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o frio
O
dramático relato que aí segue conta a
da carioca que vos fala, quando se
defrontou com o terrível aquecimento a
carvão, que nos dias de hoje ainda grassa na cidade de
Berlim, mesmo do lado ocidental. No original, essa era
parte de uma carta enviada para casa, cujo único
comentário de mamãe foi: que trabalheira, não? “Deixa
eu contar umas coisas que vocês não conhecem. Por
exemplo, a história do aquecimento, que eu, aliás, nunca
li em lugar nenhum e acho que seria importante divulgar,
porque é uma coisa que milhares de pessoas têm que
fazer todo dia - não estou exagerando, porque com o frio
não dá prá agüentar. Imaginem uma geladeira recoberta
de azulejos com uma grelha em baixo - gente!, que
descrição do cacete! É exatamente isso. Então, você
acende com o fósforo (eu uso o isqueiro, que tive que
aprender a manejar com a mão esquerda) dois
quadradinhos de uns 2 cm de lado, feitos de um tipo de
compensado. Depois, põe uns pedaços de madeira
cortada com uns 15 cm de comprimento e uns 2 cm de
espessura, alternando, na horizontal e na vertical, como
se fosse uma fogueirinha. Ali em cima você põe os
danados dos briquets, que são uns tijolos de carvão
pretos, pesando cerca de meio quilo cada um. Eles são
depositados do mesmo jeito, tipo um jogo da velha, dez
de cada vez, e quando estão incandescentes você pode
fechar a saída de ar. Senão fizer isso, a fumaça e os
gases tóxicos ficam dentro de casa e é perigoso. Cada
remessa gera entre 10 e 12 horas de calor. Acabo de
descobrir que a tal saída de ar é fundamental. Eu pus
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V
amos pegar o ônibus número
100 andando, ali pela
Bötzowstraße. A direção é S-
Bahnhof + Zoo. Depois da Friedrichshain, ele
vira na Otto-Braun- e na Mollstraße, onde
passa o bonde. Daqui um cadinho está na
Alexanderplatz e aí começam as atrações.
Suba para o andar de cima, que é
muito mais bonito. Corra pra pegar um dos
quatro lugares na frente. Não deixe que os
japoneses vençam você pelo número nem os
italianos pelo volume. É, continua persistindo
alguma coisa do tempo da guerra, sem
dúvida, continua tudo igual, as formigas
míopes japonesas embarcando junto com as
matracas italianas na viagem do alemão.
Um pouquinho antes da catedral, que
fia do lado direito de quem vai, tinha um
parque de diversão com tudo a que se tem
direito, inclusive diversão, graças às barracas
de comida, é claro, mas você demorou muito
e já desmontaram tudo. Atravesse a rua de
novo e pegue o barco com vista panorâmica
que faz o mesmo trajeto por via fluvial e, por
que não dizer, de costas, já que você ouviu
dizer que é possível ver todos os monumentos
pela parte de trás.
Lado esquerdo, Rathaus e depois uma
praça com a Deutsche Oper. Lado direito, a
universidade Humboldt, sempre alegre por
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les não são de Governador Valladares
também não foram para Boston, mas o
da história é igual. De dez anos pra cá,
formou uma verdadeira colônia de campineiros em
Berlim. Já são mais de cem pessoas e eles mesmos se
espantam quando se esbarram na capital da Alemanha.
Os números oficiais falam de dois mil brasileiros na
cidade, mas deve haver, pelo menos, o dobro.
Coincidência ou não, o certo é que fica mais fácil, entre
outras vantagens, pedir emprestada uma xícara de
açúcar - principalmente para não melar a caipirinha com
o açúcar da Alemanha, que é meio esquisitão.
O pioneiro da onda Campinas é Jassa Mariano.
Aos 14 anos, ele saiu da sua cidade natal e foi correr em
São Paulo. Aos 20 anos se sobressaía entre os grandes
do atletismo dos anos 80, como Robson Caetano. À
procura de patrocínio, cada um foi para um lado. Jassa
escolheu e adotou a Alemanha em outubro de 1987,
mas acabou abandonando o esporte. “Até me
estabelecer, fiz de tudo. Fui garçon, lavador de pratos,
mas a coisa engrenou mesmo quando entrei para o
ramo da gastronomia, trabalhando num hotel.” Em
menos de 10 anos, ele é o dono do seu próprio
restaurante, o Taba, que fica na Chausseestraße 106, e
que nesse meio tempo já se chamou, primeiro, Som
Tropical, e depois, Beco.
Entusiasmado pelo progresso do irmão, há seis
anos o professor de educação física Paulo Mariano
repetiu o roteiro. Atualmente ele é um dos preparadores
físicos da seleção de atletismo de Berlim. Os dois se
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TV
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tv é diferente e o jornalismo também.
falta das convulsões, pequenos graves
dramas sociais do cotidiano de casa,
tempo e mais espaço para simplesmente contar as
coisas. A mão, por exemplo. Um especial no canal B1
contando tudo, desde a cirurgia de mão, o que uma
amputação representa, quiromantes, tudo junto num
variado cardápio que dificilmente poderia deixar algum
pedido frustrado.
Mas nem foi com a mão que começou o meu
banquete televisivo de ontem. Um clic no controle
remoto, no canal 1, a carinha de um coala. Um bicho
distante, visto em álbum de figurinhas ou de pelúcia
atrás de uma vitrine. Perguntem-me o que quiserem
sobre o coala: agora eu sei. Dorme entre 18 e 20 horas
por dia, desafia a sorte se alimentando exclusivamente
de folhas de eucalipto, escolhendo sabe-se lá como as
menos tóxicas, até o sexo entre eles eu vi. Os filhotes!
Outros animais que compartilham a floresta de
eucaliptos na Austrália, tão pouco conhecida em termos
científicos quanto a nossa Amazônia.
Acompanhei o filme da NDR até o fim, depois caí
num jornalístico tipo boulevard, o Fakt, que escolhe
cinco ou seis temas para uma hora de programa, coisas
que estão rolando, atuais, mas não fica só naquela
pincelada - pra não chamar de lambuzada! - dos nossos
melhores telejornais. Pra entender, é só imaginar um
Globo Repórter fatiado: mais democrático do que o
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omo cheguei atrasada, só consegui
participar do segundo Carnaval das
Culturas, promovido em Berlim
desta vez entre os dias 16 e 18 de maio. As estatísticas
indicam a presença de 430.000 imigrantes de mais de
180 países nesta metrópole, o principal fator, na minha
modesta opinião, pela transformação da cidade numa
sopa de entulho de sabor incomparável. Nem no metrô
de Nova Iorque encontrei tamanha mistura de sotaques,
e agora já consigo até acertar de que país os
passageiros vêm, quando escuto uma conversa em
polonês ou russo. Pois então, o carnaval é organizado
desde 1996 pela Oficina das Culturas, sem restrição de
nacionalidade, credo ou cor.
Cada grupo escolhe um tema - às vezes tem até
carro alegórico - e sai pelo bairro de Kreuzberg usando
playback ou músicos tocando ao vivo. Este ano, foram
69 agremiações inscritas com 2.700 participantes, só do
Brasil os seguintes nomes: Afoxé Loni Iabás,
Amasonia (a digressão ortográfica é uma auto-
homenagem da organizadora), Boi da Caipora Doida,
Capitães de Areia, Cara de Alegria/Terra Brasilis,
Ramba-Samba e Samberra, fora os de outros países,
mais assustadores, como o 39 Locos, Pakistan
Express ou o Teatro Grottesco Di Mina Tinaburri.
Diversos palcos espalhados pelas redondezas, para os
shows das mais diversas bandas, complementaram a
programação de três dias.
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Povo de rua
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erlim até que é legal. O que estraga é
tem muito exu. Quer um exemplo?
Hitler, que se não está mais fazendo
compras no Ku’Damm1 nem às margens do lago em
Wannsee planejando exterminar judeus se faz presente
nas muitas encruzilhadas dessa cidade mal-
assombrada. Com tanta obra, toda hora tem alguém
encontrando minas e granadas da Segunda Guerra,
prontas pra explodir, outro dia até o presidente Roman
Herzog teve que sair às pressas do Palácio Bellevue
pros peritos removerem uma bombinha que estava no
quintal. Mas, voltando aos exus. A começar pelos
bêbados, é uma loucura a quantidade de homens que
andam na rua com a latinha de meio litro de cerveja na
mão. Às vezes a mulher acompanha, na mamadeira da
criança que está no carrinho é servida a Coca-Cola, pra
ela já ir treinando no vício. São mais de cem grupos
diferentes dos Alcoólicos Anônimos na cidade, mas,
justiça seja feita, há grupos em outras línguas para os
exus regenerados ou em regeneração de outras pátrias.
Uns três ou quatro. Em espanhol, inglês, polonês e
iugoslavo. Isso mesmo, em iugoslavo. A velha Iugoslávia
faz uns anos que acabou mas os bebuns iugoslavos
nunca estiveram melhor. Como todo mundo sabe, onde
há exus, não faltam pomba-giras. As daqui, meio
branquelas e sem charme, mas devidamente
espalhafatosas e escandalosas no falar e no vestir. Já
não fosse o cabelo azul, verde, roxo, rosa-choque, ou
todas as cores juntas, elas ainda se dão ao desfrute de
fazer um visual bem desgrenhado, quando não apelam
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Vive la différence!
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oisas que aqui são diferentes. As
veículos não têm sirene nem placa
A maior parte dos prédios não têm
Pegar um carrinho de supermercado, só enfiando uma
moeda de um marco ou um chip do mesmo tamanho,
que custa um marco e cinqüenta, para soltar a
correntinha de segurança - se quiser levar as compras
até o carro, deixa 50 marcos de depósito. As contas não
têm data de vencimento. Ônibus, bonde e metrô não têm
roleta, mas você paga multa de 60 marcos se for pego
sem o bilhete. As ruas começam e terminam no mesmo
ponto, ou seja, a numeração dos prédios cresce até a
metade no fim da rua e depois vem voltando. Taí um
bom exemplo da imutabilidade das coisas por aqui. Em
caso de necessidade, repete-se o número do prédio com
uma letra. Eu, por exemplo, moro na Boppstraße 9A.
Praticamente não existe interfone e os apartamentos são
identificados pelo nome do morador na campainha.
Quem mora clandestino, como a minha vizinha do
primeiro andar, está correndo risco até em receber
contas e cartas - não, ela não é estrangeira, é só uma
estudante de veterinária com grana curta. Qualquer
pessoa, estrangeira ou não, quando se muda tem que
procurar um determinado departamento para dar baixa
no endereço antigo e informar o novo - isso facilita o
trabalho da polícia, se precisa encontrar alguém. Qual
terá sido o truque da Kristine?, preciso perguntar.
Serviços, tirando a figura conhecida do berliner
Schnauzer - que numa tradução livre significa o típico
berlinense rabujento, são deploráveis. A agência
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temporal que escureceu Berlim em
duas horas da tarde só faz confirmar o
todo mundo já desconfiava, mas
tinha coragem de dizer em voz alta, com medo de ser
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taxado de Stasi : esse ano, mais uma vez, o verão não
vem. Sabe como é, esses imprevistos de última hora...
Se tem gente pensando em voltar o quanto antes para
Mallorca - esse ano os alemães literalmente invadiram a
ilha, chegando a 315 mil pessoas num único fim de
semana! - por aqui tem também quem se alegre pelo
fato de que em Berlim não vai fazer sol nem calor. Eu,
por exemplo. Não sou Stasi nem fiquei maluca, mas
acontece que, no meu entender, há mais desvantagens
do que vantagens num verão berlinense. De manhã fez
sol e como tive que ir à redação pude notar as bruscas
mudanças climáticas na cabeça das pessoas que vivem
aqui. Começando pelo bairro de Kreuzberg, a terceira
maior cidade turca, depois de Istambul e Ankara, as
mulheres continuam deixando praticamente só os olhos
de fora, cobertas e recobertas com camadas e mais
camadas de panos e véus, a maior parte de negro. Nem
no dia do melhor humor é possível acreditar uma dessas
sofredoras contente. Você entra para comprar umas
garrafas de água mineral no Penny Market, que é o
mercado mais barato - aliás, acaba de me ocorrer que o
primeiro nome até que me é familiar, só que no plural - e
dá de cara com um corvo gigantesco do seu lado,
geralmente dando sopapo em menino, que esses
turquinhos começam cedo fazendo barganha. Bom, mas
voltando ao principal: se as turcas não tomarem pelo
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Choco
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onheci Kristina o ano passado, quando
estive a primeira temporada em Berlim.
namora um artista plástico que eu
no vôo da vinda para a Alemanha. Só nos vimos uma
noite, porque toda vez que eu combinava algum
encontro com o Shanti - o nome verdadeiro dele é
Sebastião! - acontecia alguma coisa e dava tudo errado.
No princípio eu não entendi direito o porquê. Depois
percebi que os dois, juntos, se transformam em figuras
absolutamente caóticas e, nesse aspecto, se
completam 100%. Personagens noturnos, também
tínhamos um certo problema de horário, já que eu sou
uma criatura tipicamente diurna. Posso dizer até mais:
quando tem luz do sol, pra mim é dia, embora isso em
Berlim, nessa época do ano, é meio dureza. Escurece lá
pelas 10 e amanhece por volta das 4. Acordo cada dia
mais cedo, mas às 22h, invariavelmente, já estou na
cama. Chegar à meia-noite acordada, no meu caso, só
com os amigos do peito ou então se o namorado der o
ar da sua graça. Kristina tem mesmo um ar de ser da
noite: muito pálida, magérrima, cabelos ruivos escorridos
e uma voz de penumbra. Preciso tomar cuidado com o
que escrevo, ela fala um excelente português, por conta
do tempo em que esteve no Brasil pesquisando o Santo
Daime. Foi lá que os dois se conheceram, ele um mulato
de cabelo encacheado, uma voz lindíssima e um talento
enorme para a pintura, de quem ainda vai se ouvir falar
muito. Pois então. Convidei Kristina, prudentemente,
para vir à minha casa, prevendo um possível bolo -
menos mal para ficar esperando. Ela apareceu com
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No sol
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stou sentada aqui fora na grama
sol. Agora há pouco passou um sujeito
bicicleta cantando É de manhã. O sol e
canção quase me fazem desacreditar de que estou em
Berlim. Acabo de ler duas cartas de amigos vindas do
Brasil, ambas contando de problemas no trabalho ou da
falta de emprego. Penso como aqui é tão seguro ir pra
qualquer canto de bicicleta e de como se manter vivo é
relativamente mais fácil e então surge uma pontinha de
vontade de ficar aqui para sempre. Existem alternativas
que podem garantir a permanência de um estrangeiro na
Alemanha. Só que tudo me cheira meio a engôdo. Uma
possibilidade é se inscrever como aluno em alguma
universidade, pagar a taxa de 100 marcos por semestre
e com isso garantir o status de estudante. Que significa:
ofertas melhores de trabalho, desconto em transporte
coletivo e entretenimento, o visto enquanto durar o
estudo. Como a maioria sequer vai à aula, a
permanência é ilimitada. Conheço uma moça de
Campinas, que como eu também já passou dos 30, que
vive desse jeito há mais de 6 anos em Zurique. Agora
ela está vindo para Berlim, aplicando o mesmo golpe. Eu
até cheguei a pensar no assunto, só que iria tentar
mesmo fazer um mestrado. Fui à Freie Universität Berlin.
Lá recebi uma senha com o número 828. O mostrador
estava em 121. Logo, a estrutura aqui também tem
falhas e, o pior, falhas disfarçadas num elenco em que
ninguém admite a sua existência. Chega uma
funcionária mal educada e me manda entrar na sala,
garantindo que está fazendo uma concessão, porque já
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Os fora da lei
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ma boa opção de transporte em Berlim
quase centenário metrô. A rede bem
esse nome: são dezenas de linhas de
Bahn e S-Bahn, metrô e metrô de superfície,
respectivamente, fora a oferta de ônibus e Straßenbahn,
que seria o nosso bonde. Uma passagem comum, que
se compra normalmente nos automáticos, dá direito a
andar em tudo isso. O bilhete mais simples vale para
viajar durante duas horas e custa 3 marcos e 60
centavos. Eu costumo comprar o bilhete mensal,
chamado de Umweltkarte, ou bilhete do meio-ambiente,
apesar de ele não ter nada de ecológico, que custa 93
marcos. Contando assim, parece simples, mas não é.
Existem inúmeras variações, bilhetes para categorias
especiais e para aposentados, obviamente com
diferença de preços, que incluem as seguintes opções:
bilhete semanal, bilhete que permite transportar bicicleta,
cachorro, carrinho de bebê (ou tudo ao mesmo tempo
agora), bilhete que possibilita levar dois acompanhantes
(só falta incluir um drinque grátis) durante o fim de
semana, e vai por aí. Outro complicador é que, desde o
1° de março, a cidade foi dividida em três áreas e as
tarifas ou são para as regiões A e B ou B e C, a última
mais longe do centro, tipo viagem a Potsdam, uma
cidade vizinha e bem popular graças ao museu e aos
jardins de Sanssouci. O bom do metrô é que, por todo
lado, tem cartazes mostrando as estações e além disso
uma voz anuncia, como num aeroporto, em que estação
se está chegando e quais são as conexões dali. Tudo
muito organizado para esse bando de preguiçosos
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Classificados
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abine 32 anos/1,70 m, morena, magra,
dois filhos, um deles deficiente, procura
companheiro para a vida a dois. Favor
foto. Caixa Postal BA-28640.
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Um camarada
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onheci Claus R. no dia 26 de maio de
quase um mês depois de ter procurado
escritório de tradutores e intérpretes
Transword. Os magros rendimentos como repórter
freelance me fizeram procurar uma alternativa de
trabalho e eu saí ligando para os números que encontrei
nas páginas amarelas, até que uma senhora chamada
Frau Kurse se apiedou de mim e marcou uma entrevista.
Meu formulário de inscrição foi encaminhado para o
Claus, que estava procurando alguém para fazer revisão
dos textos dele em português.
Depois de bater um papo comigo pelo telefone com
aquele sotaque característico lusitano, veio o Claus a
minha casa às duas da tarde daquela segunda-feira me
trazendo de cara um buquezinho de Maiglocken, uma
flor que só existe no mês de maio e tem um perfume
maravilhoso. A primeira encomenda era uma tradução
sobre umas gruas para enrolamento de cabos e ia servir
para instruir os operários portugueses, que junto com os
poloneses praticamente tomam conta de todos os
canteiros de obra da cidade, pelo simples fato de que
aceitam ganhar até 5 marcos a hora, enquanto o
operário alemão prefere o desemprego a se deixar
explorar e não aceita menos do que o triplo.
Uma semana depois, Claus veio buscar o trabalho
e novamente me trouxe um agrado: preparei um
Nescafé para acompanhar as fatias de Apfelstrudel que
ele havia comprado. Mais uma vez, Claus se demorou
bastante e na segunda visita eu já tinha contado
bastante da minha vida e do Brasil, e também já sabia
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Fronteiras do passado
A
mais longa galeria de arte ao ar
livre do mundo tem 1,3 km de
comprimento e já era famosa
antes de existir. Até 9 de novembro de 1989,
a East-Side-Gallery era apenas mais um
pedaço do internacionalmente conhecido
Muro de Berlim, que dividiu a cidade durante
quase 30 anos. Quando a reunificação do
país já estava em pauta, o Governo da então
Alemanha Oriental retirou 300 pedaços do
muro, cada um com 1,20 m por 3,60 m de
altura, para presentear personalidades ou
organizações mundialmente reconhecidas,
dentre eles o Papa João Paulo II e a CIA. Dos
155 quilômetros originais, sobraram de pé
apenas alguns trechos pequenos, como o que
fica na Niederkirchnerstraße ou no
Invalidenfriedhof, o resto foi derrubado e
reutilizado para fazer aterros. Salvaram-se
apenas os pedacinhos, de procedência
duvidosa, ainda hoje vendidos como
souvenirs e os mil e trezentos metros da East-
Side-Gallery, na Muhlenstraße, entre a
Oberbaumbrücke e a Hauptbahnhof, graças à
intervenção de uma escocesa chamada
Christine Mc Lean. Na época ela trabalhava
no Conselho Britânico, que aliás ficava em
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Triângulos
A
s moscas alemãs voam diferente das
moscas brasileiras. Não foi ninguém
contou, eu mesma vi e acompanhei o
moscas e mais moscas aqui na sala do meu
apartamento na Boppstraße, esquina com o cinema
Moviemento, na Kottbusser Damm. Isso para vocês
terem uma idéia do quanto eu andei ocupada! As
moscas elas só começaram a aparecer no verão, que
não tem nada de quente e corresponde apenas aos
meses de junho a setembro. Esses insetos urbanos
gostavam de estacionar pendurados de cabeça pra
baixo na borda do lustre da sala, uma cúpula cor de
cobre por fora e branca por dentro, que exibia várias
pintinhas pretas ao redor, deixando advinhar para o que
é que as moscas estacionam. Pois então, quando não
estavam defecando na borda do meu lustre, as moscas
costumavam ficar voando ali por perto e eu fiz a
tremenda descoberta: elas voam em forma de triângulos.
Agora mesmo tem uma ali, deixa eu acompanhar um
pouco pra ver como eu explico isso. Vamos dizer que ela
voa para frente, o que não dura mais do que dois
segundos, isso porque parece que ela esqueceu alguma
coisa e resolveu voltar, então se atira para um lado num
ângulo de 120° e vai em frente, pra dali a pouco se
esquecer do que tinha esquecido e dar outra guinada,
que parece levá-la dali a dois segundos ao mesmo ponto
de partida. Ficou claro? A mosca voa lento, mas quando
lembra que se esqueceu se arremete com tal fúria para
outra direção, e segue voando lento, só a quebra da
trajetória é rápida. Vocês devem estar pensando, será
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que essa mulher não tem nada melhor pra fazer? Não,
não tenho. E realmente acho que o vôo de uma mosca
alemã é impressionante. Sabem aqueles jogos de pinball
em que a bolinha sai quicando quando bate nos
obstáculos? Então, é a mesma coisa. Mosca de país
desenvolvido curte trigonometria. Mosca teutônica voa
em forma de polígono. Ela só se engana um pouquinho
voando na triangular. Se voasse fazendo um quadrado,
tinha tudo a ver com o povo daqui...
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m maestro paulista, meu conhecido, na
companhia de quem apurei meu
entendimento de óperas e concertos
teatros berlinenses, me passou uma vez um libreto com
a programação anual da Deutsche Oper Berlin. Foi ali
que eu encontrei o nome do coreógrafo Roberto de
Oliveira, a quem havia entrevistado dois anos antes no
Rio, e que imediatamente pareceu ser uma boa fonte.
Realmente. O Roberto, o Antônio Gomes e o Rodrigo
Pederneiras, do Grupo Corpo, estavam naquelas
semanas conseguindo um verdadeiro feito para a arte
brasileira. Pela primeira vez na história, um balé
concebido exclusivamente por coreógrafos brasileiros ia
ser apresentado na Europa.
Claro que os três mosqueteiros contavam com a
ajuda de um quarto, nesse caso o próprio diretor de balé
da Deutsche Oper Berlin, o californiano Richard Cragun,
autor da idéia. Sem querer criar limitações místicas ou
religiosas, Credo deveria se tornar uma noite positiva,
em que o público voltasse para casa mais otimista. “Hoje
em dia, principalmente aqui na Europa, ninguém acredita
em mais nada. É importante resgatar a crença em si
mesmo, nas relações amorosas, seja lá o que for. De
estresse e problemas, todo mundo anda cheio”,
comentou o americano.
Quando ofereci a pauta na redação, ela foi
sumariamente executada por um pelotão de fuzilamento:
“isso aí pode até ser notícia no Brasil, aqui, não
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ssa não é a história na íntegra, mas
poderia ter sido. Os ingredientes estão
lá: um homem, uma mulher, romance e
música. Digamos que esta seja uma versão possível,
bem mais interessante do que a original. O homem - um
alemão - e a mulher - uma brasileira - se conheceram
num congresso em Zurique. Foi tesão à primeira vista,
segundo relato dos colegas dele. Viveram um romance
intenso que durou, cinematograficamente, nove
semanas e meia de amor, nem um dia a mais, nem a
menos, e terminou nalgum mês perdido pelo ano de
1994. O triste desfecho se deu numa segunda-feira.
Encontraram-se para jantar e em seguida a morena
bonita pediu que o rapaz a levasse para casa. Fugindo
do normal, ela estava muito calada aquela noite,
enquanto ele adivinhava o que viria a caminho, as gotas
de suor na testa brilhando sob o candelabro, mas
tentando o tempo inteiro espantar essas abominações
da cabeça. Só que raras são as vezes em que os maus
pressentimentos não se concretizam e aquela noite não
foi uma exceção. Quando chegaram na casa dela,
Cláudia disparou: está tudo acabado. Pode ir embora e
não me apareça mais. Esqueça que eu existo. Michael
gelou dentro das calças, segurou-se disfarçadamente na
parede e, tentando manter a pose de macho, disse, com
um sorrisinho nervoso: o que é isso, você bebeu
demais? E ela: estou indo para a Inglaterra na quinta-
feira, consegui o emprego de tradutora. Ele, que sequer
foi informado de que a moça se candidatara, reagiu:
mas, e eu? Você fica aí, né, cuidando da sua vidinha,
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Holocausto
H
olocausto = palavra grega que significa
que queimou até as cinzas.
Quando cheguei a Berlim ainda era o
inverno. Tomar banhos diários numa casa com
aquecimento a carvão não é a coisa mais agradável do
mundo, mas mesmo assim não abri mão, nem um dia.
São essas coisas que refletem a cultura da gente.
Imaginar um dia sem banho pra mim seria horrível. O
processo demorava algumas horas e eu tive que
continuar com ele para o banho, mesmo depois que não
precisava mais acender o fogo na sala para esquentar o
ambiente. No banheiro tinha uma espécie de fornalha,
onde se coloca primeiro um acendedor - que é um
pedaço de compensado ou de um giz embebido em
querosene - onde se ateou fogo e por cima pitocos de
madeira e por último os tijolos negros de carvão. Para
não congelar de frio, me acostumei a encher a banheira
com água quente e espuma pra tomar o banho e acabei
mantendo o hábito depois que o tempo esquentou.
Chuveiro só nos dias em que recebia visita, em que se
toma banho com pressa pra liberar o banheiro. De resto,
eu ficava todo dia pelo menos 30 minutos na banheira,
brincando com a espuma, feito criança. Vou sentir falta a
partir da semana que vem, quando passo a dividir o
apartamento de uma estudante. Duvido que ela vai ter
entendimento para as minhas incursões aquáticas.
Acender o fogo é uma coisa bonita, ele tem uma luz
laranja, diferente da luz azulada de quando se acende o
fogão a gás para cozinhar. Além disso, faz um som
muito interessante enquanto está queimando. Acredito
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Humanismo em grande
angular
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ão é de hoje que a sensibilidade
do artista vem tentando retratar
um tipo de beleza que só existe
no trabalho - os estivadores de Portinari que o
digam! Para 4/5 da humanidade,
principalmente no hemisfério sul, a máxima do
“ganharás o pão com o suor do próprio rosto”
está na ordem do dia e, por isso, a mais
recente exposição fotográfica de Sebastião
Salgado na capital da Alemanha vem bem a
calhar. Para reunir o registro histórico de 400
fotos em preto e branco que é
Trabalhadores, o retratista mais famoso da
atualidade rodou nada menos que 26 países,
entre 1986 e 1992, no seu melhor estilo, que é
se dando o tempo necessário para, primeiro,
entender, e só então fotografar. Uma boa
mostra desse tour de force vai estar no
Instituto Cultural Brasileiro em Berlim, de
24 de outubro a 28 de novembro, enquanto o
mestre faz do Cairo um dos cenários do seu
projeto mais recente: grandes migrações pelo
mundo, a ser apresentado na virada do
milênio.
A linguagem utilizada por Sebastião
Salgado não poderia ser mais incisiva, dentro
da sua militância pela arte engajada. Olhar
para aqueles homens cobertos de petróleo
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No oficial
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restação de serviços é uma coisa que,
na Alemanha, se confunde e se perde
exagero da burocracia. No Brasil, seria
inimaginável pensar que alguém simplesmente feche o
seu comércio por várias semanas e para isso pendure
apenas um cartazinho na porta, dizendo: estamos de
férias entre 15 de junho e 7 de julho. Só falta escrever
“volte sempre”. Tempo suficiente para que se perca a
clientela. Mas acontece. Imagine-se, então, o que é
permanecer legal num país como esse. O meu caso é
um bom exemplo. Levei quase um mês pra acertar a
papelada. A primeira parada era o Meldestelle, onde eu
deveria comparecer com o contrato de aluguel e o
passaporte. Os horários de atendimento, como sempre,
um pouco confusos: segundas, terças e quintas de 7h30
às 14h, quartas de 13h às 19h, sextas de 7h30 ao meio-
dia. Informação pelo telefone, sempre ocupado, é quase
impossível. Pena, porque seria útil saber a qual escritório
da rede se dirigir. Depende da circunscrição do bairro
em que você está morando. Que você só fica sabendo
qual é se for até um escritório. Provavelmente o errado,
como também me aconteceu. Contando assim não
parece ser nenhum problema. O detalhe é que as salas
de espera fervilham de gente. Com duas horas de
expediente, as senhas, que você retira de um automático
assim que chega - se for malandro o suficiente pra
perceber qual é a jogada, porque não tem nenhum
funcionário a quem perguntar - já passaram do 150. Um
mostrador eletrônico na parede vai mudando o número
das senhas e informando do lado a que sala se dirigir.
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Vida cristã
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a terça-feira, 10 de junho, às sete e
noite, o Padre Fernando*, de São
ser o convidado especial da igreja
evangélica de Philippuskirche. Mais uma vez, como há 3
anos, ele vai contar da Ação Social Franciscana do
Brasil, através da qual ele ampara 1.500 crianças. Ano
passado, as despesas chegaram a 350 mil reais. O
orçamento deste ano vai dobrar, porque todo dia
aparece uma criança nova. E como o auxílio dos cofres
públicos é mínimo, no final das contas tem muito menino
de rua de São Paulo sobrevivendo de doações
estrangeiras.
Às vezes o padre Fernando parece um político, às
vezes um pai, a aparência rigorosa e o aperto de mão
forte contrastando com a mansidão do olhar. O negro de
cabelos brancos fala das crianças como se elas fossem
suas e luta pela educação, pela alimentação e também
para que estejam a salvo dos esquadrões da morte.
Geralmente, o extermínio dos meninos de rua da área é
encomendado pelos comerciantes como forma de coibir
o assalto a lojas, ou então pelos donos do tráfico, como
queima de arquivo. Por apenas 40 reais, um matador
executa o menino de rua. E quando o padre Fernando
começou a ampliar sua atuação missionária do lado de
fora da igreja, no ano de 1990, contou 42 vítimas num
período de não mais que 7 meses. Ele ainda se lembra
de cada uma das crianças que perdeu para a violência
em Campo Limpo.
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Verdades absolutas
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uando eu contei a tal história de
que, estando no metrô, a gente
nunca sabe se quem está
chegando pela frente é um controlador ou um
Obdachlose, fiquei meio na dúvida se estava
ou não exagerando. Aliás, eu vivo por aí
conferindo se os meus vereditos sobre Berlim
estavam mesmo corretos. Até agora, está
batendo. E hoje eu confirmei mais um, num
lance absolutamente delicioso. Foi assim. Fui
entrevistar o pintor naif - e, diga-se de
passagem, ele também é um homem naif! -
Chico Laranjeira e, na volta, me aparece um
cara no S-Bahn, pequenino, mas com a pose
peculiar dos Controlleurs: Ausweis! A palavra
significa documento, mas é o que os
controladores geralmente gritam, para o
pessoal mostrar a passagem. Todo mundo
deu aquele pinote peculiar e eu já estava
metendo a mão na bolsa, quando ele tirou da
sacola um exemplar do segundo jornal dos
sem-teto de Berlim, chamado Straßenfeger.
“Agora que passou o susto, podem relaxar!
Quem de vocês vai querer a edição dessa
semana?”, saiu falando, satisfeito, com a cara
de quem estava se divertindo muito. Todo
mundo comprou, e os passageiros que não
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Vista do canal
C
ontar das minhas relações de trabalho
rádio MultiKulti é passar raspando
incidente diplomático mas, vá lá. Para
começar, alguém devia ter me dito que eu ia ter
descontados na fonte 21,5% de impostos. O que perfaz
a absurda quantia de 160 marcos, ou 100 reais
limpinhos por matéria! Acho que nem no Brasil se paga
tão mal. Um cidadão que critique o estado poderia
justificar a mesquinharia, dizendo que a rádio é estatal
(lembro que cada pessoa que tem uma tv e um rádio
paga 30 e poucos marcos por mês de imposto só para
manter as emissoras públicas, taí um outro
procedimento maluco de se inscrever e cancelar com
formulários, de dar arrepios na coluna!). Somos uma
horda de nababos, os jornalistas brasileiros, e não
sabíamos! Afora os bolsos vazios, o que incomodou
mesmo foram as relações pessoais. Experimente abrir a
boca para dar bom dia a qualquer redatora no horário da
manhã e será devidamente rechaçado com um sonoro
“não posso falar agora”, só porque o programa Metro vai
ao ar de 12 às 14h e todo dia nenhuma delas sabe com
que diabos vai conseguir dar conta do trabalho. Comigo
aconteceu de ser recusada, depois de me oferecer para
fazer uma matéria absolutamente imbecil, a título de que
não ia saber. Isso na frente de um monte de colegas,
invariavelmente alemães, porque na rádio multicultural
apenas eu vinha do exterior, durante uma das reuniões
de pauta. Tudo bem. Quem se importa com a escola de
palhaços da Anatólia? Eu até já sabia que a região fica
em algum lugar da Turquia. Como os cisnes aqui do
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final.
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Manchetes
T
ão ocupada eu tenho estado em
para a posteridade como acabei me
uma genuína berliner Schnauzer - no
já destoava da paisagem com meu jeitão rabugento -
que quase me esquecia de mencionar o que os jornais
noticiam por aqui. Três assuntos principais vêm se
arrastando há meses e estão quase todo dia, em forma
de guisado e de picadinho, requentados nos jornais. O
primeiro, e mais importante, é a discussão da reforma
fiscal, que se debate - no sentido físico do termo - no
congresso sem chegar a nenhuma mudança de vulto,
por enquanto. O pior ainda está por vir. Para não entrar
na ladainha do que são os impostos na Alemanha, vou
direto ao ponto, citando o exemplo da colega Gunda L.
Trabalhando como redatora freelance na rádio
MultiKulti, ela tem um honorário de 300 marcos por dia,
o que corresponde a 200 reais. Duzentos vezes 5 dá mil
reais por semana ou 4 mil por mês, o que faria da
redatora um tremendo baú, não fosse sua tendência
para um iminente ataque de nervos e o fato de que ela
não trabalha diariamente, devido a normas internas.
Acontece que Gunda é solteira, obviamente, e não tem
filhos. Por isso, a parte que cabe ao leão - ou quem sabe
eu deveria dizer urso, para caracterizar mais a cidade de
Berlim, ou até mesmo a águia para contextualizar que o
assalto aos bolsos privados acontece em escala
nacional, taí um bom terno de grupo: águia, leão e urso -
é de nada mais, nada menos, 50%. Dá pra imaginar uma
coisa dessas? Você trabalha e tem que pagar metade do
seu salário de impostos. É dureza. Se a tal reforma fiscal
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que lhe tremia na mão, berrou: Ai!, meu Deus, como era
mesmo o nome?” Ou então com a clássica tomada de
camponeses e soldados enchendo o saco juntos, no
total foram usados 9 milhões de sacos de areia para
conter a força da água. Mesmo assim, teve gente que
perdeu tudo, principalmente na Polônia, que contabilizou
48 mortos. Notícias de primeira página, porém de curta
duração, disseram respeito aos esportes. O time de
basquete Alba Berlin andou aí marcando as suas cestas
e Jan Ulrich foi o vencedor da maratona ciclística de
vários dias pela França - apesar de nascido numa
cidadezinha chamada Merdingen. Os telespectadores e
ouvintes não podiam mais ouvir dizer de novo que ele
estava competindo com o gelbe Trikot, o que significa,
de camisa amarela, enquanto os colegas da equipe se
mantinham fiéis ao cinza e rosa choque da
patrocinadora Telekom. Acontece que Ulrich é um cara
antenado a ponto de perceber a tempo que o canarinho
é quem leva, inspirado na melhor tradição futebolística
da terrinha. Aliás, falando de futebol, o time berlinense
Hertha passou da segunda para a primeira divisão - a
rede de metrô e S-Bahn já está sendo ampliada nas
redondezas do Olympiastadion, aquele mesmo onde o
velocista Jesse Owens fez Hitler ver a coisa preta e
acabou virando nome da principal avenida que leva ao
estádio, para atender aos aficionados do esporte.
Detalhe: numa partida onde o time apenas empatou com
o Dortmund em 1 x 1, semanas atrás, não se falava em
outra coisa. Parecia até que tinha levado o título de
melhor clube do mundo, como o Mengão em 81. Deu até
peninha!
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P
apel - O carioca que conseguir se
caminhando com um pacote de 8 rolos
papel higiênico debaixo do braço no
da cidade, à vista de todo mundo, merece um tapinha
nas costas. Tanto quanto eu me lembro, por aí nós
costumamos ser mais discretos, no que diz respeito aos
nossos hábitos sanitários e não saímos submetendo a
nossa preferência pelo fino ou pelo grosso, pelo picotado
ou pela folha dupla, à aprovação geral. Em outras
palavras, o vizinho não precisa ficar sabendo que hoje
você comprou de novo mais 16 rolos, porque você
acondiciona os pacotes direitinho dentro da sacola de
plástico, misturados lá com umas latas de óleo e uns
pacotes de macarrão. Mas aqui é um bando de
desavergonhados. É comum dar de cara com um sujeito
de terno e gravata ou uma dona de salto alto,
ostentando displicentes o precioso carregamento,
completamente às claras. A desculpa deve ser de que o
fardo não cabe nem nas maiores sacolas de plástico que
são vendidas no supermercado. Não sei como ainda
nenhuma dessas malucas daqui inventou de pendurar
um ob na orelha. De repente, no barzinho, pede licença
para ir ao banheiro e volta sem o brinco, seria o máximo
do blasé! No caso do papel higiênico do Penny Markt,
que lamentavelmente não é o mercado de órgãos
masculinos, já que aqui o produto anda em falta, a
situação beira mesmo o ridículo. O nome do papel
produzido pela cadeia de supermercados foi escolhido,
sem dúvida nenhuma, por algum pervertido: Happy End.
Isso lá é nome para papel higiênico?
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Rescaldo
E
nquanto esperava meus amigos Birgit e
que vinham me visitar no último fim de
semana no meu apartamento grande,
aproveitei para assistir televisão. Duas vezes Birgit me
ligou no meio do caminho, fazendo o mesmo
desagradável comunicado: estamos presos no
engarrafamento. Em vez de 6 horas, a viagem de Mainz
a Berlim acabou levando 10. Até que eles chegassem,
esfalfados mas ainda assim de bom humor, à meia-noite
de sábado, o jeito de manter meus diurnos olhos abertos
foi mesmo ir zapeando. Nessa noite, em que não vi nada
do início ao fim, parei primeiro num filme preto e branco
com Ricardo Montalbán, ainda com cara de garoto,
sobre um monge que levitava. Não apenas qualquer
acessório, ele fazia subir mesmo o corpo todo. Quando a
inquisição do invejoso patrão da Ilha da Fantasia, que no
papel de abnegado monge não era capaz de fazer subir
coisa alguma, começou a me encher o saco, mudei para
um filme de guerra, também preto e branco, gravado
sabe Deus quando. Acreditem, o filme de guerra era a
coisa mais animada naquela noite de sábado. Era isso
ou então uns programas de debates infindáveis sobre
calotes ou impostos, o que dá na mesma, ou pior,
programas de Volksmusik, que é a música sertaneja
daqui - não queiram ouvir, que dirá ver, as bandinhas
com todo mundo vestidinho de tirolês! Isso num sábado
à noite é de brochar qualquer marido o resto do fim de
semana. Fiquei tão impressionada que desta vez sim me
preocupei em apurar o nome do filme. Comentei com
meu amigo Dirk e pela descrição ele me disse que podia
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Vagando
E
u tinha apenas ido jantar com um
velho amigo, dado a sorte de
encontrar, por mero acaso, o
restaurante Tres Pesos numa noite em que o
apetite era de comida mexicana, para pouco
depois duvidar da mesma sorte, já que a
comida não era lá das melhores, e na volta
para casa entrei num S-Bahn na estação do
zoológico. Foi um corte, com uma lâmina
tanto rápida quanto afiada, entrar naquele
vagão... De lembranças do nosso romance
tumultuado a conversas engraçadas, eu
mergulhei num compartimento que quase não
enxergava direito, porque fazia frio e a
respiração das pessoas embaçava os vidros
pelo lado de dentro.
Policiais vestidos em uniforme de
choque, verde musgo, capacete, protetor
contra gases, e o ar de quem está pronto para
qualquer coisa, guardavam cada porta, aos
pares. Dentro do trem, torcedores e mais
torcedores, jovens ou não, alcoolizados ou
não, homens ou não, voltando de uma partida
de hockey em que o time da casa, Eisbären,
aparentemente tinha sido o campeão da noite.
Praticamente não havia mais lugar, acho que
só entrei, sem perceber o que estava fazendo,
porque um casal atrás de mim forçou
passagem. Agora eu estava ali dentro da
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Exatidões
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ive que correr a Hamburgo e não
força de expressão: um intervalo de três
pernoites, entre o dia 30 de julho e o dia
de agosto, quando já tinha deixado o apartamentão e
ainda não podia vir pro outro apartamento, graças ao
telefonema e ao convite da minha querida amiga
Susanne. Comprei um dia o jornal - e não me perguntem
de novo o nome, minha cabeça sofre de um vendaval
crônico em que pouca coisa pára em pé - e ali, na
página da previsão do tempo, me deparei com um dado
instigante. Cem anos atrás, em 31 de julho de 1897,
pleno verão europeu, a temperatura máxima na cidade
foi de 21ºC e a mínima de 13ºC. Aquilo me fez pensar.
Todo jornal mais caduco tem lá a sua coluna onde
aparece o que publicou há não sei quanto tempo, mas
geralmente são notícias, não a meteorologia! A
centenária curiosidade não significa necessariamente
uma habilidade alemã para o perfeccionismo. Não,
amigos, fujam desse engano! Na última reunião de pauta
o companheiro Harald Neckermann, repórter respeitado,
comentou que na Alemanha os carros nacionais são
considerados pouco sólidos, afirmação que ninguém
discutiu. Se eu contasse às personalidades históricas,
como Bismarck e, por que não?, Hitler, o que é que esse
povo anda aprontando por aqui, eles não iam acreditar e
certamente se justificariam dizendo: tá vendo por que é
que estrangeiro bom é o que fica detrás da fronteira?
Nossos lourinhos só aprendem o que não presta! Em
poucos meses, eu colecionei alguns bons exemplos da
retórica possível desses governantes. Um dos mais
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Personalidades
N
os piores dias de crise que eu precisei
passar aqui na Alemanha, experimentei
fenômeno que até então desconhecia.
Nesses dias, em que eu mal conseguia suportar a dor de
um coração partido e a constatação de que o trabalho
não ia ser tão fácil quanto eu imaginava - e isso
justamente por causa do jeito das pessoas - muitas
vezes eu me sentei numa pedra ou num banco de praça
para chorar. Acho que daria até para fazer um tour com
um guia explicando: aqui nessa pedra, senhores, em
frente a Haus der Kulturen der Welt6, ela se sentou para
chorar na desavença inaugural com a MultiKulti, isso foi
logo no primeiro fim de semana. Ou então: este é o
banco da Theodor-Heuss-Platz em que foram
derramadas copiosas lágrimas por causa de um certo
Joãozinho S. Chorar alivia na hora, mas os problemas
mesmo eu tive que digerir de outra maneira,
trabalhando, me divertindo, estando com amigos. Só que
enquanto você não está bem, podem aparecer alguns
efeitos colaterais, além de ocasionais gritarias e
chiliques esparsos. No meu caso, foi uma tontura sem
precedentes. Vai ver eu fiquei intoxicada pelos
problemas, é, vai ver que foi isso. Parecia que eu vivia
uma interminável ressaca, da qual eu já desconfiava, e
constatei de verdade depois de uns 3 ou 4 encontrões
com os batentes das portas. Sim, era isso: eu havia me
tornado a mulher que não consegue passar pela porta.
Meu apartamento antigo tinha espaço de sobra, eu
mirava, firmava o passo e... bump! Lá estava eu de novo
com o chifre numa esquadria. Comecei a ficar
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D
ia desses, passava eu pela
quando uma voz esbravejando chamou
minha atenção. Era um tocador de
primeiro que eu vi em Berlim nessa temporada, e ele não
parecia lá muito contente da vida. “Vocês estão todos
mortos! Todos mortos e não sabiam” , gritava o velho
com aquele chapeuzinho côco peculiar, para a sorte dos
passantes ele deixou o mico em casa, senão ia chover
banana podre em cima de todo mundo, tamanha a fúria.
Preocupada com a repercussão do ataque feroz do
ambulante contra a freguesia, a vendedora de girassóis,
uma senhora de rostinho amável, tratou de acalmá-lo
com incentivos e gracejos. Aos poucos o homem
começou lá a girar sua manivela e voltou a si. Então fui
eu que saí dali com aquelas palavras na cabeça. Claro
que eu sabia do que é que ele estava falando. Melhor do
que ninguém, um tocador de realejo deve poder avaliar a
quantas anda o otimismo da localidade. Ele ali suando a
camisa pra repartir sua musiquinha circense, instalar
uma atmosfera festiva, e nego - nego não, que o pessoal
aqui está mais para barata descascada - e branco só
passa de cara amarrada, chutando lata, e olha que
estava fazendo tempo bom. Essa frieza de quem já
morreu e não sabe, de quem já não consegue mais se
emocionar, não é exclusividade dessa capital somente.
Embora eu ache que aqui ela ultrapassa a média das
metrópoles mundiais, apesar do estonteante berliner
Flair. No fundo, a reação do tocador de realejo, que
levou o pessimismo dos outros para o lado pessoal -
quando provavelmente esse estado de espírito tem
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Programa de anjo
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os outrora aguerridos céus de Berlim
hoje os anjos. Mesmo com as asas
anjos se reconhecem no Carnaval das
Culturas, em Kreuzberg. Tiram fotos uns dos outros,
combinam de ir tomar um guaraná, mas como chegam
duas horas antes de o bar abrir, acabam indo fazer um
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programa alternativo e vão baixar no Tacheles . Anjos
viajam quase sempre de bicicleta e domingo de manhã,
em vez de ir à missa, fazem um programa de paraíba e
se encontram no parque, em frente à fonte
Märchenbrunnen, para tomar o café da manhã, onde
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não faltam garrafinhas one-way de Sekt . Numa tarde de
sol de quarta-feira, que é o dia da semana dedicado ao
anjo da guarda, anjos vão visitar o cemitério dos judeus
em Weißensee, mas chegam duas horas atrasados e
encontram as portas fechadas. Então decidem ir fazer
um programa de índio, indo se deitar no gramado junto
ao lago, depois de molhar os pés na água fria, sem se
cortar nos cacos de vidro espalhados para impedir a
entrada dos banhistas. Só os anjos são capazes de
reconhecer o anagrama em que o nome de Lúcifer foi
usado para denominar o grupo principal do Santo Daime
e se presenteiam mutuamente com os nomes, uns dos
outros, escritos em chinês. Anjos não dispensam um
programa legal, aproveitando que o Cirque du Soleil
está na cidade para desfrutar com Alegria da elegância
e do humor que lhes é peculiar. Na mesma noite, anjos
jantam berinjela com polenta e salada de laranja,
fazendo o maior esforço pra não tomar o sorvete cor de
rosa da sobremesa antes do prato principal. Nem antes,
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