Você está na página 1de 21

291 Pierre Clastres, etnólogo da America* Tânia Stol/.

e lima
Mareio Goldman

E mal ver que o centro do assunto seja ainda de indiscussão, conformemente?


G u i m a r ã e s R o s a.
A leitura de qualquer ensaio de Pierre Clastres faz-nos estranhar esta singularidade de sua obra:
o uso de termos antropológicos antiquados. Parece haver algo mais forte que desatenção para
com o velho ritual com que se cerca toda r efer ência aos selvagens e sua sociedade: aspas, ditos,
chamados, supostos et c. É um uso que toca o coração da obra e, ao mesmo tempo, decorre de
uma visão da antropologia. Pois Clastres , por certo, tem uma concepção própria do que seja essa
ciência e do que ela poderia tornar-se.
"Ciência do homem, mas não de qualquer homem" (I 96 Sa: 3 7), a antropologia é ciência
dos selvagens, do "conjunto dessas civilizações primitivas ; rejeitadas justamente pela nossa para
fora do campo de súa própria linguagem" (idem :36 )'. Seria inútil buscar em seus escritos
de caráter epistemológico para a antropologia:No t;ntanto, seria falso concluir disso
uma omissão do autor. Resolut_a mente, um discurso científico para justifi-
car o que faz .·e , nesse caso, t em de conviver com sua hesitação: ."a ciência do homem
talvez não seja necessária" (I 969: 19). Essa forma e indireta, negativa mesmo, de situar
epistemológica, muitos poderiam subs"crever, Ínas Clastres se. distingue por fazer disso
que urna formula acadêmica, por tomá-la como impulso primeiro de seu pensamento
e sua obra. A antropologia e fala dos selvagens- isso é um é que
E como a condição histórica dessa ciência é o ponto de partida todo antropólogo, é preciso
interpelar o discurso científico que pret ende tê-la supe_radob da política. ·.
fora ..
Em mais de uma ocasião, Pierre Clastres sustenta que aanúopologia é experiência da
partilha (I 968a: 37), uma ciência "inscreve seu projetop? horizonte da partilha" (I 976a: I;.I4)
que o Ocidente há muito instaurou, isolando-se do 'conjunto dos grupos humanos que falam
linguagens estranhas.
Como Clastres , muitos parecem concordar em ver aí a condição de possibilidade, no pla-
no histórico , dessa ciência (I 968a). A discordância surge .no que diz respeito ao lugar a partir do
qual se reconhece que o discurso antropológico é enunciado. Pode-se pretender situá-lo além
partilha, no elemento da uni versalidade. Pode-se- como é o caso Clastres- tomar apartilha como
algo mais, como o ponto de vista a partir 'do qual é possivel falar. No primeiro caso, poder-se-ia
sustentar que tal partilha é nossa forma particular de atualização de um dispositivo ideológico
universal, o etnocentrismo, cuja superação caracterizaria e instauraria ao mesmo tempo o olhar
antropológico no campo do relativismo e da universalidade.
Ora, o exemplo de Clastres é diferente. Primeiro, trata-se de questionar a universalidade
do etnocentrismo a fim de colocá-lo em sua verdadeira dimensão sociológica. Que o Ocidente
compartilhe com as mesmas sociedades que exclui esse traço cultural é apenas parcialmente ver-
dadeiro, pois nada justifica separar o nosso etnocentrismo e a nossa prática concreta de aniquilação
das outras culturas. Nosso etnocentrismo é rio mesmo golpe etnoddio. É insuficiente , por isso,
abordar o etnocentrismo como uma propriedade da natureza humana, ou das formações sociais, é
preciso apreendê-lo em sua incidência sociológica. No Ocidente (como de resto em toda formação
estatal) o que se pode observar é um movimento constante e deliberado de incorporação do
Outro, de "supressão mais ou menos autoritária das diferenças socioculturais" ( 1 974b:54).
Ao tomar o etnoddio como perspectiva, Clastres surpreende nossa relação com o outro .
sua qualidàde verdadeiramente sociológica, sugerindo que o etnocentrismo que r ege as
relações das sociedades primitivas umas com as outras é algo que não compartilhamos. Somos
levados em suma a apreciar o fato de que, longe de irromper como um acidente, o etnoddio
_é uma política indissociável de nossa civilização. É uma função do Estado. Clastres escreve: "o
etnoddio [ ... ] ·está inscrito de antemão na natureza e no funcionamento da máquina estatal", "é
o modo normal de existência do Estado" (idem:s4-5).
O etnocentrismo ocidental sendo, pois, o que é, haveria algumaperspectiva que não o
universo da partilha para a antropologia? Ressaltemos, antecipadamente, que é a essa indagação
que seremos _conduzidos pelo segundo aspecto da concepção de antropologia desenvolvida na
obra de Clastres.
Trata-se de repensar o estatuto da ciência antropológica diante de uma situação de fato.
Se, mais do que uma visão ou repr:sentação, a partilha é um funcionamento político atuante
e vigoroso, e se, éomo ciência que pretende dominar a verdade das sociedades tratadas como
inferiores, a antropologia é um desd'o bramen'to da civilização ocidental, ela não deixaria de ser,
portanto; l.lm aspecto da relação qu"e o Ocidente mantém com o Outro. Assumir-se como tal é a
. - '
decisão da antropologia de Clastres.
Em vários de seus ensaios, podemos observar Clastrei aplicado em surpreender a antroc
pologia naquilo em _q ue ela se revela um saber ativo, naquilo em que se mostra coextensiva ao
discurso ocidental sobre os selvagens, discurso que- é preciso ressaltar- nos inclui. Poder-se-
ia dizer, numa leitura muito simplificadora, que Clastres é um tr,ítico -do evolucionismo (enten-
dido aqui como escola antropológica). Na verdade, o que pretende ·é bein mais do que isso,
é submeter o discurso familiar sobre os' selvagens; que a antropÓlogia direta
ou indiretamente subscreve, a um trabalho crítico. Trata-se de fazer uma arqueologi9 da linguagem
antropológica (I 969: I s-8), em suas referências às ·s óciedades primitivas cotilosem escrita, sem
. .
Estado, de economia de subsistência, sem história. E destacar,' quase nuli} desses
conceitos, o real sociológico de nossa opinião e
Naturalmente, Clastres não ignora a dedicação a_n tropológica, bl!sca de superação
., . ' .
progressiva do etnocentrismo: "essa intenção"·, ele mesm,o assinala com ironia, "é louvável"
(idem: I s). No entanto, objeta duramente: em que medida essa ?edicação 'não -passa de um ritual
antropológico? Os antropólogos acabam sucumbindo ao "mais ou menos tranqui-
lamente, mais ou menos distraidamente" deixamos "a ciência degradar-se em
opinião" (idem: I9).
Mas não é por esse tom um tanto arrogante que
,.
nos afastaremos,
•' .
em.sua clareza, do teor
da obra. A intenção dé Clastres não é corrigir um rumo de que nos . teríamos desviado. Não
propõe-ao contrário, ele contesta a existência desta alternativa-uma passagem progressiva
da ideologia ao esclarecimento da ciência. Não há sustentação possível para uma ótica positivista.
É preciso cuidado com todo retorno das luzes . Ou adotamos a visão corrente na qual aparecemos
como o telas das sociedades primitivas- e permaneceremos ém .sÜênci<? o fato de que
é por essa via que o saber antropológico participa da relação que o Ocidente estabeleceu com o
Outro-ou a recusamos. O trabalho crítico de Clastres implica ou supõe essa recusa.
Ainda uma vez queremos ressaltar que não se trata aqui de substituir um olhar etnocêntri-
co por uma visão clara. Seria inútil capazes de nos tornar detentores da verdade
_ dos selvagens. Seria falso t(;l.mbém, e pretensioso em todo caso. Inútil e falso, visto que aceder à
verdade dos selvagens, tomar a ciência por um dos selvagens, é simplesmente um contra- 294
'· -
senso. "A todo mundo", a nós como à antropóloga selvagem que foi Elena Valero, "recusa-se
igualmente a astúcia de um saber que, ao se tornar absoluto, abolir-se-ia no silêncio" (I 969a:4o ).
Pretensioso, pois, condenada a falar como experiência da partilha, a antropologia consiste em prin-
cípio em um discurso sobre os selvagens (I 968a: 3 7; I 969a:4o ). Sucede que Clastres não pensa que
isso seja irremediável, nem definitivo. É possível trasformá-la em um diálogo. "Se a antropologia
é uma ciência", escreve, "ela é ao mesmo tempo outra coisa que uma ciência" (I 968a:37). Dupla
face de que é preciso dispor como um privilégio. Mas ... como?
Se o que nutre o olhar antropológico não é a superação da partilha mas sim a própria
existência da partilha, que a atividade antropológica, abandonando o qlle de mais tolo o século XIX
inventou: o cientiflcismo (I 9 7 8: I 67), seja uma arma contra a partilha. Que, inquieta com a verdade
e Única ponte entre os dois mundos, forje uma linguagem nova, que nos conduza a um novo pensa-
mento, e nos dê a chance de falar com o pensamento deles (I 968a: 3 7- 8).
Seria preciso lembrar aqui que, se o diálogo é o sentido da antropologia de Clastres, ele
jamais o utilizou para engrandecer seu próprio nome. Como ocasião para uma homenagem, afir-
ma que já se enunciaram as primeiras palavras, que são a obra de Lévi-Strauss, particularmente
dediçada ao desmantelamento da Razão e a sua contrapartida: o estudo atento do pensamento
selvagem. Mas, como sabemos, é a sociedade dos selvagens que Clastres pretende interrogar, e
isso acabaria por de forma sensível os dois autores .

Por O'casiã? de··seu ensaio-.-o an:o é I96Z- , Clastres parece considerar a possibilidade
inscrever uma pr9blemática sociológica precisa, _à $erá fiel ao longo de toda a sua obra,
no campo da -antropologia Essa problemática pode ser formulada assim: em que
a .vida social índígena pode desenrolar-se fora das relações de coerção ou poder. "Tro-
ca .e da chefia indígena" já a enuncia com clareZa e, ao mesmo tempo, representa
uma
Nesse ensaio, o autor analisa a instituição .política dos índios América do Sul tropical,
a chefia, abordando-a--sob o aspecto do paradoxo que ela apresenta ao Ocidente: o fato de que
o chefejmJ.ígena é a Um só tempo chefe e homerri destitwdo de poder: Urna análíse emp._Ír_ica
abrangente das propriedades da instituição e das funções do chefe permite a Clastres isolar
fatos e relações importantes que permanecem, contudo, ao menos em parte, insuficientemente
explicados, até mesmo destituídos de existência sociológica concreta e irredutível. Lowie havia
indicado três atributos essenciais da chefia americana: a generosidade, a manutenção da paz e o
uso da palavra. Lévi-Strauss, em sua breve reflexão sobre a chefia nambikwara, assinalara os se-
guintes traços: iniciativa, generosidade e poliginia; e definira, além disso, a relação da sociedade
com a instituição política como relação de reciprocidade. O bando retribuiria com mulheres
jovens e bonitas a segurança propiciada pelo chefe.
À contribuição de Lowie, Clastres acrescenta a poliginia destacada por Lévi-Strauss, e
desenvolve a partir daí dois argumentos. O primeiro, claramente dirigido contra Lowie, propõe
uma distinção entre o ser e o Jazer da chefia (I 96 2:3 3): oratória, generosidade e poliginia de-
vem ser encaradas como condições de possibilidade formais da instituição. Opõem-se, portanto,
àquela· dimensão empírica e (uncional de moderação dos confli,tos internos. Tal distinção, que é
talvez inesperada ou m esmo arbitráría, prepara o segundo argumento e a conclusão geral
estudo. É que percebeu. algo qU:e poderia desprezar como "coincidência
sem significação" (I 969 : 34), a saber, o ser da chifla põe em jogo os termos-
mulheres e bens) cuja circulação compõe, segundo a teoria levistraussiana, as estruturas troca
instauradoras do estado de sociedade.
O segundo argumento é, por sua vez, uma contestação, não explicitada como tal, da
hipótese de que a relação entre o chefe e o grupo seja uma relação de reciprocidade. Bem ao
contrário, a instituição política destaca-se muito mais como um nódulo que desvia mulheres,
bens e palavras de sua função de comunicação, fazendo-os aparecer ali como valores, seja porque
a via que cada um desses termos percorre, entre o chefe e o grupo; é unidirecionada, seja por-
que o grupo não abriria mão de mulheres em troca de qualquer outra coisa. Sendo as mulheres
·o bem mais precioso no mundo indígena, ninguém aceitaria las. Permanece então um
problema: o fato objetivamente constatado de que a chefia' impllca quase de forma
a poliginia. Esta última exprimiria, portanto, certa relação de desigualdade entre o. chefe e
o grupo. Não fosse isso, como um homem destituído de poder poderia gozar desse pri vilégio
exorbitante? Clastres entende, então, que o ser da chefia consiste em relação privileaiada com os
termOS da reciprocidade. Que, por implicação lógica, O poder é contra O arupo (I 96 2:3 8)-sendo
este último fundamentado na reciprocidade à qual, justamente, se furta o primeiro.
O problema é ainda a condição aparentemente paradoxal do chefe indígena. O s elem en-
tos de uma solução já estariam dados. Se a relação entre chefe e grupo tematiza a r eciproci-
dade, então a esfera política no mundo indígena constitui, presume Clastres, uma problemáti ca
inerente ao nível mais prcfundo da estrutura social (idem:39-4o), uma problemática situada no ato
sociológico fundamental, con cernente à gênese m esma do social. Nesse primeiro movimento
da explicação, que não nos convence da necessidade de atribuir à chefia indígena um enraíza-
menta nas condições inconscientes da vida social, é assim bastante notável certa solução de
continuidade.
A explicação prossegue: se o chefe indígena exer ce sua função de moderador dos confli-
tos internos (o seujazer) sem usar coer ção e violência, é que o seu ser foi tornado impotente ao
ser instaurado no ext erior do universo da comunicação. Será que sem elhante proposição dissipa
r ealmente o paradoxo? Ora, é bem o r ecurso a uma tautologia que faz as vezes de solução.
Primeiro, Clastres afirma que a sociedade rejei ta ou exclui (idem: 3 8) o que já lhe é exterior;
depois, convida-nos a concluir que é nas m esmas condições de possibilidade da instituição, o ser
da chpa, que está dada sua impotência.
A fraqu eza da conclusão do autor, segundo entendemos, deve-se, então, ao seguinte:
t endo atingido um nível de generalidade profundo, no qual pôde descobrir a relação neaativa
entre o político e a troca , e concluir de modo justo que o poder é contra o arupo, Clastres desvendava,
sem se dar inteiramente conta, uma propriedade do político que é geral, ou seja, independente
de ser o seu r egime de funcionamento selvagem ou estatal. Pretendeu, em seguida, singularizar
a chefia indígena por m eio de uma exterioridade que é também um fenômeno geral-pois não
_sucederá o mesmo. a u.m poder que E flSSim, por Qão desejar perder de v_ista.o obj eto
na,pa:rtid:a, ainda da d.p.
problema. Pois ·pareée-nos que valor mulher es para um poiJ.tq de.
vista indígena, perdendo, nesse golpe, o sociológÚ::o.verdadeiro da poliginia. Além disso,.
como a análise não malograria se no ponto de partida havia a aposta numa distinção precipitada
e de utilidade muito restrita entre o ser e o Jazer da chefia, entre a estrutura e a função?
O pri vilégi o, com o notará ulteriormente ( I 976b: I 3 7), não é do chefe sobre o grupo,
mas deste sobre aquele. Pois a poliginia, propõe mais tarde, é o m eio para o exercí cio da gene-
rosidade de que deve dar prova um chefe . Encará-la como tal , como um fato determinado pela
generosidade, irá levá-lo a apreender a relação entre o político e a sociedade tal como ela é :
uma relação de dívida- noção que lhe p ermitiu situar a problemática do político em um plano
que não é o do inconsciente, sem por isso deixar de ser geral a toda sociedade.
O sentido da dívida indicará de uma só vez a presença ou a ausência do poder coercitivo
no funcionamento da instituição política. Nas sociedades indígenas amazônicas, o chefe t em
uma dívida para com o grupo que mantém r eunido em torno de si. Ele será chefe enquanto
puder alimentar essa dívida . Dito de outro modo: será chefe enquanto puder não exercer poder.
Observemos de passagem que a noção decisiva de dívida é introduzida na obra de Clastres sem
maior tentativa de justificação. Isso parece m esmo uma atitude bastante comum do autor: a
utilização de certos conceitos centrais como se deri vassem diretamente da r ealidade etnográ-
fi ca, e não como categorias transcendentais logicamente deduzidas . Assim, ele se entusiasma
ao constatar que Marshall Sahlins critica a noção de economia de subsistência não lhe opondo
"uma outra concepção , mas simplesmente os fato s etnográficos" (idem: I 29).
Se em seu primeiro ensaio é notável, como pret endemos ter mostrado acima, que o
compromisso do autor com a teoria levistraussiana da sociedade prepara-lhe um malogro, Clas-
tres o pressente a tempo. Nas páginas finais do ensaio, r ecoloca abruptamente o problema dado
no início. Pôde explicar, diz, a causa do não-poder do chefe indígena, mas não sua ra zão de ser
profunda ( 1 9 6 2:3 9). Seria muito indelicado, na hora do dissabor, exigir-lhe uma justificati va
para esse tipo de distinção. Levantar de novo o problema já é, parece-nos, confiar que por ou-
tras vias será possível elucidá-lo mais tarde. Donde a impressão de curto-circuito que sentimos.
ao ler os últimos parágrafos, em que , contudo, r econheceríamos um primeiro eshoçÕ. dé
hipótese mais original: "Longe portanto de nos oferecer a imagem terna de uma incapacidade
para resolver a questão do poder político, essas sociedades nos espantam pela sutileza com a
qual a colocaram e determinaram. Pressentiram muito cedo que a transcendência do poder
comporta um risco mortal para o grupo, que o princípio de uma autoridade ext erior e cria-
dora de sua própria legalidade é uma contestação da cultura; foi a intuição dessa ameaça que
determinou a profundidade de sua filosofia política" (idem:4o ).

Já observamos que o objeto da antropologia de Clastres deveria afastá-lo daquela de Lévi-


Strauss. Em seus últimos ensaios (1977a; 1978), ele m esmo r efl et e sobre esse afastamento. O
estruturalismo oferece certamente uma concepção de sociedade, e é justo dela que é preciso se
afastar. Pois esse discurso foi elaborado para falar de outra coisa, dos sistemas de parentesco e
dos sistemas mitológicos. É claro que são sistemas fundamentais na sociedade primitiva, e não
é isso que se contesta. Mas sim, como é claro também, que não são essa sociedade: "Qual é
lacuna onde se enraízá o malogro do estruturalismo? É que esse discurso magno da antro-
não fala da sociedade. O que é eliminado, suprimido do _discurso estruturalista
.[ .. ·.]; aquilb que um tal discurso não pode falar, porque não foi feito para isso, é a sociedade
pi-im!tivg concreta, seu modo de funcionamento, sua dinâmica interna, sua economia e sua
( 1 9 7 8 : ' s 8) .
O que é, com efeito, antropologia estrutural? Uma teoria crítica sobre as condições de
possibilidade da vida social: a emergência do pensamento simbólico torna a-sociedade ao mes-
mo t empo possível e necessária. Como uma antropologia stricto sensu, a grande importância do
estruturalismo é apresentar uma teoria que põe em xeque toda a r eificação da sociedade ou da
cultura, toda a antinomia entre uma ordem social transcendente e uma ordem do indivíduo.
O ponto é que é difícil contentar-se com a triagem antropológica efetuada ·por Lévi-
Strauss. À r eciprocidade , Clastres contrapõe a violência da guerra, por um lado, e a dívida, por
outro, como dimensões igualmente essenciais da vida social. Pois se a reciprocidade, em certo
sentido, pode ser tida como fundadora do social, em outro, não é absolutamente suficiente na
constituição dos grupos humanos: sem ruptura da reciprocidade não se forma uma sociedade
concreta. Sob esse ponto de vista, a troca, em sua figura priro'ordial de proibição do incesto,
distingue o homem da natureza; sob outro ponto de vista, a ruptura da troca distingue grupos
humanos entre si. Aqui, quer dizer, na Amazônia indígena, uma tal ruptura assume a figura da
guerra quando se trata de relações entn.: os grupos e a da dívida quando se trata de relação en-
tre instituição política e sociedade. Com essa hipót ese, Clastres define o estruturalismo como
um discurso troquista sobre a sociedade primitiva. Efetuando uma confusão inadequada entre
dois níveis distintos, o do inconsciente humano e o da sociedade, o fundamento do social vem a
ser confundido com o funcionamento da sociedade e uma teoria do humano com uma teoria do
ser social primiti vo (I 977a: I 8 3-8). Retomaremos adiante, em seu duplo aspecto, essa distinção.
O tema da não-reciprocidade está já, de alguma forma, presente na obra de Lévi-
Strauss. Recordemos que ele encerra As estruturas elementares do parentesco mencionando mitos
que imaginam uma idade de ouro, passada ou futura, na qual as pessoas viveriam fora da reci-
procidade, ilustração do desejo humano de viver chez soi. Poderia parecer, talvez, que Clastres
simplesmente estende essa perspectiva. Em "O arco e o cesto" (I 966), de fato, partindo de
uma abordagem detalhada das relações sociais constituintes da sociedadeg,uayaki ,
Clastres também cuidou de isolar uma prática-o canto dos caçadores-que s11bverte o esque-
ma dareciprocidas}e. os caçadores, à noite, cantam solitários, cada um para si. Desvio
palavra de sua função de signo para a de puro valor, Pártia-se da reciprocidade, chega-se a._sua
negação. A primeira constitui o grupo; a segunda, a ·s ubjetividade do caçador. . ·
Mas mesmo de uma simples extensão? Parece-nos,-<;J.O contrário, que há aí
algo mais. Pois Clastres também adverte, ao final do mesmo ensaio, _que não diante
de um simples mecanismopro jetlvo, mas de uma estrutura A
da longe de ser episódica, é um dos aspectos da dupla natureza dalinguagem:
esta pode em signo e promover a com outrem, mas também em valor e
promover a relação consigo. Tomando essa ambivalência da linguagem ·como índice de uma
ambivalência da natureza humana, Clastres sustenta que o homem não é só urrí animal políti-
co, plenamente instalado na troca,' mas um animal doente (I966: Io9), e parte em
incidência Sociológica desse segundo aspecto da linguagem, do qual O estruturalismo l}ãO sabe
dar conta exceto tratando-o como motivo para um mito ou rito, ou seja, para um sonho
sociológico. Seja signo, seja·valor, a palavra, segundo Clastres, sempre encerra unia política.
No 'mundo dos selvagens 1 essa P?lítica encontra-se de imediato inscrita na relação de não-
radical entre homem·e ·linguagem, o que faz com que a última sobretudo
. ..,. . -
valor: sufidentemehte rica para interrogar o mundo, mas demasiado vazia para servir de instru-
mento de ação de uma pessoa sobre outra.
É assim que a palavra-valor que enuncia um chefe cria para a instituição política um
limite. Pois é na própria eloqüência de que é capaz e que se lhe exige, que o chefe encontra
o obstáculo para agir contrariamente à vontade do grupo. Presa de seu próprio discurso,
ele cumpre a atividade política no exterior da comunicação (I973a:135). Desse modo, o
que havia aparecido como doença humana mostra-se, em outro registro, um mecanismo
sociológico eficaz. Importa enfatizar que não estamos mais, nesse contexto, confrontados com
um mero sonho humano: o limite imposto à comunicação é o limite imposto às ordens que a
comunicação pressupõe, e está agora ligado ao domínio fundamental da vida social concreta
em que consiste o político.
A utilização das categorias da dívida e da guerra mostra por si mesma que Clastres não
aplica apenas ao campo da linguagem sua reflexão sobre o tema da não-reciprocidade. O autor
parece mesmo muito seguro de que essa é a via para se pensar o funcionamento da sociedade.
·Vimos que o ensaio de I 96 2 constatava certa curvatura do fluxo de trocas no campo da chefia
indígena e deveria revelar que, do ponto de vista da reciprocidade, a relação entre sociedade
e instituição política em geral é uma relação de exterioridade. É justamente como dívida que
Clastres a define em um de seus últimos ensaios (I976a: I4o-1). A dívida demarca a esfera do
político na sociedade e expressa a relação de poder. Que o chefe seja generoso para com o grupo
é nada menos que a contrapartida do poder que o grupo exerce sobre o chefe.
A dívida aparece assim como categoria política de importância decisiva. Permite susten-
tar a perspectiva do caráter plenamente político de uma sociedade em que a instituição política ·
funciona no exterior da relação de poder. Permite sustentar, também, a descontinuidade essencial
(I 976b: 140) entre a sociedade primitiva e a sociedade de Estado. Ora, encontramo-nos aqui .
diante dos dois aspectos centrais da obra de Clastres. Para formulá-los, ele teve de abandonar
o enfoque inicial que se restringia ao aspecto interno da política indígena, para abordar sua
p.olític-a exterior. É naquilo ·q ue limita e opõe umas às outras as comunidades primitivas;-que
o lugar da política se define com toda clareza: . .

Q!}e Jaz um chife sem poder? Essencialmente, ele é encarreaado de difender e assumir a vonÚ;.de da sbcie-
em aparecer como uma totalidade una, isto é, o eiforço combinado, deliberado da comunidadé com
vistas a cifJrmàr sua especificidade, sua autonomia, sua independênci'a com relação às outras
Em termos, o líder primitivo é principalme?.te o homem que fala em nome dà sosiedade. quando
circunstâncias e acontecimentos a colocam· em relação com outras. Ora, estas últimas,· para toda comuni-
dade primitiva, se distribuem sempre em duas classes: os amiaos e os inimiaos. Com os primeiros, trata-se
de estabelecer ou riforçar relações de aliança; com os outros, trata-se de conduzir, quando é o caso, as
operações auerreiras. Resulta que as junções concretas, empíricas, do líder se desdobram no campo, poder-
se-ia dizer, das relações internacionais . . . (I 9 7 6: I o 5).

Nesse sentido, ao ser articulada à dimensão exterior de cada comunidade, a chefia tangencia o
essencial da relação que cada comunidade mantém com as demais-a guerra . Vemos aqui se
aprofundar a distância de Lévi-Strauss.
De fato, Clastres critica Lévi-Strauss por fazer da guerra um simples fracasso da reci-
procidade. A questão, evidentemente, não é negar que a primeira seja o contrário da segunda,
mas buscar encarar a guerra em sua positividade. Ou seja, enquanto no discurso estruturalista
a guerra rigorosamente nada produz-a função criadora sendo atribuída de modo integral à
reciprocidade-para Clastres, mesmo sendo ela primeiro limitadora do circuito de trocas,
essa função de limitação é essencial na formação e no funcionamento da sociedade primitiva
como tal. Não se poderia pensar essa sociedade sem levar em conta o caráter restrito das
unidades que são aí integradas pela.troca. A sociedade primitiva, fora desse estreito círculo de
reciprocidade que sua independência e autonomia, é um ser-para-a-auerra.
. Eis assim .que Clastres subverte a perspectiva estruturalista. É preciso certamente haver
troca para haver sociedade. Mas a esse transcendental, a sociedade primitiva responde cóm a
delimitação do espaço da troca, que só pode funcionar no interior de um campo demarcado pela 302
'
aliança política, aliança que é por sua vez parte integrante do mecanismo geral da guerra:
contrai-se a aliança tendo em vista fazer a guerra contra um terceiro; ou proteger-se dele. A
guerra consiste, então, segundo nos parece, em um transcendenral empírico determinando o
ser social primitivo.
A violência que atravessa a sociedade primitiva, longe de ser fortuita ou extrínseca à
condição social, traduz e instaura um processo sociológico fundamental: a dispersão entre os ·
grupos centrados na figura de um chefe. A guerra permite definir a natureza da sociedade pri-
mitiva na medida em que, pondo em relação grupos distintos- inimigos ou aliados- é pos-
sível isolar-se a dimensão empírica das comunidades, sejam elas grupos locais ou conjuntos
de grupos locais reunidos do mesmo modo em torno de um chefe, de um plano sociológico
mais amplo. Quer dizer, a verdadeira unidade de análise-a sociedade primitiva, ou o ser
social primitivo-não se confunde com nenhuma unidade sociológica empírica tomada isola-
damente. A sociedade primitiva aparecerá, então, como "uma multiplicidade de comunidades
. indivisas que obedecem a uma mesma lógica do centrífugo" ( 1 977a: 2o6).
A perspectiva de Clastres nos permitiria, portanto, notar que subsiste no estrutu-
ralismo, devido à lacuna na abordagem de uma questão propriamente política, um certo
_ naturalismo. Neste, o social se destaca da natureza pela troca, e, uma vez que esta está
dada, a constituição dos grupos, relegada a segundo plano, não faz parte da problemática
antropológica. A antropologia de Clastres distingue-se por seu caráter nitidamente artificia-
lista. Aqui não há passagem imediata de uma condição de possibilidade, ela mesma enraizada
na !latureza humana, para um estado social constituído. Este supõe necessariamente um me-
canismo sociológico instituinte, isto é, uma política.

Podemos agora voltar sobre nossos passos e recolocar a questão central da obra de Pierre
Clastres. Qual é á afirmação fundamental dessa obra? Todos ·o sabem: a sociedade primitiva é
contra o Estado .
Essa verdadeira reconversão do olhar tem implicações que fazem a antropologia de
Clastres ser interessante . A que conduz esse deslocamento do olhar sobre a sociedade sem
Estado para um outro sobre a sociedade contra o Estado? Veremos que não se poderia con-
ferir, de verdade, à sociedade primitiva um estatuto francamente político sem que a reflexão
culminasse em um questionamento do Estado como princípio necessário à fundação da socie-
dade. D esejamos antecipar também que essa reflexão exprime uma certa r econfiguração das
relações entre o ser e o fazer, aquela distinção introduzida no primeiro ensaio (I962) e que
entrará em um estado de t ensão exacerbada nos últimos (I 9 77 a, I 9 77 b), como se o fazer
estivesse prestes a assumir a dianteira do ser.
Sabe-se bem que durante muito tempo as sociedades primitivas foram caracterizadas
por reflexões antropológicas muito diversas em t ermos de falta de Estado. Pôde -se atribuir
essa falta ao estado embrionário do desenvolvimento da sociedade como um todo ou das
forças produtivas em particular. Observou-se, também, que nem por isso aquelas sociedades
embrionárias e retardatárias careciam de mecanismos de controle , manutenção da ordem,
·coesão ou outra coisa da m esma esp écie. D e forma que essas fun ções de um Estado ausente
bem podiam ser efetuadas pelo restante da estrutura social, já que em seu estado originário as
relações sociais seriam indiferenciadas, e o parentesco e a r eligião, dotados de multifunciona-
lidade. A questão que Clastres colocou a esse tipo de discurso antropológico é até que ponto
uma atenção concentrada na ordem, na coesão, nas instâncias de controle, não é a afirmação
do ponto de vista do Estado, que encara como n ecessidade antecipadamente dada aquilo que
talvez só exista como seu modo próprio de operação. A uma tal filosofia da· história que , de
resto, confunde o efeito e a causa, Clastres opõe uma antropologia na qual, mais do que como
objeto, estamos excluído_s como ponto de vista .
Poderíamos,_contudo, indagar por que Clastres não encara a ausência de. Estado sim-
plesmente como indiferença legítima de certas sociedades para com esse gênero de instituição
política, isto é , como um aspectó a mais da diversidade cultural. É que um tal relativismo
trai muito mais a indifer ença da àntropologia por um questionamento do Estado do que a das
sociedades primitiva.s. Indiferença que conduz inevitavelmente, em sua opinião, a ·u ma má
compreensão da natureza do político : os termos com que se deve Circunscrevê-lo não podem,
é evidente, ser 6s m esmos que o Estado propõe. Mas má compreensão também, e sobretudo.,
do" ser' :sociedades primitivas. Evolucionismo, funcionalismo, culturalismo, não -podem,
por conseguinte;· aeeitar que ·os selvagens tenham um saber profundo de sua situação e
que aconÚ.ceria .caso se modificasse . A sociedade primitiva é tida como
funciona mecânica e: naturalmente , e os selvagens como seres que reagem passivamente a·
.e sse
Çlastf.es recusa esse mecanicismo naturalista, e seu empreendimento, de algum
. análogo ao e m to.r:no da Razão, é uma problematização do Estado.
contra o Estado traduz o caráter artificial-politico-da sociedade primitiva. Longe de estar
dissolvido por todo o corpo social-visão que supondo, implícita ou explicitamente, uma
especialização progressiva das relações sociais não pode escapar de um esquema evolucionista,
nem da pressuposição de que o Estado, ainda que ausente, é o princípio de organização do
social- , na sociedade primitiva o político aparece claramente em uma instituição individu-
alizada: a chefia. Ao lado disso, Clastres sustenta a universalidade do poder, uma necessidade
inerente à vida social (I 969: 2 I). Visto sob esse ângulo, o poder define-se como aforça centrípeta
qu e agrega um certo número de partes convertendo-as em um certo tipo de totalidade. Ache-
fia é essa força centrípeta da sociedade primitiva. Força que é mantida sob o controle da socie-
dade, que dispõe de m ecanismos- mecanismos sociais primitivos- capazes de estancar a força
unificadora da chefia em um determinado limiar e impedir, por assim dizer, a condensação
de um núcleo pesado que logo se destacaria da sociedade e _passaria a comandá-la de fora .
Esses mecanismos sociais primitivos não são menos integralmente políticos do que ache-
fia. Sua natureza, contudo, é diversa, pois trata-se aqui de forças centrifugas. Quais são essas
forças? Fundamentalmente, a economia e a guerra. Em cada uma delas traduz-se, respectiva-
m ente , o ideal de autarquia e o ideal de independência política da sociedade primitiva. A econo-
mia não é aí a _grande força unificadora que conhecemos, e no seio dessa sociedade cada
comunidade busca ser economicamente independente. Além disso, no seio da comunidade
subsistem unidades econômicas potencialmente autônomas que· impelem a sociedade para
fora de si mesma, impedindo ao m esmo tempo sua identificação com outras comunidades.
É verdade que um chefe pode, por meio de sua generosidade, conter por certo período a
irr{inência de dispersão da comunidade qlle a .economia encen<t· Mas :ó· que eahe ré S.sa,ltat
é' a comunidade em chefe : pó; ta já' a_ e
dadas não sÓ na no
das famílias extensas podem possuir cada uma um chefe ao do chefe do como um
todo, assumindo assim sua tendência centrífuga (idem:s2-3).
A guerra- o estado de auerra permanente entre as comunidades primitivas- traduz do
m esmo modo um outro mecanismo social primitivo . Um estado de guerra permanente respon -
de pela pulverização da sociedade em um conjunto de comunidades que dispõem, todas , de
meios diversos para preservar ou reatar hostilidades umas com as outras. Da gu erra primitiva
decorre, pois, a não-identificação das comunidades, e as alianças políticas entre algumas delas
são transitórias, instáveis e subordinadas a uma guerra que se queira mover contra uma outra.
Em resumo, Clastres busca tomar a guerra pelo que e la r epresenta: um impulso cen -
trífugo da sociedade e , portanto, contrário à constituição d e grandes massas sociai s. É por
isso que a encara como ato político contra o Estado. Guerra e Estado surgem assim como dois
atos políticos essencialmente distintos e opostos. Isso já que , segundo o autor, a essência do
Estado é a unificação (I 9 7 4: I 8 I), o Estado é a força centrípeta liber,ada de todo constrangi-
mento (I 974b:53). É o Um. Já a essência da sociedade primitiva é a guerra, a dispersão e a
multiplicidade : o contra- Estado.
Mas, ao nos exprimirmos em termos de forças, não deixamos d e perd er uma
dimensão, fundam ental contudo, do p ensamento de Clastres. "Só os tolos", escreve , "podem
acreditar que para r ecusar a alienação é preciso primeiro tê -la experimentado: a r ecusa da
alienação (econômica ou política) pertence ao próprio ser d essa sociedade , exprime seu
conservantismo, sua vontade deliberada d e p ermanecer Nós indiviso. D eliberada d e fato, e
não somente efeito do funcionam ento de uma máquina social: os selvagens sabiam bem que
toda alteração de sua vida social (toda inovação social) só poderia r epresentar para el es a
perda da liberdade" (I 977a: 2o6). Tocamos aqui em um ponto complicado: como é possível
recusar um Estado que ainda não existe ? Que é esse saber que o s selvagens detêm ?
Notemos, primeiramente, que a interrogação do autor é dupla. Trata-se , por um lado,
da sociedade como máquina e, por outro, daquilo que faz a máquina funcionar concretamen-
te e que consiste, ao mesmo tempo, em efeito de sua existência e condição de seu funciona-
mento. Longe, portanto, de pressupor a existência de totalidades sociais que tenderiam a
se auto-reproduzir por meio da interação concertada de suas partes, cumpre reconhecer
que a sociedade é uma totalização complexa, que comporta níveis que se relacionam de
modo intrincado e não simplesmente por intermédio de um jogo de reflexos mútuos ou
de efeitos homólogos. É ao funcionamento e não à função que se visa; e os funcionamentos
determinam a irrupção de determinadas figuras sociológicas.
Assim, no caso da chefia, não devemos supor uma sociedade preexistente que possui-
ria uma instituição responsável por sua manutenção ao preencher determinadas funções. Ao
contrário, a chefia compõe a sociedade: "Pode-se dizer não que o chefe é um homem que fala,
mas que aquele que fala é um chefe" (I 96 2:3 7). O mesmo acontece com a guerra: "não é a
guerra que é o efeito da fragmentação, é a fragmentação que é efeito da guerra" (I977a:37).
Não se indaga aqui qual a função social da guerra, dada sobre um fundo de fragmentação
prévia das comunidades primitivas. A guerra é um funcionamento, uma prática: o que se
busca seguir são seus efeitos e as figuras que determina. Entre eles encontra-se, em primeiro
lugar, a fragmentação.
O ponto básico é que os efeitos determinados pelos funcionamentos não se limitam
ao plano sociológico empírico. Ou, para sermos mais exatos, os próprios funcionamentos
transcorrem simultaneamente outro nível, determinando a irrupção de certas figuras
subjetivas. É uma nova forma de tratamento da antiga questão das relações entre o indivíduo
e a sociedade que Clastres anuncia. Não se trata mais de indagar se a primazia cabe a um
ou a outro, mas de r econhecer que os mesmos processos aparecem simultaneamente nos dois
níveis. Livramo-nos das armadilhas de uma falsa causalidade e estamos prontos a descrever
os processos em sua real complexidade: "De minha parte, tento delimitar o campo do desejo
como espaço do político, estabelecer que o desejo de poder não pode realizar-se sem o
desejo inverso de submissão. Tento mostrar que a sociedade primitiva é o lugar de repressão
desse duplo mau desejo ... " (I 9 77: IS" 4 -5).
A existência da chefia aparece simultaneamente como um prestígio concedido ao
homem que a ocupa, e esse homem experimentará por sua vez um desejo de prestíaio, que
não é senão sua vontade de aparecer como chefe. Mas não há aqui desejo de poder: assim como
o funcionamento dá máquina social primitiva impede objetivamente a irrupção do Estado,
ele reprime o mau desejo. O desejo de poder aí não aparece pelas mesmas operações que fazem
o Estado não existir.
A existência da guerra como força centrífuga da sociedade primitiva acompanha-se
de um desejo individual do guerreiro; esse desejo, por sua vez, pode ter como incidência no
plano sociolóaico a constituição de um grupo social particular constituído pelos guerreiros,
devotados à busca de um prestígio que a sociedade está pronta a conferir -lhes ( 1 9 77 b).
Trata-se sempre do mesmo fenômeno apreendido em diferentes níveis, que, além do mais,
remetem incessantemente uns aos outros.
Em suma, expressões como vontade, desejo e repressão não remetem a constantes enrai-
zadas em uma pretensa natureza humana dada de antemão, mas sim aos efeitos subjetivos de
determinados funcionamentos que se dão sobre um plano de intersubjetividade primeira e
que se manifestam igualmente no nível sociológico propriamente dito. Podemos compreen-
der melhor agora o que significa a expressão sociedade contra o Estado. Pois, como Clastres a
encara, ora como propriedade das máquinas sociais primitivas, ora sob o ângulo das figuras
subjetivas que as acompanham, corremos o risco de perder de vista que estamos nos dois
casos diante da mesma coisa. Nessa perspectiva, os selvagens, ganhando uma subjetividade
geralmente excluída das análises antropológicas, estão vivos, têm paixões, são ativos, e a
indivisão da sociedade selvagem aparece como uma prática política deles .

A obra de Pierre Clastres é inacabada. Não só porque interrompida por uma morte precoce,
mas também porque o pensamento vigoroso que exprime preferia o gênero do ensaio
e da crônica, evitando a elaboração de um sistema, como se seu autor não só recusasse
mestres , mas também discípulos. Algumas vezes Clastres anunciou o projeto de conjugar sua
r eflexão sobre a sociedade primitiva com uma pesquisa sobre a emergência do Estado, ou a
ruptura do ser social primitivo. Entretanto, nada escreveu de concreto (I 977: I .P ). Estamos
seguros de que, acaso viesse a realizar o projeto, seguiria afastando-se cada vez mais de
uma distinção teórica, a nosso ver enganosa, entre o ser e o fazer da sociedade, e que o .
diálogo que procurou criar com os selvagens nos mostraria como somos, mais do que uma
sociedade com Estado, uma sociedade a favor do Estado.
Uma última palavra e terminamos. Em um ensaio intitulado Whitman, poeta da Améri-
ca, Octavio Paz, retomando uma sugestão de Reyes, escreve que "a América é a súbita
encarnação de uma utopia européia". O que mais nos atraiu ai é a conjectura de que a
invenção de Whitman, a América-texto poético, não é essencialmente distinta da América
histórica. Ambas têm o mesmo sonho com uma realidade que se projeta infatigavelmente
no porvir. É por nos parecer que Clastres também tem muito de inventor de uma outra
América que demos ao nosso trabalho o título que tem. Trata-se, desta vez, de um sonho
que nos dirige tanto ao passado longínquo como ao momento mais atual: dos selvagens
Yanomami que ajudou a conquistar, ao retraído paraguaio que, em um estabelecimento
indígena destinado a visitas turísticas, examina com presteza a ponta de sua flecha.

Tânia Stolze Lima é professora do programa de pós-graduação em antropologiae ciência politi-


ca da Universidade Federal Fluminense, e desenvolve, desde I 984, um trabalho de pesquisa
com o povo Juruna do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Mareio Goldman é profes-
sor do programa de pós-graduação em antropologia social (Museu Nacional) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq e do Núcleo de Antropologia da Politica
(NuAP, Pronex), com projetos sobre politica e eleições desenvolvidos em Ilhéus, sul da Bahia.
Buscando deéídífuôs··réínêter tódos Q's d'e' Pie.rre G1!1st:rd à pa,t.'l d.e:
publicação embora aqueles (SCE)·e
Recherches d'Anthropologie Politique (RAP) sido . ..

I 96 2 "Échange et pouvoir: philosophie de la chefferie Soáét'lú?ÍÍf!et,Etat. ·


' . . .--- ' ·-.--
Paris, Minuit, I 974·
I 96 3 "Indépendance et exogamie" ( SCE). . _
I 964 "Compte rendu de mission chez les indiens Guayaki
2, pp. I 22- 5 .
I 966 "L' Are et le panier" (SCE).
I 967 "Mission au Paraguay et au Brésil". L' Homme, vol. VII, n. 4, pp, I o Í--;IL . .
I 967a "Ethnologie des indiens Guayaki: la vie sociale de la tribu". L'Homme, vül.VII;n. 4, pp:

s - 24.
I 967b "De quoi rient les indiens" (SCE).
I 968 "Ethnographie des indiens Guayaki". journal de la Société des Américanistes, vol. LVII,
PP· 7-6I.
I 96 8a "Entre silence et dialogue" in: Bellour, Raymond et Clément, Cathérine (orgs.). Clau-
de Lévi-Strauss. Paris, Gallimard, I979, pp. 33- 8.
I 969 "Copernic et les sauvages" (SCE).
I 969a "Une Ethnographie sauvage"in: Recherches d'Anthropologie Politique. Paris, Minuit, I 980.
I 970 "Prophetes dans la jungle" (SCE).
I 97 I "Le Clou de la croisiere"(RAP) .
I 97 2 Chronique des indiens Guayaki. Paris, Plon .
I 97 2- 3"De l'Un sans le multiple" (SCE).
I 97 3 "Élém ents de démographie amérindienne" (SCE).
I 97 p "Le Devoir de la parole" (SCE).
I 974 "La Société contre l' État" (SCE).
I 974a Le Grand parler. Paris, Seuil. 3IO
1974b"De l'ethnocide"(RAP).
1976 "La Question du pouvoir dans les sociétés primitives"(RAP) .
1976a "Liberté, malencontre, innommable"(RAP).
1976b "L'Économie primitive"(RAP).
I 977 "Le Retour des lumieres"(RAP).
I977a "Archéologie de la violence: la guerre dans les sociétés primitives"(RAP).
1977b "Malheur du guerrier sauvage"(RAP).
I 978 "Les Marxistes et leur anthropologie"(RAP).
I 980 "Mythes et rites des indiens d' Amérique du Sud"(RAP) .

Muitos dos artigos citados neste ensaio figuram nas seguintes edições brasileiras:
A sociedade contra o Estado-pesquisas de Antropologia Política. Rio de Janeiro, Francisco Alves,
1990.
A fala sagrada. Mitos e cantos sagrados dos indios Guarani. Campinas, Papirus, 1990.
Crônica dos índios Guayaki-o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai . São Paulo, Edi-
tora 34, 1995·

* Escrevemos este texto há muito t empo. Sua intenção não era apresentar em detalhes o conjunto da
obra de Pierre Clastres, nem elaborar nenhum tipo de recensão crítica. Partimos, ao contrário, da
força que essa obra exerce, e do ar de liberdade que aí se respira, e buscamos analisar, em um certo
número de pontos específicos, as razões para isso. É a m esma força que nos fez enfim decidir publicar
este t exto praticamente tal qual foi escrito no verão carioca de r 9 8 6 . Apenas no ano seguinte seria
publicada a coletânea organizada por Miguel Abensour, L' Esprit des lois sauvages (Paris, Seuil, I 98 7),
que resultou de um seminário organizado na França sobre a obra de Clastres. Se escrevêssemos hoje,
procuraríamos situá-la não apenas nesse debate que estimulou no contexto da filosofia política, como
também no debate que só na aparência não teria estimulado na etnologia sul-am ericanista das terras
baixas. É preciso assinalar, igualmente, que a "homenagem à m em ória de Pierre Clastres", prestada
por D eleuze e Guattari em Mille plateaux (Paris, Minuit, I 98o ), foi fundamental para nossa leitura.

Você também pode gostar