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e-ISSN 2176-9109
RESUMO: No Brasil, as iniquidades sociais persistem ao longo do tempo e estão fortemente associadas ao processo
cruel de colonização estruturado no sistema escravocrata. O modelo convencional de desenvolvimento no
Brasil, baseado na busca do crescimento econômico em detrimento do equilíbrio socioambiental, tem sido
extremamente danoso às comunidades tradicionais, que têm seus territórios e as riquezas naturais existentes
ameaçados frente à lógica ocidental de progresso. As comunidades quilombolas têm lutado ao longo dos anos
para efetivar seus direitos de cidadania, principalmente o de titulação dos seus territórios, bem como o de
acesso às políticas públicas de saúde, educação, e demais direitos de bem-estar social. Diante do discurso de
desenvolvimento sustentável, inicialmente utilizado para promover a integração dos países e comunidades
periféricos na lógica desenvolvimentista dos países centrais, as comunidades tradicionais quilombolas não
têm suas necessidades e particularidades contempladas em propostas e projetos. Apesar de divulgarem a
necessidade de equilíbrio econômico, social e ambiental, os agentes governamentais indutores de políticas
de desenvolvimento sustentável não estimulam a emancipação das comunidades. Tampouco incentivam a
valorização das concepções e valores civilizatórios que positivamente têm integrado as comunidades aos seus
territórios, de modo a promover o convívio equilibrado entre seus membros e o meio ambiente. A construção
de um novo panorama para promoção do bem-estar coletivo e da conservação ambiental em comunidades
quilombolas requer o reconhecimento da contribuição de epistemologias que localizem o afrodescendente no
centro da sua história e de seu presente, promovendo a descolonização do pensamento. A discussão acerca do
desenvolvimento em comunidades quilombolas perpassa pelo reconhecimento, pela efetivação dos direitos
das comunidades e pela valorização dos saberes e práticas das comunidades, na construção de ambientes
sustentáveis e equânimes.
295 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
sobrevivência física e cultural da presença e dos sobrevivência das comunidades. Assim, a discussão
modos de vida africano no Brasil. acerca das contradições e críticas na relação entre
O termo quilombo passou a assumir um novo os modelos de desenvolvimento e seus impactos,
significado a partir da Constituição Federal de 1988 positivos e negativos, sobre as comunidades tra-
(art. 68) (Brasil, 1988), quando foi reconhecida a dicionais no Brasil, atravessam inegavelmente a
propriedade definitiva aos remanescentes das comu- dimensão sócio-espacial.
nidades dos quilombos que estivessem ocupando No contexto brasileiro, o agronegócio, os
suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos grandes empreendimentos hidrelétricos, os grandes
respectivos. projetos de exploração de minérios, a construção
Apesar dos quase trinta anos de promulgação de complexos turísticos, entre outros fatores, vêm
da Constituição Federal de 1988, a luta pela garantia transformando diferentes territórios sob uma ló-
dos títulos das terras usadas coletivamente ao longo gica de desenvolvimento associada aos interesses
da história, ainda representa um grande desafio para externos do mercado global. Dentro desse sistema,
a efetivação da cidadania dos afrodescendentes diversos conflitos surgem opondo grandes grupos
quilombolas. empresariais (nacionais e internacionais) a outros
Diante do processo histórico de exclusão e grupos, tais como povos tradicionais quilombolas,
negação de direitos, a reflexão acerca do desenvol- que, ao vivenciarem esses conflitos ambientais nos
vimento em comunidades quilombolas perpassa o territórios, sofrem com a queda da qualidade de vida
reconhecimento da importância da terra, que possui e com o aumento dos riscos à saúde.
uma simbologia e uma representação muito mais Essa realidade de negação de direitos, explo-
significativa para essa população. No Brasil, a ca- ração de territórios tradicionais, relações de poder
tegoria de povos e comunidades tradicionais (PCTs) na disputa pelo uso dos territórios, negação do
refere-se a comunidades como grupos sociais cul- protagonismo quilombola na definição dos mode-
turalmente diferenciados, com formas próprias de los, padrões e processos de desenvolvimento nas
organização econômica, política e de transmissão comunidades, nos impõe questões urgentes, tais
de conhecimentos (Brasil, 2007). Dentro desse como: Como discutir desenvolvimento sustentável
enquadramento, as comunidades quilombolas são com grupos que ainda lutam para ser reconhecidos
comunidades tradicionais marcadas pela conser- enquanto cidadãos? Como superar a supremacia da
vação de princípios, saberes e práticas de matrizes concepção ocidental eurocêntrica e capitalista de
afro-brasileiras. desenvolvimento não aplicável para as comunidades
O território, para essas comunidades, envolve tradicionais? Como pensar o “afrodesenvolvimen-
não apenas espaço físico, mas múltiplas dimensões, to” como modelo capaz de promover a melhoria das
que constroem identidades, resistências e vivências condições de vida, conservação ambiental e cultural
de utilização dos recursos naturais de forma equili- dos valores afro-brasileiros nas comunidades qui-
brada. A cosmologia holística e integradora na rela- lombolas? Quais caminhos epistemológicos são
ção com a natureza, bem como a necessidade vital capazes de fomentar o desenvolvimento sustentável,
de manutenção dos recursos, é imperativa para a
297 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
sociedade industrial, vieram, além dos teóricos do As comunidades tradicionais geralmente
crescimento, de intelectuais de países do hemisfé- possuem sistemas sociais e modos de vida basea-
rio sul, que alegaram que as sociedades ocidentais dos na horizontalidade temporal, com o intuito de
após um século de crescimento industrial acelerado, garantir as necessidades das gerações futuras, sem
fecharam os caminhos para o desenvolvimento em comprometer as necessidades da geração presente e
países pobres, justificando essa conduta com uma as contribuições das gerações passadas. Esse modo
retórica socioambiental (Bruseke, 2009). de conversão da relação temporal no processo de
Nesse cenário pessimista em relação ao fu- desenvolvimento representa um olhar ampliado
turo da humanidade diante da fraqueza do modelo para a implementação de estratégias que alinhem
convencional, adotado pelo ocidente na resolução produção, conservação ambiental e equidade.
dos problemas econômicos nos países periféricos, A ideia de comunidade está diretamente rela-
além da crise ambiental, a busca por novos estilos cionada ao cuidado. Estar em comunidade, portanto,
de desenvolvimento ganha força no final do século pressupõe estar entre pessoas com princípios, valo-
XX e início do século XXI. res e outros atributos culturais semelhantes. “Numa
A proposta do ecodesenvolvimento, apresen- comunidade, todos nos entendemos bem, podemos
tada em 1973 por Maurice Strong, como uma con- confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior
cepção alternativa de política de desenvolvimento, parte do tempo e raramente ficamos desconcertados
propõe, como princípios desse novo paradigma: a ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos
satisfação das necessidades básicas; a solidariedade entre nós” (Bauman, 2003, p. 8).
com as gerações futuras; a participação da popula- A noção de comunidade apontada no parágrafo
ção envolvida; a preservação dos recursos naturais anterior nos possibilita entender a dimensão territo-
e do meio ambiente em geral; a elaboração de um rial nas comunidades tradicionais afro-brasileiras.
sistema social garantindo emprego, segurança Nos territórios quilombolas estão agregados os sen-
social e respeito a outras culturas; e o fomento de timentos de apropriação de uma porção do espaço,
programas de educação (Sachs, 1993). assim como quanto ao seu limite, a sua fronteira
A crítica ao desenvolvimento industrial como (Anjos, 2009). Dessa forma, pensar a territorialida-
método do desenvolvimento das regiões periféricas de é muito importante neste processo, pois o limite
foi uma questão central na concepção dessa teoria, do território não é necessariamente, físico, mas se
que, inicialmente, foi direcionada às regiões rurais estende até onde a comunidade reconhece sua in-
da África, Ásia e América Latina. A aproximação fluência, o seu exercício do poder. Nesse sentido,
dessa teoria com as comunidades tradicionais se a territorialidade se apresenta no esforço coletivo
dá na perspectiva de promoção de justiça social e em manter e ter definido o seu território e a terra na
reconhecimento das iniquidades produzidas pelo base de sua coletividade. Para Milton Santos, estas
modelo hegemônico de desenvolvimento produti- solidariedades definem usos e valores de múltiplas
vista, estimulando novas ideias e modelos dentro naturezas: culturais, antropológicas, econômicas,
de uma lógica de valorização do desenvolvimento sociais, financeiras e ecológicas (Santos, 2005).
endógeno e local.
299 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
categoria raça2 na análise das relações sociais em de subsistência, em terra ocupada secularmente pelo
lugares como o Brasil, que se constituiu como país grupo [...] (Moura, 2007, p. 2).
a partir do sistema escravocrata, torna-se imprescin-
dível na medida em que torna possível compreender O desafio para as comunidades quilombolas
a origem e os processos que constituem as persis- efetivarem o direito à posse da terra e dos recursos
tentes e profundas iniquidades existentes no país. do território, é fator determinante no processo de
Compreendendo o racismo como um fator estru- produção de exclusão social, conforme destaca
turante e determinante de distribuição seletiva das Carril (2006)
pessoas no território físico, que influencia também
as possibilidades de acesso a direitos, inclusive às As formas de uso da terra e dos recursos do território
possibilidades de participar e usufruir dos benefí- têm mostrado que o acesso a terra apresenta deman-
das históricas construídas nas quais as questões do
cios do desenvolvimento, faz-se necessário refletir
trabalho e as estratégias de sobrevivências vêm se
caminhos e estratégias de superação dessa lógica. colocando como aspectos de crucial importância para
Além da noção de “raça”, as concepções sobre a definição de um traço de lutas existentes no Brasil.
quilombos variam desde o século XIX denotando os (Carril, 2006, p.158).
papéis nas relações de poder presentes na sociedade.
As noções sobre quilombos se sobrepõem ao termo Essa realidade nos impõe a necessidade de
e denotam grupos de escravos fugidos; expressões refletir o quanto o discurso e as práticas de desen-
de resistência cultural e política; grupos sociais étni- volvimento sustentável em comunidades tradicio-
ca e culturalmente diferenciados; processos identitá- nais precisam se alinhar às necessidades reais das
rios coletivos e, mais recentemente, novos sujeitos comunidades quilombolas. O reconhecimento da
de direitos socioculturais (Rodrigues, 2010). cidadania e a garantia dos direitos básicos de sobre-
A Associação Brasileira de Antropólogos vivência física e cultural pelas quais as comunidades
(ABA) traz uma definição mais contemporânea e quilombolas lutam há séculos devem ser questões
“operacional” ao conceituar quilombo como “toda prioritárias. Se o Estado não consegue “retirar do
comunidade negra rural que agrupa descendentes passado” a exploração e a exclusão garantindo a
de escravizados vivendo da cultura de subsistência, sobrevivência no presente, como pensar/realizar um
onde as manifestações culturais têm forte vínculo projeto de futuro para essas comunidades?
com o passado” (ABA, 1994). De modo geral, as comunidades tradicionais
Na atualidade, os quilombos contemporâneos têm seus modos de vida influenciados por uma
são definidos como cosmovisão holística com olhar biocêntrico, onde
comunidade e natureza fazem parte de um todo em
Comunidades negras rurais habitadas por descen- harmonia. Nessa concepção, as relações da comuni-
dentes de africanos escravizados, que mantêm laços dade com o meio ambiente estão imbricadas com o
de parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas
território, que vai do simbólico ao concreto e atra-
2
A categoria raça é compreendida aqui, não como categoria biológica, mas enquanto constructo social determinante de desigualdades sociais.
3
Mapa de Conflitos Envolvendo a Justiça Ambiental e Saúde no Brasil, que foi desenvolvido pela FIOCRUZ, com o apoio do Departamento de
Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Disponível em http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/
301 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
impactam de forma desigual os diferentes grupos 3. Valorização do pensamento afro-
populacionais. brasileiro na construção de conceitos de
Evidenciar e discutir as desigualdades e as desenvolvimento aplicáveis às comunidades
discriminações étnicas e raciais é um passo determi- quilombolas
nante para superá-las. Reconhecer essas diferenças
se faz necessário pela existência das vítimas do A promoção do protagonismo afro-brasileiro
racismo ambiental bem como por seus impactos no no desenvolvimento de um pensamento crítico
agravamento das desigualdades sociais no Brasil. capaz de questionar e transformar os modelos de
Na arena de disputa de projetos de desenvol- produção de desigualdades e injustiças no Brasil
vimento, as comunidades tradicionais apresentam perpassa pela reflexão dos elementos epistemoló-
demandas urgentes a serem encaminhadas com gicos que auxiliaram no processo de consolidação
o intuito de possibilitar as condições necessárias do hegemônico pensamento eurocêntrico ocidental.
para o seu fortalecimento socioambiental delas. Além da configuração das “peças do tabuleiro”
Questões relativas à saúde, educação, trabalho, bem da geopolítica mundial, o processo de colonização,
como aos mecanismos de compensação e promoção estrategicamente, se deu também no campo do
de cidadania, como as ações afirmativas/cotas e a saber, atribuindo valor e legitimidade à produção
titulação territorial, são questões que devem ser ocidental eurocêntrica em detrimento das demais
estruturantes dos projetos de desenvolvimento no culturas.
sentido de reduzir o fosso da desigualdade no Brasil. Compreender as relações de poder que per-
Nesse sentido, a valorização da autonomia meiam os discursos e projetos de desenvolvimento,
política e da singularidade cultural de cada comu- requer reconhecer o papel do saber na legitimação
nidade são passos necessários para a realização de da dominação, já que, segundo Foucault “Não há
uma sustentabilidade complexa (Diegues, 2001), relação de poder sem constituição correlativa de
capaz de superar o economicismo, o universalismo um campo de saber, nem saber que não suponha e
e a supervalorização mercadológica, implícitos no não constitua ao mesmo tempo relações de poder”
discurso oficial de desenvolvimento sustentável (Foucault, 1999, p.32).
(Lima, 2003). Essa relação saber/poder na intersecção com
A sustentabilidade das comunidades quilom- a questão racial encontra eco nas manifestações de
bolas não pode ser alcançada sem o reconhecimento racismo epistêmico, que é apontado por Grosfroguel
e combate às iniquidades sociais e políticas, bem (2007) como um dos racismos mais invisibilizados
como a valorização dos valores civilizatórios afro- no “sistema-mundo capitalista/patriarcal/ moderno/
-brasileiros de respeito à vida. colonial” e que:
303 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
Isso não apenas provocou o racismo epistêmico que pressupostos na afirmação da cultura afro-brasileira.
atribui e reconhece a produção de teoria aos sujeitos Assim, para articulá-los e recuperá-los, utilizando-
ocidentais brancos enquanto os não-brancos produ-
zem folclore, mitologia ou cultura mas não conheci-
-os na construção do habitus4 afro-brasileiro, faz-se
mento de igual para igual com o ocidente, mas abriu necessária uma orientação afrocentrada na pesquisa
um potencial para a descolonização do conhecimento e no pensamento (Asante, 1980).
ao desafiar a “ego-política do conhecimento” cartesia- A filosofia africana apresenta um caráter es-
na das ciências ocidentais, opondo-lhe a “geopolítica pacial ao conceber que “um pensamento não pode
e a corpo-política do conhecimento” dos sujeitos
subalternos (Grosfroguel, 2006, p. 32). existir sem saber de que lugar se origina, qual
caminho de origem e qual destino seguir. É neces-
sário saber de onde pisa para dialogar com outras
A proposta de um olhar descolonizador e afro-
construções de caminhos” (Santos, 2010, p. 7).
centrado sobre a epistemologia opõe-se aos mitos
Uma categoria ontológica e epistemológica no
da objetividade e neutralidade, que contribuíram
pensamento africano é ubuntu5. Um conceito que
para invisibilizar e deslegitimar quem fala e a partir
nos aproxima da compreensão das relações entre as
de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de
pessoas e com a natureza presente nas comunidades
poder se fala.
afro-brasileiras. Uma delas é a ideia de comunida-
Compreender a vivência cotidiana das co-
de, segundo a qual as pessoas dependem de outras
munidades quilombolas impõe ao pesquisador,
pessoas para serem pessoas, pois a noção central do
imbuído de intencionalidade emancipatória na sua
ubuntu é “Eu sou, porque nós somos”.
prática de reflexão e produção do conhecimento, o
É nitidamente perceptível a diferença entre
imperativo ético e político de revisitar o arcabouço
esse conceito e a noção europeia sobre a natureza
teórico-metodológico produzido pelos povos de
humana, que tem a liberdade como valor fundamen-
origem afro-brasileira. Essa rica e pouco conhecida
tal e, concebe, assim, com primazia a existência do
produção tem sido historicamente invisibilizada
poder de escolha dos indivíduos sobre suas ações.
pelo racismo epistêmico, que universaliza e legitima
Já para o ethos do ubuntu, em oposição à valoriza-
as concepções eurocêntricas de análise dos modos
ção ocidental do indivíduo, não é o valor individual
de vida de comunidades tradicionais.
que ganha ênfase, uma pessoa não só é uma pessoa
Nesse sentido, está a importância da com-
por meio de outras pessoas, mas também por meio
preensão dos valores africanos de referência e
de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”,
identidade, que se configuram como importantes
4
Categoria proposta por Bourdieu (2003) que explica que as percepções e os sentidos atribuídos às manifestações fenomênicas da saúde
dependem da posição que os sujeitos ocupam nos diversos campos do espaço social e de suas relações, muitas vezes de lutas e conflitos, mas
também cooperativas e comunicativas (Vieira, 1999). O habitus sintetiza a incorporação de elementos relativos à história coletiva e à trajetória
individual no inconsciente dos indivíduos, atuando como matriz de percepção e classificação das práticas, como um operador prático que ajusta
condições objetivas e esperanças subjetivas (Breilh, 2006).
5
Ubu-ntu é uma categoria ontológica e epistemológica no pensamento africano do povo de língua banta. É a indivisível unicidade e inteireza
da epistemologia e ontologia. Ubu é geralmente entendido como a existência e pode ser dito como uma ontologia distinta. Enquanto ntu é um
ponto no qual a existência assume uma forma concreta ou um modo de ser no processo contínuo de desdobramento que pode ser epistemolo-
gicamente distinto (Ramose, 2002).
305 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
à mesa multicultural, a não ser uma versão mais escura afro-brasileiras tais como: centralidade na comuni-
da brancura. (Asante, 1998, p. 8) dade, matriarcalidade, respeito à tradição, harmonia
com a natureza.
Um conceito central da afrocentricidade, e Tomar a perspectiva afrocentrada como refe-
bastante útil para a discussão acerca de desenvolvi- rência epistemológica e política capaz de questionar
mento em comunidades quilombolas, é o conceito a ordem estabelecida, bem como propor caminhos
de agência. Definido como a capacidade de dispor estruturados na experiência dos afro-brasileiros,
de recursos psicológicos e culturais necessários torna-se um desafio. É imperativo ressignificar o
para o avanço da liberdade humana, esse conceito olhar acadêmico sobre a experiência histórica de
denota “a capacidade de pensar, criar, agir, parti- produção de modos de vida capazes de garantir a
cipar e transformar a sociedade por força própria” resistência e a sobrevivência da cultura afro-brasi-
(Nascimento, 2009, p. 192). Enfim, um agente é “um leira, bem como a conservação dos recursos naturais
ser humano capaz de agir de forma independente nas comunidades.
de seus interesses”. (Id Ibid). Na linha oposta, a O reconhecimento da produção de conheci-
“desagência” é entendida como qualquer situação mento afrocentrado contribui para a construção de
na qual o africano seja descartado como ator ou concepções e práticas de desenvolvimento, enten-
protagonista em seu próprio mundo. didos aqui como um processo de fortalecimento da
O olhar afrocentrado no estudo das relações agência - “a capacidade de pensar, criar, agir, parti-
entre desenvolvimento e ambiente em comunidades cipar e transformar a sociedade por força própria”
quilombolas no Brasil perpassa pela necessidade (Nascimento, 2009, p. 98) – dos afro-brasileiros na
de alinhar epistemologia e análise dos fenômenos construção de processos de melhoria das condições
numa perspectiva emancipatória. O fomento ao pro- de vida, redução das desigualdades e conservação
tagonismo/agência dos afrodescendentes na descri- dos territórios, valores e princípios afro-brasileiros.
ção das suas experiências deve ter como referência
de análise os valores civilizatórios afro-brasileiros. 4. Complexidade e diálogo de saberes
Diante desse processo civilizatório, é impor- acerca do desenvolvimento em comunidades
tante destacar a impossibilidade de se pensar a quilombolas
afrocentricidade dissociada da alteridade, já que o
descendente africano no Brasil tem sua identidade
A complexidade das questões imbricadas no
formada, também, sob a influência de valores bran-
debate sobre desenvolvimento sustentável em po-
co-europeus e indígenas. Entretanto, a pertinência
pulações tradicionais só pode ser compreendida a
da abordagem se ampara na necessidade de pro-
partir de um pensamento também complexo, capaz
blematizar o padrão ocidental como característica
de estimular no pesquisador um modo de pensa-
principal da “civilização brasileira”.
mento aberto e flexível, dentro de uma perspectiva
As concepções e práticas de desenvolvimento
epistemológica integradora e abrangente capaz de
em comunidades quilombolas devem ser direta-
romper com propostas lineares e superficiais de
mente influenciadas por características culturais
307 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
ção holística, sistêmica e interdisciplinar do saber servirão de constructo para a identidade dessa co-
(Leff, 2001). munidade, conferindo-lhes legitimidade. Diegues
Como possibilidade de superação da crise (2003) postula que a construção dessas comunida-
socioambiental gerada pela lógica capitalista de des está intimamente relacionada à construção de
exploração guiada pela racionalidade científica, sociedades sustentáveis, o que, para o referido autor,
o saber ambiental apresenta uma possibilidade de pressupõe pensar localmente, porém com resultados
hibridização das ciências com o campo dos saberes que alcancem o nível macro das relações sociais.
“tradicionais”, populares e locais. Nesse sentido, O reconhecimento dos elementos culturais e
a produção “interdisciplinar” de conhecimentos históricos é fundamental na construção de comu-
assume o compromisso de fomentar a autonomia nidades sustentáveis. A valorização dos modos de
cultural, por meio do protagonismo e autogestão vida solidários de respeito à natureza, não com o
dos recursos das comunidades, pela propriedade das intuito de capitalizar sobre os recursos naturais,
terras de uma população, por meio da utilização de mas como necessidade de manutenção da vida, em
conhecimentos que promovam a apropriação coleti- todas as suas formas, constitui um fundamento de
va dos recursos naturais, uma produção sustentável sociedades sustentáveis (Diegues, 2003).
e a equânime divisão da riqueza. Dessa forma, as A valorização do conhecimento tradicional
necessidades básicas das comunidades e a melhoria aponta diretrizes para modelos alternativos de de-
das condições de vida seriam os pilares dos projetos senvolvimento. O conjunto de saberes tradicionais
de desenvolvimento (Leff, 2000). engloba aspectos do mundo natural ao sobrenatural,
A proposta de hibridização das ciências com é transmitido oralmente de geração em geração e
os saberes e fazeres tradicionais se alinha à proposta estrutura a organização econômica e social com
da transdisciplinaridade de unir a tradição à ciência, reduzida acumulação de capital, não utilização de
procurando pontos de vista a partir dos quais seja mão de obra assalariada, valendo-se, em seu lugar,
possível torná-las interativas, fazendo-as sair de da apropriação e do uso coletivo dos recursos na-
sua unidade, respeitando as diferenças, apoiando-se turais presentes nos territórios.
especialmente numa nova concepção da natureza. A produção nas comunidades tradicionais
Para que as comunidades tradicionais possam está predominantemente organizada em atividades
se manter sob a perspectiva da sustentabilidade, de pequena escala como agricultura, pesca, extra-
precisam adequar suas características às inter-re- tivismo e artesanato. Um ponto importante nesse
lações com o lugar e, principalmente, agregar às modo de produção é a contribuição delas para a
suas necessidades pessoais e coletivas as atitudes conservação ambiental, visto que os produtores
de valoração, respeito e cuidado com o ambiente possuem conhecimento dos recursos naturais, seus
que as abriga. ciclos biológicos e outras informações importantes
Nesse processo se faz necessário inventariar que são passadas de geração em geração, além da
os elementos ambientais, culturais e históricos que utilização de recursos naturais renováveis.
6
Tratado internacional multilateral assinado durante Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no
Rio de Janeiro em 1992.
309 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
cimentos de comunidades tradicionais torna-se im- energias cósmicas e reside em todos os aspectos
prescindível para a produção de saberes capazes de da natureza e do universo, configurando-se como
apresentar um novo panorama fincado na esperança atributo vital dos seres, abrangendo os reinos mine-
e no respeito entre as pessoas juntamente com o ral, vegetal e animal, fazendo a natureza povoar-se
meio ambiente. de forças ligadas aos seus mais variados domínios
(Leite, 1996).
5. Princípios e valores para modelos Outro aspecto importante é o protagonismo
de desenvolvimento em comunidades feminino nas dinâmicas relacionais comunitárias
quilombolas e ambientais na cosmologia africana. A mulher é
detentora de uma forte personalidade comunitária,
religiosamente falando. É ela a detentora, também,
A cultura afro-brasileira tem, entre suas
da força espiritual, portadora de muito axé, o que
características centrais, valores e princípios que
viabiliza sua expansão e preservação por meio dos
demarcam elementos indispensáveis para a cons-
rituais (Lopes, 2008).
trução de modelos de desenvolvimento adequados
Em oposição à racionalidade tecno-científica,
às especificidades e necessidades das comunidades
que atribui superioridade à civilização ocidental, um
quilombolas. Dentre essas características, podemos
dos princípios fundamentais dentro da perspectiva
destacar a centralidade na comunidade; o respeito à
afrocentrada é a ancestralidade. Esse princípio fun-
tradição; o alto nível de espiritualidade e o envolvi-
da-se no respeito às experiências dos mais velhos,
mento ético; a harmonia com a natureza; a natureza
na comunicação que pode existir entre o mundo dos
social da identidade individual; a veneração dos
vivos e o mundo dos mortos, espíritos e entidades
ancestrais e a unidade do ser (Karenga, 2003).
sobrenaturais. Os ancestrais fazem a ligação entre
Pode-se perceber que essas características
o mundo visível e o invisível, colaborando com a
demonstram modos de ser e de atuar no mundo.
comunidade, orientando suas ações. A preservação
Determinam os modos de interagir com ele e de
da memória dos antepassados não leva somente a
visualizá-lo, atuando também sobre as relações so-
olhar o passado, mas também a estabelecer diálogos
ciais, as relações com o meio ambiente e as relações
com ele, absorvendo a sabedoria dos ancestrais,
com o metafísico, ou seja, com a própria existência.
que abrirão caminhos para novos tempos (Rocha,
Dessa forma, faz-se imprescindível vincular concei-
2011). Essa relação temporal integradora possibilita
tos, estratégias e ações acerca do desenvolvimento
encontrar caminhos já percorridos como possibili-
em comunidades quilombolas ao seu rico, complexo
dade de solidificar as vivências presentes e preparar
e aplicável arcabouço de saberes e práticas de har-
os passos futuros na construção de ambientes e
monização das relações comunitárias e ambientais.
comunidades sustentáveis.
O ponto de partida para a compreensão onto-
Nesse sentido, a oralidade enquanto forma de
lógica da relação entre o homem e a natureza, na
preservação de sabedoria e do conhecimento dos
perspectiva africana, é o entendimento sobre o axé.
antigos e ancestrais é um princípio fundamental na
O axé, sob esse olhar, é uma força que resume as
condução de projetos e estratégias de desenvolvi-
311 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
As proposta de agências governamentais, 6. Considerações finais
universidades, organizações não-governamentais,
entre outras instituições que debatem e fomentam o A sobrevivência física e cultural das comu-
desenvolvimento em comunidades quilombolas no nidades quilombolas frente à violência do sistema
Brasil, devem partir das necessidades e particulari- escravocrata e aos séculos de exclusão social teve
dades das comunidades. Para tanto, faz-se necessá- como alguns dos elementos centrais a utilização
rio superar os preconceitos e estereótipos racistas equilibrada e simbiótica dos recursos naturais.
que não reconhecem os quilombolas como sujeitos Além disso, as relações sociais de cuidado mútuo
de direito, protagonistas de suas histórias e agentes entre os membros das comunidades produziram
sociais criativos, capazes de participar ativamente solidariedades na gestão dos recursos, riquezas e
dos projetos e das propostas de desenvolvimento responsabilidades comunitárias imprescindíveis
sustentável nas suas próprias comunidades. ao processo de resistência vivenciado ao longo
Na arena de disputa entre projetos de de- dos séculos nas comunidades espalhadas no Brasil.
senvolvimento, onde os modelos hegemônicos se O reconhecimento do racismo como fator de-
apresentam como universais e tentam anular outras terminante das concepções, estereótipos, injustiças
possibilidades, o fortalecimento das estratégias e violação de direitos humanos e constitucionais
territorializadas, comunitárias e verdadeiramente no Brasil é etapa primordial para a redução das
sustentáveis apresenta-se como uma real possibi- iniquidades raciais. Combater o racismo em suas
lidade. Conservação ambiental, fortalecimento da mais variadas facetas, configuradas como barreiras
cidadania, valorização dos saberes, práticas e cons- ao processo de desenvolvimento das comunidades
trução de relações sociais saudáveis e solidárias, são quilombolas, principalmente o racismo epistêmico,
aspectos almejados pelas comunidades tradicionais ambiental e institucional, torna-se etapa indispensá-
e constituem possibilidades para partir de modelos vel na agenda de desenvolvimento sustentável para
de desenvolvimento que valorizem a diversidade. as comunidades quilombolas.
Nesse sentido, a ancestral cosmologia afro-brasilei- A complexidade inerente ao mundo real re-
ra é fonte rica de saberes e fazeres indispensáveis quer um pensamento complexo capaz de superar
ao fortalecimento das comunidades quilombolas. a superficialidade e a fragmentação do problema
Para além da preocupação com as gerações e das ações. Nesse sentido, a busca por aportes
futuras, a construção de um modelo de desenvol- teórico-metodológicos descolonizadores, que pro-
vimento “afro-sustentável”, para as comunidades movam o protagonismo afro-brasileiro, a partilha
quilombolas, amplia o olhar para formas de produ- entre diferentes saberes e a emancipação dos atores
ção para além de bens materiais, que valorizem a sociais, é determinante para êxito de projetos de
contribuição dos saberes, práticas e modos de vida desenvolvimento efetivos e socialmente compro-
das gerações passadas, ressignificando as necessi- metidos com a melhoria da qualidade de vida dos
dades atuais, com o cuidado entre as pessoas e com sujeitos envolvidos.
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