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Anais

ISSN 2447-8776
RACISMO E ANTIRRACISMO NAS ESCOLAS: A VISÃO DE
ESTUDANTES NÃO ÍNDIOS SOBRE INDÍGENAS EM ESCOLAS
PÚBLICAS DE NOVA XAVANTINA/MT

Natália Araújo de Oliveira (PPGS/UFRGS) – oliveira.natalia@outlook.com

Resumo:
A dominação sistemática de um grupo étnico por outro, isto é, o racismo, atinge também os indígenas, que são
cotidianamente depreciados em sua cultura, essencializados em seus costumes e excluídos em diferentes
situações. Partindo dessa premissa, o presente artigo busca investigar o racismo em ambiente escolar, em
especial em escolas urbanas frequentadas por alunos indígenas, tendo como objetivo discutir como o racismo e o
antirracismo contra indígenas se manifestam entre alunos de duas escolas públicas de uma cidade do interior do
Mato Grosso – Nova Xavantina. Este município é moradia dos indígenas da etnia Xavante, que estudam em suas
escolas urbanas. A pesquisa, de cunho qualitativo, foi realizada em escolas estaduais do referido município e
teve como técnica para coleta de dados entrevistas de grupo focal, realizadas em diferentes turmas e abrangendo
alunos de 11 a 54 anos. Os grupos focais foram realizados em salas que estudavam indígenas e salas que não
estudavam, de modo a tentar compreender se haveria alguma diferença no discurso dos alunos a partir desta
realidade. Como resultado, a pesquisa mostrou que os discursos racistas são propagados por alunos de todas as
faixas etárias e que as crianças que estudam com um indígena considerado modelo são as que mais disseminam
um discurso antirracista, que questiona estereótipos, relativiza culturas e contradiz o poder de nomeação do
homem branco.
Palavras-chave: Racismo. Antirracismo. Indígenas. Estudantes não índios. Escola.

1. Introdução

O presente trabalho faz parte da minha pesquisa para tese de doutorado, cujo campo
empírico se deu na cidade de Nova Xavantina/MT, um pequeno município do estado de Mato
Grosso. Para a pesquisa da tese, em especial para a escrita de um dos capítulos, frequentei
escolas do município, sendo, o artigo aqui apresentado, resultado de grupos focais realizados
em dois estabelecimentos de ensino públicos da cidade, acrescido de reflexões para este texto.
Nova Xavantina tem seu marco de fundação a partir das políticas de colonização da
Marcha para o Oeste, do presidente Getúlio Vargas, na década de 1940, entretanto, já era
povoada pelos indígenas da etnia Xavante desde pelo menos 1820, quando os índios desta
etnia fugiram do contato com os não índios no estado que hoje seria Goiás e migraram para o
Mato Grosso.
Ainda que a cidade faça uma referência aos indígenas em seu nome, é fato que eles são
alvo de racismo no cotidiano do município, assim como todos em indígenas do Brasil, estejam
eles em ambiente rural ou urbano. Embora a discussão sobre racismo contra indígenas ainda

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seja tímida, é fato que a subjugação que eles sofrem no dia a dia é de cunho racial. Como
esclarece Peixoto (2017), no contexto brasileiro, o racismo contra o indígena é explícito, mas
raramente é identificado como tal. O racismo vem da ideia, já desmontada pela ciência, de
que raças existem e que é possível hierarquizá-las, havendo raças melhores e piores de
maneira a justificar uma dominação racial.
Mas como esse racismo se manifesta na escola, em especial em escolas urbanas
frequentadas por indígenas? Os alunos que estudam com indígenas têm atitudes diferentes dos
que não estudam? Os muitos estereótipos sobre indígenas que circulam no senso comum
também são vistos entre alunos que estudam com indígenas? A ideia, muito disseminada em
grandes centros urbanos, de que índio que muda para a cidade deixa de ser índio é também
veiculada em escolas de pequenos municípios do interior do país? A representação
depreciativa de indígenas, a partir de alunos não índios, é alterada conforme a idade dos
estudantes?
Para refletir sobre estes questionamentos o artigo surge, tendo como objetivo discutir
como o racismo e o antirracismo contra indígenas se manifestam entre alunos de duas escolas
públicas de uma cidade do interior do Mato Grosso. A pesquisa, de cunho qualitativo, foi
realizada em escolas estaduais de Nova Xavantina e teve como técnica para coleta de dados
entrevistas de grupo focal, realizadas em diferentes turmas e abrangendo alunos de 11 a 54
anos. Os grupos focais foram realizados em salas que estudavam indígenas e salas que não
estudavam, de modo a tentar compreender se haveria alguma diferença no discurso dos alunos
a partir desta realidade.
O artigo está dividido da seguinte maneira: após esta introdução, discussões teóricas
sobre racismo são expostas no referencial teórico. Em seguida, a metodologia da pesquisa é
apresentada, mostrando como o trabalho foi realizado e, posteriormente, os resultados e
discussões, com fala dos alunos entrevistados e reflexões a partir destas são expostas. Por fim,
as considerações finais do estudo são trazidas.

2. Referencial teórico

Ainda que seja um tema pouco veiculado, é fato que os indígenas sofrem racismo. O
racismo não é uma ideologia que tem somente os “negros’” como objeto, sendo possível
perceber etnias indígenas sofrendo racismo. (JENKINS, 1997). Monsma (2017, p. 56) explica

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que racismo é a “dominação sistemática de um grupo étnico por outro, acompanhada por
representações e ideologias que essencializam e depreciam o povo subordinado, servindo para
justificar a exploração ou exclusão material”.
A dominação sistemática é refletida nas relações de poder e, deste modo, não são
necessariamente as diferenças fenotípicas as mais importantes. Como pontua Fredrickson
(2002), o conceito de racismo se apoia em dois componentes: diferença e poder, sendo parte
de uma mentalidade que destaca que “eles” são diferentes de “nós” e que essa diferença é
permanente e instransponível.
Como afirma Peixoto (2017), a ideia de que os indígenas são identificados por
aspectos culturais e não raciais está presente no cotidiano popular e foi sustentada por um
sistema educacional que até hoje aponta e até mesmo romantiza as diferenças diacríticas dos
indígenas. Deste modo, o indígena foi afastado da questão racial. Em igual direção, Monsma
(2016) explica que mesmo entre os cientistas há uma ideia que “raça” envolve diferenças
físicas entre grupos de ascendência comum e etnicidade diz respeito a diferenças culturais.
Esta diferenciação é fruto da radical separação da biologia e da cultura operada pelas ciências
sociais dos séculos XIX e XX.
Ainda que o racismo contra o indígena seja explícito, ele raramente é identificado
como tal e isto ocorre por que a palavra racismo carrega um estigma que se refugia em
eufemismos no contexto social brasileiro que afirma que racismo não existe. (PEIXOTO,
2017).
Com essa prerrogativa, o presente texto busca perceber como o racismo se manifesta
no ambiente escolar, em especial a partir dos discursos proferidos por alunos – crianças,
adolescentes e adultos ou ainda se é possível perceber um discurso antirracista por parte dos
estudantes.
O antirracismo é aqui analisado como um vocábulo usado para contestar as correntes
de pensamento científico e social denominadas de racistas, além de políticas sociais, estatais
ou não, ou mesmo práticas e ideias que defendem a ideia de superioridade de grupo social
sobre o outro. Em termos mais diretos, o antirracismo é um “[...] um modo de denominar
diferentes estilos de combate ou de oposição ao racismo”. (MARCON, 2015, p. 63).
Desse modo, o racismo e o antirracismo são aqui pensados como campos de análises
que possibilitam refletir sobre os indígenas e sua representação no contexto escolar urbano do
Brasil.

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3. Metodologia

A pesquisa é de cunho qualitativo e foi realizada por meio de entrevista de grupo focal
(GF) realizados em duas escolas estaduais de Nova Xavantina/MT. Os GFs buscam estimular
os participantes a dialogar sobre determinado assunto, de maneira a se realizar um debate
entre os que dele participam (GASKELL, 2002).
As escolas foram escolhidas para a pesquisa a partir de seus perfis contrastantes. Uma
contempla o ensino fundamental e também educação de jovens e adultos (EJA) (doravante
chamada de Escola 1) e a outra oferece apenas ensino médio (que pode ser regular ou técnico)
(Escola 2). Enquanto a Escola 2 está situada no centro da cidade, a escola 1 é de um bairro
periférico. Ambas possuem indígenas estudando em algumas turmas.
Os GFs foram realizados com alunos de diferentes séries e idades, em um total de 88
estudantes (quadro 1). Como é recomendada uma quantidade pequena de pessoas em cada
grupo focal, foram realizadas diferentes sessões a fim de que toda a turma participasse.

Quadro 1 - Grupos focais realizados nas Escolas 1 e 2

Série Quantidade Idade Sala com


Escola
de alunos dos estudantes
1
alunos indígenas
5º ano 18 10 e Sim
11
anos
6º ano 16 Entre Não
11 e
14
anos
1º ano (6º e 9 Entre Não
7º anos) 26 e
EJA 54
anos
2º ano (8º e 8 Entre Sim
9º anos) 26 e
EJA 52
anos
Escola 2º ano - 12 Entre Não
2 ensino 15 e
médio 17
técnico em anos
informática
2º ano - 25 Entre Sim
ensino 15 e
médio 17
regular anos

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Fonte 1: Elaborado pela autora.

A proposta era conversar com turmas em que houvesse alunos indígenas matriculados e
turmas que não os tivesse da mesma série, permitindo uma análise que pudesse verificar se as
respostas seriam diferentes. No entanto, algumas vezes isto não foi possível visto que havia
apenas uma turma daquela série, por exemplo, o havia apenas uma sala do 5º ano na Escola 1.
Para contornar a situação, falei com turmas subsequentes à série em que a pesquisa foi
realizada.
O objetivo do GF era conversar com as crianças e adolescentes sobre indígenas,
abrangendo questionamentos sobre o que eles acham que é ser índio, se o indígena que muda
para a cidade deixa de ser índio, o que conhecem sobre a cultura indígena, se acham que
existe racismo contra os indígenas em Nova Xavantina, entre outras questões. As perguntas
tinham por essência o mesmo conteúdo, porém, ao falar com as crianças, o palavreado
precisou ser alterado. Os nomes apresentados ao longo do trabalho são fictícios de maneira a
preservar a identidade dos entrevistados.

4. Resultados e discussão

O primeiro questionamento do GF tinha por intuito compreender como os alunos


definiam os índios, isto é, quais características eles atribuíam a esses que os definiriam. As
crianças do 5º ano (Escola 1) que estudam com indígenas afirmaram que os índios eram
pessoas normais, que até poderia haver alguma diferenciação em característica física, porém,
esta seria apenas na aparência. Nessa primeira pergunta, uma aluna inclusive problematizou o
termo índio, afirmando que este vinha da ideia que Cristóvão Colombo teria chegado à Índia.
Disse ela: “Índio eu acho que não existe, eu acho que existe indígena, porque índio é lá
naquele tempo de descobrimento do Brasil, que eles iam pra Índia, e acharam que o Brasil era
Índia, aí os primeiros habitantes eles acharam que eram índios (Adriana)”.
O mesmo questionamento com alunos do 6º ano (Escola 1), turma em que não há
indígenas, encontrou respostas que vão em diferentes caminhos. Enquanto alguns poucos
alunos caracterizam o índio como um ser dotado de qualidades, que tem religião e comida
próprias, a maioria diz que ser índio é passar fome e “ser fedido, preguiçoso, feio e comer
bicho (Fernando)”.

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Como comentam Bicalho, Oliveira e Machado (2018), estereótipos, imagens e
representações negativas dos povos originários como preguiçosos, selvagens, primitivos e
atrasados são reproduzidos nas escolas, em seus processos de formação e também nos livros
didáticos. O que é aqui mostrado é apenas um reflexo de toda essa estrutura racista vista
também fora dos muros escolares. Desse modo, explicam os autores, é essencial uma reflexão
sobre as representações indígenas reproduzidas nas escolas.
Os adolescente do ensino técnico (Escola 2) que não estudam com indígenas afirmaram
que os índios são pessoas normais que vivem de maneira diferente. Ao serem indagados sobre
o que seria este diferente, afirmaram que seria viver mais liberto, selvagem, ter uma língua
diferente, não conseguindo se expressar em português. Por outro lado, os alunos do 2º ano de
ensino regular que estudam com indígenas (Escola 2) deram uma visão do indígena como um
povo com uma cultura diferente da deles. A mesma consideração foi feita pela turma do 2º
ano da EJA (Escola 1) que estuda com indígena. Já os adultos que não estudam com indígenas
da EJA (1º ano, Escola 1) explicam que pensar em índios é pensar em liberdade, seja no
sentido de não ter compromisso com nada, como afirmou o aluno Adão, seja por não ter
responsabilidade em seus atos, como pontuou Ana Luiza.
As respostas vistas aqui diferem das obtidas em pesquisas realizadas em outros locais
acerca da representação dos indígenas. Em uma pesquisa com alunos de uma escola pública
em Teixeira de Freitas (BA), Silva (2009) percebeu que os estudantes caracterizam os
indígenas como selvagens que moram na floresta, caçam, pescam e andam nus. Eles são
vistos em tempo pretérito e relacionados ao descobrimento, em uma ideia primitivista. Russo
e Paladino (2016), que fizeram pesquisa com alunos do 6º ano de uma escola pública do Rio
de Janeiro, também descrevem um cenário escolar em que os discentes asseveram que índios
são pessoas que moram na floresta, pescam e se pintam. Aqui, embora ainda seja possível
perceber uma ideia romantizada do índio como um ser livre, amante e defensor da natureza, o
que se assemelha com a noção de índio hiper-real de Ramos (1995), foi visto uma resposta
mais simples: ser indígena é ter uma cultura diferente que a do não índio. Essa premissa
básica partiu principalmente das crianças, que rejeitam a ideia do índio que vem dos livros e
de um passado que os nomeou como índios por imaginarem estar nas Índias,
A próxima pergunta indagava se alunos tinham algum conhecimento sobre cultura
indígena e o objetivo era perceber se havia uma imagem de um índio mítico e romantizado ou
traria aspectos mais atuais, além de perceber se falariam de um indígena distante – que não se
conhece –, ou se trariam os indígenas Xavante como exemplo.

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As crianças do 5º ano – turma com alunos indígenas (Escola 1) – foram as mais
entusiastas, citando comidas, hábitos (caça, pesca, pintura, artesanato), músicas, danças,
trouxeram palavras que haviam aprendido com os colegas indígenas. Inclusive falavam todas
ao mesmo tempo de tanta empolgação. Todavia, uma única aluna trouxe uma visão contrária,
afirmando que: “tem gente que fala que eles são diferentes da gente porque eles são fedidos”
(Cristiane). Houve um silêncio, nenhum dos colegas presentes falou nada e continuaram a
contar tudo que sabiam. Ao longo do GF descobri que era uma aluna transferida de outra
escola, que nunca tinha estudado com indígenas e que, segundo seus colegas, não gostava de
índio, sendo considerada uma outsider pelo grupo ali presente. Com menor empolgação mas
também demonstrando conhecimento, os alunos do 6º ano (Escola 1) – turma em que não há
indígenas – citaram hábitos da cultura indígena Xavante.
O resultado aqui encontrado vai de encontro do que foi encontrado por Bicalho, Oliveira
e Machado (2018, p. 1601) ao pesquisarem discentes das séries finais (do 6º ao 9º ano do
ensino fundamental) de quatro escolas de municípios próximos a aldeamentos indígenas no
estado de Goiás. Lá os autores perceberam que, “apesar da relativa proximidade geográfica,
os alunos e alunas desconhecem e negam a identidade indígena dos Tapuios, assim como
ignoram os Avá-Canoeiro”.
Entre os adolescentes que não estudam com indígenas (2º ano do Ensino Médio
Técnico, Escola 2), houve referência a costumes e problematização destes, em especial sobre
caçadas e queimadas. Também foi destacado que os indígenas não professariam mais as
tradições como antigamente. Sobre isso, disse o aluno João Pedro: “hoje em dia o indígena já
perdeu muita tradição de antes, a única coisa que eu acho que eles fazem na aldeia hoje em
dia é a corrida da tora lá, porque caçada essas coisas assim é bem pouco”. Em resposta, outro
aluno comentou: “também, caçar agora é meio errado né?” (Luís). O autor da frase anterior
então explica que o costume da caça continua, e um terceiro aluno contemporiza: “eles
podem, eles caçam pra sobreviver, se manter” (Renato).
O mesmo aluno que chamou a atenção para a perda das tradições afirmou que os
indígenas fazem muitas queimadas na cidade, em volta do rio e na aldeia. Indaguei qual seria
a motivação e ele respondeu que teria relação com a caça. Em seguida outro estudante pontua:
“só que isso aí [as queimadas dos indígenas] não é nada não porque qualquer indústria grande
vai poluir muito mais por dia que qualquer queimada que um índio faz (Daniel)”. Um terceiro
estudante então dispara: “mas a indústria vai estar dando retorno né, e a queimada?”
(Frederico).

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Os adolescentes que estudam com indígenas (2º ano de ensino regular, Escola 2)
elencaram costumes indígenas, em especial uma das alunas, que já visitou uma aldeia
Xavante. Entre os adultos, o assunto das queimadas também foi bastante comentado.
Ao perguntar se o índio que mudava pra cidade deixava de ser índio, todos os alunos
disseram que não, mas houve ponderações de alguns, como a do Lucas (2º ano Ensino Médio
Técnico que não estuda com indígenas – Escola 2), que afirmou que eles não deixavam de ser
índios, mas que sua cultura era “quebrada”. Um colega seu, dando continuidade ao
argumento, lembrou que na cidade há indígenas que andam de skate e que isso não é de sua
cultura. Em sequência, uma colega (Alice) apontou que eles usam celular, maquiagem, brinco.
Com estas afirmações, perguntei se os alunos entendiam que estes comportamentos seriam
errados, ao que um deles respondeu: “normal, porque tipo assim, como o passar do tempo, vai
ter que evoluir […]. Eles têm que seguir a cultura deles, mas chega um certo momento que
eles vão ter que evoluir um pouco, senão eles vão acabar sendo esquecido pela sociedade”
(Otávio).
O pensamento evolucionista foi reforçado por outro aluno, que conta a história de um
indígena conhecido que se tornou um fazendeiro e, por esta razão, se tornou um exemplo:

[…] o indígena não é diferente do ser humano. Eu conheço um indígena […], ele
trabalhou para o meu avô, meu avô tinha uma fazenda de 5.600 hectares. Ele
trabalhava para o meu avô de capataz, aí como ele era muito esforçado meu avô
pegou e deu 1.600 hectares pra ele. Hoje ele tem três fazendas que no todo dá quase
15 mil hectares. Então, ele conseguiu evoluir. A maioria da sociedade vê os
indígenas como um bicho do mato, que eles não têm capacidade de superar algo, que
eles não têm inteligência que nem nós temos, e eu achei bem interessante assim, que
ele conseguiu mexer, hoje ele tem mais de 30 mil cabeças de gado. Hoje, tipo assim,
eu sigo ele como um exemplo (Lucas, 2º ano Ensino Técnico – Escola 2).

Na sala dos adolescentes que estudam com indígenas (2º ano de ensino regular que
estuda com indígenas – Escola 2) também foi ressaltada a diferença do índio que mora na
cidade ou na aldeia. Uma educanda (Laís) pontuou, e seus colegas confirmaram, que os
indígenas que estão na cidade não perdem sua cultura, só ficam mais civilizados, ao que um
colega (Davi) completou: “e muito né civilizados, tem carro, casa, dinheiro”. Em outra
oportunidade, mas ainda sobre o tema, uma das adolescentes apontou o etnocentrismo da
discussão, “a gente [os não índios] se acha, tipo, quando vê um indígena, nossa, índio de carro
e não sei o que, fica falando […] que eles não podem” (Paula).
As crianças que estudam com alunos indígenas (5º ano –Escola 1) também falaram
sobre o uso de veículos pelos índios: “tem índio agora que já vai virar rico. Tem índio de

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Hylux, Toyota, moto Broz” (Roberto). Com este comentário feito, perguntei aos alunos se
eles achavam que isso era errado. Como resposta, eles responderam que não, e uma aluna
ainda afirmou: “se nós temos direito a ter moto e carro, eles também têm que ter direito”
(Brenda).
As falas a partir da pergunta do conhecimento da cultura indígena permitem refletir
sobre a ideia das culturas indígenas como atrasadas, primitivas, congeladas e que pertencem
ao passado, uma visão etnocêntrica e preconceituosa que estagna os indígenas a períodos
anteriores de maneira a não permitir alterações em sua cultura. Contudo, novamente foi
possível notar o argumento contra de muitos alunos, que se posicionaram e questionaram os
discursos de inferioridade dos indígenas.
Ao caracterizar os indígenas, os adolescentes e adultos os vincularam à dificuldade de
aprendizado escolar, ao português incorreto, à timidez e ao fato deles serem mais reservados,
não interagindo e se manifestando apenas quando incitado pelos docentes. Como explica o
Xavante Tsere’ubu’õ tsi’rui’a (2012), na sua cultura não é permitido que os adolescentes
(wapté) conversem com mulheres, o que gera bastante frustação no contexto escolar citadino,
tanto dos docentes – que não têm conhecimento da cultura destes indígenas, mesmo que eles
já estejam presentes desde a inauguração destas escolas –, quanto dos demais alunos. Essas
incompreensões suscitam desentendimentos no início e invisibilidade depois.
Um dos temas que norteavam os GFs era racismo e, sobre o assunto, algumas crianças
do 5º ano – turma com alunos indígenas (Escola 1) – ponderaram que havia sim preconceito
na cidade, aliás, mais que isso, um deles, para demarcar sua certeza quanto ao fato, deixou
claro: “eu não acho, eu tenho certeza” (Henrique). As opiniões de que não existe preconceito
são poucas, tanto que seguida a esta pergunta, vários exemplos são dados pelos alunos de
frases e de situações que ocorrem no cotidiano da cidade:

Ô tia, esses dias atrás no meio da noite, um índio passou e alguém falou: sai daqui
índio, seu lugar é na aldeia. Isso também é um preconceito (Letícia).

Tia, um monte de pessoa que acha que é melhor do que outra. Uma vez uma pessoa
não queria vender só por que ele era índio. E também muitas pessoas não querem
deixar eles entrarem em algum lugar, não querendo vender coisas pra eles comerem.
Eles são que nem nós (Marinês).
Após ouvir estes relatos (e muitos outros), quis saber das crianças quem são essas
pessoas que proferem esses discursos no dia a dia e eles esclareceram que eram pessoas
próximas, como pais, primos, tios, avós. Acerca do ambiente escolar, os alunos apontaram

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que em sua sala era comum o preconceito, pois havia alunos que falavam que índios eram
burros, fedidos e nojentos.
Como afirma Peixoto (2017), o racismo pode ocorrer por meio de discriminação
externalizada em atitudes explicitas; preconceitos, concebido no íntimo da pessoa que
naturaliza percepções e sutilezas; na segregação de grupos em determinados ambientes. Todos
os exemplos foram vistos nas discussões aqui já postas. Há uma ideia concebida de
inferiorização dos indígenas como burros, uma proibição que o indígena entre em algum
espaço ou consuma algo. Todavia, é essencial perceber o tom de indignação das crianças ao
relatar estas situações, de maneira a deixarem claro sua sinceridade e discordância frente às
tais atitudes.
Sobre os indígenas da escola, as crianças deixaram claro que um aluno em específico
não era alvo de racismo naquele ambiente e que ele era tratado de maneira diferente. Quis
saber então o que este Xavante tinha de diferente e me foi dito: “é porque ele anda assim, bem
arrumadinho, é bem inteligente”. As crianças me contaram que antigamente o aluno “ia sujo”
para a escola, não lavava o cabelo, mas a professora pediu para que ele e os demais colegas
indígenas cortassem o cabelo, tomassem banho e se arrumassem e nunca mais houve
reclamação.
É importante destacar que nesta turma há mais de um aluno indígena e, além disso,
muitos destes alunos já estudaram com outros indígenas, contudo, os outros indígenas que não
este não são alvos dessa “benevolência”. Assim, como pode ser notado nas falas, há um índio
que se encaixa nos padrões de comportamento considerados positivos – é bom aluno, é limpo,
obediente, inteligente. A turma que estuda com esse aluno mostrou o tempo todo que não se
pode generalizar que os indígenas têm esse ou aquele comportamento errado a partir da ação
de poucos: “tia, se um só roubar, um índio só roubar qualquer coisinha, aí não vai culpar
todos só por um roubar” (Roberto), e que era necessário relativizar certas ações deles, pois
“cultura, tia, nós temos nossa cultura, eles têm a deles!” (Marinês).
Já na turma do 6º ano (Escola 1) – turma em que não há indígenas – foi dito que todos
os indígenas eram burros, e dado exemplo de ex-colegas de escola que não eram alfabetizados
em português. Poucas vozes que discordaram dessas afirmações. Todos concordaram que
existe preconceito contra os indígenas dentro e fora da escola. É interessante que ao mesmo
tempo que os alunos afirmam que há fora da escola há preconceito – visto aqui como uma
forma de racismo – eles mesmos disseminavam estereótipos.

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Os adolescentes que não estudam com indígenas (2º ano do Ensino Médio Técnico –
Escola 2), entendem que fora da escola há muito preconceito e dentro desta pouco ou mesmo
não há. Entre os que acham que a escola é uma instituição onde há racismo, imagina-se que
isto ocorra em especial em escolas com crianças, e não em colégios só de ensino médio, como
o deles. Estes adolescentes entendem que os indígenas são protegidos pela lei e que fazem o
que querem no município. Narraram, inclusive, histórias que, em suas visões, reforçavam esse
ponto de vista:

Muitos índios pensam que eles vão à cidade e fazem o que querem, tipo esses dias
prenderam um índio que estava dirigindo alcoolizado, aí prenderam o carro, aí no
outro foi um bocado de amigos deles, foram lá e tiraram o carro. Aí se não podia, aí
tinha que ir preso e tal. Aí a lei segura muito eles (Renato).

Não que seja assim, sabe, mas eles dão motivo assim pra falar, entendeu, aí como é
que a gente vai fazer? (Regina).

A essas afirmações, houve ponderações. Um dos adolescentes inclusive afirmou que a


lei seria igual para todos, contudo, as instituições responsáveis não a aplicariam da maneira
correta. Outra aluna disse que não deveria generalizar o comportamento de um como o de
todos “nem todos são assim, né, tem uma parte que é assim, tem uns que vivem em bar,
bebendo, tal, mas tem outros que não, tem outros que são diferenciados, não é agora por causa
de cinco ou seis que a gente julga todos os índios” (Fabíola). No entanto, essas são vozes
dissonantes dentro do discurso da turma.
Praticamente todos os alunos desta série têm como certeza que o índio não precisa
trabalhar por receber do estado um salário e assim tem a “vida ganha, o governo paga pra eles,
aí não trabalha mesmo não (Lucas)”. Apenas um aluno virou para mim, enquanto os colegas
discutiam este assunto e me questionou se realmente os índios recebiam do estado, os demais,
viam a questão como verdade posta.
Os adolescentes que estudam com indígenas (2º ano de ensino regular, Escola 2)
concordaram que há preconceito dentro e fora da escola e expõem que este é encontrado
dentro das casas, quando pais assustam crianças falando que indígenas vão pegá-las e matá-
las e também quando não explicam direito quem são os índios. Uma discente conta: “os pais
nunca ensinam o que o índio faz, qual o papel dele na sociedade. Falam, índio é aquela pessoa
mais morena que usa uma tanguinha e algo na cabeça. É isso que ensinam nas escolas quando
você é criança. Índio é aquilo. E não é isso” (Iara).

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Finalizando, entre os adultos que estudam com indígenas (2º ano - 8º e 9º anos da EJA,
Escola 1), há desacordo se há ou não preconceito contra o índio dentro da escola. Enquanto
alguns ponderam que sim, outros fazem a leitura que não há. Já fora do ambiente de estudos,
todos concordam que há racismo. Uma pessoa inclusive vinculou à questão ao fato de não ter
emprego para indígenas na cidade. Outra discente respondeu, afirmando que há indígenas
empregados, citando um supermercado e uma empresa de fabricação de tijolos que empregam
índios. Na tréplica, a aluna destaca então que são trabalhos braçais e que não se vê índios se
formando e tornando-se advogados, por exemplo. Já os adultos que não estudam com
indígenas (1º ano - 6º e 7º anos da EJA, Escola 1) concordam que há preconceito dentro e fora
da escola e afirmam que os índios querem morar na cidade sem seguir a “lei do branco”.

5. Considerações finais

Ao entrar no ambiente escolar para realizar a pesquisa eu já sabia que me depararia com
muito racismo contra indígenas, afinal a experiência de outras pesquisas naquele ambiente,
ainda que com outro foco, já mostravam que haveria um discurso eivado de desconhecimento,
ignorância e intolerância, ainda que os próprios disseminadores das falas racistas não
reconheçam que suas atitudes são racistas e atribuam o preconceito ao outro, principalmente a
quem está fora da escola. Contudo, como os discursos racistas seriam veiculados, por quem,
de que forma, se seria por meio de uma “opinião”, se seria de maneira aberta – afinal, não
havia indígenas na sala do momento dos grupos focais, ou mesmo se haveria um discurso
antirracista, obviamente, não era possível prever.
O que o campo me mostrou foi que a maior parte dos enunciados questionadores, que
tinham consciência de os índios de Nova Xavantina são menosprezados e diminuídos no seu
dia a dia, não apenas fora da escola mas também dentro dela foram das crianças, em especial
as que estudam com um indígena considerado modelo.
A empolgação para explicar o que sabiam da cultura indígena, falando, principalmente
da cultura do índio que senta na carteira ali do lado, o conhecimento de que não é possível
hierarquizar culturas ou raças, a certeza de que os livros de história estão errados ao mostrar
um índio mítico e mesmo o questionamento sobre um possível “descobrimento” das Américas
e o poder de nomeação do homem branco vieram de crianças de 11 anos.
Freire (2016), ao realizar uma pesquisa para perceber a influência da escola, do museu e
da mídia na construção da imagem sobre o índio internalizada pelas pessoas, ouviu

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estudantes, professores, trabalhadores da indústria, profissionais liberais, donas de casas e
desempregados de todas as faixas etárias e diferentes classes sociais. O autor percebeu que o
preconceito se manifestou, surpreendentemente com mais força, nas pessoas com escolaridade
mais avançada. A pesquisa aqui realizada percebeu discursos preconceituosos em todos os
níveis, inclusive também entra as crianças, todavia, foi por elas que o discurso antirracismo
veiculou de maneira mais clara.
Ainda que os resultados com as crianças mostrem uma realidade animadora, é
necessário levar em consideração que na turma há um aluno indígena que é considerado
modelo e que esta ideia de “bom indígena” está vinculada a um comportamento considerado
“adequado” aos padrões de um estudante branco.
Ao perceber os resultados, a indagação que fica é: o que acontece entre a criança de 11
anos que tem um discurso antirracista e o adolescente, que entende que o indígena que merece
respeito é o que “evolui”, o que pensa com a cabeça de homem branco ao se capitalizar para
ter fazenda, ou mesmo, a partir de que momento o adulto começa a acreditar que há inclusive
um “racismo reverso” e que eles, os não índios, é que são alvos de preconceito? Que lógicas
etnocêntricas permeiam aquele espaço? O quanto o ambiente fora da escola influencia nessa
ignorância – como a certeza de que os indígenas recebem salário sem trabalhar?
Os questionamentos são muitos e precisam ser feitos a fim de se investigar como o
racismo é disseminado nas escolas e como ele parece aumentar conforme os alunos passam
mais tempo no banco escolar. Das evidências aqui apresentadas, é possível perceber que o
racismo contra o indígena no contexto escolar aparece quando se julga que estes são burros,
quando se fixa estereótipos de que eles possuem essa ou aquela característica desabonadora,
quando não se entende ou mesmo se respeita a cultura deles e quando se propaga que eles não
podem usufruir da tecnologia por serem indígenas.

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