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Vol. 45, abril 2018. DOI: 10.5380/dma.v45i0.48583.

e-ISSN 2176-9109

Desafios para a construção do conceito afrocentrado de


desenvolvimento em comunidades quilombolas no Brasil

Challenges for construction of the afrocentrated concept of development


in Quilombolas communities in Brazil

Roberto dos Santos LACERDA1*, Gicélia Mendes da SILVA1


1
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão, SE, Brasil.
*
E-mail de contato: robertosl3@hotmail.com

Ensaio recebido em 21 de setembro de 2016, versão final aceita em 28 de janeiro de 2018.

RESUMO: No Brasil, as iniquidades sociais persistem ao longo do tempo e estão fortemente associadas ao processo
cruel de colonização estruturado no sistema escravocrata. O modelo convencional de desenvolvimento no
Brasil, baseado na busca do crescimento econômico em detrimento do equilíbrio socioambiental, tem sido
extremamente danoso às comunidades tradicionais, que têm seus territórios e as riquezas naturais existentes
ameaçados frente à lógica ocidental de progresso. As comunidades quilombolas têm lutado ao longo dos anos
para efetivar seus direitos de cidadania, principalmente o de titulação dos seus territórios, bem como o de
acesso às políticas públicas de saúde, educação, e demais direitos de bem-estar social. Diante do discurso de
desenvolvimento sustentável, inicialmente utilizado para promover a integração dos países e comunidades
periféricos na lógica desenvolvimentista dos países centrais, as comunidades tradicionais quilombolas não
têm suas necessidades e particularidades contempladas em propostas e projetos. Apesar de divulgarem a
necessidade de equilíbrio econômico, social e ambiental, os agentes governamentais indutores de políticas
de desenvolvimento sustentável não estimulam a emancipação das comunidades. Tampouco incentivam a
valorização das concepções e valores civilizatórios que positivamente têm integrado as comunidades aos seus
territórios, de modo a promover o convívio equilibrado entre seus membros e o meio ambiente. A construção
de um novo panorama para promoção do bem-estar coletivo e da conservação ambiental em comunidades
quilombolas requer o reconhecimento da contribuição de epistemologias que localizem o afrodescendente no
centro da sua história e de seu presente, promovendo a descolonização do pensamento. A discussão acerca do
desenvolvimento em comunidades quilombolas perpassa pelo reconhecimento, pela efetivação dos direitos
das comunidades e pela valorização dos saberes e práticas das comunidades, na construção de ambientes
sustentáveis e equânimes.

Palavras-chave: quilombos; desenvolvimento; território; sustentabilidade.

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ABSTRACT: In Brazil, social inequities persist over time and are strongly associated with the cruel process of colonization
structured in the slave system. The conventional model of development in Brazil, which is based on the pursuit
of economic growth at the expense of social and environmental balance, has been extremely harmful to the
traditional communities who have their territories and natural wealth threatened when facing the Western
logic of progress. Quilombola communities have struggled over the years to effectuate their citizenship
rights, especially the titling of their territories as well as the access to public health policies, to education
and to other social rights. Given the sustainable development discourse originally utilized to promote the
integration of peripheral countries and communities in the developmental logic of the central countries, the
quilombola communities do not have their needs and particularities met in proposals and projects. Despite
spreading the need for economic, social and environmental balance, government agents who are inductors
of sustainable development policies neither encourage the empowerment of communities nor appreciate the
ideas and civilizing values that have positively integrated communities to their territories, promoting balanced
interaction between their members and the environment. The construction of a new perspective to promote the
collective welfare and environmental conservation in quilombola communities requires the recognition of the
contribution of epistemologies to localize the African descent in the center of their history and their present,
promoting the decolonization of thought. The discussion about development in quilombola communities
involves the actualization of rights of these communities and the recognition of knowledge and practices of
communities for building sustainable and equitable environments.

Keywords: Quilombos; development; territory; sustainability.

1. Introdução princípios abstratos que, no plano do discurso,


justificam ideologicamente o estado de coisas que
O quadro nacional de profundas e marcantes preserva e aumenta a injustiça social em todo o
iniquidades sociais, fortemente associadas ao mode- planeta e no Brasil, particularmente.
lo convencional de desenvolvimento, torna urgente Sob uma perspectiva historiográfica, a Era
a reflexão e a busca por novos caminhos de organi- Moderna, fortemente associada ao modelo de desen-
zação econômica e social. O modelo “clássico” de volvimento capitalista, industrial e científico, teve
desenvolvimento, centrado na busca incessante pelo entre os principais fatos históricos a escravização
crescimento econômico, não conseguiu promover de seres humanos do continente africano para as
a emancipação de muitos países e comunidades, ao Américas e a colonização europeia na África, Ásia
passo que contribuiu para o agravamento da crise e América Latina. Significativamente, as categorias
ambiental, tornando urgente a busca por outros raciais surgiram durante esse período, conveniente-
modelos de desenvolvimento. mente com o projeto de dominação que perpassava
Os modelos de desenvolvimento centrados pela estratificação social como um dos pilares para
apenas no crescimento econômico e acumulação a dominação e a exploração.
de capital, tidos como universais, partem de uma A resistência a esse sistema escravocrata no
cosmovisão excludente, individualista e estruturada Brasil teve na formação dos quilombos uma de
em políticas de dominação. A exclusão econômica suas principais estratégias. Muito mais que espaço
e social, fruto desses modelos, é legitimada por para abrigar escravizados fugidos, os quilombos se
constituíram ao longo do tempo em territórios de

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sobrevivência física e cultural da presença e dos sobrevivência das comunidades. Assim, a discussão
modos de vida africano no Brasil. acerca das contradições e críticas na relação entre
O termo quilombo passou a assumir um novo os modelos de desenvolvimento e seus impactos,
significado a partir da Constituição Federal de 1988 positivos e negativos, sobre as comunidades tra-
(art. 68) (Brasil, 1988), quando foi reconhecida a dicionais no Brasil, atravessam inegavelmente a
propriedade definitiva aos remanescentes das comu- dimensão sócio-espacial.
nidades dos quilombos que estivessem ocupando No contexto brasileiro, o agronegócio, os
suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos grandes empreendimentos hidrelétricos, os grandes
respectivos. projetos de exploração de minérios, a construção
Apesar dos quase trinta anos de promulgação de complexos turísticos, entre outros fatores, vêm
da Constituição Federal de 1988, a luta pela garantia transformando diferentes territórios sob uma ló-
dos títulos das terras usadas coletivamente ao longo gica de desenvolvimento associada aos interesses
da história, ainda representa um grande desafio para externos do mercado global. Dentro desse sistema,
a efetivação da cidadania dos afrodescendentes diversos conflitos surgem opondo grandes grupos
quilombolas. empresariais (nacionais e internacionais) a outros
Diante do processo histórico de exclusão e grupos, tais como povos tradicionais quilombolas,
negação de direitos, a reflexão acerca do desenvol- que, ao vivenciarem esses conflitos ambientais nos
vimento em comunidades quilombolas perpassa o territórios, sofrem com a queda da qualidade de vida
reconhecimento da importância da terra, que possui e com o aumento dos riscos à saúde.
uma simbologia e uma representação muito mais Essa realidade de negação de direitos, explo-
significativa para essa população. No Brasil, a ca- ração de territórios tradicionais, relações de poder
tegoria de povos e comunidades tradicionais (PCTs) na disputa pelo uso dos territórios, negação do
refere-se a comunidades como grupos sociais cul- protagonismo quilombola na definição dos mode-
turalmente diferenciados, com formas próprias de los, padrões e processos de desenvolvimento nas
organização econômica, política e de transmissão comunidades, nos impõe questões urgentes, tais
de conhecimentos (Brasil, 2007). Dentro desse como: Como discutir desenvolvimento sustentável
enquadramento, as comunidades quilombolas são com grupos que ainda lutam para ser reconhecidos
comunidades tradicionais marcadas pela conser- enquanto cidadãos? Como superar a supremacia da
vação de princípios, saberes e práticas de matrizes concepção ocidental eurocêntrica e capitalista de
afro-brasileiras. desenvolvimento não aplicável para as comunidades
O território, para essas comunidades, envolve tradicionais? Como pensar o “afrodesenvolvimen-
não apenas espaço físico, mas múltiplas dimensões, to” como modelo capaz de promover a melhoria das
que constroem identidades, resistências e vivências condições de vida, conservação ambiental e cultural
de utilização dos recursos naturais de forma equili- dos valores afro-brasileiros nas comunidades qui-
brada. A cosmologia holística e integradora na rela- lombolas? Quais caminhos epistemológicos são
ção com a natureza, bem como a necessidade vital capazes de fomentar o desenvolvimento sustentável,
de manutenção dos recursos, é imperativa para a

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enraizado nos valores civilizatórios afro-brasileiros, Guerra Mundial, quando a civilização superou uma
nas comunidades quilombolas? grande crise e passou a perseguir o progresso com
É na reflexão dessas questões que o presente uma visão mais abrangente e democrática (Melo,
ensaio1 se insere, com o objetivo de problematizar 2003), essa noção trouxe consequências sociais
o discurso de desenvolvimento de comunidades e ambientais que estimularam a reflexão sobre a
quilombolas e a necessidade de reflexão acerca do pertinência dessa ideia para a sobrevivência da
desenvolvimento sustentável. Tal desenvolvimento humanidade.
é fundamentado nos princípios e valores civiliza- O crescimento econômico sem precedentes
tórios afro-brasileiros como estratégia de melhoria vivenciado depois da Segunda Guerra Mundial pau-
das condições de vida e conservação ambiental e tado numa concepção materialista, antropocêntrica
cultural em comunidades quilombolas. e exploradora dos recursos naturais, numa lógica
de desenvolvimento industrial, impôs a necessi-
2. Desenvolvimento e a questão Quilombola dade de reflexão dos limites e das consequências
no Brasil desse modelo. Sachs (1993) aponta que seriam
necessários cinco ou seis planetas como fonte de
recursos e insumos e também como depósito para
A ideia de progresso, melhoria, está comu-
os desperdícios do progresso.
mente associada com a visão de uso, ocupação e
Dentre as teses que analisaram os efeitos do
transformação do planeta Terra. Essa ideia serviu
crescimento desordenado a partir da década de
de base para a construção da noção ocidental de
1960, a publicação do Clube de Roma Limites do
desenvolvimento que se transformou em uma cate-
Crescimento, apresentou uma importante conclusão
goria científica e tópico central na agenda política
ao apontar que
e social (Rodriguez & Silva, 2013).
O conceito inicial de desenvolvimento recu-
É possível modificar essas tendências de crescimento
pera o darwinismo social e se baseia na ideia de e formar uma condição de estabilidade ecológica e
sucessão evolutiva de estágios, onde tal qual na econômica que se possa manter até um futuro remoto.
natureza, as sociedades humanas evoluiriam de O estado de equilíbrio global poderá ser planejado
formas inferiores para formas superiores. Nessa de tal modo que as necessidades materiais básicas
de cada pessoa na Terra sejam satisfeitas, e que cada
hipótese, parte-se de um modelo de sociedade
pessoa tenha igual oportunidade de realizar seu poten-
rudimentar culminando no modelo da civilização cial humano individual (Meadows et al., 1972, p.24)
ocidental industrializada de consumo, considerada
única e universal (Layrargues, 1997).
As críticas a essa concepção que pregava o
Apesar da noção de progresso embasar a ideia
equilíbrio global a partir da tese do crescimento zero
de desenvolvimento que surgiu a partir da Segunda
e do ataque à filosofia do crescimento contínuo da
1
Esse ensaio é fruto da pesquisa bibliográfica para o projeto “Saúde e Territorialidade: Saberes e práticas de Educação Popular em Saúde em
territórios de comunidades quilombolas de Sergipe”, que conta com apoio financeiro CHAMADA MS/CNPq/FAPITEC/SE/SES Nº 02/2013
- PPSUS SERGIPE.

297 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
sociedade industrial, vieram, além dos teóricos do As comunidades tradicionais geralmente
crescimento, de intelectuais de países do hemisfé- possuem sistemas sociais e modos de vida basea-
rio sul, que alegaram que as sociedades ocidentais dos na horizontalidade temporal, com o intuito de
após um século de crescimento industrial acelerado, garantir as necessidades das gerações futuras, sem
fecharam os caminhos para o desenvolvimento em comprometer as necessidades da geração presente e
países pobres, justificando essa conduta com uma as contribuições das gerações passadas. Esse modo
retórica socioambiental (Bruseke, 2009). de conversão da relação temporal no processo de
Nesse cenário pessimista em relação ao fu- desenvolvimento representa um olhar ampliado
turo da humanidade diante da fraqueza do modelo para a implementação de estratégias que alinhem
convencional, adotado pelo ocidente na resolução produção, conservação ambiental e equidade.
dos problemas econômicos nos países periféricos, A ideia de comunidade está diretamente rela-
além da crise ambiental, a busca por novos estilos cionada ao cuidado. Estar em comunidade, portanto,
de desenvolvimento ganha força no final do século pressupõe estar entre pessoas com princípios, valo-
XX e início do século XXI. res e outros atributos culturais semelhantes. “Numa
A proposta do ecodesenvolvimento, apresen- comunidade, todos nos entendemos bem, podemos
tada em 1973 por Maurice Strong, como uma con- confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior
cepção alternativa de política de desenvolvimento, parte do tempo e raramente ficamos desconcertados
propõe, como princípios desse novo paradigma: a ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos
satisfação das necessidades básicas; a solidariedade entre nós” (Bauman, 2003, p. 8).
com as gerações futuras; a participação da popula- A noção de comunidade apontada no parágrafo
ção envolvida; a preservação dos recursos naturais anterior nos possibilita entender a dimensão territo-
e do meio ambiente em geral; a elaboração de um rial nas comunidades tradicionais afro-brasileiras.
sistema social garantindo emprego, segurança Nos territórios quilombolas estão agregados os sen-
social e respeito a outras culturas; e o fomento de timentos de apropriação de uma porção do espaço,
programas de educação (Sachs, 1993). assim como quanto ao seu limite, a sua fronteira
A crítica ao desenvolvimento industrial como (Anjos, 2009). Dessa forma, pensar a territorialida-
método do desenvolvimento das regiões periféricas de é muito importante neste processo, pois o limite
foi uma questão central na concepção dessa teoria, do território não é necessariamente, físico, mas se
que, inicialmente, foi direcionada às regiões rurais estende até onde a comunidade reconhece sua in-
da África, Ásia e América Latina. A aproximação fluência, o seu exercício do poder. Nesse sentido,
dessa teoria com as comunidades tradicionais se a territorialidade se apresenta no esforço coletivo
dá na perspectiva de promoção de justiça social e em manter e ter definido o seu território e a terra na
reconhecimento das iniquidades produzidas pelo base de sua coletividade. Para Milton Santos, estas
modelo hegemônico de desenvolvimento produti- solidariedades definem usos e valores de múltiplas
vista, estimulando novas ideias e modelos dentro naturezas: culturais, antropológicas, econômicas,
de uma lógica de valorização do desenvolvimento sociais, financeiras e ecológicas (Santos, 2005).
endógeno e local.

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Pensar comunidade afro-brasileira nos impele rências internacionais, programas governamentais
a recorrer ao princípio da integração, que nos mostra sobre meio ambiente e desenvolvimento e até por
que na cosmovisão africana o homem está integrado setores não governamentais e empresariais na sua
ao universo, visto que todos os elementos do uni- essência, ou adaptadas aos interesses e perfil de cada
verso estão interligados numa interação dinâmica. A grupo (Lima, 2003).
interdependência e a inter-relação entre tudo e todos Dentre as críticas ao discurso do desenvol-
são desejadas, pois a harmonia do todo depende da vimento sustentável, destaca-se a ênfase dada às
harmonia das partes. “Na cosmovisão africana, o dimensões econômica e tecnológica e à concepção
indivíduo é singular, mas sua singularidade é cons- da capacidade do mercado em liderar o processo
truída de acordo com o comunitarismo, no âmbito de transição para o desenvolvimento sustentável.
do coletivo, socialmente” (Rocha, 2011, p. 34). Esse processo pode ser feito a partir da adoção de
Ao romper com a lógica universalizadora e “tecnologias limpas”, da contenção do crescimento
produtora de desequilíbrio ambiental e iniquidades populacional e do incentivo aos processos de pro-
sociais do modelo de desenvolvimento convencio- dução e consumo ecologicamente orientados.
nal, o ecodesenvolvimento operacionaliza o concei- Ao analisarmos a ênfase dada à moderniza-
to a partir do amplo conhecimento das culturas e ção ecológica e à fixação de níveis de consumo
dos ecossistemas, sobretudo em como as pessoas se mínimos para países e comunidades não industria-
relacionam com o ambiente e como elas enfrentam lizadas, fica evidente o esvaziamento da dimensão
seus dilemas cotidianos. Além disso, o fomento à política emancipatória do ecodesenvolvimento tão
participação social dos cidadãos no planejamento e importante para países periféricos e comunidades
tomada de decisões específicas para os problemas tradicionais, como aponta Leff ao afirmar que
e necessidades particulares de cada região a curto,
médio e longo prazo, busca equilibrar as dimensões antes que as estratégias de Ecodesenvolvimento con-
econômica, social e ambiental. seguissem romper as barreiras da gestão setorializada
O desenvolvimento sustentável, apontado er- de desenvolvimento [...] as próprias estratégias de
resistência à mudança da ordem econômica foram
roneamente como sinônimo do ecodesenvolvimento dissolvendo o potencial crítico e transformador das
(Layrargues, 1997), surge como proposta dominante práticas de Ecodesenvolvimento. Daí surge a busca
nas discussões sobre meio ambiente e desenvolvi- de um conceito capaz de ecologizar a economia,
mento a partir dos debates da Comissão Mundial eliminando a contradição entre crescimento econô-
mico e preservação da natureza [...] Começa então
Sobre Meio Ambiente em 1983. Como produto
naquele momento a cair em desuso o discurso do
dessa comissão, o relatório Brundtland apresenta Ecodesenvolvimento, suplantado pelo discurso de
estratégias ambientais de longo prazo para se obter Desenvolvimento Sustentável (Leff, 2001, p. 18).
um desenvolvimento sustentável por volta do ano
2000 e daí em diante. As recomendações do relató- Relacionar a questão quilombola aos modelos
rio logo foram incorporadas como hegemônicas e de desenvolvimento requer antes a compreensão
como “verdade”, reproduzidas em grandes confe- da importância da questão racial. A importância da

299 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
categoria raça2 na análise das relações sociais em de subsistência, em terra ocupada secularmente pelo
lugares como o Brasil, que se constituiu como país grupo [...] (Moura, 2007, p. 2).
a partir do sistema escravocrata, torna-se imprescin-
dível na medida em que torna possível compreender O desafio para as comunidades quilombolas
a origem e os processos que constituem as persis- efetivarem o direito à posse da terra e dos recursos
tentes e profundas iniquidades existentes no país. do território, é fator determinante no processo de
Compreendendo o racismo como um fator estru- produção de exclusão social, conforme destaca
turante e determinante de distribuição seletiva das Carril (2006)
pessoas no território físico, que influencia também
as possibilidades de acesso a direitos, inclusive às As formas de uso da terra e dos recursos do território
possibilidades de participar e usufruir dos benefí- têm mostrado que o acesso a terra apresenta deman-
das históricas construídas nas quais as questões do
cios do desenvolvimento, faz-se necessário refletir
trabalho e as estratégias de sobrevivências vêm se
caminhos e estratégias de superação dessa lógica. colocando como aspectos de crucial importância para
Além da noção de “raça”, as concepções sobre a definição de um traço de lutas existentes no Brasil.
quilombos variam desde o século XIX denotando os (Carril, 2006, p.158).
papéis nas relações de poder presentes na sociedade.
As noções sobre quilombos se sobrepõem ao termo Essa realidade nos impõe a necessidade de
e denotam grupos de escravos fugidos; expressões refletir o quanto o discurso e as práticas de desen-
de resistência cultural e política; grupos sociais étni- volvimento sustentável em comunidades tradicio-
ca e culturalmente diferenciados; processos identitá- nais precisam se alinhar às necessidades reais das
rios coletivos e, mais recentemente, novos sujeitos comunidades quilombolas. O reconhecimento da
de direitos socioculturais (Rodrigues, 2010). cidadania e a garantia dos direitos básicos de sobre-
A Associação Brasileira de Antropólogos vivência física e cultural pelas quais as comunidades
(ABA) traz uma definição mais contemporânea e quilombolas lutam há séculos devem ser questões
“operacional” ao conceituar quilombo como “toda prioritárias. Se o Estado não consegue “retirar do
comunidade negra rural que agrupa descendentes passado” a exploração e a exclusão garantindo a
de escravizados vivendo da cultura de subsistência, sobrevivência no presente, como pensar/realizar um
onde as manifestações culturais têm forte vínculo projeto de futuro para essas comunidades?
com o passado” (ABA, 1994). De modo geral, as comunidades tradicionais
Na atualidade, os quilombos contemporâneos têm seus modos de vida influenciados por uma
são definidos como cosmovisão holística com olhar biocêntrico, onde
comunidade e natureza fazem parte de um todo em
Comunidades negras rurais habitadas por descen- harmonia. Nessa concepção, as relações da comuni-
dentes de africanos escravizados, que mantêm laços dade com o meio ambiente estão imbricadas com o
de parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas
território, que vai do simbólico ao concreto e atra-
2
A categoria raça é compreendida aqui, não como categoria biológica, mas enquanto constructo social determinante de desigualdades sociais.

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vessa todas as ações sociais nessas comunidades, negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores,
sejam elas relacionadas à saúde, rituais, cultura, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negati-
vos do crescimento econômico e a quem é imputado
religião, resistência, enfim, à própria sobrevivência o sacrifício em prol de um benefício para os demais.
física e cultural desses grupos populacionais. (Herculano, 2006, p.11)
A despeito da tentativa de viver numa lógica
e a partir de princípios diferentes da lógica oci-
O mapa de Conflitos Envolvendo a Justiça
dental, o desafio de sobreviver e “desenvolver” as
Ambiental e Saúde no Brasil3 mostra o quanto o
comunidades é cotidiano. Como manter e fortalecer
racismo ambiental é um entrave à efetivação de
princípios de fraternidade, equidade, justiça social e
um modelo de desenvolvimento sustentável no
ambiental, em um país que vive à luz de um modelo
Brasil. O mapa demonstra trezentos e quarenta e
de desenvolvimento que exige, para seu estabeleci-
três (343) conflitos ambientais no ano de 2015.
mento e manutenção, a cristalização da exploração
Destes, 33,57% e 21,55%, respectivamente, envol-
e da opressão, invisibilizando, assim, a luta e os
veram povos indígenas e quilombolas, que estavam
direitos da maioria, para viabilizar os privilégios e
entre as principais populações atingidas. Dentre as
lucro de uma minoria?
consequências dos conflitos, a alteração no regime
O processo de produção de vulnerabilidades
tradicional de uso e ocupação do território é o
no Brasil pode ser compreendido como resultado
principal impacto apontado, presente em 65,66%
do modelo de desenvolvimento que tem por base
dos conflitos. Outro impacto relevante, presente
a maximização da exploração de recursos naturais
em 40,07% dos conflitos, é a falta/irregularidade
em detrimento de modelos de desenvolvimento
na demarcação de território tradicional. Pode-se
endógenos que produzam solidariedade e cidadania
perceber que os principais impactos atingem di-
comunitária na busca por melhoria do bem-estar da
retamente as territorialidades das comunidades
população de uma localidade (Henriques & Porto,
tradicionais, o que afeta, entre outras dimensões da
2012).
vida, o processo de adoecimento e morte dentro das
Nesse cenário de iniquidades decorrentes do
comunidades tradicionais (Lacerda & Silva, 2016).
modelo de desenvolvimento insustentável hegemô-
O reconhecimento do racismo ambiental põe
nico no Brasil, faz-se necessário refletir o impacto
em evidência a necessidade de compreensão e de
do racismo ambiental sobre as comunidades qui-
análise do peso dos fatores raciais nas situações
lombolas. O racismo ambiental é definido como
de injustiça decorrentes do modelo de desenvolvi-
mento hegemônico. Essa constatação é urgente e
o conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus
imprescindível nesse debate, visto que os efeitos e
governos, que aceitam a degradação ambiental e
humana, com a justificativa da busca do desenvolvi- consequências negativas associadas ao modelo de
mento e com a naturalização implícita da inferioridade desenvolvimento baseado na exploração da natureza
de determinados segmentos da população afetados –

3
Mapa de Conflitos Envolvendo a Justiça Ambiental e Saúde no Brasil, que foi desenvolvido pela FIOCRUZ, com o apoio do Departamento de
Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Disponível em http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/

301 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
impactam de forma desigual os diferentes grupos 3. Valorização do pensamento afro-
populacionais. brasileiro na construção de conceitos de
Evidenciar e discutir as desigualdades e as desenvolvimento aplicáveis às comunidades
discriminações étnicas e raciais é um passo determi- quilombolas
nante para superá-las. Reconhecer essas diferenças
se faz necessário pela existência das vítimas do A promoção do protagonismo afro-brasileiro
racismo ambiental bem como por seus impactos no no desenvolvimento de um pensamento crítico
agravamento das desigualdades sociais no Brasil. capaz de questionar e transformar os modelos de
Na arena de disputa de projetos de desenvol- produção de desigualdades e injustiças no Brasil
vimento, as comunidades tradicionais apresentam perpassa pela reflexão dos elementos epistemoló-
demandas urgentes a serem encaminhadas com gicos que auxiliaram no processo de consolidação
o intuito de possibilitar as condições necessárias do hegemônico pensamento eurocêntrico ocidental.
para o seu fortalecimento socioambiental delas. Além da configuração das “peças do tabuleiro”
Questões relativas à saúde, educação, trabalho, bem da geopolítica mundial, o processo de colonização,
como aos mecanismos de compensação e promoção estrategicamente, se deu também no campo do
de cidadania, como as ações afirmativas/cotas e a saber, atribuindo valor e legitimidade à produção
titulação territorial, são questões que devem ser ocidental eurocêntrica em detrimento das demais
estruturantes dos projetos de desenvolvimento no culturas.
sentido de reduzir o fosso da desigualdade no Brasil. Compreender as relações de poder que per-
Nesse sentido, a valorização da autonomia meiam os discursos e projetos de desenvolvimento,
política e da singularidade cultural de cada comu- requer reconhecer o papel do saber na legitimação
nidade são passos necessários para a realização de da dominação, já que, segundo Foucault “Não há
uma sustentabilidade complexa (Diegues, 2001), relação de poder sem constituição correlativa de
capaz de superar o economicismo, o universalismo um campo de saber, nem saber que não suponha e
e a supervalorização mercadológica, implícitos no não constitua ao mesmo tempo relações de poder”
discurso oficial de desenvolvimento sustentável (Foucault, 1999, p.32).
(Lima, 2003). Essa relação saber/poder na intersecção com
A sustentabilidade das comunidades quilom- a questão racial encontra eco nas manifestações de
bolas não pode ser alcançada sem o reconhecimento racismo epistêmico, que é apontado por Grosfroguel
e combate às iniquidades sociais e políticas, bem (2007) como um dos racismos mais invisibilizados
como a valorização dos valores civilizatórios afro- no “sistema-mundo capitalista/patriarcal/ moderno/
-brasileiros de respeito à vida. colonial” e que:

opera privilegiando as políticas identitárias (identity


politics) dos brancos ocidentais, ou seja, a tradição de
pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que
quase nunca inclui as mulheres) é considerada como

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a única legítima para a produção de conhecimentos e e construir conhecimento. Apesar da epistemolo-
como a única com capacidade de acesso à “universi- gia ser universal, dada a capacidade humana de
dade” e à “verdade”. O racismo epistêmico considera
os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos
conhecer, as formas de aquisição de conhecimento
conhecimentos ocidentais. (Grosfroguel, 2007, p. 32) variam segundo os contextos socioculturais em que
as reivindicações de conhecimento são formuladas
e articuladas (Kaphagawini & Malherbe, 2002).
As ideias racialistas estiveram presentes na es-
Questionar a hegemonia e apresentar alter-
truturação do pensamento das ciências econômicas
nativas à epistemologia eurocêntrica, se faz um
da tradição neoclássica, que serviram de bases para
imperativo para a descolonização do conceito de
a construção da noção de desenvolvimento conven-
desenvolvimento, na medida em que esse sempre
cional, estigmatizando grupos e determinando os
privilegiou um padrão de pensamento no ocidente
papéis no cenário de construção de concepções e
que estuda o “outro” como objeto e não como sujeito
projetos de desenvolvimento.
produtor de conhecimentos.
Conforme Jevons
Fomentar a utilização de outras epistemolo-
gias rompe com a tradição clássica da pesquisa
É evidente que os problemas deste tipo dependem
muito da índole da raça. Pessoas de temperamento ocidental, já que,
enérgico acham o trabalho menos penoso que seus
camaradas e, se elas são dotadas de sensibilidade em vez de um sujeito branco estudando sujeitos
variada e profunda, nunca cessa seu desejo de novas não-brancos como objetos do conhecimento, assu-
aquisições. Um homem de raça inferior, um negro, mindo-se a si mesmo como um observador neutro não
por exemplo, aprecia menos as posses, e detesta mais situado em nenhum espaço nem corpo (“ego-política
o trabalho; seus esforços, portanto, param logo. Um do conhecimento”), o que lhe permite portanto recla-
pobre selvagem se contentaria em colher frutos quase mar uma falsa objetividade e neutralidade epistêmi-
gratuitos da Natureza, se fossem suficientes para dar- ca, temos a nova situação de sujeitos das minorias
-lhe sustento; é apenas a necessidade física que leva discriminadas estudando a si mesmos como sujeitos
ao esforço. O homem rico na sociedade moderna está que pensam e produzem conhecimentos a partir de
aparentemente suprido com tudo que ele pode desejar corpos e espaços subalternizados e inferiorizados
e, no entanto, frequentemente trabalha por mais sem (“geopolítica e corpo-política do conhecimento”) pela
cessar (1983[1871], p. 116). epistemologia racista e o poder ocidental. (Grosfro-
guel, 2006, p. 32).

Frente ao racismo epistêmico, a busca pela


reflexão a partir de outras epistemologias, como a Essa posição epistemológica descolonizadora
afro-brasileira, não deve ser compreendida como um e política reflete o combate ao racismo epistêmico,
“revanchismo epistêmico” ou tentativa de inverter ao questionar a visão hegemônica branca acerca
as posições na arena na geopolítica do saber. Deve das minorias discriminadas que direcionava seus
ser papel do pesquisador buscar e apresentar alterna- esforços, inclusive intelectuais, em tornar estes
tivas epistemológicas considerando a complexidade últimos responsáveis pela sua própria condição de
dos fenômenos e a diversidade de formas de pensar marginalização, pobreza e vulnerabilidade.
Nesse contexto, Grosfroguel destaca que

303 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
Isso não apenas provocou o racismo epistêmico que pressupostos na afirmação da cultura afro-brasileira.
atribui e reconhece a produção de teoria aos sujeitos Assim, para articulá-los e recuperá-los, utilizando-
ocidentais brancos enquanto os não-brancos produ-
zem folclore, mitologia ou cultura mas não conheci-
-os na construção do habitus4 afro-brasileiro, faz-se
mento de igual para igual com o ocidente, mas abriu necessária uma orientação afrocentrada na pesquisa
um potencial para a descolonização do conhecimento e no pensamento (Asante, 1980).
ao desafiar a “ego-política do conhecimento” cartesia- A filosofia africana apresenta um caráter es-
na das ciências ocidentais, opondo-lhe a “geopolítica pacial ao conceber que “um pensamento não pode
e a corpo-política do conhecimento” dos sujeitos
subalternos (Grosfroguel, 2006, p. 32). existir sem saber de que lugar se origina, qual
caminho de origem e qual destino seguir. É neces-
sário saber de onde pisa para dialogar com outras
A proposta de um olhar descolonizador e afro-
construções de caminhos” (Santos, 2010, p. 7).
centrado sobre a epistemologia opõe-se aos mitos
Uma categoria ontológica e epistemológica no
da objetividade e neutralidade, que contribuíram
pensamento africano é ubuntu5. Um conceito que
para invisibilizar e deslegitimar quem fala e a partir
nos aproxima da compreensão das relações entre as
de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de
pessoas e com a natureza presente nas comunidades
poder se fala.
afro-brasileiras. Uma delas é a ideia de comunida-
Compreender a vivência cotidiana das co-
de, segundo a qual as pessoas dependem de outras
munidades quilombolas impõe ao pesquisador,
pessoas para serem pessoas, pois a noção central do
imbuído de intencionalidade emancipatória na sua
ubuntu é “Eu sou, porque nós somos”.
prática de reflexão e produção do conhecimento, o
É nitidamente perceptível a diferença entre
imperativo ético e político de revisitar o arcabouço
esse conceito e a noção europeia sobre a natureza
teórico-metodológico produzido pelos povos de
humana, que tem a liberdade como valor fundamen-
origem afro-brasileira. Essa rica e pouco conhecida
tal e, concebe, assim, com primazia a existência do
produção tem sido historicamente invisibilizada
poder de escolha dos indivíduos sobre suas ações.
pelo racismo epistêmico, que universaliza e legitima
Já para o ethos do ubuntu, em oposição à valoriza-
as concepções eurocêntricas de análise dos modos
ção ocidental do indivíduo, não é o valor individual
de vida de comunidades tradicionais.
que ganha ênfase, uma pessoa não só é uma pessoa
Nesse sentido, está a importância da com-
por meio de outras pessoas, mas também por meio
preensão dos valores africanos de referência e
de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”,
identidade, que se configuram como importantes
4
Categoria proposta por Bourdieu (2003) que explica que as percepções e os sentidos atribuídos às manifestações fenomênicas da saúde
dependem da posição que os sujeitos ocupam nos diversos campos do espaço social e de suas relações, muitas vezes de lutas e conflitos, mas
também cooperativas e comunicativas (Vieira, 1999). O habitus sintetiza a incorporação de elementos relativos à história coletiva e à trajetória
individual no inconsciente dos indivíduos, atuando como matriz de percepção e classificação das práticas, como um operador prático que ajusta
condições objetivas e esperanças subjetivas (Breilh, 2006).
5
Ubu-ntu é uma categoria ontológica e epistemológica no pensamento africano do povo de língua banta. É a indivisível unicidade e inteireza
da epistemologia e ontologia. Ubu é geralmente entendido como a existência e pode ser dito como uma ontologia distinta. Enquanto ntu é um
ponto no qual a existência assume uma forma concreta ou um modo de ser no processo contínuo de desdobramento que pode ser epistemolo-
gicamente distinto (Ramose, 2002).

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 45, p. 294-315, abril 2018. 304


portanto, também implica o cuidado para com o A afrocentricidade é definida por Asante co-
meio ambiente e os seres não humanos. mo “um tipo de pensamento, prática e perspectiva
Finch III & Nascimento (2009) ressaltam que percebe os africanos e afrodescendentes como
que o pensamento afrocêntrico tem seus primeiros sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre
registros a partir do século XVIII, incluindo de- sua própria imagem cultural e de acordo com seus
poimentos de africanos submetidos ao holocausto próprios interesses humanos” (Asante, 2009, p. 93).
da escravatura mercantil europeia. Eles destacam Esse paradigma ampara-se na afirmativa que
relatos e fatos relevantes tais como: a solicitação à os africanos e afrodescendentes devem “operar
justiça de retorno à África feita por escravizados al- como agentes autoconscientes” de sua história,
forriados em 1773 em colônias inglesas nos Estados cuja auto definição positiva e assertiva deve partir
Unidos e a publicação de obras abolicionistas por das “culturas africanas”. Essa perspectiva rompe
africanos antiescravistas com propostas de melhor com a ideia de “neutralidade” de ideias, conceitos
tratamento, libertação e indenização do africano e teorias, ao considerá-las enquanto produto de
pelos danos sofridos. uma matriz cultural e de uma história particular
No Brasil, destaca-se a “Carta da escrava Espe- (Mazama, 2009, p. 111).
rança Garcia do Piauí”. Trata-se de um texto dirigido A afrocentricidade é uma teoria que ressalta
ao Governador da Capitania do Piauí apresentando a necessidade de demarcar a localização do sujeito
queixas contra o administrador das fazendas reais. para desenvolver um engajamento teórico próprio
A carta tem importância para a derrubada do mito ao grupo social e fundamentado em sua experiência
da passividade, da convivência pacífica e da demo- histórica e cultural. Surge em oposição à supremacia
cracia racial dos escravizados com os senhores no branca, que se expressou ao longo da história tanto
Brasil, no cativeiro africano ali existente (Ferreira, como processo físico, marcado pela violência e
2008). brutalidade nos processos de escravização e colo-
Durante o século XX, diversos ativistas e aca- nização europeia, como na ocupação do psicológico
dêmicos africanos e afrodescendentes empenharam e intelectual africano e afrodescendente por meio
esforços para a consolidação do paradigma afrocen- da massificação de ideias, teorias e conceitos euro-
trado para as questões relativas à África e à diáspora. peus, tomados como naturais, universais e normais
Os principais estudos iniciaram na década de (Mazama, 2009).
1960 em Núcleos de Estudos Negros em algumas De forma assertiva e direta, Asante destaca
universidades nos Estados Unidos, como tentativa que
de formular teorias, abordagens e epistemologias
originais numa perspectiva negra, opondo-se à Ao recuperar nossas próprias plataformas, ocupar
naturalização e à hegemonia das epistemologias nossos próprios espaços culturais e acreditar que
eurocêntricas acerca de questões africanas. No final nossa forma de contemplar o universo é tão válida
quanto qualquer outra, poderemos atingir a qualidade
da década de 1970, Molefi Asante começou a falar de transformação de que precisamos para participar
sobre a necessidade de uma orientação afrocêntrica plenamente numa sociedade multicultural. Entretanto,
da informação. sem esse equilíbrio centrado não trazemos quase nada

305 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
à mesa multicultural, a não ser uma versão mais escura afro-brasileiras tais como: centralidade na comuni-
da brancura. (Asante, 1998, p. 8) dade, matriarcalidade, respeito à tradição, harmonia
com a natureza.
Um conceito central da afrocentricidade, e Tomar a perspectiva afrocentrada como refe-
bastante útil para a discussão acerca de desenvolvi- rência epistemológica e política capaz de questionar
mento em comunidades quilombolas, é o conceito a ordem estabelecida, bem como propor caminhos
de agência. Definido como a capacidade de dispor estruturados na experiência dos afro-brasileiros,
de recursos psicológicos e culturais necessários torna-se um desafio. É imperativo ressignificar o
para o avanço da liberdade humana, esse conceito olhar acadêmico sobre a experiência histórica de
denota “a capacidade de pensar, criar, agir, parti- produção de modos de vida capazes de garantir a
cipar e transformar a sociedade por força própria” resistência e a sobrevivência da cultura afro-brasi-
(Nascimento, 2009, p. 192). Enfim, um agente é “um leira, bem como a conservação dos recursos naturais
ser humano capaz de agir de forma independente nas comunidades.
de seus interesses”. (Id Ibid). Na linha oposta, a O reconhecimento da produção de conheci-
“desagência” é entendida como qualquer situação mento afrocentrado contribui para a construção de
na qual o africano seja descartado como ator ou concepções e práticas de desenvolvimento, enten-
protagonista em seu próprio mundo. didos aqui como um processo de fortalecimento da
O olhar afrocentrado no estudo das relações agência - “a capacidade de pensar, criar, agir, parti-
entre desenvolvimento e ambiente em comunidades cipar e transformar a sociedade por força própria”
quilombolas no Brasil perpassa pela necessidade (Nascimento, 2009, p. 98) – dos afro-brasileiros na
de alinhar epistemologia e análise dos fenômenos construção de processos de melhoria das condições
numa perspectiva emancipatória. O fomento ao pro- de vida, redução das desigualdades e conservação
tagonismo/agência dos afrodescendentes na descri- dos territórios, valores e princípios afro-brasileiros.
ção das suas experiências deve ter como referência
de análise os valores civilizatórios afro-brasileiros. 4. Complexidade e diálogo de saberes
Diante desse processo civilizatório, é impor- acerca do desenvolvimento em comunidades
tante destacar a impossibilidade de se pensar a quilombolas
afrocentricidade dissociada da alteridade, já que o
descendente africano no Brasil tem sua identidade
A complexidade das questões imbricadas no
formada, também, sob a influência de valores bran-
debate sobre desenvolvimento sustentável em po-
co-europeus e indígenas. Entretanto, a pertinência
pulações tradicionais só pode ser compreendida a
da abordagem se ampara na necessidade de pro-
partir de um pensamento também complexo, capaz
blematizar o padrão ocidental como característica
de estimular no pesquisador um modo de pensa-
principal da “civilização brasileira”.
mento aberto e flexível, dentro de uma perspectiva
As concepções e práticas de desenvolvimento
epistemológica integradora e abrangente capaz de
em comunidades quilombolas devem ser direta-
romper com propostas lineares e superficiais de
mente influenciadas por características culturais

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 45, p. 294-315, abril 2018. 306


produção do conhecimento, que concebem o uni- O arrogante pensamento domesticado, moderno,
verso como uma “máquina determinística perfeita” científico, que se consolidou a partir do século XV,
cercado de certezas, leis, determinismos, causalidade,
(Morin, 2009). teleologias, deixou de lado a preocupação com a to-
A análise das relações do homem com o meio, talidade, com a intuição, com o imaginário, passando
natural e social, requer a superação da concepção a se concentrar no entendimento do fragmento, da
reducionista e simplificadora tradicional na ciência, parte, supondo que através deles seria possível atingir
que comumente dilui a complexidade dos fenôme- uma objetividade sem parênteses. Com isso, virou as
costas para o sujeito, para a incerteza e para a com-
nos e das práticas humanas a fim de revelar a ordem plementaridade, privatizou terras e mares, considerou
simples a que eles obedecem. magias e mitos como algo irracional, produto descar-
O “Paradigma Dominante” é construído pela tável criado pela mente obscura de selvagens, ou por
racionalidade da ciência moderna e estabelece um alucinações dos civilizados (Carvalho, 2013, p. 40).
“modelo totalitário” de observar e compreender o
mundo ao negar a racionalidade de todas as formas Ao refletir sobre os limites da racionalidade
de conhecimento não pautadas pelos seus princí- capitalista e sua inerente produção de escassez,
pios epistemológicos e suas regras metodológicas para muitos, e desigualdades, Milton Santos traz à
(Santos, 2003). tona formas de resistência que os grupos excluídos
Esse paradigma pressupõe a separação entre desenvolvem, chamando atenção para o fato que
ser humano e natureza; visa a conhecer a natureza
para dominá-la e controlá-la; assenta-se na redução Na esfera da racionalidade hegemônica, pequena
da complexidade; possui como pressupostos a or- margem é deixada para a variedade, a criatividade,
dem e a estabilidade do mundo (Morin, 2002; 2003). a espontaneidade. Enquanto isso, nas outras esferas
surgem contraracionalidades e racionalidades parale-
Por outro lado, o paradigma afrocentrado las, corriqueiramente chamadas de irracionalidades,
tem um conjunto de valores, crenças e ideias que mas que na realidade constituem outras formas de
constrói um modo específico de observar, agir e racionalidade, produzidas e mantidas pelos que estão
compreender a relação entre as pessoas e com a “em baixo”, sobretudo os pobres, que desse modo
conseguem escapar ao totalitarismo da racionalidade
natureza em suas dimensões visível e invisível,
dominante (Santos, 2000, p. 58)
e que estabelece uma ética e uma estética para o
viver coletivo, fazendo com que seus limites não
coincidam com a dimensão geográfica do continente A desestruturação dos ecossistemas, guiado
africano (Alves et al., 2015). pela razão tecnológica e pela lógica do mercado,
O totalitarismo tendencial da ciência moder- acabaram por criar a necessidade de abordagens in-
na produziu ideias e concepções discriminatórias tegradoras de conhecimento capaz de compreender
acerca de outras formas de se relacionar e com- causas e a dinâmica dos processos socioambientais,
preender os fenômenos. Carvalho (2013) aponta os quais, devido a sua complexidade, extrapolam
algumas consequências desse processo, as quais, a capacidade de conhecimento dos paradigmas
nitidamente, impactaram os povos afro-brasileiros científicos dominantes, exigindo uma recomposi-
afirmando que

307 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
ção holística, sistêmica e interdisciplinar do saber servirão de constructo para a identidade dessa co-
(Leff, 2001). munidade, conferindo-lhes legitimidade. Diegues
Como possibilidade de superação da crise (2003) postula que a construção dessas comunida-
socioambiental gerada pela lógica capitalista de des está intimamente relacionada à construção de
exploração guiada pela racionalidade científica, sociedades sustentáveis, o que, para o referido autor,
o saber ambiental apresenta uma possibilidade de pressupõe pensar localmente, porém com resultados
hibridização das ciências com o campo dos saberes que alcancem o nível macro das relações sociais.
“tradicionais”, populares e locais. Nesse sentido, O reconhecimento dos elementos culturais e
a produção “interdisciplinar” de conhecimentos históricos é fundamental na construção de comu-
assume o compromisso de fomentar a autonomia nidades sustentáveis. A valorização dos modos de
cultural, por meio do protagonismo e autogestão vida solidários de respeito à natureza, não com o
dos recursos das comunidades, pela propriedade das intuito de capitalizar sobre os recursos naturais,
terras de uma população, por meio da utilização de mas como necessidade de manutenção da vida, em
conhecimentos que promovam a apropriação coleti- todas as suas formas, constitui um fundamento de
va dos recursos naturais, uma produção sustentável sociedades sustentáveis (Diegues, 2003).
e a equânime divisão da riqueza. Dessa forma, as A valorização do conhecimento tradicional
necessidades básicas das comunidades e a melhoria aponta diretrizes para modelos alternativos de de-
das condições de vida seriam os pilares dos projetos senvolvimento. O conjunto de saberes tradicionais
de desenvolvimento (Leff, 2000). engloba aspectos do mundo natural ao sobrenatural,
A proposta de hibridização das ciências com é transmitido oralmente de geração em geração e
os saberes e fazeres tradicionais se alinha à proposta estrutura a organização econômica e social com
da transdisciplinaridade de unir a tradição à ciência, reduzida acumulação de capital, não utilização de
procurando pontos de vista a partir dos quais seja mão de obra assalariada, valendo-se, em seu lugar,
possível torná-las interativas, fazendo-as sair de da apropriação e do uso coletivo dos recursos na-
sua unidade, respeitando as diferenças, apoiando-se turais presentes nos territórios.
especialmente numa nova concepção da natureza. A produção nas comunidades tradicionais
Para que as comunidades tradicionais possam está predominantemente organizada em atividades
se manter sob a perspectiva da sustentabilidade, de pequena escala como agricultura, pesca, extra-
precisam adequar suas características às inter-re- tivismo e artesanato. Um ponto importante nesse
lações com o lugar e, principalmente, agregar às modo de produção é a contribuição delas para a
suas necessidades pessoais e coletivas as atitudes conservação ambiental, visto que os produtores
de valoração, respeito e cuidado com o ambiente possuem conhecimento dos recursos naturais, seus
que as abriga. ciclos biológicos e outras informações importantes
Nesse processo se faz necessário inventariar que são passadas de geração em geração, além da
os elementos ambientais, culturais e históricos que utilização de recursos naturais renováveis.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 45, p. 294-315, abril 2018. 308


A Convenção sobre Diversidade Biológica6 perspectiva da complexidade, possuem organização
reconhece a estreita e tradicional dependência de fisiológica perfeita, ou seja, têm suas necessidades
recursos biológicos de muitas comunidades locais saciadas, pois a natureza, no sentido físico do termo,
com estilos de vida tradicionais e aponta para a tudo dá. Neste sentido, somente a partir da conserva-
necessidade de repartir equitativamente os benefí- ção dos traços originais será possível a convivência
cios da utilização do conhecimento tradicional, de harmoniosa do ser consigo mesmo.
inovações e de práticas relevantes à conservação Faz-se imprescindível a discussão da impor-
da diversidade biológica e à utilização sustentável tância de um pensamento territorializado, forne-
de seus componentes. Além disso, essa convenção cendo uma rica reflexão para a crítica da universa-
aponta para a necessidade de: lização do conceito de cultura que não faz ligação
com os fatos sociais ou históricos do próprio lugar
respeitar, preservar e manter o conhecimento, ino- (Santos, 2010). Dessa forma, pode-se compreender
vações e práticas dessas comunidades relevantes à o modo de vida que caracteriza um grupo por meio
conservação e à utilização sustentável da diversidade do estudo de sua cultura, que envolve a análise de
biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com
a aprovação e a participação dos detentores desse co- comportamentos, costumes e crenças aprendidos e
nhecimento, inovações e práticas. (Brasil, 2002, p. 11) compartilhados.
Diante do exposto, compreendemos o impera-
A união de saberes dá sentido e legitima tivo de pensar as relações entre desenvolvimento,
o senso comum e os saberes locais, levando o território e ambiente em comunidades quilombolas
conhecimento científico a transformar-se nele e, numa perspectiva centrada na experiência cultural
conferir-lhes racionalidade ambiental. E, apesar dessas comunidades. Faz-se necessário tomar como
dos desafios epistemológicos trazidos por uma nova pressuposto inicial a percepção da complexidade
racionalidade ambiental, é fundamental reconhecer existente nessas relações, bem como a importância
a gama de conhecimentos gerados e as práticas de evidenciar seus múltiplos aspectos, a fim de
ambientalmente positivas que esta nova realidade superar a superficialidade presente na análise sob
apresenta. Neste contexto, Leff (2001) destaca que a o ponto de vista universalista, excludente e, até
racionalidade ambiental incorpora o equilíbrio eco- racista, presente nos discursos e projetos de desen-
lógico como condição inicial do desenvolvimento volvimento predominantes no Brasil.
sustentável. Por outro lado, se funda em princípios Enfim, a superação dos problemas atuais
éticos (respeito e harmonia com a natureza) e valo- decorrentes dos modos vigentes de produção e
res políticos (democracia participativa e equilíbrio desenvolvimento, perpassa pelo reconhecimento
social) como novos fins do desenvolvimento. de formas tradicionais de interação entre o homem
Aplicar os saberes ambientais é o modo de e o meio ambiente. Nesse caminho, romper com
interligar o homem à natureza. Afinados a uma hierarquias e preconceitos em relação aos conhe-

6
Tratado internacional multilateral assinado durante Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no
Rio de Janeiro em 1992.

309 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
cimentos de comunidades tradicionais torna-se im- energias cósmicas e reside em todos os aspectos
prescindível para a produção de saberes capazes de da natureza e do universo, configurando-se como
apresentar um novo panorama fincado na esperança atributo vital dos seres, abrangendo os reinos mine-
e no respeito entre as pessoas juntamente com o ral, vegetal e animal, fazendo a natureza povoar-se
meio ambiente. de forças ligadas aos seus mais variados domínios
(Leite, 1996).
5. Princípios e valores para modelos Outro aspecto importante é o protagonismo
de desenvolvimento em comunidades feminino nas dinâmicas relacionais comunitárias
quilombolas e ambientais na cosmologia africana. A mulher é
detentora de uma forte personalidade comunitária,
religiosamente falando. É ela a detentora, também,
A cultura afro-brasileira tem, entre suas
da força espiritual, portadora de muito axé, o que
características centrais, valores e princípios que
viabiliza sua expansão e preservação por meio dos
demarcam elementos indispensáveis para a cons-
rituais (Lopes, 2008).
trução de modelos de desenvolvimento adequados
Em oposição à racionalidade tecno-científica,
às especificidades e necessidades das comunidades
que atribui superioridade à civilização ocidental, um
quilombolas. Dentre essas características, podemos
dos princípios fundamentais dentro da perspectiva
destacar a centralidade na comunidade; o respeito à
afrocentrada é a ancestralidade. Esse princípio fun-
tradição; o alto nível de espiritualidade e o envolvi-
da-se no respeito às experiências dos mais velhos,
mento ético; a harmonia com a natureza; a natureza
na comunicação que pode existir entre o mundo dos
social da identidade individual; a veneração dos
vivos e o mundo dos mortos, espíritos e entidades
ancestrais e a unidade do ser (Karenga, 2003).
sobrenaturais. Os ancestrais fazem a ligação entre
Pode-se perceber que essas características
o mundo visível e o invisível, colaborando com a
demonstram modos de ser e de atuar no mundo.
comunidade, orientando suas ações. A preservação
Determinam os modos de interagir com ele e de
da memória dos antepassados não leva somente a
visualizá-lo, atuando também sobre as relações so-
olhar o passado, mas também a estabelecer diálogos
ciais, as relações com o meio ambiente e as relações
com ele, absorvendo a sabedoria dos ancestrais,
com o metafísico, ou seja, com a própria existência.
que abrirão caminhos para novos tempos (Rocha,
Dessa forma, faz-se imprescindível vincular concei-
2011). Essa relação temporal integradora possibilita
tos, estratégias e ações acerca do desenvolvimento
encontrar caminhos já percorridos como possibili-
em comunidades quilombolas ao seu rico, complexo
dade de solidificar as vivências presentes e preparar
e aplicável arcabouço de saberes e práticas de har-
os passos futuros na construção de ambientes e
monização das relações comunitárias e ambientais.
comunidades sustentáveis.
O ponto de partida para a compreensão onto-
Nesse sentido, a oralidade enquanto forma de
lógica da relação entre o homem e a natureza, na
preservação de sabedoria e do conhecimento dos
perspectiva africana, é o entendimento sobre o axé.
antigos e ancestrais é um princípio fundamental na
O axé, sob esse olhar, é uma força que resume as
condução de projetos e estratégias de desenvolvi-

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 45, p. 294-315, abril 2018. 310


mento em comunidades quilombolas. O patrimônio Além dos princípios e valores afro-brasileiros,
cultural, ecológico e sanitário que fez com que o desenvolvimento sustentável em comunidades
essas comunidades resistissem às diversas formas quilombolas deve levar em consideração aspectos
de violência e tentativas de “genocídio cultural”, políticos, sociais, éticos, epistemológicos e tecnoló-
fortalecendo os laços comunitários e a vida har- gicos que promovam o protagonismo comunitário, a
mônica com o meio ambiente, resultam em muito redução da vulnerabilidade social e a emancipação
à força da oralidade. das comunidades (Tabela 1).

TABELA 1 – Princípios para o desenvolvimento sustentável em comunidades quilombolas.

Dimensão Desenvolvimento sustentável em comunidades quilombolas


Qualidade de vida, redução das iniquidades raciais e de gênero
O progresso como emancipação humana
Essência
Combate ao racismo
Visão holística e ambiental do desenvolvimento
Homem e natureza parte de um único Ser
Harmonia com a natureza
Natureza
Uso racional e sustentável da natureza
Combate ao racismo ambiental
Humanismo ecocentrista
Valorização dos valores espirituais
Aspectos éticos Alteridade: respeito pelos outros
Igualdade de gênero
Responsabilidade territorial e ambiental
Reduzida acumulação de capital
Dimensão econômica Economia em escala local e adequada às necessidade comunitárias
Acesso associativo, comunitário e individual
Tecnologias sociais, de baixo custo e replicáveis
Dimensão tecnológica Energia oriunda de recursos e fontes renováveis
Usos de tecnologias leves
Diversidade cultural
Comunidades protagonistas do processo de desenvolvimento
Dimensão social
Promoção da equidade
Promoção da cidadania e direitos sociais (saúde, educação, etc).
Gestão participativa
Planejamento e gestão Descentralização
Planejamento participativo e territorializado
Afrocentrado
Descolonizador e popular
Conhecimento Combate ao racismo epistêmico
Valorização dos saberes e práticas utilizadas ao longo do tempo
Diálogo de saberes populares e científicos
Luta pela cidadania
Caráter horizontal e participativo nas decisões
Dimensão política
Protagonismo comunitário
Efetivação de direitos constitucionais, principalmente titulação dos territórios

311 LACERDA, R. dos S.; SILVA, G. M. da. Desafios para a construção do conceito afrocentrado de desenvolvimento...
As proposta de agências governamentais, 6. Considerações finais
universidades, organizações não-governamentais,
entre outras instituições que debatem e fomentam o A sobrevivência física e cultural das comu-
desenvolvimento em comunidades quilombolas no nidades quilombolas frente à violência do sistema
Brasil, devem partir das necessidades e particulari- escravocrata e aos séculos de exclusão social teve
dades das comunidades. Para tanto, faz-se necessá- como alguns dos elementos centrais a utilização
rio superar os preconceitos e estereótipos racistas equilibrada e simbiótica dos recursos naturais.
que não reconhecem os quilombolas como sujeitos Além disso, as relações sociais de cuidado mútuo
de direito, protagonistas de suas histórias e agentes entre os membros das comunidades produziram
sociais criativos, capazes de participar ativamente solidariedades na gestão dos recursos, riquezas e
dos projetos e das propostas de desenvolvimento responsabilidades comunitárias imprescindíveis
sustentável nas suas próprias comunidades. ao processo de resistência vivenciado ao longo
Na arena de disputa entre projetos de de- dos séculos nas comunidades espalhadas no Brasil.
senvolvimento, onde os modelos hegemônicos se O reconhecimento do racismo como fator de-
apresentam como universais e tentam anular outras terminante das concepções, estereótipos, injustiças
possibilidades, o fortalecimento das estratégias e violação de direitos humanos e constitucionais
territorializadas, comunitárias e verdadeiramente no Brasil é etapa primordial para a redução das
sustentáveis apresenta-se como uma real possibi- iniquidades raciais. Combater o racismo em suas
lidade. Conservação ambiental, fortalecimento da mais variadas facetas, configuradas como barreiras
cidadania, valorização dos saberes, práticas e cons- ao processo de desenvolvimento das comunidades
trução de relações sociais saudáveis e solidárias, são quilombolas, principalmente o racismo epistêmico,
aspectos almejados pelas comunidades tradicionais ambiental e institucional, torna-se etapa indispensá-
e constituem possibilidades para partir de modelos vel na agenda de desenvolvimento sustentável para
de desenvolvimento que valorizem a diversidade. as comunidades quilombolas.
Nesse sentido, a ancestral cosmologia afro-brasilei- A complexidade inerente ao mundo real re-
ra é fonte rica de saberes e fazeres indispensáveis quer um pensamento complexo capaz de superar
ao fortalecimento das comunidades quilombolas. a superficialidade e a fragmentação do problema
Para além da preocupação com as gerações e das ações. Nesse sentido, a busca por aportes
futuras, a construção de um modelo de desenvol- teórico-metodológicos descolonizadores, que pro-
vimento “afro-sustentável”, para as comunidades movam o protagonismo afro-brasileiro, a partilha
quilombolas, amplia o olhar para formas de produ- entre diferentes saberes e a emancipação dos atores
ção para além de bens materiais, que valorizem a sociais, é determinante para êxito de projetos de
contribuição dos saberes, práticas e modos de vida desenvolvimento efetivos e socialmente compro-
das gerações passadas, ressignificando as necessi- metidos com a melhoria da qualidade de vida dos
dades atuais, com o cuidado entre as pessoas e com sujeitos envolvidos.
o meio ambiente.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 45, p. 294-315, abril 2018. 312


O fortalecimento do protagonismo das co- e racismo. Saúde em Debate, 39(106), 2015. Disponível
munidades é capaz de promover enfrentamento em: http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v39n106/0103-1104-s-
deb-39-106-00869.pdf
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