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COM OS BOLSOS CHEIOS DE PÃO

De: MATEI VISNIECK

PERSONAGENS:

HOMEM DE CHAPÉU
HOMEM DE BENGALA

Ao redor de um poço abandonado

Homem de Bengala: Esses caras não são homens.

Homem de chapéu: Homens, eles?

Bengala: Não sei como poderíamos chamá-los. São uns...

Chapéu: Nojentos.

Bengala: Isso.

Chapéu: Sádicos.

Bengala: Exatamente.

Chapéu: Nojentos sádicos. Não tem outra palavra.

Bengala: São um lixo.

Chapéu: Exato. Um lixo.

Bengala: Isso não se faz. Tudo menos isso.

Chapéu: Sem dúvida. Isso não se faz.

Bengala: Assassinos.

Chapéu: Que matam a sangue frio. Assassinos. Criminosos.

Bengala: Crápulas.

PAUSA

Chapéu: Esses crápulas têm que pagar por isso.

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Bengala: Pagar? Imagine! Têm que levar um monte de porrada.

Chapéu: Sem dúvida, muita porrada.

Bengala: Mas bater mesmo, quebrar os dentes e tudo!

Chapéu: Com certeza. Sem piedade.

Bengala: Esmagá-los como vermes. Bem feito para eles: serem esmagados como vermes e
depois largados, apodrecendo na lama.

Chapéu: É. Que eles apodreçam lá, na beira da estrada. Virem carniça. Que qualquer um
que passe cuspa em cima deles.

Bengala: O que eles merecem é que a gente meta a mão neles.

Chapéu: Não, isso não seria suficiente. Tem é que cobri-los de porrada.

Bengala: Dar porrada, tudo bem. Mas para dar porrada tem que se meter a mão antes. É
mais fácil dar porrada que meter a mão.

PAUSA

Chapéu: Bom, não vemos nada lá.

Bengala: Lá não vemos nada, mas vimos.

Chapéu: Quando?

Bengala: Ao meio dia.

Chapéu: Nós vimos ao meio dia?

Bengala: Ao meio dia, sim, nós vimos. Ao meio dia passei por aqui e vimos. Essa manhã
também nós vimos.

Chapéu: Você passou por aqui essa manhã?

Bengala: De manhã, sim...

Chapéu: E ele latia?

Bengala: Ah, sim! Ele não parava de latir.

O homem de chapéu olha dentro do poço.

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Chapéu: Enfim, talvez não seja culpa de ninguém.

Bengala: Como não seja culpa de ninguém?

Chapéu: Assim. Pode ser que ele tenha caído sozinho. Ele estava passando e de repente
caiu como todo mundo cai num poço.

Bengala: Impossível.

Chapéu: E por que não? A gente vê cada coisa...

Bengala: Como é que você quer que ele caia sozinho? Ele não tava nem mesmo com os
olhos vendados.

Chapéu: Nunca se sabe. E se ele fosse cego?

Bengala: Estupidez!

Chapéu: Ah, isso não! Por que estupidez? Você sabe quantos cegos andam por aí?

Bengala: Isso não tem nenhum nexo.

Chapéu: Ah! Essa é boa! E por que não tem nexo?

Bengala: Será possível que alguém já viu um cachorro cego? Homens e até mesmo
mulheres, crianças, tudo bem. Mas cachorro...! Quantos cachorros cegos você já viu? Por
curiosidade...

Chapéu: nenhum.

Bengala: Óbvio.

Chapéu: Cachorro, em geral, não. Mas pode ser que esse fosse. Não os cachorros em geral,
somente este.

Bengala: Não mesmo. Cachorro cego não existe.

Chapéu: Não existe a não ser este daqui. A menos que ele tenha se jogado.

Bengala: Não entendendo.

Chapéu: Se matar, senhor, se suicidar. Ele devia estar de saco cheio e resolveu se jogar
neste poço conscientemente, deliberadamente.

Bengala: Animais, não se matam, senhor. É por isso que são chamados animais.

Chapéu: verdade? E as baleias?


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Bengala: O que tem as baleias?

Chapéu: baleias não são animais?

Bengala: Não vejo conexão.

Chapéu: São animais como quaisquer outros, as baleias, senhor. E mesmo assim se jogam
na praia. Isso ninguém pode negar: a ciência já comprovou que as baleias se jogam e
encalham na praia deliberadamente, portanto, se matam.

Bengala: As baleias são uma coisa e os cães são outra. Não se pode comparar.

Chapéu: Me perdoe, mas não compartilho da vossa opinião. As baleias são animais somo
todos os animais e, portanto, se matam como os homens.

Bengala: mas por que cargas d´água você quer que uma baleia se mate? Os animais não
fazem isso.

Chapéu: Isso era antigamente. Hoje em dia o mundo mudou. O mundo, isso tudo que fica
ao nosso redor, muda, senhor. É um movimento contínuo. Hoje em dia o mundo mudou e
nós podemos acreditar em tudo. Você sabia que a aranha devora seu macho? Ela devora até
sua última migalha, não sobra nada, nada. E o que você acha disso, hein?

Bengala: Ela o devora porque é assim no mundo das aranhas. Esses animais foram feitos
para se devorarem. Isso foi sempre assim, no mundo das aranhas.

Chapéu: Pode ser, mas a ciência prova que hoje em dia as aranhas vêm se devorando muito
mais do que antigamente.

Bengala: Mas de onde você tirou todas essas besteiras?

Chapéu: Pode até ser besteira, mas você já reparou na quantidade de moscas que tem
havido de um tempo para cá? Há alguns anos não havia tanta mosca. As moscas, no
inverno, morriam e não tinha nenhuma voando por aí. Hoje em dia, ih! Elas tão aí, voando
na nossa cara.

Bengala: Escuta, do que é que estamos falando, afinal? De moscas ou de cachorros? Com
certeza, não são a mesma coisa.

Chapéu: de moscas, é óbvio. O cachorro, eu nem o estou vendo.

Bengala: Agora nós não o vemos, mas eu te digo que há pouco nós o vimos.

Chapéu: E se de repente isso foi só uma ilusão, que você achou que tivesse acontecido?

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Bengala: Por que é que você quer que isso tenha sido uma ilusão, se eu realmente vi? Eu vi
como te vejo agora.

Chapéu: E então? Você nunca ouviu falar em miragens?

Bengala: Aqui não é um deserto! E eu posso jurar que eu o vi! E não sou idiota!

Chapéu: Não se enerve, eu acredito em você.

Eles olham dentro do poço.

Chapéu: Talvez ele esteja morto.

Bengala: Não sei... É possível. De fato, eu não acredito.

Chapéu: Nós podíamos acender um fósforo e jogar lá dentro. E se nós acendêssemos um


fósforo e jogássemos lá dentro, hein? Uma bolinha de papel seria inclusive melhor. E se
nós queimássemos uma bolinha de papel e jogássemos lá dentro?

Bengala: Isso vai fazer ele morrer de medo.

Chapéu: Por que ele teria medo de uma bolinha de papel em chamas? É só para ver se ele
ainda está lá.

Bengala: Ele deve estar lá.

Chapéu: Para ver se ele ainda está vivo. Por que temer?

Bengala: Ele ficará com medo. Para os animais, o fogo é sempre apavorante. Onde já se viu
um animal que fique ao lado do fogo?

Chapéu: É verdade, mas pode ser que esse seja diferente. Pode ser que para esse daqui, o
fogo não faça nada.

Bengala: Tá brincando? Onde já se viu um animal que não tenha medo do fogo! Os animais
são assim, sempre têm medo de fogo. Já eu sou da opinião que seria muito melhor jogar
uma pedra.

Chapéu: E se ela cair em cima dele? Pode machucar.

Bengala: A gente escolhe uma bem pequena.

Chapéu: Mesmo uma bem pequena. E se ela cair no olho dele, hein? Mesmo se ela for
pequena, essa pedra, se ela cair no olho dele pode até furar.

Bengala: Ms também pode ser que não!

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Chapéu: E se ela furar o olho dele?

Bengala: A única coisa que conta é que ela faça ele grunhir, não é? SE ele estiver morto,
daí não vai acontecer nada, mesmo que a pedra caia no olho dele. E se ele estiver vivo, e e
mesmo que a pedra caia no olho dele e fure, ele vai grunhir, ele vai latir, e nós saberemos
que ele está vivo e será pro bem dele, não é?

O homem de chapéu apanha uma pedra.

Chapéu: Esta daqui está boa?

Bengala: Essa não.

Chapéu: Ah! Então escolhe você, pô!

Bengala: O que conta é que ela seja lisa.

Chapéu: Essa daqui, acho que serve.

Bengala: É, essa tá boa. Agora joga.

Chapéu: A idéia foi sua. Você que disse de jogar uma pedra, eis uma boa, agora joga você.

Bengala: Ai! Não tem nenhuma importância quem joga, ou deixa de jogar.

Chapéu: Se não tem importância, joga você mesmo.

O Homem de bengala joga a pedra. Fica atento.

Chapéu: Ele deve estar morto.

Bengala: Eu não acho que ele esteja morto.

Chapéu: Por que?

Bengala: Não sei, uma espécie de intuição.

Chapéu: Vamos ter que tentar com uma maior.

O cachorro late.

Bengala: Você vê? Eu bem que te disse que ele não estava morto. Ele não tava morto
mesmo.

Chapéu: Inacreditável.

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Bengala: Então? No que você está pensando? No que deveríamos fazer para esses caras?
Merecem, esses caras, que a gente faça alguma coisa para eles.

Chapéu: Nojentos!

Bengalas: Nojentos? Assassinos, senhor, criminosos.

Chapéu: Sem vergonhas!

Bengala: Uma sujeira como essa, não dá nem para imaginar! Um cachorro vivo,
saudável...e jogá-lo dentro do poço! Eu nunca vi tamanha sujeira! (Tom de entrevistador).
Você, alguma vez, já ouviu falar de uma coisa parecida? Um cachorro ser jogado vivo em
um poço? Em um poço?

Chapéu: Não, nunca.

Bengala: Como é que alguém pode jogar um cachorro vivo dentro de um poço? Que coisa...
Tem que se estar muito doente para jogar um cachorro vivo dentro de um poço. Como é
que se joga um cachorro dentro de um poço? Por que jogar um cachorro dentro de um
poço? Você compreende? Isso, não podemos sequer imaginar, jogar um cachorro dentro de
um poço. Você consegue imaginar uma coisa dessas?

Chapéu: Não, não posso.

Bengala: É contra a natureza. É, certamente, contra a natureza e contra tudo.

Chapéu: Agora, eu sei quem é o culpado!

Bengala: Quem?

Chapéu: Você não vai acreditar!

Bengala: Mas sim, diga!

Chapéu: Os moleques...

Bengala: Que moleques?

Chapéu: Os moleques, em geral. Você nem imagina o quanto eles podem ser cruéis, os
moleques, sobretudo com animais.

Bengala: Isso não tem nada a ver com moleques.

Chapéu: Confie em mim, eu sei do que estou falando. Moleques, eles podem ser muito
mais cruéis do que imaginamos. Porque os moleques, eles não sabem o que significa
crueldade, compreende? Uma vez que somos meninos, não temos a menor idéia do que seja
a crueldade, somos capazes de tudo.
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Bengala: Moleques uma ova! Não pode ter sido moleques. O cachorro é imenso, grande
mesmo, colossal, não pode ter sido garotos. E esse cachorro não é do tipo que se deixa
jogar por moleques, dentro de um poço.

Chapéu: Então foram uns idiotas, uns cabeças ocas. Tá cheio por aí. É que o mundo se
tornou idiota, senhor. O mundo. E tá cheio de idiotas, como esses, no mundo. Nós
cruzamos todos os dias com um.

Bengala: Idiotas. Isso também não cola. Um idiota não joga um cachorro num poço. Isso se
faz por ódio, é, ódio, esse ódio terrível, um ódio surdo, cego. Esse ódio que te pega pelas
tripas...Um ódio total, global... Mas é preciso que ele te faça perder a razão, esse ódio, é
preciso realmente odiar a tudo e a todos pra chegar a esse ponto, para jogar um cachorro
dentro de um poço.

Latidos

Chapéu: façamos qualquer coisa.

Bengala: O que?

Chapéu: Façamos qualquer coisa para tira-lo de lá.

Bengala: É fácil falar.

Chapéu: É preciso tirá-lo de lá.

Bengala: Como diabos você quer tirá-lo de lá?

Chapéu: Ah!, não tenho a menor idéia.

Bengala: Então?!

Chapéu: Eu acho que não deve ser tão difícil de tirá-lo de lá.

Bengala: Eu também me dizia que seria preciso tirá-lo daí. Mas não acredito que será tão
fácil assim.

Chapéu: Temos que descer e tirá-lo daí.

Bengala: Como assim, descer?

Chapéu: Descer, ué!

Bengala: Onde?

Chapéu: Como, onde? Dentro do poço!

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Bengala: Dentro desse poço aí?

Chapéu: Sim, dentro do poço. Descemos, tiramos ele de lá e fim de papo!

Bengala: Como descer?

Chapéu: Isso pode ser feito. Não deve ser complicado: nós descemos, tiramos ele de lá e
pronto!

Bengala: Negativo.

Chapéu: Por que?

Bengala: Bem, como vamos descer? Não há nenhuma maneira de descer nesse poço. Pensa
um pouco!

Chapéu: Será preciso uma escada.

Bengala: Uma escada, não vai servir para nada, uma escada...

Chapéu: Não é verdade. Se nós tivermos uma escada, nós podemos descer até o fundo do
poço.

Bengala: O que eu penso é que o senhor pode enfiar essa escada no rabo. O senhor já deu
uma olhadinha pra esse poço? Ele é extremamente profundo. Onde é que você vai encontrar
uma escada tão comprida assim? Você não pensou, talvez, quão profundo é esse poço? Não
existe uma escada assim...

Chapéu: Então, talvez, uma corda.

Bengala: Eu também pensei numa corda.

Chapéu: É isso, uma corda bem grossa, uma corda grossa e com nós.

Bengala: Já disse ao senhor que também pensei em utilizar uma corda.

Chapéu: E então?

Bengala: Não vai funcionar.

Chapéu: Por que não vai funcionar com uma corda?

Bengala: Por uma razão bem simples: com uma corda não vai funcionar.

Chapéu: espera aí. Com uma corda nós podemos descer.

Bengala: Você acha mesmo?!


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Chapéu: Eu acho, acho sim, que com uma corda nós poderemos descer.

Bengala: Quem? Você vai descer?

Chapéu: Um de nós dois.

Bengala: Sejamos mais precisos: quem vai descer, você?

Chapéu: Eu, sim. Por que não eu? Eu posso descer, eu.

Bengala: Eu não seis e está certo, descer.

Chapéu: Eu posso descer, não tenho medo de descer, eu.

Bengala: Eu nem sei mais se é preciso descer. Suponhamos que você desça, você. O que
você vai fazer quando estiver lá embaixo? Diga, o que você vai fazer?

Chapéu: O que você quer que eu faça?

Bengala: Justamente, essa é a questão. Suponhamos que você tenha descido, suponhamos
que você esteja lá embaixo. Eu te faço uma pergunta. O que você vai fazer? Você vai pegar
o cachorro nos braços, hein?

Chapéu: Não sei.

Bengala: Justamente. É por isso que eu me pergunto se está certo descer. Não podemos
saber que tipo de cachorro é esse daí. Entende? E se ele morde? E se ele for um cachorro
raivoso? E se ele for um cachorro raivoso e te morder?

Chapéu: Pode ser também que ele não seja raivoso.

Bengala: É possível. Mas e se ele for? O que você fará se ele for?

Chapéu: Bom, então, a gente desiste?

Bengala: Eu não disse isso.

Chapéu: Então o que a gente faz?

Bengala: A gente faz o que pode.

Chapéu: Então façamos qualquer coisa. Eu constato que estamos ficando assim, de braços
cruzados, fazendo nada.

Bengala: Espera. Pode ser que passe outra pessoa por aqui. Se outra pessoa passa por aqui,
pode ser que a gente encontre uma solução. Compreende? É difícil fazer as coisas sozinho.
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Em situações como essa, não se pode ficar sozinho. E depois quem te disse que o cachorro
quer que a gente tire ele de lá? Se ele não tiver vontade...

Chapéu: Essa é boa! Um cachorro que não quer que a gente tire ele de dentro do poço.

Bengala: Nunca se sabe. Mas isso é suposição... Pode ser que ele não queira, pronto!

Chapéu: Então por que ele late dessa maneira?

Bengala: Ele late como qualquer outro cachorro. Os cachorros são assim, latem.

Chapéu: Eu acho que ele não late como qualquer outro cachorro. O latido dele tem uma
espécie de tristeza, um sentimento, um não sei o que...

Bengala: De onde você tirou esse sentimento? Não é triste coisa nenhuma. Esse cachorro
late como qualquer outro.

Chapéu: Eu acho que ele tem qualquer coisa de comovente, de...

Bengala: E eu acho que não tem nada de comovente.

Chapéu: Não, dessa vez, eu sou categórico, foi um latido comovente a cem por cento.

Bengala: Você não faz idéia de como os cachorros latem. Aquilo foi um latido cem por
cento normal.

Chapéu: Para de falar besteira. Foi um latido típico de um cachorro que está com medo.

Bengala: Não são besteiras, senhor. É assim que os cães latem e ponto final. Não existe
nenhuma maneira de se saber se um cachorro que late, tem ou não medo. Para saber seria
preciso ser um cachorro, daí sim, um cachorro poderia se dar conta do que o outro cachorro
está querendo dizer quando late.

Chapéu: me desculpe, mas não é necessário ser cachorro para saber isso. Um pouco de
atenção já é suficiente.

Bengala: Bom, mesmo que a gente admita que o latido dele tenha algo de comovente, isso
não quer dizer, nem por um momento, que ele quer que nós o tiremos de lá. Pode ser que
ele more lá e que se seja simplesmente um cão que more no fundo de um poço.

Chapéu: No fundo de um poço?!

Bengala: No fundo de um poço. Por que não?

Chapéu: Alguma vez você já ouviu dizer em cachorro que more no fundo de um poço?

Bengala: Até o presente momento, não. Mas agora tem esse daí.
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Chapéu: Não, realmente, não é possível. Eu acho que devo estar sonhando. Como é que
alguém pode dizer tamanha inépcia?

Bengala: Mas não foi você mesmo que disse, há pouco, que o mundo não é mais como era
antigamente? Tudo é possível, oras! Há pássaros que não voam mais. Você acha normal
que um pássaro não voe mais? Quem ia acreditar, há cem anos, que um pássaro não mais
voaria? E entoa, cá estamos. Hoje em dia há pássaros que não voam mais, peixes que não
sabem mais nadar. O mundo está de cabeça para baixo.

Chapéu: Eu nunca ouvi falar em peixes que não sabem nadar. Aí você já está exagerando.

Bengala: Não mesmo, não mesmo. Eu asseguro. Existem peixes que se arrastam no fundo
do oceano. Eles vivem sob tamanha escuridão, lá no fundo da água, que eles não sabem
nem nadar. Compreende? Se você tirar esse peixe de lá e colocar na água clara, perto da
superfície, ele morre. O melhor é deixar ele lá, onde ele mora e nem mexer.

Chapéu: De acordo, mas com os cães, é diferente.

Bengala: Não vejo o por quê de ficar quebrando a cabeça desse jeito. Talvez ele tenha
nascido lá, que lá é o seu lugar.

Chapéu: Escuta, eu tenho a impressão que de um tempo para cá a gente só tem falado
idiotices.

Bengala: Idiotices nada. Nós estamos refletindo.

Chapéu: Como é que você quer que ele tenha nascido lá dentro do poço? É um delírio!

Bengala: Tudo é possível. A natureza é pérfida.

Chapéu: Mas, meu Deus, o cachorro é um animal doméstico, lê vive ao lado do homem!

Bengala: E daí? Todos os animais vivem ao lado do homem. O cavalo, ele também vive ao
lado do homem. E os ratos. E depois, chegará o dia em que ninguém mais vai querer viver
ao lado do homem. Você entende? É a décima hora. Ninguém mais vai querer viver ao lado
do homem. Você entende? Sim ou não?

Chapéu: Eu, o que eu entendo é que é preciso fazer alguma coisa. É preciso, ao menos, dar
qualquer coisa pare lê comer.

Bengala: Ah!, isso sim. Isso é possível.

Chapéu: Seria preciso um pouco de pão.

Bengala: Eu tenho. Eu tenho pão. Essa manhã eu também dei um pedaço de pão para ele.
Pão, isso sim, ele adora isso, pão. Se a gente se dependurar e colocar a orelha dentro do
poço, a gente o escuta. A gente o escuta tentando mastigar.
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O homem de bengala joga o pão dentro do poço. Eles escutam...

Chapéu: Ele está mastigando?

Bengala: Eu diria que não.

Eles escutam...

Bengala: esquisito. Ao meio dia nós escutamos direitinho.

Chapéu: Você tem certeza que o escutou ao meio dia?

Bengala: certeza absoluta. Hoje de manhã nós também o ouvimos.

Chapéu: Pode ser que lê tenha desmaiado.

Eles escutam...

Bengala: É esquisito que ele não esteja comendo.

Chapéu: Pode ser que ele esteja exausto, que ele não tenha mais força.

Bengala: Até agora ele tinha comido. Ele comeu tudo aquilo que jogamos até então.

Chapéu: Se ele sta exausto, não tem mais forças, é bom que ele coma, senão ele não se
salvará. Você vai ver, ele vai morrer de fome, lá no meio de toda essa comida. Morto de
medo. Não adianta nada jogar pão se ele se sente só, só e abandonado. Uma vez que nos
sentimos sós, a gente não agüenta o tranco e trava.

Bengala: Uma vez que nós estamos jogando comida, ele não pode mais se sentir só e
abandonado.

Chapéu: Poderá ele saber o número de pessoas que lhe jogam comida, o pobre? Comida
demais. Você o estufa com esse sua comida. Ele vai morrer sufocado com toda essa sua
comida, é assim que ele morrerá, esse cachorro. Nós faríamos, talvez, melhor se
jogássemos um pouco de água.

Bengala: Eu não acho que ele precise de água. Não pode ser que ele não tenha um pouco de
água dentro de um poço, né?

Chapéu: A meu ver esse poço não possui uma gota de água. Se tivesse água, o cachorro já
teria se afogado. A meu ver este poço está seco. Se jogaram o cachorro aí dentro é que eles
sabiam que não havia uma gota de água neste poço.

Silêncio. Eles escutam.

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Bengala: Ele não quer mais.

Chapéu: É por que ele já deve estar morto, certeza.

Bengala: Agora ele não quer mais comer, o nojentinho, contudo, ao meio dia foi um grande
prazer ouvi-lo comer.

Chapéu: Você quer que eu tente jogar um pedaço de pão?

Bengala: É realmente uma pena que a gente não o tenha escutado.Quando ele comia, fazia
um barulhão danado, um barulho de cachorro que está no auge da fome.

Chapéu: Não será, talvez, uma má idéia que eu tente também. Se sobrou um pedaço de pão,
eu poderia tentar.

Bengala: Por que? Eu quero mais é que ele se foda!

Chapéu: me dá um pedacinho, um pedacinho só...

Bengala: Ele não merece, esse nojento!

Chapéu: Por que você o insulta? Por que você insulta o cachorro? O que ele fez, esse
cachorro?

Bengala: A mim, nada. Mas aos outros, pode ser que sim. Por acaso você sabe o número de
pessoas que ele já mordeu, esse idiota? Além do mais não é nem mesmo um cachorro de
raça.

Chapéu: Ah!, sim, ele é de raça. Pois se ele é branco, é um cão de raça.

Bengala: Por que você quer que ele seja branco, esse vira lata?

Chapéu: Ele é branco? Sim ou não?

Bengala: De acordo, ele é branco, mas quem te disse isso? Quem te falou que ele era
branco?

Chapéu: Você. Você mesmo me disse que esse cachorro é branco.

Bengala: Eu? Quando é que eu te disse que esse cachorro é branco?

Chapéu: Agora há pouco. Você me disse que esse cachorro é branco.

Bengala: Não é verdade. Eu nunca disse uma coisa parecida. Eu jamais disse alguma coisa
a alguém.

Chapéu: Enfim, isso não tem importância alguma. O que importa, é que ele é branco.
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Bengala: Importante, ou não, eu quero saber quem foi que te disse que ele é branco, esse
cachorro.

Chapéu: Eu te digo que foi você. Você que me disse que o cachorro era imenso, branco.

Bengala: Eu disse que ele era imenso, mas eu nunca disse que ele era branco. E mesmo se
ele fosse branco, isso não quer dizer que ele não seja perigoso. Um cachorro branco pode
muito bem ser perigoso. Uma verdadeira besta selvagem.

Chapéu: Por que ficar tão exaltado?

Bengala: Eu não estou nem um pouco exaltado. Eu reflito, só isso.

Chapéu: mesmo que ele seja uma besta selvagem, isso não se faz, jogar uma besta
selvagem dentro de um poço.

Bengala: Sem dúvida, isso não se faz!

Chapéu: Não é mesmo? O melhor a ser feito, então, é procurar uma corda.

Bengala: É uma idéia fixa, essa corda! Eu to por aqui com essa história de corda. O que é
que você quer fazer com uma corda? Ele não vai nem conseguir se dependurar na sua
corda, o cachorro. É um cachorro, não um gato.

Chapéu: Ele não está agitado por causa da corda. Ele se agita pelo fato de nós ficarmos
aqui, fazendo nada.

Bengala: Por que você diz que nós estamos fazendo nada? Nós não demos comida para ele?

Chapéu: Sim, nós demos comida, mas ele nada comeu.

Bengala: E bom, nós estamos aqui!

Chapéu: E de que serve para ele o fato de estarmos aqui?

Bengala: Ele sente que estamos aqui.

Chapéu: E daí?

Bengala: Não significa nada, saber que há pessoas ao seu lado, que estão pensando em
você?

Chapéu: Como é que você quer que ele saiba que nós somos homens? Ele pode imaginar,
talvez, que nós somos cachorros, como ele.

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Bengala: Homens, cachorros, do ponto de vista dele isso não tem a menor importância. O
único que interessa é que ele sinta que estamos aqui. Que ele saiba que estamos aqui, ao seu
lado, que somos solidários.

Chapéu: Se ele realmente nos “sentisse” ele rosnaria.

Bengala: Ele não pode rosnar o tempo todo. Se ele está calado, é um bom sinal.

Chapéu: Agorinha mesmo você disse que era um mau sinal, ele ficar calado.

Bengala: É verdade, há pouco era um mau sinal, mas agora, é um bom sinal. Isso quer
dizer que ele está mais calmo, tranqüilo. Ponha-se no lugar dele e imagine que eu estou
aqui. Você poderia ficar falando comigo o tempo todo? Eu não acredito que você, ou
qualquer outro, pudesse ficar falando sem parar, sem relaxar um segundo. Ninguém
conseguiria.

Chapéu: Tá bom, mas até quando você acha que poderemos ficar aqui?

Bengala: Eu não sei de nada. Nós ficaremos o tanto que pudermos. Depois a gente vai
embora. Ou nós poderíamos fazer um revezamento... Não? Eu acho que o mais importante,
neste caso, é que ele sinta que há sempre alguém por perto. Que tem alguém, um dono. Um
cachorro precisa de um dono. Houve casos em que, assim que o dono morreu, o cachorro
parou de comer até a sua própria morte.

Chapéu: Você acha que é o caso?

Bengala: Como é que a gente pode saber?

Chapéu: Tive uma idéia. Nós poderíamos escrever um anúncio. Escreveríamos um anúncio
e publicaríamos nos jornais, perguntando de o cachorro tem dono. Podemos escrever, não?
Ninguém poderia nos impedir, não é? A imprensa é livre. É a melhor solução,
escreveremos o anúncio...

Bengala: Não realmente, não.

Chapéu: Por que? Se ele tiver um dono, que o próprio se vire para tirá-lo daí!

Bengala: Você está querendo uma recompensa, não é?

Chapéu: Ah, não mesmo! Nem me passou pela cabeça, que poderia haver uma recompensa.
Eu disse somente que, hoje me dia, todo mundo escreve anúncios e publica nos jornais, por
prazer, para que todo mundo possa ler seu nome nos jornais...

Bengala: Para de tentar me enrolar. Eu sei bem que é sobretudo a recompensa que este te
tentando. Isso tá escrito na sua testa, você só está pensando na grana. O dinheiro é a mais
valia e quando se trata somente de salvar um cão, banana, ele que morra!

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Chapéu: Eu não posso permitir que você diga uma coisa dessas. Eu quero salvar esse
cachorro.

Bengala: E você realmente acha que os caras do jornal virão salvar o cachorro?

Chapéu: de qualquer maneira, eles farão alguma coisa.

Bengala: Eu vou te dizer o que eles farão.Eles virão, depois vão tirar fotos, filmar e depois,
tchauzinho, empacotam tudo e tchau, felizes em tê-lo conhecido. Taí o que eles vão fazer.
Isso é tudo o que eles sabem fazer, nada. Por isso que essa idéia de jornal, polícia, não vai
levar a nada. Não precisamos de nada disso, nem de imprensa nem de polícia. Eu detesto
ter que lidar com essa gente.

Chapéu: Essa é boa! Como é que você quer encontrar o dono do cachorro, ficando de
braços cruzados?

Bengala: O que é que te faz pensar que ele tem um dono? Ele te disse isso? O cachorro te
disse isso: eu tenho um dono?! Talvez ele não tenha dono. Esse deve ser um daqueles
cachorros vagabundos. Tá cheio de cachorro vagabundo por aí, não?

Chapéu: A menos que seja seu.

Bengala: Meu o que?

Chapéu: O cachorro, a menos que seja seu!

Bengala: Eu te proíbo de dizer tamanha calúnia.

Chapéu: Não é uma calúnia, é apenas uma possibilidade!

Bengala: Eu te proíbo de evocar possibilidades tão absurdas.

Chapéu: Evocar uma possibilidade, é fazer suposições, reflexões...

Bengala: Eu te proíbo de refletir.

Chapéu: Ah, vai, reconhece logo que esse cachorro é seu e não falamos mais nisso.

Bengala: Meu Deus, você acredita mesmo que eu sou um desses, capaz de jogar seu próprio
cachorro dentro de um poço?

Chapéu: Os homens são capazes de tudo, uma vez que lhes é conveniente. Uns chegam até
à criminalidade.

Bengala: Eu peço que o senhor pare com essas provocações. Eu não pertenço a esse tipo de
gente, e suas suposições são realmente insultantes. Eu peço da maneira mais formal
possível que o senhor pare com essas besteiras e que pare de ficar pegando no meu pé com
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essas teorias fraudulentas. Eu não sou um neurótico da vida. Eu sou de natureza calma,
extremamente calma. Como, então, eu poderia jogar meu próprio cachorro dentro de um
poço? Como é que o senhor pôde imaginar uma coisa parecida? Eu amo cachorros, senhor,
eu tive vários e sei bem como são. Meu cachorro morreu de velhice há dezessete anos e se
chamava Zoumbi. O senhor entende? Zoumbi. Vê-se bem que o senhor não entende nem ao
que concerne a homens, nem a cães.

Silêncio. Tensão.

Chapéu: Perdão. Não tive a intenção de vexa-lo. Tudo o que quero é que não fiquemos de
braços cruzados. Vamos nos mexer! Qualquer coisa, se mexer, fazer qualquer coisa, tomar
uma iniciativa...

Bengala: Agora é tarde para fazermos qualquer coisa.

Chapéu: Você acha que ele já bateu as botas?

Bengala: Sei lá. Tudo o que sei é que já começa a anoitecer. Você se dá conta que daqui a
pouco será noite? De noite não se pode fazer coisa alguma.

Chapéu: Por que você diz que já está anoitecendo? Eu não tenho essa impressão.

Bengala: É evidente. Olha só. O sol já está se pondo.

Chapéu: O sol estase pondo, mas a noite virá dentro de uma ou duas horas.

Bengala: Como é que você pode dizer tal coisa? A gente nem mesmo vê onde está enfiando
os pés. Sem contar que o cachorro já pode estar morto.

Chapéu: Há pouco você disse que ele podia sentir nossa presença.

Bengala: Naquele momento talvez ele ainda vivesse. Mas agora que não escutamos ele
comer, pode ser que ele já esteja morto. Você o escutou comendo pão? Não, nada. Ele não
grunhe, não come, não nada. Se não comemos, quer dizer que já estamos mortos.

Chapéu: Mesmo que ele esteja morto, nós deveríamos fazer alguma coisa.

Bengala: Essa é boa! Se ele está morto, ele está morto e pronto. Que é que você quer que a
gente faça se ele está morto?

Chapéu: Eu não posso ficar assim de braços cruzados, sem fazer nada.

Bengala: Não seja idiota. Se ele sta morto, não há rigorosamente nada a fazer. Há milhares
de cachorros assim, mortos, e vários estão dentro de poços. A gente não pode se meter a
besta de tirara todos os cachorros mortos de dentro de poços.

Chapéu: Vamos jogar uma última pedra...só para ver se ele ainda está vivo.
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Bengala: Não houve pessoa que passasse por aqui e não jogasse uma pedra no pobre
animal. É isso que acabou com ele. Todo mundo jogou uma pedrinha no cachorro para ver
se ele ainda estava vivo e de fato eles acabaram por matá-lo, foram eles que o mataram com
suas pedrinhas. Agora deixemo-lo em paz. Que ele tenha paz, ao menos agora que está
morto.

Chapéu: Eu não acredito que você tenha pensamentos tão solidários para com este cão.

Bengala: Eu não tenho, apenas reflito.

Chapéu: Eu tenho a impressão que você o odeia.

Bengala: Odiá-lo? Eu?

Chapéu: Você o odeia. Não entendo por que. Mas é evidente que você o odeia.

Bengala: Por que você quer que eu o odeie? Não tenho nada contra esse cachorro.
Absolutamente nada. Eu não to nem aí para esse cachorro.

Chapéu: Então por que você fica rondando esse poço?

Bengala: Eu? De onde você tira tanta bobagem? Como você pode pretender que eu fique
rondando esse poço?

Chapéu: Você tá rondando desde está manhã.

Bengala: Eu não estou rondando... Isso e tão insensato! Você, por caso, me viu rondando
esse poço? Alguém me viu rondando o poço?

Chapéu: Eu o vi. E vi também essa manhã.

Bengala: Onde? Aqui? Quando? Você tá me gozando?

Chapéu: Se ao menos você tivesse feito alguma coisa, além de ficar de braços cruzados.
Pois de qualquer maneira você passou por aqui essa manhã, se ao menos você tivesse feito
alguma coisa. Por que você não fez nada? Se você sabia desde hoje de manhã?

Bengala: Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance. Que mais fazer? Eu fiz tudo aquilo que
um homem sozinho poderia ter feito. Se ao menos esse poço fosse um pouco mais perto da
cidade...nesse caso teria sido diferente...Talvez eu tivesse feito coisa melhor. Mas é muito
longe...O caminho me cansa muito, muito...Você pode imaginar o sofrimento. Quer ver?
Olha só meu pé. Você vê?

Chapéu: O que?

Bengala: Eu tenho pé chato.

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Chapéu: Não é verdade.

Bengala: Sim, pé chato. Toca. Você sente? Aqui, é tudo mole. Agora você entende?

Chapéu: Eu tenho uma hérnia.

Bengala: Onde?

Chapéu: Aqui...Aqui dentro...Escondida...Ela mexe aqui dentro...Dá uma pontada de dor


que contorce tudo aqui dentro. Faz anos que tenho isso.

Bengala: Eu também. Olha só a minha omoplata. Você já viu coisa igual? Francamente,
você alguma vez viu coisa parecida? Toda vez que levanto meus braços eu sinto como se
ela encostasse no outro ombro...

Chapéu: É bestificante. Eu conheci um cara que tinha uma verruga em cima das pálpebras,
e não sumia nunca. Todo mês ele com aquele negócio no olho e todo mundo sabe que olho
é super sensível, delicado...

Bengala: É, mas os dente também.

Chapéu: Sim, mãos os dentes, nós os arrancamos e pronto. Agora, um olho, não podemos
arrancá-lo.

Bengala: Meu pai tinha herpes.

Chapéu: Herpes, mas isso sara.

Bengala: Herpes? Uma ova! Saiba que herpes não sara coisa nenhuma. Meu pai, o coitado,
tinha isso todo o mês...Ele tinha por toda a boca... Assim...Porque, meu caro senhor, herpes,
não sara...A hérnia em compensação, sara bem...

Chapéu: Você não sabe de nada, Hérnia é bastante grave.

Bengala: Até parece! Não é tão grave assim.

Chapéu: O que isso quer dizer? Hérnia é extremamente grave!

Bengala: Também não é tão grave quanto aqueles que ficam paralíticos.

Chapéu: E daí? O que eu tenho a ver com aqueles que ficaram paralíticos?

Bengala: E depois tem outros que não têm um rim.

Chapéu: Não é da minha conta.

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Bengala: Como é que você pode dizer que não é da sua conta? Como é que você não fica ao
menos consternado? E tem gente que tem lepra.

Chapéu: Eu não estou falando de lepra. Eu estou falando da minha hérnia. Você nem
mesmo deu uma olhada nela...

Bengala: Sua hérnia é zero, vento...

Chapéu: Como assim, vento? Por que, então, dói tanto quando eu ando? Me repuxa para
baixo?

Bengala: Repuxa uma ova! Você não tem a menor idéia do que seja andar apenas com uma
perna. Você tem idéia do tanto que eu sofri para chegar até aqui, apenas com uma perna?

Chapéu: Por que você, veio, então, se é tão doloroso?

Bengala: Como por que eu vim? Eu vim porque eu vim, pronto.

Chapéu: Se doesse tanto assim, você não viria. Você disse que não agüentava mais, porém,
mesmo assim, você veio. Por que?

Bengala: Eu vim. Por que eu não haveria de vir. Você, por que veio?

Chapéu: Eu não vim.

Bengala: Ah! Ele não veio! Como você não veio, se já está aqui? A quem você quer
enganar?

O cachorro solta um grunhido.

Chapéu: Olha aí, esse coitado morrendo e nós aqui discutindo.

Bengala: Discutindo, o que! Responda... a minha pergunta!

Chapéu: Você não me perguntou nada. O que você me perguntou?

Bengala: Eu perguntei por que você veio? Uma vez que você veio deve haver uma razão.
Diga, por que você veio?

Chapéu: Você não tem esse direito. Com que direito você me faz essas perguntas? Eu não
te fiz perguntas.

Bengala: (Mais alto que o cão). Eu tenho o direito de fazer essas perguntas. Eu tenho direito
de fazer todas essas perguntas, todas as perguntas que eu queira fazer. Sim, eu tenho esse
direito, pois fui eu quem descobriu esse cachorro, é meu cachorro...Eu o descobri há três
dias... Eu dei de comer...Como você descobriu que eu tinha achado esse cachorro? Quem te
disse?
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Chapéu: Ninguém me falou nada... O que isso quer dizer? Eu passo por aqui...Eu não fiz
nada além de passar por aqui.

Bengala: Não é verdade. Você não passa por aqui.

Chapéu: Mas sim. Todo mundo passa por aqui. É no caminho de qualquer um. Eu passei,
assim, por acaso.

Bengala: Por acaso, hein?

Chapéu: Sim, por acaso. Eu sou formal, passei por acaso.

Bengala: E o pão?

Chapéu: Que pão?

Bengala: Por que você trouxe pão?

Chapéu: Que pão? Não entendo de que pão você está falando!

Bengala: Você tinha um pão no seu bolso. Não me venha dizer que você não tinha, de
modo algum, um pão no seu bolso. Você não pode negar.

Chapéu: É meu pão.

Bengala: Tá certo que é seu pão. Justamente, quem te disse que era necessário trazer um
pão? Quem te disse?

Chapéu: Ninguém me disse nada, eu não soube nada de ninguém. O pão é meu. Eu todo dia
ando com um pão, meu pão. E o que se pode fazer se eu tenho um pão, meu pão, meu, eu
nunca saio sem ter um pão no meu bolso...

Bengala: Você mente! Você mente, seu matador de cachorro, é isso que você é: um
matador de cachorros. Mentiroso.

Chapéu: Você que é o assassino, um assassino de cachorro, o esquartejador, você!

Bengala: Você não tem honra, devassador de poços, bandido...

Chapéu: Você que devasta poços.

Silêncio

Chapéu: Meu Deus, vão dizer que a gente perdeu a razão.

Bengala: Acho melhor a gente ir embora.

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Chapéu: Pena, realmente, uma pena, agora é mesmo muito tarde, agora realmente começa a
escurecer...

Bengala: E vai começar a chuva.

Chapéu: É possível que chova.

Bengala: Chove todos os dias, não há um dia que não termine em chuva.

Chapéu: Não faz mal que chova...Ao menos ele não terá sede.

Bengala: É verdade... mas ele vai uivar a noite toda.

Chapéu: É verdade, ele vai uivar, mas amanhã...

Bengala: Amanhã certamente.

Chapéu: Amanhã de manhã.

Bengala: Amanhã de manhã a gente encontra uma solução.

Chapéu: Tiraremos ele de lá, sem dúvida.

Eles olham para o céu.

Bengala: Como ele está preto, o céu, está noite.

Chapéu: Não tão preto assim.

Bengala: Mais preto que ontem.

Chapéu: Você acha mesmo?

Bengala: Muito mais preto que ontem.

Chapéu: Não prestei atenção.

Bengala: Eu não consigo deixar de prestar atenção. Uma vez que está negro em cima da
minha cabeça, há uma espécie de pânico que me toma, que não posso sequer olhar o céu
quando está negro desse jeito.

Chapéu: Tenta dormir um pouco.

Bengala: Não vale a pena. Ele vai me acordar, eu sei, ele vai me acordar uma vez mais. Na
hora que ele sente que eu peguei no sono, ele começa a uivar.

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Chapéu: A culpa é nossa.

Bengala: Não deveríamos passar por aqui.

Chapéu: Nem pense.

Silêncio

Bengala: (sussurro). Psst!

Chapéu: Que há?

Bengala: O silêncio! O silêncio está mais profundo que ontem.

Chapéu: Perdão?

Bengala: O silêncio! O Silêncio está mais profundo que ontem. Você se dá conta que o
silêncio de hoje é mais profundo que o silêncio de ontem?

Chapéu: Tome cuidado para não acorda-lo. Eu acho que não seria de nosso interesse
acorda-lo.

Bengala: certamente!

Chapéu: Então cala a boca.

Bengala: Eu me calo.

Silêncio

Bengala: Psst!

Chapéu: O que foi?

Bengala: O que a gente disse que ia fazer amanhã?

Chapéu: Amanhã será melhor.

Bengala: A gente vai tira-lo de lá, não? A gente tira ele do poço de uma vez por todas, por
todas.

Chapéu: Absolutamente.

Bengala:Mas como? Como?

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Chapéu: A gente vê bem. O que vale é que a gente vai tira-lo de lá de uma vez por todas,
por todas.

Bengala: A gente vai dar pão para ele, não?

Chapéu: Claro.

Bengala: A gente fará ele comer da nossa mão, não?

Chapéu: Com certeza da nossa mão. O tanto que ele quiser.

Bengala: E depois a gente deixa ele ir. Não?

Chapéu: Absolutamente.

Bengala: Nada de laço, nem coleira. Ele será bem livre, né?

Chapéu: Isso vai depender dele. Ele vai poder correr por aí sozinho, ou ele vai querer o que
ele vai querer.

Bengala: A gente vai ensina-lo a pegar coisas, né? A gente vai jogar um pedaço de pau e
diremos “pega”, ele vai buscar, não?

Um pedaço de pão cai.

Chapéu: Ensinaremos uma porção de coisas.

Bengala: É melhor.

Chapéu: Agora tente dormir!

Bengala: A gente vai levá-lo para a praia, os cachorros adoram nadar, não? Ele vai poder
nadar.

Chapéu: Sim, ele poderá nadar sozinho, sem ajuda.

Bengala: Contanto que ele não se afogue.

Chapéu: Ah! isso não.

Silêncio. Outro pedaço de pão cai.

Bengala: (Sussurrando) Você escutou?

Chapéu: O que?

Bengala: Alguma coisa acabou de cair.


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Chapéu: deve ser um passarinho.

Silêncio. Dois pedaços de pão caem.

Bengala: Caiu na minha cara.

Chapéu: O que?

Bengala: Pão.

Chapéu: Você deve estar sonhando.

Bengala: Pão branco. Pão. Meu Deus. Tá caindo pão.

Chapéu: Não é verdade.

Bengala: É verdade sim. Tó. Experimenta. É pão de miga. Ainda tá quente.

Chapéu: Não é possível!

Bengala: É claro que é possível. Tá chovendo pão branco. Eu ainda não perdi a minha
razão. É pão sim, ou não?

Chapéu: Sei lá.

Bengala: Se for pão... Tudo o que está chovendo é pão. Meu Deus. O que isso quer dizer?

Chapéu: Não quer dizer nada: Tem alguém que tá jogando pão na gente.

Chuva de pão

Fecham-se as cortinas.

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