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marie-josé mondzain N. Cham.: 701.15 M734h.P1 2015 Autor: Mondzain, Marie-José. Titulo; Homo spectator : ver > fazer 10521 6264: 210521606 = Ac. 626432 Esta reflexao estd inteiramente habitada pela preocupacao do espectador em que hoje nos tor- ndmos, reféns assustados que, com demasiada frequéncia, consentem nas produgoes especta- culares que tém como Unico efeito o aniquila- mento do espectador. Se 0 espectador nascente for o préprio homem, a morte do espectador seré a morte da humanidade. Ea barbarie que ameaca um mundo sem espectador, Marie-José Mondzain é fildsofa ESTE LIVRO DEVE SER DEVOLVIDO NA ULTIMA @ directora de investigagao no DATA CARIMBADA __ Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. Considerada uma referéncia fundamental do pensamento 16 OUT 2017 contemporaneo, a autora reflecte essencialmente sobre o 14 NOV am uso politico das imagens, desde 11 SET 2017 o periodo bizantino e da sua iconoclastia & publicidade e as artes contemporaneas, Publicada em varias Ifnguas, Mondzain tem contribuido para o debate vital acerca do poder persuasivo das imagens contemporaneas, articulando 0 campo da estética com as principais preocupagées éticas. Entre os seus titulos, destacam- -se A Imagem Pode Matar?, Le Commerce des regards e Images (a suivre). MOD. BU - O16 os 2 fo marie-josé jy 3)).) mondzain 20\5.-- 15 uh. homo spectator VER > FAZER VER prefacio e tradugado luis lima U.F.M.G, - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA MC NAO D, Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro MUNISTERIO DA CULTURA FRANCES Ouvrage publié avec le soutien du Centre national du livre MINISTERE FRANGAIS CHARGE DE LA CULTURE Biblioteca Universitaria !2_/12 1 Jog .2|052 606 TITULO ORIGINAL Homo spectator: Voir, faire voir AUTORA Marie-José Mondzain PREFACIO £ TRADUGAO Luis Lima REVISAQ Nuno Quintas CONCEPGAO GRAFICA Rui Silva | wwwealfaiatariaorg IMPRESSAO Guide - Artes Graficas COPYRIGHT ‘© 2007 Editions Bayard © 2015 Orfeu Negro 1 EDIGAD Lishoa, Setembro 2015 DL 398204/15 ISBN 978-989-B327-43-7 ORFEU NEGRO Rua Gustavo de Matos Sequeira, 0,” 39 - 1." 1250-120 Lisboa | Portugal | t +351 23 3244170 info@orfeunegroorg | wwworfeunegroorg TRABALHOS DO OLHAR LUIS LIMA Especialista em estudos sobre a iconoclastia e 0 estatuto das imagens, Marie-José Mondzain interessa-se desde sempre pelos trabalhos do olhar. No seu percurso, tro- cou a analise traumatica da escuridao e 0 jubilo encan- tatério das visées pela reflexdo diante das imagens do corpo e o panorama das imagens do mundo. Contor- nando as armadilhas do palavreado conceptual contem- poraneo, a filésofa apoia-se ora nos textos sagrados e nas monografias antropolégicas, ora nos romances de Musil, Céline ou Djuna Barnes, para animar conceitos que sabe tao vivos como as imagens que alimentaram, ha mais de trinta mil anos, os primeiros homens na gruta de Chauvet. Os conceitos que Mondzain nos oferece podem ser utilizados como invdlucros para arrumarmos 0 caos da hist6ria da imagem tal como é aqui narrada, a luz da especularidade humana. £, justamente, nestes traba- Thos do olhar que a autora reconhece 0 momento inau- gural do humano, na abertura de uma distancia que separa o animal do humano. Para a autora, devir-humano é imaginar, produzir imagens e dar a vé-las, dando a ver e fazendo ver, enquanto poder de reconhecimento, num movimento apelidado autoridade. Nao bastou ao homem que se fez tal, sair da caverna platénica gragas ao recuo da imagem de si, foi preciso conjurar os medos € as angustias da finitude existencial, de onde natural- mente brotam, de mos dadas, a criatividade, a arte, a experimentacao e a melancolia, afecto potencialmente mortificante. Temos, portanto, entre as maos um tratado sobre o olhar, que nos leva até as paisagens do medo e da angtis- tia, que nos guia pelas desventuras humanas para revelar como se fez da melancolia uma alavanca para a supera- bundancia de humanidade, confrontando-nos com a forga libertadora, e simultaneamente assustadora, das ima- gens. Imagens essas que os detentores do poder sempre disseram nao lhe pertencerem mas que nunca dispen- saram, servindo para sustentar tanto reinados seculares quanto temporais. E é assim, por vezes com uma veloci- dade estonteante, propria de um estilo que procura ser erudito sem ser hermético ou rebuscado, que Mondzain nos deixa quase desnorteados como quando, a par- tir de um questionamento profundo a respeito de uma epistola de Sao Paulo, nos leva até as trincheiras da Pri- meira Guerra Mundial para falar do tratamento dado aos cadaveres, ¢ rematar 0 seu pensamento com dissonan- cias entre Aristoteles, Godard ou Musil. Homo Spectator assenta em trabalhos anteriores da autora, cimentando ideias e conceitos desenvolvidos em Image, icéne, écono- mie (Seuil, 1997) e Le Commerce des regards (Seuil, 2003). Uma pergunta atravessa o livro e é retomada, sob diversos prismas, ao longo dos varios capitulos: antes do humano existiriam ja imagens, existiriam deuses? Sera Homo spectator aquele que, intermitentemente, se liga ao fora de si para poder langar um olhar sobre esse desejo de ter um objecto por contemplar: um desejo de ver deus? Um deus que se torna filho de Maria, um filho-deus-morto do qual é preciso fazer o luto da ima- gem porém invisivel, num sofrimento inimaginavel, como nos conta M.-J. Mondzain? Assim nos é contada esta historia do deus-homem, filho e pai de sua mae, autogerado por via da imagem carnal do eterno femi- nino inefavel que intercede e devérn espectador. Esta pergunta angustiante aproxima-se do medo contemporaneo diante da suposta proliferagao das ima- gens, que, segundo a autora, nao decorre de uma crise das instituigdes, mas sim de uma falta de reconheci- mento subjectivo que conduz a uma crise da identidade, uma crise da autoridade, como é propalada diariamente nos assuntos ligados 4 pedagogia e psicologia familiar. Passando pela tematica, sem deixar de nos alertar para a existéncia maioritaria de criancas que nao reconhe- cem a autoridade paterna porque os pais nao saberiam praticd-la sem recorrer ao exercicio do poder, Mondzain explica-nos, de forma muito clara, que a autoridade sé pode existir num esquema horizontal de reconhe- cimento miutuo, onde a intermiténcia da liberdade é consentida mediante a alternancia de papéis, e nao num esquema vertical de poder absolutizante, imposto a forca de subjugacao e sujeicao. Dizer sim é saber que se pode dizer ndo, reconhecendo a autoridade daquele a quem se aquiesce. O Homo spectator entra na perspectiva de uma cora- gem que pretende «resistir» a todos os «reinados do pavor. Assim concebe a imagem como uma aposta entre a liberdade e o prazer sem crime nem constran- gimento com que as nossas sociedades do espectaculo nao sabem conviver nem respeitar. A cena do primeiro homem que na gruta descobre 0 caminho que vai de si a si é o que o século passado reviveu com Margue- rite Duras, com Alain Resnais, Antonioni ou Godard. Gragas ao cinema moderno, reconhecemos essas maos (as maos de Jorge Molder), tal como reconhecemos as imagens que nos vém dos textos de Bataille ou de Leroi- -Gourhan, que tanto inspiraram Gilles Deleuze, que a autora cita mais de uma vez. Trata-se, pois, de compreen- der o que ha de fundador no acto que faz de um animal um humano e é, como diria Deleuze, uma questio de devires, Mondzain sublinha que «devir humano é nas- cer, logo, separar-se» (p, 222), Ha uma ameaga de barbarie que paira ao longo de todo o livro e que reside no perigo do desaparecimento da retraccao e do recuo criador do intervalo que permite fazer do animal a espreita um espectador. A anulacdo de tal distanciamento equivale a elisao da marca civili- zacional de um consumidor critico e reside nos signos decorrentes dos sinais emitidos. A autora nunca deixa de nos alertar; uma mao na parede da gruta, a constitui- gao do horizonte na planicie, uma mae que chora 0 filho, a confusdo das linguas numa terra em que a comunica- gdo-mundo sé pode derivar do dom apostdlico das lin- guas de fogo que pacificam Babel. Como lembra Mondaain, «o habitante da lingua nao tem domicilio fixo» (p, 181). E junta-se, desta feita, aos defensores de uma concepcao alargada da tradugao que desejam nao sé a possibilidade de traduzir de uma lin- gua para outra, como também que o proprio processo de traducio esteja no seio da linguagem, fazendo que falar seja equivalente a traduzir: um siléncio, as pala- vras dos outros (Michaux) ou até as emogoes. O que nos deixa com a sensacao, no final do livro, de que nao exis- tem linguas de chegada, mas apenas linguas de partida. FE é com uma renovada fé que a autora nega ser mistica e nos confessa o seu desejo, numa proposta de crenca naquilo que nao se vé, o que equivale a fazer votos para que o desejo seja «o sitio infinitamente sensivel onde a ficcdo 6 uma questao de confian¢a» (p. 366). Aos olhares que me sao muito queridos, os de Raya, Simon e Judith, o de Philippe. INTRODUGAO Falar do Homo spectator como se fala do Homo sapiens: o homem sapiens, isto é, 0 que pode saber, que pode pensar. Esse homem produz signos que lhe permi- tem ouvir e ver, dar a ouvir e dar a ver os movimentos do seu desejo e os do seu pensamento. A pré-histé- ria satida assim a chegada 4 historia daquele que, diante do espectaculo assustador do mundo, percebe a medida da sua fraqueza e inscreve os recursos do seu dominio. Esse dominio nao pode ser senao imaginario, eo homem assinala-o como a capacidade de instaurar 0 espaco e o tempo nas trevas originais de uma pri- meira indistingao. Foi preciso libertar do corpo o pen- samento, como nos ensinou Leroi-Gourhan, sem fazer do pensamento uma entidade fora do corpo e indepen- dente dele, Pelo contrario, ¢ ao por o pensamento den- tro do corpo e nos gestos desse corpo que 0 homem que nasce para a humanidade inventa a vida das coi- sas na auséncia destas. A retracgao a partir da qual o olhar e a palavra podem nascer é, antes de mais, um gesto do corpo, Nao basta apresentar todos os carac- teres fisicos que nos separam para sempre dos antro- poides para que se assegure a producao dos signos que designam as coisas na sua auséncia. Esses caracteres sao as condigées de possibilidade do que esta por vir, mas nao é ja, pois, o paleontélogo quem decifra as mar- cas de um desaparecido, mas 0 espectador do mundo que nos convida a olha-lo na sua indestrutivel apari- ¢ao. A paleontelogia descobre 0 homem no momento em que este se faz ver, ao dar a ver aquilo que ele quis mostrar-nos. O nascimento do seu olhar esta endere- gado ao nosso. S6 sabemos alguma coisa deste remoto antepassado porque ele deixou marcas. Tracos, gestos, da sua tecnicidade, do seu engenho, da inteligéncia no que remeteu. Porem, se a paleontologia nos ensina o que esse homem sabia fazer, eu proponho dar a ver © que esse homem via. Mais ainda, pretendo encenar uma ficcdo verosimil e mostrar que esse homem se apresenta aos milénios vindouros como um especta- dor. Assim se poderia conceber uma espécie de proso- Ppopeia: «Eu sou aquele que vé, que designa 0 que vé e que se designa no reconhecimento do olhar de todos os que saberao compreender essas marcas.» O autor das imagens deixadas atras de si para que delas pudés- semos recolher algo relativo 4 nossa propria definicao ¢ o primeiro espectador, isto é, o homem que entra na histéria que ele pode inscrever, narrar, partilhar. Este ensaio partira assim de uma ficcao constituinte para abordar o espectador como um sujeito nascente, fragil e corajoso, cujas marcas inalteradas nos servirao 16 de guia para compreender a aventura do olhar moderno sobre o mundo. O primeiro espectador acena-nos. Esta reflexao esta inteiramente habitada pela preo- cupago do espectador em que hoje nos tomamos, reféns assustados que, com demasiada frequéncia, consentem nas producées espectaculares que tém come unico efeito a aniquilamento do espectador. Se o espectador nascente for o proprio homem, a morte do espectador sera a morte da humanidade. E a barbarie que ameaga um mundo sem espectador. Mas, paradoxalmente, a industria do espec- taculo aniquila pouco a pouco os recursos desse especta- dor. As massas, as quais se oferece diariamente milhdes de coisas para ver, tornadas «ptiblico», perdem de vista, em bom rigor, a sua prépria aparicdo subjectiva no campo cruzado do reconhecimento. O verbo ver torna-se um infinitivo sem sujeito, ou seja, uma operacao organica que absorve o olhar nos objectos que ele consome e que oconsumem. O que é ver? O que é ver algo? O que é ver uma ima- gem? Poder-se-ia crer, ao ler estas trés perguntas, que se engendram naturalmente nesta ordem, uma apés outra, e que, desta feita, aquele que possui a visao, pelo simples facto de ter olhos, preenche a primeira condigao neces- saria e suficiente para ver e para ver algo. Partindo deste ponto, poderiamos, para mais ampla determinagao dos poderes e da poténcia do dito érgao, considerar, além do dominio geral da percepcao, objectos especificos que 7 certos sujeitos propdem a visdo de outros sujeitas e aos quais se chamaria imagens. Logo, chamar-se-ia imagem a uma certa categoria desses objectos para designa-los vagamente, como objectos visiveis que nao sdo, em rigor, coisas entre as coisas nem signos entre os signos, mas uma espécie de aparicées especificas, propostas so ao poder dos olhos, excluindo qualquer outro orgao. Por possuirmos olhos, seriamos entao capazes de ver o que esta na nossa presenga e de dar a ver aquilo que nao esta como se estivesse. Pode ainda dat-se o nome imagem a tudo o que faz de um sujeito que vé um sujeito capaz de estabelecer com 0 visivel uma relagao de espectador. Este ponto de partida levanta, pois, a questdo da rela- ¢ao com as imagens por parte de um sujeito que nao vé ou que vé mal. Estara um cego, por isso, privado de qualquer relagao com a imagem? Basta conversar com um cego para constatar que o termo imagem encontra o seu lugar no seu vocabulario dos invisuais, que empre- gam muito naturalmente o verbo ver para designar ope- rages de exploracao e reflexao sobre o mundo sensivel a partir de todo o seu corpo e de uma experiéncia pri- vilegiada do toque. Pode argumentar-se que esta utili- zacao do verbo ver pelos cegos ¢ mera aquisicao devida ao uso da lingua que sdo obrigados a partilhar com quem vé, Assim, os invisuais usam o verbo ver tal como os estropiados podem utilizar os termos andar ou cor- rer. Ora, 0 caso é outro, o verbo ver tem mesmo o seu 18 significado junto dos que nao véem porque a questao da imagem, isto é, da producao interna dos signos da separacao e da auséncia, encontra em todos os sujeitos dotados do dom da palavra o seu regime constituinte, A questao reside antes em saber como se compoe 0 espectaculo do mundo para um espectador cego. Nao vou tratar directamente dessa questao neste ensaio. E procurando o que faz cada um de nés um especta- dor, por sermos simplesmente humanos, que retomarei por outra via o problema da cegueira. Direi apenas, com base numa longa experiéncia de partilha com invisuais, que a cegueira nos impée a partida a distingao entre a visdo e a imagem. E por isso que proponho partir de um ponte total- mente distinto. Ja nao se deve considerar o visivel nem a imagem como 0 material sensivel de uma experiéncia sensorial primeira, nem fazer do visivel a causa da visao. Com efeito, o movimento do pensamento segundo o qual ver seria um efeito do visivel, que, por sua vez, se abriria a nés por meio da visao, gera uma circularidade sem fim do pensamento sobre ele prdprio. A reflexao sobre o visivel e a visao pode cair na armadilha da meta- fora reflexiva e produzir um retorno circular da causa e do efeito. Esta circularidade cria um embarago tauto- légico ou uma vertigem especular que varre a angistia por meio dos prazeres da retorica. Era isto que o vocabu- lario grego da visao dava a entender e queria denunciar gtagas ao logos, designando opsis a operacao de ver, 0 orgao da visao, mas também o espectaculo que é seu abjecto no exercicio do proprio érgao. Entao, 0 espec- tador nao ¢ ja o homem que se serve dos olhas quando todos os outros sentidos estao em repouso mas sim o theates, aquele que olha ou contempla o que o mundo ou outro homem lhe da a sentir para que possa compreen- dé-lo. £ um cidadao preso no espectaculo de uma accao que o afecta e da qual faz, por sua vez, alguma coisa. Este alguma coisa, que ele deve a poténcia do logos e nao ao poder dos seus olhos, faz dele um cidadao apto a julgar 0 que vé e a decidir o que quer com outras coisas. A rever- sibilidade da causa e do efeito na opsis deixou Aristételes indeciso quanto 4 participacao do espectaculo no efeito catartico, sem se dispor a fazer das operacdes do logos um prazer ou um assunto organico. De onde vem a luz que ilumina a nossa alma? Sera possivel que nada deva ao Sol? Nesse caso, para qué continuar a falar de luz, mesmo metaforicamente, a partir de iluminagées proprias ao logos? Porque o logos é antes de mais relagao, uma rela- cao do sujeito com uma exterioridade ou a aplicacao de uma relagdo entre o sujeito que vé e o que diz aquilo que vé, Ainda assim, é preciso compreender em que medida a aplicagéo de uma relacao produz essa iluminacao que é a katharsis. Ou seja, sera possivel dispensar 0 sujeito falante quando se considera a sua relagao com o sen- sivel, faga ou ndo uso dos seus olhos? Também nao se 20 pode dizer que a luz que nos ilumina nada deve ao Sol. E assim que 0 olho grego (omma) é concebido, ao mesmo tempo como receptaculo e como fonte de luz. Sente-se claramente que, nesta paisagem filosdfica, o visivel e a imagem balangam juntos nas aporias disjuntivas ou nos embaracos circulares onde ja ndo se distingue o que designa uma prova do real dos beneficios retirados da respectiva metafora. Disso resulta que, para acabar com as tensdes contraditérias que impedem a soberania da verdade face a labilidade do sensivel, se optou com fre- quéncia por separar o visivel da imagem, ora para des- qualificar a imagem como simulacro que finge 0 visivel, ora para a sobrequalificar tornando-a invisivel. Nao se trata aqui de confrontar a visao destes objec- tos com a questao do ser e da verdade, mas de ter em conta o que releva da verdade do sujeito no caminho das suas operacoes reais e imaginarias — isto, na respectiva telagao com um lugar sensivel que pode ou no ser da ordem do objecto visivel ou nao. O estado de espectador é aquele que se mantém até durante os nossos sonhos quando todas as outras operacoes estao em repouso € se submetem a outro tipo de figurabilidade. O estado de espectador é aquele cujo fim reconhecemos e identifi- camos quando sentimos a necessidade ritual de cerrar as palpebras dos mortos e de lhes fechar a boca. Amudanga de perspectiva, que consiste em interro- gar o nascimento do sujeito que vé, pode, por sua vez, 2 levar a uma situagao de crise: ou 0 visivel é posto do lado do que se cré ser um objecto e menos do que uma imagem, ou entao é a imagem que se torna mais do que um objecto e menos visivel do que ele. Talvez seja pela aproximacdo ao espectador que possamos estar em con- dices de dizer se a imagem é ou nao um objecto ese é o estatuto do proprio objecto que o olhar do espectador pde em crise. E porque o nosso mundo parece estar a fazer de todas os cidadaos espectadores que reencontra- remos os diferentes niveis da constituigao subjectiva na sua relacdo com a producao de imagens enderegadas ao olhar e a producao de objectos propostos ao consumo. Abandonando temporariamente o que esteve no centro dos debates histéricos sobre a dignidade e a fia- bilidade do visivel e das imagens, volto-me, portanto, para 0 sujeito, sem o qual a propria problematica nao existiria. Quem ¢ entao esse sujeito que vé e do qual agora se repete a exaustao tratar-se de um espectador? Quem é este homem espectador que esta em vias de se transformar numa particula elementar de uma massa designada «ptiblico», num certo ambiente tecnoldgico, industrial e financeiro? Quantas vezes terei dito que o meu interesse pelos séculos de crise no primeiro impeério cristao relevava de wma estranha adicao por tempos ainda privados das luzes da razao. Os filésofos apreciam pouco o incansavel recurso aos debates teoldgicos sobre o tema da imagem. 22 Tendo em conta a Historia, a dos homens, das guerras, das revolugées e das ideias, a maioria deles conclui que a questao da imagem e a fortiori do cinema, propria do século xx, relevam de um outro vocabulario que nada deve a esses obscuros bizantinos. E a partir de Hegel e depois dele que é preciso pensar as quest6es da moder- nidade, logo, da imagem. Seriamos, pois, levados a acre- ditar sem discussdo que termos como imagem, carne, corpo, encarnacdo, visivel, sensivel, invisivel, icone, idolo, representagao nao tém estritamente nada que ver com o sentido que tiveram para aqueles que os inventa- ram pela primeira vez e que os usaram sabiamente para compreender o destino do olhar e o da visao. Esquece-se com demasiada facilidade a origem do termo encarna- cdo ou ainda em que consiste precisamente a distincio, abandonada porém no uso corrente, entre 0 corpo e a carne, Dado que os Padres da Igreja nao sao ja donos das nossas crengas, é suposto que 0 seu pensamento nao tenha qualquer efeito na lingua. Em suma, obscuran- tista ou até com veia mistica, terei passado ao lado das Luzes e, com esse desvio, ao lado de todas as grandezas, todas as revolugdes e todo o esclarecimento que lhes devemos. Contento-me incansavelmente em regressar aos textos fundadores da tradicao crista ocidental para mostrar com quanta pertinéncia e quanta forga formu- laram problemas que ainda sao os nossos. Mas nao é tudo, porque esta também em causa uma leitura critica 23 desses textos que dizem respeito a histéria dos abusos, das ditaduras e das credulidades que esses mesmos pensadores souberam instaurar. Nao é estranho que a teologia pareca fora de moda num mundo que simula um retorno macico a religiao para melhor dissimular os verdadeiros objectivos do poder? Sera possivel fazer-se uma historia do espectador sem nela anotar uma histéria da crenga e, logo, de todas as figuras sub-repticias ou violentas da persuasao e da convicgéo? O assunto parece-me antes milenar, senao mesmo eternamente na moda. £ por isso que, partindo do sitio das primeiras cavernas, reencontrarei a parada de poder e autoridade que essas imagens rupestres accio- nam e que a histéria do olhar e da visdo incessantemente tem trabalhado, em todos os sentidos. E a partir desse espectador que vou acompanhar o olhar do leitor pelos caminhos que me pareceram constituir as provagoes maiores pelas quais passou o homem que vé na relacao com o homem que mostra, incluindo quando ocupa ele proprio essas duas posigdes, Essas provacées, nomeei- -as, formam a trama deste breve caminho percorrido na companhia do sujeito nascente, desejante e falante. Cha- mam-se antes de mais coragem e medo, pois respeitam também os regimes da separacao: separagao das linguas, separagdo quanto aos mortos. Relevam, por fim, dos regi- mes de dominagio, consoante o espectador se situe no campo do poder ou no da autoridade. E por o espectador 24 ser causa de si, causa do que vé e do que da a ver, que esta breve meditacdo retomara necessariamente a questao do autor e a do actor. As hipdteses das quais este livro parte tém a visibili- dade do sonho, e as conclusées a que gostaria de chegar a invisibilidade de uma esperanga. 25 PRIMEIRA PARTE A IMAGEM: UM CASO DE CORAGEM E UM CASO DE MEDO 5 AS IMAGENS QUE NOS FAZEM NASCER Expirar e surgir sio um so gesto, VALERE NOVARINA E um belo e grande espectaculo ver 0 homem sair, de uma forma ou de outra, do nada pelo seu prdprio esforco. JEAN-IACQUES ROUSSEAU: A historia que gostaria de contar 6, de certa maneira, a do sujeito que vé. O meu propésito vai justamente ganhar a forma de um relato, relato que imagina, fic- cao que recolhe das maos do que foi o primeiro espec- tador a capacidade de falar e de dizer hoje que gestos fizeram nascer juntos o homem e a imagem e os desa- fios associados. Nao se trata minimamente de um mito da génese que faria de um demiurgo o produtor todo- -poderoso da luz e de uma criatura feita a sua imagem. Pelo contrario, é a histéria da imagem do homem feita por mao de homem, a qual se deve termos olhos que se abrem para o mundo de modo incomparavel. Podemos tentar ver nascer e reconhecer 0 sujeito que se tornara um dia o espectador do mundo e que também dara a ver aoutros sujeitos os mundos que ele vé, Por sua vez, esses outros sujeitos constituem-se, nesta troca, como espec- tadores e produtores de intimeros mundos. Vou inter- rogar a historia da experiéncia colectiva representada pelo nascimento da visao no sujeito que vem ao mundo quando seu nascimento propriamente dito ja ocorreu. Ou seja, quando vem o espectador ao mundo? Esta dili- géncia talvez permita captar como e em que momento a imagem encontrou o seu lugar nesta historia do nosso nascimento para a propria humanidade. A imagem nao sera interrogada na qualidade de um objecto da visao entre outros, mas, ao invés, como surgida de um gesto que funda a condicao de possibilidade de uma relagao, a do nosso olhar com um mundo visivel. A constitui- 40 de uma histéria do imaginario, dos gestos da ficcao que precederam e condicionaram a manifestagao de um mundo entao designado real. O sujeito torna-se espec- tador do que lhe escapa, espectador do limiar com o qual vai instaurar relacées. Ultrapasso, pois, e desvio-me das fontes bizantinas ou mais amplamente teolégicas, bem como das fontes modernas e contemporaneas que alimentaram os deba- tes sobre o visivel e a imagem. Aproximo-me das inscrigdes graficas descobertas pela paleontologia. Todos reconhecem nelas, doravante e ha mais de um século, as marcas de um homem, que provocam emogao tal que ¢ costume falar-se de arte 30 rupestre com todas as precaucdes que o uso moderna desse termo requer perante o enigma levantado por essas figuras magistrais. Quando digo «magistrais» é justamente para indicar que ai detecto algo da ordem da transmissao. Um sinal que nos é dirigido esta ins- crito nesses lugares de rocha tenebrosa. Podemos tentar captar na fonte, isto ¢, nas marcas dos primeiros vesti- gios, a maneira como o homem assinala, para si pro- prio e para os milénios vindouros, a possibilidade de ver no seio da escuridao, Esta possibilidade parece ligar-se aqui a impossibilidade fundadora de se ver a si proprio. £ aqui que se manifesta a necessidade humanizante das operagdes imagéticas para um Homo sapiens que se aventura corajosamente pelo caminho imaginario dos signos. Neste caminho, vou entrega!-me a um exerci- cio de filosofia elementar: dizer aquilo que o homem. da gruta de Chauvet, ja que se trata de um dos mais antigos registos graficos, da a ver a si proprio em pri- meira instancia e a humanidade inteira que lhe sucede.' O fazer-ver é, nestes lugares, a fabricagao de um Homo 1 Trata-se da gruta ormamentada mais antiga que se conhece até hoje. Data de ha mais de trinta mil anos e foi descoberta na regiao francesa de Ardé- che, a 18 de Dezembro de 1994, por trés espeledlogos: Eliette Brunel, Jean- -Marie Chauvet e Christian Hillaire, Esta gruta esta fechada ao ptblico. Remeto aqui para o documentario realizado por Pierre-Oscar Lévy Dans le silence de la grotte Chawvet, rodado entre 1999 ¢ 2003 gracas a uma auto- rizagao concedida pelo Ministério da Cultura. Ver também o sitio www. hominides.com/html/art/grotte-chauvet,litm. a faber que encena a fabrica dos signos, ao usar aqui fer- ramentas imagéticas como a boca e as maos. No interior da gruta, a mao nao agarra nem talha, antes deposita, inscreve um intervalo que vai propor aos olhos. Aqui, a mao produz diante dos olhos o objecto do primeiro olhar. Se estas imagens nos perturbam tanto, nao é so por descobrirmos nelas, com certo deslumbramento, ajusteza ea sensibilidade grafica de um gesto sem falhas nem inabilidade, Também nao é por o enigma destas marcas despertar em nés a magia sempre possivel dos deuses esquecidos. O fazer-ver destaca-se numa auto- nomia plena, separado de qualquer querer-dizer, e nao tenho a menor intencao de propor uma interpretacao para esses desenhos e esses signos. Estas imagens per- turbam-nos porque estamos directamente implicados neste envio potente, recebemos de chofre um sinal emi- tido cujo destinatario é o nosso olhar. Diz-nos alguma coisa porque diz coisas sobre nds. O que esta aqui em jogo é 0 sentido de um gesto e nao o significado de um objecto. No siléncio milenar destas imagens, passa-se da virtualidade sonora de uma articulagao decisiva do espectador A palavra, logo, da situagéo de espectador aquilo que se designou condicao humana. Longe dos templos e dos museus, eis-nos nas tre- vas rupestres onde, ha trinta e dois mil anos, uns homens hominizados se designaram a si proprios a espé- cie encarregada da tarefa singular que hes incumbia: 32 humanizar-se. Esse corpo conquistado aos antropdides nao sera apenas o mais habil, o mais astucioso e inven- tivo na manipulagao das coisas, sera também o mais fragil e o menos integrado no seu meio natural. E o homem desarmado, o homem da impoténcia e do medo face 4 desmedida de um mundo enigmatico, imprevisi- vel e nao dominado. Uma espécie de desadapta¢ao sobe- rana dos gestos a simples sobrevivéncia, ja que a mao e a boca, em determinado momento, terao de mudar de funcao e de fim. Instala-se uma intermiténcia origi- naria, a intermiténcia propria do espectador e do cria- dor de signos. Um tempo que nao é ja o dos dias e das noites, nem a das estacoes. Vai surgir uma duracdo sin- gular que escapa a que faz da sua vida um segmento organico entre o nascimento e a morte. O homem des- via 0 seu corpo e os seus gestos das tarefas quotidia- nas de sobrevivéncia e conservacao. Ha um tempo para viver e havera doravante wm tempo para olhar a vida e para pensa-la, O homem que aqui vem desenhar expe- rimenta uma temporalidade nova cujos vestigios trans- portam a marca, Vai tornar-se, num tempo singular, o dono do dia e da noite. O nascimento do Homo spectator é uma insurreicao do nascimento do sujeito imagético, o acto de trazer ao mundo a sua eternidade porque ele sabe que é mortal. As imagens rupestres sao inumeras e oferecem estranhas constantes ao longo de milhares de anos e a 33 milhares de quilémetros de distancia. Os paleontélogos e os antropdlogos interrogaram-se incessantemente sobre a sua significacdo ritual, religiosa, xamanica, sexual. Foi sem divida Leroi-Gourhan quem se apro- ximou primeiro daquilo que a filosofia pode esperar de tal testemunho, pois esse grande sabio ora produziu fic- cdes analdgicas e hipéteses aproximadas ora renunciou a elas. Leroi-Gourhan reconheceu a dupla inscrigao da diferenga dos sexos e do acesso as operagdes simbélicas, logo, a palavra, na base da evolucdo organica do corpo, ao considerar a distribuicao das figuras rupestres. Des- creveu de forma magnifica a libertagao do pé, da mao e da fronte e a construcao milenar da memoria. Se a sua interpretacao das figuras de animais deu lugar a con- trovérsia, nem por isso deixou de ser ele o primeiro a formular a possibilidade de uma leitura das imagens rupestres como nascimento das operagdes simbélicas. Para mim, nao se trata de situar o meu relato ao nivel da ciéncia paleontolégica mas antes de localizar dispo- sitivos de separacao e distanciamento, dando conta do que a paleontologia nos ensinou a descobrir e a com- preender, Estes distanciamentos relevam tanto da dife- renga sexual quanto do que separa as espécies, ou entao do que separa o mundo animado do mundo inanimado, ou ainda o mundo das trevas do mundo da luz, o dos vivos e o dos mortos, Produzir imagens é inscrever no visivel com o préprio corpo, aqui com as maos e a boca, operadores de separacao, logo, de alteridade. Foi por isso que decidi falar das maos, que se encontram um pouco por toda a parte, negativas ou positivas, conforme a sua marca tenha sido feita por impressao ou por aplicagao, O que vou, pois, evocar com o maximo de phanta- sia possivel, ao lancar-me eu propria numa operacao imagética ¢ o cenario que instaura simultaneamente a impossibilidade de se ver, o nascimento da imagem como operacao de retrac¢ao, a identificacao de si na dis- semelhanca e a necessidade do apoio do mundo para existir fora dele, 4 distancia dele, numa palavra, gosta- ria de evocar a inscrigdo das imagens rupestres como o cenario inaugural que instaurou o homem enquanto espectador numa relacao de alteridade, Qual é, pois, a minha phantasia? Ei-la: Um homem abandona a superficie da terra e afunda-se numa gruta. Avanca no seu interior até escolher um lugar para se deter. Esse lugar longe do sol nao é mais do que trevas, e o homem ilumina-o com uma tocha. £ certamente pela incessante danga do fogo das tochas que o homer vé dangarem as sombras e sairem das paredes fugazes figuras que evocam, como Ia fora o fazem as nuvens, a silhueta desejada ou temida do que faz vacilar todos 35 os nossos desejos ou até os nossos terrores. O homem que aqui esta, sozinho ou nao, correu ao longo deste tra- jecto orisco de um afundamento nas trevas desconheci- das, no sitio regressivo de um retorno a terra, a noite de onde saiu para nascer. Mas o homem que um dia veio ao mundo e que vai morrer, esse homem ainda nao nasceu para a sua propria vida de sujeito separado e falante. Ele desempenha o papel de um retorno, de uma descida de regresso a uma caverna matricial, um lugar desabitado e que nao se destina a habitacao. Esses lugares sao esco- lhidos para as imagens e frequentemente para o culto dos mortos. Estamos no local de uma partida, no campo de todas as separacées, Ao contrario do que os tedlogos e mais de um filésofo imaginam, o homem que se torna humano nao é aqui o sujeito mitico de uma queda a partir da luz até as sombras definitivas de uma condicao desas- trosa. Este homem dos mitos esta ja concebido como o sujeito dos poderes de um outro sempre mais forte € mais poderoso do que ele. O homem que nascew na luz é tomado por relacées de forga nas quais a sua impo- téncia determina apenas a sua fraqueza e nunca sobera- nia alguma. Mas 0 homem que acompanhamos na sua descida subterranea seguiu um caminho totalmente diferente. Regressa a negridao da terra para construir a sua defini¢ao ao pdr em causa a disposicao das trevas eo destino do que as devera iluminar., Vai transformar uma relacao de forgas na qual o real 0 esmaga numa 36 relagdo imaginaria que lhe da a capacidade de nascer, logo, de ser a causa de si proprio, de se trazer ao mundo e de manter com esse mundo um comércio de signos. Nao é 0 Sol nem nenhuma divindade fotofora ou lucife- rina que o ilumina. Nao, é a tocha que acendeu com as suas proprias maos. Ele esta aqui, diante de um muro na noite cuja claridade foi produzida por ele. Face a rocha, mantém-se imdvel, de pé na opacidade deum face-a-face, confrontado com a muralhaqueéoseu horizonte, macica, muda e sem olhar, como pode ser la foraa incomensurabilidade dos obstaculos e dos terrores sem nome. Este muro éo mundo que resiste a dominagao e a penetracao. Ai estara, porém, 0 seu ponto de apoio, o sitio irredutivel que vai tornar ponto de partida, E daqui que vai partir depois de se ter voluntariamente «enter- trado». Ei-lo a estender o brago, apoiado na parede e afas- tando-se dela num mesmo movimento: a distancia de um brago, é esse, de facto, o primeiro distanciamento de si em rela¢ao ao plano no qual vai compor um elo por via de um contacto. Ja nao é como |a fora, ao sol, onde os seus olhos yéem muito para la do que as suas maos con- seguem tocar, No mundo subsolar, os seus olhos sao os utensilios da previdéncia, de uma distancia a percorrer ou a escavar, La fora, os olhos alcangam um horizonte que interrogam e que provoca o desejo de conquistas. O horizonte é a prova de um distanciamento que suscitaa sonho ou o dominio. A sua inacessibilidade é propicia as 37

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