilônico
ao sul e assírio ao norte (POZZER, 1998).

Inseridos na cultura suméria, inicialmente os escribas falantes do acádio escreveram


neste idioma, gerando uma tradição bilíngue que continuou até pouco antes de Cristo,
muito após o fim do sumério como idioma vivo (BOTTERÓ, 1992). Mais do que saber
escrever nas duas línguas, o bilinguismo significou a incorporação do sumério em meio
ao acádio escrito, por meio dos sumerogramas: a palavra era escrita em sumério, mas

113
lida em acádio. Finkel (2014) faz uma analogia moderna, que aqui adapto: quando
lemos “R$” sabemos que se pronuncia “real”. O sumerograma era utilizado de maneira
semelhante. A proximidade das duas tradições permite então que se fale em uma
literatura verdadeiramente sumero-acádia, que abarca os dois povos (FOSTER, 2005).
Utilizando esta escrita, os povos da Mesopotâmia compuseram centenas de obras. Estas
são atualmente agrupadas em diversos gêneros literários pelos estudiosos. Conhecemos
hinos, canções dedicadas a divindades; poemas épicos e mitológicos que narram feitos
de deuses e heróis; provérbios; debates, textos onde dois elementos, como Inverno e
Verão, disputam sua superioridade; e até mesmo contos populares e humorísticos, como
O Pobre de Nippur.

Estas classificações são úteis para o leitor moderno, mas os escritores da antiga
Mesopotâmia contavam também com suas próprias noções de gênero literário. O final
dos textos muitas vezes contava com um colofão, seção que identificava, entre outras
informações, o escriba responsável pelo tablete, a fonte usada para a cópia, o título da
obra (FINKEL, TAYLOR, 2015, p. 54) e, muitas vezes, sua classificação literária.

As obras eram geralmente categorizadas pela maneira que elas eram apresentadas: a
literatura mesopotâmica era principalmente cantada e acompanhada de música em
cerimônias reais e religiosas. Assim, o colofão podia incluir gêneros como šir-gida,
(“música longa”), ou tigi (música acompanhada de um instrumento do mesmo nome),
que não se conformam às classificações modernas (BLACK et al, 2004, p. 25).

Os povos da Mesopotâmia tinham consciência de sua própria tradição. Havia um grande


esforço para se preservar os escritos antigos, com o exemplo máximo sendo a biblioteca
de Nínive, arquitetada pelo rei Assurbanípal da Assíria, onde muitos dos textos
estudados hoje foram encontrados. A própria literatura já era, possivelmente, baseada na
preservação de uma tradição oral ainda mais antiga (AFANASIEVA, 1991, p. 135),
possibilidade evidenciada pelas múltiplas marcas de oralidade nos poemas, como a
repetição. O interesse pelas tradições se traduziu em uma tendência arcaizante na
literatura, refletida tanto em um vocabulário poético (BLACK et al, 2004, p. 23), como
também na produção de textos com sinais propositalmente antiquados (FINKEL,
TAYLOR, 2015).

Ademais, os antigos não almejavam apenas preservar sua literatura, como comentar e
interpretar estas obras, em geral a partir de uma perspectiva da divinação. Desta forma,
pode-se dizer que os mesopotâmicos já praticavam a exegese à sua maneira (FINKEL,
2004).

Na introdução à obra The Literature of Ancient Sumer (2004), os autores listam as


características que a literatura suméria possui em comum com a nossa. Os poemas
sumérios eram de natureza fictícia, mas verossímil nos detalhes; possuíam estrutura e
impacto emocional; possuíam intertextualidade e convenções próprias. As técnicas mais
marcantes desta literatura são o uso da repetição e do paralelismo, recurso onde as
repetições vão expandindo, contrastando, complementando ou especificando o verso. Os
jogos de palavras eram uma prática comum pelos autores e, diferentemente de hoje, o
trocadilho não era limitado a um contexto humorístico. Fórmulas e pares de palavras,

114
metáforas e símiles criativas eram acrescentadas para enriquecer as composições
(FOSTER, 2005).

Além destas composições de caráter artístico, filosófico e espiritual, os sumérios e


acádios também nos legaram diversos textos técnicos, detalhando práticas da medicina,
da divinação, da matemática, da astrologia e das leis, além de narrativas históricas.
Apesar de não contarem com um pensamento teórico-metodológico como o elaborado
em nossos dias, Botteró (1992) classifica a intelectualidade mesopotâmica como
verdadeiramente científica. Mesmo se a utilização deste termo para um povo tão antigo
não for unânime, deve-se notar que os sumérios e acádios contavam com uma produção
de conhecimento a partir da lógica, com o uso de dedução e indução, e uma busca por
explicar a natureza a partir destes princípios.

Seus esforços para conhecer o que existia de visível e invisível ao seu redor geraram
centenas de tabletes com interpretações dos mais diversos elementos da natureza para
elaborar previsões, desde órgãos de animais até sonhos (BOTTERÓ, 1992), além de
tratados médicos contendo diagnósticos, prognósticos e tratamentos para doenças e
ferimentos.

Os responsáveis pela composição e transmissão destas obras eram os escribas. Estes


profissionais eram essencialmente artesãos da escrita (CHARPIN, 2008, p. 66), que
contavam com uma larga área de atuação equivalente a múltiplas profissões modernas:
eles eram empregados na administração e no comércio, escreviam contratos,
testamentos, obras literárias, cartas e todos os tipos de documentos (POZZER, 1998). A
profissão de escriba era principalmente hereditária (CHARPIN, 2008, p. 61), mas não
exclusivamente, e filhos de outras profissões prestigiadas e abastadas podiam também
exercer a função (KRAMER, 1963). Apesar da maioria dos escribas serem homens, esta
profissão não era proibida para as mulheres, e existem diversos exemplos históricos e
até literários de mulheres escritoras, assim como de sua produção (CHARPIN, 2008, p.
50). A própria Nisaba, deusa da escrita, era uma divindade feminina, e a filha de Sargão
de Acádia, Enheduanna, é o primeiro indivíduo a compor poemas conhecido na História
(FINKEL, TAYLOR, 2015, p. 32).

Para exercer a função de escriba, era necessária uma educação adequada. A escola de
escribas era chamada de edubba, que significa literalmente “casa dos tabletes”
(POZZER, 1998). Os estudos se estendiam desde a infância até o início da idade adulta
(KRAMER, 1963). Os membros da escola seguiam uma classificação hierárquica
baseada em termos familiares: o professor era o “pai da escola”, seu assistente, o “irmão
mais velho” e os discípulos eram os “filhos da escola”.

A edubba, apesar de ter se originado anexada ao templo (LIVERANI, 2016), era secular
e privada. Os mestres eram pagos pela família de seus alunos, o que limitava a obtenção
da educação, possível apenas para aqueles de maiores recursos (KRAMER, 1963). A
falta de vestígios arqueológicos de prédios exclusivos para a educação pode indicar que
as escolas operavam nas casas dos professores (CHARPIN, 2008, p. 73) e, de fato, na
chamada casa F da escavação da cidade de Nibru, foram encontrados centenas de
tabletes escolares, assim como uma caixa para a reciclagem da argila, que indicam se
tratar de uma pequena escola (BLACK, 2004).

115
O ensino da escrita é tão antigo quanto sua invenção, e conhecem-se tabletes de
exercício do III milênio que contém listas de palavras, indicando um método de
aprendizagem por meio da repetição (CHARPIN, 2008). É no reinado de Šulgi, da III
dinastia de Ur, porém, que se consolidou a edubba como instituição a partir de reformas
educacionais efetuadas pelo rei, que trouxeram a homogeneização do ensino e da escrita
(LIVERANI, 2016). Os currículos escolares, com suas listas de palavras, eram
praticamente padronizados ao fim do período sumério (KRAMER, 1963, p. 233), e no
período Antigo Babilônico, já existiam até mesmo ementas primitivas, com listas de
textos e exercícios a serem utilizados nas aulas (CHARPIN, 2008, p. 83).

Escavações arqueológicas já encontraram uma grande quantidade de tabletes de prática


e exercícios dos alunos, que podem ser identificados por seu formato lenticular (oval),
diferentemente daqueles profissionais, de formato retangular. Ademais, principalmente
a partir do período Antigo Babilônico, foram compostos diversos textos narrando o dia-
a-dia dos estudantes e professores. A partir destes pode-se deduzir algumas
características deste sistema educacional.

Os alunos tinham vinte e quatro dias de aula e seis de folga no mês, e passavam o dia
nas escolas. Os aprendizes iniciavam seus estudos repetindo sinais cuneiformes:
primeiramente, sinais únicos, passando depois para listas de sílabas, como as chamadas
tu-ta-ti e nu-na-ni. Quando estas já haviam sido dominadas, os alunos começavam a
copiar repertórios de palavras – listas agrupadas por tema, como nomes de objetos em
madeira, roupas, ou alimentos – e listas com as múltiplas leituras de cada sinal
cuneiforme. Por fim, havia a cópia de textos, começando com modelos de documentos
jurídicos, comerciais e cartas e, finalmente, as obras literárias.

A educação não se limitava ao estudo da escrita e leitura. Para cumprirem todas suas
funções, os escribas também aprendiam na edubba a matemática, os padrões de pesos e
medidas, a música e o canto.

A disciplina nas escolas era dura. Os alunos deveriam se comunicar em sumério, mesmo
após este idioma parar de ser utilizado (CHARPIN, 2008), e a punição corporal era
amplamente empregada, como evidenciado por um texto intitulado pelo autor Samuel
Noah Kramer como Dias de Escola. Nesta composição, o aluno fala aos seus criados:

“- Tenho sede, dá-me água para beber; tenho fome, dá-me pão para comer; lava-me os
pés, faz-me a cama, que quero ir deitar-me. Acorda-me de manhã bem cedo, para eu não
chegar atrasado, senão, o professor vai me bater com a vara.” (POZZER, 1998, p.70)

Infelizmente para o aluno, ele acaba por ser golpeado com a vara por seu professor e
mais cinco monitores. O conflito nas escolas ocorria também entre os alunos, e uma
composição suméria narra a discussão entre dois estudantes, Enkimansi e Girnišag, que
insultam a capacidade do outro enquanto exaltam as suas próprias. Apesar de ser um
texto literário, ele pode ser tomado como um exemplo de um comportamento
competitivo que podia se desenvolver no contexto da edubba (KRAMER, 1963).

116
Ao final deste processo, possivelmente após uma composição final, como um trabalho
de conclusão de curso primitivo (CHARPIN, 2008, p. 86), o escriba estava finalmente
apto a prestar seus serviços como profissional. Mas resta a dúvida: quem leria seus
textos?

Tradicionalmente, considerou-se que a sociedade mesopotâmica era majoritariamente


iletrada, e que os leitores destes textos se resumiriam essencialmente a outros escribas e,
raramente, sacerdotes e comerciantes (CHARPIN, 2010). Assim, a maioria dos
indivíduos dependeria de escribas não apenas para compor contratos, cartas e outros
documentos, como também para lê-los em voz alta.

Charpin (2008; 2010) afirma, porém, que apesar da população letrada ser uma minoria,
ela era maior do que se poderia acreditar. Membros das elites como oficiais,
administradores, generais e reis também poderiam aprender a ler e a escrever, mesmo
que em um nível inferior ao dos escribas. Os assuntos, locais de descoberta e qualidade
de textos encontrados indicariam que estes teriam sido escritos por indivíduos
inexperientes, ao conterem diversos erros e tratarem de questões triviais.

Um exemplo é um tablete, atualmente exposto no Museu Britânico, que contém uma


queixa de um comprador chamado Nanni para o comerciante Ea-Nāşir a respeito da
baixa qualidade de cobre que o vendedor haveria entregado, além de sua falta de
respeito com o comprador e seu mensageiro (OPPENHEIM, 1967, p. 82). A grande
quantidade de metal negociado pelos dois indica que ambos comerciantes tinham
sucesso em seus negócios, o que é consistente com a afirmação de que a escrita era
difundida entre outros indivíduos abastados da Antiga Mesopotâmia, além dos escribas.
Charpin também argumenta que o aprendizado da escrita cuneiforme não se tratava de
uma tarefa tão difícil quanto se imagina. Ao contrário dos estudiosos de nossos dias,
que estudam mais de mil anos de sinais e variações na escrita, os povos antigos
precisavam apenas conhecer os sinais que circulavam em sua época e local. Aqueles
com um nível menor de conhecimento da escrita poderiam aprender, talvez, com suas
famílias (FINKEL, TAYLOR, 2015, p. 33).

No período Babilônico Antigo, são encontradas mais casas contendo tabletes do que não
os contendo. É provável que a alfabetização tenha atingido seu pico durante esta época e
a anterior, durante a III Dinastia de Ur (VAN KOPPEN, 2011, p. 141).

A leitura por prazer provavelmente não era praticada na sociedade mesopotâmica


(BLACK, 2004), com as obras literárias sendo primariamente apresentadas em forma do
canto, e a sua forma escrita, absorvida apenas pelos escribas. Porém, o que evidências
arqueológicas e textuais indicam, cada vez mais, é que a escrita era mais difundida na
Mesopotâmia do que anteriormente se acreditava, e que seus leitores, também, eram
mais diversos. Apesar de produzirem obras muito diferentes de nossa literatura
contemporânea, os escritores antigos tinham muitas das mesmas preocupações,
produzindo obras de valor artístico e cultural.

Referências
Maria Clara M. Hagen é graduada em História pela UFRGS e Mestranda em
Assiriologia pela Universidade de Leiden.

117
Nota: Este texto foi baseado no trabalho de conclusão de curso enviado à banca para
obtenção do diploma de Bacharel em História em janeiro de 2020.

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Karen; ROBSON, Eleanor (ed.). The Oxford Handbook of Cuneiform Culture. Oxford:
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118
FRAGMENTOS DO NACIONALISMO: A RELAÇÃO ENTRE
OS SELOS E A POLÍTICA OTOMANA DOS JOVENS
TURCOS (1908-1918)
Matheus Henrique da Silva Alcântara e José Otávio Aguiar
Declínio e Colonialismo, o destino do último império muçulmano?
O intervalo entre os séculos XIX e XX marca o período mais conturbado da história
otomana. Nele, foi possível observar o lento processo de desintegração do Império
Otomano pelas grandes potências imperialistas (Inglaterra, França e Rússia). A invasão
ao Egito pelo exército francês comandado por Napoleão Bonaparte em 1798 inaugurou
á era onde as potências europeias começaram a interferir diretamente no destino dos
Sultões em Constantinopla e no de seus súditos. Procurando inicialmente uma forma de
reorganizar as suas forças militares nos moldes europeus para impedir invasões
territoriais, os Sultões logo se viram cercados pela urgente necessidade de melhorar a
estrutura administrativa e econômica do Império. Fazendo com que se iniciasse um
processo de modernização da sociedade otomana, conhecido como Tanzimat (1839-
1876). Entre as décadas de 1860 e 1890 começaram a se formar uma comunidade de
funcionários públicos, professores, intelectuais, e oficiais militares formados nas
principais escolas e liceus construídos sobre os auspícios da “Era Tanzimat”. Indivíduos
instruídos incutidos pelo pensamento reformador passaram a galgar posto de prestígio
na administração otomana.

Conjuntamente, houve mudanças na superestrutura do Estado imperial otomano, dentre


os quais o Decreto Gulhane (édito imperial publicado 3 de novembro de 1839, que
declarava igualdade entre muçulmanos e não-muçulmanos no interior do Império) e a
Kanun-i Esasi (que pode ser traduzida como Lei Base/ Constituição, que foi proclamada
em 1876 pelo Sultão Abdülhamid II, e estabelecia a existência de um Parlamento
composto por duas Câmaras, posteriormente dissolvidos por ordem do Sultão), que
constituíram-se em tentativas de efetivar a igualdade jurídica entre otomanos
muçulmanos e outros povos, além de propor a representação da sociedade dentro do
Estado imperial.

Contudo, a infraestrutura continuou inalterada, pois apesar do aparente


desenvolvimento social e econômico em Constantinopla, o sistema financeiro e ramos
essenciais da produção como transportes, construção, comunicação e a exportação se
desenvolveram através do capital imperialista da Inglaterra, França e Alemanha
(Palmer, 2014; Frokin, 2008). Pois desde a crise financeira otomana de 1875, causada
pela quebra da bolsa de valores de Viena (Áustria), o Império Otomano ficou
impossibilitado de realizar os pagamentos dos inúmeros empréstimos contraídos na Era
Tanzimat. A crise financeira otomana iniciada no sultanato Abdullaziz perdurou até
1879, quando a Sublime Porta e os credores europeus assinaram um acordo, ratificado
pelo Sultão somente em 1887, por meio do Decreto de Mouharrem, cedendo o controle
sobre as fontes de renda do Império para o pagamento dos empréstimos. O decreto
outorgava a administração da dívida pública otomana pelos bancos europeus sediados
em Constantinopla (principalmente, franceses), além de ceder os lucros obtidos na
alfândega, e impostos sobre a seda, a pesca, tabaco, bebidas alcoólicas e selos postais
ficaram entregues ao monopólio estrangeiro (Mcmeekin; 2011). Relegando ao Império
Otomano o papel de fornecedor matérias-primas, e manufaturas de baixa tecnologia

119
circunscritas a região da Anatólia. Paralelamente, ao aparente processo de modernização
do Estado otomano é possível ver a sua desintegração territorial em prol dos interesses
imperialistas, da Inglaterra e Rússia que digladiavam pela supremacia econômica e
política na Europa.

Nos anos iniciais do século XX vimos o surgimento de uma propaganda pan-islâmica,


alicerçada em medidas administrativas centralizadoras pelo Sultão Abdülhamid II, que
procuravam soerguer a instituição do sultanato que vinha franco em declínio, devido
tanto a perca de prestígio pelo desmembramento territorial e frequentes golpes de
estado, quando pelo surgimento de um corpo burocratizado de funcionários públicos
tendo como símbolo a Sublime Porta (nome que designava os portões do palácio onde
ficavam localizada as sedes dos ministérios e a corte do Sultão). O que resultou no
surgimento de um nacionalismo otomano, mas especificadamente turco, entre a camada
intelectual de oficiais militares que passaram a constituir a oposição ao regime, sendo
identificados como “Jovens Turcos”. Com o aumento das medidas centralizadoras pelo
Sultão, e a pressão internacional das grandes potências em prol da política imperialista,
uma revolução eclode em 1908 no desgastado Império.

O fim do Sultanato e o início da monarquia constitucional


No final do século XIX, o Império Otomano havia perdido substancialmente seus
territórios na África e na Europa Oriental, primeiramente o Egito com a invasão
napoleônica que retirou o Cairo da esfera de influência política otomana (que embora
integrante do Império, possuía um governo autônomo que em 1888 passaria a compor
área de influência colonial britânico). Posteriormente a Grécia com a guerra da
independência entre 1821 a 1832. Além dos sucessivos confrontos com os russos
(Guerra da Crimeia 1853-1856, e a Guerra Russo-Turca 1877-1878) pelo domínio do
Balcãs, que terminar-se-iam com a criação dos estados independentes da Moldávia e
Valáquia (1856), Bulgária, Montenegro, Sérvia, e Bósnia Herzegovina pelo Tratado de
Berlim de 1878. Somado a isso havia os constantes levantes populares na capital
otomana (por exemplo, a Revolta dos Janízaros de 1826), bem como a rebeldia de
alguns governadores como Muhammud Ali e seu filho Ibrahim no Egito.

Temendo a percas de novos territórios para as grandes potências imperialistas, o Sultão


Abdülhamid II implementou um projeto de maior centralização politico-administrativa
sobre as regiões sobre seu domínio. Em 1861 a região do monte Líbano tornou-se uma
unidade administrativa especial, chamada de Mutassarriflik, governada diretamente pela
Sublime Porta, em 1888 foi á vez da região de Jerusalém. Bem como foi patrocinada
uma propaganda pan-islâmica encabeçada Sultão em prol de sua soberania como Califa
sobre os povos muçulmanos (Khatlab, 2015). O Império Otomano com o seu sistema
financeiro entregue ao capitalismo francês, e sobre constante ameaça militar russa e
inglesa, necessitava de uma grande potência capaz de fornecer apoio externo, e capital
para o desenvolvimento de uma infraestrutura capaz de consolidar os seus domínios na
região do Oriente Médio, é neste momento que se inicia o fortalecimento da influencia
prussiana na Sublime Porta.

Paralelamente ao projeto de centralização administrativa encabeçada pelo Sultão, um


nacionalismo otomano e turco começou a tomar forma através de um movimento da
juventude intelectual do Império, que ficou conhecido como “Jovens Turcos”. Uma elite

120
intelectual formada nas Academias Militares, na Escola de Serviço Público, no Liceu
Galatasaray e em outras instituições de ensino, formou o corpo político nacionalista de
contestação ao governo do Sultão, com forte organização na última década do século
XIX. Organizaram em fevereiro de 1902 e dezembro de 1907 congressos de exilados
políticos e oficiais militares, onde passaram a adotar o nome de Comitê de União e
Progresso – CUP (Ittihad ve Terakki Cemiyeti). Que incluía a Sociedade Otomana para
a Liberdade (Osmanli Hurriyet Cemiyeti) fundada pelo funcionário dos correios
otomanos, Mehmed Tallat, e o movimento secreto Pátria (Vatan) fundado por Mustafá
Kemal, ambos sediados em Salônica na Macedônia, território extremamente delicado
sobre domínio otomano nos Bálcãs. Deflagram uma rebelião em 1908, tendo como base
as fileiras militares do exército otomano estabelecido na Macedônia, que terminaria com
a deposição do Sultão Abdülhamid II e inauguraria a fase da monarquia constitucional
no Império Otomano.

Os acontecimentos do verão de 1908 na província macedônica do Império Otomano


espalharam um sentimento de revolta por toda região ocidental do império, congregando
entorno da CUP a elite militar e a setores da administração pública. Os insurgentes
defendiam o restabelecimento da Constituição de 1876, a reabertura do Meclis-i
Mebusan (Câmara dos Deputados), e a igualdade entre os diferentes povos que
habitavam o Império. Abdülhamid incapaz de conter o movimento publica uma ordem
imperial em 24 de julho de 1908, anunciando o retorno da Constituição de 1876. Em
sucessivos decretos imperiais determinaram a anistia dos prisioneiros e exilados
políticos, fim das prisões arbitrárias, igualdade de raça bem como de religião, concessão
de liberdade imprensa e direitos de associação política, e por fim uma reorganização
governamental, exemplificada pela convocação de um parlamento eleito (Palmer, 2014).

Estás medidas provocaram um clima de comoção interna e externamente no Império,


pois jornais turcos e a imprensa mundial publicavam artigos em seus periódicos
abordando o retorno da Constituição e a abertura de um governo democrático no antigo
Império Otomano. Nesse ínterim surgiram vários partidos para as disputas das eleições
de 1908, realizadas entre novembro e dezembro, entre eles a União Liberal Otomana
(Osmanli Ahrar Firkasi) e a própria CUP que passou a se organizar como partido
político para concorrer, tendo seus integrantes identificados com Unionistas. O
embaixador norte-americano Henry Morgenthau, que atuou junto a Sublime Porta em
Constantinopla (entre os anos de 1913 e 1916), apresenta em seu livro
biográfico/memorialista, “A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal
sobre um dos maiores genocídios do século XX” (1918), a conjuntura propagada pela
mídia impressa internacional:

“Antes de ir para a Turquia, eu tinha ideias muito diferentes sobre a organização. Já em


1908, lembro-me de ter lido notícias sobre a Turquia que agradavam fortemente minhas
convicções democráticas. Esses relatos me informavam que um grupo de jovens
revolucionários havia partido das montanhas da Macedônia, marchando sobre
Constantinopla, deposto o sanguinário sultão Abdul Hamid e estabelecido um sistema
constitucional. Os jornais nos contavam que a Turquia havia se tornado uma
democracia, com um Parlamento, um ministério responsável, sufrágio universal,
igualdade perante a lei para todos os cidadãos, liberdade de opinião e de imprensa, bem

121
como todos os elementos essenciais de uma comunidade livre e amante da liberdade”.
(MORGENTHAU, 2010, P. 20-21)

Esse clima de euforia e mudança culminou no afrouxamento da política administrativa


do Império, que ocasionou a perda definitiva territórios europeus nós quais exercia
“suserania nominal”, tais como Creta e Bulgária. Aliada as reformas sócias e culturais
pelas quais passava a sociedade otomana no linear do século XIX, em conjunto com
sucessivas perdas territoriais, fez surgir um pensamento conservador e muçulmano,
articulado entorno da Sociedade pela Unidade Islâmica. Sendo está por sua vez
responsável pela organização de passeatas no mês de abril de 1909, onde militares e
civis invadiram o Parlamento, clamando o retorno á autocracia imperial, que
prontamente recebeu apoio do Sultão. Tropas leais a CUP estacionadas na Macedônia,
comandadas pelo major Mustafa Kemal se dirigiram então para a capital para conter o
movimento contrarrevolucionário. Escaramuças de militares pró-Unionistas e setores
militares conservadores apoiados por civis, foram registradas nas ruas de
Constantinopla.

Em 27 de abril de 1909 integrantes do parlamento otomano conseguiram se reunir para


debater a crise política que se prolongava e ameaçava a segurança do Império. Nesta
reunião eles sancionaram a deposição do Sultão Abdulhamid, após sessenta e dois anos
de governo, bem como outras medidas para limitar o poder político do Sultão, sendo
retirada a capacidade de designar os ministros e os chefes das câmaras parlamentares,
bem como os funcionários do palácio, a suspensão do poder de veto em relação às leis
votadas. Para consolidar o poder político do parlamento, o Sultão deposto também foi
exilado na região de Salônica, onde os membros da CUP esperavam mantê-lo sobre
“controle”, sendo por fim substituído por Mehmed V.

Neste momento podemos ver os contornos políticos que governo otomano passou a
expressar sobre a administração dos Jovens Turcos. A substituição de um Sultão
autocrata por outro facilmente manipulável, pois devia sua ascensão ao trono aos
membros da CUP e, com poderes drasticamente limitados pelas reformas parlamentares,
assinalou a decadência da instituição do sultanato, que se viu cercado inimigos e podado
pela Constituição. Partindo da análise Louis Althusser, sobre o Estado e seus aparelhos
de dominação (Aparelhos Ideológicos do Estado, 1985), o Sultão bem como toda a elite
que gravitava entorno dos palácios se viu retirada do poder de seis séculos do aparelho
de estado imperial, por uma classe militar de intelectuais defensores de ideias
nacionalistas e liberais, que o transformou em aparelho ideológico do “novo Estado
imperial otomano” proporcionando certa margem de legalidade á monarquia
constitucionalista recém-instaurada.

O biênio de 1908-09 foi intensamente turbulento para o Império Otomano, e assim


como ocorrem na maioria das revoluções burguesas às transformações causaram não
queda do antigo regime, mas sua transfiguração. O Comitê de União e Progresso,
formado pela intelectualidade administrativa e militar beneficiada pelas reformas da era
Tanzimat, via-se no controle do aparelho do Estado imperial, enquanto que ao Sultão
ficaria relegada a função de aparelho ideológico do Estado subdividindo sua atuação em
três sistemas, política ao propor legalidade ao domínio da CUP, cultural por ser uma
instituição com séculos de história, e religiosa pelo fato do Sultão otomano possuir o

122
título Califa (a palavra califa designa o sucessor do profeta Maomé, pois quando o
profeta veio a falecer no ano de 632 d.C, a comunidade muçulmana escolheu seu
sucessor que passou a ser chamado de “Khalifat Rasul Allah”, o sucessor do Profeta de
Deus; deste modo, o califa ocupa a posição de líder temporal e espiritual da comunidade
islâmica, bem como defensor dos lugares sagrados, as cidades santas de Meca e
Medina). Contudo, nem todos os setores da sociedade otomana concordavam com a
reconfiguração política em voga, e isso será demonstrado na tentativa
contrarrevolucionária acima mencionada, e nos embates políticos que se seguiram que
abriram espaço para a criação de nacionalismos, entre eles o turco e o árabe.

Atrás das trincheiras: A política nacionalista otomana


Os anos após os eventos de 1908 não impediram a continua desagregação do Império
Otomano em nações independentes patrocinadas por potências europeias (Rússia, Itália
e Inglaterra). Em 29 de setembro de 1911 eclode a guerra ítalo-turca pelo domínio do
território líbio, que terminou em 1912 com a derrota otomana, e a anexação da Líbia á
área colonial italiana. No final de 1912 uma coligação de países balcânicos (Grécia,
Montenegro, Sérvia, e Bulgária) declara guerra ao Império, resultando na perda de
quase todo o território europeu que ainda pertencia aos otomanos, e culminando na
deflagração da Segunda Guerra dos Bálcãs (conflito onde a Bulgária volta-se contra
seus antigos aliados agora unidos com o Império Otomano). Somam-se ainda, as
contínuas revoltas internas nos territórios da Síria, Líbano, Albânia (sobre virtual
controle otomano), Arábia e Armênia.

Nos momentos finais da primeira guerra balcânica, mas especificamente em 23 de


janeiro de 1913, ocorre um golpe de estado articulado membros da CUP, que deferiu o
golpe final sobre o poder político do sultanato. Conhecido com o ataque a Sublime
Porta, ou em turco Bâb-i Âlî Baskini, foi segundo Palmer um “dramático episódio de
destaque na história dos Jovens Turcos” (2014, p. 217). Militares e políticos unionistas
invadiram a Sublime Porta, e adentram na sessão do Conselho de Ministros,
assassinando o general Nazim e exilando Mehmed Kamil (Ministro do Exterior),
Abdurrahman Bey (Ministro das Finanças) e Reşid Bey (Ministro dos Assuntos
Internos). Neste caso, a já fragilizada instituição do sultanato otomano torna-se um
império constitucionalista, que rapidamente declina para um triunvirato, formador por
Mehmed Tallat (Ministro do Interior), Ismail Enver (Ministro de Guerra), e Ahmed
Djemal (Chefe Militar de Constantinopla), apoiados por outros políticos unionistas
como Halil Bey (presidente da Câmara dos Deputados) e Mehmed Djavid (Ministro da
Fazenda).

No campo ideológico isso representou uma guinada para a construção de um


nacionalismo majoritariamente turco otomano dentro dos limites de um Império
multiétnico, multicultural, e multirracial. O que consequentemente acarretou a exclusão
de grupos minoritários do poder político, como armênios, árabes, entre que outros; que
inicialmente haviam aderido ao movimento político da CUP. O que pode ser percebido
nos dizeres de Eric J. Hobsbawm (1990, p.33), que “quanto mais esta (nação) se queria
una e indivisa mais a sua heterogeneidade interna criava problemas”.

O acarretou no rompimento definitivo dessas populações com o governo otomano, e


influenciou a formação de entidades secretas que apoiavam seus próprios projetos de

123
nação. Thomas Edward Lawrence, oficial militar britânico, que foi um dos participantes
da Revolta Árabe (1916-1918), esclarece em seu livro de memórias o panorama politico
que levou os árabes a se rebelar contra seus governantes otomanos:

“A Turquia, tomada turca para os turcos – Yeni-Turan – foi o grito de guerra. Mais
tarde, esta política deveria conduzi-lo ao resgate dos seus irredenti – que eram as
populações turcas submetidas á Rússia, na Ásia Central; mas antes de tudo, precisavam
limpar o império das raças subjugadas, porém incômodas, que vinham resistindo ao
padrão normativo. Os árabes, os maiores componentes estrangeiros da Turquia, deviam
ser liquidados imediatamente. De conformidade com este pensamento, os representantes
árabes foram expulsos, as sociedades árabes proibidas, e os árabes notáveis proscritos.
As manifestações árabes e o idioma árabe foram suprimidos pelo paxá Enver de
maneira muito mais enérgica do que o haviam sido por Abdul Hamid, antes dele”.
(LAWRENCE, 2006, p. 51)

O projeto nacionalista dirigido pelo triunvirato (Djemal, Tallat, e Enver) revelou-se uma
tentativa de estancar as perdas territoriais, com uma centralização administrativa e
ditatorial, que nos messes precedentes a Primeira Guerra Mundial alicerçou seu
alinhamento as Potências Centrais (Prússia e Áustria-Hungria).

Filatelia otomana um projeto político nacionalista


O Império Otomano no início da Primeira Guerra Mundial se constitui como um Estado
(no tradicional sentido marxista) que atuou por meio da repressão (perseguições,
torturas, exílios, etc), e dos aparelhos ideológicos do Estado Imperial (escolas, jornais, e
tribunais) para disseminar um pensamento nacionalista turco-otomano. Sendo um
desses aparelhos o sistema de correios otomano que passou a produzir, entre 1909-1918,
selos postais de teor nacionalista, procurando despertar o sentimento de pertencimento
ao Império e de lealdade ao Sultanato. Partindo dos estudos de Eduardo França Paiva
(2006), sobre a importância da imagem para a compreensão do processo histórico-
social, podemos inferir que os selos embora não representem fielmente o passado, pois
correspondem a fragmentos ideológicos do governo que os produziram. Contudo, por
serem fontes de uma riqueza impressionante, carregam “armadilhas” e “perigos” aos
quais o historiador deve sempre estar atento para evitar “anacronismos”, e, portanto, se
fez necessária uma apresentação sobre a instituição estatal, responsável pela produção
dessas imagens.

“A imagem, bela, simulacro da realidade, não é a realidade histórica em si, mas traz
porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas,
perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas”. (PAIVA, 2006, p. 18-
19)

Está instituição havia sido reconfigurada durante a era Tanzimat, para promover o
melhoramento da interligação entre as diferentes partes do Império. Em 23 de setembro
de 1840 passou por uma reorganização administrativa com o estabelecimento do
Ministério Postal sob o comando de Ahmet Şükrü Bey, submetido ao Ministério do
Comércio. Sendo aberta no mesmo ano em Constantinopla a primeira agência do
correios otomana. Em 1863, o Império Otomano passou a usar selos postais (sobre
administração de Agâh Efendi), em substituição ao antigo sistema de taxas sobre

124
correspondência onde o ônus ficava a cargo do destinatário, isso tornou o Império
Otomano o segundo estado independente a Ásia, a imprimir e utilizar selos. Em 1871, o
correio otomano passou a ser identificado como Ministério dos Correios e Telégrafos,
sendo submetido ao Ministério do Interior até a dissolução do governo otomano. Além
da agência oficial, outras nações possuíam sistemas postais independentes que atuavam
dentro do Império, como a Alemanha, Rússia, Grécia e Itália. Após o golpe de 1913, o
Ministério dos Correios e Telégrafos passou diretamente para às mãos do Ministro do
Interior Mehmed Tallat, que havia sido funcionários de baixo escalão do mesmo
ministério na província de Salônica (Palmer, 2013; Turkishpostalhistory, 2020).

Com o golpe de 1913, que colocou no poder o triunvirato ditatorial houve o crescimento
da propaganda nacionalista turco-otomana, tendo se expandido enormemente após a
entrada do país no conflito mundial; com apoio alemão, para a publicação e distribuição
de panfletos, cartazes, e livros por espiões para disseminar o ódio ao “inimigo cristão
infiel”. Sendo complementado com um amplo projeto de centralização administrativa
entorno da cúpula da CUP, e de tentativas de reavivar a força política do sultanato, na
figura de Mehmet V, despertando o sentimento de lealdade entre os súditos do Império
(McMeekin, 2011). Entre os anos de 1913 e 1918, foram lançados selos pelo correio
otomano com as mais diversas estampas representando o Sultão, a capital imperial
(Constantinopla), bem como a vitória militar mais significativa dos otomanos durante os
eventos da guerra mundial, que foi a Batalha de Galípoli em 1915 (onde os turcos
conseguiram impedir uma invasão de forças britânicas e francesas na península de
Galípoli); bem como representações das outras frentes de combate na guerra:

Figura 1: Mesquita do Sultão Ahmed, selo postal de 1913.


Fonte: Arquivo do autor.

125
Figura 2-3: Mesquita de Ortaköy e fotografia de Constantinopla, selo postal de 1916.
Fonte: Arquivo do autor.

Figura 4-6: A primeira representa o mapa da Península de Dardanelos/Galípoli com


setas apontando as forças militares envolvidas na batalha, e a segunda representa o
grandioso Palácio Dolmabanche, ambas dividem espaço com a figura do Sultão
Mehmed V. A última representa soltados turcos nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), selos postais de 1916-1918. Fonte: Arquivo do autor.

126
Partindo para a análise destes selos, é perceptível a tentativa por parte do governo da
CUP, de resgatar o que considerava e idealizava ser a “grandiosidade do passado
otomano”, e com isso despertar o sentimento de patriotismo/nacionalismo através dos
selos utilizados para a taxação das cartas, um dos meios de comunicação mais comuns
da época. Pois, de acordo com Eric Hobsbawm (1990), foi através da criação de uma
propaganda, que apresentava a guerra como “defensiva”, dirigida aos cidadãos/súditos
que os governos beligerantes esperavam despertar o sentimento de pertencimento a
nação:

“Contudo, é significativo que os governos beligerantes pediram apoio para a guerra não
simplesmente através do patriotismo cego e menos ainda com base na glória machista e
no heroísmo, mas através de uma propaganda dirigida fundamentalmente a civis e
cidadãos. (...) Todos apresentaram-na como uma ameaça, vinda do estrangeiro, aos
ganhos cívicos próprios de seu lado ou de seus países; todos aprenderam a apresentar
seus objetivos de guerra (embora de alguma forma inconsistentemente) não apenas
como a eliminação de tais ameaças, mas como, de alguma forma, a transformação social
do país, no interesse de seus cidadãos mais pobres (“lares de heróis”)”. (HOBSBAWM,
1990, p. 110)

A partir desta linha de pensamento, é possível compreender a representação das


mesquitas (símbolo de duplo significado, tanto religioso quanto político), do Palácio
Dolmabanche (sede da corte do Sultão), e da própria capital otomana, como símbolos
nacionais para os súditos otomanos, e que, portanto, eram passíveis de atrair o
sentimento de lealdade para com o Estado. Paralelamente, houve ainda a tentativa de
reafirmar a proeminência política do sultanato, com a representação de Mehmet V ao
lado do mapa da batalha de Galípoli, aliada a uma campanha política de consolidar o
Sultão como Califa e, desta forma, despertar o sentimento de pertencimento a uma
comunidade muçulmana global entre os súditos de outros impérios beligerantes
(McMeekin, 2011). Contudo, a tentativa de produzir um nacionalismo puramente turco
no interior de um Império multicultural, multiétnico, que comportava muitas religiões,
acarretou na produção de nacionalismos divergentes do estatal em diversas regiões,
conjuntamente com um dos maiores genocídios da história humana, o massacre dos
armênios (1915-1917) que segundo estimativas vitimou aproximadamente 800.000 mil -
1.800.000 de seres humanos (Palmer, 2013; Morgenthau, 2010)

Considerações Finais
No decorrer do século XIX, o Império Otomano perdeu grandes parcelas de seu
território, seja pela ação direta de grandes potências europeias, como Inglaterra e
Rússia, seja de forma indireta, quando estas apoiavam os movimentos de independência
das províncias sobre o controle otomano. Este fato demonstrou a necessidade de
modernizações administrativas e militares, que possibilitassem a sobrevivência do
estado otomano na era do desenvolvimento do capitalismo imperialista e liberal. Entre
1839 e 1876, reformas implementadas pelos Sultões permitiram o surgimento de uma
camada de intelectuais, burocratas e militares, que formaram o Comitê de União e
Progresso, e ficaram conhecidos como Jovens Turcos. Sendo responsáveis em 1908 por
um golpe de Estado que substituiu a autocracia do Sultanato por uma monarquia
constitucional, que por sua vez declina em 1913 em um triunvirato ditatorial (Tallat,
Djemal e Enver). Desta feita surge o nacionalismo otomano, na tentativa de despertar o

127
sentimento de pertencimento territorial dos turco-otomanos para com a região da
Anatólia, em paralelo com uma campanha de valorização da cultura otomana em
detrimento da cultura árabe. O que provocou a produção de selos com representações do
Sultão, da arquitetura e das construções públicas e religiosas da capital (Constantinopla)
e, após o inicio das hostilidades em 1914 (Primeira Guerra Mundial), a representação do
soldado otomano na frente de batalha. Fazendo desse modo que os selos atuassem na
disseminação de uma ideologia política, tendo como resultados o massacre de minorias
cristãs em todo o território otomano, especialmente na Anatólia Oriental (caso armênio)
e de minorias cristãs na costa ocidental da península arábica, gerando também em
contrapartida, o surgimento do nacionalismo árabe (Revolta Árabe, 1916-1918)
antagônico aos interesses otomanos. Todo esse processo, teve como resultado a derrota
e dissolução do Império Otomano em 1918, em várias nações independentes, enquanto
que outros territórios tornaram-se colônias das potências europeias vencedoras do
conflito mundial.

Referências
Matheus Henrique da Silva Alcântara é graduando em história da UFCG
José Otávio Aguiar é doutor em História da UFCG

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.


FROMKIN, David. Paz e guerra no Oriente Médio: a queda do Império Otomano e a
criação do Oriente Médio Moderno / David Fromkin; tradução de Teresa Dias Carneiro.
– Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade /
E. J. Hobsbawm; tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. – Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990.
KHATLAB, Roberto. As viagens de D. Pedro II: Oriente e África do Norte, 1871-1876
/ Roberto Khatlab. – São Paulo: Benvirá, 2015.
LAWRENCE, T. E. Os Sete Pilares da Sabedoria/ T. E. Lawrence; tradução de C.
Machado; prefácio de Fernando Monteiro. – 6ºed. – Rio de Janeiro: Record, 2016
MORGENTHAU, Henry (1856-1946). A história do embaixador Morgenthau: o
depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX / Henry
Morgenthau; tradução Marcello Lino. – São Paulo: Paz e Terra, 2010.
MCMEEKIN, Sean. O expresso Berlim-Bagdá: o Império Otomano e a tentativa da
Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 / Sean McMeekin; tradução Maria
Silvia Mourão Netto. – São Paulo: Globo, 2011.
SCHIAVON, Max. A frente oriental: do desastre de Dardanelos á vitória final, 1915-
1918 / Max Schiavon; tradução Marcelo Oliveira Lopes Serrano. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2017.
PAIVA, Eduardo França. História & Imagens / Eduardo França Paiva - 2.ed.- Belo
Horizonte: Autêntica, 2006. (Coleção História &... Reflexões)
PALMER, Alan. Declínio e Queda do Império Otomano / Alan Palmer; tradução
Gleuber Vieira. São Paulo: Globo, 2013.
SITES:
BÂBIÂLİ BASKINI, Balkan Harbi sırasında İttihatçılar tarafından gerçekleştirilen kanlı
hükümet darbesi (23 Ocak 1913). Islamansiklopedisi, 1991. Disponível em:
<https://islamansiklopedisi.org.tr/babiali-baskini>. Acesso: 15 mar. 2020.

128
OSMANLI İmparatorluğunda Posta Teşkilatı. Turkishpostalhistory, 2008. Disponível
em:<https://www.turkishpostalhistory.com/index.php/tr/m-articles/m-ottoman-empire/-
m-otto-postal-history/17-organization-of-ottoman-post>. Acesso: 15 mar. 2020.

129
PARA QUE O TEMPO NÃO APAGUE: AUTOBIOGRAFIAS NO
EGITO ANTIGO
Maura Regina Petruski
Foi a partir das primeiras décadas do século XIX que a leitura da escrita egípcia se
tornou possível, quando o francês Jean François Champollion anunciou ao mundo o
deciframento dos hieróglifos.

De origem grega, a expressão ta hieroglyphica, significa “as (letras) sagradas


esculpidas”, de onde vêm “hieroglífica” e “hieróglifos”. Para os egípcios, a escrita era
uma invenção de Toth, deus da sabedoria, que decidiu ensiná-la aos homens
contrariando uma ordem do deus Ra. O nome dado por eles à sua escrita era medju
netjer, ou literalmente, “palavras dos deuses” (COELHO, 2012, p.188).

A descoberta de Champollion mudou os rumos da história dessa cultura que a partir de


então, passou a ser conhecida e revelada por intermédio de suas próprias inscrições e
não somente pelo olhar dos estrangeiros como vinha sendo realizada durante milênios,
visto que seus inscritos salvaguardaram o pensamento, as crenças e os valores que
predominaram no seio dessa sociedade desde seus primórdios, fornecendo uma visão do
que antes era desconhecido.

O processo de deciframento teve desdobramentos na academia e encaminhou para a


criação de uma nova ciência, a Egiptologia, que se dedicaria para revelar panoramas do
que se passou na terra da esfinge e, a contar de então, muitos outros filólogos e
egiptólogos se debruçaram sobre as inscrições egípcias, possibilitando que passagens da
história dessa sociedade sofreram releituras, sendo que até a atualidade, o fascínio pela
linguagem escrita egípcia permanece, seja por parte de leigos quanto de estudiosos,
cujos mistérios que encantam o mundo a séculos (COELHO, 2012, p.189).

O alcance gerado com a decodificação representou muito mais do que apenas ler o que
os egípcios deixaram escrito ou observar as formas de composição dos sinais que
construíram, em virtude de que o efeito foi muito mais grandioso, pois ocasionou a
compreensão do significado do que ficou registrado, inserido no contexto da própria
história dessa sociedade.

Alicerçado nos novos estudos e de maneira gradativa, as estruturas textuais egípcias


foram sendo interpretadas, dentre as quais estão as autobiografias. Esse modelo de
registro que esteve presente desde o Reino Antigo, não era utilizado exclusivamente
pelos faraós, pois os achados indicam que sacerdotes, nobres e altos funcionários
também deixaram parte de suas vidas narradas nessa construção literária.

Em seu contexto, as autobiografias funerárias possuiam finalidades específicas,


evidenciando como os mortos continuavam influenciando aspectos da vida, uma espécie
códigos para o enaltecimento das boas qualidades do morto e a preservação destas para
a eternidade. A narrativa toma certos episódios biográficos do sujeito e os ordena de
forma a ser o relato de uma vida cheia de glórias, mostrando que o sujeito merece uma
boa pós-vida e, ao mesmo tempo, criando ritualisticamente esta realidade (BALÈM,
2017, p.21).

130
Os escritos nesse gênero presentes em pedras, papiros ou tijolos, são importantes fontes
históricas que trazem à tona contextos específicos e muitas vezes marcantes dessa
civilização, além de permitirem que nos aproximemos da forma de pensar dos egípcios
antigos, mesmo que de forma parcial e fragmentada, bem como ilustram a conhecer a
maneira como compreendiam o mundo ao seu redor.

Do ponto de vista historiográfico, pode-se dizer que o gênero biográfico voltou a ganhar
e compor a escrita da História na primeira metade do século XX, quando teve início a
renovação do campo da História Política que passou a ser produzida seguindo novos
pressupostos, se efetivando como paradigma, recuperando espaço na produção dos
historiadores.

Sob essa perspectiva de escrita Le Goff escreveu que “a biografia histórica nova, sem
reduzir as grandes personagens a uma explicação sociológica, esclarece-as pelas
estruturas e estuda-as através de suas funções e papéis” (1990, p. 7- 8).

Autobiografia: a minha história


Para os egípcios os escritos autobiográficos eram materiais singulares, especialmente
porque estavam ligados a perspectiva de suas crenças mortuárias. E, exatamente devido
a essa correspondência, deveriam ficar salvaguardados em locais que remetessem a
imortalidade, dessa forma, a tumba que abrigaria o corpo do biografado, seria o local
mais adequado para ser o depositário da composição.

De regra geral, esses textos não eram para alcançarem os olhos do público, sendo
colocados próximo a porta de entrada do complexo mortuário, posto que anunciariam
quem era a pessoa que habitava àquele espaço. Quanto à forma de escritura,
estatisticamente é possível afirmar que prevaleciam em maior número o método da
pintura na parede ao entalhe na pedra e, independentemente de qual fosse o mecanismo
escolhido, era através delas que se oportunizava conhecer como os moradores da terra
das pirâmides desejaram imortalizar sua história, abrindo caminho para a eternidade.

Andrea Gnirs, ao analisar o conteúdo desse estilo de escrita egípcia, classifica-as em


quatro categorias: as históricas, que foram comuns durante os Reinos Antigo e Novo,
que relatam grandes feitos dos sujeitos e suas recompensas, e justamente devido a isso é
que esses indivíduos conseguiram obter promoções e acumularam riquezas; as
reflexivas, mais populares no período do Reino Antigo, tematizam as regras éticas da
elite e acabavam sendo considerados textos de sabedoria. Outro grupo eram as
confessionais, vista como uma forma de autobiografia reflexiva com a introdução de
novos elementos religiosos criadas a partir do Reino Novo, atribuindo as mudanças na
vida do sujeito como consequência da intervenção do rei ou dos deuses; e, a última, as
encomiásticas, mais comuns durante os Reinos Médio e Novo, que evocam temas de
status social e sucesso profissional, além de mostrarem forte senso de iniciativa pessoal,
referências diferentes das produzidas no Reino Antigo, período que expressavam maior
dependência do rei ( 2001, p.23).

Apesar de distintas quanto formato e propósitos, é possível identificar algumas


referências que predominaram na estrutura da construção do corpus das autobiografias,
podendo serem consideradas como denominadores comuns nessa documentação. A

131
redação era construída na primeira pessoa do singular, sendo que o texto era composto
dentro de três ordens: primeiramente, era mencionado o nome do indivíduo
autobiografado recebendo destaque na parte mais elevada do conjunto do documento;
em seguida, apontava-se os títulos honoríficos recebidos ao longo da vida e, por fim, a
descrição dos relatos dos acontecimentos selecionados para permanecerem vivos. No
tocante a última parte, que de certa forma era a mais densa, é possível afirmar que são
parcelas e recortes de uma existência que normalmente não são reportados de forma
cronológica e sequencial, como também os assuntos não estavam interligados uns com
os outros.

Correlacionado a ordem sequencial mencionada acima, Maria Thereza assim escreveu:

“As autobiografias foram esculpidas nas tumbas de altos funcionários da administração


egípcia com o fito de evocar suas personalidades. Escritas sob a forma de narrativa, as
autobiografias são precedidas por uma fórmula funerária (normalmente a htp-di-nsw,
que significa ‘uma oferenda que o rei faz’), a qual vem acompanhada de um rol de
titularidades que supostamente correspondem a funções exercidas por essas pessoas.
Depois segue a descrição de atos realizados pelo falecido em vida, inscrições que
tinham como objetivo facilitar a entrada dessa pessoa no outro mundo, a exemplo do
encantamento 575 dos Textos dos Sarcófagos (‘eu desejo triunfar graças ao que eu fiz’)
(JOÃO, 2015, p.80)”.

Associado à escolha dos temas escolhidos para ficarem imortalizados, por certo eram
particularizados e, sem sombra de dúvidas, classificados como mais marcantes para
àqueles que os viveram, visto que foram selecionados para estarem compondo o
conjunto da obra. Em relação a esse aspecto, Giovanni Levi (1996, p.173), afirma que a
biografia possibilita responder questionamentos a respeito de “como os indivíduos se
definem (conscientemente ou não) em relação ao grupo ou se reconhecem numa classe”.

Ademais, também podem ser lidos da maneira como os biografados desejavam ser
enxergados, quando a subjetividade se fazia presente em relação a forma como o
acontecimento foi narrado, havendo intencionalidade e parcialidade em sua narração.
Tal colocação parte do princípio de que esse tipo de relato não foi construído em vão,
pois por traz do que está escrito existem motivações que levaram sua execução e que
dificilmente está explicitado.

Murillo, citando Edward Said (2005), coloca que as narrativas escritas são moldadas
pelos acontecimentos da época e pela situação que se está vivenciando. Sendo assim, o
sentido histórico permite que o escritor escreva consciente de seu lugar no espaço e no
tempo. Ao narrar, o escritor transmite todas as suas experiências, assim, seus escritos
são influenciados por todos os acontecimentos vivenciados no passado. Nesse sentido,
as narrativas biográficas devem ser analisadas relacionando-as ao contexto histórico no
qual o escritor está inserido.

Examinando o conteúdo dos textos autobiográficos é possível observar que eles


contribuem para juntar as peças de uma história, de proporcionarem a realização do
entrecruzamento de vidas, bem como referências a determinados períodos da história da

132
sociedade, sejam eles momentos de turbulência quanto de calmarias, prosperidade e
decadência.

Quanto aos responsáveis por imortalizar esses textos quase nada se sabe quem foram
eles, visto que nenhuma identificação foi encontrada, mas, tudo leva a crer que não
foram feitas a próprio punho dos nominados, e que os registradores assumiam uma
competência de caráter técnico na execução, em virtude de que ler e escrever eram
práticas restritas nessa sociedade, somente uma parcela pequena tinham acesso.

Todavia, como não é possível saber quando o final da vida terrena vai acontecer, alguns
moradores da terra do Nilo deixavam a incumbência de que fosse produzido o material
biográfico pós-morte, como forma de manutenção de sua existência. Já uma outra
parcela, quando atingiam certa idade, se dedicavam a efetivar tais escritos, assim,
algumas dessas obras foram produzidas próximas ao final da vida dos autobiografados.

Talvez, devido a esse dado apresentado acima, é que não é difícil encontrarmos
referências de estudiosos que questionam a veracidade de alguns dos conteúdos das
autobiografias, colocando em dúvida se algumas das informações citadas foram
acontecimentos vivenciados pelos titulares, ou se o que está sendo apresentado foi algo
que eles gostariam que tivesse ocorrido como mencionado. Essa interpretação que gera
dubialidade além de estar relacionada a linha tênue que delimita o que podemos chamar
de fronteira imaginária idealizada a partir da crença funerária, soma-se ao fato de que
terceiros podem construir parte da narrativa.

Maria Thereza David João, foi uma pesquisadora que evidenciou em seu trabalho a
perspectiva da possibilidade da utilização da ideia de fronteira imaginária. A autora,
analisou três textos autobiográficos do Reino Antigo e afirmou que “justamente em
virtude do propósito a ser atingido, esses textos apresentam um relato de homem ideal,
muito mais que um espelho fiel da realidade.” (2015, p.54). Esse encaminhamento de
análise elucidado pela autora, pode ser observado quando se faz o cruzamento das
informações com outras tipologias de fontes, visto que constantemente novos
descobrimentos estão aclarando a história dessa sociedade.

Contudo, independente das questões relativas ao que o texto possa informar quanto ao
conteúdo, outro elemento que pode ser exposto em relação a essa forma de escrita é que
as ‘inscrições autobiográficas que foram encontradas em muitas delas deram os
primeiros passos para o surgimento de um tipo de literatura no Antigo Egito. O elencar
dos títulos do morto, junto com alguns elementos narrativos é o que deu origem ao
gênero das autobiografias funerárias. Seu formato não era tão ritualizado como as
fórmulas de oferendas, deixando espaço para a criação. Elas se tornaram um importante
gênero literário por milênios” (JOÃO, 2015, p.55).

Vale mencionar que como primeiro propósito, da utilização da estrutura de escrita


estava atrelada a perspectiva política e econômica, sendo que somente mais tarde é que
passou a estar relacionada a outros fins, como o religioso e o social, por exemplo.

Por fim, para concluirmos a reflexão sobre as autobiografias produzidas em território


egípcio na antiguidade, afirmamos que são importante fonte de reflexão histórica,

133
expressão de uma cultura que permite conhecer um pouco do pensamento dessa
sociedade.

Referências
Maura Petruski é Doutora em História UEPG.

BALÉM, Wellington Rafael. Weni, o Velho: o problema de uma (auto)biografia


egípcia no reino antigo tardio. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, 2017.
GNIRS, Andrea M. Biographies. In. REDFORD, Donald B. (ed.). The Oxford
Encycopledia of Ancient Egypt. New York: Oxford University Press, 2001. v.1.
COELHO, Liliane Cristina. Hieróglifos e Aulas de História: Uma Análise da Escrita
Egípcia Antiga em Livros Paradidáticos. Revista Mundo Antigo – Ano I – Volume I
– Junho – 2012.
JOÃO, Maria Thereza David. Estado e elites locais no Egito no final do III milênio
aC. Tese de Doutorado. São Paulo, 2015.
LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
LEVI, Giovani. Usos da Biografia. In: AMADO, J. FERREIRA, M. M. Usos e abusos
da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
MURILLO, Aline Lopes. O uso das biografias nas pesquisas antropológicas. Revista
Perspectivas Sociais Pelotas, Ano 2, N. 1, p. 2-10, março/2013.

134
ENTRE OS SÁBIOS, A BELEZA
‫ ألحسن‬,‫مع ألحكماء‬
Rafael Maynart
Para tentar compreender uma estética voltada para o campo da natureza da harmonia e
da noção de beleza na tradição árabe islâmica tomamos por referência o conteúdo dos
textos de Al-Kindi, em uma sucinta aproximação com algumas de suas reflexões que
rondam a formação conceitual das qualidades essenciais das coisas e do universo.
Nutrido de influências matemáticas o filósofo discorre detalhadamente em seus escritos,
animado por uma orientação mu’tazilita com forte inclinação científica, cercando tudo
em busca do dhat, de onde tudo emana. A busca por elucidar o mistério do Uno no
múltiplo revela muito do repertório notadamente islâmico de uma visão da realidade que
se empenhava em produzir uma cultura intelectual com bases na perfeição do próprio
texto sagrado, a referência máxima por excelência, Diz ele:

“Na verdade o que há na existência são duas existências: existência sensível e existência
intelectual, na medida em que as coisas são universais e particulares.” [Al-Kindi, cap. 2]

Ocupado dessa busca pela característica essencial no mundo visível e invisível, o


filósofo abássida investiga, sob influências corânicas, as questões ligadas à percepção
do sensível e inteligível, e da natureza das ideias. Esse esforço intelectual está
intimamente vinculado com tudo o que se seguiu em termos de uma tradição islâmica
da estética nas artes visuais e nas artes dos discursos, irrigadas interiormente também
pelo conceito de ‘unidade na multiplicidade’. Uma melhor elucidação conceitual da
questão pode-se notar em Al-Kindi quando ele diz:

“A causa da qual procede a origem do movimento – refiro-me ao motor – é o agente.


Assim, o “verdadeiramente um primordial” é, então, causa da origem do movimento de
identitização – isto é, das paixões –, sendo, portanto o criador de todos os identitizados.
Portanto, visto que não há identidade a não ser por aquilo que nela procede o “um”, em
que a unicidade deste é a indetitização daqueles, então a unidade é a estrutura do todo.”
[Al-Kindi, cap. 3]

O filósofo muçulmano nos mostra como uma busca pela qualidade essencial das coisas
no universo em perspectiva da grandeza e da causa e efeito deste mesmo é a base para
toda uma herança cultural sobre a qual correntes de pensamento e práticas viriam a se
desdobrar. O reflexo deste pensamento na literatura e nas artes demonstraram como o
pensamento islâmico mesmo foi capaz de produzir multiplicidade em sua unidade. A
pesquisadora Gülru Necypoglu detalhou uma parte dos estudiosos árabes do passado
que se debruçaram sobre as ciências da natureza, da filosofia e da religião e produziram
muito daquilo que formou uma grande biblioteca canônica, de onde partiram muitos dos
sábios e artistas. Tal qual Al-Haytham que com seu livro sobre percepção física e
psicológica da luz e das formas, muito contribuiu com o legado artístico, da caligrafia às
artes da palavra e ciências naturais.

Necypoglu demonstra através de Al-Haytham que a questão de gosto (dhawq) no


pensamento árabe medieval está ligada tanto à arte (fann) quanto às artesanias (sina’at).

135
Em quaisquer casos, fosse na literatura religiosa, filosófica ou pintura, arquitetura ou
música, o padrão formativo do gosto depende de conceitos fundamentais ligados a
percepção, sendo estes: posição (ta’lif) e proporção (tanasub). A ideia de beleza (husn)
presente na teoria visual de Al-Haytham é alicerçada em categorias abstratas, não sendo
absoluta em si mesma mas uma interação entre estas propriedades, a saber: luz, cor,
distancia, posição, solidez, forma, tamanho, separação, continuidade, movimento,
descanso, número, rugosidade, suavidade, transparência, opacidade, sombra, contraste,
beleza, feiura, semelhança e dessemelhança. Dizia ele:

“A proporcionalidade sozinha pode produzir beleza, desde que os órgãos não sejam
feios em si, embora não sejam perfeitos em sua beleza. Assim, quando uma forma
combina a beleza das formas de todas as suas partes e a beleza de suas magnitudes e sua
composição e a proporcionalidade de peças em relação à forma, tamanho, posição e
todas as outras propriedades exigidas por proporcionalidade e, além disso, quando os
órgãos são proporcionais à forma e o tamanho do rosto como um todo - isso é beleza
perfeita.” [Necypoglu, Cap.10]

Ou quando ele também se refere à beleza produzida meramente pelo aparecimento da


cor aos olhos: “Encantar o observador e agradar aos olhos.” [Necypoglu, Cap.10]

Os conceitos de uma beleza essencial colocados por Al-Haytham também estão


presentes nos conceitos islâmicos de folheado (tawriq) e oculto (tastir), que se
alimentam na mesma fonte da qual parte Al-Kindi, de uma beleza sensível próxima da
materialidade do mundo e uma beleza intermediária, superior, entre o mundo e o Uno.
Visto que a geometria ocupa um status moral diante das artes matemáticas ainda mais
alta, a noção de formas originárias e perfeitas sustenta que tudo o que provem de uma
beleza estrutural contem em si as qualidades discursivas de um intermédio entre o
mundo sensível e o intelectual. Deste modo, as meditações nas formas de muqarnas e
musharabya podem ser compreendidas não como meros recursos decorativos, mas como
citações numéricas diretas a versos do alcorão ou valores atribuídos aos números em
pontas de estrelas, números de folhas de uma amêndoa esmaltada num conjunto de
azulejos ou número de arcos sobre um mihrab.

Para além destes dois há também os conceitos, expostos pelo professor de arquitetura e
arte árabe Nasser Rabbat, dos textos de Al-Maqrizi, ‘ajib e gharib. Tendo a qualidade de
ser um derivado do outro, talvez sendo uma elevação dos dois anteriores. Nasser
comenta a escassez de um vocabulário expressamente visual para os intelectuais
tratarem dos temas ligados as artes da pintura. Entre um grupo de autores e historiadores
fatímidas no reinado mameluco do Egito, o par de termos aparece em contextos ligados
a outros campos de conhecimento, como a descrição de espécies de animais e vegetais e
também nos atributos sagrados de fontes religiosas. Diz Rabbat:

“Mesmo os termos ostensivamente técnicos frequentemente usados para relatar


qualquer pintura, 'ajib e seu análogo gharib, parecem não ter sido baseados na percepção
visual ou vocabulário artístico. Ambos eram provavelmente emprestados ou apropriados
de categorias literárias cujas elaboradas discussões formaram a base de pelo menos dois
gêneros, um em 'Ilm e um em Adab - que eram particularmente comuns no período
medieval.” [Rabbat, 2006]

136
A ciência filosófica do hakim (‘Ilm) e a ciência religiosa do Imam (Adab) diferenciam o
teor de cada um dos termos, sendo ‘ajib palavra relativa a ‘maravilhas’ e gharib relativa
a ‘singularidades’; o primeiro ligado ao mundo sensível, experienciável, o segundo,
àquilo que não pode ser descrito com palavras, espiritualizado. Estes conceitos são
pertinentes quando se faz necessário compreender de que forma as artes eram
concebidas e apreciadas em seu tempo, e também que natureza sensível esses vocábulos
e descrições deixaram para os séculos futuros. Na literatura árabe do século onze muito
se utilizava dos conceitos fundamentais das tradições pré-islâmicas em conjunto das
reivindicações muçulmanas de qualidades estéticas para uma boa escrita e uma boa
leitura. É sabido que toda uma exigência se forma entre artistas, especialistas e
apreciadores que reconhecem o estatuto das artes não apenas pela concepção de objetos
ou obras, mas também pela experiência das mesmas. Al-Ma’arri conhecia os cânones da
escrita clássica e fazia uso das métricas que dispunham dos mesmos fundamentos da
exploração geométrica dos astrônomos e filósofos.

Al-Ma’arri foi um dos poetas árabes abássidas que talvez mais tenha se aproximado de
uma síntese estética entre as categorias esmiuçadas por Al-kindi em tudo o que ronda o
testemunho do mundo e a experiência superior em sua essência; o gosto amargo na voz
Abu l-Ala Al-Ma’arri aparece, como dito por Mansour Chalita, como uma verdadeira
‘estética da vida’. Sua carga existencial para tratar de temas como incredulidade,
angústia diante do mundo e pessimismo no tempo, convertem a beleza das estrofes
composta em métricas canônicas em uma inovação inesperada quando confrontadas
com seus temas; nunca sem deixar de lado a ambiência islâmica em que se
compuseram. A representação poética, discursiva, do mundo aos seus passos encontram
a geometria estrutural da língua árabe e dos modelos poéticos de seu tempo. A beleza, a
proporção, o oculto, o mundano, estão todos expressos em seus versos. Dizia Al-
Ma’arri:

“Não prenda os pássaros, em sua ignorância, colocando armadilhas


Pois a opressão é o mal do abominável,
E deixe o mel e as abelhas para as quais as plantas aromáticas se abrem
Bem, eles não o produzem para outros nem o fazem para distribuí-lo.
Eu lavei minhas mãos de tudo isso.
Gostaria de ter notado antes de minhas têmporas ficarem cinza”

137
Fonte: ISLÃ: Arte e Civilização / Rio de Janeiro, RJ: Centro Cultural Banco do Brasil,
2011

A imagem de uma tábua de escrever revela a confluência dos critérios citados sobre a
beleza estética na produção visual e literária islâmica. Em um único objeto há as artes
da caligrafia, da pintura folhada tawriq, a estrutura geométrica do tastir , posição ta’lif,
proporção tanasub, harmonia cromática i’tilaf, uma expressão do gharib por seu caráter
espiritual, a maravilha do ‘ajib em formas naturais, sem deixar de lado o puro elogio da
escrita e da língua árabe; a língua do Livro revelado, da recitação do Profeta, tal qual o
Al-Quran Al-Karim onde letras soltas adornam os versos das suras. A expressão visual
conversa com a poesia citada de Al-Ma’arri quando notamos que o poeta fez uso dos
mesmos padrões para trazer sua fala: a construção matemática de estrofes, a expressão
natural do mundo descrito, assim como um grau de piedade para com os animais, uma
carga oculta do tempo universal em tom angustioso, os contrastes das cores do cabelo
grisalho no tempo humano com a beleza a cargo imaginativo de flores e pássaros. O
poeta cego não fez uso dos olhos para produzir uma arte tal qual a do pintor: ambos
beberam do mesmo poço.

Al-Ma’arri também usou de seu estilo poético, caracterizado pela dureza com os
homens e com o mundo terreno, para revelar conhecimento da própria qualidade da
visão como sentido de percepção de belezas e prazeres, em um de seus versos diz:

“Homens de mente aguda me chamam de asceta,


Mas eles estão errados em seus diagnóstico.
Apesar de disciplinar meus desejos,
Eu apenas abandonei o mundo de prazer
Porque o melhor desses se afastou de mim.”

Não apenas descrições naturalistas do mundo físico eram matéria de suas indagações,
mas também questões elevadas e de profunda abstração. Isso evidencia em apenas
poucas linhas como a dualidade presente na tradição islâmica estivera ativa entre estes
pensadores. A noção dualista é também afirmativa da busca do Uno na multiplicidade: o
pensamento e as artes abstratas não são coisa diferente do pensamento e das artes

138
figurativas ou descritivas, são partes de um mesmo todo. Nem tanto duas faces de uma
moeda, mas duas qualidades em uma mesma face de onde uma essência emana em
todas as formas. A morte, o tempo, a angústia, a sensação de duração no espaço físico,
frequentam tanto Rumi como o poeta de Ma’ara.

Fica expresso nesse breve caminho por conceitos da arte islâmica que tanto Al-Kindi
como Al-Ma’arri, ambos intelectuais da chamada era de ouro do islã, tomaram por
vocabulário algumas das bases culturais nas quais estavam imersos. Al-Ma’arri
frequentava círculos de eruditos mu’tazilitas e foi ao mesmo tempo indivíduo que
circulou entre imãs e representantes de tradições de seu tempo. Sua formação está
carregada de forte influência dos sábios muçulmanos, assim como também ele
influenciou muitos dos que viriam posteriormente. Pode-se perceber que a passagem do
conhecimento e a consolidação dos elementos para uma arte árabe-muçulmana sempre
esteve em profusão. Um verso livre corria entre as pessoas dizendo “sua poesia é como
sufismo, oculta e clara ao mesmo tempo.”

Pensando uma curadoria decolonial esta breve investigação busca entender como é
possível tratar de objetos que correspondem a critérios conceptivos e valorativos
diferentes daqueles aos quais estamos habituados no pensamento ocidental voltado para
sua estética própria. O presente texto trata de uma pequena parte de um trabalho em
andamento onde busca-se fazer corretas leituras de objetos da cultura islâmica em
comparativo com as apropriações pelo ocidente através de assimilações e distorções de
função e matéria de certas características estruturais. A chamada arte orientalista muito
saturou os sentidos dos observadores de determinados aspectos reduzidos à meras
formas, não apenas causando uma vista míope das artes árabes e islâmicas, mas também
deslocando contextos e até mesmo esvaziando objetos de suas cargas formativas. A
tarefa do presente é regressar. Como fazem os sufis: lembrar.

Referências
Rafael Maynart: Aluno do curso de História da Arte na UFRJ e curador independente.
Sobre a Filosofia Primeira: Al-Kindi / Tradução: Miguel Attie Filho. São Paulo - SP.
Edição do Autor, 2014.
DEL RIO, José Ramírez: Tiempo, Muerte y Dolor en Al-Ma’arri. Optika Editorial,
Sevilla, 2013.
HOQUE, Azmal: A Study on Blind Poets in Abbasid Period 750 to 1258 AD.
Disponível em: http://hdl.handle.net/10603/115197
NECYPOGLU, Gülru: The Topkapi Scroll: Geometry and Ornament in Islamic
Architecture. The Getty Center for the History of Art and Humanities, Santa Monica,
1995.
RABBAT, Nasser: ‘Ajib and Gharib: Artistics Perception on Medieval Arabic Sources.
Medieval History Journal, London, 2006.

139
A CERVEJA, A PROSTITUTA E A DEUSA: ENCONTROS NA
TABERNA DA ANTIGA MESOPOTÂMIA
Simone Aparecida Dupla
Na Antiga Mesopotâmia, sexo e bebida encontram-se tanto na esfera do sagrado quanto
do profano. Ligada ao mundo dos deuses, por meio de libações, rituais e até mesmo no
seu processo de produção, a cerveja fez parte durante muito tempo, exclusivamente, do
universo feminino, visto que eram as mulheres que exerciam a profissão de cervejeira
dentro da sociedade.

Esse processo de produção feminino era orientado pela deusa da cerveja, Ninkasi, mas
com o passar do tempo foi se transformado em uma atividade masculina, principalmente
a partir o período de Ur III [2112-2004 AEC], quando os homens se especializaram na
fabricação externa da cerveja.

Também eram as mulheres que gerenciavam a taberna, em muitos casos não apenas a
taberna enquanto lugar de bebida e alegria [bīt sābīti, literalmente “casa da taberneira”,
em acádio], como também aquele da pousada [aštammu/eŝtemme], a taberneira fornecia
“comida, bebida e às vezes uma cama para dormir” [VOLKONEN, 2014, p. 19].

Como lugar de encontro, recebia pessoas de diversos segmentos sociais e gêneros.


Assim, prostitutas, sacerdotisas, mulheres de estatuto sexual livre ou compromissadas,
travestis, homoafetivos e homens de muitas estirpes, frequentavam esse local, a taberna
apresentava-se como espaço de trânsito e tramas que se entrecruzavam nas ruas e ruelas
das cidades mesopotâmicas.

Como espaço impreciso do público e do privado, ocorreram em alguns momentos,


tentativas de sansões e regras aplicadas tanto a sua clientela quanto aqueles que a
gerenciavam. No tempo de Hamurapi [1792-1750 AEC], por exemplo, houve proibições
das mulheres “direitas”, principalmente as consagradas a alguma divindade, de
frequentarem e serem proprietárias de tabernas [STOL, 2016, p. 365].

Martin Stol [2016] acredita que a justificativa de pena capital para quem fraudasse tal
lei se refere à quebra de tabu religioso, não a questões econômicas. No entanto, tal lei,
não se refere às sacerdotisas e devotas da deusa Inanna/Ištar, visto que seria estranho
que estas não pudessem estar em um local que sua divindade esteve relacionada.

Inanna foi a divindade mais influente das culturas mesopotâmicas. Sua personalidade
multifacetada a permitia transitar por diversas esferas e influenciar inumeráveis aspectos
da vida dos habitantes do Kalam [como os mesopotâmicos denominavam seu território].
Esteve voltada às questões do cotidiano, relações carnais, assuntos bélicos e jurídicos,
deusa do amor e da guerra como ficou conhecida pelos historiadores clássicos, essa
divindade submeteu reis e deuses à sua vontade.

Ela também pode ser apresentada como a mais amada entre as divindades, ao mesmo
tempo em que é caracterizada como mais complexa que os demais deuses do panteão
mesopotâmico, uma vez que ao contrário de seus pares, não tinha uma esfera de atuação

140
fechada como, por exemplo, Ereshkigal, voltada apenas ao mundo dos mortos ou Enki
relacionado à sabedoria e aos conselhos.

Entre os espaços ocupados, apropriados e frequentados pela divindade, encontramos a


taberna, com a qual ela possui relações estreitas. É na taberna também, mas não
somente nela, que percebemos sua aproximação com a prostituta, a qual buscava
clientes nesse local e que encontrava respaldo de seu ofício e proteção junto a essa
deusa.

Quando a deusa frequenta tabernas, a prostituta não anda só.


O eminente assiriólogo, Thorkild Jacobsen relacionou o aspecto erótico de Inanna a sua
personificação como estrela do entardecer, pois à noite, “depois do trabalho, mas antes
do repouso, é o momento de brincar e dançar” [JACOBSEN, 1976, p. 139]. Seria o
momento em que a prostituta, assim como a estrela do Entardecer, saiam para a rua,
buscando por relações sexuais. O entardecer era visto, dessa forma, como o horário dos
amantes, do prazer oculto nas sombras dos becos, das tabernas e da câmara do casal. O
autor acredita que essa seria uma característica da noite:

“o da meretriz que sai para pegar os clientes entre as pessoas que voltavam do trabalho
no campo, e talvez porque fosse uma visão comum ver a prostituta aparecer com a
estrela da noite haveria um vínculo entre elas” [JACOBSEN, 1976, p. 140]. Ainda,
segundo ele, “a deusa seria a protetora da meretriz, bem como, a da cervejaria na qual
ela trabalhava” [JACOBSEN, 1976, p. 140].

Thorkild Jacobsen vai além ao colocar que a estrela da noite em si seria uma meretriz
solicitando nos céus e que esse poder empossaria as prostitutas, chamadas por ele de
irmãs de Inanna na terra, o que as tornaria encarnações da deusa, em busca de seu
esposo Dumuzi [JACOBSEN, 1976, p. 140]. No entanto, precisamos lembrar que
embora, desposada por Dumuzi, Inanna nunca foi uma esposa no sentido tradicional,
aquele de mãe e dona de casa obediente, em algumas fontes ela deixa o marido em
busca de aventuras nas ruas de Kulaba, em outras sai a requisitar amantes.

A prostituta e Inanna tinham, dessa forma, vínculos e características comuns, além de


um locus privilegiado de encontro: a taberna. Em relação às meretrizes, os estudos de
Julia Assante [1998], nos informam que ao contrário das jovens mesopotâmicas que não
saiam de casa desacompanhada, a prostituta caminhava sozinha, sentava-se na porta da
taberna a espera de parceiros, usava símbolos que a denunciavam a sua atuação.

Como profissional do sexo, a prostituta precisava se destacar das outras mulheres que
andavam pelas ruas da cidade, como irmãs de Inanna, precisavam usar símbolos que
denunciassem sua profissão e as relacionasse a sua deusa de devoção. Uma canção
extensa para Inanna, por exemplo, aponta que a prostituta além do colar característico
[feito de conchas que representavam os órgãos femininos e de modelos de pênis
balançando nas laterais], usavam fitas coloridas nos cabelos, que a própria deusa havia
colocado [ETCSL, t.2.5.3.1, linhas 45-8].

Segundo Marten Stol [2016], esses colares, os quais as prostitutas usavam, foram
encontrados nas escavações holandesas na Síria e reconstruídos pelos especialistas, o

141
que nos permite concluir que tais artefatos e insígnias serviam para destacar as
prostitutas das mulheres comuns e das sacerdotisas.

Como devotas de Inanna, as prostitutas eram aquelas que conheciam as formas de dar
prazer, que cobravam por suas carícias, e cujos favores demandavam uma experiência
tipicamente carnal. Inanna era aquela que conhecia os prazeres da carne, que exigia seu
tributo em relação a eles, que protegia as relações amorosas dentro e fora do casamento,
que se aventurava pelas ruas, tabernas e ainda assim era cultuada nos templos e lares.

Ao abrigar a deusa e suas servas, a taberna assume a função de templo, ou ao menos do


local onde o sagrado não tinha limites precisos com o mundano. Para os mesopotâmicos
a taberna também era o espaço do sagrado, do encontro com a deusa da cerveja e a
deusa das práticas sexuais, onde era possível praticar a magia simpática e os sortilégios
corriam soltos como a cerveja.

De fato, a taberna aparece como o locus privilegiado da magia, como apontou Stol,
“alguns rituais mágicos exigiam que o material contaminado fosse depositado dentro ou
na porta de uma taverna, e outros rituais dizem como um demônio deve ser moldado e o
modelo colocado sob um barril de cerveja virado” [STOL, 2016, p. 365].

Essa perspectiva da taberna como espaço sagrado, pode ser confirmada no mito Inanna
e Enki, onde a deusa recebeu dentre os MEs, aquele da taberna sagrada, além daqueles
voltados às práticas sexuais. A disposição como a deusa coloca tais “presentes”, nos
fornecem a ideia de que a taberna seria um lugar idealizado para o prazer: “Ele me deu a
arte de fazer amor/ Ele me deu a arte de beijar o falo./Ele me deu a arte da
prostituição./Ele me deu a prostituta de culto./ Ele me deu a taverna sagrada” [ETCSL,
t.1.3.1, linhas 35-46].

As Medidas Sagradas [MEs], dizem respeito aos aspectos da vida cotidiana, as


produções culturais e materiais, elas marcam aquilo que os povos mesopotâmicos
entendiam por civilização e conhecimento. Não é de se estranhar, que entre eles,
encontramos profissões e trabalhos em materiais, que atestam a evolução tecnológica e
do pensamento humano, além de aspectos como a guerra, os diversos tipos de
sacerdócio, as artes, as relações sexuais, formas de ser e agir.

A taberna foi citada entre os MEs, assim, como as práticas que encontram lugar nesse
espaço, e todos eles foram dados a Inanna por Enki, durante o porre de cerveja e
desejos, com os quais ela enganou o mais sábio dos deuses. Kia Volkonen aponta que:

“O templo de Ištar em Girsu era conhecido como a “taberna sagrada” ou èš-dam-kừ.


Embora este seja um local físico de adoração para Ištar, o conceito da taberna sagrada
pode significar que as tabernas eram um lugar onde as atividades associadas a Ištar,
como prazer sexual e prostituição, aconteciam. Essencialmente, a ação da prostituição,
enquanto acontecia em uma taverna, era um ato de adoração à deusa Ištar”
[VOLKONEN, 2014, p. 32].

Nesse sentido, a prostituta e a taberna tem sua existência entrelaçadas à Inanna, em


diversos hinos à própria divindade é comparada as profissionais do sexo, mas é preciso

142
ter em mente que ao afirmar tal qualitativo, estes de forma alguma inferiorizam a
imagem da deusa, apenas reforçam o paradigma da divindade como senhora das práticas
sexuais e do sexo por excelência, justificam a existência da prostituta e legitimam sua
conduta ao sacralizar seu ato e transformar a taberna em um templo.

Podemos também perceber que a relação de Inanna com a taberna e a prostituição fazia
parte das crenças populares, pois uma canção [balbale] dedicada à deusa da cerveja e
cantada na taberna associa as duas divindades a esse ambiente:

Figura 01 - Canção da cerveja

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=rAYsx5IqD4MM

“Que o coração do tonel gakkul seja o nosso coração!


O que faz seu coração se sentir maravilhoso,
Faz (também) nosso coração se sentir maravilhoso.
Nosso fígado está feliz, nosso coração está alegre.
Você derramou uma libação sobre o tijolo do destino,
Você colocou as fundações para paz [e] prosperidade,
Que Ninkasi viva junto com você!
Deixe-a servir cerveja (e) vinho para você,
Deixe [o transbordar] doce do licor ressoar agradavelmente para você!
Nos [...] baldes de junco há cerveja doce,
Eu farei copeiros, garotos, e cervejeiras me assistirem,
Enquanto eu me sinto maravilhosa, eu me sinto maravilhosa,
Bebendo cerveja, de bom humor,
Bebendo licor, me sinto eufórica,
Com alegria no coração [e] um fígado feliz -
Enquanto meu coração está cheio de alegria
[E] [meu] fígado está feliz, eu me cubro com uma roupa digna de uma rainha!
O coração de Inanna está feliz novamente,
O coração da rainha do céu está feliz novamente” [CIVIL, 1964, p. 74]!

143
Embora o tom da cantora seja um pouco mais lírico, seu refrão quase nos faz imaginar
ao fundo as pessoas batendo alegremente palmas e canecos em meio à música e a
diversão desse ambiente: “kaše, kaše, kaše, kaš” [cerveja, cerveja, cerveja].

Como locus privilegiado do prazer, onde a cerveja corria solta, não nos causa estranheza
também que tal bebida adocicada tenha sido comparada ao órgão genital feminino.
Um balbale para Bau de Šu-Suen (Šu-Suen A) diz que a vulva tem a doçura da cerveja:
“a cerveja da taberneira é doce. Como sua cerveja seus órgãos genitais são doces, a
cerveja é doce. Como a boca seus órgãos genitais são doces [...]” [ETCLS, c.2.4.4.1].
Assim, o prazer que embriaga o faz em duplo sentido.

Ainda em relação à Inanna, muitas composições a comparam com a prostituta ou com a


cervejeira. Um exemplo disso é um hino dedicado à divindade, disponível no acervo do
Corpus Eletronic of Sumerian Literature, que traz as características da divindade
associadas à noite e atribuem a ela a função do prostíbulo:

“[...] Como uma prostituta você vai até a taberna [...]. Quando os servos deixam os
rebanhos soltos, e quando o gado e ovelhas são devolvidos ao curral e ao aprisco, então,
minha senhora, como os pobres sem nome, você veste apenas uma única peça de roupa.
As pérolas de uma prostituta são colocadas em torno de seu pescoço, e você
provavelmente solicita um homem na taberna. [...] Inana, você é a senhora de todos os
poderes divinos, e nenhuma divindade pode competir com você. Aqui você pode
habitar, Ninegala; deixe-me falar de sua grandeza. À noite, quando as estrelas retornam
juntas mais uma vez e quando Utu entra em seu quarto, quando no céu, Inana, você
brilha grandemente como fogo, e quando na Terra, Ninegala, você chia como um falcão,
então você [...] em jogo e dança!” [ETCSL, t.4.07.4]!

Nesse hino também encontramos a menção de que as prostitutas possuíam um colar de


contas, e que exerciam suas funções na taberna, assim como à beira da estrada, por onde
estes trabalhadores voltavam para casa, como já comentado por T. Jacobsen, os becos e
as portas das cidades também eram lugares de transito dessas profissionais, que sob a
proteção da deusa das práticas sexuais exerciam suas atividades laborais.

Embora o trabalho da prostituta, não se realizasse apenas na taberna, essa atividade e


esse local parecem influenciar-se mutuamente e tenderem para um aspecto sagrado
entrelaçado em suas formas mundanas. A deusa aproximava pelo sexo o mundo profano
do ambiente divino e estendia ao primeiro ares de sacralidade enquanto ao segundo
pincelava de elementos profanos.

Kia Volkonen [2014] acredita que Inanna/Ishtar seria um exemplo de modelo central
para a feminilidade das mulheres mesopotâmicas, em aspectos duais de esposa e
prostituta, no entanto, acredito que as múltiplas funções da divindade não podem ser
restritas apenas ao lar e à prostituição, até porque o aspecto de esposa, como mãe e
protetora, não cabe para a divindade, que trocava de amores facilmente e quando casada
com Dumuzi, o deixava sozinho para procurar prazeres nas ruas.

Algumas das características e funções da divindade foram discutidas em minha


dissertação e aprofundadas em minha tese, daí a não acreditar em uma personalidade ou

144
funções duais e/ou contrapostas para esta deusa, suas funções e características eram
múltiplas e não há caixinhas que possamos colocá-la.

Algumas considerações:
Não há como abordar a deusa sem falar algo sobre os grupos femininos que habitavam a
terra entre dois rios. Bem, partimos da lógica que embora a mulher mesopotâmica tenha
como atributo o lar e todas as responsabilidades que ele impõe, a mobilidade social
atestada nas diversas tarefas que esta realizava, que extrapolam o ambiente doméstico,
nos permite afirmar que o nicho feminino e as identidades femininas não podem ser
definidas tendo por base a esfera doméstica e aspectos de submissão patriarcal.

Não é raro percebermos que os trabalhos que abordam as mulheres, concentrados


geralmente nas mulheres da elite, atendem um viés que privilegia sempre questões de
submissão, de papéis religiosos zelosos em relação à família e da construção de uma
pureza cujo conceito não cabe à sociedade mesopotâmica. Talvez, por isso, estranhamos
tanto quando Inanna vai até a taberna, ou assumimos a postura de autores que veem este
espaço como locus de impureza, onde até mesmo os reis proibiam as mulheres sagradas
de entrar.

Embora haja controversas sobre a reputação cervejeira, vista em alguns casos como uma
prostituta, e daqueles que transitavam pelo local, esse espaço foi um importante ponto
de encontros na sociedade mesopotâmica. Tanto a meretriz quanto a taberneira
estiveram relacionadas às atividades de descontração e prazer, o prazer do vinho e da
cerveja que embriagava, ou o prazer do sexo que em muitos aspectos tinha um cunho
embriagante e mágico.

É importante colocar, como fez Julia Assante [1998], que nossa leitura acerca da
taberna carece de revisão, a taberna não era o prostibulo, pelo menos não no sentido que
nossa mentalidade moderna concebe, era o local de produção da cerveja, a cervejeira
não era a cafetina, mas alguém que administrava o local e detinha o conhecimento na
produção dessa bebida.

Assim, a cervejaria (taberna) esteve longe de ser um cabaré e estava mais para um local
de encontro, de troca, de barganha, das mais variadas formas. Era também o local onde
o sagrado e o profano não tinham limites precisos, onde sexo e magia eram caminhos de
mãos duplas, pois a partir de um se praticava o outro, a ponto de se fundirem em um só.

A prostituta ganhava a vida ao mesmo tempo em que servia a deusa, e a deusa protegia
suas servas, seus fieis e a taberneira, sorria enquanto bebia cerveja, pois havia festa em
seu templo, como dizia o hino: o coração de Inanna estava feliz.

Referências:
Dra. Simone Aparecida Dupla é pesquisadora na área do Antigo Oriente Próximo. E-
mail: cathain_celta@hotmail.com

ASSANTE, J. “The kar kid/harimtu, Prostitute or Single Woman?: A consideration of


the Evidence”. Ugarit-Forschungen 30, 1998.

145
CIVIL, M. A Hymn to the Beer Goddess and a Drinking Song, Chicago: Oriental
Institute, 1964, p.74. In: Studies Presented to A. Leo Oppenheim. Chicago: The Oriental
Institute of the University of Chicago, 1964.
ETCSL, t.1.3.1. Inana and Enki. Disponivel em:
http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgibin/etcsl.cgi?text=t.1.3.1&display=Crit&charenc=gcirc&li
neid=t131.p6#t131.p6.
ETCSL, t.5.5. A drinking song. Disponível em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-
bin/etcsl.cgi?text=t.5.5.a#.
ETCSL: t.4.07.4, A hymn to Inana as Ninegala (Inana D). Disponível em:
http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgibin/etcsl.cgi?text=t.4.07.4&display=Crit&charenc=gcirc&
lineid=t4074.p16#t4074.p16.
ETCSL, t.2.5.3.1. Um šir-namursaĝa para Ninsiana de Iddin-Dagan (Iddin-Dagan A).
Disponível em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.2.5.3.1#.
JACOBSEN, Thorkild. The Treasures of Darkness: a history of mesosopotamian
religion. New Haven and London: Yale University Press, 1976.
STOL, M. Women in the Ancient Near East. Translated Helen and Meryn Richardson.
Boston/Berlin: de Gruyter, 2016.
VOLKONEN, Kia. “Womanhood: Aspects of Lower Class Feminine Identity in Old
Babylonian Mesopotamia”. S.r, 2014.

146
A INFLUÊNCIA DA ARÁBIA SAUDITA NO PREÇO DO
PETRÓLEO: 1973 E HOJE
Carolina Brandt Carvalho e Vinicius Soares Gallier
Introdução
O presente artigo tem por objetivo mostrar, de forma didática e expressiva, a influência
da Arábia Saudita no mercado do petróleo, utilizando-se de uma comparação entre a
crise do petróleo de 1973 e o mundo atual. Dessa forma, primeiro é feita uma
explicação acerca do funcionamento geral do mercado do petróleo. Logo após, é feito
uma contextualização e explicação acerca dos eventos relacionados ao período de
criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo [OPEP] e também sobre a
crise de 1973 em si, sempre deixando claro a importância e o papel da Arábia Saudita
nesses eventos. No próximo momento é feito um salto para os tempos atuais, fazendo
uma comparação com a época da crise, buscando entender as permanências e as
mudanças na conjuntura da relação entre o mercado do petróleo e a Arábia Saudita.

O Mercado do Petróleo
O petróleo é a base energética do mundo atual, há décadas ele é usado para a
manutenção de grandes indústrias ao redor do mundo, produzindo o diesel, a gasolina, o
nafta e muitos outros produtos essenciais. No entanto, este é um recurso cada vez mais
finito e, com isso, aqueles capazes de produzi-lo em grandes quantidades hoje são
aqueles que determinam seu preço, principalmente porque o aumento da demanda ao
longo dos anos devido ao desenvolvimento econômico ao redor do mundo tem sido uma
constante.

Esse mercado conta com produções em todos os cantos do globo, mas isso não quer
dizer que todos são iguais. Existem, hoje, mais de 200 tipos de petróleo circulando, e
eles são classificados de acordo com a sua densidade e Gravidade API, sendo
diferenciados em três principais categorias: Leve, Intermediário e Pesado. [Mielnik,
2012, p.28] O padrão de qualidade, por sua vez, é baseado em dois tipos de petróleo,
pelos quais todos os demais são medidos, o WTI [West Texas Intermediate, produzido
nos EUA] e o Brent [Petróleo extraído na região do Mar do Norte]. A partir dessas
classificações a base de preços de cada tipo de petróleo pode ser estabelecida,
agregando um prêmio, ou um desconto, em seu valor de mercado.

Ao longo dos anos as maiores reservas de petróleo estiveram na região do Oriente


Médio, principalmente nos territórios dominados pelos membros da OPEP, a
Organização dos Países Produtores de Petróleo. De acordo com o departamento de
Energia dos Estados Unidos [EIA, Energy Information Administration] estes países
movimentam por volta de 60% de todo o petróleo mundial, o que demonstra o peso do
grupo no mercado.

No entanto, também é necessário levar em conta que, nos dias atuais, largas reservas
não são o suficiente para se manter no topo. A globalização e o avanço tecnológico são
armas mortais na luta contra o controle exercido pela OPEP, cada vez mais outros
países têm se colocado à frente e ressurgido como líderes do setor, principalmente os
Estados Unidos - um dos maiores produtores e consumidores mundiais de petróleo - e
outros, como o Brasil após a descoberta do pré-sal e a Rússia, além disso, também se

147
tornaram empecilhos para o domínio da OPEP os problemas políticos e econômicos que
surgiram na região após a Primavera Árabe, cujas consequências podem ser sentidas até
hoje pelos países envolvidos, que se viram mergulhados em sanções econômicas,
guerras e instabilidade política, como o Irã, Iraque, Líbia e muitos outros.

A Arábia Saudita, que durante anos foi vista como a líder de fato do grupo devido ao
seu potencial de controle na oferta mundial, devido às maiores reservas de petróleo
confirmadas no mundo, hoje passa por uma mudança em seu papel e, devido a isso,
cada vez mais precisa se reposicionar conforme as mudanças do mercado. Suas reservas
e capacidades de alteração de sua produção, hoje, não permanecem mais as mesmas, e
os países que sempre precisaram do insumo, agora, possuem outras alternativas para sua
compra. É claro que a Arábia Saudita não perdeu sua importância total - ou influência -
no equilíbrio, mas os tempos de ouro não retornam mais, e a época em que a OPEP
tinha capacidade para moldar completamente os preços a um nível mundial ficaram no
passado.

As empresas, queda de preços e o surgimento da OPEP: O Antes


É necessário, ao falarmos da história de algo, entender o contexto anterior ao seu
surgimento, e é o que vamos fazer, especificamente, nessa parte do texto. É importante
ter em mente, antes de qualquer tipo de contextualização mais específica, que, durante
a segunda parte do século XX, o mundo se encontrava em um período de pós segunda
guerra mundial e, além disso, no meio da ameaça constante da Guerra Fria. É
importante frisar também que, durante esse período inicial pós segunda-guerra mundial,
o preço era “quoted relative to that for oil in the Gulf of Mexico“ [Adelman, cap. 5,
1972 apud. Hamilton, 2011 p. 8].

Na década de 50, sobretudo nos seus anos finais, a indústria do petróleo já havia se
desenvolvido em uma escala internacional e de forma massiva, e tinha importância
fundamental tanto nos países produtores, por ser muitas vezes seu principal recurso,
quanto para os países consumidores.

Apesar do grande cenário do petróleo, grande parte estava nas mãos de oito empresas
transnacionais apelidadas de “Sete Irmãs”. Esse domínio tinha como alicerces o fato
delas possuírem “quase exclusivo acesso ao petróleo de baixo custo do Oriente Médio,
Venezuela e Indonésia; (...) e por taxas e impostos mais favoráveis” [Tradução livre,
Parra, 2004 p. 68], a entrada de dinheiro devido a esses elementos faziam com que
quase ninguém conseguisse competir com eles de forma efetiva. Entretanto, essas
empresas não eram simplesmente passivas: “Eles buscaram ativamente certos objetivos
de políticas para favorecer um país [geralmente o Irã] em prol de outro, ou penalizar um
[geralmente o Iraque] em favor dos outros, e então usaram o sistema para suprimir
efeitos adversos nos preços.” Segundo Ian Skeet, os países produtores de petróleo “viam
o sistema o qual as empresas usavam para operar como um exemplo obsoleto de
dominação imperialista”. [Tradução livre, SKEET, 1988 p. 5].

Segundo Skeet [1988], para se entender o surgimento da Organização dos Países


Exportadores de Petróleo é preciso ter em mente os principais elementos referentes ao
balanço do petróleo internacional no que tange a oferta e demanda. Utilizando os dados
em relação ao ano de 1959, ano anterior a criação da organização, temos quatro pontos

148
como principais: o fato da Venezuela ser o país isolado que mais produz petróleo fora
dos Estados Unidos, o que provia o mercado mais próximo e natural para os membros
da futura OPEP; o Oriente Médio já havia se desenvolvido como área produtora do
hemisfério ocidental e já era um forte concorrente no comércio internacional; a União
Soviética estava desenvolvendo sua indústria petrolífera, tanto para suas necessidades
internas quanto para exportações e o fato de que os Estados Unidos serem os que
consumiam e produziam a maior quantidade de petróleo bruto durante toda a década de
1950.

Além disso, segundo o autor, outro fator importante é a questão do preço, visto que o
controle deste era de suma importância tanto para as companhias privadas, por serem
um dos fatores para o lucro, quanto para os Estados, por serem um dos fatores para a
formação da receita. Ao passo que as companhias foram perdendo poder de definir o
preço do petróleo devido aos termos dos contratos de concessões que haviam feito no
passado, isto foi se tornando um problema e, também, uma ferida no orgulho nacional,
quando os preços diminuíram ao invés de aumentar. Quando isso aconteceu os efeitos
sobre os países, principalmente os que dependem em grande parte do petróleo, foram
debilitantes.

No final dos anos 50, com a demanda imensa de petróleo no cenário mundial e o fato de
o Oriente Médio e Venezuela já terem se consolidado como cenários promissores e
importantes, a competição por petróleo foi ficando cada vez mais intensa. Segundo Ian
Skeet [1988], a diminuição do “Posted Price”, assim como as questões referentes aos
royalties e de oferta e demanda, foram alguns dos fatores que desencadearam a criação
da OPEP.

O cenário político e econômico dos países que viriam a fundar a OPEP [Venezuela,
Iraque, Irã, Arábia Saudita e Kuwait] estava favorável a uma mudança, manifestada
através da sua criação em 1960.

A Arábia Saudita e sua relação com a criação da OPEP


O começo do que se tornaria a OPEP teve início no 1º Congresso Árabe do Petróleo em
1959, no qual a Arábia Saudita desempenhou um papel de grande importância. Nesse
congresso, Abdullah Tariki, que viria a se tornar o Primeiro Ministro do Petróleo da
Arábia Saudita, teve uma grande participação e, junto a Juan Pablo Perez Alfonso,
Ministro das Minas da Venezuela, expandiu a idéia de criar uma Comissão de Consultas
de Petróleo aos outros representantes dos países que estavam presentes. Essa comissão
teria por objetivo se encontrar uma vez ao ano para decidir acerca dos problemas que
deveriam encarar, de forma pré-estabelecida e, assim, como proceder nessas situações.

Segundo Skeet [1988], não havia um acordo concreto em relação a redução da produção
entre a Venezuela e os países árabes, apesar de todos seguirem na mesma direção. E, de
início, esse pacto não foi anunciado de forma pública, vindo a conhecimento somente
em 1960.

Quem tomou a frente na formação e ao estabelecer os princípios da OPEP, em grande


parte, foram Perez Alfonso, da Venezuela e Abdullah Tariki, da Arábia Saudita. Além

149
disso, o embaixador da recém-criada embaixada da Venezuela no Cairo, também tendo
sido credenciado pela Arábia Saudita, organizou a primeira reunião da OPEP em 1960.

A crise do petróleo de 1973


Para contextualizar a época, é preciso entender que esse período imediatamente anterior
tinha como característica o crescente consumo de petróleo pelos países industrializados,
assim como o aumento das importações de petróleo pelos EUA, em contraste com a
diminuição da sua produção interna. Dessa forma, precisava-se de um local para
substituir a produção que antes os Estados Unidos fazia. Em outras palavras: o mercado
começou a se basear no petróleo do golfo pérsico para estabelecer as quotas de preços.

No dia 6 de outubro de 1973, Síria e Egito realizaram um ataque conjunto, com o


objetivo de recuperar os territórios tomados por Israel, iniciando a quarta guerra árabe-
israelense, mais comumente chamada de guerra do Yom Kippur — devido ao seu
primeiro ataque ter sido feito durante um dia importante para o judaísmo: o dia do
perdão - o maior feriado judeu.

É necessário aqui retomar o que foi dito no início: esse era um período no meio da
Guerra Fria e, como tal, as principais potências da época, os EUA e a URSS,
costumavam tomar lados nos conflitos, usualmente opostos. No caso, os EUA
protegeram os interesses de Israel, o que gerou consequências.

No dia 17 de outubro de 1973, após a vitória de Israel, a OPEP realizou um embargo a


todos os países que haviam prestado apoio a seu adversário, seguido por diversos cortes
na sua produção do petróleo. Ou seja, com a diminuição da oferta de petróleo, visto o
poder que o insumo tinha no cenário mundial e nos EUA, provocou um aumento
exorbitante dos preços no mundo inteiro, mas de forma ainda mais impactante nos
Estados Unidos e nos aliados de Israel. O preço subiu de cerca de 3 dólares para 11,65
dólares por barril de petróleo, houve praticamente uma quadruplicação e o embargo
causou uma recessão mundial.

A importância da Arábia Saudita na OPEP e na crise do petróleo de 1973


Até pouco antes da guerra do Yom Kippur, o rei da Arábia Saudita, Faisal bin
Abdulaziz Al Saud, tinha como ideal não utilizar o petróleo como uma arma política.
Entretanto, isso viria a mudar mais a frente, sendo o primeiro sinal disso o alerta de
Faisal que, caso os EUA continuassem a ajudar Israel, a colaboração entre Arábia
Saudita e a potência ocidental poderia se complicar. Esse alerta era, principalmente,
com o objetivo de pressionar os Estados Unidos a negociar uma solução política para o
causa Palestina.

Inicialmente, durante os primeiros aumentos do preço do petróleo por parte da OPEP, a


Arábia Saudita se manteve calma, uma das “vozes moderadas” na discussão, com o
objetivo de não inflar os outros países para que houvesse um aumento ainda mais
significativo. Faisal esperava que, ao se manter neste papel, conseguisse continuar com
as boas relações com os Estados Unidos, apesar de, ao mesmo tempo, conforme as
tensões com Israel aumentavam, o rei continuamente ameaçava diminuir o suprimento
de petróleo caso uma guerra estourasse
.

150
Quando isto finalmente aconteceu a partir de um ataque conjunto da Síria e do Egito, o
Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, pediu a Faisal para que os
convencessem a recuar. Entretanto, “Faisal [...] fez público seu apoio aos dois países e
chamou Henry Kissinger a persuadir Israel a deixar os territórios ocupados.” [Tradução
livre, Wynbrandt, 2004 p. 232]. No mesmo mês, a OPEP resolveu diminuir a produção
e aumentar os preços até que o conflito árabe-israelense tivesse fim.

Logo após a ajuda do presidente americano Nixon a Israel, através do envio de


armamentos para o conflito, a Arábia Saudita promoveu um embargo contra os EUA,
inicialmente de forma unilateral, tendo sido depois apoiada e consolidada pela
realização do embargo também por outros países árabes.

Petróleo e a Arábia Saudita: O Hoje


A crise desencadeada em 1973 afetou profundamente o mundo e a Arábia Saudita,
como o maior produtor de petróleo na organização, teve um papel fundamental nessa
decisão. Mesmo que o embargo tenha sido adotado apenas pelos membros árabes da
organização, o mundo se viu refém das drásticas consequências dessa decisão no preço
final, que durou longos e devastadores 5 meses para encontrar seu fim, em março de
1974 com o término do confronto.

No entanto, como explicado no início, outras fontes de petróleo foram sendo


descobertas ao longo dos anos e, aliado ao avanço tecnológico, a importância da Arábia
Saudita, que antes era tão importante devido ao seu alto potencial de elasticidade da
produção, que podia ser adaptada mais facilmente aos seus interesses do que em outros
países com reservas menores, foi diminuindo.

Nas décadas de 1970 e 80 era um fato que a OPEP em geral era a instituição que
determinava os preços do mercado mundial de petróleo bruto, mas o mesmo não pode
ser dito sobre os tempos atuais. Outros atores internacionais ao redor do mundo e, mais
importante, não membros da organização, influenciam o mercado internacional, como a
New York Mercantile Exchange [NYMEX], the International Petroleum Exchange in
London [IPE] e the Singapore International Monetary Exchange [SIMEX] [Basil, 2011,
p.10], para nomear alguns, além dos tomadores de decisões estatais nos países que hoje
são produtores chaves no mercado.

Precisamos lembrar também que, de acordo com Fattouh e Sen [2015], outros fatores
externos também influenciam a determinação das políticas petrolíferas da Arábia
Saudita em relação à organização e ao mercado mundial, e não apenas uma visão geral
de ocidente versus Oriente Médio, com este último capaz de manter a necessidade
energética do primeiro como uma arma a ser constantemente utilizada. Existe,
primeiramente, uma alta dependência econômica deste setor na arrecadação geral da
Arábia Saudita; sua caminhada para a exaustão de suas reservas prevista, em 2015, para
durarem ainda 63 anos leva o país a ter sempre em vista a manutenção da demanda a
longo prazo; sua dominância em mercados internacionais, já que sua produção é capaz
de gerar petróleo de praticamente todas as classificações, é, por isso, traduzida em
assegurar seu market share dentro dos países ocidentais.

151
Um rápido aumento da demanda interna do país levou com que o preço da adaptação de
sua produção, antes tão elástica, passasse a ser maior, já que uma mudança na
quantidade produzida poderia rapidamente atrapalhar o próprio desenvolvimento interno
do país, que passa a consumir mais - o que leva a Arábia Saudita a aumentar a sua
extração e produção petroleira, para manter os níveis elevados de consumo interno e não
perturbar as quotas exportadas para o resto do mundo. Como demonstrado, isso também
afeta o principal fator que leva a Arábia Saudita a ser um Estado tão significante no
mercado mundial e dentro da própria OPEP, já que sua capacidade de adaptação da sua
produção para controlar os preços - tanto para a estabilização do mercado quanto para
gerar uma nova crise mundial - vem se tornando cada vez menor e, apesar de
permanecer com uma capacidade considerável, não pode mais se dar ao luxo de manter
mais sua produção em níveis muito baixos ou muito elevados por longos períodos de
tempo sem que todos os demais fatores levem a prejuízos para o reino, já que seus
parceiros árabes são dependentes deste comércio e, pelo desenrolar da política regional
nos últimos anos, não têm capacidade para passarem por mudanças drásticas nos preços,
principalmente os países que não são grandes produtores.

Tendo em vista o exposto acima, podemos perceber que, hoje, os tempos mudaram. O
mercado mundial de petróleo não é mais o mesmo que foi na década de 1970, e os
atores que têm a capacidade de influenciá-lo se diversificaram para abarcar diversas
áreas do mundo, retirando das mãos da Arábia Saudita e da OPEP o controle total sobre
os preços internacionais do barril. Diversos fatores externos característicos da
atualidade, principalmente o avanço tecnológico, também permitiram essa mudança.
Ainda, apesar deste país ainda ser uma peça chave para a manutenção do equilíbrio dos
preços, é um motivo de orgulho do Estado que, desde então, a sua produção é
determinada exclusivamente de acordo com objetivos econômicos e de forma racional,
eliminando a pressão exercida como ferramenta política e, conforme os anos passam, a
possibilidade de uma repetição dos acontecimentos das décadas de 70 e 80 parece uma
realidade cada vez mais longínqua e improvável.

Referências
Carolina Brandt Carvalho é aluna de graduação no curso de Relações Internacionais da
Universidade Federal Fluminense.
Vinícius Soares Gallier é aluno de graduação no curso de História da Universidade
Federal Fluminense.

BASIL, Ajith. “OPEC & its influence on Price of Oil”, 2011. Disponível em:
https://www.greatlakes.edu.in/gurgaon/sites/default/files/OPEC&its_Influence_on_the_
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CITINO, N. J. “From Arab Nationalism to OPEC Eisenhower, King Saud, and the
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Indiana University Press. 2011
Energy Information administration: Energy & Financial Markets - What Drives Crude
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FATTOUH, Bassam; SEN, Anupama. “Saudi Arabia Oil Policy: More than Meets the
Eye?” in: Oxford Institute for Energy Studies, vol. 13, Jun, 2015, 27 p.

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https://www.nber.org/papers/w16790.pdf
ILIE, Livia. “Economic considerations regarding the first oil shock”, 1973 - 1974. 2006.
Disponivel em: https://mpra.ub.uni-muenchen.de/6431/1/MPRA_paper_6431.pdf
MIELNIK, O. “O mercado do petróleo: oferta, refino e preço”. Rio de Janeiro: Revista
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PARRA, Francisco. “Oil Politics: A modern history of petroleum”. Londres: I. B.
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SKEET, Ian. “Opec: Twenty-five years of price and politics”. Cambridge: Cambridge
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WYNBRANDT, James. “A Brief History of Saudi Arabia”. Ed 2. Fawas A. Gerges,
2004.

153
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